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Abdias Do Nascimento - Thoth 1 PDF
Abdias Do Nascimento - Thoth 1 PDF
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1997 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
Gabinete do Senador Abdias Nascimento
Thoth
n. 1 janeiro/abril 1997
Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nasci-
mento. Coerente com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações
e debates sobre temas de interesse à população afro-descendente, ressaltando-se que os temas emergentes
dessa população interessam ao país como um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância.
Thoth quer o debate, a convergência e a divergência de idéias, permitindo a expressão das diversas correntes
de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial da revista.
CDD 301.45196081
Sumário Pág.
Apresentação 9
Thoth 11
DEBATES
Exu da Libertação 21
ATUAÇÃO PARLAMENTAR
Sessão Especial do Senado:
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial 35
Projetos de Lei
Crime do racismo 63
Sanções contra o racismo 67
Ação compensatória 73
Pronunciamentos
Dia Internacional da Mulher 85
Democracia racial 91
Homenagem a Castro Alves 97
Discriminação: casos recentes 103
Multiculturalismo no Brasil 109
Crianças e adolescentes 115
Governo de Reconciliação Nacional de Angola 119
Homenagem a Evaristo de Moraes Filho 123
Polícia e direitos humanos 127
Homenagem a Pixinguinha 133
Qualificação de empresas para a compra de estatais 139
Homenagem a Nelson Rodrigues 145
Pág.
DEPOIMENTOS
Somos Todos Iguais Perante a Lei 155
Violações dos Direitos Humanos no Mundo Africano 167
Iniciativas antidiscriminatórias 183
Capítulo Constitucional: Dos Negros 191
MUNDO AFRICANO
Reconciliação Nacional em Angola. 271
Abdias Nascimento em Otelo, de Shakespeare, Festival Shakespeare, Teatro Fênix, Rio de Janeiro, 1949.
APRESENTAÇÃO:
A HISTÓRIA CONTINUA
ABDIAS NASCIMENTO
Após o tricentenário de Zumbi dos Palmares, em
1995, marcado pela Marcha contra o Racismo, pela Cida-
dania e a Vida e por inúmeros acontecimentos de âmbito
nacional e internacional em todo o País, verificamos que a
questão racial no Brasil atinge um novo estágio. Setores da
Thoth sociedade convencional reconhecem o caráter discriminató-
rio desta sociedade, e o debate passa a focalizar as formas de
ação para combater o racismo, ultrapassando o patamar que
marcou a elaboração da Constituição de 1988: a declaração
de intenção do legislador dá lugar à discussão de medidas
concretas no sentido de fazer valer tal intenção.
Nesse contexto é que o senador Abdias Nasci-
mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Senado
Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy
Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve
solidário com a luta anti-racista. O mandato do senador
Abdias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla
de luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à
questão racial, com base numa verdade que o movimento
negro vem afirmando há anos: a questão racial constitui-
-se numa questão nacional de urgente prioridade para a
construção da justiça social no Brasil, portanto merece-
dora da atenção redobrada do Congresso Nacional.
12 THOTH 1/ abril de 1997
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Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme influência
sobre os neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII.
T hoth
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Cena das “Filhas de Yemanjá” na peça Sortilégio (Mistério negro), de Abdias Nascimento. Teatro Municipal. Rio de Janeiro. 1957.
Conferência realizada em 5 de abril
de 1997, no Conselho de Participação
e Desenvolvimento da Comunidade
Negra do Estado de São Paulo.
Não acredito que seja possível falar citado por Bastide, pode ser dividido em
de Exu, seja na sua forma arquetípica quatro grupos:
popularmente conhecida, seja nos seus
fundamentos e desenho originais, sem que • Sudaneses – correspondem aos negros
se faça, pelo menos, uma rápida incursão trazidos da Nigéria, do Daomé e da Costa
por dois temas: o primeiro diz respeito à do Ouro. São os iorubás, os ewe, os fon
vinda dos africanos e das religiões afri- e os fanti-ashantis (chamados minas),
canas que deram origem ao candomblé krumanos, agni, zema e timini.
atual para o Brasil, por meio da diáspora
forçada que o processo de escravização • Civilizações islamizadas – especial-
negra representou, e diz respeito tam- mente representadas pelos peuls, man-
bém ao que ocorre durante a história da dingas, haussá, tapa, bornu e gurunsi.
colonização européia sobre a África e a
• Civilizações bantas do grupo angola-
correspondente cristianização da cultura
-congolês – representadas pelos ambun-
africana. O segundo, e é natural que de
das (cassangues, bangalas, dembos) de
tudo isso ele decorra, refere-se à questão
do sincretismo e suas conseqüências. Angola, congos ou cambindas do Zaire
e os benguela.
Nos fins do século XV inicia-se o que
pode ser considerado como tráfico negrei- • Civilizações bantas da Contra-Costa
ro. As primeiras experiências se fazem na – representadas pelos moçambiques
Ilha da Madeira e Porto Santo. Posterior- (macuas e angicos).
mente os africanos são levados também Pelo tráfico negreiro chegaram ao
para Açores e Cabo Verde. Por meados do
Brasil milhares de africanos na condição
século XVI, são trazidos para o Brasil.
de escravos que se espalharam de norte
Com o apoio de quase todos os a sul da colônia. Provenientes de vários
governos da Europa, dá-se início a uma pontos da África, muitas vezes não fala-
forma de mercado que faculta grande vam a mesma língua. Haviam guerreado
margem de lucro – a compra de escravos entre si, pertencendo a diferentes nações,
nas costas da África, o seu transporte e
e cultuavam as divindades de suas tra-
a sua venda como mercadoria. Vários
dições, diferentes, também, umas das
países se empenham, então, nessa ati-
outras. Em comum, tinham apenas a con-
vidade e muitas rivalidades surgem da
dição social de escravos, o aviltamento
competição entre a França, a Inglaterra,
a Holanda e Portugal. Na América, decorrente dessa situação e cosmovisões
recentemente descoberta, os grandes la- de matriz comum que definiam suas
tifúndios exigem a cada dia mais braços relações sociais e os contextualizavam
vigorosos para o trabalho na lavoura. dentro da Criação. Assim, os africanos
trouxeram consigo sua religiosidade.
Os negros trazidos da África para
o Brasil pertenciam a diversas culturas. Quando os primeiros africanos chega-
Esse contingente, segundo Artur Ramos, ram ao Brasil, a Coroa de Portugal criou
Exu da Libertação
Falagbe Esutunmibi
(José Tadeu de Paula Ribas)
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uma lei que determinava, no seu primeiro Antônio, 1981). Em outro sermão ainda,
artigo, que todos deveriam ser batizados Vieira diz que, para ele, o cativeiro do
na religião católica. Caso o batismo não africano na América não é senão um meio
fosse realizado em um prazo de pelo cativeiro, pois atinge só o corpo. “A alma
menos cinco anos, as peças deveriam não está mais cativa, ela se libertou do
ser vendidas e a importância relativa a poder do diabo que governa a África e o
essa transação comercial reverteria para escravo no Brasil deve tentar preservar
a Coroa. Outros artigos importantes des- essa liberdade da alma, para não cair de
sa lei, tais como o prazo de escravidão novo sob o domínio dos poderes que
por um período não superior a 10 anos, reinam na África” (idem).
foram sendo, pouco a pouco, alterados, Em 1873, uma oração pela conversão
de modo que, na verdade, a lei jamais foi dos povos da África Central para a Igreja
cumprida, salvo no que diz respeito ao Católica, escrita pela Secretaria da Sagra-
batismo cristão. Essa legislação atendia, da Congregação das Indulgências, dizia
mais do que nada, às relações entre o assim: “Rezemos pelos povos muito
governo português e a Igreja Católica, e à miseráveis da África Central que consti-
teologização da Igreja Católica a respeito tuem a décima parte do gênero humano,
da África, dos africanos e da escravidão. para que Deus onipotente finalmente tire
A tese de que a África era a terra da de seus corações a maldição de Cam e
maldição é defendida, então, por vários lhes dê a bênção que só podem conseguir
teólogos cristãos. O padre Antônio em Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor:
Vieira, em seus Sermões (XI e XXVII), Senhor Jesus Cristo, único Salvador de
afirma que “a África é o inferno donde todo o gênero humano, que já reinas de
Deus se digna retirar os condenados mar a mar e do rio até os confins da Terra,
para, pelo purgatório da escravidão nas abre com benevolência o teu sacratíssimo
Américas, finalmente alcançarem o pa- coração mesmo às almas mui miseráveis
raíso”. O mesmo padre Antônio Vieira, da África que até agora encontram-se nas
no Sermão XIV do Rosário à irmandade trevas e nas sombras da morte, para que
dos pretos de um engenho, elaborado em pela intercessão da puríssima Virgem
1633, ao comentar o texto de São Paulo Maria, tua Mãe imaculada, e de São José,
I Cor 12,13, o entende no sentido de que tendo abandonado os ídolos, se prostrem
os africanos, sendo batizados antes do diante de Ti e sejam agregados à tua
embarque da África à América, deviam Santa Igreja”.
