Você está na página 1de 10

EDUARDO CALBUCCI

(des)conexões
entre o
Manifesto
Técnico
da Literatura
Futurista
e o “Prefácio
Interessantíssimo”

EDUARDO CALBUCCI
é professor do Anglo
Vestibulares e autor de
Saramago – Um Roteiro
para os Romances (Ateliê).

calbucci.indd 205 30.09.08 18:08:54


Em 1893, ele chega a Paris para com-
pletar sua formação. Consegue o título de
bacharel em letras pela Sorbonne e, logo
em seguida, o de doutor em direito por
Gênova. A partir daí, ele se divide entre
a França e a Itália, o que faz com que
sua obra seja considerada franco-italiana.
Na Europa, Marinetti toma contato com
poetas e teóricos do final do século XIX,
tanto decadentistas quanto simbolistas, e
começa a se interessar pelo verso livre, do
qual vai se tornar, algum tempo depois, um
ferrenho defensor.
Após os títulos acadêmicos, ele passa a

A
se dedicar à literatura; chega a ganhar um
concurso na França em 1899, com o poema
“Les Vieux Marins”. Obtém, então, certa
s vanguardas européias do início do século celebridade, principalmente por recitar
XX são um dos alicerces da base ideoló- versos de Rimbaud, Verlaine e Mallarmé.
gico-literária do que se convencionou Em 1905, muda-se para Milão e funda uma
chamar modernismo. Nascidas de uma nova revista, chamada Poesia. Em 20 de
reação à arte da Belle Époque, elas fevereiro de 1909, Le Figaro publica, com
destaque e estardalhaço, o primeiro Mani-
“[…] estavam sob o signo da desorgani- festo Futurista, divulgado mais tarde, em
zação do universo artístico de sua época. italiano, pela Poesia. Sobre essa publicação,
[…] uns, como o futurismo e o dadaísmo, Aurora Bernardini diz:
queriam a destruição do passado e a nega-
ção total dos valores estéticos presentes; e “Com reboantes maiúsculas, ritmos ca-
outros, como o expressionismo e o cubis- denciados e preciosismos liberty, extremo
mo, viam na destruição a possibilidade de obséquio à escola na qual se formou (o
construção de uma nova ordem superior. simbolismo), Marinetti envolve os visto-
No fundo eram, portanto, tendências orga- sos elementos do futurismo incipiente, o
nizadoras de uma nova estrutura estética e fetichismo da máquina, a glorificação das
social” (Teles, 1997, p. 29). maciças descobertas tecnológico-científicas
que encobrem o advento de uma nova atitude
A pioneira dessas vanguardas, ao menos espiritual, uma nova maneira de encarar o
considerando-se a perspectiva cronológica, mundo […]” (Bernardini, 1980, p. 11).
foi o futurismo, cuja história se mistura com
a vida de seu criador, Filippo Tommaso A defesa incondicional do mundo das
Marinetti. máquinas e da velocidade domina as pági-
Ele nasceu em 1876, no Egito, para nas do Manifesto Futurista de 1909 e, em
onde seu pai havia imigrado sete anos certa medida, torna-se um dos principais
antes devido à abertura do Canal de Suez. apanágios da vanguarda futurista. No quarto
A família, muito rica, proporcionou ao dos onze itens que compõem o texto de
jovem Tom – como era seu apelido – uma Marinetti, afirma-se:
educação de primeira linha: ele estudou
num célebre colégio jesuíta de Alexandria. “Nós afirmamos que a magnificência do
Desde a adolescência, já demonstrara um mundo enriqueceu-se de uma beleza nova:
interesse pela arte literária; ainda no Egito, a beleza da velocidade.
organizara a publicação de uma revista Um automóvel de corrida com seu cofre
periódica de literatura, chamada Papyrus. enfeitado com tubos grossos, semelhantes a

