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Contextualização histórica
Um dos primeiros livros de viagens conhecido em Portugal foi o Livro de Marco Polo, traduzido em
1502 por Valentim Fernandes. Não tardou muito que, no século XVI, começassem a aparecer obras
originais portuguesas, descrevendo os novos mundos que então demos ao Mundo. Embora os autores
escrevessem despreocupados com louçanias de estilo, os livros ganhavam relativo interesse por
saírem autenticados com o cunho da veracidade e da novidade. A geografia, os costumes de raças
humanas ignoradas, mil peripécias acontecidas em climas tão diferentes do europeu, tudo isto era um
conteúdo novo a atrair a atenção da curiosíssima gente desta culta e velha Europa.
Na sequência destas obras, aparecem autênticas relações de itinerários e percursos, por mar ou por
terra, mas matricialmente desencadeados pelas viagens ultramarinas, que aliam por vezes o interesse
documental a procedimentos narrativos que adquirem, sobretudo para o leitor de hoje, efeitos de
ordem literária. Por outro lado, os escritores «canónicos» (escrevendo com uma intenção
determinadamente literária) centraram muitas das suas obras na problemática da viagem dos
descobrimentos, como é o caso de Gil Vicente nomeadamente no Auto da Índia e, sobretudo, de Luís
de Camões que dela faz a trama fundamental em Os Lusíadas . Também os cronistas não podem
deixar de reelaborar essa matéria, por vezes em páginas que são das mais importantes, mesmo sob o
ponto de vista estético, deste capítulo: Gomes Eanes de Zurara na Crónica da Guiné , João de Barros
na Ásia .
Caso particular desta literatura é a proliferação que, durante a segunda metade do séc. XVI, e até
mais tarde, conhece um género específico das nossas letras, o do relato de naufrágios (constituído
por uma narrativa específica e exclusiva de naus que naufragam, com descrição pormenorizada das
reacções humanas a que o naufrágio dá lugar, e do esforço trágico, por vezes baldado, pela
sobrevivência). O mais antigo que se conhece, de 1554, é o do Galeão Grande São João, conhecido por
Naufrágio de Sepúlveda, de autor anónimo; outros, porém, merecem beneficiar igualmente da
atenção da análise literária, pela raríssima capacidade de escrita do patético, pela descrição paralela
do movimento físico e psicológico, pela aliança de uma crença inabalável na missão militar e religiosa
do espírito de conquista com um pendor pessimista e desenganado que neles figuram a contra-
epopeia lusíada. Em toda esta literatura, porém, avulta uma obra excepcional, a Peregrinação de
Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614, mas escrita antes de 1580.
DADOS BIOGRÁFICOS
Doze anos depois do regresso ao Reino (em 1569), no seu retiro do Pragal, começou
Fernão Mendes Pinto a redigir uma obra, onde se misturam elementos de
autobiografia, de memórias e de ficção. Deu-lhe o sugestivo título de Peregrinação. Só
foi publicada em 1614, trinta anos após a morte do autor. Quando foi publicada a obra
torna-se um sucesso em toda a Europa, pelos conhecimentos amplos sobre o Oriente,
tendo dezanove edições em seis línguas nos anos seguintes.
Classificação
Mensagem da obra
Mas, por detrás destes fins explícitos, não podemos deixar de perceber um
contínuo e nem sempre dissimulado tom de sátira às andanças de muitos
Portugueses por terras e mares do Oriente.
Temos de concordar que os indivíduos com quem andou Fernão Mendes Pinto lá no
Oriente não eram do que melhor se criava em Portugal. Geralmente, passou os dias ao
lado de mercadores que pouca diferença faziam dos piratas profissionais, homens sem
escrúpulos a quem só interessava ganhar dinheiro. Ora o que esses praticavam está
um pouco longe de ser um reflexo perfeito da acção de todos os Portugueses. Daí o
não devermos cair no exagero de generalizar o que diz Mendes Pinto acerca de si e de
seus companheiros, julgando por eles os restantes civilizadores do Sol Nascente.