agradecer a Deus por terem escapado da Todas essas questões de teologização
terra natal, onde viviam como pagãos en- católica se encontram muito bem levan-
tregues ao poder do diabo. E diz: “Todos tadas por Julvan Moreira de Oliveira
os de lá, como vós credes e confessais, em seu projeto de pesquisa apresentado
vão para o inferno onde queimam e quei- como parte dos exames de seleção ao
marão durante toda a eternidade” (Vieira, Programa de Mestrado em Educação na
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Debates
profunda do orixá Exu do que aquela que se passando na terra, lá encontrou Exu
costumamos encontrar nas oportunidades Odara que, aos pés de Olodumaré, fazia
em que assistimos a pessoas falando seu relatório. Dessa forma, quando Olo-
sobre ele. Somos remetidos a uma visão dumaré recebeu Orumilá, Ele já conhecia
de Exu enquanto guardião e fiscalizador os problemas que se passavam na terra
de tudo e de todas as coisas dentro da com os orixás. Para cumprir efetivamente
Criação. Sua íntima associação com o seu papel, Exu está presente em todos
Criador, como aquele que trabalha ao Seu os espaços, está junto a cada ser vivo,
lado, é transparente nos títulos com que é em forma “um” com cada divindade ou
nomeado. Podemos inferir, por eles, que orixá. Assim também está presente nas
Exu garante o andamento ou o desenvol- cidades, nas vilas, em cada rua e em cada
vimento do projeto de Olodumaré para casa, exercendo seu papel como princípio
a Criação, assegurando a continuidade dinâmico, de comunicação e individuali-
e a dinâmica de todos os processos com zação de todo o sistema. Mais que isso,
vistas à primazia da ordem em todas as Exu são os olhos, os ouvidos e a presença
realidades. de Olodumaré em todo o Universo.
Confirmando esse enfoque, podemos Dois Itan, em especial, nos contam
nos remeter a que: a caminhada de cada sobre Exu. O primeiro narra que, no
homem, o trabalho e os deveres de cada princípio dos tempos, nada existia além
divindade estão sob regular controle de do ar. Olorum era uma massa infinita de
Oludumaré e “relatórios” lhe são feitos ar que, quando começou a se movimen-
periodicamente. Nessa função aparece tar, lentamente, a respirar, levou uma
Exu, Seu Inspetor Geral... Olodumaré parte do ar a se transformar em massa de
executa Seu projeto por meio de Seus água, originando Orisanla, o grande orixá
Ministros, assiste e acompanha Sua obra, funfun. O ar e a água moveram-se conjun-
objetivamente define seus princípios e tamente e uma parte transformou-se em
seu movimento. E mais: por intermédio lama. Dessa lama originou-se uma bolha,
de Seus Ministros, faz acontecer, regula, a primeira matéria dotada de forma, um
acompanha, corrige e mantém Seu pro- rochedo avermelhado e lamacento. Olo-
jeto. Seus Ministros, especialmente Ela rum admirou essa forma e soprou sobre
Omo Osin, Orumilá e Exu, os demais ori- ela, insuflando-lhe Seu hálito e dando-
xás, são Sua extensão e a maneira como -lhe vida. Essa forma, a primeira dotada
exerce Sua Onisciência, Sua Onipresença
de existência individual, um rochedo de
e Sua Onividência na Sua Obra.
lacterita, era Exu – Exu Yangi. Por esse
Em um Itan do Odu Ose-Otura encon- Itan depreende-se que Exu é o primeiro
tramos essa questão claramente colocada nascido, o primogênito do Universo. É
quando vemos que Orumilá, quando também assim o terceiro elemento, aquele
chegou ao orun (mundo invisível) para nascido da interação entre ar e água e, assim,
descrever a Olodumaré o que estava Orumilá, em um Itan do Odu Otura Meji
28 THOTH 1/ abril de 1997
Debates
que fala da vinda de Ori para a terra, Odu Otura Meji que diz: “Exu disse que
chama Exu de a terceira pessoa. quem tiver prosperidade na terra tem que
separar a parte de Exu; que quem quiser
O segundo Itan, este do Odu Ogbe
procriar na terra não pode deixar Exu
Owonrin, relata a multiplicação do infinito
para trás; que quem quiser prosperidade
de Exu Yangi por ação de Orumilá, em um
na terra não pode deixar Exu para trás.
processo que permitiu que Exu povoasse
Exu pergunta a Ori se ele não sabe que
todo o Universo e definiu-lhe condições
Exu é o mensageiro de Deus”.
para exercer o papel de Inspetor-Geral. Ao
mesmo tempo, conforme o Itan também Se falamos que Exu é o “controlador
relata, esse processo gerou o contrato dos destinos”, imediatamente somos
entre Orumilá e Exu que define para este remetidos ao fato de que Exu é, assim, o
o papel de “executor” dos projetos e “con- “controlador dos caminhos” e lembramos
trolador” dos destinos, aquele que garante a associação que se faz de Exu e as encru-
o cumprimento das prescrições de Ifa/ zilhadas, representação por excelência da
Orumilá. Yangi é chamado pelos iorubás multiplicidade de caminhos e da geração
Exu Yangi – Oba Baba Esu, ou seja, Exu e da imposição de alternativas e possibili-
Yangi, Rei e Pai de todos os Exu. dades. Destino e encruzilhadas estão, sem
dúvida, intimamente ligados. Como Inspe-
Essa saudação e esse Itan nos reme-
tor- Geral de Olodumaré, ao mesmo tempo
tem à questão de que existem muitos
que está em todos os lugares e em todas as
Exu, todos mantendo a mesma natureza,
formas criadas, Exu está simbolicamente
multiplicação que se fez necessária para
representado na encruzilhada, onde assiste
que houvesse a devida especialização
e acompanha todas as escolhas feitas pelos
no processo de povoação do Universo e
homens na sua caminhada pela vida.
para que Exu se constituísse efetivamente
na “menor unidade de informação” do A propósito, um Itan do Odu Ejiogbe
sistema. Em particular à terra, um Itan, Meji diz em certo trecho: “Exu foi e
do Odu Ogbe Irete, mostra Agba Exu sentou-se na encruzilhada. Todos os que
liderando-os na chegada ao aye (mun- estavam vindo até Olodumaré teriam
do concreto) e designando-os para os que dar algo para Exu. E todos os que
diferentes propósitos. O Itan relata que estavam voltando deviam dar algo para
Olodumaré criou Exu como um ebora ele”. E ainda: “Os babalaôs jogaram
(divindade criada) muito especial, que para as três mil e duzentas divindades,
Exu tem que existir com tudo e fazer quando eles foram para a casa de Olo-
frente a cada pessoa e a cada orixá. dumaré para receber seus poderes. Isso
é porque Exu é mais grandioso do que
Esse Itan, além de nos trazer a idéia
todos os seniores”.
da individualização e conseqüente espe-
cialização de Exu junto à terra, em parti- Esse último trecho nos remete à
cular, e à Criação, no sentido mais geral, relação entre Exu e os orixás. É preciso
nos remete a um trecho de um Itan do reforçar a idéia de que Exu cumpre para
Exu da Libertação
Falagbe Esutunmibi
(José Tadeu de Paula Ribas)
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O então embaixador da Nigéria no Brasil, Patrick Cole; o Prêmio Nobel de Literatura, o nigeriano Wole Soyinka; o então governador
do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira; e Abdias Nascimento, em Brasília, por ocasião da visita do escritor nigeriano ao
Brasil em 1988.
Sessão do Senado em Comemoração
do Dia Internacional pela Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação
Racial, a 20 de março de 1997.
Egito. Pitágoras e Euclides, por exemplo, sua influência aos quatro cantos do
passaram décadas aprendendo Matemá- Continente. Todas as regiões da África
tica no Egito, enquanto a famosa Repú- foram bafejadas, em algum momento da
blica de Platão – que odiava a democracia sua história, pelos ventos autóctones da
ateniense – nada mais é que uma idealização civilização, produzindo uma variedade
da hierarquizada sociedade egípcia. imensa de culturas dotadas de variados
Como divorciar a identidade africana graus de conhecimento e sofisticação
da tecnologia, se há 4.600 anos médicos tecnológica. Historiadores e antropólogos
egípcios faziam cirurgias para a remoção honestos foram obrigados a admitir o de-
de cataratas oculares e a extração de tu- senvolvimento intelectual dos africanos
mores cerebrais? A se fazer justiça, aliás, em diversas áreas.
o título de Pai da Medicina não deveria Os Dogon de Mali conheciam,
caber a Hipócrates, mas ao cientista e muito antes que o Ocidente conseguisse
clínico egípcio Imhotep, que quase 3 mil observá-lo com a ajuda de aparelhos so-
anos antes de Cristo praticava virtualmen- fisticados, o pequenino satélite que orbita
te todas as técnicas básicas da medicina, a estrela Sírius, o Sírius B, invisível a olho
com profundo conhecimento de assepsia, nu, e com precisão descreviam sua órbita,
anestesia, hemostasia e cauterização, além antes mesmo que isso fosse confirmado no
de vacinação e farmacologia. Junte-se o Ocidente.
