Você está na página 1de 19
ARTIGOS ARQUIMEDES, O RIGOR E O METODO Geraldo Avila 1. Introdugéo A obra de Arquimedes, pelos muitos elementos de criativida ont) a o Bm, @ pelo use magistral das recursns de invencia @ des tico de hoje como aos de muitas pocas passadas. Seus escritos, ex tensos e variados, sao, no dizer de Heath ([9], p. 20), “monumen tos de exposicdéo matematica”. Segundo Eves ({6], p. 143), os tra bathos de Arquimedes “muito se parecem com artigos especializados dos modernos periédicos". Para Plutarco ([14], p. 275) “nao € pos sivel encontrar em toda a Geometria questdes mais diffceis e com plicadas, ou explicagées mais simples e liicidas'. A propdsito do in teresse permanente de Arquimedes, cabe lembrar que suas obras, jun tamente com as de Euclides, ocupavam varios semestres de estudo no famoso Seminario de Matematica de Frankfurt nos anos vinte e trin ta, conforme nos conta Siegel [17]. coberta, enseja reflexdes tio oportunas e enriquecedoras ao matema, A importancia eo real significado da obra de Arquimedes sé podem ser devidamente apreciados numa analise que leve em con- ta a Spoca em que ele viveu, a influgncia que sobre ele tiverem seus predecessores e a que ele iria exercer no desenvolvimento da Matematica dezoito século apds sua morte. Procurando focalizar es ses varios aspectos, pretendemos expor no presente artigo algumas facetas interessantes da obra do grande gedmetra. 0 leitor interes sado em maiores detalhes deve consultar os abalizados livros de Heath [10] e Dijksterhuis [5]. Van der Waerden [18] também faz uma excelente exposicdo sobre Arquimedes, concisa e bem equilibra da. Outra obra muito recomendave], com a vantagem de estar em por tugués, € 0 livro de Aaboe [1], cujo capTtulo 3 € todo ele dedica do a Arquimedes. 2. Sobre a vida e os escritos de Arquimedes Alguns fatos pitorescos sobre a vida de Arquimedes estdo re latados em [16], e também a este artigo remetemos o leitor. Ja na antiguidade varias histérias foram escritas sobre Arquimedes, mas nem sempre posstvel verificar a veracidade de muitas delas. Tem- -se como certo que ele morreu em 212 a.C., fato este descrito em narrativas antigas, dentre as quais a de Plutarco (46-120), cujo livro de biografias [14] contém um capitulo dedicado a Marcelo, o general romano que comandou o saque de Siracusa em 212 a,c. Nessa biografia Plutarco fala longamente de Arquimedes (pags. 268 a 280 da edicdo brasileira; pags. 252 a 255 da edigio "Great Books"), re no referido saque, Sew nascimento em 287 a.C. & a conclusdo a que se chega por uma infor magao de que ele teria vivido 75 anos. Isto vem de um relato encon trado nos escritos de Joannes Tzetzes, um autor bizantino do sécu lo XII, portanto distante de Arquimedes cerca de 1.400 anos! Decer to Tzetzes se baseou em algum documento fidedigno, mas disto nada sabemos. Arquimedes viveu em Siracusa, mas acredita-se que ele tenha passado boa parte de sua vida em Alexandria, o mais importante cen tro de estudos da época, verdadeira capital do saber helenistico. Mi ele teria estudado com Euclides ou seus sucessores. De fato, todos os seus escritos, pelos temas que tratam, pelo conteiido e pe Jo estilo, tém os tracos caracterTsticos de um sabio de Alexandria, De resto, era seu costume enviar suas descobertas ao astrénomo Co non em Alexandria, a quem devotava grande admiragdo e amizade, Apds a morte deste, Arquimedes passou a remeter seus trabalhos a Dositeo, discfpulo de Conon, e também a Eratéstenes. Mais adiante reproduzimos trechos das cartas de Arquimedes a esses sdbios, Como aconteceu com muitas obras antigas, as de Arquimedes também se perderam ao longo dos séculos ou foram destruidas nos varios ataque que sofreu a biblioteca de Alexandria. (A propésito desse notavel centro do saber antigo, recomendamos 0 excelente artigo de Langer [13].) 