206 REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008

calbucci.indd 206 30.09.08 18:08:54


serpentes de hálito explosivo... um automóvel Depois dessa enxurrada de manifestos
rugidor, que parece correr sobre a metralha, (nenhum deles, exceto o dos “dramaturgos
é mais bonito que a Vitória de Samotrácia”1 futuristas”, vinculado às artes literárias),
(apud Bernardini, 1980, p. 34). Marinetti volta à sua verdadeira área de
atuação e publica, em 11 de maio de 1912,
Com esse texto, inaugura-se a segunda o célebre Manifesto Técnico da Literatura
fase do futurismo, que vai de 1909 até 1914, Futurista. No terreno da literatura, trata-se
quando se redigem os principais manifes- provavelmente do texto mais ousado das
tos futuristas. A primeira fase (1905-09) vanguardas européias. Nenhum outro ma-
incorporaria os antecedentes do futurismo, nifesto – expressionista, cubista, dadaísta,
enquanto a terceira fase – de 1914 em diante cubofuturista ou surrealista – foi tão longe
– seria o momento em que os princípios na tentativa de sistematizar os procedimen-
artísticos começariam a servir às ideologias tos técnicos de composição de uma obra
políticas, especialmente ao fascismo (Teles, literária “moderna”.
1997, pp. 85-6). É no Manifesto Técnico que Marinetti
Como um todo, podemos dizer que o enumera os onze princípios da “literatura
futurismo foi mais um conjunto de manifes- futurista”. Após uma introdução, em que
tos e propostas estéticas do que realmente o narrador se apresenta voando “duzentos
um movimento repleto de grandes obras metros acima das possantes chaminés de
artísticas2. O próprio Marinetti foi mais Milão”, “a hélice turbilhonante” do avião
“artista” nos seus manifestos do que em seus lhe apresenta os onze mandamentos do
poemas e narrativas. De qualquer modo, futurismo (Bernardini, 1980, pp. 81-7).
esse parece ter sido o preço de assumir a Resumidamente, temos:
responsabilidade de iniciar o processo de
contestação do status quo estético que deu 1) destruição da sintaxe;
origem às famigeradas vanguardas euro- 2) emprego do verbo infinitivo;
péias. Os futuristas foram bons polemistas 3) abolição do adjetivo;
e razoáveis literatos. 4) abolição do advérbio;
Após 1909, Marinetti se aproximou de 5) valorização do “duplo” do substantivo;
outros artistas para estender o futurismo 6) abolição da pontuação;
além dos domínios da literatura. De fe- 7) valorização das analogias;
vereiro de 1910 até abril de 1912, foram 8) nova valorização das analogias;
escritos inúmeros manifestos, entre os quais 9) criação de uma rede de analogias;
se destacam: 10) valorização da “desordem”;
11) abolição do “eu” na literatura.
• Manifesto dos Pintores Futuristas
(1910), por Boccioni, Carrà, Russolo, Balla Duas grandes idéias de Marinetti são
e Severini; apresentadas nesse manifesto sob a for-
• A Pintura Futurista – Manifesto Técnico ma de aforismos: le parole in libertà e 1 Não há como não perceber
a relação interdiscursiva entre
(1910), por Boccioni, Carrà, Russolo, Balla l’immaginazione senza fili. Sobre “as pa- essa passagem do Manifesto
e Severini; lavras em liberdade”, Marinetti escreve: e um dos célebres poemas-
pílula das Poesias de Álvaro de
• Manifesto dos Musicistas Futuristas “Desconsiderando todas as definições estú- Campos, de Fernando Pessoa,
em que se lê: “O binômio de
(1911), por Pratella; pidas e todos os verbalismos confusos dos Newton é tão belo quanto a
• Manifesto dos Dramaturgos Futuristas professores, eu lhes declaro que o lirismo Vênus de Milo./ O que há
é pouca gente para dar por
(1911), por Marinetti; é simplesmente a faculdade raríssima de isso. […]” (Pessoa, 1994, p.
409).
• A Música Futurista – Manifesto Técnico inebriar-se da vida e de inebriá-la de nós
(1911), por Pratella; mesmos” (Marinetti, 1931, p. 103).
2 Alfredo Galletti (1935, p.
353) afirma: “O futurismo não
• Fotodinamismo Futurista (1911), por Esse lirismo (antilatino, diga-se de é tanto um fato artístico quanto
uma experiência mantida com
Bragaglia; passagem) não configura o típico lirismo a coerência maníaca do valor
• A Escultura Futurista (1912), de Boc- romântico, por exemplo. Ao contrário, tra- prático de certa idéia; e é, ao
mesmo tempo, um testemunho
cioni. ta-se de uma maneira de liberar o artista da de uma perturbação moral”.

REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008 207

calbucci.indd 207 30.09.08 18:08:54


necessidade de seguir os padrões impostos tral”, “do sublime artístico”, “do verso e
pela sintaxe3. Seguindo essa idéia, veja-se da estrofe”, “das casas”, “da crítica e da
o que o franco-italiano afirma a respeito da sátira”, “da intriga nas narrativas” e “do
“imaginação sem fios”: “Por imaginação tédio” (Teles, 1997, p. 118). Um pouco
sem fios, eu entendo a liberdade absoluta da mais tarde, em 1915, os ímpetos futuristas
imaginação ou da analogia, expressa com tomam Portugal: nos dois primeiros nú-
palavras desligadas e sem fios condutores meros da Orpheu e no periódico Portugal
sintáticos” (Marinetti, 1931, p. 105). Futurista. Na Orpheu, são publicados dois
Portanto Marinetti, além de defender a célebres poemas do heterônimo pessoano
abolição dos “fios” da sintaxe tradicional, Álvaro de Campos (“Ode Triunfal”4, no
crê que a arte deve ser “inebriante”. Com número 1, e “Ode Marítima”, no número
efeito, é essa a impressão que Giuseppe 2), enquanto
Ravegnani e Giovanni Titta Rosa têm da
obra de Filippo Tommaso: “O Portugal Futurista consagraria toda
esta campanha [de destruição da literatura
“[…] seu verdadeiro momento criativo, tradicional], episodicamente representando
mais que a descoberta das ‘palavras em também o elogio sistemático de seu im-
liberdade’, está, a nosso ver, em uma espécie pulsionador – Santa-Rita. A colaboração
de otimismo vital, com o qual os desejos é diversa e exibe, desde a capa, o que de
sensuais empossam os aspetos mais vistosos mais furiosamente modernista puderam
da vida moderna, originando imagens não reunir aqui em Portugal” (Orpheu I, 1984,
exatamente líricas, mas sim de uma grande pp. XXIX-XXX).
eloqüência verbal” (Ravegnani & Rosa,
1972, p. 239). No entanto, embora a Orpheu apresen-
tasse uma arte literária próxima de algumas
É indiscutível que toda a liberdade idéias futuristas, Fernando Pessoa, prova-
apregoada por Marinetti não passa de velmente em 1917, numa carta dirigida
um jogo retórico. Não há, na história da ao “caro Marinetti”, já discorda de certos
literatura do início do século XX, nenhum mandamentos do futurismo:
texto relevante que realmente siga as
recomendações do Manifesto Técnico: o “Eu já havia tomado conhecimento de al-
lema marinettiano parece ser uma espécie guns dos manifestos que você me enviara
de “faça o que eu digo, não faça o que eu e que lhe agradeço muito. […] Em conse-
3 Eis mais algumas observações faço”. Tanto em textos anteriores a 1912, qüência, não sou totalmente ignorante em
do próprio Marinetti (1931,
p. 103): “Ora, suponha que quanto em textos posteriores a essa data, assunto de futurismo; estou mesmo até certo
um amigo seu, dotado dessa Marinetti e seus seguidores nunca aban- ponto do lado de vocês. Penso, porém, que
faculdade lírica, encontre-se
num lugar de vida intensa, com donaram a sintaxe tradicional; em outras o futurismo deveria desenvolver-se bastante
revoluções, guerras, naufrágios,
terremotos, e venha, imedia- palavras, nunca atingiram verdadeiramente e abandonar seu extremo exclusivismo. Pa-
tamente depois, narrar essa le parole in libertà e l’immaginazione rece-me que a idéia que vocês formam da
impressionante aventura. Que
narrativa esse seu amigo lírico e senza fili. Mas, independentemente disso, história é bem pouco futurista e se afiguram
comovido faria instintivamente?
Ele começaria a destruir brutal-
o futurismo ecoou pela Europa. Em Paris, um desenvolvimento histórico por demais
mente a sintaxe ao falar. Não em 1913, Apollinaire publica o manifesto regular” (Pessoa, 1990, p. 302).
perderia tempo em construir os
períodos […]”. A Antitradição Futurista, que inaugura o
4 Os conhecidos versos da que se convencionou chamar de cubismo A essas críticas de Pessoa, podemos
abertura da “Ode Triunfal” literário. Dedicado a Marinetti, esse texto associar as observações de Giovanni Pa-
já atestam a influência que
Marinetti exerceu sobre Pessoa: prega a supressão “da dor poética”, “da pini, feitas um pouco antes, em 1914, em
“À dolorosa luz das grandes
lâmpadas elétricas da fábrica/
cópia em arte”, “das sintaxes já conde- L’Esperienza Futurista. Nessa obra, Papini
Tenho febre e escrevo./ Escrevo nadas pelo uso em todas as línguas”, “do propõe uma distinção entre futurismo e
rangendo os dentes, fera para
a beleza disto,/ Para a beleza adjetivo”, “da pontuação”, “da harmonia marinettismo, atestando que nem sempre
disto totalmente desconhecida tipográfica”, “dos tempos e pessoas dos as idéias de Marinetti correspondiam aos
dos antigos […]” (Orpheu I,
1984, p. 101). verbos”, “da orquestra”, “da forma tea- anseios do grupo futurista.

208 REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008

calbucci.indd 208 30.09.08 18:08:55


FUTURISMO MARINETTISMO
Supercultura Ignorância
Absorção e superação da cultura Culto da ignorância
Desprezo do culto do passado Desprezo do passado
Imaginação em liberdade Palavras em liberdade
Lirismo essencial Naturalismo descritivo
Sensibilidade nova Tecnicismo novo
Agudeza Simplismo
Originalidade Estranheza formal
Ironia Profetismo, seriedade
Clownismo, funambulismo Goliardismo propagandista
Alegria artificial Otimismo messiânico
Requinte, raridade Publicolatria, neofismo
Aristocracia Imperialismo humanitário
Paixão pela liberdade Solidariedade, disciplina
Combatividade Militarismo
Patriotismo Chauvinismo
Anti-religiosismo integral Religiosidade laica
Amoralismo Moralismo
Liberdade sexual Desprezo pela mulher
Latinidade Americanismo, germanismo
(Papini, 1927, pp. 156-7)

Se, em 1914, já havia participantes do visões da cidade tentacular, da cidade em


grupo futurista que tachavam Marinetti de crescimento, da cidade industrial, da cidade
chauvinista, simplista, messiânico e goliar- acampamento, da cidade, enfim, moderna,
do, isso significa que – embora o futurismo à qual não falta nenhum dos atributos ex-
marinettiano sempre tenha influenciado a teriores que definem o processo de moder-
arte vanguardista – nem sempre os princí- nização acelerada desde o início do século
pios técnicos e estéticos dos manifestos de XX” (Fabris, 1994, p. 3).
1909 e 1912 foram considerados absolutos
e indiscutíveis. Luís Aranha, Menoti Del Picchia,
No Brasil, no começo do século XX, Oswald de Andrade e Mário de Andrade fo-
a cidade de São Paulo – berço da maioria ram alguns dos modernistas brasileiros que
das idéias modernistas – tornou-se o centro sentiram influência da literatura futurista.
de divulgação das novas idéias artísticas, Mas nenhum deles pode ser considerado
muitas das quais nascidas das vanguardas realmente um seguidor de Marinetti. Ao que
européias, especialmente do futurismo. parece, o que mais interessava ao grupo da
Semana de Arte Moderna não eram exata-
“Imagens de cunho futurista alinham-se ao mente as idéias do Manifesto Futurista ou
longo de inúmeros textos de propaganda das do Manifesto Técnico, mas sim o espírito
novas idéias, propondo, o mais das vezes, contestador que o Futurismo representava e
a equação São Paulo = cidade moderna = que poderia servir aos anseios “libertários”
cultura nova. Numa sobreposição otimista do grupo de 22. Nessa linha de raciocínio,
e freqüentemente acrítica, destacam-se as Annateresa Fabris afirma:

REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008 209

calbucci.indd 209 30.09.08 18:08:55


“A escolha do futurismo como bandeira Mário procura estabelecer um contato mais
da nova geração reveste-se de vários sig- direto e amigável com o leitor, evitando
nificados: o tom imperativo-categórico que é uma
• dos movimentos de vanguarda então prerrogativa dos manifestos tradicionais6.
em voga, o italiano é o mais abrangente, Curiosamente, esse texto foi escrito depois
permitindo a união, num esforço conjunto, de os versos estarem prontos. No item 4 do
de artistas de diversas procedências; “Prefácio”, afirma-se:
5 Parece-nos um exagero de
Fabris afirmar que as idéias • é o mais conhecido do público brasileiro,
futuristas já eram discutidas
pois suas idéias são discutidas, não importa “Quando sinto a impulsão lírica escrevo
desde 1909. Segundo Gilberto
Mendonça Teles (2000, p. 85), se negativamente, desde 19095; sem pensar tudo o que meu inconsciente
o primeiro Manifesto Futurista
“foi publicado no Jornal da • tornara-se sinônimo de ‘bizarro’, de me grita. Penso depois: não só para corri-
Notícia, da Bahia, em 30 de de-
‘inusitado’, sendo aplicado não apenas gir, como para justificar o que escrevi. Daí
zembro de 1909, tendo no en-
tanto passado despercebido”. a toda produção diferente dos modelos a razão deste Prefácio Interessantíssimo”7
6 Há inúmeras passagens do convencionais, mas a padrões de comporta- (Andrade, 1987, p. 59).
“Prefácio” em que Mário se
dirige ao leitor, tratando-o por mento pessoal, social e político, que feriam
“você”, o que produz um clima as regras habituais” (Fabris, 1994, p. 74). Logo no início do “Prefácio”, quando
de cordialidade entre autor e lei-
tor, o que – convenhamos – não Mário diz que “Está fundado o Desvairis-
é comum nos manifestos.
Esse espírito futurista, lato sensu, foi mo” (item 1) e que o próprio “prefácio, ape-
7 Embora o surrealismo só apa- decisivo para a construção dos ideais mo- sar de interessante”, é “inútil” (item 2), já se
reça em 1924, com Breton,
podemos imaginar que Mário dernistas no Brasil. Porém não se pode dizer percebe que não se irá ler um texto como o
quer ser um surrealista na hora
de escrever e um positivista que os mandamentos marinettianos do Ma- Manifesto Técnico da Literatura Futurista.
(desconsiderando-se a conota- nifesto Técnico ou as implicações políticas Este, sim, é um manifesto – com todas as
ção negativa que geralmente se
atribui a esse termo) no momento do futurismo italiano, por exemplo, foram coerções do gênero –, recheado de ordens
de teorizar. Em outras palavras,
levados a sério pelos artistas da Semana. peremptórias e críticas contumazes.
o inconsciente seria o poeta e
o pensamento seria o teórico. Por aqui, houve outros manifestos, como Mário e Marinetti vivem sob os auspícios
8 A ortografia usada por Mário o Pau-Brasil (de 1924) ou o Antropofágico da modernidade: criticam o passado, visan-
– assim como a subversão de
certas regras de acentuação (de 1928), que foram mais importantes do do a criar uma nova ordem artística, mas
gráfica e de alguns preceitos que os manifestos italianos. Mas, de todos oscilam entre momentos de iconoclastia e de
da norma culta escrita – mostra
uma preocupação em valorizar os manifestos publicados nos anos herói- reconhecimento de valores consagrados. A
a pronúncia brasileira de certas
palavras. No entanto, se anali- cos do modernismo brasileiro, há um texto diferença é que Mário não pretende destruir
sarmos a ortografia dos poemas – que não chega a pertencer claramente ao as conquistas das tradições literárias; ao
de Mário, perceberemos que
essa “popularização” da escrita gênero “manifesto” – que merece atenção contrário, ele utiliza a linguagem telegráfica
é bastante pontual; não nos
especial: trata-se do “Prefácio Interessan- que caracterizou a geração de 22, na mesma
parece que ele pretendia criar
uma “língua literária” que nas- tíssimo”, de Mário de Andrade, publicado medida em que dá sinais de que possui am-
cesse realmente da estilização
da fala popular (como o fez em 22, junto com os poemas de Paulicéia plo conhecimento das normas gramaticais.
de maneira exaustiva, por Desvairada. É inegável que Mário faz de sua ortografia,
exemplo, Guimarães Rosa).
No item 51 do “Prefácio”, Mário de Andrade é a figura central do em alguns casos, uma imitação da fala
Mário fala sobre isso: “Prono-
mes? Escrevo brasileiro. Si uso modernismo no Brasil. Ele foi um intelectual popular (“si”, como conjunção; “milhor”;
ortografia portuguesa é porque, de primeira linha, que soube avaliar – com “impecilho”; ou o uso do pronome oblíquo
não alterando o resultado, dá-
me uma ortografia” (Andrade, precisão e antecedência – tanto as conquistas átono no início das orações8), mas as citações
1987, p. 74).
da Semana quanto os erros e os limites das que faz demonstram seu inexpugnável lado
9 Esses versos são uma fala de idéias difundidas na época. intelectual tradicional. A erudição de Mário
Caronte a Dante e Virgílio,
quando eles estão no átrio Como dissemos, o “Prefácio Inte- é evidente. No item 55, por exemplo, ele
do inferno. Eis a tradução de
Italo Eugenio Mauro: “E tu que ressantíssimo” foi publicado em 1922 diz: “O passado é lição para se meditar, não
estás aí, alma vivente,/ deles te – alguns meses depois da Semana de Arte para reproduzir. ‘E tu che sé costí, anima
afasta, que aqui só vem morto”
(Alighieri, 1999, p. 40). Vale Moderna. Trata-se de um dos primeiros viva,/ Partiti da cotesti che son morti’”9
lembrar que Dante também
textos que explicitaram tanto os motivos (Andrade, 1987, p. 75).
ecoa em outras passagens do
“Prefácio”. No item 59, Mário quanto as aspirações da Semana. Ao todo,
fala da “selva selvagem da
cidade”. Essa selva selvagem são 66 itens que misturam ironias, obser- Esses versos, retirados do canto III do
parece ser uma retomada da vações estéticas, tentativas de teorização Inferno d’A Divina Comédia, produzem um
“selva selvaggia” da segunda
estrofe do canto I do Inferno. e demonstrações de erudição. Além disso, efeito curioso: ao mesmo tempo em que a