domínio egípcio da arquitetura, da meta-
lurgia, da astronomia, à engenhosidade dos Os fornos de fundição de aço dos
sistemas de irrigação, e se terá a razão do Haya da Tanzânia superavam em 200
interesse dos gregos por esse povo africa- a 400 graus aqueles de que se valeram
no: aprender. os europeus até o século passado. Os
Banyoro, de Uganda, faziam cirurgias
Os ideólogos arianistas do século complexas como o parto cesariano, do-
passado foram obrigados a se lançar a uma cumentado, em 1874, pelo médico inglês
árdua e infame tarefa “intelectual”: reduzir Dr. Belkin.
a importância das matrizes egípcias na for-
mação da cultura grega e descaracterizar a As ruínas de Monomotapa, em
africanidade dos egípcios, valendo-se de in- Zimbábue, testemunham uma verdadeira
terpretações que beiram o grotesco em seu façanha de engenharia, atribuída até mes-
afã de desmentir o óbvio. Criou-se, desse mo a extraterrestres, no inútil esforço de
modo, a raça vermelho-amarronzada, ou provar que aquela obra magnífica não fora
marrom-avermelhada, como se cons- construída por negro-africanos.
truções terminológicas fossem capazes No Sudão Ocidental, desenvolveram-
de mascarar para sempre a natureza das se Estados poderosos, como o reino de
verdades históricas. Gana e os impérios de Mali e Songhai,
A civilização egípcia teve suas com milhões de habitantes e territórios
origens na África Central e estendeu comparáveis ou maiores que o do Império
Dia Internacional Contra a Discriminação Racial
Senadores Abdias Nascimento, Benedita da Silva, Eduardo Suplicy,
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Ademir Andrade, Emilia Fernandes
dos Estados Unidos, que por duas vezes O SR. ADEMIR ANDRADE (PSB-
lhe havia negado o visto, mas conseguiu BA) – Senhora presidente, senhoras e
sua inscrição e a firma o contratou pelo senhores senadores, o dia 21 de março é
modesto salário de US$ 400. No entanto, data a ser celebrada por todo os homens
no momento do embarque, foi-lhe e mulheres que, em qualquer parte do
comunicado que o visto não lhe estava planeta, estejam comprometidos com a
assegurado. Então, foi até a fronteira do causa da liberdade, da democracia e da
rio Grande e, de lá, telefonou para a sua defesa da dignidade humana.
mãe, dizendo-lhe que no dia seguinte o O dia 21 de março é um convite
faria da outra margem. Embora sendo um à reflexão em torno da construção de
bom nadador, não conseguiu atravessar uma sociedade que, respeitando as
os 60 metros que separam o México dos diferenças, seja capaz de fazer prevalecer
Estados Unidos. E faleceu. os mais elevados princípios e valores que
Trata-se de um símbolo daqueles referenciam, de forma positiva e criativa,
que lutam por liberdade, um símbolo a nossa existência.
tal como o foram Zumbi dos Palmares Instituído pela Organização
e todos aqueles que procuraram se das Nações Unidas em 1966, o Dia
organizar para a conquista de um mundo Internacional para a Eliminação
mais solidário e justo; um símbolo como da Discriminação Racial, que hoje
o de Antônio Conselheiro, que também, comemoramos, é também ele fruto de
há 100 anos, teve a cidade de Canudos um processo histórico, longo e difícil,
dizimada porque muitos não queriam em que o sofrimento de milhões de
compreender os ideais daqueles que pessoas somente não foi maior do que
gostariam que não houvesse qualquer a consciência – que gradativamente
tipo de discriminação, fosse racial ou se universalizou – de que o quadro
qualquer outra, para a humanidade. discriminatório teria que ser superado.
Daí que, tanto quanto as celebrações
Portanto, a nossa solidariedade festivas, a data nos impele ao exame
àqueles que hoje estão lutando, como crítico do que foi feito e do muito
Abdias do Nascimento e Benedita da que ainda resta a fazer, no sentido da
Silva, para que, no Brasil, tenhamos uma total eliminação de toda e qualquer
nação exemplo de não discriminação manifestação de discriminação racial.
racial ou de qualquer outra forma de
preconceito. Felizmente, a sociedade
contemporânea já conseguiu avanços
Muito obrigado. extraordinários nesse campo. Em
primeiro lugar, não existe mais espaço
A SRª PRESIDENTE (Emilia para que se repitam atos e atitudes
Fernandes) – Concedo a palavra ao como as que acompanharam o processo
senador Ademir Andrade. de expansão européia desde o início
58 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação
AtuaçãoParlamentar
Parlamentar
não devem prosperar. Afinal, episódios forma significativa que negros e índios,
como o genocídio dos judeus, armênios em especial, deram, com a sua luta, com
e ciganos, por ocasião da Segunda Guerra a sua garra, com a sua determinação e,
Mundial, foram lições pesadas demais acima de tudo, com a sua resistência
para serem esquecidas. para a construção da sociedade brasileira.
Da mesma forma, massacres como Os índios estão aí, sendo massacrados
os ocorridos com povos indígenas em e sacrificados, dia a dia, na sua cultura,
nosso país, a exemplo do que foi feito no seu espaço, na sua convivência
com tribos localizadas na Amazônia, com os seus conhecimentos e, acima
merecem nosso inteiro repúdio e nosso de tudo, com a natureza que eles tanto
compromisso de impedir sua reprodução. preservam e amam. Os negros também
estão buscando o seu direito, o seu espaço
É assim que se constrói um mundo e leis que realmente saiam do discurso
melhor. e entrem na prática, para chegarmos à
É assim que se faz História. igualdade. Igualdade hoje é parâmetro de
democracia. Igualdade hoje é parâmetro
Este é o nosso trabalho, enquanto
para se verificar se um Estado ou nação é
representantes do povo brasileiro.
realmente desenvolvido ou não.
Muito obrigado.
Portanto, o grande desafio está
lançado: ou todos nós assumimos a
A SRª PRESIDENTE (Emilia questão da igualdade, seja de cor, de
Fernandes) – Encerrada a lista de oradores sexo ou de raça, como um desafio a
para este primeiro momento da nossa ser vencido e compartilhado por todos
sessão, que foi dedicado à comemoração nós, ou ficaremos apenas nos discursos.
do Dia Internacional pela Eliminação de
Queremos que o Congresso Nacional
Todas as Formas de Discriminação Racial,
faça ação e ação efetiva.
a Mesa gostaria, também, de associar-se
às denúncias, à conclamação que foi feita Ao cumprimentarmos a todos,
aqui, através dos senadores que usaram conclamamos a que possamos sair do
da palavra, em especial, destacando o discurso e colocar na prática a ação que
trabalho e o comprometimento cada todos os brasileiros desejam: respeito e
vez maior no combate à eliminação da igualdade a homens, mulheres, negros,
discriminação racial aqui e fora deste crianças, idosos e índios.
plenário, empenhados e realizados pela Agradecemos a todos que estiveram
senadora Benedita da Silva e hoje também, conosco nesta Sessão Especial e desejo
sem dúvida, enriquecido pela participação destacar a presença do conselheiro
do senador Abdias Nascimento. Quintino Faria, representante da
Queremos dizer que, sem dúvida, o Embaixada de Angola, e da Srª Ângela da
Brasil tem uma dívida a ser resgatada com Silva, representante da Fundação Cultural
as suas origens, pela participação, pela Palmares, que estiveram aqui conosco.
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Duas mulheres negras que ajudaram a fundar o Teatro Experimental do Negro: Arinda Serafim e Marina Gonçalves, ensaiando o
papel da “velha nativa” em O imperador Jones, de Eugene O’Neill. Arinda interpretou o papel na estréia do TEN no Teatro Munici-
pal, Rio de Janeiro, 8 de maio de 1945.
Projeto de Lei do Senado nº 52, de 1997
Projetos de Lei
. O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Considera-se crime de prática
de racismo, para efeito desta Lei, praticar
tratamento distinto, em razão de etnia, a
pessoas ou grupos de pessoas.
Pena – reclusão, de dois a cinco anos,
e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem
fabricar, comercializar, distribuir ou
veicular símbolos, emblemas, orna-
mentos, distintivos ou propaganda que
utilizem a cruz suástica ou gamada,
para fins de disseminação da prática do
nazismo.
64 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar
Após o lançamento dos Cadernos Negros no. 19 – Poemas (edição do grupo Quilombhoje Literatura,
de São Paulo, e da Editora Anita Garibaldi) no Instituto Palmares de Direitos Humanos, Rio de Janeiro,
em 19 de abril de 1997, escritores afro-brasileiros visitaram o senador Abdias Nascimento, ocasião em
que conversaram sobre literatura, cultura e problemas da comunidade afro-brasileira. Na foto, a partir
da esquerda: Selma Maria, Mirian Alves, Marisa do Nascimento, Jamu Minka, Abdias Nascimento, Dr.
Osvaldo Barbosa, Éle Semog e Paulo Roberto dos Santos. Para o segundo número da revista Thoth, está
programado um artigo sobre os 20 anos do Grupo Quilombhoje Literatura.
