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Minority report - uma segunda opinião

06-09-2002

NEUROCIÊNCIA

Para neurociência, a 'leitura de intenções' no cérebro, como no


filme, já é uma realidade

Detalhe do cartaz do filme Minority Report

Um amigo meu anda preocupado com o que a neurociência talvez


um dia seja capaz de fazer: ler pensamentos. Não, mais do que
isso: ler intenções. Identificar diretamente no cérebro a vontade de
ir ao cinema, aceitar uma proposta de casamento, dar um presente
ou fazer um agrado. E também a vontade de mentir, trair a mulher,
cometer homicídio. Tanta preocupação surgiu ao tomar
conhecimento de uma descoberta da neurociência feita uns vinte
anos atrás, e desde então confirmada de diversas formas.

A tal descoberta tem a ver com aquele papo de que a gente vê


somente cinco anos mais tarde o brilho de uma estrela afastada
cinco anos-luz da Terra. Lembra dessa história? Ela explica por que
uma estrela que já morreu décadas atrás pode ainda brilhar por
aqui na Terra. Pois bem: segundo o americano Benjamin Libet,
badaladíssimo nos anos 80, a consciência dos nossos atos
voluntários seria algo parecido: uma explicação criada pelo cérebro
para algo -- como a ordem de executar um movimento -- que já
aconteceu até meio segundo mais cedo.
Num dos experimentos mais simples e elegantes da história da
neurociência, Libet pediu a seis voluntários que prestassem atenção
à trajetória de um pontinho andando rapidamente em círculos numa
tela, como se fosse o ponteiro de um relógio, enquanto um
eletroencefalograma registrava a atividade elétrica sobre a região
do cérebro que dá comandos de movimento aos músculos. A tarefa
dos voluntários era moleza: eles deviam ficar lá prestando atenção
ao pontinho e, se por acaso sentissem uma vontade súbita de
mover um dedo, notar em que posição estava o pontinho no
momento em que a vontade bateu. Pela posição do pontinho, Libet
podia estimar o tempo decorrido entre a vontade e o movimento.

Resultado? A vontade bate uns dois décimos de segundo antes de


o dedo mexer. Natural, não é? Primeiro dá vontade; depois você
mexe o dedo. O que não estava no programa é que as regiões de
planejamento motor do cérebro entram em atividade MUITO ANTES
de "bater a vontade" de mexer um dedo -- outros dois ou três
décimos de segundo mais cedo do que a "vontade". A implicação é
que o cérebro não "sente vontade" de mexer um dedo, depois ativa
o programa adequado, depois mexe o dedo. Ao contrário: ele
primeiro ativa o programa adequado; dois ou três décimos de
segundo mais tarde aquilo de alguma forma se transforma em
"vontade"; e só outros tantos depois o dedo mexe, mesmo.

Desde então, vários laboratórios já comprovaram que a ordem para


a execução voluntária de um movimento é dada no cérebro até
mais de meio segundo antes de ser executada. E, como
demonstrou Libet, ela pode ser detectada eletronicamente ao
menos dois décimos de segundo ANTES que a própria pessoa
tenha sequer consciência de que a ordem foi dada. Se você ainda
está pensando que é pouco, não se engane: dois décimos de
segundo são muita coisa. Tempo o suficiente, por exemplo, para
bater palmas duas vezes. Ou apertar um botão.

Donde a preocupação do meu amigo. O intervalo significa que há


tempo hábil para uma máquina "ler" no cérebro a intenção do
movimento, e até intervir. A ordem para apertar o gatilho do revólver,
por exemplo, poderia ser detectada por um sensor implantado no
cérebro a tempo de algum dispositivo reagir e impedir o disparo.
Seria a versão neurocientífica da situação concebida por Philip K.
Dick e levada à telona por Steven Spielberg no filme Minority
Report, onde três paranormais prevêem crimes iminentes com
poucos minutos de antecedência, graças a alguma mutação
genética vagamente explicada. No filme, são os paranormais que
têm seus cérebros escaneados em permanência, deixando a polícia
espiar diretamente suas visões de crimes que ainda não
aconteceram, mas cuja intenção existirá e é lida, por sua vez, no
cérebro dos futuros perpetradores.

O "sistema" poderia ser questionado quanto à invasão da


privacidade cerebral humana, mas o filme voa muito além de
qualquer preocupação ética desse tipo. A questão que realmente
importa é outra: será a previsão, paranormal ou neurocientífica,
100% infalível? A Divisão Pré-Crime de Dick-Spielberg prende os
ex-futuros criminosos com base na sua intenção de matar -- antes
que o crime seja consumado, naturalmente. Mesmo que o risco de
erro pudesse ser eliminado, como "as estatísticas do Pré-Crime
comprovam", não haveria uma possibilidade de mudanças de curso
imprevistas?

A ficção de Dick-Spielberg se dá em 2054, mas em alguns aspectos


esse futuro já chegou. A leitura de intenções é uma realidade. Ao
menos no cérebro de ratos e macacos, como demonstrou o
brasileiro Miguel Nicolelis e sua equipe na Universidade Duke, nos
EUA. Nesses bichos, os comandos para movimentar as mãos já
podem ser detectados por eletrodos implantados na região motora
do cérebro, e transmitidos a um equipamento que identifica a ordem
a ser dada aos músculos e intervém, acionando por sua vez uma
máquina que executa o movimento correspondente antes mesmo
que o animal consiga contrair seus músculos.

Até que algo surpreendente ocasionalmente acontece.

Provavelmente ao notarem que a máquina dará conta do recado, os


ratos aprendem a abortar a execução do comando. O cérebro dá a
ordem, sim, que é detectada pelos eletrodos e executada pela
máquina. Mas não necessariamente pelo animal -- que descobre
que pode ficar preguiçosamente aguardando a chegada do braço
mecânico que traz água à sua boca, sem mover um dedo. A ordem
é dada. Só que o rato não faz nada.

Libet explica. Está certo que a ordem para o movimento é dada


pelas regiões motoras do cérebro muito antes de se transformar, de
alguma forma, em vontade de movimento, na sensação de "desejar"
um movimento. Como o brilho da estrela morta distante, a sensação
de livre-arbítrio chega somente depois que a ordem já foi dada.
Mas, ao contrário da estrela já morta, não chega tarde demais.
Mesmo a ordem já "desejada conscientemente" ainda pode ser
abortada. Os voluntários de Libet conseguiam resistir à vontade de
mover um dedo. Qualquer um de nós, aliás, consegue. E os ratos
também.

Como a polícia Pré-Crime de Dick-Spielberg acaba descobrindo, é


este o problema do seu sistema de detecção das intenções. E é
também a solução para as preocupações do meu amigo. Eles não
contavam com essa capacidade amplamente subapreciada do
cérebro humano: o poder de mudar de idéia.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia
06/09/02

Para saber mais:

Libet B et al, 1983. Time of conscious intention to act in relation to


onset of cerebral activity (readiness-potential): the unconscious
initiation of a voluntary act. Brain 106, 623-642.

Libet B, 1985. Unconscious cerebral initiative and the role of


conscious will in voluntary action. Behavioral and Brain Sciences 8,
529-566.

Sugestão de leitura:
McCrone J. Going Inside. A tour round a single moment of
consciousness. Londres, Faber and Faber, 1999.

Fonte:
http://ich.unito.com.br/oldsite/cerebro/cn01.htm

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