0 que hoje possuimos da obra do grande ged Arquimedes, segundo poster feito na cidade de Si racusa, na [t@lia, por ocasiao de uma conferéncia eft homenagen ao geonetra grego, realizada de 11 a 16 de abril de 1961, com a participaco de matematicos, ff: cos e engenheiros de tedo o mundo. 29 metra deriva de manuscritos coptados uns dos outros ao longo dos séculos e cujos ancestrais @1timos datam da Spocado imperador Jus tiniano no século VI, portanto mais de 700 anos apds a morte de Ar quimedes! Esses manuscritos foram minuciosamente estudados e edi- tados no final do século passado pelo eminente fildlogo dinamar qués J.L, Heilberg, Em [1] 0 leitor encontrara uma relagao das obras de Arquimedes que chegaram até nds. No comeco do presente século o mesmo Heiberg faria uma descoberta sensacional de um novo livro do grande gedmetra, até entGo desconhecide no mundo cientifi co. E sobre isto que falaremos em seguida, Hétodo™ Os escritos de Arquimedes sdo dotados de uma adwiravel es trutura légica e que, por isso mesmo, nem sempre revelam os cami nhos que guiaram o autor em suas descobertas. No dizer do matemati co Wallis (1616-1703), citado por Heath, "8 como se ele tivesse de liberadamente ocultado da posteridade o segredo de seu método de investigacdo". Referindo-se @ obra de Gauss (1777-1855), cujos es critos também muitas vezes escondem os caminhos da descoberta, Sar torius explicava que a obra acabada é como um edifcio, cuja cons truco requer os andaimes, mas que estes, uma vez retirados, ndo deixam tragos de como foi feito o edificio, Arquimedes, no entanto, faz referencia a um método mecanico de descoberta quando, no prefacio de seu livro "A Quadratura da Pa rabola" éle diz a Dositeo que vai “comunicar-lhe (...) um certo teorema geométrico (...) que eu descobri primeiro por meios mecani. cos". Esse "método mecanico" de Arquimedes na verdade sempre exis. tiu e nio foi por ele escondido, mas exposto em um de seus livros, escrito em forma de carta a Eratéstenes, porém perdido para a pos teridade. 0 leitor pode, pois, imaginar o grande interesse e a cu riosidade com que foi recebido o aniincio dessa descoberta no int cio do nosso século pelo mesmo Heiberg que editara as obras de Ar quimedes. Tudo comecou quando Heiberg soube, pela leitura de um artigo publicado em 1899, da existéncia de um palimpsesto descober 31 to no Mosteiro do Santo Sepulcro em Jerusalém e levado para Cons. tantinopla, © qual apresentava tragos de alguma escrita matemati ca, Ele teve logo a suspeita de que se tratava de algum trabalho de Arquimedes, o que de fato ficou posteriormente comprovado pelos exames que fez do préprio palimpsesto em Constantinopia. Pelas des cricées de Heath [10], baseadas nas do prdprio Heiberg [12], va, rios livros de Arquimedes haviam sido escritos em pergaminho, no sSculo X, totalizando perto de 200 folhas em coluna dupla. Poste riormente, o material fore usado para nele se escrever um livro de oragées, removendo-se primeiro, tanto quanto possivel, a escrita original. Heiberg conseguiu ler quase toda a escrita subjacente, verificando que o palimpsesto continha, além de obras conhecidas de Arquimedes, 0 texto inédito e quase completo do livro a que ja nos referimos, conhecido pelo titulo de "0 Método", Esse livro comeca assi Anquimedes a Exatdstenes, Saudagées, Enviei~Lhe em outha ocasido afguns tecremas desco bertos por mim, meaamente 06 enunciados, deixande-2he a tanega de descobrin a8 demonstracdes entdo omitidas. (,..) Vendo em vocé um dedicado estudioso, de conside