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0 ARQUIPÉLAGO DA MADEIRA

NO SÉCULO XV

LUÍS DE ALBUQUERQUE E ALBERTO VIEIRA

1. O PROBLEMA DO RECONHECIMENTO OU DESCOBRIMENTO


DO ARQUIPÉLAGO MADEIRENSE

A dar crédito a algumas cartas geográficas quatrocentistas e a uma anónima e célebre narrativa de fantasiosas
viagens que as informou ou decorrente de alguma delas, hoje desaparecida (pois nenhum mapa existente em tais
condições é anterior ao texto), o grupo insular da Madeira já seria tão bem conhecido, em meados do século XV,
que os cartógrafos puderam representá-lo nos seus desenhos com espantosa precisão.
A ideia de que em tais delineamentos do arquipélago, aliás com uma toponímia que não se alterou até aos
nossos dias, os contornos das lhas da Madeira, do Porto Santo e das Desertas podiam ter sido acrescentadas nas
cartas posteriormente à data da execução dos seus traçados originais, chegou a ser admitido e deu lugar a acesas
controvérsias, mas está hoje posta de lado, e com fundamento em boas razões. De facto, se parece
absolutamente aceitável que, em determinadas circunstâncias, um ou outro pormenor de interesse náutico se
anotasse ou corrigisse em uma certa carta preparada para a navegação, é de todo em todo incompreensível que
um arquipélago, só descoberto no século XV (como sustentaram os defensores de tal ideia), fosse acrescentado
em todas ou quase todas as cartas do século anterior que se construíram a partir de determinada data; tem de se
pensar que tais espécimes cartográficos não estavam certamente então na posse do mesmo marítimo, do mesmo
erudito ou do mesmo cartógrafo, que seria a via mais fácil para se compreender que tais acréscimos se
apresentam mais ou menos uniformes; de outro modo, parece 5 bem pouco provável, para não dizer
inadmissível que a notícia da necessidade de tais acrescentos se fazer a luz de descobrimentos recentes tivesse
chegado em tempo útil a todos os diversos possuidores de tão valiosos exemplares da cartografia.
Aliás, se de acréscimos se tratasse, seria desde logo de esperar que a caligrafia dos topónimos que acompanham
as manchas insulares, porventura introduzidas numa carta já antiga, fosse diferente do calígrafo que nesta obra
interviera; ora um estudo atento das cartas nestas circunstâncias mostrou que tal se não verifica e que, pelo
contrário, a letra se apresenta com o mesmo talhe em toda a extensão das áreas costeiras representadas. É certo
que este argumento não convenceu todos os historiadores nem todos os críticos; sem negarem a uniformidade
apontada, eles obtemperaram que a letra manuscrita anterior ao século XVI, e sobretudo anterior ao século XV,
se indiscutivelmente varia, a sua transformação é muito lenta com o correr dos anos, mantendo-se por largos
períodos de tempo com características mais ou menos constantes e impessoais; quer isto dizer que dificilmente
se poderiam reconhecer pelo formato da letra das palavras que os acompanham, os acrescentamentos
desenhados numa carta, se acaso eles tivessem sido feitos não muito depois de elaborado o documento em que
foram supostamente introduzidos.
Esta observação pode parecer oportuna ou pertinente, mas quem alguma vez teve de se dar à leitura de textos
manuscritos de um qualquer período do século XIV, sabe bem que o facto da letra ser então mais desenhada do
que o foi posteriormente não apaga em absoluto um cunho pessoal de quem escreveu. Todavia; mesmo que
admitíssemos que dois calígrafos tinham a mesma letra, a tinta que usaram, essa foi decerto diferente, é não há
em tais cartas o mínimo indício de tal diferença.
Além disso tem de se reconhecer que as ilhas do arquipélago madeirense não estão representadas de um modo
estereotipado em todas as cartas trecentistas em que aparecem, verificando-se que os seus contornos e as suas
posições relativas estão mais próximos dos verdadeiros nas cartas mais recentes; só a toponímia é a mesma,
apenas com as inevitáveis variantes de carácter linguístico. E tal facto pode ser interpretado como consequência
de um melhor conhecimento da posição das ilhas com o curso dos anos, ou seja, depois de sucessivas visitas,
aperfeiçoando-se os desenhos a partir dos dados em cada uma recolhidos.
Postas estas considerações gerais, se procedermos ao estudo comparado na cartografia trecentista que representa
o Atlântico ao largo da costa da Península Ibérica e do norte africano até o Cabo Bojador (nessas cartas quase
sempre já assinalado pelo seu nome actual), temos de aceitar definitivamente que o arquipélago madeirense foi
conhecido de europeus, ou pelo menos de alguns navegadores e cartógrafos italianos e ibéricos, desde meados
do século XIV; efectivamente, se a carta de Dulcert de 1339, apesar de anotar algumas das Canárias, ainda não
representa as ilhas madeirenses (pese embora a opinião oposta de alguns autores), estas aparecem desenhadas
pouco depois (em 1351) numa carta do chamado atlas Mediceo; e logo a seguir: numa carta atribuída aos irmãos
Pizzigani, de 1367; numa folha do planisfério catalão de Abraão Cresques, de 1375 (muitas vezes designado
impropriamente por «carta catalã» de Paris, por se conservar na Biblioteca Nacional desta cidade); na carta de
Pinelli, de 1390; na carta de Solleri, de 1385; além de várias outras.
Como se disse, verificam-se algumas insignificantes modificações dos contornos e do posicionamento relativo
das ilhas de carta para carta, e ligeiríssimas alterações na grafia das designações da Madeira (concorrem as
formas de «Lenyame», «Lecname», «Legname», etc.) e das Selvagens («Selvagens» e « Salvages» por
exemplo) - estas pela primeira vez apontadas, até onde podemos saber, na carta dos Pizzigani; quanto às
«Desertas» e a «Porto Santo» são anotadas sempre com estes nomes, apenas com ínfimas variantes -gráficas.
Adiantaremos desde já uma informação quanto à última das ilhas citadas. É quanto a nós muito possível que o
nome de Porto Santo derive da circunstância de se pensar que por ali teria passado um santo irlandês de nome
Brandão, quando quase um milénio antes, e segundo uma história fabulosa que correu por toda a Idade Média,
ele empreendeu, com alguns seus companheiros de convento, uma longa e errante viagem pelo Atlântico, à
procura do Paraíso Perdido. Esta explicação é-nos sugerida pelo facto de em algumas das cartas, que incluem o
grupo das ilhas madeirenses, se terem desenhado um pouco mais para norte algumas ilhas dispersas e sem
qualquer dúvida fantásticas (embora alguns autores tenham pretendido identificá-las com os Açores), entre as
quais aparece uma ilha, ou aparecem várias ilhas relacionadas, pelo nome, com as aventuras do frade e santo
irlandês.
Esse facto parece-nos um claro indício de que os autores dessas cartas aceitavam como verídica qualquer lenda
que indicava ter São Brandão andado a navegar por aquela área marítima; é muito possível que numa
desconhecida versão da história se admitisse que ele tivesse escalado por ali uma ilha, e esta fosse identificada
com a de Porto Santo, que recebeu o nome em consequência da hipotética visita. É uma simples conjectura, que
apenas como tal aqui se deixa.
As informações sobre a existência do arquipélago madeirense parece terem partido de um passo do anónimo
Libro del Conoscimiento, pretensamente escrito por um frade mendicante castelhano, por volta do ano de 1350.
Como em tantos outros textos do período medieval e do mesmo género de «novelo geográfica», o autor ou
compilador desta obra inculca-se nela como um infatigável viajante que tinha percorrido praticamente todo o
mundo então conhecido - ou seja, desde os países nórdicos até a terras do norte africano, e desde as ilhas
atlânticas até o Extremo Oriente. A indicação das escalas dessas suas imaginárias viagens é, aqui e além,
entrecortada por referências a casos maravilhosos e incríveis que no decurso delas teria observado; isto significa
que o livrinho deve ser inserido no conjunto dos tão vulgares «livros de maravilhas» medievais, que tinham
então, seguramente, leitores interessados ou ávidos.
No entanto, se um qualquer dos livros deste género se alimentou principalmente de lendas, de fantasias, de
milagres e de acontecimentos insólitos, isso não significa que o esquema de que o autor ou compilador partiu
não tenha qualquer ligação com a realidade geográfica; pelo contrário, e quer-nos até parecer que para a grande
aceitação de tais escritos concorresse a circunstância deles conterem alusões a dados verídicos, que podiam ter
chegado por outras vias ao conhecimento dos leitores; isso podia Ievar estes a conceder ao texto, arbitrariamente
composto, uma credencial de completa veracidade, que ele na verdade não merecia.
É lícito admitir que os «livros de maravilhas» se baseariam, geralmente, em relatos parciais, orais ou escritos, e
que alguns destes reproduzissem aventuras efectivamente vividas por aqueles que os transmitiam; é claro que
essas descrições podiam ser logo exageradas ou acrescentadas por quem vivera a experiência, e vinham depois a
ser progressivamente aumentadas quando passavam de cópia para cópia, pois era uma tentação para os
sucessivos escribas introduzir no texto transcrito novos dados que o tomassem mais aliciante; as referências a
países ricos em ouro, em prata e em pedras preciosas, para citar só um exemplo, eram um dos meios seguros
para excitar a imaginação de muitos leitores com sonhos de fabulosas riquezas.
Casos destes entraram pelo século XV e pelo século XVI, e mesmo em textos portugueses há disso provas:
Alvaro Velho, presumível redactor do chamado Diário da Primeira Viagem de Vasco da Gama, registou nesse
texto, credulamente, que as pedras preciosas podiam ser apanhadas aos cestos numa indeterminada área da costa
oriental africana; e também o anónimo autor do planisfério português dito de Cantino (datável com todo o rigor
de 1502) anota em algumas legendas referentes a lugares ou áreas orientais (como, por exemplo, a
correspondente à ilha de Samatra) a existência abundante de esmeraldas, de rubis, de pérolas, etc..
Voltemos, porém, ao Libro del Conoscimiento; se temos por certo que o seu desconhecido autor não fez mais do
que uma ínfima parte das viagens que descreve e a si mesmo se atribui (se é que alguma fez!), parece-nos do
mesmo modo inegável que teve à vista narrativas por outros escritos sobre pelo menos algumas de tais
deambulações, ou que terá ouvido atentamente relatos verbais de peregrinos que tivessem andado por lugares no
texto referidos.
O hábito de ouvir exposições orais de viajantes que chegavam de terras longínquas era então muito corrente, e
está atestado (citaremos só um caso) na documentação que se conhece referente ao reino de Aragão, e
precisamente para o século XIV.