Discurso proferido no Senado Federal
em 11 de março de 1997
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
mano, seja proibindo claramente certas dessa ideologia, tão mais perigosa quanto
manifestações – como ocorreu por muito sedutora, pois que construída sobre fun-
tempo com o candomblé e a capoeira –, damentos supostamente universalistas.
seja neutralizando-as pela cooptação e O mito da democracia racial, baseado
esvaziando-lhes o conteúdo étnico, como em meias verdades e falácias comple-
no caso das escolas de samba. tas, e transformado em dogma de nosso
Embora costume apresentar-se como pensamento oficial, tem como propósito
país que se orgulha de ser plurirracial e lubrificar as relações raciais em nosso
multiétnico, o Brasil possui uma face in- País, tornando confortável a posição do
tolerante que sempre vem à tona quando dominador e impedindo o dominado de
os segmentos sociais objetos do precon- perceber a origem da opressão de que é
ceito e da discriminação – dentre eles, vítima.
em especial, os afro-brasileiros – ousam E essa visão conservadora, racista
reivindicar o direito à diferença. Marcado e intolerante, embora travestida do seu
essencialmente pelo assimilacionismo, exato oposto, desvela-se toda vez que
o discurso racial brasileiro – mesmo os afro-brasileiros pretendem criar me-
quando se pretende anti-racista – vê o canismos específicos de enfrentamento
negro tão-somente como ingrediente do racismo e de suas conseqüências em
numa mistura que, ao fim e ao cabo, nossa sociedade. Não faltam aqueles que,
deverá gerar uma “raça brasileira” – de por exemplo, ao verem nas bancas uma
pele morena, talvez, mas estética e cul- revista dedicada ao público negro, acu-
turalmente branca, filiada às vertentes da sam seus responsáveis de serem racistas,
cultura ocidental e calcada em modelos esquecidos de que a imensa maioria da
europeus e norte-americanos. mídia costuma veicular uma imagem do
Ao vislumbrar a solução da questão Brasil obtida, possivelmente, em algum
racial apenas num futuro em que todos ponto da Escandinávia, tal o número de
seriam fisicamente semelhantes, a ide- pessoas de tipo nórdico que nela apare-
ologia racial predominante em nosso ce. Só isso pode explicar certas reações
país aceita – de fato, pressupõe – a total de que foi objeto a solicitação que fiz
impossibilidade de respeitarmos quem ao excelentíssimo senhor presidente do
não se pareça conosco. Por essa visão, só Senado, de que desejava freqüentar esta
poderíamos conviver em pé de igualdade Casa vestindo roupas africanas.
com quem fosse igual a nós – não ape-
Para nós, africanos e descendentes, o
nas cultural, mas também fisicamente.
modo de nos vestirmos representa muito
Assim, no limite, só poderíamos aceitar
mais que uma forma social de estar. Cada
como iguais os nosso próprios clones.
cor, cada detalhe do estilo de nossos
Não é de estranhar, portanto, que trajes guarda uma relação direta com o
grande parte do esforço do Movimento nosso ontológico. Entenda-se: com a nos-
Negro se tenha concentrado na denúncia sa identidade, com a nossa ancestralidade
Pronunciamentos
Denúncia da democracia racial 93
Léa Garcia declama “ O navio negreiro” no Festival Castro Alves, espetáculo dedicado exclusiva-
mente ao poeta abolicionista, produzido pelo TEN. Teatro Fênix, Rio de Janeiro, 1947.
Pronunciamentos
Homenagem a Castro Alves 97
Imamu Baraka, dos Estados Unidos. O tempo, como instrumento de luta, como
Brasil está presente nessa breve citação meio de expansão do combate ao racismo
com um número invejável de poetas e da transformação da sociedade. É a
afro-brasileiros, contemporâneos e do fala de um povo com a sua própria voz.
passado: Gonçalves Dias, Cruz e Sou- São autores e autoras que se apropriam
za, Carlos Assunção, Solano Trindade, da norma culta e a submetem às razões
Eduardo de Oliveira e tantos outros. da afetividade, da solidariedade, da
emoção, da dignidade e da esperança da
Poderia, para cada período da nossa
comunidade afro-brasileira, construindo
História, citar escritores negros compro-
uma sintaxe que nenhum autor branco
metidos com a mesma luta de Antônio de
poderia criar ou expressar.
Castro Alves. Entretanto, em função da
pertinência do tema, não posso deixar de Eu dou meus parabéns a esses meus
destacar, para a informação dos ilustres irmãos de raça e de literatura. Estamos
colegas, que até a década de 1970, por juntos nesta luta, pois sei da importância
conta do racismo e do preconceito, este de nos expressarmos com independência
País ainda não havia produzido uma ge- nesta arte, deitando por terra as barreiras,
ração de escritores negros. Até então, o as muralhas do mercado editorial brasi-
que tínhamos eram exceções, escritores leiro, assim como as restrições da mídia
negros isolados, solitários, perdidos num para com os escritores negros que não se
mar de branquidão, como se fossem, em curvam às tácitas exigências que lhes são
cada época, mosca no leite das palavras. impostas. Continuem escrevendo sobre e
para o nosso povo, sobre e para o povo
Mas, para meu orgulho, para minha
afro-brasileiro, sem utilizar a metáfora
alegria e, o que é mais importante, para
que engana, deforma e anestesia a rea-
a tonificação da cultura brasileira, vi
lidade cruel, que é o pão de cada dia do
surgir, a partir dos anos 70, a primeira
povo de origem africana neste País.
geração de escritores afro-brasileiros.
São mais de 120 jovens afro-brasileiros, Ao celebrarmos os 150 anos de nas-
na maioria organizados em grupos como cimento do poeta e abolicionista Antônio
o Quilombhoje Literatura, de São Paulo; de Castro Alves, celebramos também
o Grupo Negrícia, do Rio de Janeiro; o a continuidade de uma luta que espero
GENS – Escritores Negros de Salvador, seja compromisso de todos nós, a fim de
e outros mais do Rio Grande do Sul, de erradicarmos o preconceito, as injustiças
Minas Gerais, de Pernambuco, de Mato e o racismo no Brasil.
Grosso, do Maranhão... O SR. SEBASTIÃO ROCHA – Se-
Mulheres negras e negros brasileiros nador Abdias do Nascimento, permite V.
Exª um aparte?
escritores, corajosamente rompendo o
círculo da marginalização e de forma O SR. ABDIAS DO NASCIMENTO
contundente exercendo a palavra, a um só – Com muito prazer.
Pronunciamentos
Homenagem a Castro Alves 101
para os adeptos de uma certa visão ana- mento de políticas compensatórias que
crônica da questão racial – seria reduzir ampliem o acesso de negros aos cursos
a ação do Movimento Negro a uma di- profissionalizantes, à universidade e às
mensão meramente simbólica e cultural. áreas de tecnologia de ponta. Reivindica
A total reversão da imagem negativa do também a concessão imediata de títulos
negro passa também por sua ascensão de propriedade definitiva das terras às
econômica e seu acesso ao poder polí- chamadas comunidades remanescentes
tico. Mas não é tudo. É preciso também de quilombos, bem como a revisão dos
que o negro tenha acesso paritário aos textos escolares para eliminar as ima-
meios de comunicação de massa. Sem gens negativas dos negros e também
isso, a percepção social do negro con- as referências pejorativas e racistas. As
tinuará submetida ao poder decisório reivindicações alcançam também a ne-
dos responsáveis pela mídia, os quais cessidade do estabelecimento de medidas
tendem a excluir a imagem dos afro- que assegurem um melhor acesso dos
-brasileiros, bem como a dos indígenas, afro-brasileiros ao mercado de trabalho,
por considerar que, de um lado, esses tanto quanto a representação propor-
dois segmentos étnicos não dispõem de cional dos grupos étnicos e raciais nas
poder aquisitivo suficiente e, de outro, campanhas de comunicação do Governo
não correspondem aos cânones estéticos e de entidades que com ele mantenham
greco-romanos que dominam a sociedade relações econômicas e políticas.
e, conseqüentemente, a própria mídia. Cabe aqui ressaltar a forma como o
O documento Por uma política documento foi recebido pelo presidente
nacional de combate ao racismo e à Fernando Henrique Cardoso, numa
desigualdade racial, apresentado ofi- audiência especialmente concedida às
cialmente pelo Movimento Negro ao lideranças do Movimento Negro res-
presidente Fernando Henrique Cardoso ponsáveis pela Marcha. Integrante, com
em 20 de novembro de 1995, por ocasião Florestan Fernandes e Octavio Ianni,
da Marcha Zumbi dos Palmares contra da chamada Escola Sociológica de São
o Racismo, pela Cidadania e a Vida, Paulo – responsável, entre outras coisas,
mostra que a valorização da imagem do por uma profunda reformulação no estu-
negro está no centro dos objetivos polí- do das relações raciais em nosso País –,
ticos e culturais das organizações afro- cuja tese de mestrado teve como tema
-brasileiras. Pode-se ler no documento a mobilidade social dos negros em Flo-
que o programa de combate ao racismo rianópolis, o presidente instituiu nesse
e à desigualdade racial implica o fomento mesmo dia o Grupo de Trabalho Intermi-
à cultura, a preservação da memória do nisterial para a Valorização da População
povo negro brasileiro e a valorização das Negra. Composto de militantes negros e
religiões de origem africana. Mas tam- representantes de 10 ministérios, o Grupo
bém inclui objetivos como a ampliação tem por missão apresentar propostas de
da legislação anti-racista e o desenvolvi- políticas públicas na área das relações
Pronunciamentos
Multiculturalismo no Brasil 113
são aqueles que conhecem o “seu” lugar, tando inimigos quase sempre ocultos sob
que é o da submissão e o da inferiorida- os véus da hipocrisia e do paternalismo,
de. Mas eu estou aqui justamente para é com alento que vemos manifestações
subverter essa visão. Para mostrar que como a do atual presidente da República,
a construção de um Brasil moderno, infelizmente desconhecidas ou desvalori-
justo, democrático, que não tenha de se zadas pela maioria daqueles que dizem ser
envergonhar todos os dias perante o mundo seus seguidores. O que mostra que ainda é
com as imagens de violência, miséria e muito árdua a luta que temos pela frente.
discriminação divulgadas pelos veículos Mas também que, felizmente, já dispomos
de comunicação, passa necessariamente de aliados nos mais altos escalões do País.
pelo fim do racismo e do preconceito que
se abatem sobre seus filhos de ascendência
africana. Nesta luta sem tréguas enfren- Axé!