navek eminenea em Figosogéa ¢ um admiradod da pesque sa matematioa, julgued conveniente eserever-the para explicar as pecusianidades de um certo metodo pelo quat & possivel investigan alguns problemas de Natematica por meios meeanicos. (..,) Certas coisas primeino se tonnaram clanas para mim peko metodo mecdnico, embora depois tivessem de ser demonstradas pela Geometria, fa que sua investigagdo pelo negerido metodo ado conduzts Se a phovas acedtaveis. Certamente @ mais {aed2 fazer as demonstragoes quando temos previamente adquirido, pe £o métedo, atgum conhecimento das questoes do que sem esse conhecimente. (.,.) _Estou convencido de que ete send valioso pata a Matematica, pois pressinto que ou tno investigadores da atuatidade ou do gututo desc bréndo, pelo método aqui descrito, outnas phopesigdes que nao me ocoakeram. 32 Comentando o trecho final desta citagdo, D.E. Smith [11] ob serva que "talvez em toda a Histdria da Matematica, nenhuma verdade profética como essa jamais foi expressa em palavras, Parece até co mo se Arquimedes visse, numa visio, os métodos de Galileu, Cava lieri, Pascal, Newton, e muitos outros grandes matematicos da Re. nascenga e da atualidade". Vamos descrever, a seguir, apenas os dois primeiros proble mas tratados por Arquimedes com recursos mecanicos, pois eles sao suficientes para bem ilustrar a esséncia de seu método. Ainda no prefacio (carta a Eratéstenes) do livro "0 Método" Arquimedes escreve: Enunciared o primeino teorema que descobrd por metodos mecanicos, iste 2: quatquen segmente de parabola & qua tro terges do tridnguto com a mesma base e iguat = ak tuna. Dada uma parabola 4BC, com eixo e, seja D o ponto me dio do segmento AC e # a intersegio da parabola com a_ reta paralela a e passando pelo ponto D. 0 que se pretende estabe lecer 8 que a Grea do segmento de parabola 4a¢ € 4/3 da area do 33 triangulo agc, Para isto tragamos a reta CF tangente @ parabola em ¢. Por um ponto arbitrario Z da parabola e “também por 4 tra amos respectivamente os segmentos IX e AF paratelos ao exo. Tragamos também, por C e 2 0 segmento CH que encontra AF em 4 e tal que cg = GH. Por propriedade da parabola, DB = BE, de sor, te que Iv = JK @ AG = GE, Ainda por propriedade da parabola podemos escrever: Mas. de forma que Esta proporgdo, que em forma moderna pode-se escrever KI.Gr KL-GH, nos diz que se interpretarmos #J como uma alavanca de ful. cro em G, entio o segmento xT no extremo J equilibra o segmen to 1x (= MN) no extreno #. (Isto 6 a lei da alavanca, obtida pelo préprio Arquimedes em seu livro "Sobre o Equilibrio de Figu ras Planas".) Variando o ponto & ao Tongo do arco de parabola ALBC, obtemos o triangulo AFC como unido de todos os segmentos do tipo xr e 0 segmento de parabola como unido de todos os seg mentos do tipo xz. Agora vem a parte heurTstica do método: consi derando o triangulo AFC e 0 segmento de parabola AC como reu nigo dos infinitos segmentos xr e KE respectivamente, presume- se que o segmento de parébola com seu centrdide em # equilibrara o triangulo AFC onde ele se encontra, com centroide X: Gx=G¢/3-0H/3. Sendo p a Grea do segmento de parabola 48¢ e a(AFC) a do trian gulo AFC, teremos entéo: a(Arc) _ oH aE Mas a(AFc) = 4a(ABC), logo p = 4a(ABC)/3, que & o resultado de sejado. Arquimedes observa que esse argumento dd um bom indicio de que a conclusdo @ verdadeira, Esta, porém, nas palavras do proprio 34 Arquimedes, “requer demonstragio geométrica, que eu mesmo deseo. brie j@ publiquei" (no livro "A Quadratura da Parabola"), 5. 