Dito isto, supomos ser de aceitar, em conclusão, que o escrito atribuído ao frade mendicante castelhano
transmite informações de raiz fidedigna, embora porventura deturpados no percurso dos vários elos de uma
muito possível extensa cadeia que, desde a sua forma original, as levou até o conhecimento do autor do Libro.
Com esta prevenção, vejamos o que se escreveu no texto que interesse para o nosso caso. Usando a primeira
pessoa do singular, o peregrino castelhano afirma: «Subi a um navio com uns mouros, e chegámos à primeira
ilha que chamam Gresa (diga-se que não é fácil identificá-la satisfatoriamente) e depois dela está a ilha de
Lançarote, e chamam-lhe assim porque as gentes desta ilha mataram um genovês chamado Lançarote; e daí fui a
outra ilha que chamavam Bezimarin (nas condições de Gresa) e a outra que chamam Raehau (idem) e daí a
outra que chamam Alegrança e outra que chamam Forteventura»; a narrativa continua neste estilo, e inclui
citações às ilhas de Tenerife, Inferno, Gomeira e Ferro (todas do grupo canáreo), e bem assim a «Salvage», a
«Lecname» e a «puerto Santo», do grupo madeirense; mas com falta de uma alusão à «Deserta» ou às
«Desertas».
Se, como nos parece correcto, aceitarmos a ideia de que o Libro reproduz narrativas compiladas pelo «frade
mendicante», somos obrigados a concluir que o arquipélago da Madeira foi descoberto, reconhecido e quase
todas as suas ilhas baptizadas antes de meados do século XIV, pois esta é a época apontada pelos especialistas
como a da redacção dessa importante narrativa.
Será tal conclusão tão extraordinária como já algumas vezes sé pretendeu, e até em vários casos com acalorada
veemência? Não nos parece porque somos de opinião (aliás partilhada por vários historiadores) que já por esse
tempo seria navegada com alguma frequência por navios peninsulares numa vasta área marítima que se alarga
para poente do Estreito de Gibraltar três a quatro centenas de quilómetros, estendendo-se desde a latitude do
Cabo de São Vicente até a das Canárias - área a que no século XVI se chamou frequentemente o Golfo ou Vale
das Éguas.
Aliás o texto do Libro, como acima se indicou, junta num só o reconhecimento dos arquipélagos madeirense e
canáreo, e dispomos de uma indicação segura de que o último foi efectivamente visitado antes de 1339, pois é
deste ano a acima referenciada carta portulano de Dulcert, que inclui algumas das suas ilhas; o arquipélago da
Madeira teria, deste modo, sido entrevisto pela primeira vez entre este ano e cerca de 1350.
O conjunto insular canário está certamente relacionado com expedições italianas; na carta-portulano de Dulcert
a sua ilha de Lançarote encontra-se assinalada com as armas de Génova, sendo de admitir que, tal como se lê no
Libro del Conoscimiento, um genovês de nome Lançarote (e de apelido Malocelus) =3ara lá se tenha dirigido na
primeira metade de trezentos (alguns autores precisam até o
ano: 1312), com o intuito de fixar aí uma «colónia»; o que conseguiu e que se manteve vários anos, até a morte
do seu patrocinador às mãos dos guanches, nunca conformados com a ocupação.
No entanto, as Canárias não despertaram o interesse só de navegadores genoveses. Em 1341, por exemplo, teria
sido preparada em Lisboa uma expedição que se destinava a essas ilhas, e que efectivamente as visitou, tendo
regressado depois ao ponto de partida. Foi organizada também por italianos, mas participaram nela marinheiros
da península ibérica, sendo muito provável, para não dizer certo, que entre eles se encontravam alguns
portugueses. Corre sobre esta viagem um relato abreviado, muito provavelmente redigido pelo punho do grande
escritor Giovanni Bocaccio, e repleto de notícias interessantíssimas, cuja exactidão parece de aceitar.
À esta experiência pouco animadora, porque os resultados comerciais da expedição foram medíocres, outras se
seguiram; temos também notícias certas de que os catalães entraram na corrida pelas
Canárias, organizando várias expedições que chegaram até o arquipélago: Domenec Gual e Desvalers, em 1342;
Jaime Ferrer, em 1346 (esta, de resto, muito expressivamente assinalada pelo desenho de um navio, em alguns
espécimes da cartografia); Amau Reger, em 1352; etc. Verifica-se, pois, que por meados do século XIV, o
arquipélago das Canárias fora sucessivamente visitado por navios de italianos, de aragoneses e de maiorquinos,
sendo já bem conhecido de todos eles; tanto assim era que, no último dos anos referidos, o Papa nomearia pela
primeira vez um bispo para exercer o seu munus nas ilhas.
É claro que além das viagens às Canárias testemunhadas por documentação autêntica do nosso conhecimento,
decerto muitas outras se terão realizado, sem sobre elas terem chegado aos dias de hoje dados comprovativos.
Estão exactamente nestas circunstâncias viagens organizadas por portugueses, que quase com certeza tiveram
lugar, apesar de sobre elas não existir qualquer narrativa que sequer sumariamente nos dê a conhecer as mais
importantes peripécias vividas pelos aventureiros que as terão levado a bom termo.
Refira-se em primeiro lugar que, depois da episódica ocupação de uma das ilhas por parte de Lançarote, em
1344 surgiu o plano de tomar o arquipélago pela força das armas, pois se sabia muito bem que uma parte das
ilhas era habitada, e que os habitantes ofereciam tenaz resistência aos intrusos, apesar de apenas disporem do
recurso à pedrada ou a armas rudimentares.
D. Luís de Ia Cerda, descendente do rei Afonso X de Castela (de cognome «O Sábio»), foi quem arquitectou o
projecto de tomar posse de um grande grupo de ilhas, (em que entravam as Canárias a par de outras
imaginárias), a fim de aí fundar um pequeno domínio, de que viria a ser rei ou príncipe. O Papa chegou até a
investi-lo no cetro do fictício principado, comprometendo-se D. Luís de La Cerda, em troca, a descarregar-se de
certas obrigações, que voluntariamente contraiu perante a Cúria; logo que estivesse na posse efectiva dos «seus»
territórios insulares; e o pontífice levou o caso tanto a sério que chegou a pedir a reis e a príncipes da
Cristandade para apoiarem o pretendente nessa tarefa de «cruzada», que colocaria as ilhas sob o poder espiritual
da Igreja.
O projecto estaria de toda amaneira condenado ao fracasso; mas este foi imediato porque os príncipes e reis a
quem a mensagem papal chegou, nada fizeram para dar uma ajuda ao pretendente ao trono canário, e de Ia
Cerda, sem armas, sem navios e sem homens, viu-se compelido a renunciar ao seu sonho.
No entanto, um rei houve - o de Portugal, D. Afonso IV – que não só se recusou a auxiliar D. Luís, como
reclamou do Papa o direito a ser ele o reconhecido como príncipe ou senhor das Canárias, estribado no
argumento de que vassalos seus já tinham estado por sua ordem no arquipélago (e por isso o considerava sob
jurisdição), e no facto de ser Portugal o reino europeu mais próximo das ilhas.
Esta respeitosa impugnação do rei português a uma decisão papal, é conhecida através de um documento
existente nos arquivos do Vaticano, que tem feito correr rios de tinta, por terem levantado dúvidas quanto à sua
autenticidade. Não nos interessa de momento fazer a história dessa polémica; bastará dizer-se que as mais
modernas críticas a que o texto foi submetido, sob várias perspectivas (desde o tipo da letra em que está escrito
até à colecção arquivística em que se encontra inserido), apontam para a sua veracidade; e como autêntico o
aceitamos.
Dessa carta de protesto, D. Afonso IV é muito claro em afamar o direito que lhe assistia em fazer ocupar o
arquipélago por homens seus, aduzindo as duas razões acima referidas; e opõe-se logo a qualquer objecção que
podia ser levantada afirmando que já lá mandara navios ao reconhecimento, embota não precise a data em que o
fez; por outro lado, e para atalhar qualquer dúvida que o Pontífice levantasse pelo facto de não ter manifestado
continuidade nesse seu propósito, o Rei explica-se: não prosseguira na acção empreendida por ter sido obrigado
a envolver-se em guerras, em primeiro lugar com os castelhanos (luta que se iniciou em 1336) e logo depois
com muçulmanos (principiada em 1341); a expedição por si organizada seria, por consequência, anterior ao
primeiro dos anos indicados.
Não faltou quem precipitadamente tivesse identificado esta viagem com a Lançarote Malocelus, para tal efeito
considerado como um dos homens «sabedores do mar», que de Génova vieram para o serviço da Coroa
portuguesa em resultado do célebre contrato que o Rei D. Diniz assinou com Manuel Pessanha, em 1317; e não
faltou igualmente quem adiantasse que D. Afonso IV não desistiu dos seus intentos, sendo ele o promotor da
viagem de 1341. Mas isto é incerto; certeza só a temos quanto às palavras do Rei dirigidas ao Papa, e essas são
explícitas: súbditos seus tinham-se dirigido às Canárias com a intenção de as ocuparem.
Toda esta digressão que fizemos sobre o reconhecimento do arquipélago canário durante o século XIV tem por
objectivo tornar bem claro que o conhecimento do arquipélago madeirense nesse mesmo século nada tem de
extraordinário; qualquer navio ou grupo de navios que se dirigisse para as Canárias podia facilmente avistar a
Madeira e Porto Santo; bastaria um pequeno desvio da rota directa que aquele arquipélago conduzia, por um
qualquer erro de manobra ou por súbitas condições geofísicas desfavoráveis, para os expedicionários ficarem
em águas donde se avistassem a Madeira, o Porto Santo e as Desertas. E foi o que decerto aconteceu, como
mostram algumas cartas e à referência do «frade mendicante», antes citadas; o arquipélago madeirense terá sido
visitado por mareantes italianos, aragoneses, maiorquinos e portugueses antes de meados da era de Trezentos.
As mais antigas fontes portuguesas de que dispomos sobre a Madeira e as ilhas que com ela se reúnem no
mesmo grupo insular, não põem em causa esta conclusão, antes parecem confirma-la, embora apenas por
omissão ou de um modo indirecto. Esses testemunhos vêm-nos de Diogo Gomes (que andou a pilotar caravelas
ainda em tempos henriquinos), do cronista Gomes Eanes de Azurara e do mesmo infante D. Henrique!
Quanto a este último não vale a pena dizer que ele, nos documentos adiante referidos, procurou manter em
segredo os descobrimentos, realizados por navios seus, para subtrair as cinco ilhas principais do grupo
madeirense à cobiça de possíveis concorrentes; esta opinião, que se filia na chamada «política do sigilo»,
sustentada por Jaime Cortesão até quase aos limites do absurdo, não pode ser aplicada neste caso sem corrermos
o risco de passar um certificado de inabilidade ao grande Infante; com efeito, que lucraria ele em esconder o
«achado» daquelas ilhas, quando muito gente devia saber da sua existência, pois que uma abundante cartografia
as registava?
Se D. Henrique jamais se declarou como tendo, através dos seus marinheiros, o seu descobridor, foi porque
certamente também ele não ignorava, ao desencadear os descobrimentos, que elas existiam, conhecendo até a
sua localização aproximada.
Realmente o Infante fala, em diplomas por si subscritos, e por mais de uma vez, das ilhas da Madeira, mas
apenas se apresenta como homem que tomou a iniciativa de as mandar povoar. Assim, numa carta de doação
passada em 8 de Maio de 1440 a favor de Tristão Vaz Teixeira; o Infante, concedendo-lhe amplas regalias para
se poder fixar na Madeira como povoador, não refere que a ilha tivesse sido descoberta pelo beneficiário (facto
que justificaria a mercê), nem por qualquer outro dos capitães que andaram em seu serviço; num outro diploma,
datado de 1 de Novembro de 1446, em que Porto Santo é cedida a Bartolomeu Perestrelo, a fim de que este
procedesse à sua ocupação, D. Henrique refere-se à ilha como sua, mas também não mandou escrever, ou não
consentiu que se escrevesse no documento qualquer frase em que, mesmo de modo indirecto, se inculcasse
como seu descobridor. Azurara não vai mais longe. No capítulo 83 da sua Crónica dos Feitos da Guiné, que
sintomaticamente trás por título «de como foi povoada a Madeira, e assim as outras ilhas que estão naquela
parte», o cronista conta-nos que, depois «da vinda que o infante fez do descerco de Ceuta», «dois escudeiros
pobres» da sua casa, pediram-lhe que lhes permitisse ir «de armada contra os mouros», encaminhando-os como
se fossem em busca da terra de Guiné, a qual ele já tinha vontade de mandar buscar». Aparelhada uma barca
para o efeito, e iniciada a viagem, «com tempo contrário» foram ter a Porto Santo; aí se detiveram alguns dias
para proceder ao reconhecimento da terra, dele concluindo que ela oferecia excelentes condições para ser
povoada.
Tal ideia seria aceite por D. Henrique, mas disso nos ocuparemos mais adiante; por agora apenas desejamos
salientar que não há no texto de Azurara a mais leve alusão a um descobrimento; na opinião do cronista os dois
escudeiros henriquinos teriam sido, porventura, os primeiros portugueses a chegar à ilha, mas nem isso é seguro,
pois o autor apenas afirma que eles foram os primeiros a proceder a uma superficial análise das condições
climatéricas, hidrográficas e geológicas de Porto Santo, para concluírem que seria possível, e até aconselhável, a
sua ocupação.
Quando no mesmo capítulo da Crónica é citada a ilha da Madeira, continua a notar-se a falta de qualquer
referência a um descobrimento; nos dizeres de Azurara, quando os navegadores henriquinos aí se dirigiram pela
primeira vez, levavam já a determinação de nela lançar gado e de a povoar; tinham, pois, conhecimento da sua
existência – o que é absolutamente natural: se não foi antes conhecida, como tudo parece indicai, tê-1o-ia
certamente sido no decurso da anterior visita a Porto Santo, pois seria absolutamente inexplicável que os dois
escudeiros, que a esta foram e nelas se demoraram por alguns dias», não tivessem entrevisto para su-sudoeste a
maior ilha do arquipélago.
Se, como acaba de ser dito, não há na Crónica de Azurara qualquer referência, mesmo indirecta ou velada, ao
descobrimento do arquipélago madeirense por parte de navegadores do infante D. Henrique, o mesmo se
verifica na narrativa de Diogo Gomes. Este navegador ditou as suas memórias a Martinho da Boémia depois de
1485, e o forasteiro alemão redigiu-as em latim; essa versão, única de que dispomos, foi copiada por outro
homem vindo de temas germânicas, mas que facilmente sé integrou na sociedade portuguesa, com o nome de
Valentim Fernandes; ele deu-se ao trabalho de compilar para um extenso e valiosíssimo caderno várias notícias
sobre as navegações realizadas em Portugal até o início do século XVI, a fim de satisfazer a curiosidade do
humanista Konrãd Peutinger, igualmente alemão.
No texto que dessa narrativa nos chegou pode, assim, haver lapsos de mais de uma origem: a memória de Diogo
Gomes, que era homem idoso quando fez o seu depoimento; podia atraiçoa-lo; na transcrição latina de Martinho
da Boémia, além de comentários da responsabilidade exclusiva do anotador, podem ter sido cometidos
involuntários ou até voluntários lapsos; e a cópia de Valentim Femandes pode conter inexactidões, por
inadvertência ou por intromissões deliberadas.
O estudo crítico desta importantíssima peça para a história dos descobrimentos portugueses nunca foi feito na
globalidade ou sob estas três perspectivas analíticas; presumimos, no entanto, que os erros porventura cometidos
sejam de secundária importância e envolvam só aspectos de pormenor; e é por isso que ao texto recorremos e o
tomamos à letra, sem quaisquer hesitações.
Que nos diz Diogo Gomes acerca do descobrimento da Madeira?
Rigorosamente nada - e, no entanto, fala do arquipélago mais de uma vez. Num dos passos em que tal acontece
o velho caravelista henriquino terá dito que «no tempo do senhor infante D. Henrique, uma caravela com
tormenta, viu uma pequena ilha, que está perto da Madeira, e que se chama hoje Porto Santo, despovoada».
Parece claro que Diogo Gomes ignorava ter a ilha de há muito o nome que ainda hoje mantém; todavia, se
trocarmos a palavra «caravela» por «barca», verifica-se que esta informação quase se identifica com aquela que
Azurara transmite. Diogo Gomes deixa implícito o reconhecimento da ilha, que então terá sido feito, pois
conclui a breve referência com os seguintes dados de alguma importância (mas não registados por Azurara), que
só através de uma acção daquele tipo podiam ter sido recolhidos: «Nesta ilha de Porto Santo há muitas árvores
que se chamam dragoeiros, as quais dão uma resina muito linda, de cor vermelha, a que se chama sangue de
dragão. E aquela caravela regressou, anunciando ao Infante a terra encontrada, da qual levaram sangue de
dragão e ramos de outras árvores...».
Quando na continuação desta narrativa se lê que D. Henrique tomou a decisão de mandar o piloto Afonso
Fernandes à «ilha descoberta de Porto Santo» («insulam inventam de Porto Santo»), não nos parece correcto
considerar a expressão como insignificante de que D. Henrique fora o seu descobridor; o texto apenas aponta
para o facto da ilha ter sido visitada, deixando indeterminados o nome do navegador que a visitou e a data da
visita.
A esta mesma conclusão nos conduz uma outra fonte manuscrita um pouco mais tardia, pois data do início do
século XVI. Trata-se de um texto «sobre as ilhas do Mar Oceano», que o mesmo Valentim
Fernandes redigiu e juntou à compilação remetida a Konrad Peutinger.
Nesse escrito Fqrnandes começa por nos dizer que os castelhanos, ao tempo em que andavam empenhados na
conquista das Canárias, para onde mandaram frequentemente armadas, tinham por hábito ir a Porto Santo fazer
carnagem, pois havia cabras na ilha; os primeiros que aí aportaram, fizeram-no «com o tempo» -o que quer
dizer: em consequência de tempestade ou de ventos contrários.
E de notar que o recurso a uma tormenta para explicar a primeira abordagem à ilha, é igualmente usado por
Diogo Gomes, como se viu, embora este autor não endosse o acontecimento a um anónimo castelhano; e é
também de assinalar que se esse supostamente primeiro visitante da ilha lá foi encontrar cabras, alguém para lá
teria levado os animais em viagem anterior.
Como é que, nesta versão, se explica ter vindo a ilha ao conhecimento dos portugueses? Teremos a resposta se
continuarmos a ler Valentim Fernandes: na verdade, este diligente impressor da corte de
D. Manuel conta que certa vez, andando João Gonçalves Zarco «de armada em uma barca contra os
castelhanos», e sem qualquer resultado positivo, um outro castelhano, seu companheiro de aventura, lhe disse:
«Senhor, se quiserdes tomar boa preza, vamos onde eu vos disser, que é a ilha de Porto Santo, onde os
conquistadores de Canária [topónimo que designava genericamente o arquipélago, em que a ilha com aquele
nome se integral vão fazer sua carnagem e tomar sua água; porquanto, quando eles ali estão, saem todos em
terra, e tomaremos os navios e depois cativá-los-emos em terra».
Apesar desta proposta ter sido encarada de diversos modos pelos companheiros de Zarco, acabou por se concluir
que era de pôr em prática a sugestão do castelhano; mas chegaram tarde à ilha, o que os impediu de pilhar os
navios e de cativar os seus tripulantes – embora o golpe planeado tivesse falhado por pouco, pois encontraram
em terra vestígios de uma carnagem recente; algum gado morto e fogueiras que ainda crepitavam.
Parece-nos oportuno aqui um parentese para darmos uma explicação.
Efectivamente, à luz do código de honra da cavalaria da época um acto como este planeado por Zarco não era
condenável, como o seria hoje; um cavaleiro desse tempo podia entregar-se à actividade do corso, e se ela
terminasse a seu favor, isso só o honraria; abordar um navio no mar, pilhá-lo e aprisionar-lhe a tripulação era
um acto perfeitamente lícito, mesmo quando as vítimas fossem irmãos de crença; a diligência de Gonçalves
Zarco, aliás frustrada, nada tinha, por consequência, de condenável, à luz do «código de honra» vigente nessa
época.
A condenação e subsequente marginalização do corsário, e também do pirata está no entanto, uma designação
que; desde o início, teve uma certa carga pejorativa - são posteriores ao século XV e mesmo ao século imediato.
D. João 111, cujas armadas da índia e da Mina estavam sempre em risco de ser vítimas de corsários, sobretudo
franceses, procurou repetidas vezes afastar o perigo por via diplomática; mas quando não conseguiu entender-se
com outros reis da Cristandade (em especial, o rei de França) para os levar a suster o apoio que davam às
armadas corsárias, não vacilou em estabelecer acordos com os capitães destas, negociando directamente com
eles, sempre que tal era possível. E por muito estranho que nos pareça hoje, obteve frequentemente um êxito
completo em tal negociação, respeitando os corsários com que contratava os compromissos a que se tinham
obrigado.
Fechemos o parêntese, e voltemos à narrativa de Valentim Fernandes.
Lê-se nela que, se Zarco falhou a acção guerreira planeada, pôde na sua visita à ilha avaliar as boas condições
que ela oferecia para aí se instalar com os povoadores, primeiro assunto de que terá falado ao Infante logo que
com ele se encontrou em Sagres; note-se, porém, que a cobiçada licença para a ocupação de Porto Santo, se bem
que da iniciativa de D. Henrique, só podia ser oficialmente concedida pelo Rei; a este respeito o texto é bem
explícito: «o qual infante foi muito ledo e contente [subentenda-se: com a notícia trazida por Zarcol, e escreveu
logo a el-Rei seu pai, que estava em Santarém, pedindo-lhe de mercê as ditas ilhas para ás povoar, e el-Rei lhas
outorgou».
No final deste passo há um plural aparentemente abusivo; na verdade, das palavras antecedentes fica-se com a
ideia duque apenas estava em causa a ilha de Porto Santo, e não as ilhas do arquipélago madeirense; mas na
sequência do texto colhe-se, de facto, à ideia de que Zarco, embora apenas tivesse visitado Porto Santo, tinha em
vista a ocupação de «ilhas». É assim muito possível que no escrito de Valentim Fernandes se queira dizer que
Zarco associara à que lhe fora apontada pelo indiscreto castelhano outras do mesmo grupo insular, por acaso
entrevistas no decorrer dessa viagem excêntrica, se não conhecidas somente através de qualquer carta náutica
em que estivessem representadas.
Valentim Fernandes conta-nos depois, à sua maneira, como as ilhas do arquipélago da Madeira foram ocupadas
e povoadas, não sem sérios desentendimentos entre Zarco e os dois homens que, para levar a bom termo a
tarefa, teria agregado a si: Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo. São informações que de momento nos
não interessam; importa antes sublinhar que o narrador concorda com Azurara e com Diogo Gomes em não
atribuir à época henriquina o descobrimento do arquipélago, o que também está implícito, como se viu, nos
textos em que o infante se refere às ilhas que o compõem.
E no entanto, a notícia do descobrimento português do arquipélago da Madeira tem sido sustentada por vários
historiadores, e com tal persistência que a notícia passou a ser inserida nos manuais escolares, como dado
indiscutivelmente adquirido.
Qual a origem dessa nova versão dos acontecimentos, em absoluto contrária às que acabamos de referir? Parece-
nos fora de dúvida que podemos encontra-la em João de Barros, que nas suas Décadas assume uma visão
epopeica dos descobrimentos portugueses; não obstante procure sempre imprimir objectividade à descrição que
dos grandes factos delas nos faz, Barros não hesitou em silenciar situações que tinha por menos exemplares,
como aliás nessa monumental obra adverte, expressa e escrupulosamente.
No texto deste historiador dois cavaleiros, Zarco e Teixeira, ao regressarem «do grande cerco de Ceuta»,
solicitaram ao Infante D. Henrique licença para irem ao descobrimento da costa da Guiné; o
pedido foi atendido favoravelmente, mandando-se preparar para o efeito uma barca, e dando-se aos dois
decididos aventureiros por regimento «que corressem a costa da Berberia até passaram aquele temeroso cabo
Bojador, e daí fossem descobrindo o mais que achassem...».
Há aqui uma evidente distorsão da verdade, se é exacto o que nos diz Azurara; na realidade, a ideia de navegar
para além do Bojador só teria fervilhado nos projectos do Infante alguns anos depois do «grande cerco de
Ceuta»; além disso, Zarco e Teixeira nunca terão estado envolvidos em tais planos.
Feito este reparo, voltemos a Barros. Ele acrescenta que, iniciada a viagem, «antes que chegassem à costa de
África, saltou com eles tamanho temporal, com força de ventos contrários à sua viagem, que perderam a
esperança das vidas»; com a protecção divina, salvaram-se dos grandes perigos que os ameaçavam, e tiveram a
boa sina de descobrir «a ilha a que agora chamamos de Porto Santo, o qual nome lhes eles então puseram
porque os separou do perigo que nos dias da [má] fortuna passaram».
Aparte o temporal, que surge também como dado explicativo nos acontecimentos relatados em textos antes
referidos, e que é uma nota muito vulgar em narrativas de outras viagens de descobrimento, verifica-se que
existe uma clara discordância entre este passo e referências anteriores; agora, Zarco e Teixeira são apontados
como autores do descobrimento de Porto Santo, indicação confirmada em outro lugar da mesma Década, onde
são explicitamente declarados como «primeiros descobridores» da ilha. Além disso, teria partido deles o nome
que a esta foi dado e que se manteve -. e bem sabemos que isso é inexacto.
O relato de Barros prossegue com a referência às iniciativas tomadas para o povoamento de Porto Santo; só
depois deste desencadeado se decidiram a «ir ver se era terra uma grande sombra que lhes fazia a ilha a que ora
chamamos da Madeira».
Tudo isto é inconsistente à luz do que sabemos através das fontes por nós citadas; e basta referir as
cartográficas, pois elas desmentem que Porto Santo e Madeira tinham sido baptizadas com estes nomes apenas
no século XV. Por outro lado, não é crível que a Madeira tivesse sido avistada de Porto Santo apenas como uma
equívoca sombra; qualquer das ilhas pode ser sem dificuldade avistada da outra, e a Madeira, pela sua maior
área e pelo seu relevo, é ainda mais facilmente notada da ilha vizinha.
Se o texto de Barros pode ser considerado uma fonte secundária para o esclarecimento do problema que nos
ocupa, o mesmo se não poderá dizer do relato de Alvise Cadamosto, que esteve em Portugal por meados do
século XV e empreendeu viagens de negócios a terras africanas, com a indispensável autorização de D.
Henrique; na narrativa, em que se ocupa sobretudo da experiência adquirida nas suas expedições, C adamosto
também se refere ao arquipélago madeirense.
Na pena de Cadamosto, no entanto, as duas ilhas mais importantes do arquipélago são consideradas em
situações diferentes. De Porto Santo o texto diz que se trata de uma ilha «muito pequena, com cerca de quinze
milhas de periferia», para logo acrescentar que «foi descoberta haverá vinte e sete anos pelas caravelas do
senhor infante, que a fez povoar... »; o navegador e mercador italiano termina com esta justificação do nome
dado à ilha: «por ter sido descoberta em dia de Todos os Santos». Pelo que respeita à Madeira, Cadamosto situa
o início do povoamento em três anos mais tarde; no entanto, dá a entender com clareza que havia um
conhecimento anterior da existência da ilha, pois não só não se fala de qualquer descobrimento em tempos
henriquinos, como também, de certo modo, e em concordância com isso, informa que o infante decidiu o
povoamento «sem que até então [a ilha] tivesse sido povoada».
Se este último dado, apenas implícito, vai ao encontro do que nos transmitem outros informadores
contemporâneos de Cadamosto, o «descobrimento» da Madeira, efectuado apenas numa data em que Porto
Santo desde há três anos seria conhecida, torna-se bem difícil de explicar; e a justificação dada para o nome
posto à última ilha não passa, como é evidente, de uma fantasia de Cadamosto.
Assim, e sem perdermos tempo a referir informações de outras fontes do século XVI, já que nenhuma delas
veicula novos dados sobre o problema que nos ocupa, podemos concluir que todas elas deslocam abusivamente
para o primeiro quartel do século XV o descobrimento do arquipélago; que este teve lugar cerca de um século
antes, e que os nomes dados às ilhas foram atribuídos desde o primeiro reconhecimento.
E é sobretudo através da Cartografia, aliás não contrariada pela pouca documentação que até nós chegou, que
podemos avançar as duas últimas conclusões com bastante segurança.
Todavia, na história do descobrimento da Madeira - redutível, em última análise, às conclusões precedentes -
intervém ainda um episódio romanesco que não deverá deixar de ser aqui registado, a
despeito de todos os autores que dele recentemente se ocuparam, o terem por inverosímil, e com sobejas razões,
como já veremos.
A novela coma já no tempo de Valentim Femandes, que a registou e a deverá ter recolhido, embora alterando-o
em alguns passos, de um anterior relato de Francisco Alcoforado, presumível escudeiro do Infante, ou de uma
qualquer tradição oral, de origem indeterminada; daí passou sucessivamente, e quase sempre com aliciantes
acréscimos que a valorizavam, ao Tratado dos Descobrimentos de António Gaivão (1563), às Saudades da
Terra de Gaspar Frutuoso (escrito antes de 1591, mas só impresso em 1876); à História Insulanado Padre
António Cordeiro (1717), à Insulae Materiae Historiade Manuel Constantino (1599) -único texto que procurou
apagar na lenda o fascínio de uma história amorosa- e à Epanáfora Amorosa de D. Francisco Manuel de Melo
(1654). A lista podia alongar-se até os nossos dias, mas paramos no escritor seiscentista porque foi sobretudo a
partir dele que a relação de um par de amorosos ingleses, em fuga, com o descobrimento da Madeira, irradiou
para muitos escritos, e na maioria dos casos sem o mínimo espírito crítico.
Passemos à historieta, tal como no-la conta Valentim Femandes. Era uma vez um fidalgo de Inglaterra, de nome
Machin, que, por qualquer delito grave não especificado, foi condenado a degredo; forçado ou decidido a
abandonar a sua terra, e pensando refugiar-se na Península Ibérica, comprou para isso um pequeno navio de
quarenta tonéis, carregou-o com os seus bens, a sua «manceba» (quer dizer: sua amante) e os seus criados, além
de gado caprino que assegurasse a alimentação de todos, e meteu-se ao mar.
É de supor que o destino fosse Portugal, pois chegou à vista das Berlengas. Mas o navio foi então apanhado por
um furioso temporal (mais uma vez, se regista o súbito aparecimento de uma intempérie para explicar o curso da
narração!), que os fez correr desgovernados muitas léguas, até darem com a ilha de Porto Santo. Espantaram-se
muito de encontrarem abrigo tão engolfados no mar, mas logo decidiram retemperar-se na ilha dos trabalhos
passados, desembarcando também os animais que levavam, «por serem magros e cheios de fome».
Aclarando o tempo, «viram mais tesa ao mar, e fizeram vela e foram ver que terra era, e arribaram a um porto
onde agora chamam Machico». Estavam, portanto, na Madeira, e o lugar, a que aportaram, pareceu ao nobre
inglês apropriado para se instalarem, o que sem demora se fez; Depois de estabelecido com as poucas
comodidades possíveis em tais circunstâncias, Machin tomou a decisão de proceder ao reconhecimento da ilha,
embrenhando-se nela durante três dias. Ao regressar à sua precária base, esperava-o uma surpresa: o pequeno
navio em que viajara tinha desaparecido, porque os tripulantes se decidiram pela fuga, levando consigo lodos os
haveres do desventurado fidalgo proscrito; ficara-lhe a «manceba», que dignamente se recusou a acompanhar os
fugitivos, apesar de aliciada a fazê-lo («e ela disse que nunca Deus quisesse que houvesse de deixar seu
senhor»), e um jovem pagem.
Um severo castigo esperava, como seria conveniente para a história, os desumanos marinheiros do navio de
Machin; efectivamente, «dando o tempo neles» (mais uma cilada do tempo!), perderam-se em uns baixos da
costa de Berbéria, morrendo uns e sendo outros reduzidos a cativeiro.
Apesar do ânimo de Machin, que se não cansava de encarecer os meios de sobrevivência que a ilha podia
proporcionar-lhes, à sua «manceba» não se iludia quanto ao futuro que a esperava: fechou-se taciturna sobre si
mesma, e veio a morrer «de pasmo» pouco tempo depois. E o texto explica: «a qual foi a primeira [pessoal que
enterraram nesta terra em uma ermida» que o seu amante fizera construir e a que pôs o nome de Santa Cruz.
Machin pensou então em salvar-se com o pagem; construíram os dois um batel, com os meios rudimentares de
que dispunham e fizeram-se ao mar; também eles foram empurrados para a costa marroquina, e exactamente
para o lugar em que se encontravam presos os marinheiros que o tinham abandonado na Madeira! Já foi
coincidência!
Vendo-os, Machin, apesar de também se encontrar preso, não se conteve e investiu contra o que lhe estava mais
ao alcance, com o firme propósito de o matar; os mouros impediram que cevasse a sua cólera naquele homem
que o atraiçoara.
Os seus carcereiros souberam, assim, que eles tinham descoberto duas ilhas perdidas no mar fronteiro; e
decidiram dar conta do caso ao Rei de Fez, à presença de quem, de resto, Machin foi levado; e o Rei mouro,
depois de reconhecer «que se não podia aproveitar de tais ilhas», resolveu mandar Machin ao Rei D. João 1 de
Castela, a fim de ser este a tirar partido do descobrimento. (Note-se que este apontamento situa a história, por
consequência, num tempo bastante posterior às mais antigas referências às ilhas madeirenses).
O Rei castelhano, então muito ocupado com a guerra que mantinha com seu homónimo de Portugal, não prestou
qualquer atenção à notícia; e, morto Machin, o caso foi-se esvaindo da memória daqueles que dele tiveram
conhecimento, acabando por ficar quase totalmente esquecido; e só não inteiramente porque os navegadores que
se dirigiam às Canárias, ou delas regressavam, habituaram-se a ir a Porto Santo abastecer-se de carne, porque as
cabras ali deixadas por Machin proliferaram, espalhando-se por toda a ilha repartidas por muitos rebanhos
numerosos.
Vamos passar agora ao texto de D. Francisco Manuel de Melo para se ver como, em cerca de século e meio, esta
aventurosa história se enriqueceu. E começaremos por djzer que na Epanáfora a principal personagem da novela
se chama Robert (embora fosse conhecido por «o Machino»), é um homem de inferior nobreza, terá vivido no
tempo de Eduardo 111 e não praticara qualquer crime a que se seguisse uma condenação; era, no entanto, um
pouco excêntrico, pois, «desprezando jogos e banquetes» a que se entregavam os homens da sua igualha, «se
singularizava em pensamentos mais altos».
Se Robert não é, nesta versão de D. Francisco Manuel, um homem desde o início forçado a abandonar a sua
pátria, tão pouco a sua companheira de aventura se pode dizer que fosse, com carga pejorativa, uma «manceba»;
chamava-se Ana de Erfet, era uma «donzela formosíssima» (repare-se na diferença!), «estimada como uma
maravilha entre maravilhas», pela qual suspiravam muitos fidalgos daquela corte eduardina. Ana passava de
largo, sobranceira, até que o destino pôs no seu caminho Robert, por quem ela se enamorou perdidamente,
sendo correspondida com não menor ardor.
No entanto, os dois jovens enamorados encontravam-se inseridos em dois extractos muito diferenciados da
nobreza, sendo o de Ana de nível muito superior; estava, aliás, prometida pelos pais um lorde de «alto estado»;
quando souberam que Ana se encontrava louca de amores por Machin, não lhes foi muito difícil fazer encarcerar
o namorado de menor estirpe, e acelerar o casamento da filha com o homem que lhe tinham destinado.
No episódio imediato a -história passa a desenrolar-se em lances verdadeiramente rocambolescos. Machin foi
solto, e, com auxílio de familiares e amigos decidiu pôr em prática um audacioso plano: ir a Bristol, raptar Ana
(depois de obtido o seu consentimento - e, por consequência, também a sua colaboração!) e fugir por mar com
ela para França. E o plano foi executado tal como estava previsto: Ana de Erfert e Robert Machin conseguiram
desferrar no seu navio de Bristol, na esperança de encontrarem em qualquer lugar da costa francesa uma terra de
promissão em que pudessem viver em paz e amar-se sem as interferências dos rigorosos bons costumes do meio
em que tinha nascido.
O futuro que os esperava era, porém, muito diferente. Por deficiência de aparelho para uma boa navegação ou
por imperícia dos marinheiros que o tripulavam (D. Francisco Manuel não deixa isso bem claro, mas fala de
«falta de governo» e de «sobejo vento»), o navio singrou desgovemado; ao cabo de treze dias de navegação
incerta, não estavam à vista da Costa de França, a que se destinavam, mas de uma terra altíssima e cheia de
frondoso arvoredo.
Tendo reconhecido tratar-se de uma ilha acolhedora, em que podiam instalar-se a contento, ali decidiram
desembarcar os dois amorosos; com a ajuda dos seus amigos e dependentes construíram rudimentares pousadas,
decididos a viver ali com árvores, com flores, com sossego e com paz. Uma paz que durou apenas três dias,
acrescente-se; porque ao terceiro dia uma súbita tempestade (e é mais uma!) arrebatou o navio com os seus
tripulantes, deixando Ana e Robert, com alguns poucos serviçais e amigos isolados em terra.
Estavam uns e outros lançados na estrada de um trágico fim. Com efeito, e tal como na versão de Fernandes, o
navio veio a perder-se na costa de Marrocos, donde os seus ocupantes foram transferidos para masmorras
mouriscas - ou, como diz o escritor, «passaram da tumba [o navio desgovernado em que iam] à sepultura» [os
cárceres em que os encerraram]. Ana, que pressentia um fim lamentável», «desde o primeiro passo do seu
caminho, ou do seu descaminho» (não se esqueça que ela abandonara o marido!) caiu em estado de tão grande
prostração que «desde aquela hora até a sua morte, nunca mais as palavras lhe souberam o trânsito do coração à
boca». Nesse estado emocional viveu apenas três dias!
Machin sepultou-a com sentidas lágrimas e ornamentou-lhe o túmulo com grinaldas de flores (na versão mais
tardia do cónego Jerónimo Dias Leite, até redigiu um epitáfio em versos latinos, que o sacerdote reproduz); e
para ali se deixaria ficar, caído em desespero, se os companheiros lhe não tivessem exigido um último esforço
para tentarem sair da situação difícil em que se encontravam; lá conseguiram improvisar uma embarcação
primitiva, e nela se fizera ao mar, para terem a mesma sorte dos outros marinheiros: as masmorras muçulmanas!
Contudo, o Rei de Fez não chega a intervir nesta versão, e por isso Machin não veio a ser rapidamente
recambiado para a Europa, como afirmara Valentim Fernandes; pelo contrário, permaneceu muitos anos cativo,
junto dos seus companheiros. E foi durante essa demorada prisão que comunicaria a suas aventuras a um
castelhano, Juan de Morales, que com ele partilhava o cárcere. Seria através deste homem, que ninguém sabe
quem fosse, que a notícia da existência da Madeira correu pela península - quando ele, depois de pago o resgate
reclamado, pôde voltar à sua terra.
Não há dúvida que esta história romântica do descobrimento da Madeira é muitíssimo mais atraente do que a
descolorida narrativa, cheia de dúvidas, de omissões e de informações desencontradas, com que iniciámos este
capítulo. No entanto, a história menos atraente é a verdadeira; a outra não passa de romance tecido em torno da
ilha da Madeira, ou do arquipélago a que ela pertence, com linhas de que de todo se ignota a origem, mas que
tocaram muito de perto várias gerações de escritores e os seus leitores.