Pronunciamentos
Crianças e adolescentes 115
pobreza se sobrepõem às especificidades mas destaco alguns que podem dar a di-
de etnia e de gênero, levando a condição mensão da perversidade praticada contra
e a dignidade humanas ao rés do chão. a população infanto-juvenil de norte a sul
do País.
Mas é fato que por longos anos, para
atender as mais diversas conveniências Em 1990, mais de 7,5 milhões
dos mandatários do País – dentre as quais de crianças e adolescentes entre 10 e
asmalfadada segurança nacional da épo- 14 anos vinham sendo explorados no
ca da ditadura militar –, sempre houve campo e na cidade, trabalhando em
uma postura deliberada em omitir o item muitos casos - como no corte de cana,
cor, ou raça, salvo raras exceções, do uni- na produção de carvão e nas fábricas
verso das estatísticas sociais brasileiras. de calçados - em condições insalubres
Mas ainda assim, com os poucos dados e em jornadas de até 15 horas. Em fins
disponíveis, diversos pesquisadores das de 1995, os Estados Unidos anunciavam
mais diferentes áreas têm-nos apresenta- que iriam boicotar os produtos brasileiros
do análises que demonstram as precárias que utilizavam mão-de-obra infantil. Na
condições socioeconômicas da maioria Alemanha, no ano de 1992, pelo mesmo
dos afro-brasileiros. motivo, iniciou-se boicote aos produtos
da indústria cítrica brasileira.
Portanto, se as estatísticas sobre a
população infanto-juvenil apontam que De acordo com pesquisa do UNI-
o Estado brasileiro é lesivo e negligente CEF, em outubro de 1995 havia 2 mi-
no amparo dessa população, tal situação lhões de crianças vivendo da prostituição
se agrava sobremaneira quando se trata no Brasil. A pobreza e a ignorância são
de crianças e jovens negros. as principais causas que levam esses
jovens a se prostituírem; mas o que de
O quadro é crítico e vergonhoso, e
fato agrava essa situação vergonhosa é a
esta Casa tem o dever de se posicionar
incapacidade do Estado de agir com ri-
politicamente, sob pena de ser questiona-
gor, tanto no sentido de oferecer políticas
da quanto aos seus princípios éticos, em
sociais quanto nos procedimentos coerci-
relação ao futuro do capital humano do
tivos da polícia e da Justiça. Foi preciso
nosso país. Refiro-me também à distância
que organizações não-governamentais
e à indiferença de importantes setores do
que trabalham com questões relativas à
Estado, que relegam a infância brasileira
proteção da infância iniciassem campa-
ao plano das insignificâncias, impedindo
nhas de denúncia do turismo sexual e da
dessa forma que o Brasil cumpra a sua
exploração sexual de crianças e adoles-
trajetória e ocupe um lugar digno no
centes para que o Governo, timidamente,
cenário das nações.
desse o ar da sua graça na forma de uma
A violência contra crianças e adoles- campanha publicitária e de algumas
centes tem várias faces e graus diversos e iniciativas demasiado modestas para a
específicos. Não posso abordá-los todos, gravidade do problema.
118 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar
função da disputa pela hegemonia entre No caso particular de Angola, releva lem-
as duas maiores facções envolvidas na brar a luta da rainha N’Zinga, no século
luta de libertação. XVII, contra os invasores portugueses,
num processo que demonstra a capacidade
Para nós brasileiros, de modo geral,
de organização e o espírito de luta do povo
e afro-brasileiros em particular, a solu-
africano. Um povo que – diferentemente
ção da guerra civil angolana é motivo
do que ensinavam, até pouco tempo
de regozijo, pois os laços que nos unem
atrás, nossos livros escolares – jamais se
àquele país vão muito além da solida-
submeteu passivamente ao domínio de
riedade genérica entre povos distantes.
quem quer que fosse. Exemplo disso, no
Somos na verdade, brasileiros e ango-
Brasil, foi a epopéia de Palmares, escrita
lanos, muito próximos, seja do ponto de
vista geográfico – apenas seis horas de a ferro e fogo por homens e mulheres, em
vôo nos separam de Luanda –, seja do sua maioria, da etnia banta, originários
ponto de vista cultural, humano e até exatamente da África Austral.
mesmo sangüíneo. Afinal, os africanos É a história, com efeito, que nos
escravizados que construíram este país mostra também a forma como a chamada
eram oriundos, predominantemente, da colonização européia, aliada à terrível
região do Sul da África que um dia seria drenagem de cérebros e músculos pro-
Angola, o que por si só revela o imenso movida com a escravização, acabou pro-
débito que temos para com aquela nação. duzindo a maioria dos males de que hoje
Embora estejamos acostumados a padece a África. Afinal, nenhum povo,
uma imagem negativa do Continente e do cultura ou grande civilização poderia dar
povo africanos, tão difundida e reiterada continuidade ao seu processo histórico
que assume ares de verdade, o fato é que sofrendo uma guerra constante, além da
a África não foi, historicamente, o conti- perda de dezenas de milhões de seus ha-
nente sombrio que a história etnocêntrica bitantes, levados numa viagem sem volta
escrita por europeus nestes dois últimos através do Atlântico. Mas os europeus
séculos praticamente nos impôs. Ao con- não se contentaram em promover o con-
trário dessa visão não apenas preconcei- tinuado massacre de africanos, explorar
tuosa, mas, pior ainda, intencionalmente suas riquezas materiais e expropriar sua
distorcida com o objetivo de negar aos cultura – hoje “preservada” em museus
africanos a própria humanidade, e assim de Paris e de Londres. Como se tudo
justificar a escravidão e o colonialismo, isso não bastasse, as nações européias,
a história da África é pelo menos tão rica ao fazerem, no início do século passado,
quanto a de qualquer outro continente. Lá a partilha da África, sem levar em conta
floresceram o Egito dos faraós, a Núbia, os as fronteiras historicamente traçadas
reinos de Axum e de Cush, os impérios de pelos próprios africanos, plantaram as
Mali e de Songhai. Estados cuja riqueza sementes dos conflitos étnicos que até
material e cultural não deixa de assombrar hoje continuam assolando o Continente.
os estudiosos que sobre eles se debruçam. Conflitos como os de Biafra, nos anos
Pronunciamentos
Governo de Reconciliação Nacional de Angola 121
70, de Ruanda ou do Zaire, nos dias Mais, talvez, do que qualquer outro
de hoje, resultado direto das fronteiras fato, esse voto de 1974, bem como a ra-
artificiais impostas pelos europeus, que pidez em reconhecer a independência de
fragmentaram nações velhas de séculos Angola e Moçambique, no ano seguinte,
ou juntaram, numa mesma divisão terri- revela-nos a verdadeira natureza da
torial, grupos étnicos tradicionalmente ri- posição das elites governantes brasilei-
vais. Não foi diferente o caso de Angola, ras em relação não somente a Angola,
onde a solução dos problemas deixados mas à África como um todo. Enquanto
pelos europeus demandou uma guerra o colonialismo salazarista mostrava
civil cujos prejuízos deverão se fazer sinais de vigor, o Brasil o apoiou ver-
sentir ainda por muito tempo, embora gonhosamente, sustentado na teoria do
encerrado o conflito. “lusotropicalismo”, versão internacional
do mito da “democracia racial”, não por
Apesar dos laços humanos e culturais e
acaso também formulado pelo mesmo
da irresgatável dívida que tem com Angola,
ideólogo Gilberto Freyre. Ao percebe-
o Brasil desempenhou um papel no mínimo
rem a iminente vitória das forças nacio-
ambíguo, e freqüentemente reacionário,
nalistas, os policy makers do Itamaraty
durante a longa luta de libertação travada
não tiveram o menor pudor em inverter
na então chamada “África Portuguesa”,
seu curso de ação, passando a adotar o
que também compreendia Moçambique,
que chamaram “pragmatismo respon-
Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e
sável”. Tratava-se, agora, de assegurar
Príncipe. Transcrevo aqui as palavras do
eminente historiador José Honório Rodri- para o Brasil uma fatia significativa
gues, descrevendo esse período sombrio de desses mercados potenciais, bem como
nossa diplomacia: “Votamos sempre com um papel proeminente na geopolítica do
as potências coloniais nas Nações Unidas, Hemisfério Sul, fator importante para
cedíamos a todas as pressões portuguesas, um país que almeja o status de potência
a do governo oligárquico de Salazar ou regional. Curiosamente, os diplomatas
da Colônia, e vez por outra disfarçáva- – brancos, é claro – encarregados dessa
mos nosso alinhamento colonial com as tarefa empregaram como justificativa
abstenções. Não tínhamos uma palavra exatamente os laços históricos que unem
de simpatia pela liberdade africana”. As- os dois países, laços esses anteriormente
sim, de 11 resoluções das Nações Unidas ignorados em nome de nossas então pri-
apoiando a independência dos territórios vilegiadas relações com Portugal. Tão
africanos sob domínio português, o Brasil privilegiadas que chegaram a gerar um
votou três vezes contra, absteve-se (o que certo tratado “de amizade e de consulta”,
equivalia a votar contra) seis vezes e apenas cujo resultado prático foi o atrelamento
duas vezes votou a favor. A primeira em da política externa do Brasil - um gigan-
1967, aprovando um relatório da ONU, a te com pretensões a grande potência –
outra em 1974 – às vésperas, portanto, da aos interesses daquela minúscula nação
independência. européia.