0 volume da esfera Vejamos agora como Arquimedes caTculou pelo seu método meca nico, o volume da esfera. Na verdade, ele enuncia a seguinte (Pro posigao 2): 1) 0 votume de qualquer eofera é quatro veses o do cone com base igual a um grande ctreuto da esfera 2 altura igual ao rato da mesma esfera; @ 2) 0 volume do ettindro com base igual a um grande ctreuto da esfera ¢ altura tgual ao dtdmetro é& ib vezes 0 volume da es fera. Para estabelecer esses resultados, Arquimedes procede da seguinte maneira: seja ABCD um cTrculo maximo da esfera, com dia metros perpendiculares 4c¢ e BD. Imaginemos um outro cTrculo ma ximo no plano que passa por 8D e & perpendicular a AC, Conside- remos 0 cone dos segmentos de reta originando em 4 (vértice do co ne) e@ passando pelo segundo circulo descrito acima, cone este ten do como base o circulo de diametro FG e que jaz num plano perpen- dicular a 4c. Finalmente seJa EFGH o cilindro de base — coinci, dente com a do cone descrito e eixo AC, Feitas essas construgdes, seja MY uma reta do plano ABD, perpendicular a AC e que corta © segmento AC no ponto @. Teremos entdo: ap? + 907 = 49” + go” portanto, @P*4Q0" _ AQ.AC | AQ.AC _ AQ on* a act A 35 au ¥ e z o lc Z ze ® e Isto mostra que soma das @reas dos circulos de diametros PR e OS esti para a Grea do circulo de diametro mw assim como 49 esta para Ac. Vamos agora estender CA ate C' de forma a termos Ac=ac' e considerar cc' como alavanca de fulcro em 4, Novamente, pela lei da alavanca, a relacdo acima, ar’ + Qo _ 4a qe ae significa que os cTrculos de diametros PR e 98, quando transfe ridos para ¢', equilibram o cfrculo de diametro #¥ Yocalizado em @. Em seguida consideramos o cilindro como uniao dos cTrculos de diametro mY, @ variando de 4 até ¢; e analogamente para aesfera eo cone AG, de sorte que concluimos que o cilindro, com centroide em 7 (47 = AC/2), estara em equilfbrio coma esfe ra e 0 cone transferidos para ¢', como ilustra a figura, Desig nando por Yu, Co @ Cz os volumes da esfera, do cone e do cilin dro respectivamente, obtemos: ou seja, Sabemos, por outro lado, que Cy; = 3Cy3 portanto, C, = 2¥z. Mas como 7G = 28D, obtemos que Co = 8 vol, (cone ABD). Daqui e de fo = 2¥, segue-se que Vz = 4 vol. (cone 457}. (E claro que isto significa precisamente que Vy = 4ar°/3, onde 7 @ 0 raio da esfera.) Isto estabelece o resultado 1). Por outro lado, vol.(ctl. Tvki) = 2 vol, (cil, 2DIK) + (cone 43D) que & o resultado 2). Vejamos agora o que diz Arquimedes logo ao final dessa “de monstragao": _ Deste teonema, segundo o qual o vokume da esfera @ quatre vezes c do cone tendo por base um ctheute maximo da esfera e altura iguad ao raio da esgera, eu concebé a iddia de que a superficie da esgera & quatnc vezes a de um de seus cteculos maximos; pois, a jutgax pelo gato de que a area do circuto &@ igual @ do tréangulo que tem por base a cércungeréncéia altura igual ac naio, vejo que, do meamo modo, 0 vo fume da esgena & égual ao do cone com base iguat @ 4upergicie da esfeha e altuna igual ao radio. Arquimedes revela at a notayel argicia de seu raciocinio, No dizer de Aaboe ([1], p. 124), “este € 0 primeiro e um dos mais 37 preciosos exemplos de ousada analogia na Histdria da Matematica". Arquimedes compara a esfera em relacdo ao seu volume e sua Grea, com o circulo em relacdo &@ sua area e sua circunferéncia; e do resultado j4 obtido para o cTrcuJo (no tratado "A Medida de um Cir culo"), com o resultado agora descoberto sobre a esfera, ele infe re que a area da esfera € quatro vezes 3 de un de seus circulos maximos ! Pelo que se vé, Arquimedes primeiro obtém o volume da este ra para depois calcular sua Srea Ap. De fato, o final da cita 1 go acima significa que ¥, + 34,7, donde se obtém, juntamente com {cone app) - 2 (ue? pe ‘ By = Z uet he, a fOrmula da drea da esfera: a, = 4tr*, Mas como observa