2. OS PRIMEIROS DONATÁRIOS DA MADEIRA

O sistema administrativo das donatárias, aplicado a terras possuídas pela coroa além-mar, foi iniciado em
relação ao arquipélago da Madeira, estendendo-se depois a outros arquipélagos ou territórios da orla atlântica
que o rei de Portugal considerava como seus domínios.
Impossibilitado de exercer directamente o direito de senhorio sobre essas ilhas e terras, a donatária foi um meio
a que o rei recorreu para delegar os seus poderes, com certas restrições, em pessoas da sua inteira confiança;
cabia ao donatário administrar, em nome do soberano, a terra considerada no instrumento legal que instituía a
donatária, com as regalias, os direitos e as obrigações nele bem definidos e também com limitações de acção em
diversos campos, nomeadamente o da justiça.
As donatarias estabeleceram-se por toda a área atlântica, sem excluir praças do norte africano e, naturalmente, o
Brasil, enquanto no Oriente se optou pela solução de um governador, que substituía o rei, embora no âmbito de
directrizes definidas por Lisboa, nos actos administrativos, financeiros, legais e bélicos.
Os donatários atlânticos actuaram, de resto, de dois modos distintos: ou designaram capitães que exerciam os
seus poderes, com mais algumas restrições, nos domínios que os reis lhes haviam designado; ou se transferiram
eles mesmos para esses domínios, a fim de os administrarem directamente e deles tirarem maiores proveitos, na
qualidade de capitães-donatários. A donatária da Madeira foi do primeiro tipo; do segundo as que deitaram o
povoamento de São Tomé e Príncipe e, já no século XVI, a ocupação do Brasil.