Mesmo assim, Mendes Pinto ficava radiante, se, no meio das torturas a que os
Orientais o submetiam com frequência, deparava com meia dúzia de compatriotas.
Veja-se, por exemplo, o que lhe sucedeu entre os indígenas de Samatra e como o
trataram depois os nossos em Malaca (Peregrinação, Caps. 23, 24 e 25). Foi como se
saísse dum inferno e entrasse num céu. Isto quer dizer que, em Mendes Pinto, nem
todos os Orientais são anjos nem todos os Portugueses procedem como selvagens.
Mas o que não podemos negar é a realidade feia e vergonhosa desses portugueses que
ele nos mostra afundando barcos indefesos para os roubar, raptando noivas e violando
mulheres, chacinando e queimando povoações inteiras, saqueando sarcófagos e
templos, servindo com despudor corsários muçulmanos, se calhava. O processo de que
Mendes Pinto se serve para verberar os abusos cometidos pela nossa gente é
engenhoso. Não faz ele as críticas em nome próprio: geralmente coloca-as, por artifício
literário, na boca de nativos.
Uma destas figuras típicas é o menino-prodígio, a cujo pai António de Faria roubou, na
ilha dos Ladrões, tudo quanto tinha. Feito prisioneiro, o menino viu-se amimado pelo
pirata português, que prometeu criá-lo como filho. Perante esta atitude incoerente,
disse-lhe a criança: «Não cuides de mim, inda que me vejas menino, que sou tão parvo
que possa cuidar de ti que, roubando-me meu pai, me hajas a mim de tratar como filho.
E, se és esse que dizes, eu te peço muito, muito, muito que me deixes botar a nado a
essa triste terra onde fica quem me gerou, porque esse é o meu verdadeiro pai, com o
qual quero antes morrer ali naquele mato, onde o vejo estar-me chorando, como viver
entre gente má como vós outros sois.» Como alguém o repreendesse pelo que dizia,
continuou: «Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi a louvar a Deus, depois de fartos,
com as mãos levantadas e com os beiços untados, como homens que lhes parece que
basta arreganhar os dentes ao céu, sem satisfazer o que têm roubado. Pois entendei
que o Senhor da Mão Poderosa não nos obriga tanto a bulir com os beiços, quanto nos
defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dois pecados tão graves,
quanto depois de mortos conhecereis, no rigoroso castigo da sua divina justiça.» Este
menino não pode deixar de ser uma criação literária, até porque, nas expressões que
usa, se assemelha a um profeta bíblico.
O século XVI caracteriza-se pela exaltação do homem. Se não fica mal o emprego de
uma locução pleonástica e o de um paradoxo, digamos até que o século XVI começou
por humanizar o homem e depois divinizou-o. Valorizadas então as faculdades
humanas, o Rei da Criação erguia-se e dominava a Natureza; desafiava os próprios
deuses; de nada tinha medo; transformava-se automaticamente em herói. O
Classicismo só conheceu este homem. O aleijado, o medroso, o fora da lei, estes
ignorou-os. Pois o homem da Peregrinação em nada se parece com o homem clássico:
nem em virtudes morais nem em força física. Algumas dessas personagens nativas são
mero produto de ficção. Quem sabe até se as criou para não arranjar problemas com
quaisquer pessoas? As palavras ásperas que por intermédio delas profere, como suas,
dificilmente passariam impunes; mas, como dos aborígenes, ficavam sob a
responsabilidade dos mesmos.
As traições e os crimes de toda a espécie sucedem-se e são narrados com um cinismo
de espantar. Por outro lado, de heroicidades, muito pouco ou nada. Que longe estão
dos homens de Barros e de Camões, por exemplo, os dois náufragos portugueses que,
em Lugor, no Sião, «em joelhos e com as mãos levantadas», pediram «com muitas
lágrimas» a uns barqueiros que os «não deixassem morrer ali!» (Peregrinação, Cap.