Heath Od). p. 21 de "0 MEtodo"), em seu livro "Sobre a Esfera e o Cilindro I", Arquimedes calcular primeiro a area, na Prop. 33, depois o volume, na Prop, 34, 0 que mostra que “a ordem das proposigdes na versio final dos tratados do gedmetra grego néo segue necessariamente a ordem de suas descobertas”. "J. entre o muito que inventou parece-me que o que mais apreciaya era a demonstra gao da proporgao que ha entre o cilindro <> @2 esfera nele contida, pelo que _pediu a seus parentes que, quando morresse, man dassem colocar sobre sua sepultura un ci, Tindro contendo uma esfera com uma insert cao da proporcao pela qual o contido eX cede o conteiido" (Plutarco). Cicero, quan i do servia na SicTlia como questor, ‘encon, trou uma 1apide com uma esfera ‘inscri= ta num cilindro, pelo que julgou haver des coberto 0 timulo de Arquinedes. — Cuidou entao de restaura-1o, j4 que ele se encon trava totalmente abandonado. [Esta histé ria & devida ao proprio Cicero, citado oor Heath (L101, p. xviti).J for Is Je ba 38 6. 0 rigor das demonstracdes Depois da exposicdo que fizemos nas secées anteriores, pro curando mostrar como Arquimedes fazia descobertas utilizando seu método mecanico, devemos agora expor 0 lado rigoroso da obra do grande gedmetra. Tomamos, como exemplo, o calculo que ele fez da Grea da parabola, objeto de seu livro "A Quadratura da Parabola", que assim se inicia: Arquimedes a Dositeo, Saudagdes Quando eu soube que Conon, que fod meu amigo em vida, estaya morto, mas que V. era conhecido de Co non @ também versado em Geometaia, enquanto eu de plorava a_perda nao 40 de um amigo mas de um admina vel matematico, deeidé comunicar a V., como eu dese java enviar a Conon, um certo teorema geometnéco que h@o tinha sido investigade antes mas que fod agora Anvestigado por mim, @ que eu descobrd primeino por métodos mecdnicos 2 exdbé pon medos geometricas. AL guns gebmetras tentaram estabelecer a possibitida de de achat a area retittnea iguak a um dado einen £0 (...) Mas desconhego que qualquer de meus pace cessones tenha tentade a quadnatuna da parabola, ca ja solugho eu deseobrt agora... © que pressupde o Beguinte Lema: (1) "Por repetidas adigdes a si meamo, 0 excesso pelo qual a maior de duas ateas exeeded a menor po de exceden quatquer area finita dada, Arquimedes @ digno de muita admiragéo quando diz que outros gedmetras tentaram a quadratura do cTrculo, mas ninguém, ao que ele saiba, tentou a quadratura da parabola. Isto & notavel! Nao & a parabola mais complicada que o circulo? Nao seria entéo de se esperar que sua quadratura fosse mais diffcil que a daquele? Tal vez os gedmetras que tentavam e nao conseguiam quadrar o circulo imaginassem que fosse mais diffcil e portanto menos provavel qual. quer sucesso na resolucao de quadraturas como a da parabola, Mas 39 ndo Arquimedes! Frequentemente, quando nao conseguimos resolver determinado problema, procuramos formular problema andlogo mais simples, que possa ser resolvido, Arquimedes parece fazer o contra rio A proposicéo (1) acima € a forma original do conhecido “Pos tulado de Arquimedes" (que aparece também no livro "Sobre a Esfera eo Cilindro I", onde figura como Postulado 5). Arquimedes obser. va, logo apés 0 enunciado desse "lema" (assim ele designa o referi do postulado) que os geometras seus predecessores ja o usaram em outras demonstragdes. De fato, a Def. V.4 que aparece em Euclides [8] & praticamente a mesma coisa, e com ela se demonstra a Propo. X.1 (de Euclides) que diz: (2) Dadas duas grandezas distintas, se da maior se subtrat mats que sua metade, e do restante mats que sus metade, ¢ assim por diante, avabara restando uma grandesa menor que a menor das