A primeira obrigação do donatário, e certamente a mais importante, era a de fazer transferir para o domínio
referido no documento de outorga, uma população portuguesa, europeia e africana, que aí se estabelecesse e se
ocupasse de exploração da terra; cada um dos primeiros imigrantes devia desencadear actividades agrícolas de
base que garantissem a subsistência do agregado familiar de si dependente, com excedente para a comunidade
que em torno desse núcleo de povoadores se reunia; e ainda para a exportação, em que o donatário se mostrava
sempre interessado; ou, se preferirmos, essa primeira fase da intervenção do donatário visava «colonizar» a área
terrestre constituinte da donatária.
Sem o povoamento ou sem a ocupação, é evidente que o donatário não podia tirar qualquer benefício da doação
real; era necessário povoar, ocupar e colocar os homens transferidos para as áreas da donatária a produzir à
custa do seu trabalho, para que o senhor pudesse exercer o direito, que o rei lhe reconhecia, de cobrar vários
impostos, que não era a única mas uma significativa fonte de rendimento.
Depois da operação de transferência de gente bastante para a área a ocupar, cumpria ao donatário, ou aos seus
capitães em seu nome, distribui-Ia por povoados, em cuja definição intervinha de modo decisivo; em seguida
tinha de criar uma estrutura administrativa que regulasse as relações entre os vizinhos dos diversos agregados
populacionais, e os de cada um destes entre si, prover à administração da justiça (repete-se: com alguns limites
definidos pelo rei), aproveitar as condições para a criação de uma assistência religiosa efectiva numa palavra,
tomar todas as medidas com vista a impulsionar o progresso nascente na comunidade recém-criada, dentro dos
modelos em prática no reino.
A entrega de terras aos colonos era então feita em regime de sesmarias, muito embora, anos e séculos mais
tarde, quando a coroa ou o estado se substituiu ao donatário, esse modo de distribuição viesse a ser objecto de
variadas e, às vezes, bastante frequentes alterações.
Por um diploma régio de 30 de Outubro de 1422 (cujo original se perdeu, mas que foi incorporado num texto de
confirmação assinado por D. Afonso V), sabe-se que o Infante D. Henrique passou a estar autorizado a doar as
suas terras e as pertencentes à Ordem de Cristo, de que era governador. Quer isto dizer que, em princípio e
teoricamente, já o podia fazer a respeito dos solos madeirenses, quando começou a povoar o arquipélago da
Madeira no ano de 1425; este ano é indicado como do início do povoamento pelo mesmo infante, nas suas
disposições testamentárias de 1460.
Acontece, porém, que à data da primeira ocupação do arquipélago, o infante ainda não era, efectivamente, o seu
donatário; sabe-se isso porque a autorização passada a João Gonçalves Zarco, no sentido de proceder à partilha
de terras madeirenses, aparece assinada por D. João 1, num documento em que declara «rei e senhor» das ilhas,
por «poder regulado e absoluto»; quer dizer: a administração do arquipélago dependia do Rei, e ele não estava
disposto a largá-la de mão em favor do filho.
D. Henrique só viria a alcançar a donataria no reinado do seu irmão D. Duarte, pela carta régia de 26 de
Setembro de 1433; o rei afirma nela expressamente ceder ao irmão as «suas ilhas» de Madeira, do Porto Santo e
da Deserta, com todos os direitos e rendas que ele, doador, até então para si retivera; declara também
expressamente que endossava ao infante D. Henrique a «jurisdição civil e crime, salvo em sentença de morte ou
talhamento de membro», casos em que reservava para si a resolução final; o donatário ficava igualmente
autorizado, por esse documento, a fazer naquelas ilhas todos os «proveitos e benfeitorias» que lhe parecessem
para bem delas, bem como a aforar, «em perpétuo ou a tempo», todas [ ... ] terras» a quem lhe aprouvesse, com
o direito de fazer dádivas de terrenos com a remissão de qualquer foro, prerrogativa que o infante teria em sua
vida, e que certamente lhe foi concedida para ele a usar como meio de incentivar o povoamento. Há no texto
uma restrição de assinalar: o donatário não podia mandar cunhar moeda própria naqueles territórios, pois o rei
queria, e afirma-o, que a «sua» ali «corresse».
Que isto dizer que desde 1425 (se na verdade foi este o ano do arranque do povoamento, o que para alguns
historiadores não é absolutamente certo) a interferência de D. Henrique no arquipélago da Madeira tinha sido
feita a título precário; faltava-lhe o apoio de um diploma legal que legitimasse as iniciativas nesse sentido
tomadas, e lhe alargasse os poderes até os de um autêntico donatário, que apenas logrou alcançar nesse ano de
1433, pouco depois da morte de seu pai.
É ainda de referir que naquele justamente célebre documento, D. Duarte reservava para si não só o foro como
também alguns direitos reais (como a dizima do pescado); nos primeiros anos da sua regência, o infante D.
Pedro declara os ocupantes das ilhas dispensados do pagamento de alguns desses impostos, por um determinado
período.
D. Henrique nunca terá alimentado o plano de administrar directamente as ilhas contempladas naquela
disposição eduardina. Pensou antes em sub estabelecer essa obrigação em pessoas da sua confiança, passando
para isso cartas de doação: da chamada capitania de Machico a favor de Tristão Vaz Teixeira, em 8 de Maio de
1440; a de Porto Santo, entregue a Bartolómeu Perestrelo, em 1 de Novembro de 1444; e a do Funchal, que
ficou a cargo de João Gonçalves Zarco, em 1 de Novembro de 1450.
Seguindo o mais antigo dos documentos agora citados (e os outros são de igual teor) verifica-se que, em
primeiro lugar, o infante se preocupa nele em delimitar com o máximo rigor possível a área sobre a qual o
cavaleiro da sua casa Tristão Teixeira podia exercer a sua actividade; em seguida vai mais longe e faz dele um
verdadeiro capitão-donatário, pois lhes trespassa «a jurisdição [...] do civil e [do] crime, ressalvando a morte ou
talhamento de membro, que [no caso] a apelação venha a mim» (substituindo-se abusivamente ao rei). Mas D.
Henrique não alienava todos os poderes, pois adverte, de forma expressa, que os «seus mandados e correição
sejam cumpridos como em coisa minha própria».
Tristão Vaz Teixeira tinha, no entanto, direitos sobre moinhos de açúcar da área da sua capitania, sobre os
fornos do pão, sobre o sal, podia criar um imposto sobre rendas já taxadas para o infante (direito chamado de
redizima) e era-lhe permitido distribuir as terras situadas; na área que lhe estava distribuída, por quem
entendesse; estas doações de terras podiam considerar-se prescritas ao fim de cinco anos, caso os beneficiários
as não tivessem devidamente aproveitadas dentro desse lapso de tempo.
O que se cita parece-nos suficiente para se ter uma ideia de como, sob a égide protectora do infante D.
Henrique, o capitão passava a gozar no arquipélago, embora em áreas restritas, de um estatuto de quase
donatário, com larguíssimos poderes, que mais tarde lhe seriam retirados pela coroa, que para si os tomou de
novo.
Como se explica que tendo sido iniciado o povoamento em 1425 (se, na verdade, foi) só quinze anos volvidos se
iniciasse a regulamentação dos meios para pôr em prática tal medida? E não há dúvida que em 1440 o processo
de ocupação se encontrava bastante avançado, pois no documento por nós referido há alusões ao cultivo da cana
do açúcar, e esta só podia ser feita com o concurso de vasta mão-de-obra agrícola.
Já em 1914 Damião Peres, ao ocupar-se de A Madeira sob os Donatários, acabou por se defrontar com tal
pergunta. Este historiador notou, em primeiro lugar, que as atribuições judiciais conferidas aos capitães pelos
referidos diplomas de donatário, deviam ser por eles anteriormente exercidas, baseado na circunstância de se
saber com toda a certeza que assim aconteceu para o caso de Bartolomeu Perestrelo em relação a Porto Santo;
em segundo lugar, não parecia a Damião Peres de aceitar que os diplomas citados fossem antecedidos de outros
com objectivos semelhantes ou alternativos, mas visando fins análogos; deste modo, acabaria por sugerir, como
provável ou mais compreensível que «nos primeiros tempos os futuros capitães-donatários actuavam apenas
como delegados do Infante, embora com a mais lata autoridade». E para melhor fundamento desta sua opinião
refere que o mesmo infante, na carta de mercê da capitania do Funchal a Zarco, explicitamente diz que o fazia
«por ele ser o primeiro que, por meu mandado, adita ilha povoou».
Com esta interpretação ficaria amplamente explicada a presença dos três capitães no arquipélago madeirense
muito antes de 1440, ano em que, como se disse, foi assinado o mais antigo diploma de doação.
A propósito do teor desses textos fez notar o mesmo historiador, e a razão quanto a nós assiste-lhe, que D.
Henrique se «excedera»: na verdade, e mencionámos oportunamente esse facto, ele não tinha direito a reservar
para si a resolução sobre as pesadas sentenças referidas, pois o diploma de 1433 a deixava ao arbítrio exclusivo
do rei; por outro lado, D. Duarte concedera-lhe a donatária do arquipélago da Madeira apenas em uma vida, e
parece evidente que, nessas condições, o infante nunca deveria incluir essas terras no seu testamento, como fez.
Criadas as capitanias, e confirmadas por D. Afonso V pouco depois da batalha de Alfarrobeira, os povoamentos
de Porto Santo e da Madeira receberam um forte impulso; e por isso as sedes das duas capitanias foram a curto
prazo elevadas a vilas: o Funchal em data incerta mas anterior a 1461 (possivelmente em 1452), e Machico um
pouco mais tarde, mas com toda a segurança ainda em vida de Tristão Vaz Teixeira.
Por morte do Infante D. Henrique a donatária das ilhas da Madeira passou ao seu filho adoptivo, o infante D.
Fernando, e depois a sua viúva, D. Beatriz, que exerceu o poder sobre o arquipélago como tutora do seu filho
menor, o duque D. Diogo. Alguns anos mais tarde, sendo este considerado como uma das figuras de nobreza
que encabeçava a conspiração contra D. João II, o rei apunhalou-o (23 de Agosto de 1484), passando a donatária
para a posse de D. Manuel, então duque de Beja. Quando o Príncipe Perfeito condescendeu em entregar os
poderes de donatário ao jovem e, com razão, amedrontado duque, o texto da concessão estipulava que ela era
feita para valer apenas em vida do beneficiário, sendo a donatária integrada na coroa após o seu falecimento.
Como é bem sabido, cerca de uma década mais tarde, e por morte de D. João II, o duque foi considerado como
seu natural sucessor, e aclamado rei de Portugal; deste modo a reintegração das ilhas madeirenses no património
real acabou por ser feita de um modo automático.
Entretanto as ilhas tinham-se desenvolvido económica e socialmente, o que veio a dar mais poder aos seus
capitães e força à fidalguia de que se rodeavam, esta aliás revigorada com o poder económico da burguesia com
que se cruzava. Consciente do seu peso, esse grupo chegou a fazer frente, com independência e altivez, às
determinações do rei e dos donatários.
Damião Peres, no estudo antes referido, história de maneira sumana urn caso flagrante dessa independência, que
quase tomou 0 aspecto de rebeldia. Trata-se dos embargos que os capitães e outros senhores da Madeira, bem
apoiados na população que serviam e os servia, levantaram ao imposto extraordinário que D. Afonso V lançou
para custear as enormes despesas da imprudente guerra que desencadeou contra Castela, em defesa dos direitos
da sobrinha, a «Beltraneja» ou «Excelente Senhora», ao trono vago daquele reino. Os custos dessa aventura que
terminou em fracas só cifraram-se em trinta e seis mil dobras, quantia que, como escreveu Veríssimo Serrão,
não será fácil de traduzir em valores actuais, mas que, fora de qualquer dúvida, era avultadíssima. Por decisão
real caberia a Madeira contribuir para essa colecta inesperada com um milhão e duzentos mil reais.
A solicitação ou, antes, a imposição do rei não foi bem recebida pelos capitães, pelos fidalgos e mais gentes da
Madeira, que consideravam excessiva a parte que Ihes cabia para pagar os devaneios do «Africano». Deste
modo, «embora não agressivamente» - como disse Damião Peres - a fidalguia madeirense reagiu contra 0
pagamento de tal quantia, e foi adiando 0 cumprimento da determinação regia por modo que, ao subir ao trono
D. João II [em 1481], ainda a satisfação daquela exigência se não tinha feito».
Nem seria feita tão cedo! E note-se que, ainda em vida de D. Afonso V (em 12 de Julho de 1481) 0 imposto fora
atenuado, por ter sido levado em conta um empréstimo antecedente, no montante de quatrocentos mil reais;
alem dessa abertura do Africano, ficou também entendido que os oitocentos reais que faltavam para se atingir o
montante inicialmente fixado, e de que o rei não queria privar-se, podiam ser pagos em duas prestações, a
pril1leira das quais de três quartos do total.
O donatário do arquipélago, pela voz da sua tutora, D. Beatriz, já havia manifestado a sua preocupação pela
resistência oferecida pelos capitães e seus convizinhos ao cumprimento da determinação régia; escrevera para a
Madeira, em 25 de Julho de 1479, procurando convencer os senhores locais a saldar 0 imposto, acenando com a
perspectiva de obter «o compromisso de não ser no futuro lançada nenhuma outra» contribuição.
De nada valiam as insistências. Os madeirenses mostraram-se firmes, recusando-se ao pagamento voluntário do
que devia ser por eles considerado uma extorsão; em todos os tempos a fuga ao fisco é uma forma de protesto
contra impostos iníquos - mas neste caso a resistência era massiva! E o problema arrastou-se durante anos!
Podiam-se apontar outros atritos como reveladores do confronto entre o poder rei, os poderes senhoriais e os
habitantes do arquipélago, e Damião Peres estudou-os com argúcia. Os donatários (D. Beatriz, D. Diogo e, por
último, D. Manuel), esses estavam sempre, como não podia deixar de ser, pelo lado do rei, e acabariam mesmo
por ser os porta-vozes dos seus desejos, dos seus caprichos e das suas exigências.
Esse conflito latente, que podia agudizar-se com o tempo, veio a terminar através de uma solução «natural»: a
ascensão de D. Manuel ao trono, integrou automaticamente o arquipélago da Madeira nos domínios da coroa; o
rei passou a exercer directamente os seus poderes, dispensando um donatário, e tendo sob sua vigilância, e de
algum modo a seu arbítrio, os capitães.
É interessante notar, de qualquer modo, que quase na mesma data em que o estatuto da donatária desaparecia na
Madeira, ele renascia no Brasil; e com aspectos na aparência só ligeiramente diferentes, mas em substância bem
distintos, veio a mostrar-se aí de inegável eficiência, tendo por isso uma vida menos perturbada e mais longa.

