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Depuração de lactato vs.

saturação venosa central como alvos


hemodinâmicos na sepse

Introdução

A otimização hemodinâmica é um dos pilares do pacote de intervenções


para o tratamento da sepse grave e do choque séptico. Baseadas em um único
estudo, as diretrizes de sepse recomendam a expansão volêmica, o uso de
inotrópicos e vasopressores com o objetivo de atingir-se uma saturação venosa
central (ScvO2) maior ou igual a 70%. No entanto, esta abordagem tem sido
questionada mais recentemente

O lactato é um marcador prognóstico na sepse e sua queda em mais de


10% do nível inicial associou-se a um melhor prognóstico em dois estudos.
Entretanto, até o momento nenhum estudo clínico havia utilizado o lactato
como alvo na otimização hemodinâmica na sepse.

Este estudo teve por objetivo avaliar se o lactato pode ser usado ao
invés da ScvO2 como alvo hemodinâmico na sepse.

O estudo

Foram incluídos pacientes com mais de 17 anos, admitidos no PS com


infecção confirmada ou presumida, que tivessem dois ou mais critérios de SIRS
e sinais de hipoperfusão (PAs<90mmHg após expansão com 20ml/kg de
cristalóides ou lactato > 36mg/dl). Foram excluídos pacientes que seriam
operados em até 6h, gestantes, pós-PCR, transferidos de outros serviços e em
cuidados paliativos.

Os pacientes foram randomizados, então, para um protocolo de


otimização hemodinâmica baseado na ScvO2, com objetivo de mantê-la igual
ou acima de 70%, ou baseado na depuração do lactato, que era coletado de
sangue venoso periférico repetido a cada 2h, com objetivo de haver uma
depuração maior ou igual a 10%. Os passos dos protocolos eram os seguintes:

Grupo ScvO2:

1. Volume até PVC≥8mmHg;

2. Noradrenalina ou dopamina até PAM≥65mmHg;

3. Avaliação da ScvO2:

3.1 Se < 70% e Ht<30%: Transfusão

3.2 Se <70% e Ht>30%: Dobutamina


3.3 Se>70%: Monitorizar

Grupo Lactato:

1. Volume até PVC≥8mmHg;

2. Noradrenalina ou dopamina até PAM≥65mmHg;

3. Coleta do lactato:

3.1 Depuração < 10% e Ht<30%: Transfusão

3.2 Depuração<10% e Ht>30%: Dobutamina

3.3 Depuração>10%: Monitorizar

Obs: Se o lactato inicial e final fossem≤18mg/dl, considerava-se que


a depuração tinha ocorrido.

Os pacientes eram transferidos à UTI quando os alvos eram atingidos ou


após 6h, o que ocorresse primeiro. Os médicos que cuidavam dos pacientes
podiam solicitar o lactato ou a ScvO2 do paciente, caso este estivesse no outro
grupo, se houvesse algum sinal de deterioração clínica (hipotensão, oligúria,
piora respiratória, alteração do estado mental).

O desfecho primário analisado foi a mortalidade hospitalar. Outros


desfechos analisados foram o tempo de internação na UTI, no hospital, dias
livres de ventilação mecânica e número de alvos hemodinâmicos atingidos.
Como tratava-se de um estudo de não-inferioridade foi definido que a diferença
de mortalidade entre os dois grupos deveria ser menor que 10%.

Resultados

Foram incluídos 300 pacientes, sendo que os dois grupos eram bastante
semelhantes. Os sítios mais comuns de infecção foram pulmonar, urinário e
intra-abdominal. O tempo de decorrido entre a triagem e a elegibilidade ao
estudo foi de 111 minutos no grupo lactato e 105 minutos no grupo saturação
venosa (p=0,67). A entrada no estudo ocorreu após 14 e 13 minutos,
respectivamente (p=0,37). Choque séptico estava presente em 81 e 82% e
lactato≥36mg/dl em 41 e 37% dos pacientes, respectivamente. A idade média
foi de 59,6 vs. 61,6 anos e as disfunções mais comuns foram cardiovascular
(88vs.85%), renal (73 vs. 73%) e respiratória (57 vs. 57%).

O tratamento dos dois grupos envolveu cristalóides (média de 4500ml),


vasopressores (74%), ventilação mecânica (26%) e dobutamina/transfusão
(10%).

A proporção de alvos atingidos foi a seguinte:


Alvo Lactato ScvO2

PVC 91% 91%

PAM 97% 97%

Perfusão (lactato/ScvO2) 95% 93%

Antibioticoterapia (tempo 115min 115min


médio)

Proteína C ativada 2% 2%

Corticoide 12% 17%

Os desfechos foram os seguintes:

Desfecho Lactato ScvO2

Mortalidade, %(IC95%)* 17 (11-24) 23 (17-30)

Dias de UTI 5,9 5,6

Dias de hospital 11,4 12,1

Disfunção de múltiplos 25% 22%


órgãos

*A diferença entre os dois grupos foi de 6%, com IC de 95%, de -3 a 15%, ou


seja, menor que os 10% pré-especificados.

Comentários

Este estudo foi o primeiro a usar o lactato como alvo de intervenção


hemodinâmica na sepse e seus resultados levam-nos à conclusão que é uma
ferramenta que pode ser usada, bem como a ScvO2.

No entanto, alguns pontos devem ser considerados. Assim como a


ScvO2, o lactato parece refletir algum grau de má-perfusão nas primeiras horas
de sepse grave e choque séptico. Assim como otimizações de saturação
venosa tardias não parecem benéficas, a hiperlactatemia tardia também não
deve ser, pois parece estar relacionada a outros fatores que não o déficit de
perfusão, como menor depuração, produção muscular, disfunção mitocondrial e
produção pulmonar.

Um dado interessante é o uso do lactato venoso periférico ao invés do


arterial, que se correlacionam bem, porém têm baixa concordância. Os autores
já haviam mostrado a sua utilidade em outro estudo.
Um dado que ficou faltando na apresentação do estudo foi a evolução da
ScvO2 e do lactato nos dois grupos ao longo das primeiras 6 horas e depois
para que pudéssemos ter uma visão melhor da cinética das duas variáveis. O
modo como os dados são apresentados na tabela, mostrando queda da ScvO2
em 24 e 48h e apenas o pior lactato nas primeiras 72h, pode gerar dúvidas
quanto à eficácia da reanimação.

O principal argumento dos autores para se usar o lactato ao invés da


ScvO2 é que a medida desta necessita de um cateter especial (Presep®). No
entanto, sabemos que se pode perfeitamente fazer medidas intermitentes a
partir de um gasímetro. Provavelmente, a principal contribuição do estudo é
mostrar que se pode usar o lactato venoso periférico como alvo hemodinâmico
em situações em que não se pode ou não se consegue inserir um cateter
venoso central precocemente.

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