210 REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008

calbucci.indd 210 30.09.08 18:08:56


citação de Dante parece ser um elogio à “Quem lê o Manifesto Técnico do Futu-
tradição passadista, a idéia de que “aqui rismo, escrito por Marinetti em 1912, topa
só vem morto” não deixa de ser uma brin- com verdadeiras ‘ordens de serviço’ […].
cadeira com a idéia de que o passado, por Trata-se de um caso extremo de entrega à
estar morto, não deve ser reproduzido. Em concepção tecnicista da linguagem poética
outras passagens do “Prefácio”, Mário faz que tem seduzido mais de um intelectual em
desafios intelectuais aos leitores. É o que nosso tempo. Querendo libertar o escritor,
acontece no item 9: “Você já leu São João o futurismo dava-lhe novas fórmulas que
Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? acabariam compondo a nova retórica do
Verhaeren?” (Andrade, 1987, p. 61). E, além texto” (Bosi, 1993, p. 148).
disso, ele reconhece que a modernidade não
prescinde dos valores do passado: Portanto o futurismo pregava simples-
mente a substituição de um modelo teórico
“Sei mais que pode ser moderno artista que por outro. Daí que Paolo Angeleri afirme:
se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia “Que o futurismo tivesse de acabar no ma-
de Nun’Alvares. Reconheço mais a existên- neirismo e no academismo era fato previsí-
cia de temas eternos, passíveis de afeiçoar vel, e que seus êxitos imediatos viessem a ser
pela modernidade: universo, pátria, amor e pouco relevantes e de certo modo desconta-
a presença-dos-ausentes, ex-gozo-amargo- dos, idem” (apud Bernardini, 1980, p. 16).
de-infelizes” (Andrade, 1987, p. 74). Mas não deixa de ser estranho que Marinetti
tenha se esforçado tanto para consolidar a
De fato, a despeito de modernos, Mário idéia das “palavras em liberdade” e que o
e Marinetti fazem propostas de uma nova movimento por ele criado tenha se tornado
linguagem, por meio da velha. Só que Mari- “acadêmico”10. Aliás, essas contradições e
netti parece não admitir isso. Ele salpica seu dualidades de Marinetti sempre estiveram
texto de adjetivos e prega sua abolição: presentes em sua vida. Tendo estudado num
10 Fernando Pessoa também tinha
colégio de jesuítas de Alexandria, ele teve percebido esse lado acadêmico
“Deve-se abolir o adjetivo, para que o subs- uma formação extremamente tradicional; do futurismo. Tanto é assim que
há, nas Poesias de Álvaro de
tantivo nu conserve sua cor essencial. O no entanto suas obras futuristas denunciam Campos, um poema – intitulado
“Marinetti, Acadêmico” – em
adjetivo, tendo em si um caráter de nuance, atitudes anticlericais e anticlássicas. Sobre que se lê: “Lá chegam todos,
é inconcebível para nossa visão dinâmica, isso, diz Aurora Bernardini: lá chegam todos.../ Qualquer
dia, salvo venda, chego eu
pois supõe uma pausa, uma meditação” também.../ Se nascem, afinal,
(apud Bernardini, 1980, p. 82). “Irônica e significativa, entretanto, a com- todos para isso...// Não tenho
remédio senão morrer antes,/
partimentação à qual sujeitará, em sua vida Não tenho remédio senão
escalar o Grande Muro.../
Os grifos nossos mostram que Marinetti futura, todas essas tendências: anticlerical, Se fico cá, prendem-me para
usa a lógica que despreza e compõe uma mas as filhas estudavam em colégios de ser social...// Lá chegam
todos, porque nasceram para
série de mandamentos que negam, do ponto freiras; anticlássico, mas vestindo a farda da Isso,/ E só se chega ao Isso
para que se nasceu...// Lá
de vista técnico, essa composição. Academia11; indisciplinado, mas cumprindo chegam todos.../ Marinetti,
Com efeito, a obra de Marinetti engloba rigorosamente o serviço militar; liberal, acadêmico...// As musas
vingaram-se com focos elétricos,
uma série de contradições. Ele defende mas aderindo ao fascismo. Como observa meu velho,/ Puseram-te por
certos procedimentos de composição com sagacidade Benjamin Gorièly: ‘Acon- fim na ribalta da cave velha,/
E a tua dinâmica, sempre um
literária, mas não os utiliza. Isso pode tecia-lhe ser indisciplinado no dormitório, bocado italiana, f-f-f-f-f-f-f-f...”
(Pessoa, 1994, p. 415).
significar duas coisas: ou ele era real- mas nunca em sala de aula’” (Bernardini,
11 Tanto a relação de Marinetti
mente um insensato ou os mandamentos 1980, pp. 9-10). com a Academia era estreita
futuristas não deveriam ser levados ao pé que, numa edição de Spagna
Veloce e Toro Futurista de 1931,
da letra. A segunda hipótese parece ser O Manifesto Técnico, portanto, deve ser encontramos – abaixo de seu
mais plausível. Na verdade, as “ordens de visto como um manifesto que não tinha a nome, na capa – a inscrição
“Dell’Accademia D’Italia”. Não
serviço” de Marinetti servem mais como intenção de ver suas “ordens de serviço” nos parece que essa inscrição
poderia ter sido colocada ali
um estímulo ao espírito vanguardista do realmente respeitadas. Até porque o tom à revelia do escritor; Marinetti
começo do século XX do que como um hiperbólico do texto nos parece mais uma pregava o ódio à inteligência,
mas não se furtava de anunciar
manual de composição. exigência do gênero ao qual pertence do que que era um acadêmico.

REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008 211

calbucci.indd 211 30.09.08 18:08:56


uma crença efetiva de quem o escreveu. Ve- “Minhas reivindicações? Liberdade. Uso
jamos, então, algumas dessas “ordens”: dela; não abuso. Sei embridá-la nas minhas
verdades filosóficas e religiosas; porque
• o uso de analogias (“Quanto mais as ima- verdades filosóficas, religiosas, não são con-
gens contiverem relações vastas, tanto mais vencionais como a Arte, são verdades. Tanto
elas conservam sua força de estupefação”); não abuso!” (Andrade, 1987, p. 67).
• o máximo de desordem (“Como toda es-
pécie de ordem é fatalmente um produto da Aliás, essa questão da liberdade é
inteligência cautelosa e prevenida é neces- bastante controvertida. O que é ser livre
sário orquestrar as imagens dispondo-as de em literatura? É desobedecer às normas
acordo com um maximum de desordem”); gramaticais e abolir os versos isométricos?
• a supressão do “eu” na literatura12 (“Des- É suprimir a pontuação convencional e
truir o ‘eu’ na literatura, ou seja, toda a inventar novas palavras? É inserir termos
psicologia”); chulos nos romances? Seguindo o racio-
• o ódio à inteligência (“Poetas futuristas! cínio de Mário, ser livre é optar, se calhar,
Eu ensinei vocês a odiar as bibliotecas e os por não ser livre. Nessa perspectiva, Ma-
museus, para prepará-los a odiar a inteligên- nuel Bandeira, por exemplo, é livre: “Os
cia, despertando em vocês a divina intuição, Sapos” possui quadras em redondilhas
dom característico das raças latinas”). menores com rimas cruzadas e muitas vezes
• emergência do feio (“Fazemos corajosa- ricas, enquanto “Evocação do Recife” tem
mente o ‘feio’ em literatura e matamos em versos brancos e de tamanhos variados e
todos os lugares a solenidade”). copia em muito o modo de falar popular
pernambucano.
Para Marinetti, esses são os meios para Além disso, podemos dizer que a siste-
atingir as “palavras em liberdade”, apanágio matização da liberdade implica sua destrui-
dos desejos futuristas. O literato italiano, ção, pois sistemas e liberdade não parece
nessas propostas, afasta-se muito de Mário serem estruturas compatíveis. Marinetti quis
de Andrade, já que o brasileiro aceita a idéia acabar com o patrulhamento da arte clássica
de Dermée, segundo quem Poesia = Arte + e propôs liberdade em forma de um novo
Lirismo (Andrade, 1987, p. 63), e admite patrulhamento, a arte futurista13. Mário não
a vaidade de quem escreve: “Todo escritor ocorreu nesse erro no “Prefácio” e escre-
acredita na valia do que escreve. Si mostra veu tanto por meio de citações, quanto de
12 Como já mostramos (ver nota
é por vaidade. Si não mostra é por vaidade engenhosidade da modernidade; ele nunca
3), Marinetti pretendia destruir
o eu romântico, isto é, o lirismo também” (Andrade, 1987, p. 62). defendeu patrulhamentos, pois a proposta
de inspiração burguesa, resga-
tando uma suposta “intuição” desvairista pelo aforismo modernista era:
natural do homem. Mário nega o futurismo de Marinetti “Não sabemos o que queremos; só sabemos
13 Podemos perceber esse pa- na alusão à feiúra, mostrando o caráter o que não queremos”.
trulhamento no Manifesto Téc-
nico quando, por exemplo, subjetivo que ela possui e abominando o Aliás, Mário inicia seu texto dizendo
Marinetti pergunta: “Nossos
velhos ouvidos, demasiado
que ele chama de “belo horrível”, numa que estava fundado o “Desvairismo”. Nos
número de vezes entusiastas, possível referência às idéias de “emergência itens 63, 64 e 65, ele diz: “E está acabada a
já não destruíram Beethoven
e Wagner?” (apud Bernardini, do feio” expressas no Manifesto Técnico: escola poética. ‘Desvairismo’”; “Próximo
1980, p. 83). Para Marinetti, “O belo horrível é uma escapatória criada livro fundarei outra”; “E não quero discí-
a arte futurista depende da
destruição desses grandes pela dimensão da orelha de certos filósofos pulos. Em arte: escola = imbecilidade de
modelos artísticos. Mário, no
“Prefácio”, não concorda com para justificar a atração exercida, em todos muitos para a vaidade de um só” (Andrade,
isso. Tanto Beethoven (no item os tempos, pelo feio sobre os artistas” (An- 1987, p. 77).
24) quanto Wagner (no item
45) são citados sem nenhuma drade, 1987, p. 64). Leitor crítico, Mário de Andrade identi-
intenção dessacralizadora.
Aliás, se lembrarmos o uso
Outra discordância entre os dois reside ficou um grande erro de Marinetti:
político que o fascismo fez no fato de o autor de Macunaíma dizer que
das idéias futuristas, teremos
a certeza de que Marinetti a liberdade não advém de quaisquer tipos “Marinetti foi grande quando redescobriu
tinha uma predileção pelo de desordem. Por isso, Mário afirma que o poder sugestivo, associativo, simbólico,
patrulhamento tanto estético
quanto ideológico. não abusa do fato de ser livre: universal, musical da palavra em liberdade.

212 REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008

calbucci.indd 212 30.09.08 18:08:57


Aliás: velha como Adão. Marinetti errou: mentos musicais para sistematizar certas
fez dela sistema. É apenas auxiliar podero- técnicas de composição modernistas.
síssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto
que meu copo é grande demais para mim, “Temos aí, transpostos em termos de teo-
e inda bebo no copo dos outros” (Andrade, ria musical, os princípios de colagem (ou
1987, pp. 67-68). montagem) que caracterizavam a pintura de
vanguarda da época. E, de fato, a elisão, a
Esse “poder sugestivo, associativo, parataxe e as rupturas sintáticas passariam
simbólico, universal, musical da palavra a ser os meios correntes na poesia moderna
em liberdade” pode ter servido de ponto para exprimir o novo ambiente, objetivo e
de partida para a sistematização de duas subjetivo, em que vive o homem da grande
das criações de Mário de Andrade: o ver- cidade […]” (Bosi, 1994, p. 395).
so harmônico e a polifonia poética. Com
isso, Mário se afasta das generalidades que Como notou Alfredo Bosi, um ponto
tomavam os principais textos teóricos do interessante de confluência entre o “Pre-
início do nosso modernismo. fácio” e o Manifesto Técnico, aliás, incide
sobre a possível ralação entre a analogia
“O Prefácio não fica nessas generalidades. de Marinetti e o verso harmônico de Má-
A certa altura, desce à descrição dos proces- rio. O italiano fala da ligação das coisas
sos de estilo que conferem à obra a medida distantes para consubstanciar o imperativo
de sua modernidade. A teoria das parole das analogias:
in libertà, herança do futurismo italiano,
é aqui a influência mais próxima” (Bosi, “A analogia nada mais é do que o amor
1994, p. 394). profundo que liga as coisas distantes, apa-
rentemente diferentes e hostis. Somente por
Por verso harmônico, Mário entendia meio de analogias vastíssimas, pode um estilo
a “combinação de sons simultâneos”; por orquestral, a um mesmo tempo policromo,
polifonia poética, o “uso de frases soltas”. polifônico e polimorfo, abraçar a vida da
A importância dessas criações é inegável, matéria” (apud Bernardini, 1980, p. 82).
principalmente da polifonia poética – a
mistura dos versos harmônico e melódico14. Isso parece ter influenciado o brasileiro,
Mário afirma que Olavo Bilac, em “Tarde”, que define a harmonia poética como o uso
e Gonçalves Dias, no canto IX de “I-Juca- de “palavras sem ligação imediata entre si:
Pirama”, usaram algumas vezes a harmonia estas palavras, pelo fato mesmo de se não
poética, sem contudo metodizar o “inven- seguirem intelectual, gramaticalmente, se
to”. O que nos parece muito estranho é ele sobrepõem umas às outras, para a nossa
não ter citado o simbolista João da Cruz e sensação, formando, não mais melodias,
Sousa, que se valeu tanto dessa harmonia mas harmonias” (Andrade, 1987, p. 68).
para criar seus ritmos, como nessa passagem Mas essa ligação entre os dois parece
de Antífona: ser uma exceção. Embora Mário tenha
sido influenciado pelo espírito futurista,
“Visões, salmos e cânticos serenos, ele sempre manteve um distanciamento
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... crítico dos ensinamentos marinettianos. E
Dormências de volúpicos venenos isso numa época, como nota Costa Brito
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...” (1971, pp. 162-3), em que todos os mo-
(Sousa, 1993, p. 137). dernistas brasileiros eram apelidados de
“futuristas”. Mário chega mesmo a dizer 14 O verso melódico, segundo
Note-se que esse recurso não foi usa- no “Prefácio”: Mário, sempre foi usado na
poesia e consiste num “ara-
do apenas esporadicamente pelo autor de besco horizontal de vozes
Broquéis. Independentemente desse esque- “Não sou futurista (de Marinetti). Disse e (sons) consecutivas, contendo
pensamento inteligível” (Andra-
cimento, Mário soube usar seus conheci- repito-o. Tenho pontos de contacto com o de, 1987, p. 68).

REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008 213

calbucci.indd 213 30.09.08 18:08:57


futurismo. Oswald de Andrade, chamando- da Itália, pois que o Viggiani [empresário
me futurista, errou. A culpa é minha. Sabia de Marinetti] estava sem teatro na mão
da existência do artigo e deixei que saísse e o Cassino em que o Marinetti falou,
(Andrade, 1987, p. 61). ontem, é da empresa Bonnachi, inimigo
mortal do Viggiani. É preferível pois
Ao dizer que não segue o futurismo de ficar de sobreaviso. Viggiani veio me
Marinetti, Mário mostra duas coisas: em convidar pra apresentar o Marinetti no
primeiro lugar, que não pretende vincular- teatro. Me recusei e parece que todos se
se especificamente a nenhuma vanguarda recusaram como eu. Não fui à pachoucha-
européia; em segundo, que – como já tinha da [uma das conferências de Marinetti]
notado Giovanni Papini em 1914 – futuris- de ontem e fiz bem em não ir” (Moraes,
mo e marinettismo não eram a mesma coisa. 2000, p. 296).
Indiscutivelmente, Mário tinha uma relação
apenas “respeitosa” com Marinetti. Pesso- É perfeitamente explicável que Mário
almente, era menos do que isso. Quando tivesse objeções ao futurismo e especial-
Marinetti esteve no Brasil, em 1926, Mário mente à conduta de Marinetti. Mas é inegá-
não foi recebê-lo no Rio de Janeiro, não vel que o tom de contestação desencadeado
assistiu a suas conferências e ainda acusou pelos futuristas italianos foi responsável
o italiano de ser “um delegado do fascismo” pela solidificação dos ideais modernistas
(Fabris, 1994, p. 219). Em carta datada de no Brasil. Se não foram seguidos os man-
maio de 1926, Mário de Andrade escreve damentos marinettianos, ninguém há de
a Manuel Bandeira: negar a influência que as parole in libertà
exerceram sobre toda uma geração de es-
“Aqui em São Paulo, conferência dele critores brasileiros.
[Marinetti] foi imposta pelo embaixador “Tem mais não.”

BIBLIOGRAFIA

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. São Paulo, Editora 34, 1999.
ANDRADE, Mário de. Poesias Completas – Edição Crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/
Edusp, 1987.
BERNARDINI, Aurora Fornoni (org.). O Futurismo Italiano. São Paulo, Perspectiva, 1980.
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo, Cultrix, 1993.
________. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1994.
BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1971.
FABRIS, Annateresa. O Futurismo Paulista – Hipóteses para o Estudo da Chegada da Vanguarda ao Brasil. São Paulo,
Perspectiva/Edusp, 1994.
GALLETTI, Alfredo. Storia Letteraria d’Italia – Il Novecento. Milão, Dottor Francesco Vallardi, 1935.
MARINETTI, Filippo Tommaso. Spagna Veloce e Toro Futurista. Milão, Giuseppe Morreale, 1931.
MORAES, Marcos Antonio de (org.). Correspondência: Mario de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo, Edusp, 2000.
ORPHEU I. Lisboa, Ática, 1984.
PAPINI, Giovanni. L’Esperienza Futurista. Florença, Vallecchi, 1927.
PESSOA, Fernando. Obras em Prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1990.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994.
RAVEGNANI, Giuseppe & ROSA, Giovanni Titta. L’Antologia dei Poeti Italiani dell’ULTIMO Secolo. Milão, Aldo Martello, 1972.
SOUSA, Cruz e. Missal & Broquéis. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. Petrópolis, Vozes, 1997.

214 REVISTA USP, São Paulo, n.79, p. 205-214, setembro/novembro 2008

calbucci.indd 214 30.09.08 18:08:57

Você também pode gostar