grande nas dadas. Para a demonstracdo que faremos a seguir, convém observar também que a Def. V.4 acima refertda ou o Postulado (1) podem ser expressos nas seguintes formas equivalentes: (3) Dadas as grandezas Ae B existe um milltiplo de 4 que supera B, tsto é, nA > B. (4) dadas as grandezas A ¢ B, existe um eubmiltéplo de 8 menor que A, isto é, Bea. Posto isto, vamos considerar agora a maneira como Arquime, des demonstra rigorosamente o resultado da Sec. 4 acima, Ele utili, 2a, como veremos, 0 chamado “método de exaustdo", argumentando por “dupla redugdo ao absurdo", Esse método consiste no seguinte: pelo ponto médio D da base 4¢ do segmento de parabola zc tra amos a paralela ao eixo da parabola, que vai cortar a parabola em 5. Repetimos a mesma construcgao referente aos segmentos 45 e BC, obtendo os pontos 5 e F respectivamente, e assim por 40 diante. A idéia @ aproximar a Grea da parabola pela soma das areas dos triangutos 48C, AEB, BFC, etc, ~ E propriedade da parabola que a tangente em B @ paralela a 4c, donde segue-se que a area do triangulo Asc que removemos do segmento de parabola 6 maior que a metade deste, pois tal area, que @ igual @ soma das areas dos triangulos AsG e BCH, supera as Greas dos segmentos restantes de parabola 4&3 e BFC, De igual maneira, as areas dos triangulos ABE e 8¢F superam a metade das areas dos respectivos segmentos de parabola onde se inscrevem; e assim por diante. Isso vai permitir-nos utilizar a Prop. (2) aci mae concluir que, apds a retirada de um niimero suficientemente grande de triangulos inscritos, a area restante do segmento de pa rabola seré menor que qualquer area dada de antemao, Observamos agora que se prova, por propriedades da parabola, que as Greas dos triangulos removidos em cada etapa somam 1/4 do total das greas dos triangulos removidos na etapa imediatamente pre cedente. Assim, se designarmos com a, as somas das areas dos trian gulos removidos na n-@sima etapa (observe que a, @ a Grea do trian gulo Ac, a, @ a soma das areas dos triangulos ABZ e BCF, etc.), teremos Para lidar com esta soma Arquimedes prova que se a ela adi cionarmos 1/3 do Ultimo termo a, obtemos o niimero = 4@,/3, in dependentemente de m, Isto se faz notando que 4a, @, a1 a, a, 4-2 aw TF a Entao, Estamos agora prontos para terminar a demonstragaéo com a dupla redugio ao absurdo. Queremos provar que a area Z do segmen to de pardbola igual a x, © que faremos provando, separadamen te, que tanto a hipdtese Z> K como a hipdtese 2 < K conduzem a absurdos. 1) Hipdtese 2 > x, Pelo lema (2), dadas as grandezas 2 © depois de um certo nimero » de etapas de remogdes de rfEngulos, obteremas Z-S,<2-K; Jogo, 8, > %, o que € absurdo, pois #, + 4,/3 = x. 2) HipOtese Z < XK, Pela forma (4) do Postulado de Arquime des, dadas as grandezas a e X-% podemos chegar a um a, = @,/4" menor que X-2. Entdo, a, K6, =< Kz; logo 5, > 2. Mas isto também @ absurdo, 7. Por que tanto rigor A demonstracao que acabamos de dar & bem tipica do rigor que encontramos na obra de Arquimedes. Para nds hoje, ou para qualquer matemtico dos tempos modernos, a soma da série de reduzidas 5, aci ma pode ser facilmente obtida, tomando-se o limite com n+, (Alias, cabe notar, de passagem, que este o primeiro exemplo de ocorrén cia de uma série infinita no desenvolvimento da Matematica.) Arqui. medes, entretanto, ndo passa ao limite, preferindo um procedimento menos simples, porém, perfeitamente rigoroso. Para bem entender por que os matematicos gregos impuseram a si tio altos padrées de rigor, j@ ao tempo de Euclides, e mesmo um pouco antes, devemos lembrar o debate ocorrido nos séculos pre cedentes em torno das teortas do atomismo e continuidade