3. EVOLUÇÃO DA ESTRUTURA ECONÓNICA MADEIRENSE 1425-1500

A contemplação do espaço rural madeirense, obra-prima dos pioneiros da colonização da ilha, transporta-nos
para os primórdios da sua ocupação. O rendilhado dos socalcos e levadas, que alastram pelos setecentos e vinte
quilómetros quadrados de superfície, ameniza o acentuado declive de ambas as vertentes da ilha. Aí, nesse
duplo anfiteatro sobranceiro ao mar, lançaram os portugueses, na década de vinte do século XV, um processo de
ocupação e valorização sócio-económica. Assim, de uma ilha de densa floresta, eles fizeram nascer um novo
espaço com amplas frentes de arroteamento engalanadas com os núcleos de habitação, dominados pelas ennidas
e igrejas.
As expedições iniciais, sucedâneas do reconhecimento das ilhas, lançaram as bases dessa nova sociedade; mercê
da transplantação de produtos agrícolas, meios e técnicas peninsulares: são os degredados e aventureiros, que
dão corpo à multidão dos primeiros ocupantes da Madeira, a flora e os artefactos diversos; que dão forma à faina
e lazer diários. Daí a mediterranidade estar sempre presente; na verdade, as tecnologias e os produtos da
civilização do Mediterrâneo associaram-se ao capital e à experiência das suas gentes, para esta primeira
aventura no Atlântico.
O empenho desses europeus, ã tecnologia e os produtos que se transportaram na bagagem dos primeiros recém-
chegados, em consonância com as condições do e co-sistema da ilha (relevo, clima e solo), condicionaram a
evolução da história madeirense desde o século XV.
A selecção de transplante dos produtos agrícolas cultivados fizeram-se de acordo com as exigências alimentares
dos iniciais ocupantes. Desta forma o cereal e a vinha, componentes fundamentais da dieta alimentar da
Cristandade Ocidental, cresceram lado a lado com o pastel e a cana-de-açúcar. Daí a impossibilidade da
utilização de modelos de análise de estrutura económica que apontem para o exclusivo de uma cultura - o ciclo
do açúcar.
Nos cronistas do século XV (Francisco Alcoforado, Diogo Gomes, Zurara) ressalta a importância da riqueza
agrícola (cereal, vinho, açúcar) e dos recursos do arquipélago (madeiras, urzela, sangue de dragoeiro), como
factor de enriquecimento dos povoadores da ilha; e em documento de 1461 insiste na importância do açúcar, do
cereal, do vinho e das madeiras nas exportações da ilha.
a. - A propriedade
Na Madeira só pode ser cultivada uma reduzida faixa paralela ao litoral, com cerca de dois quilómetros e meio
de profundidade, que no total não ultrapassa uns trinta mil hectares (cerca de um terço da área da ilha). A essa
exiguidade do espaço arável junta-se a formação orográfica da ilha, que actua como condicionante da ocupação
e da distribuição desse espaço, dando lugar a essa obra-prima da agricultura madeirense: os poios.
Tal condicionalismo pesou na política de distribuição de terras no século XV e implicou uma evolução peculiar
do sistema de propriedade.
A sua distribuição foi regulamentada, desde o início, pela coroa e, mais tarde, pelo Senhor. No primeiro caso, D.
João 1 estipulara que as terras deveriam ser «dadas forras e sem pensão alguma aqueles de maior qualidade e a
outros que possanças tiveram para as aproveitar e aos de menor que vivam do seu trabalho de cortar e pilhar
madeiras e das criações de gado...». Com a criação do senhorio (1433 e até 1497) essas competências são
transferidas para o donatário que delega os seus poderes nos seus capitães. Com o decorrer dos anos essas
normas de distribuição de terras vão sendo alteradas de modo a poderem adequar-se à pressão do movimento
demográfico. Assim, o
prazo de aproveitamento das terras baixa de dez para cinco anos, e caduca a possibilidade de nova concessão,
findo este prazo.

A partir da década de sessenta agrava-se a política de concessão de terrenos, mercê do aparecimento de várias
demandas sobre a sua
posse e sobre as águas, que obrigam a uma pronta intervenção do donatário por meio do seu ouvidor. Ao mesmo
tempo restringem-se as frentes de arroteamento, pondo-se termo à concessão de terras em regime de sesmarias,
bem como a prática generalizada do fogo na abertura de novas arroteias, que se reconheceu ser uma ameaça
ecológica, e também da economia açucareira.
As reclamações e as medidas consequentes do senhorio atestam a pressão do movimento demográfico sobre a
concessão de terras. Das facilidades da década de vinte entra-se na década de sessenta com medidas limitativas
dessas concessões, como forma de preservar áreas de pasto de usufruto comum e de apoiar os principais
proprietários de canaviais. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordenações régias e senhoriais,
conduziram a uma diminuição de áreas de pasto ou comunitárias, e também às incessantes reclamações dos
madeirenses. Saliente-se que o próprio D. Manuel, em 1492, contraria o regime de concessão de terras, ao
permitir ao capitão do Funchal que fizesse a distribuição de terrenos na serra para currais e para cultura de
cereais, bem como o das bermas das ribeiras para a plantação de árvores de fruto; por outro lado, no sentido de
evitar a exorbitância do capitão em suspender a doação de terras, revoga-se tal direito.
No período de 1433 a 1495 a atribuição de terras de sesmaria era feita pelo capitão, em (nome do donatário. A
carta respectiva deveria ser lavrada pelo escrivão do almoxarifado, na presença do capitão e almoxarife; no seu
enunciado deveriam constar as condições gerais que regulavam esse tipo de concessão, as confrontações,
extensão e qualidade do terreno, capacidade de produção e o tipo de cultura mais própria para a sua exploração,
bem como o prazo do seu aproveitamento.
O colono ou sesmeiro deveria actuar de acordo com o clausulado e, findo o prazo estabelecido, adquiria a posse
plena do terreno, podendo então vender, doar, «escambar ou fazer dele e em ela como sua própria cousa».
São poucas as concessões de terras que resistiram ao correr dos tempos e que ficaram a testemunhar e a
legitimar a posse do solo arável da ilha. Temos notícia de uma, em 1457, feita a Henrique Alemão: especifica-se
nela que o beneficiário fará casa nas terras concedidas, sendo o terreno de lavra ocupado em vinhas, canaviais e
horta.
A evolução do movimento demográfico madeirense, acompanhado da valorização das zonas aráveis com as
culturas de exportação, conduziram a profundas alterações na distribuição e na posse das terras, aliás já evidente
no regimento henriquino. Os mercados interno e externo condicionaram um maior aproveitamento do solo
arroteável, tomando-se urgente um adequado reajustamento da estrutura fundiária à nova situação. O
aparecimento de capitais estrangeiros e nacionais conduziu à intensificação do arroteamento das terras e
provocou alterações na sua posse por meio das transacções para compra e aforamento enfatiota. Em consonância
com estas mutações surge a afirmação do sistema de vinculação da terra, no reinado de D. Manuel, que veio dar
origem ao contrato de colónia. Note-se que em 1494 se generaliza o aforamento dos canaviais na capitania do
Funchal, com especial incidência nas partes do fundo e em Câmara de Lobos.
Com a lei de 9 de Outubro de 1501 põe-se termo à concessão de terras de sesmarias, como forma de impedir a
diminuição do parque florestal, tão necessário à laboração do açúcar. A partir deste momento, toda a aquisição
de terras só poderá fazer-se por compra ou aforamento enfatiota e ainda por transmissão por via familiar, através
de herança, sucessão e dote. Enquanto a compra e a venda
surgem como mecanismos de concentração da propriedade nas mãos da aristocracia e da burguesia enriquecidas
com os proventos da primeira fase de colonização, ou dos estrangeiros recém-chegados, a herança e dote actuam
no sentido inverso, conduzindo à desintegração da grande propriedade. A primeira transacção conhecida data de
1454 e resulta da venda feita por Diogo de Teive a Pedro Gonçalves Barbinhas de uma terra no Funchal por dois
mil reais brancos.
Em 1498 Rui Gonçalves da Câmara vende a sua sesmaria da Lombada da Ponta de Sol a João Esmeraldo.
Quanto ao regime de aforamento, que se generaliza nas últimas décadas do século XV, a primeira acta surge em
1484, quando Constança Rodrigues entrega uma terra em Santa Catarina a João da Cunha por cinco mil reais de
foro. Em 1494 esse regime generaliza-se na cultura dos canaviais da capitania do Funchal, com especial
incidência nas partes do fundo e em Câmara de Lobos.
A presença estrangeira ao nível da estrutura fundiária evidencia-se a partir da década de oitenta, com fixação de
vários contingentes de italianos, flamengos, franceses e castelhanos. Entre eles salienta-se João Esmeraldo, que
em 1498 aforou a já referida Lombada da Ponta de Sol.
A este importante mercador flamengo vieram juntar-se muitos estrangeiros que, entre finais do século XV e
meados do século XVI, fixaram a sua residência nas principais áreas de canaviais da vertente meridional.
Atraídos inicialmente pelo comércio do açúcar, acabam investindo os seus proventos em canaviais, engenhos e
levadas; para além de João Esmeraldo, podemos referir os nomes de Simão Acciaoli, João de Bettencourt, Pedro
Lominhana Berenguer (o Doutor), João Drumond, António Espíndola, António Leme, Urbano e Sixto
Lomelino, João Mondragão, João Salviati, Adriano Espranger, João Valdevesso, Micer Batista, Maciote de
Bettencourt, André França, Pedro Giralte, Martim Leme, Rui Vaz Uzel e Benoco Amador.
Bem relacionados com a alta finança europeia e com os principais centros do comércio europeu, cativaram
rapidamente a atenção da aristocracia e da burguesia insulares, com que se relacionavam por meio de laços de
parentesco. O casamento com o apetecido dote era muitas vezes a forma mais simples de alargarem os seus
domínios e de afirmarem a sua posição na sociedade local. Assim sucedeu com Benoco Amador, que casou com
Petronilha Gonçalves Ferreira, viúva de Esteves Eanes Quintal, detentor de uma grande quinta em Santo
António e de terras na Ponte de Sol; em poucos anos transformou-se num grande proprietário e empresário, cuja
fazenda adquirira com a compra e arrendamento, por um lado, e com o comércio, a arrematação e o empréstimo,
por outro. Idênticas situações surgem com João Esmeraldo, Simão Acciaoli, Pedro Berenguer, João Drummond,
Urbano Lomelino, João Salviati e Micer Batista. Este último era casado com a filha de Tristão Vaz, capitão do
donatário de capitania de Machico.
Não obstante a forte presença do capital estrangeiro na ilha, a sua actuação ao nível da estrutura fundiária fica
muito aquém das expectativas; assim, no estimo de 1494 registam-se quinze estrangeiros com menos de um
quinto da produção total; embora no século XVI tal situação tendesse a melhorar um pouco, o certo é que o
estrangeiro mantém uma posição secundária no sector produtivo.
Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense, lógico será supôr a fixação do estrangeiro no burgo
e arredores, alargando-se depois a algumas comarcas periféricas com forte incidência na economia açucareira,
como Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta.
Nesses lugares os estrangeiros têm, no século XVI, uma posição importante na produção de açúcar, aparecendo
como os principais proprietários, dispondo de extensos canaviais, engenho e grande número de escravos. De
entre eles salientam-se João de Bettencourt na Ribeira Brava, com duas mil quatrocentas e cinquenta arrobas de
açúcar, João de França, na Calheta, com mais de três mil e seiscentas arrobas e João Esmeraldo, na Ponta do
Sol, com cerca de três mil e trezentas arrobas.
É certo que no Funchal temos grandes proprietários, como Simão Acciaoli, Benoco Amador e João Bettencourt
mas, em contraste, a sua posição no quadro geral não atinge o nível dos supracitados. Aliás, é na Ribeira Brava e
Ponta de Sol que encontramos a percentagem mais elevada da produção dos estrangeiros.
Em síntese podemos firmar que o estrangeiro avizinhado não se preocupou apenas com o sector produtivo, pois
o comércio e o transporte dos produtos, que o atraíra, se mantiveram sempre como a actividade principal; o
estrangeiro raramente surge na condição de proprietário mas com o triplo estatuto de proprietário-mercador--
prestamista.
b. Produção
A exploração da ilha orienta-se de acordo com uma política de desenvolvimento económico dependente dos
interesses do tráfico europeu internacional. A selecção e transplante dos produtos para as novas arroteias far-se-
á, portanto, em consonância com os vectores do dirigismo económico europeu e, bem assim, com as diferenças
e assimetrias derivadas da estrutura do solo e do clima. Estes condicionalismos actuam em conjunto como
mecanismos virtuais de distribuição das culturas europeao-mediterrânicas, componentes da dieta alimentar
(cereais, vinha) ou resultantes das solicitações das principais praças europeias (açúcar, pastel).
Tal situação materializar-se-á numa tendência evidente para uma exploração económica baseada na monocultura
ou dominância de um produto. Contra isso surgirá a heterogeneidade do espaço insular, que condicionará a
distribuição das terras, dando azo a uma política distributiva ou a uma arrumação dos principais produtos
agrícolas; surgem, deste modo, áreas de produção para subsistência e troca, procurando definir-se as condições
necessárias à estabilidade das actividades económicas. Assim, o avanço da mancha do açúcar na Madeira
implicou a criação de novas áreas de produção cerealífera, capazes de suprirem as exigências da ilha e de outras
praças em carência.
O povoamento e exploração do espaço madeirense filia-se numa dupla actividade; com efeito, o carácter agrário
desta sociedade nascente tem de compatibilizar com as necessidades derivadas da subsistência e das solicitações
externas. Ambos os sectores alicerçaram o rumo desta economia, definida, por um lado, pela aposta numa
agricultura de subsistência, assente nos componentes da dieta alimentar europeia, e, por outro, pela imposição
de produtos estranhos, capazes de activarem o sistema de trocas.
A estrutura do sector produtivo adaptar-se-á a estas circunstâncias. Em consonância com a actividade agrícola,
teremos a valorização dos recursos do meio insular, que irão integrar os produtos para alimentação - pesca,
silvicultura - e as trocas comerciais - urzela, sumagre, madeiras e derivados, como o pez. Oriundos de uma área
em que a principal componente alimentícia se definia pelos cereais (trigo, cevada, centeio), os colonos europeus
povoaram as ilhas não menosprezaram o quantitativo do grão necessário para a sementeira nestas novas frentes
de arroteamento.
O fenómeno de ocupação e povoamento das ilhas atlânticas é, assim, caracterizado pela transplantação de
homens, técnicas, produtos e formas de domínio e de poder; a ocupação será moldada à imagem e semelhança
das terras de origem destes colonos, e por isso surgem as searas, os vinhedos, as hortas e os pomares, tudo
dominado pela casa de palha e, mais tarde, pelas luxuosas vivendas senhoriais.
Na Madeira, até à década de setenta, a paisagem agrícola será definida pelas searas, decoradas de parreiras e
canaviais. A cultura cerealífera dominava, então, a economia madeirense, referindo Fernando Jasmins Pereira, a
este propósito, que no período henriquino os cereais constituíram a base da colonização da ilha.
A fertilidade do solo, resultante das queimadas, fez com que esta cultura atingisse níveis de produção
espectaculares, que a historiografia quatrocentista e quinhentista anuncia com assiduidade, notando que se
exportava cereal para o reino e as praças africanas.
Segundo Francisco Alcoforado e Diogo Gomes uma medida de sementeira equivalia, em média, a sessenta e
cinquenta de colheita, situação deveras espectacular se tivermos em conta que na Europa raras vezes
ultrapassava trinta e só em condições excepcionais se ficava por quarenta.
Em meados do século, segundo Cadamosto, a ilha produzia três mil moios de trigo, o que excedia, em mais de
dois terços, as necessidades da parca população. Esse excedente era exportado para o reino e, segundo os
cronistas, vendia-se ao preço de quatro reais o alqueire; desde 1461, mil destinava-se ao saco da Guiné.
Não obstante, a partir da década de sessenta, com a valorização da produção açucareira, as searas diminuíram
em superfície e a produção cerealífera passou a ser deficitária; a partir de 1466, a ilha precisava mesmo de
importar trigo para o sustento dos seus vizinhos, sendo, portanto, impossível manter as escápulas estabelecidas.
Aliás, em 1478 referia-se que essa produção dava apenas para quatro meses.
Esta situação derivou da acção dominadora dos canaviais, aliada ao rápido esgotamento do solo e à inadequação
da cultura, resultante de uma exploração intensiva, sem recurso a qualquer técnica de arroteamento.
O agravamento do défice cerealífero nas décadas de setenta e oitenta, que conduziu ao alastramento da fome,
em 1485; surgirá como a principal preocupação das autoridades locais e centrais. Primeiro procura-se colmatar
essa falta inicial com o recurso à Berberia, Porto, Setúbal, Salónica; depois foi necessário definir uma área
produtora, capaz de suprir às necessidades dos madeirenses. Assim sucedeu desde 1508, com a definição dos
Açores como principal área cerealífera do Atlântico português; esse arquipélago actuará como o celeiro de
provimento da Madeira e substitutivo desta no fornecimento às praças africanas.
A Madeira que se havia afirmado, no período henriquino, como um importante mercado de fornecimento de
trigo passará, no governo fernandino, à situação de comprador, adquirindo mais de metade do seu consumo nas
ilhas vizinhas: Açores e Canárias.
A crise cerealífera madeirense surge simultaneamente com a afirmação da mesma cultura no solo açoreano;
aliás Joel Serrão já referiu que a sua valorização açoreana resulta daquela exigência; o rápido incentivo da
cultura no arquipélago dos Açores durante as décadas de 60 e 70, conduziu a uma situação em que o
arquipélago, nos finais do século, se afirmava como a principal área produtora de trigo do novo mundo.
Os cabouqueiros peninsulares transportaram conjuntamente com os poucos grãos de cereal alguns bacelos das
boas cepas, existentes no reino, de modo a poderem dispôr do preciso vinho para o ritual cristão e alimento
diário. A videira adaptou-se com facilidade ao solo insular e conquistou uma posição de peso na economia das
ilhas.
Cadamosto, que em meados do século XV visitou a Madeira, ficou deslumbrado com o rápido crescimento desta
cultura, aduzindo que a ilha atem vinhos muitíssimo bons, e se se considerar que a ilha é habitada há pouco
tempo, são em tanta quantidade, que chegam para os da ilha e se exportam muitos deles».
A cultura da vinha na Madeira absorvia, já nessa altura, uma parte considerável da área arroteada da ilha e, de
modo especial, a zona ribeirinha do Funchal, onde deparamos com doze vinhas e treze latadas; fora do Funchal,
na área entre a ribeira brava e Ponta do Sol, situavam-se apenas oito latadas.
Da certeza e da aposta inicial, testemunhada em 1511 na expressão de Simão Gonçalves da Câmara, segundo a
qual a ilha produzia apenas pão e vinho, surge a afirmação, a partir de meados do século, de novas culturas,
como a cana-de-açúcar que galvanizava ó empenho dos pioneiros madeirenses. Por outro lado, é atribuída maior
atenção aos recursos que a ilha pode oferecer e que apresentam valor económico, e daí a importância dos
domínios silvícolas e piscícolas. Por isso Zurara (1463-68) refere que os proventos da ilha incidiam sobre o pão,
açúcar, mel, madeiras e outros. Incompreensivelmente o cronista ignora o vinho, que já em 1455 era
referenciado por Cadamosto como um produto importante da lavra madeirense.
A cana de açúcar, na sua primeira experiência além Europa, mostrou as possibilidades do seu rápido
desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Esta verificação catalizou as atenções do capital estrangeiro e
nacional, que apostou no crescimento e promoção desta cultura na ilha; só assim se poderá compreender o seu
rápido avanço.
Se nos primórdios da ocupação do solo insular se apresentava como uma cultura subsidiária, passa a partir das
últimas décadas do século XV a produto dominante, situação que se manterá até o final da primeira metade do
século XVI.
A cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção do senhorio e da coroa, conquista o espaço ocupado pelas
searas, atingindo todo o solo arável da ilha. Aí poderemos distinguir duas áreas: a vertente meridional (de
Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos alísios, onde os canaviais atingem os quatrocentos
metros de altitude; e o noroeste, dominado pelas plantações da capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até
Santana), solo em que as condições mesológicas não permitem a sua cultura além dos duzentos metros, nem
uma produção idêntica à primeira área.
A capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores terras para a cultura da cana de açúcar, ocupando
a quase totalidade de espaço da vertente meridional. À capitania de Machico restava uma mínima parcela dessa
área e todo um vasto espaço acidentado impróprio para tal cultivo. Assim, em 1494, do açúcar produzido na ilha
apenas um quinto foi proveniente da capitania de Machico.
Na capitania do Funchal os canaviais distribuem-se de modo irregular, de acordo com as condições mesológicas
da área; deste modo, em 1494, a maior safra situava-se nas partes de fundo, englobando as comarcas da Ribeira
Brava, Ponta de Sol e Calheta, com cerca de dois terços da produção, enquanto ao Funchal e a Câmara de Lobos
cabia menos de um sexto. Em 1520 a diferença mantém-se, pois são ligeiríssimas as alterações. Uma análise em
separado das diversas comarcas da capitania do Funchal, na mesma data, evidencia a importância da comarca do
Funchal, seguindo-se a da Calheta; as comarcas da Ribeira Brava e Ponta de Sol surgem numa posição
secundária.
Descrita a situação da geografia açucareira madeirense, vejamos a sua evolução até meados do século XVI.
Criadas as condições a nível interno, por meio do incentivo ao investimento de capitais na cultura da cana-de-
açúcar e no comércio de seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administração local e central, a
cana estava em condições de prosperar e de se tomar, por algum tempo, no produto dominante da economia
madeirense.
O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdico acelerou este processo expansionista; e a sua detenção
só se veio a verificar pela convergência de vários factores endógenos e exógenos. Tudo isto explica o rápido
movimento ascendente bem como o percurso inverso, pois ao atingir-se o zénite não houve um lapso de tempo
de estabilidade. A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situação
depressionária de 1497-1499, é marcada por um crescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situa em uma
média amial de 13 %, no primeiro caso, e de 68 %, no segundo. No período seguinte, após o colapso de 1497-
1499 a recuperação é de tal modo rápida que em 1500-1501 o crescimento é de 110 % e entre 1502-1503 de 205
%. Esta forte aceleração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá atingir o máximo em
1506, para se verificar um rápido declínio nos anos imediatos; basta dizer que apenas em quatro anos se atingiu
um valor inferior ao do início do século.
A situação agravou-se nas duas décadas seguintes, baixando na capitania do Funchal, entre 1516-1537, em 60%.
Na capitania de Machico a quebra é lenta, sendo consequência de depauperamento do solo e da sua crescente
desatenção à cultura. Mas a partir de 1521 a tendência descendente é global e muito marcada, de modo que à
produção do fim do primeiro quartel do século se situava à um nível pouco superior ao registado em 1470, Na
década de 30 consumava-se em pleno a crise da economia açucareira e o ilhéu viu-se na necessidade de
abandonar os canaviais e de os substituir pelos vinhedos.