122 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar
em vista o combate a qualquer tipo de lência policial é dirigida não apenas aos
discriminação. Nessa ocasião foi criada pobres, mas aos pobres e negros. Estamos
a primeira delegacia contra crimes raciais diante de mais um exemplo que confirma
na cidade de São Paulo. No ano passado, as palavras escritas quarenta anos atrás por
o Movimento Popular contra o Racismo, um dos mais brilhantes sociólogos brasi-
que uniu associações pelos direitos hu- leiros, o mulato Alberto Guerreiro Ramos:
manos, a Federação Israelita do Estado “O negro no Brasil não é uma anedota, é
do Rio Grande do Sul e o movimento um parâmetro da realidade nacional ”.
negro gaúcho, conseguiu cancelar as
atividades da Editora Revisão, do Sr. E. Judeus e negros têm um passado
S. Castan, especializada em publicações cheio de exemplos que maculam a histó-
anti-semitas. ria da humanidade. O Holocausto parece
ser um imperativo moral que emerge
O desafio emerge novamente. As como uma forte lembrança dos perigosos
disparidades demográficas, econômicas e frágeis limites da ação humana. Mas,
e sociais não facilitam um diálogo entre como bem lembrou o elucidativo artigo
negros e judeus. Os diversos preconcei- de Moacir Werneck de Castro (JB, 8-4-
tos contra os judeus no País são difusos 1997), a história do Brasil é permeada
e estão longe de dificultar a mobilidade de violência. É interessante observar
social vertical e a ampla e livre circulação que os 350 anos de escravidão no Brasil
dos mesmos pela sociedade brasileira. No não parecem ter sido suficientes para se
caso dos negros, o quadro é totalmente constituir em referência obrigatória nas
inverso. Há uma série de atributos nega- análises sobre a violência em nosso País.
tivos imputados à cor negra que fazem
da discriminação racial algo extrema- De qualquer modo, a indignação da
mente perverso e que, finalmente, vem sociedade civil, o intenso debate acerca
adquirindo a visibilidade necessária para da reestruturação da Polícia Militar, as
que ocorram mudanças substantivas em ações tardias do Congresso Nacional e
nossa realidade social. Nunca a imprensa do Estado, os ensaios de aliança pelos
enfatizou com tanta freqüência, como no direitos civis entre negros e judeus su-
caso do auxiliar de almoxarifado Mário gerem um quadro mais auspicioso para
Josino, morto em Diadema, que a vio- o nosso futuro enquanto nação.
Pronunciamentos
Polícia e direitos humanos 127
Albertina Pereira Nunes, futura esposa solicitou que escrevesse a letra para uma
de Pixinguinha. A Companhia estreou canção de Pixinguinha, gravada já havia
em junho daquele ano com o espetáculo algum tempo, mas pouco conhecida pelo
Tudo preto, tendo Pixinguinha como público.
diretor musical e, no elenco, além de Assim, “Carinhoso” recebeu letra de
Jandyra Aymoré, De Chocolat, Djanira João de Barro e foi cantada pela primeira
Flora, Benedito de Jesus, Rosa Negra e vez, em 1937, no Teatro Municipal do
Soledade Moreira. A paixão pela esposa, Rio de Janeiro. Recusada por vários
ao que tudo indica, fez com que Pixin- intérpretes, teria sua primeira gravação
guinha optasse por trabalhar ao lado dela, na voz do cantor Orlando Silva, transfor-
em detrimento das atividades dos Oito mando-se num imenso sucesso que dura
Batutas. até os dias de hoje.
“Urubatã”, “Página de dor”, “Sofres Mas o tempo faz seus aprontos com
porque queres” são alguns exemplos da a vida. E foi assim que, em 25 de junho
boa música desse extraordinário compo- de 1964, o professor Alfredo da Rocha
sitor que trazemos na memória e, vez por Viana Filho, o nosso Pixinguinha, foi
outra, cantarolamos distraidamente. Mas surpreendido por um edema pulmonar
como falar de Pixinguinha sem fazer re- que o obrigou a se submeter, por mais
ferência à sua obra mais conhecida, uma de 50 dias, a um rigoroso tratamento.
das mais gravadas e tocadas na história Quando recebeu alta, não sabia se pode-
da música popular brasileira? Estamos ria voltar a tocar o saxofone, instrumento
necessariamente falando do choro inti- que adotara depois de abandonar a flauta.
tulado “Carinhoso”, composto e gravado Afortunadamente, Pixinguinha ainda
muitos anos antes de receber a letra. Ele pôde compor e tocar sax por mais alguns
constitui o ponto mais alto e mais belo anos.
da musicalidade afro-brasileira.
No dia 17 de fevereiro de 1972,
No início de 1937, foi planejado quando a Banda de Ipanema desfilava
um espetáculo beneficente a se realizar os ritmos carnavalescos pelas ruas do
no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. bairro, ritmos que tanto marcaram sua
Convidada a participar, a jovem atriz juventude e trajetória, Pixinguinha, que
Heloísa Helena manifestou a intenção fora batizar o filho de um amigo na Igreja
de interpretar um número inédito. Em Nossa Senhora da Paz, não teve tempo
ocasião como aquela, diante da alta de perceber outras razões para a vida.
sociedade local, não lhe parecia bem Uma vida que se resumira ao amor e à
apresentar-se com um número já divul- doação pela música. O povo, incrédulo
gado por cantores profissionais. Com e ansioso, aglomerou-se em frente à
essa preocupação, talvez somada a um igreja. Mas, rápido e sem retorno, tudo
pouco de vaidade, Heloísa Helena pro- caiu num irremediável e triste silêncio:
curou o compositor João de Barro e lhe Pixinguinha morreu.... em paz.
138 THOTH 1/ abril de 1997
Atuação Parlamentar
Pode-se medir a conseqüência disso pelo legislação para tornar mais eficientes os
número de casos de assassinato, tortura e mecanismos de enfrentamento do racismo
outras atrocidades sofridas pelos negros e do preconceito racial; num momento em
e opositores políticos naquele país du- que se considera seriamente a possibilidade
rante os últimos anos de um regime que de estabelecer compensações para os grupos
certamente teria acabado muito antes, historicamente discriminados, conforme
não fosse a criminosa cumplicidade de discurso do presidente Fernando Henri-
grupos que, como a Anglo American, que Cardoso no seminário internacional
sempre se posicionaram em favor da Multiculturalismo e Racismo: O Papel
manutenção da supremacia branca. da Ação Afirmativa nos Estados De-
mocráticos Contemporâneos, realizado
Relevantes como sejam, não se resu-
em junho último nesta capital; num mo-
mem a isso, contudo, as restrições a essa
mento como este, seria no mínimo um
empresa. Além de apoiar o apartheid, a
contra-senso permitirmos que se aposse
Anglo American é suspeita de ter cola-
de nossa estatal mais lucrativa um gru-
borado com o Governo sul-africano na
po internacional que se comprometeu
desestabilização dos países da chamada
ativamente com o mais execrado regime
“linha de frente” – dentre eles, Angola e
do mundo contemporâneo. Ao mesmo
Moçambique –, fornecendo apoio finan-
tempo, as condenações de que tal grupo
ceiro à guerrilha contra-revolucionária
tem sido objeto nos mais altos foros do
para a aquisição de armamentos e infra-
comércio internacional constituem moti-
-estrutura bélica. Como não bastasse,
vo suficiente para tornar indesejável sua
a Anglo American foi considerada cul-
presença em nosso País.
pada, em diversos países, por infringir
a legislação antitruste, praticando o Por tudo isso, permitimo-nos confiar
monopólio da produção e comércio de na aprovação do citado projeto de lei nes-
ouro e diamantes. Por esse motivo, seu te Senado, e posteriormente na Câmara
principal dirigente, Nicholas Oppenhei- dos Deputados, uma forma direta de
mer, está impedido há muitos anos de assegurarmos o respeito a fundamentais
pisar em solo americano, sob pena de ser princípios constitucionais e humanos
imediatamente preso. e, indireta, de impedirmos de atuar no
Brasil uma empresa poderosa que carrega
Num momento em que a sociedade consigo a mancha indelével de uma práti-
brasileira começa a tomar consciência cres- ca racista contrária aos direitos humanos.
cente de seus problemas sociais e raciais,
inclusive discutindo a reformulação de sua Axé!
