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O ENRIQUECIMENTO SEM
CAUSA NO NOVO CÓDIGO
CIVIL BRASILEIRO*
Luís Manuel Teles de Menezes Leitão
RESUMO
Entende ser a cláusula do art. 884 do novo Código Civil – que trata do enriquecimento sem causa – demasiado genérica, o que possibilita sua aplicação
indiscriminada.
Aduz que a subsidiariedade consagrada no art. 886 do Código Civil não tem alcance absoluto e cita várias hipóteses em que pode a ação de
enriquecimento sem causa concorrer com outras ações, como a de reivindicação e a de responsabilidade civil.
Traz a lume, assim, uma tipologia de categorias a fim de efetuar a adequada subsunção do enriquecimento injustificado aos casos concretos. Adota,
para tanto, a doutrina da divisão do instituto, oriunda do estudo de juristas alemães, e avalia que tal tipologia destaca a insuficiência do enriquecimento
sem causa na resolução de certo tipo de questões. Não obstante tais limitações, porém, considera que o momento atual representa um desenvolvimento
desse instituto, cujo modelo vem sendo exportado a diversos países.
PALAVRAS-CHAVE
Enriquecimento; Direito Civil; novo Código Civil brasileiro – arts. 884 e 886; obrigações – fonte; ato unilateral; Código Civil alemão; Direito
português; Direito alemão.
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* Conferência proferida na “II Jornada de Direito Civil”, realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, de 17 a
25 de novembro de 2003, nos auditórios do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal
da 4ª Região.
A
enriquecimento, se a lei conferir ao 3 CONFIGURAÇÃO DOGMÁTICA DO
norma do art. 884 do novo Có- lesado outros meios de se ressarcir INSTITUTO
digo Civil brasileiro, que dis- do prejuízo sofrido. A referida norma
põe: aquele que, sem justa pretende estabelecer que a ação de A configuração dogmática do
causa, se enriquecer à custa de ou- enriquecimento seja o último recurso enriquecimento sem causa tem sus-
trem, será obrigado a restituir o a utilizar pelo empobrecido. Estar-lhe- citado, porém, certa controvérsia na
indevidamente auferido, feita a atuali- á, por isso, vedada a sua utilização doutrina, apontando-se as seguintes
zação dos valores monetários, inspi- no caso de possuir outro fundamento posições: a) teoria unitária da deslo-
rada na velha máxima de Pomponius para uma ação de restituição (como cação patrimonial; b) teoria da
de D.50.17.206, apresenta-se como um em caso de anulação do contrato por ilicitude; c) doutrina da divisão do ins-
princípio em forma de norma 1, por meio erro ou dolo – arts. 138 e ss.), no caso tituto.
do qual se institui uma fonte genérica de a lei pretender que a aquisição à
das obrigações, segundo a qual o custa de outrem seja definitiva (como 3.1 A TEORIA UNITÁRIA DA
enriquecido fica obrigado a restituir ao nas hipóteses de usucapião – arts. DESLOCAÇÃO PATRIMONIAL
empobrecido o benefício que injusti- 1.238 e ss. – e prescrição – arts. 189
ficadamente obteve à custa dele. A e ss.) ou quando a lei atribui outros De acordo com a tradicional
colocação do enriquecimento sem efeitos ao enriquecimento sem causa doutrina unitária da deslocação
causa entre as fontes das obrigações (como na modificação do contrato, em patrimonial, surgida quando da ela-
constitui uma das importantes inova- caso de lesão – arts. 157 e ss. ou por boração do Código Civil alemão, a
ções do Código Civil brasileiro, ainda onerosidade excessiva – arts. 478 e cláusula geral de enriquecimento sem
que seja a de criticar a sua inserção ss.)3. Essa exclusão ocorrerá mesmo causa institui uma pretensão de apli-
sistemática entre os atos unilaterais, que a ação concorrente não possa já cação direta, bastando para tal, úni-
dado que o enriquecimento sem cau- ser exercida por ter decorrido o prazo ca e simplesmente, a verificação de
sa não constitui um ato unilateral, mas respectivo, sob pena de perder senti- detenção injustificada de um enrique-
antes uma fonte das obrigações de do o estabelecimento desse prazo4. cimento à custa de outrem6.