c. Comércio
O desenvolvimento das relações de troca de um qualquer mercado não resulta apenas da disponibilidade de
produtos capazes de o promover, exige também de um conjunto de condicionantes que o possibilitem. Estão
entre as condições propiciadoras dó seu curso os meios e as vias de comunicação, os agentes habilitados para os
diversos serviços e os instrumentos de pagamento ajustados ao volume e duração das trocas. No caso da
Madeira estes condicionantes mereceram a adesão dos ilhéus, que souberam encontrar os mecanismos para lhes
dar um elevado nível de desenvolvimento.
O europeu impôs e dominou os circuitos de troca, fazendo desta área uma região periférica definida como um
mercado de reserva para as suas necessidades mercantis. Além disso, as coroas peninsulares, empenhadas num
comércio monopolista, intervêm com assiduidade por meio de uma regulamentação exaustiva das actividades
económicas, delimitando o campo de manobra dos agentes intervenientes. Esse excessivo intervencionismo;
aliado às intempéries, tempestades marítimas, peste, pirataria e corso, foram os principais responsáveis pelo
bloqueamento dos circuitos comerciais em determinadas épocas da centúria em análise.
Houve a necessidade, por parte da administração central e insular, de acompanhar muito de perto estas
actividades nos seus múltiplos aspectos, no sentido de assegurar as directrizes acima enunciadas.
Essa preocupação é constante e abrange todos os sectores de actividade: as autoridades municipais e régias
intervêm na produção, no processo transformador das matérias-primas, na distribuição e comércio dos produtos
locais e estrangeiros; o município legisla sobre a forma de postura e acórdão, regulamentando de modo
pormenorizado todas as actividades sectoriais; a coroa, por sua vez, através das instituições próprias, intervém
por meio de regimentos e alvarás. Deste modo os produtos e as actividades que definem a economia de
subsistência e de mercado estavam sujeitos aos intervencionalismos municipal e régio.
Essa intervenção incide preferencialmente sobre o açúcar, produto que mereceu especial atenção do senhorio,
nomeadamente no tempo de D. Manuel; a sua acção, quando donatário e monarca, foi decisiva para a afirmação
plena desta cultura é definição do mercado nórdico como o seu destino preferencial.
A par da política de regulamentação dos ofícios empenhados na safra açucareira, estabeleceram-se normas
rigorosas de fiscalização da qualidade do açúcar produzido, por meio dos alealdamentos.
A manutenção e a permanência deste movimento comercial implicava a criação de estruturas de apoio
adequadas a uma reserva de capital disponível. Isso foi delineado pelos primeiros peninsulares e estrangeiros
que iniciaram a sua exploração económica, pois em poucos anos as ilhas inseriram-se com a maior facilidade
nos circuitos comerciais do Atlântico, activando uma rede complicada de rotas, que o seu aproveitamento, aliás,
desencadeou.
Na Madeira manteve-se desde meados do século XV um trato assíduo com o reino, activado de início com as
madeiras, a urzela, o trigo e, depois, com o açúcar e o vinho. Esse movimento alargou-se às cidades nórdicas e
mediterrânicas com o aparecimento de estrangeiros interessados no comércio do açúcar. A sua evolução é de tal
modo rápida e lucrativa que em 1493 a fazenda real lançava uma imposição sobre o movimento do porto da
cidade para a despesa de construção da cerca e dos muros. De acordo com a dedução feita, a imposição de um
vintém sobre a tonelagem dos navios renderia cem mil reais, e a de um por cento sobre as mercadorias, duzentos
e cinquenta mil reais.

O açúcar deveria ser o principal responsável por tão elevada quantia. Aliás o mesmo produto contribuiu para o
arranque decisivo e consequente inserção da Madeira na economia europeia. O acelerado ritmo de crescimento
da ilha condicionou a atracção de diversas correntes imigratórias europeias. Tal situação é definida em 1508
pelo monarca D. Manuel ao justificar a elevação do Funchal a cidade: «tem crescido em mui grande povoação e
como nela vivem muitos fidalgos cavaleiros e pessoas honradas e de grandes fazendas, pelas quais e pelo grande
trato da dita ilha...».
A afirmação da tendência de monocultura condicionou a economia madeirense, marcando a sua forte
dependência relativamente ao mercado externo, uma vez que a ilha necessitava desse mercado para a colocação
do açúcar e para se abastecer de produtos alimentares (carne, pescado, legumes, cereais, azeite, sal) e de
artefactos (ferro, telha, barro, panos, linho, etc.).
Até à afirmação da economia açucareira, a partir de meados do século XV, a Madeira evidenciou-se como o
principal celeiro atlântico, fornecedor das praças e das áreas do litoral português carecidos do cereal. Para isso a
coroa traçou uma política cerealífera, definida pela abertura das duas rotas de escoamento: a primeira, orientada
no sentido dos portos do reino (Lisboa, Porto, Lagos), foi delineada em 1439 por meio de isenções fiscais; a
segunda foi imposta pela coroa em tempos de D. Afonso V, e tinha como finalidade o abastecimento das praças
do litoral saariano e guineense. Esta última situação definia-se pelo monopólio ou direito preferencial, por meio
de contrato firmado com os mercadores. Assim, em 1466 todo o trigo dos direitos do infante estava entregue a
um mercador catalão, enquanto em 1473 se estabeleceu um contrato com Baptista Lomelim para que «todo o
trigo que ai houver o possa tirar para fora dela ilha».
As dificuldades sentidas, a partir de 1461, agravadas na década seguinte, introduziram profundas alterações na
economia madeirense, que conduziriam a uma inversão do comércio do cereal. As tentativas do infante D.
Fernando, em 1461 e em 1466, para manter a dominante cerealífera na economia madeirense e as consequentes
rotas do escoamento, esboroaram-se perante a alta rendibilidade e valorização da cultura do açúcar.
O comércio é o principal activador das trocas com o mercado europeu; e o açúcar assume na Madeira uma
posição dominante na produção e no comércio entre 1450 e 1550. O regime do comércio do açúcar madeirense
nos séculos XV e XVI, segundo opinião de Vitorino Magalhães Godinho «vai oscilar entre a liberdade
fortemente restringida pela intervenção quer da coroa quer dos poderosos capitalistas, de um lado, e o
monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em relação com uma escápula
de outra banda». Deste modo o comércio apenas se manteve em regime livre até 1469, data em que a baixa do
preço veio a condicionar a intervenção do senhorio, que estipula o exclusivo do seu comércio aos mercadores de
Lisboa. O madeirense, habituado a negociar com os estrangeiros, reage veementemente contra essa decisão, pelo
que o Infante D. Fernando, restringidas as suas possibilidades, arremata em 1471 todo o açúcar a uma
companhia formada por Gil Vicente, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo, Martim Anes Boa
Viagem. Dessa decisão resultou um conflito aceso entre a vereação e os referidos contratadores. Passados vinte
e um anos a ilha debatia-se ainda com uma conjuntura difícil no comércio açucareiro, pelo que a coroa retoma,
em 1488 e em 1495, a pretensão do monopólio da comercialização do açúcar, apenas conseguindo, no entanto,
impor um conjunto de medidas regulamentadoras da cultura, safra e comércio, promulgadas em 1490 e 1496.
Esta política, definida no sentido de defesa do rendimento do açúcar, irá saldar-se mais uma vez por um
fracasso, pelo que em 1498 é tentada uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente de cento e
vinte mil arrobas para exportação, partilhadas por diversas escápulas europeias.
Estabilizada a produção e definidos os mercados do comércio do açúcar, a economia madeirense não
necessitava dessa rigorosa regulamentação, pelo que em 1499 o monarca revogou algumas das prerrogativas
estipuladas no ano antecendente mantendo-se, no entanto, o regime de contrato para a sua venda. Só em 1508
foi revogada toda a legislação anterior, activando-se o regime de liberdade comercial; assim estipulava o foral
da capitania do Funchal, em 1515, ao anunciar que: «Os ditos açúcares se poderão carregai para o Levante é
Poente e para todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver, sem lhe isso ser
posto embargo algum».
O estabelecimento das escápulas em 1498 definia de modo preciso o mercado consumidor do açúcar
madeirense, que se circunscrevia a três áreas distintas: o reino, a Europa nórdica e a mediterrânica. As praças do
mar do Norte dominavam, recebendo mais de metade das referidas escápulas; entre elas evidenciavam-se as
praças circunscritas à Flandres. No Mediterrânico a posição cimeira é atribuída a Veneza, conjuntamente com as
praças levantinas de Chios e Constantinopla.
Se compararmos as escápulas com o açúcar consignado às diversas praças europeias no período de 1490 e 1550,
verifica-se que o roteiro não estava muito aquém da realidade; as únicas diferenças relevantes na equivalência
surgem nas praças da Turquia, França e Itália, sendo de salientar nesta última um reforço acentuado da sua
posição; todavia, essa diferença poderá resultar apenas da actuação das cidades italianas como centros de
redistribuição no mercado levantino e francês.
Note-se que os italianos detinham mais de dois terços do açúcar transaccionado nesse período.
Os dados disponíveis para-o comércio do açúcar na Madeira; referentes a esse lapso de tempo, mostram que ele
se manteve constante para os mercados flamengo e italiano. 0 reino circunscrito aos portos de Lisboa, Vila do
Conde e Viana do Castelo, surge em terceiro lugar apenas com cerca de um décimo do total. Viana do Castelo
teria, de resto, uma função redistribuidora do açúcar madeirense no mercado nórdico. Para as transacções com o
mundo mediterrânico existiam igualmente alguns entrepostos, nomeadamente em Cádiz e em Barcelona. Estas
cidades apresentam-se, no período de 1493 a 1537, como portos de apoio ao comércio com Génova,
Constantinopla, Chios e Águas Mortas. A ordenança de 1498 não determinava apenas o contingente das
diversas escápulas, mas também a forma da sua comercialização.
A coroa, para dar maior facilidade ao seu escoamento, monopolizava as escápulas de Roma e Veneza, vinte mil
arrobas das de Flandres e três mil das de Inglaterra, no total equivalente a um terço da produção; A este açúcar
juntava-se o quantitativo do quinto ou quarto e da dízima de exportação, que o rei carregava por meio de
contrato estabelecido com as grandes companhias nacionais e internacionais.
Até 1504 as escápulas e o produto dos direitos reais foram canalizados para o mercado europeu, quer por
carregação directa, quer por negócio livre ou a troco de pimenta. Esse açúcar era arrendado por mercadores ou
sociedades comerciais, sedeados em Lisboa, sendo primordial a actuação dos mercadores italianos, como João
Francisco Affaiti e Lucas Salvago.
O comércio madeirense com a Europa definia-se por uma multiplicidade de produtos, agentes, rotas e mercados.
A península, mercê da sua intervenção no reconhecimento, ocupação e valorização económica desta ilha,
apresentar-se-á como mercado mais importante.
Esta área será o elo de ligação entre a ilha e as principais praças europeias no mar do Norte e do Mediterrâneo.
Assim, a partir de Lisboa, Cádiz e Sevilha activar-se-á um assíduo comércio, secundado pelos outros portos
atlânticos e mediterrânicos do litoral peninsular.
A essas praças peninsulares afluiu um grupo de mercadores italianos, franceses, flamengos e ingleses
interessados no comércio atlântico e apostados nesta nova economia de mercado. Se numa primeira fase a sua
intervenção estava limitada à península, num segundo momento, facilitada a sua intervenção nas ilhas, actuaram
a partir delas, onde se afirmaram como os principais homens de negócios; daí estabeleceram contactos e rotas
directas com as principais praças do Mediterrâneo e
do Norte.
A Madeira, foi de todas as ilhas a primeira a merecer uma ocupação efectiva, alicerçou o seu comércio nos
contactos com as zonas costeiras da proveniência dos seus colonos e com as principais praças de origem dos
mercadores forasteiros. Se no início os contactos eram sazonais e se justificam apenas pelas necessidades do
povoamento e governo da terra, numa segunda fase eles passaram a fazer-se com assiduidade, mercê do
comércio activo com a Europa Ocidental.
Os cronistas do século XV e XVI referem com frequência a abundância de madeira na ilha que, em face da
abertura de diversas frentes de arroteamento, condicionou um rendoso comércio com o reino e com outras
partes. De acordo com a mesma informação, a exploração de madeiras fazia-se em regime industrial com o
objectivo de fabrico de embarcações, mobiliário para a exportação e de caixas para embalagem de açúcar. O
volume de exportação de madeiras foi de tal ordem que conduziu a alteração na técnica de construção naval e
civil do reino.
O comércio das madeiras foi certamente a primeira actividade que constituiu uma fonte de riqueza para os
colonos e senhores da ilha, conforme se depreende do indeferimento dado, em 1461, pelo infante D. Femando,
ao pedido de isenção da dízima da sua exportação.
Os contactos entre a Madeira e o reino, ao longo dos séculos XV e XVI, eram constantes e faziam-se com maior
frequência com os portos de Lisboa, Viana e Caminha. Os marinheiros e mercadores dos portos do norte,
nomeadamente da região costeira de entre Douro e Minho, frequentavam com assiduidade o porto do Funchal,
para comerciar o açúcar a troco de panos e carne.
A Madeira ofereceu ao mercador continental, num primeiro momento, as suas madeiras e o excedente de
cereais. Todavia o principal comércio com o reino foi o açúcar, solicitado desde o início pelos mercadores
nacionais, que procuravam firmar o monopólio da rota lisboeta. A ilha recebia em troca um grupo variado de
produtos necessários para o uso e o consumo quotidianos, como ferramentas, panos, tecidos, telha, louça, barro,
ferro, carne, peixe, sal e azeite.
Tudo isto a troco de açúcar e da reexportação de alguns produtos, como peles; escravos, breu e algodão.
A importação de louça fazia-se com assiduidade dos principais portos continentais como Setúbal, Lisboa e
Porto; e, de igual modo, as formas para o fabrico do açúcar deveriam ser provenientes do continente europeu,
nomeadamente da região do Barreiro, tendo em conta a escassez de barro na ilha e, por isso, o fraquíssimo
desenvolvimento da olaria local.