143
Abdias Nascimento como o “deputado Dr. Jubileu de Almeida” na peça de Nelson Rodrigues
Perdoa-me por me traíres. Teatro Municipal, Rio de Janeiro, 1957.
Pronunciamentos
Homenagem a Nelson Rodrigues 145
Tio Raul. Ao descer o pano após a cena na verdade revela muito bem a capaci-
final, a platéia do teatro se transformou dade do teatro de Nelson Rodrigues em
num imenso caos. Distintas senhoras mobilizar os mais profundos sentimentos
urravam impropérios ofensivos ao autor, das platéias, tocando nas feridas da alma
cavalheiros circunspectos o vaiavam, brasileira como nenhum outro, antes ou
enquanto outro segmento o aplaudia. depois dele.
A gritaria cresceu e Nelson Rodrigues,
extremamente tenso, surgiu na boca da Assim como o teatro norte-america-
cena para enfrentar a confusão. Revólver no possui um Eugene O’Neill, o gênio
em punho, um vereador tentou matar, modernizador da dramaturgia daquele
não o autor, mas a própria peça, para país, e a Inglaterra se orgulha do seu
ele talvez patológica ou imoral. Nelson Shakespeare, nós celebramos o Dante
avançou no proscênio e gritou, chamando da nossa literatura dramática: Nelson
seus ofensores de “animais”, “cavalgadu- Rodrigues elevou o teatro brasileiro até
ras”. O elenco então correu a protegê-lo, o ponto mais alto que a dramaturgia de
cercando-o. Diante de uma barreira de
qualquer nação tenha atingido em qual-
atrizes e atores, a fúria do público arrefe-
quer tempo.
ceu e o espetáculo, enfim, terminou. Esse
episódio, tragicômico na sua aparência, Axé, Nelson Rodrigues!
151
Cacilda Becker e Abdias Nascimento numa cena de Otelo, de Shakespeare, no Festival do II Aniversário do TEN. Teatro Regina, Rio de Janeiro, 1946.
A essência deste trabalho é tornar claro
que a alegação jurídica de que “Somos
todos iguais perante a Lei”, longe de ser
a consumação da luta dos negros pela
liberdade e afirmação racial, é muitas
vezes uma forma de escamotear suas
Somos todos iguais reivindicações. O trabalho foi apresen-
perante a lei tado ao 1º Congresso de Cultura Negra
das Américas no ano de 1977 em Cáli,
Colômbia, e publicado na revista Afro-
diáspora, ano 3, nº 5.
As Constituições se sucedem no
meu país e todas elas põem ênfase,
quando se trata dos direitos e garan-
tias individuais, na igualdade de todos
os brasileiros, sem distinções de raça.
Estabelece-se assim anulação legal das
diferenças raciais, para apagar a brutal
tradição escravagista que ainda habita
o subconsciente histórico de nosso País.
Durante mais de quatro séculos o negro
Sebastião Rodrigues Alves *
foi instrumento de trabalho, objeto de
156 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
vida cotidiana de seus habitantes. Sem miséria atinge a todos – negros, brancos e
dúvida, há um componente econômico amarelos. Contudo, no caso concreto de
determinante da situação de miséria ma- meu País, a condição de negro ou mulato
terial e moral registrada nas favelas. Mas é quase sempre um fator agravante dessa
quando se sabe que a maioria é de negros miséria. Nas inúmeras tarefas a que nos
e mulatos, os que mais se encontram levou o Serviço Social, encontramos
sem registro civil, sem assistência, sem muitas vezes o negro degradado porque
escola, o investigador social deve estudar estava desamparado pela lei, porque
por que essa condição racial multiplica sobre ele se impunha o subconsciente
os dissabores e a tragédia do habitante culposo coletivo que o considerava in-
dos morros. Diga-se simplesmente que ferior, social ou legalmente.
um negro, quando desce do morro para
o trabalho, não sabe se volta porque sua O protesto negro
condição escura, essa primária discri-
minação ornamental que sofremos, nos As dimensões desta comunicação
torna suspeitos policialmente. não permitem avaliar em toda a sua
O desenvolvimento de nossa tese se extensão o grau do chamado “protesto
reduz ao estudo e interpretação da situ- negro”. As virtudes de nossa raça, a força
ação do negro perante a lei. Entretanto de nossos ancestrais nunca se apagaram
caberia aqui uma indagação mais profun- do espírito negro nestes quatro séculos
da da situação da mulher negra, especifi- de odiosa escravidão. No seu culto, no
camente, em face daquele subconsciente seu trabalho de arte, no mesmo tipo de
culposo ainda vivo na sociedade branca. convivência, nos seus jogos, a força sutil
Ou é empregada ou é prostituta. Quando e poderosa das virtudes raciais manteve-
mais, sua missão é procurar seus filhos -se intacta, de forma que hoje podemos
na delegacia, detidos para averiguação de revivê-la, analisá-la, avaliá-la e tornar a
supostos delitos simplesmente porque, a cultuá-la como o fazemos neste Congres-
priori, podem ser delinqüentes. Foi nesse so de Cultura Negra das Américas.
convívio com favelados, assistindo a sua Todos sabemos que o estupro foi
vida cotidiana, observando o esforço para brutal e implacável. A primeira medida
reviver os valores humanos do negro na do escravagista direto ou indireto era pro-
religião e na cultura ancestral, que nos duzir o esquecimento do negro, esqueci-
conscientizamos da necessidade de lutar mento de seus lares, de sua terra, de seus
por valorização em todos os campos. deuses, de sua cultura, para transformá-lo
Tivemos, posteriormente, o grau superior em vil objeto de exploração. Esse estupro
em Serviço Social, sendo-nos possível cultural teve transformação para sempre
conhecer os graus da miséria. Há, repe- apresentar-se mascarado. O negro, es-
timos, determinantes econômicos nos quecido na sua condição propriamente
diversos aspectos da miséria social e essa humana, era objeto de estudo da Antro-
160 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
ção que nega as desigualdades raciais. O negro trânsfuga levaram ao malogro esse
poder público achou necessário explicitar protesto, e por outro o negro brasileiro
esses direitos e a 3 de julho de 1951 foi carecia de condições políticas autôno-
promulgada a Lei 1.390, que inclui entre mas para consumar seus propósitos de
as contravenções penais a prática de atos valorização racial no sentido pleno do
resultantes de preconceitos de raça ou conceito. Transfere-se nossa luta a uma
de cor. Faz pouco mais de 20 anos da simbiose entre classe e raça, de forma a
existência de tal lei, o que mostra como é tornar solidárias ambas as lutas reivindi-
violentamente atual o caso da discrimina- catórias. Uma revalorização histórica se
ção. O mesmo texto da lei é vergonhoso impõe para delimitar exatamente qual é
do ponto de vista da democracia racial. o bom combate do negro nestas últimas
Pois ainda é necessário, num país que décadas, prodigiosamente intensas, para
tem 75 por cento de negros e mulatos, a reconquista dos seus direitos humanos.
mais de dois terços de sua população, Partimos de um fato objetivo e inques-
dois terços que vivem e trabalham neste tionável: tivemos esses direitos, os tive-
país, que são agentes de sua construção e ram nossos ascendentes negro-africanos,
desenvolvimento, escrever um texto legal antes do estupro escravagista.
punindo contravenções como impedir em
Nossos ancestrais viviam em sua
estabelecimento comercial ou de ensino
terra, com seus deuses e seus costumes,
ou de qualquer natureza hospedar, servir,
com seus hábitos e seus ritos, dentro
atender ou receber cliente, comprador ou
de um pacto social, subjetivamente
aluno por preconceito de raça ou de cor.
aceito, correspondente a seu tempo e
Resta dizer que essa lei de texto eufemis-
espaço históricos. As formas culturais
ticamente generoso é inócua, nunca foi
desenvolveram-se extraordinariamente,
aplicada no seu aspecto punitivo, pois se
tal como o prova a arte negra milenária
faz impossível caracterizar o momento
e centenária salva do roubo e da des-
delitivo. Novamente o negro foi atendido
truição. Aqueles ancestrais, violenta e
em seus direitos com a letra escrita da lei,
odiosamente, foram arrancados e tra-
e negado na realidade dos fatos.