cariz legal. Por outro lado, o Código, Uma análise mais cuidada do Essa concepção funda se es-
na sequência dos Códigos de raiz regime do enriquecimento sem cau- sencialmente na doutrina de Savigny,
francesa, autonomiza o pagamento sa permite, porém, concluir que a segundo a qual a pretensão de enri-
indevido em relação ao enriquecimen- denominada “regra da subsidia- quecimento se constitui sempre ao se
to sem causa, quando tal pagamento riedade” não tem um alcance absolu- verificar uma deslocação patrimonial
constitui manifestamente uma hipóte- to5. A ação de enriquecimento não sem causa, diretamente entre o enri-
se de enriquecimento sem causa. parece pressupor que o empobreci- quecido e o empobrecido, indepen-
do tenha perdido a propriedade so- dentemente da forma que se revista
2 A AMPLITUDE DA CLÁUSULA bre as coisas obtidas pelo enriqueci- essa deslocação. Exigir se ia conse-
GERAL DO ART. 884 E A do, pelo que ela pode concorrer com qüentemente que aquilo que produz
FORMULAÇÃO EXPRESSA DA a reivindicação. Também é manifes- o enriquecimento de uma pessoa ti-
SUBSIDIARIEDADE DO INSTITUTO to que a ação de enriquecimento po- vesse pertencido anteriormente ao
derá concorrer com a responsabilida- patrimônio de outra, só assim poden-
De acordo com a cláusula ge- de civil, sempre que esta não atribua do esta recorrer à ação de enriqueci-
ral do art. 884 do Código Civil brasi- uma proteção idêntica à da ação de mento7. Tal regra valeria para todas
leiro, teríamos então os seguintes enriquecimento. Não parece assim as categorias de enriquecimento sem
pressupostos constitutivos do enri- que a regra do art. 886 consagre uma causa, uma vez que o fundamento
quecimento sem causa: subsidiariedade geral da ação de comum a todas elas seria a restitui-
a) existência de um enriqueci- enriquecimento, mas antes uma in- ção de tudo o que saiu de determina-
mento; compatibilidade de pressupostos do patrimônio8. Para os partidários
b) obtenção desse enriqueci- entre as situações referidas e essa desta concepção, não haveria conse-
mento à custa de outrem; ação. Efetivamente, se a lei determina qüentemente base para a criação de
c) ausência de causa justifica- a subsistência do enriquecimento é uma tipologia de pretensões de enri-
tiva para o enriquecimento. porque lhe reconhece justa causa e, quecimento9.
Em face do art. 884, sempre se atribui algum direito ao empobreci- Assim, de acordo com essa
que se verificasse a reunião de todos do em conseqüência da situação ocor- teoria, o fundamento comum a todas
esses pressupostos, seria possível rida, fica excluída a obtenção de enri- as pretensões de enriquecimento re-
interpor uma ação a exigir a restitui- quecimento à custa de outrem. Não sidiria na oposição entre a aquisição
ção do enriquecimento sem causa. O parece existir, por isso, uma verdadei- de uma vantagem e a legitimidade
problema, no entanto, é serem tais ra subsidiariedade do enriquecimento da sua manutenção10. A pretensão de
pressupostos tão amplos e genéricos sem causa, funcionando muitas vezes enriquecimento dependeria sempre
que possibilitaria uma aplicação a invocação de tal regra como um da verificação de dois pressupostos:
indiscriminada dessa cláusula geral, “cripto argumento”, destinado a evitar uma deslocação patrimonial direta
colocando em causa a aplicação de uma utilização desproporcionada da entre duas pessoas, produzindo en-
uma série de outras regras de Direito cláusula geral do art. 884. riquecimento numa e correlativo em-
positivo2. A tutela do comprador se en- pobrecimento noutra; ausência de
Por esse motivo, o legislador contra condicionada pelo regime da causa jurídica para essa deslocação
brasileiro decidiu consagrar expres- anulação por erro ou usura, que seria patrimonial11.