4. A ESTRUTURA SOCIAL DA POPULAÇÃO MADEIRENSE; SUA EVOLUÇÃO

O povoamento da Madeira, iniciado na década de vinte nos pequenos núcleos do Funchal e Machico, alastrou
rapidamente por toda a costa meridional, surgindo novos centros populacionais em
Santa Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta. As condições orográficas condicionaram
os rumos dessa ocupação da terra madeirense, enquanto a elevada fertilidade do solo e a pressão do movimento
demográfico implicaram um rápido processo de humanização e de valorização sócio-económica da ilha.
Aos obreiros e cabouqueiros iniciais seguiram-se diversas levas de gente para esse rápido arranque de ocupação.
No grupo surgem trinta e seis apaniguados da casa do Infante, na sua maioria escudeiros e criados, que
adquirem uma posição proeminente na dinâmica administrativa e na estrutura fundiária.
Enquanto os homens importantes detinham uma posição desafogada no reino e ambicionavam melhor situação
noutras paragens do Atlântico, à ilha afluíam muitos de inferior qualidade ou preteridos da família pelo regime
de sucessão vigente; note-se que o próprio João Gonçalves Zarco sentiu essa situação ao solicitar junto da coroa
varões de qualidade para casarem com as suas filhas; foi para responder a esse pedido que o monarca terá
enviado Garcia Homem de Sousa, Diogo
Cabral e Diogo Afonso de Aguiar.
Na relação dos homens bons da capitania do Funchal, em 1471, a maioria surgia como escudeiros (36%), sendo
reduzido o número de cavaleiros (10%) e fidalgos (5%).
A partir de finais do século XV a elevada condição social dos primeiros povoadores e de seus descendentes
(resultante da sua intervenção na estrutura administrativa madeirense, na safra açucareira, e da (obilitação
régia), é o índice da formação de uma aristocracia insular; ela marca uma posição de evidência no panorama
aristocrático nacional, competindo com a velha aristocracia do reino nas aventuras bélicas no norte de África e
no Oriente, ou nas viagens de exploração do litoral africano e para o ocidente.
É comum atribuir-se a proveniência algarvia `aos primeiros e principais povoadores que desencadearam a
ocupação da ilha. Essa ideia filia-se na tradição, que corre no Algarve, da participação das suas gentes na gesta
expansionista, e na expressão de Jerónimo Dias Leite, «muitos do Algarve»; no entanto parece-nos apressada,
uma vez que faltam provas que a corroborem. Numa listagem dos primeiros povoadores referidos nos
documentos e crónicas a presença nortenha é muito superior à algarvia (64 % para 25 %); por outro lado os
registos paroquiais da freguesia da Sé, no período de 1539 a 1600, corroboram esta conclusão, uma vez que os
nubentes oriundos de Braga, Viana e Porto representam metade do total; enquanto os provenientes de Faro não
ultrapassam os 3 %. É de referir que alguns dos mais eminentes investigadores madeirenses hesitam entre a
procedência minhota e algarvia dos primeiros colonos; Emesto Gonçalves, no entanto, é peremptório em apontar
a origem minhota desses primeiros obreiros do povoamento da Madeira.
O povoamento da Madeira é um processo em que participam gentes oriundas das mais diversas origens;
praticamente todo o reino se empenhou nesta experiência tentadora, em especial as gentes das áreas ribeirinhas -
Lisboa, Lagos, Aveiro, Porto e Viana - e os estrangeiros, adestrados no arroteamento de terras incultas. Se é
certo que do Algarve partiram muitos dos homens da casa do Infante, que vieram a ter uma função de relevo no
lançamento das bases institucionais do senhorio, não é menos certo que do norte de Portugal nomeadamente da
região de entre-Douro-e-Minho, provieram os cabouqueiros necessários para desbravar a densa floresta e
preparar o solo para o lançamento de culturas mediterrânicas; entretanto, do Mediterrâneo chegavam os
italianos, com a sua experiência e o capital necessário para o lançamento da cultura do pastel e do açúcar. Mas o
norte de Portugal, quer pelo facto de ser região do país mais densamente povoada, quer pela sua permanente
vinculação à economia madeirense, terá exercido. uma influência decisiva nesse processo.
A nova realidade insular atlântica projectada na península deu lugar ao rápido povoamento da ilha e a sua
também célebre valorização sócio-económica. O fluxo imigratório europeu desenvolveu-se e acelerou o
movimento demográfico madeirense; do reduzido número de colonos que acompanharam os três promotores da
iniciativa do povoamento na década de vinte, na década de quarenta passa-se para cento e cinquenta famílias
importantes, na década seguinte para oitocentos e em princípios do século XVI (1514) atinge-se uma população
de 5.000 habitantes. Este crescimento demográfico corresponde ao nível do desenvolvimento económico da ilha
e pressiona a evolução da dinâmica institucional e religiosa. A criação dos municípios e das paróquias, e a
evolução genérica do sistema administrativo e fiscal, aparecem como os principais aferidos dessa situação
galopante da demografia e da economia madeirenses.
No século XV o povoamento orienta-se para o litoral meridional, sendo os locais de fixação definidos pelas
enseadas abertas à comunicação com o exterior e pelas extensas clareiras aptas para a faina agrícola. As iniciais
capelas para o serviço religioso no Funchal e no Machico, juntam-se outras em Santo António, Câmara de
Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco da Calheta e Santa Cruz; por outro lado; as dificuldades de
comunicação dos diversos núcleos de povoamento adstritos à capitania do Funchal conduziram a uma
redefinição da orgânica administrativa e fiscal. Primeiro surgem os pedâneos e alcaides dos lugares de Câmara
de Lobos e Ribeira Brava, e depois aparece a estrutura municipal a legitimar uma incessante aspiração dos
habitantes das chamadas partes do fundo. Todavia, só em princípios do século XVI, com o governo manuelino,
vieram a ser atendidas as pretensões dos homens da referida área, criando-se os municípios da Ponta de Sol
(1501) e da Calheta (1502).
De acordo com o arrolamento dos homens-bons para servir no concelho do Funchal, em 1495, as famílias mais
importantes encontravam-se instaladas na área da sede concelhia; 66% delas pertencem ao Funchal enquanto
que as restantes se distribuem por Câmara de Lobos (16%), Ponta de Sol (11%) e Calheta (6%).
O segundo município surge apenas em 1515 nas partes de Machico, e ficou sedeado em Santa Cruz. Toda a
costa norte, incluída na capitania de Machico, manteve-se nos séculos XV e XVIII vinculada às estruturas de
poder sedeadas no novo município; só em 1743 surgiria em S. Vicente a primeira estrutura de poder municipal
em toda essa extensa faixa nortenha; tal situação reflecte não só o abandono a que foi votada toda a extensa área
arborizada, mercê das dificuldades de acesso, mas também um indicador da macrocefalia da estrutura
administrativa da capitania.
Em 1508, ao elevar a vila do Funchal a cidade, o monarca referira que o aglomerado populacional tinha crescido
«em mui grande povoação e como vivem nela muitos fidalgos cavaleiros e pessoas honradas e de grandes
fazendas, pelas quais e pelo grande trato da dita ilha esperamos com ajuda de Nosso Senhor que a dita ilha
muito mais se enobreça e acrescente...».
A par dessa evolução da orgânica municipal é religiosa, a dinâmica institucional madeirense sofre noutros
campos profundas mutações, como forma de adaptação aos novos condicionalismos do processo sócio-
económico; e nesse sentido foram importantes as iniciativas do senhorio depois da década de sessenta: enquanto
em 1477 D. Beatriz procurou orientar a economia madeirense para o mercado externo, com a criação de duas
alfândegas, no Funchal e em Machico, D. Manuel deu em 1486 o impulso decisivo para a implantação de uma
estrutura administrativa adequada às, exigências do final do século; foi D. Manuel quem ordenou a construção
de uma igreja, de uma casa para a câmara, do paço para os tabeliães, da alfândega e do paço público, cedendo
para o efeito terrenos que lhe pertenciam e conhecidos como o Campo do Duque. Desta forma o burgo
funchalense ampliou-se e a malha urbana ganhou uma estrutura renascentista.
A partir desse núcleo inicial de povoadores, disseminados pelas diversas frentes de arroteamento da ilha, ganha
forma uma nova sociedade com uma dinâmica semelhante à do reino. A sua estruturação
partirá desse estatuto preferencial dos primeiros habitantes e evoluirá com a afirmação da estrutura institucional
e económica.
O grupo europeu peninsular tinha uma importância primordial na formação dessa nova sociedade, sendo pouco
representativa a presença de outros grupos étnicos; destes apenas se salientam os africanos (mouros, negros e
guanches) que surgem na ilha sob à condição servil; mas desempenharam um importante papel relacionado com
o arranque da economia açucareira.
Dentro dessa população madeirense surgem diferenças de condição social que determinam os diversos estatutos
ou categorias sociais privilegiados, povo e minorias. Sem pretender fazer agora uma análise exaustiva da
questão, e pondo de parte a discussão dos conceitos e modelos, daremos conta de alguns dados que permitam
uma conveniente elucidação do edifício social madeirense no século XV.
A escassez de documentação, nomeadamente para os primeiros cinquenta anos de ocupação da ilha, impede-nos
de apresentar uma visão completa da dinâmica social madeirense no primeiro século que se seguiu ao seu
povoamento.
No entanto, alguma documentação existente permite, ainda assim enunciar a forma de diferenciação dos
diversos estratos sociais. Na verdade, o senhorio e o monarca, na correspondência para os homens da ilha,
estabelecem diversas categorias sociais: em 1425 o rei, diferencia fidalgos, cavaleiros, escudeiros e povo,
enquanto em 1466 o senhorio saudava os capitães, fidalgos, cavaleiros, juízes vereadores, procurador e homens-
bons. Dois tipos de tratamento diferenciados que espelham a realidade social madeirense: no primeiro caso
estamos perante um grupo heterogéneo de privilegiados e o povo, enquanto no segundo se referencia apenas o
primeiro, cujo estatuto depende da sua condição nobre e do exercício de funções.
Em 1944 a diferenciação de ambos os grupos torna-se mais explícita; um texto refere o «povo meúdo» e os
«mesteres» em oposição aos «principais». Note-se que em 1508 essa oposição derivava do facto de estes
últimos serem pessoas «honradas e de grandes fazendas»; assim o seu estatuto social define-se não só pela
origem mas também pela riqueza e pelo exercício do poder, que deram origem à nova aristocracia insular.
O exercício do poder, nomeadamente municipal, era uma das principais prerrogativas diferenciadoras dessa
aristocracia; os que dele participam aparecem arrolados como homens-bons do concelho, detendo uma activa
intervenção no município, que era o seu órgão de governo; note-se que somente em 1484 foi nele permitido o
assento dos procuradores dos mesteres. Todavia aquela intervenção não se resumia ao poder municipal, pois ia-
se alargando às diversas estruturas institucionais que o desenvolvimento demográfico e económico implicava;
assim, no período de 1454 a 1517, os três grupos da aristocracia surgem com uma posição relevante na estrutura
institucional madeirense.
A mesma documentação da Câmara dá conta de que, no período em causa, entre homens-bons se contam
praticamente as mesmas percentagens de fidalgos, cavaleiros e escudeiros; note-se que no primeiro e segundo
casos surgem os capitães do donatário, enquanto no último aparecem amos e criados do capitão, mercadores,
sapateiros e vedor das obras da Sé. Em 1471 no mesmo grupo de homens-bons, no total de vinte e oito,
contavam-se cinco relacionados com ó capitão e sete com o senhor; o que marca bem a importância destas duas
figuras na dinâmica social madeirense.
A par deste grupo de mando, de ócio e de façanhas bélicas no norte de África, existia uma numerosa pléiade de
subordinados (rendeiros, assalariados, mesteres e escravos), que contribuía para o progresso agrícola e mercantil
da ilha. Aliás, a sua importância na sociedade madeirense reforçava-se com o progresso económico da ilha.
Como se disse, os mesteres somente em 1484 fazem ouvir a sua voz na vereação por meio de criação da «Casa
dos Vinte e Quatro»; dois anos mais tarde foi-lhes atribuída uma participação activa na procissão do Corpo de
Deus. O lugar que os mesteres nela ocupavam, poderá significar uma hierarquização dos ofícios, que se fazia de
acordo com o estabelecido em 1453 para Lisboa. A relação dos mordomos dos ofícios, feita no ano de 1486 pela
vereação, indica a estrutura sócio-profissional; pedreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros, vinhateiros, tecelões,
besteiros, hortelães, almueiros, pescadores, mercadores, almocreves, ourives, tabeliães e tanoeiros. Para os anos
imediatos dispomos de dados referentes à fiança e aos juízes dos ofícios (ferradores, ferreiros, barbeiros e
moleiros) que testemunham a dimensão adquirida pela estrutura oficinal, mercê da exigência da sociedade para
serem asseguradas as necessidades básicas, pois o isolamento e as dificuldades de contacto com a Europa
impossibilitava o abastecimento dos artefactos de uso corrente aí produzidos. A importância e a fixação dos
mesteres em determinadas áreas do burgo veio dar origem a ruas com o nome dos diversos ofícios aí sediados -
como a dos ferreiros, a dos tanoeiros, a dos caixeiros, etc.
A par dos ofícios apareciam os trabalhadores braçais ou assoldadados, que se dedicavam a diversas tarefas no
campo e no burgo.
O seu serviço era onerado com a redízima; este tributo, prejudicial ao exercício dessas actividades, punha em
causa a segurança da terra, pois, segundo se dizia em 1466, tal situação conduzia ao aumento dos escravos; a
mesma preocupação evidencia-se em 1489, apontando-se a saída de homens para as campanhas africanas como
um perigo para a segurança da ilha, devido o elevado número de escravos que nela havia.
Verifica-se, portanto, que o grupo servil surgiu com uma importância relevante na sociedade madeirense na
segunda metade do século XV; o seu peso gerou preocupação e tomou necessária a regulamentação dos seus
movimentos e do seu espaça de convívio; daí a exigência dos nele incluídos usarem um sinal, de se recolherem à
casa do senhor, ao mesmo tempo que se ordenou a explosão dos forros, com excepção dos canários. Os escravos
negros surgem como assalariados, vendedores de fruta dos seus senhores, enquanto os guanches eram pastores e
mestres de engenho.
A Madeira atraiu a partir de meados do século XV uma vaga de forasteiros, mercê da prioridade na ocupação e
na exploração do açúcar. Só o impediam as ordenanças limitativas da residência na ilha, resultante da sua rápida
fixação da sua intervenção nos circuitos comerciais madeirenses.
Em meados do século XV a coroa facultava a entrada e a fixação de italianos, flamengos, franceses e bretões,
por meio de privilégios especiais, como forma de assegurar um mercado europeu para o açúcar; mas a grande
influência que esses estrangeiros rapidamente alcançaram, tornou-se lesiva para os mercadores nacionais e para
a coroa, pelo que se mostrou necessário impedir que eles pudessem «assim soltamente tratar todos»; deste modo
o senhor ordenou a proibição da sua permanência na ilha como vizinhos. O problema foi levado às cortes de
Coimbra, em 1472-1473, e às de Évora, em 1481, reclamando a burguesia do reino contra o monopólio, de
facto, dos mercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar; para isso propunha a exploração de tal
comércio a partir de Lisboa e nas mesmas condições.
O monarca, comprometido com a posição vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera,
actuou de modo ambíguo, procurando salvaguardar compromissos e ao mesmo tempo atender às solicitações
que eram dirigidas; nesse sentido estabeleceu limitações à residência dos estrangeiros no reino, fazendo-a
depender de licenças especiais; quanto à Madeira definiu a impossibilidade da sua vizinhança sem licença sua,
ao mesmo tempo que lhes interditava a revenda no mercado local; a câmara, por seu turno, baseada nestas
ordenações e no desejo dos seus moradores, ordenou a sua saída até Setembro de 1480, no que foi impedida
pelo senhor; somente em 1489 se reconhece a utilidade da presença de estrangeiros na ilha, ordenando D. João
II a D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros fossem considerados como «naturais e vizinhos de
nossos reinos».
Os problemas do mercado açucareiro na década de 90 conduziram ao ressurgimento dessa política xenófona. Os
estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril e meados de Setembro, para comerciar os
seus produtos, não podendo dispor de loja e feitor; D. Manuel apenas em 1493 reconheceu o prejuízo que as
referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou as
interdições anteriormente impostas; as facilidades então concedidas à estada destes agentes forasteiros
conduziriam à assiduidade da sua frequência nesta praça, bem como à sua fixação e intervenção de modo
acentuado na estrutura fundiária e administrativa.
A comunidade de mercadores estrangeiros na Madeira estava dominada pelos italianos, a que se seguiam os
flamengos e os franceses; todos surgiram na terra atraídos pelo tão solicitado ouro branco.
Os italianos, em especial florentinos e genoveses, conseguiram, desde meados do século XV, implantar-se na
Madeira como os principais agentes do comércio do açúcar, alargando depois a sua actuação ao domínio
fundiário, por meio da compra e laços matrimoniais. Na década de 70, mediante o contrato estabelecido com o
senhor da ilha, detinham já uma posição maioritária na sociedade criada para o efeito, sendo representados por
Baptista Lomellini, Francisco Galvo e Micer Leão; no último quartel do século vêm juntar-se a estes Cristóvão
Colombo, João António Cesare, Bartolomeu Marchioni, Jerónimo Semigi e Luís Doria. A este grupo inicial
seguiu-se, em princípios do século XVI, outro mais numeroso, que alicerçou a comunidade italiana residente,
distinguindo-se nele Lourenço Cattaneo, João Rodrigues Castelhano, Chirio Cattano, Sebastião Centurione,
Luca Salvago, Giovanni e Lucano Spinola.
A actividade comercial, principal móbil da fixação dos estrangeiros, não absorveu por completo a sua
intervenção, pois eles subdividem a sua vida quotidiana entre o comércio, o transporte, a banca, a produção e as
administrações local e central; as primeiras actividades complementavam-se e garantiam-lhes um pecúlio
vantajoso, enquanto a última lhes assegurava as condições e os meios preferenciais para a sua acção. A par
disso, o interrelacionamento matrimonial com as principais famílias reforçou a sua posição na sociedade
madeirense.