37). O próprio autor, longe de bazofiar, arrasta-se pela obra adiante como um «pobre
de mim» e considera-se quase sempre um desses «pobres estrangeiros», designação
compassiva com que os naturais de coração bondoso tantas vezes se referiram aos
portugueses da Peregrinação, vergastados pela má sorte. Cheia de humanismo pela
simpatia com que olha todas as raças, a Peregrinação põe-nos diante dos olhos o anti-
herói, o homem que tem mais medo do que coragem, o homem que, em vez de
dominar a Natureza, é por ela desfeiteado a cada passo, o homem que, vencidos, sem
saber como, milhentos perigos, pouco mais tem a fazer do que dar graças ao Deus que
o salvou.
Exotismo da obra
Linguagem e estilo
Fernão Mendes Pinto não é o que positivamente se pode chamar um homem culto.
Curioso, isso sim. Ouviu ler histórias chinesas, viu com olhos de lince, reteve bem na
memória e lançou-se à escrita com a única preocupação de comunicar o seu
pensamento. A sua linguagem, por isso, é despreocupada como a de quem fala, de
cunho oral. O estilo afasta-se dos moldes clássicos na arquitectura da narração, que é
desproporcionada nos quadros e deixa algumas histórias sem remate. Fere-nos os
olhos da imaginação com berrante cor local, graças à acumulação de pormenores
realistas, às vezes até fastidiosos. Uma vez por outra, vemo-lo usar singela linguagem
figurada.
Problema da veracidade: durante muito tempo considerou-se que o que Mendes Pinto
contava não era real. Porém, na actualidade sabemos que muitas das coisas que conta
sobre as suas viagens são certas, embora estejam adornadas com motivos literários.
Sátira contra os ocidentais, desenvolvendo o mito do bom sauvage , já que apresenta
os povos orientais como sábios e bons (algo muito pouco frequente no século XVI).
Esta crítica da sociedade ocidental faz-se de duas maneiras:
1. Põe-se a crítica na voz do selvagem, pelo que o autor não se implica.
2. Expõem-se as barbaridades que fazem os portugueses e os cristãos em geral de
forma subtil, já não devemos esquecer que a obra tinha de passar a censura da
Inquisição.
O autor é uma paródia do homem patriota, já que se apresenta como bobo, ingénuo e
aproveitado. Deste modo, fala de Portugal para elogiá-lo, mas outras vezes prefere
calar para não ter de falar mal da sua pátria.
Exotismo oriental, do que Mendes Pinto se considera o introdutor em Portugal.
Ademais, como já vimos, não trata os orientais como seres inferiores (como era
frequente naquela altura).
Em síntese
Fernão Mendes Pinto qualifica a sua obra como autobiográfica, mas os seus contemporâneos não
acreditaram nisso. Escreve-a em 1558, quando está de volta para Lisboa, mas é publicada após a sua
morte por petição dele, que lhe diz aos filhos que a entreguem aos religiosos e são os Jesuítas quem
permitem a sua publicação. Ademais, seria traduzida para o castelhano.
Blocos :
Feitos vividos pelo autor.
Feitos testemunhados.
Feitos sabidos, que alguém lhe contou.
Funções :
Autobiográfica: dar a conhecer os seus trabalhos aos seus filhos (no primeiro capítulo
confunde-se o narrador com o autor da obra).
Moral: encorajar os desesperados.
Religiosa: ter quem dar graças a Deus.
Outros aspectos :
Verosimilhança: conseguida com o uso e abuso do realismo.
Exotismo, precursor do género exótico do século XVIII.
Apresenta-se Oriente como algo misterioso, mitificado, utópico, mas não afastado.
Há acordo em que pertence ao género da literatura de viagens.