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CriME, CasTIGO E Erro JUDICIARIO 1 - Ainda que Deus tenha dado ao homem, tnico entre todas as criaturas, porte ereto, com preceito de contemplar os céus ¢ fitar os olhos nas estrelas, como em elegante ritmo cantou © poeta,’ sao porém mais que muitas as vezes em que, deslembrado de sua augusta predestinagao, abdica da dignidade propria e inclina-se para a terra. E, o que é mais, obrando ja com soberba desconsideragao das regras do con- vivio social, arroja-se perdidamente a carreira dos delitos. Ai, como a organismo doente que lhe importa curar, entra o Estado a aplicar-the sua medicina; e 0 estipéndio do crime bem se sabe que é o castigo ou pena. Posto se proclame, e com alguma verdade, que a histé- tia da pena é a de sua paulatina abolic4o, nao ha entretanto elimina-la do corpo das leis repressivas, que isto implicaria retorno da civilizagao 4 barbérie.? Mas seu cardter nao é s6 aflitivo, ou de retribuigao pelo mal cometido; é sobretudo, o fim da pena reeducar 0 delinquente pela disciplina da vontade, pratica da virtude e amor do trabalho, este o principalissimo dos fatores de promogiéo humana.? Il — De ser a pena uma necessidade social incoercivel nao procede, contudo, deva infligir-se ordinariamente em 1 Ovip1o, Metamorfoses, 1, 85; 2 “Suprima-sea pena (‘quod Deus avertat’) eo crime seria, talvez, a lei da maioria. £ indubitavel a eficdcia inibidora do castigo” (Nétson Huon, Comentérios ao Cédigo Penal, 1978, vol. I, t. Il, p. 196); 3 Doutrina € esta que geralmente professam aqueles a quem tocou a merit6ria tarefa de recuperar os desajustados sociais, como se tira do distico expressivo gravado no frontio da Pentrenciinia pe Sao Paulo: ‘Aqui, 0 trabalho, a disciplina e a bondade resgatam a falta cometida e reconduzem o homem a comunbdo social”; 74 ‘TriBvTO aos ADVOGADOS CRIMINALISTAS — Cartos Busorm grau extremado. Ao invés, nisto de imposig4o de castigo cor- poral deve-se atender sempre A moderagao. As penas de duracio longa padecem de inconveniente conspicuo, uma vez que, na conformidade das palavras do ilustre Juiz Joio Barnsta HERkENHorr, “retirariam dos réus todo sentido de esperanga: por mais hediondos que tenham sido os crimes praticados, esse sentimento nao pode ser elimina- do do homem”.‘ E nao 0 pode porque, profundo que seja o abismo em que um dia se precipitara, ao homem nunca lhe adormece no peito o deseio ardente de retomar o curso da vida € tornar aos seus. Por mais forte razdo, ela nao podera desamparar aque- le que, tendo perdido a liberdade, foi como se tudo ja per dera: 0 encarcerado. Em suma: a pena demasiado severa, sobre nao recupe- rar o infrator (esforgado argumento para que se nao apli- que), ainda “mata a esperanga, que é 0 ultimo remédio que deixou a natureza a todos os males”, como pregou o subli- me Vierra.> Ill — Mais que a sentenga draconiana — que imp6e ao réu pena que, de muito rigorosa, parece antes Pperpétua -, é para recear a que condena o inocente. Género de desgraca gran- de € esse, que, por evité-lo, o emprego de diligéncia, ainda em seu grau maximo, sempre se teve por muito pouco. A condenagio do inocente a pena tltima nao raro meteu em escriipulo até a coracées empedernidos. De Nzro, monstro coroado, refere com efeito SUETONIO que, certo dia, em que o convidaram a assinar uma condenagao capital, dis- se: “Tomara nao soubesse escrever!”® Outro tanto passou com o imperial Pepro IT. Constando-lhe que Mota Coquro, a 4 Uma Porta para o Homem no Direito Criminal, 28 ed., p. 163; 5 Sermées, 1959, . III, p. 278; 6 Gf As Vidas dos Doze Césares, 1955, p. 269; trad. Savy Ganwatnr; Cais, Castigo & Erro Jupiciinto 5 quem se dera morte no patibulo, fora vitima de erro judicia- rio, no mesmo ponto mandou quebrar a pena com que lhe negara pedido de cleméncia e “nunca mais quis assinar ne- nhuma condenagao”.” A todos assusta e angustia o espectro do erro, no en- tanto mais Aqueles que foram investidos na terrivel quao bela fungdo de julgar, que é atributo proprio sé da Divindade. De feito, julgando sempre, mais que ninguém estéo sujeitos 4 tirania implacavel desta contingéncia humana que € o erro. Nao é tudo. Ougamos a esse varao abalizado em virtu- des e letras, de quem justamente se orgulha e ufana a Magis- tratura brasileira, o Juiz Eutézer Rosa, cujas palavras vem aqui de molde: “Nos tribunais, o medo de errar é muito mais oprimente que num juiz de primeiro grau. Saibam todos que € esta uma imensa e dolorosa verdade. Ser relator dum feito é terrivelmente penoso, pela consciéncia que tem de que seu voto pode ser acompanhado e, por mais e melhor que tenha pensado em acertar, 0 insidioso erro pode esconder- -se na pureza de seu pensamento”.® Este mesmo temor de errar foi, decerto, o que inspi- rou a sabedoria humana a regra comum de interpretagao da duvida — “In dubio pro reo” -, porque “a condenagao do ino- cente constitui maior desgraga para a sociedade do que para © condenado, sendo preferivel, segundo a velha sentenca de Berryer, ficarem impunes muitos culpados, do que puni- do quem devera ser absolvido”.? 7 Raimunpo pe Menezes, Crimes e Criminosos Célebres, 24 ed. » p. 123; 8 AVoz da Toga, 2* ed., p. 50; 9 Finvino Waraxer,Jtiré, 6 ed., p. 89. @ (Do livro Tributo aos Advogados Criminalistas, 2005, pp. 73-75; autor: Carlos Biasotti; Millennium Editora Ltda.).

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