5. A IGREJA NA MADEIRA NO SÉCULO XV

Partindo do princípio de que o processo de expansão europeia no século XV se confunde com a expansão da
Cristandade Ocidental, e de que com a gesta marítima lusíada se relaciona a religião como uma das principais
motivações, teremos que admitir o rápido empenhamento dos navegadores e da coroa portuguesa na definição
de uma estrutura religiosa adequada às diversas manifestações culturais dos crentes sedeados nos novos espaços
de ocupação atlântica.
Aos primeiros navegadores e povoadores associam-se os franciscanos, que asseguram a necessária «povoação
do céu» no mar e nas primeiras áreas ocupadas. São eles que acompanham João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz
Teixeira na primeira viagem de reconhecimentoe ocupação da Madeira, e serão eles também que tomarão a
iniciativa do primeiro serviço religioso e da definição do primeiro espaço sagrado no vale de Machico; quer
dizer: ergueram nas duas capitanias da Madeira as primeiras estruturas para apoio da sua actividade sacerdotal.
Como reconhecimento da costa da ilha, os seus principais promotores - João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz
Teixeira- destinaram os lugares de habitação e mandaram erguer capelas - Machico, Funchal, Câmara de Lobos,
Campanário, Ponta de Sol e Calheta. Desta forma a preocupação de ambos era, segundo Jerónimo Dias Leite,
«pôr em obra a edificação das igrejas e das vilas e lugares, e lavrança das terras», pois a sua acção tinha como
finalidade «manter todos em justiça, paz, e quietação, e que vivessem todos em serviço de Deus».
A par disso o Infante D. Henrique; como senhor da ilha, preocupou-se com o serviço religioso do arquipélago,
tendo ordenado, segundo o testamento de 1460, a construção das igrejas de Santa Maria, de Porto Santo e da
Deserta. Tal determinação derivava do usufruto que o infante detinha, desde 1433, da jurisdição espiritual e
religiosa do arquipélago. A partir dessa data todo o serviço religioso da ilha dependia do vigário de Tomar,
situação que se manteve até à criação da diocese do Funchal, em 1514; durante esse período os assuntos
religiosos do arquipélago não tiveram qualquer filiação a uma diocese; e nem a criação do bispado de Tânger
(1468), com pretensão jurisdicional sobre todo o espaço atlântico, conseguiu impedir a hegemonia do vicariato
de Tomar na Madeira.
O primeiro vigário da ilha foi o Padre João Gonçalves, sendo desconhecida a data da sua nomeação, que apenas
é citada para o segundo, Francisco Nuno Gonçalves apresentado em 1476; este manteve-se ao serviço até 1485,
ano em que foi solicitado a sair pelos moradores do Funchal; depois, só em 1490 surge novo vigário de Santa
Maria do Funchal, Frei Nuno Cão, que encontrou um excelente acolhimento dos funchalenses; em Machico
aparece, desde 1450, um Frei João Garcia como vigário da capitania local.
A ambos os vigários eram atribuídos poderes de administração e a prática religiosa nas respectivas capitanias;
eles dependiam directamente, como se disse, do vigário de Tomar, não podendo ser molestados na sua acção
pelos capitães do donatário.
A pressão do movimento demográfico e o progresso económico da ilha implicaram novas exigências em relação
à assistência religiosa. Assim, em 1461 os moradores do Funchal exigiam mais padres para assegurarem o
serviço religioso em Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Arco da Calheta. O serviço religioso era
feito aos domingos e dias santificados na Capela do Infante no Funchal, não lhes sendo exigido tal serviço nos
dias ordinários; quem o solicitasse nestes dias teria de o pagar.
Em 1485 alargou-se o número de templos, pois teve de se proceder à construção de novas capelas no Funchal,
Machico, Santa Cruz e Câmara de Lobos; e dois anos após o senhorio mandou dispender até cinco mil réis nos
reparos e provimento de vestimenta a alfaias das igrejas da ilha.
O Funchal surge assim, em finais do século XV, com três capelas de devoção: Santa Maria do Calhau, S.
Sebastião e Santa Maria de Cima, com esta última construída pelo capitão do donatário. Todavia, já em 1485 se
dava conta da necessidade de construção de um novo templo; mana relutância dos homens-bons do concelho
levou a protelar até 1493 o início das necessárias obras, que ficaram concluídas em 1517, ano em que o novo
templo foi sagrado por D. Diogo Pinheiro, bispo de Dume. Com a construção do Convento de Santa Clara, a
partir de 1488 todo o serviço religioso ficou concentrado nas capelas de S. Sebastião e Santa Maria do Calhau.
A falta de documentação para os primeiros oitenta anos de ocupação da ilha impossibilitaram um conhecimento
cabal da evolução da estrutura religiosa e da criação das diversas paróquias. Em todo o caso sabe-se que em
1430 estava criada a primeira paróquia de N.ª S. ª da Conceição de Baixo seguindo-se depois as da Calheta,
Caniço, Ribeira Brava, Ponta de Sol, Câmara de Lobos, S. Vicente, Machico e Arco da Calheta. Tal situação
atesta o rápido povoamento da vertente sul da ilha na segunda metade do século XV.
Acompanhando essa disseminação da população no pouco espaço de terra arável, apareceram as capelas e
ermidas, construídas pelos moradores, coroa, senhorio e particulares. No período de 1420
a 1484 são referenciadas trinta construções, sendo quinze no Funchal e arredores, três em Câmara de Lobos,
duas em Machico é oito nas partes do fundo (Calheta, Arco, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Canhas).
O serviço religioso na ilha diversifica-se a partir de meados do século XV, para ir ao encontro dos principais
núcleos de povoadores. Terá sido importante o empenho de famílias madeirenses nessa expansão, criando
capelas anexas ou integradas nas suas casas, e provendo-as de capelães. Essa evolução da estrutura religiosa
madeirense e as novas solicitações da expansão oceânica tornaram necessárias a diocese do Funchal: em 12 de
Junho de 1514 o Papa Leão X extinguiu a dependência ao vicariato de Tomar, criando aquela diocese com
jurisdição sobre todos os descobrimentos; foi provido como bispo o vigário tomarense. Acrescente-se que nessa
data a Madeira dispunha de quinze beneficiados para cinco mil habitantes, disseminados por oito paróquias.
A Ordem Seráfica surge no século XV intimamente ligada ao processo de descobrimento e ocupação do novo
espaço Atlântico; os franciscanos foram companheiros inseparáveis dos primeiros navegadores portugueses,
associando-se à empresa de reconhecimento e povoamento da Madeira; coube-lhes a honra da celebração do
primeiro acto litúrgico em solo madeirense, a 2 de Julho de 1419, dia da invocação da visita da Santíssima
Virgem a Santa Isabel; além disso, até à criação do senhorio, em 1433, detiveram sob o seu controle o serviço
religioso da ilha, construindo para o efeito alguns cenóbios ou eremitérios nos principais núcleos de
povoamento: Funchal (1426), Câmara de Lobos (1425) e Machico (1462); todavia, a doação, em 1433, da
espiritualidade da ilha à Ordem de Cristo, e a sua compulsiva subordinação às orientações da Ordem, geraram
uma situação de conflito que obrigou à saída dos franciscanos para Xabregas, só regressando em 1459, sob a
direcção de Frei Diogo Arruda.
A testemunhar a forte presença da Ordem Seráfica na Madeira no século XV temos o Convento de S. Francisco,
conhecido como o novo, e o de Santa Clara. O primeiro resultou da necessidade de ampliar o acanhado espaço
do cenóbio de S. João da Ribeira, enquanto o segundo materializa o desejo do senhorio e capitão de um
Convento feminino para as donzelas da ilha.
Em 1476 dá-se início à construção do Convento de S. Francisco e só em 1492 o segundo capitão do Funchal,
João Gonçalves da Câmara, ordena à construção do Convento Feminino nos terrenos anexos à sua casa de
morada. O convento de Santa Clara só começou a funcionar em 1497, com a entrada das duas filhas do capitão
do Funchal para o referido recolhimento com mais quatro freiras do convento de Encarnação de Beja. Para o
efeito Câmara dotou as filhas com o sítio do Curral, que veio depois a ser conhecido como Curral das Freiras.
A par dessas realizações, institucionalizadas e orientada pelo clero, surgiram outras formas de intervenção dos
madeirenses, procurando atender ao princípio cristão da caridade e devoção; aparecem assim as Misericórdias e
as Confrarias. A primeira instituição desse tipo criada no Funchal foi a Misericórdia, instituída em 1454 por
João Gonçalves Zarco. Vinte e três anos mais tarde, em 1477, o carpinteiro Pedro Afonso e a sua esposa
Constança Vaz fizeram doação para o novo hospital de Santa Maria do Calhau. A este seguiram-se iniciativas
semelhantes como a de Álvaro Afonso em 1483, de Constança Rodrigues em 1484, e de Gonçalo Eanes de
Velosa, com a construção em 1497 da albergaria de S. Bartolomeu. De todos o Hospital da Misericórdia do
Funchal salienta-se pela sua acção de caridade e amparo aos pobres, doentes e viajantes.
As confrarias, que associam os vizinhos do burgo com intuitos de devoção ou caridade, organizam-se também
desde o início do povoamento da ilha. E o seu desenvolvimento sócio-económico, desde meados do século XV,
permitirá o reforço e expansão dessa instituição na Madeira, ao mesmo tempo que condicionará a afirmação das
corporações dos ofícios existentes na ilha.

CRONOLOGIA
c. 1350 - Libro del conoscimiento, supostamente escrito por um frade medicante castelhano, dá conta do
conhecimento da Madeira e Porto Santo.
1351 - Primeira representação cartográfica do arquipélago, com os nomes que perduram, no Atlas Mediceo.
1 419-20 - Reconhecimento da Madeira e Porto Santo pelos Portugueses.
1425- Construção do primeiro cenóbio franciscano em Câmara de Lobos.
1426- Construção do primeiro cenóbio franciscano no Funchal.
1430 - Criação da paróquia de N.ª Sr.ª da Conceição de Baixo no Funchal.
1433 - Ser. 26 - D. Duarte faz a doação do arquipélago da Madeira ao infante D. Henrique.
1 440 - Nov. 1 - Carta de doação da capitania do Porto Santo a Bartolomeu Perestrelo.
1450- Nov. 1 - Carta de doação da capitania do Funchal a João Gonçalves Zarco.
1 451 - Elevação do Funchal à categoria de vila.
1454- Doação por João Gonçalves Zarco de alguns terrenos para a fundação da Misericórdia.
1467 - Morte de João Gonçalves Zarco.
1461 - Estabelecimento da obrigatoriedade da Madeira fornecer mil moios de trigo à Guiné, conhecido como o
Saco da Guiné.
1467- Início da construção do Convento de S. Francisco.
1477 - Criação das alfândegas do Funchal e Machico.
1484 - Criação da Casa dos Vinte e Quatro.
1485 - Construção de novas capelas no Funchal, Santa Cruz, Machico e Câmara de Lobos.
1486 - Ordem de D. Manuel para a construção de uma igreja, Casa de Câmara, paço de tabeliães e alfândega, no
terrenos conhecidos como Campo do Duque.
1493 - Revogação das medidas impeditivas da vizinhança e trato dos estrangeiros na ilha. Lançamento de uma
imposição sobre o movimento do porto do Funchal para a despesa da construção da cerca e muros.
1494 - Primeiro estimo da produção do açúcar da capitania do Funchal.
1497 - Fundação do Convento de Santa Clara.
1497 - Abr. 27 - D. Manuel toma realengo e faz reverter para a coroa o arquipélago.
1498 - Aforamento da Lombada da Ponta de Sol por João Esmeraldo. Contingente da exportação do açúcar: as
escápulas.
1499 - Renovação das medidas protecionistas do trato do açúcar.

BIBLIOGRAFIA

CORTESÃO, Armando - 0 Descobrimento de Porto Santo e da Madeira e o Infante D. Henrique, Coimbra,


1973.
- História do Descobrimento das Ilhas da Madeira por Roberto Machim em Fins do Século XV, Coimbra, 1973
FRUTUOSO, Gaspar - Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1 968.
LEITE, Jerónimo Dias - Descobrimento da ilha da Madeira- ., Coimbra, 1947.
MACHADO, João Franco - «A Relação de Francisco Aleoforado», em Arquivo Histórico da Marinha, vol. 1,
Lisboa, 1937
MANUSCRITO de Valentim Fernandes, publicado por António Bavão, Academia Portuguesa de História,
Lisboa, 1940.
PEREIRA, Femando Jasmins - Alguns elementos para o estudo da História económica da Madeira. Capitania do
Funchal - Século IL Coimbra.
1 951, Diss. dact. apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
-A ilha da Madeira no período hemiquino, Lisboa, 1961.
PERES, Damião - A Madeira sob os Donatários, Funchal, 1914.
- História dos Descobrimentos, Porto, 1943.
PITA FERREIRA, Manuel Juvenal - 0 Arquipélago da Madeira Terra do Senhor
infante, Funchal, s.d.
-A Sé do Funchal, Funchal, 1963..
RODRIGUES; António Gonçalves - D. Francisco Manuel de Melo e o Descobrimento da Madeira (A Lenda da
Machmn), Lisboa, 1935.
SILVA, Fernando Augusto da-Subsídios para a História da diocese do Funchal,
Funchal, 1946.

ÍNDICE
1. O Problema do Reconhecimento ou Descobrimento do Arquipélago da Madeira
2. Os Primeiros Donatários da Madeira
3. Evolução da Estrutura Económica Madeirense 1425-1500
a. A Propriedade
b. Produção
c. Comércio
4. A Estrutura Social da População Madeirense; sua Evolução
5 A Igreja na Madeira no Século XV

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44 26 cronistas cronistas
46 2 ribeira brava Ribeira Brava
49 9 intervencionalismo i ntervencionismo
53 12 Affaiti Affaitati
59 32 1944 1494
60 21 homens-bens homens-bons
68 32 orientada orientadas
Composto e impresso nas oficinas da
IMPRENSA DE COIMBRA, LIMITADA
Largo de S. Salvador, 1-3 - Coimbra

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