da maté~ ria [18]. Embora o escopo dessas tdéias fosse primeiro o mundo fi sico, elas naturalmente abarcaram tamb&m o dominio matemitico, on de as opinides se dividiam e a pol8mica acabou desembocando na cri se de fundamentos provocada pela descoberta dos incomensuraveis (veja nossos artigos [2] e [3]), 0 atomismo originou-se com Leucipo e Demécrito no século a.C., mas fot Demdcrito (460-3702) quem elaborou e divulgou as idéias ligadas a essa teoria, segundo a qual a matéria @ constitui da de elementos indivisfvets, os a@tomos. Demdcrito foi também um gedmetra eminente, a quem Arquimedes, no prefacio do Tivro "0 Mato. do", atribui a descoberta de que os volumes da piramide e do cone sdo um tergo dos volumes do prisma e do cilindro respectivamente, embora as demonstracdes desses resultados, ainda no dizer de Arqui. medes, sejam devidas a Eudoxo. 0 atomismo em Geometria significa va, por exempio, que um sélido seria constituido de elementos indi. visiveis. Mas o préprio Demécrito apontava a dificuldade dessa concep¢ao com as seguintes constderagdes ([15], p. 83; [5], p. 320): imagine um cone cortado por um plano paralelo a sua base, produzin do dois cfrculos, um no cone menor resuitante do corte e outro no tronco de cone logo abaixo. Pots bem, esses dois circulos sao iguais ou diferentes? Se diferentes, entao, como o mesmo fendmeno deve ocorrer em cada corte, devemos conciuir que a superficie 1a teral do cone néo & lisa, mas coberta de indentagdes; por outro 1a do, se os circulos fossem iguais, entéo seria sempre assim com to dos os cortes semelhantes e, portanto, o cone nao seria um cone e sim um cilindro! Schrédinger, na citagdo acima, sugere que racio cTnios como este teriam levado Demdcrito a estabelecer uma ciara distingio entre os conceitos geométricos e suas imperfeitas reali Zagdes no mundo material, uma clara antecipagio do idealismo de Platio. Oe 43 Sio também dessa época os famosos paradoxos de Zeno ([4], p. 55), cujos objetivos precisos néo sao conhecidos,.mas que tiveram o efeito de por as claras as dificuldades inerentes ao uso do infi nito nos argumentos matematicos. As consequéncias disso para o pos terior desenvolvimento da nossa ciéncia apresentam-se sob um duplo aspecto. De um lado, a Geometria encontra na teoria das proporcdes de Eudoxo o instrumento adequado para lidar com as grandezas inca mensuraveis; e de outro lado, 0 método de exaustdo, também atribui, do a Eudoxo, & 0 recurso eficaz para evitar o uso do infinito nas demonstracdes. Assim, a Matematica se geometriza e se reveste de jmpecdvel rigor, exibindo nas obras de Arquimedes a expressio mais alta desse desenvolvimento, 8. Arquimedes e o futuro 0 m&étodo de demonstragaéo indireta, com dupla reducéo ao ab surdo, embora proporcione rigor preciso, exige conhecimento prévio do que se pretende demonstrar, portanto nao serve como instrumen to de descoberta. 0 método mecinico de Arquimedes, ao contrario, permite, como vimos, descobrir resultados novos. Como ficou ilus. trado nos exemplos que exibimos nas Secs. 4.e 5, esse método ex ge a decomposicado de figuras planas em segmentos retilineos ou de volumes em areas. Assim, os corpos geométricos séo vistos como agregados de elementos "indivisiveis", como os segmentos rettli neos das figuras planas ou freas no caso dos sélidos. Mas essa concepcdo atomistica esbarrava nas dificuldades que 0 infinito trazia para o raciocinio matematico. Se um sélido €@ um — agregado de figuras planas, poder-se-ia obter seu volume como a soma de uma infinidade de areas? ou como a soma infinita de volumes infinita mente pequenos? Sem responder a perguntas como essas, Arquimedes utilizava seu método como instrumento iitil de descoberta e manifes. ta-se convencido de sua eficacia nas mios de outros matematicos, r de sua poca ou do futuro. E aqui reside o que D. E, Smith conside ra uma verdade profética. Mas era preciso que decorressem mais de dezoito séculos para que a profecia se concretizasse. Como bem diz Barding ([7], p. 148), dentre as razdes por que Arquimedes nao te ve seguidores imediatos estio seus dotes muito superiores, 0 efei to esterilizante que a conquista romana teve sobre a ciéncia grega em geral e a prépria natureza do argumento indireto de demonstra gio que, como ja dissemos, ndo se presta a descobertas novas. © século XVII veria brotar de novo o método dos — indivisT, veis nas obras de Kepler, Galileu, Cavalieri e muitos outros mate maticos. Nessa poca pés-renascentista, quando em Matematica o es tudo das obras classicas adquiria maior intensidade, os escritos de Arquimedes voltavam a ser conhecidos, estudados e admirados, exercendo grande influéncia na investigacao matematica da época — ha criagdo da nova anadijise dos indivisTveis — embora o método meca nico permanecesse desconhecido. 0 mesmo Wallis, que j3 citamos an tes, observava que “era mais facil inventar uma nova Analise do que redescobrir a antiga, tio bem escondida estava esta". A in vengao desses novos métodos dos indivisiveis, sua evolucdo para o moderno Caiculo Diferencial e Integral e a expticagao de como tudo isso pode ocorrer sem a ajuda direta do método de Arquimedes, outra histdria muito interessante, mas que ja ndo cabe mais nos lit mites deste artigo. Referéncias [1] A, Aaboe: Episddios da Histinia Antiga da Matematica, Publica gao SBM (1984), ~ [2] G. Avila: Eudoxo, Dedekind, Nimeros Reais e Ensino de Matematé ea, Revista do Professor de Matematica, n9 7 (1985) 5-10, [3] G. Avila: Grandezas Incomensurdveds e Namenos Innactonais, Re vista do Professor de Matematica, no 5 (1984) 6-11, [4] C.B. Boyer: Histixnia da Matematica, Editora Edgard Blicher, Sao Paulo (1974), 5] E.J. D B] (1956), ksterhuis: Archémedes, Ejnar Munksgaard, Copenhagen [6] i (8) By Oo] Oj 03 Os) o4) f18] (6) oa hs] Instituto de Matematica, UNICAMP 13.100 Campinas, SP 45 H. Eves: An Intxoductéon to the History of Mathematics (revised edition), HoTt, Rinehardt and Winston (1964), L. Barding: Encontno com a Matematica, Editore Universidade de BrasTlia. T.L. Heath: Euckid’s E£ements, 3 vols,, Dover Publications, T.L. Heath: Gueek Mathematics, vol, II, Dover Publications. T.L. Heath: The Works of Archimedes, Dover Publications. J.L. Heiberg: Geometnécal Solutions Derived from Mechanics, A Treatise of Archimedes with an Introduction by David Eugene Smith, The Open Court Publishing Co., Chicago (1909). JL. Heiberg: Hexes ~ Zedtschnife glin Klassische PhitoLogic, vol. XLII (1907) 235 seq., Wiesbaden. R.E. Langer: Agexandtia, o Santuario da Matematica, Revista Humanidades, Editora Universidade de BrasTlia, vol. Il, nQ.7 (1984)" 57-70. (Este artigo € uma traducao de "Alexandria ~ Shrine of Mathematics, American Mathematical Monthiy, vol. 48 (1941) 109-125.) Plutarco: Ag Vidas dos Homens Teustaes, vol, 3, Editora das Américas, Sd0 Paulo. Edicao em inglés na colecdo "Great Books of the Western orld" da "Enciclopaedia Britannica Inc.*, onde figura como vol. 14. E. Schrédinger, Nature and the Greeks, Cambridge University Press (1954). Severino de Souza: Arquémedes e¢ a Conca do Rei, Revista do Professor de Matematica, n? 9 (1986). C.L. Siegel: On the Hésteny of the Frankfurt Mathematios Seminar, The Mathematical Intelligencer, vol, 1 (1979) 223-230. B.L. vand der Waerden: Seéence Awakening, vol, 1, Noordhoff International Publishing, Leyden (1975).

Você também pode gostar