zidos a terra estranha para o trabalho
O chamado “protesto negro” tra- escravo. Vieram as diferentes abolições
duzia um conflito e uma tensão. Sua em cada país. No nosso, nossa abolição
manifestação nos era negada por aquele teve como determinantes específicos os
subconsciente culposo, herdado da tra- efeitos estruturais da crise lavrada no
dição escravagista, que se sublimava sistema econômico dominante: em um
mediante de artigos constitucionais e novo tipo de sociedade econômica, a
textos de leis insuficientes para construir mão escrava não se mostrava eficaz para
uma presumível democracia racial. Diz- as nascentes formas de produção. E co-
-se que nosso protesto foi fracassado; meça, para o negro brasileiro, o estupro
por outro lado, o negro conformista e o sentimentalista procurando abolir sua
162 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
poderia se opor aos generosos soldados de classe e raça, não praticaremos outra
ingleses e franceses tratando de vestir forma de abolição da memória, passan-
os nus, pondo véus ou sutiãs nos seios do o centro de gravidade da luta para as
das jovens e ignorantes africanas, ou conquistas socioeconômicas e esquecen-
obrigando a esconder o membro viril aos do que se nos está roubando o espírito
guerreiros iorubás? Claro que o elemento negro, nossos valores negros, nossas
civilizador era o fuzil contra a flecha e a raízes negras? É bom lembrar que, até
pedra, era o suborno para a escravidão. muito pouco tempo atrás, a palavra negro
É por tudo isso que chamamos a atenção era quase proibida entre nossos irmãos:
energicamente para todas as formas de era sinônimo de escravo, de servil, de
agressão à memória do negro. marginal. Os que trabalhamos pela cons-
Outra palavra que merece nossa cientização do negro fizemos grandes es-
desconfiança é a aculturação, o ter- forços para resgatar o profundo conteúdo
mo cunhado pelos cientistas sociais a histórico e espiritual da palavra negro e
serviço, consciente ou inconsciente, devolver a sua plena significação. Essa
da dominação, para ferir na sua raiz a palavra negro nos une neste Congresso
memória do povo ou da raça oprimida. em que estudamos a imensa contribuição
Confessando que, quando se nos fala de nossos irmãos para a construção cultu-
de boca cheia de civilizar ou aculturar, ral deste Continente. E essa palavra negro
sentimos repugnância porque volta nosso é o fundamento existencial de nossa luta
pensamento às formas tremendas que na busca da afirmação de nossos direitos
o estupro civilizatório ou aculturador e de nossos valores.
tomou contra a conservação da memória
de nossos irmãos. Conclusões
A abolição da memória teve mui-
tas formas no Brasil. Após a abolição Neste nosso trabalho, procuramos
propriamente dita começou a surgir na evitar a citação das fontes. Não é um
literatura, nos discursos políticos e no trabalho de pesquisa, de investigação
subconsciente coletivo a idéia do bom histórica ou sociológica. Está claro que
senhor. Sim, tivemos escravatura, mas se encontra implícita a citação de todos
no Brasil o patrão era bom, era um bom os que estudaram a dramática presença
senhor, a sinhazinha era boa, amiga de do negro nas Américas. Nossa primeira
suas escravas. Há outra forma mais sutil intenção era desmistificar o chamado
de castração da memória que essa de combate à discriminação por meio de
apagar a memória contra o estupro sofri- textos legais que nos outorgam direitos,
do? Ao bom senhor patriarcal sucedeu a negando-nos ao mesmo tempo instrumen-
sabedoria da lei que nos declarava iguais tos também legais para defender esses
ante a mesma lei e, em conseqüência, direitos. Nossos inalienáveis direitos hu-
estava abolida a discriminação. manos virão na medida em que sejamos
Nos perguntamos se, unidos na luta conscientes deles. Muito tem mudado
reivindicatória do negro os conceitos na observação desses direitos nestas três
164 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
últimas décadas. A nossa luta pedindo a rem reduzir essas manifestações à pura
igualdade real estava acompanhada pela artesania, ao folclore, às artes culinárias,
comovedora ação dos povos negro-afri- ao carnaval. Não que deixemos de achar
canos lutando contra os restos de colo- nessas manifestações campo propício e
nialismo e reivindicando a independência idôneo para que o indivíduo tenha sua
política. As lutas dos negros americanos realização, mas a raça tem uma men-
pela afirmação dos direitos civis foram sagem profunda, mensagem que hoje,
também a força eficaz que nos acompa- felizmente, está sendo explicitada.
nhava em nossa caminhada, e a presente Em terceira conseqüência de nossa
situação do negro, que, por exemplo, pode tese, devemos dizer que o negro não está
reunir-se num congresso livre, sem perigo fora do tempo histórico global. Nós, ne-
da medição de seu crânio, constitui já uma gros brasileiros, ou negros colombianos,
prova de que trilhamos a boa estrada da ou negros costarriquenhos, ou negros
valorização do negro. venezuelanos, ou negros habitantes de
Nossa segunda intenção neste tra- qualquer lugar desta América imensa,
balho é assinalar os inimigos que pro- temos um parentesco de sangue que
curam a abolição da memória do negro. não pode ser olvidado. O orgulho desse
Um dos inimigos é a miscigenação pela sangue negro o exibimos em todos os
miscigenação mesma. Um dos grandes momentos em que lutamos por nossos
sociólogos de meu país assinala, com direitos. O negro está hoje poderosa-
lucidez, que a miscigenação não signifi- mente inserido no tempo histórico e é
cava a ausência de preconceitos porque um de seus principais protagonistas. O
se desenrolava “num plano meramente grande sociólogo brasileiro Florestan
material e sexual e só excepcionalmente Fernandes disse alguma vez que “a partir
se associava a efeitos que implicavam do negro deverá se tentar descobrir como
na aceitação de alguns mestiços de o povo emerge na história”. Certamente,
brancos e negros como brancos”. Não o reconhecimento dos valores negros,
somos contra as interrelações, mas não do espírito negro, do sangue de nossa
num plano em que uns são mais iguais raça, da participação negra na construção
do que outros e em que a miscigenação social é o maior acontecimento desta
surge pela imposição subjetiva do mais metade do século XX. É válida como
igual. nunca, porque há milhões de negros neste
O resgate da memória do negro sig- ou noutro Continente, raiz da raça, que
nifica a valorização de sua contribuição se tornam conscientes de seu sangue, de
positiva no desenvolvimento da cultura seu espírito e de seus direitos.
e da arte. Na alma do negro correm
poderosas linhas de força criadora que * Sebastião Rodrigues Alves (1913-1985) foi assistente
social, militante da causa afro-brasileira, co-fundador
precisam da liberdade física e espiritual da Secretaria do Movimento Negro do PDT e sacerdote
para sua manifestação. Os inimigos dessa de Xangô. Seus livros incluem A ecologia social do
forma de memória são aqueles que que- afro-brasileiro (1957) e Sincretismo religioso (1982).
165
Abdias Nascimento e Ilena Teixeira em Todos os filhos de Deus têm asas, de Eugene O’Neill,
tradução de Ricardo Werneck de Aguiar. Teatro Fênix, Rio de Janeiro, 1946.
Comunicação apresentada na conferência
internacional Rompendo o Silêncio:
Violações dos Direitos Humanos no
Mundo Africano, organizada pelo African
Relief Committee in Canada, Afric, que se
realizou em Toronto, Canadá, entre 4 e 6
de outubro de 1991.
Violações dos
Direitos Humanos
É uma honra participar deste oportuno
no Mundo evento organizado pelo African Relief
Africano Committee in Canada. Antes de mais
nada, quero congratular os organizadores
da Conferência por seu conhecimento da
região que se refere a si mesma como
América “Latina”. Em grande parte por
causa dessa implícita rejeição de suas
populações africanas, o Brasil e as ou-
tras nações que constituem as Américas
Central e do Sul têm sido geralmente
excluídos da idéia popular sobre o que
constitui o mundo africano. Com efeito,
Abdias Nascimento nos Estados Unidos tenho sido freqüente-
Elisa Larkin Nascimento mente convidado a falar sobre “A Cultura
168 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
3
No Brasil e na América Espanhola, o ideal de branqueamento ganhou terreno como solução para
a mancha negra muito antes da abolição. Foi defendido já em 1627 por frei Alonso de Saldoval
e outros famosos opositores católicos da escravidão. José Antonio Saco, eminente historiador e
especialista em escravidão cubano do século XIX, exclamou: “ Não temos outro remédio senão
branquear, branquear, branquear!” Ver E. Nascimento, 1981, e A. Nascimento, 1980 e 1989, para
maiores detalhes.
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 171
6
Banco Mundial, Report on World Development, 1981. Documento das Nações Unidas sobre
distribuição de renda citado no Jornal do Brasil, agosto de 1991.
7
Seminário da Organização Mundial da Saúde, São Paulo, outubro de 1991.
8
Ibid. As diferenças de custo de vida nem chegam perto de compensar essas disparidades de níveis
de renda, de vez que os preços dos produtos básicos, como alimentos e transportes públicos, são
determinados pelo dólar. Por exemplo, tomando-se a média de seis diferentes cortes, o preço da
carne bovina no Rio de Janeiro é atualmente de 5,32 dólares por quilo.
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 173
9
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
lios (PNDA), 1985. In Comissão de Religiosos, Seminaristas e Padres Negros do Rio de Janeiro,
Ouvi o clamor deste povo: negro! (Petrópolis: Editora Vozes, 1988), p.28.
10
Usamos a definição padrão da categoria “negro” como a soma das categorias oficiais do censo,
preto e pardo.
11
Censo do IBGE. In Cone/SP, O futuro também precisa ser negro (São Paulo: Coordenadoria
Especial do Negro, Governo Municipal, 1991), p.3. Dezesseis por cento dos brancos, em compa-
ração com 26% dos negros, ganhavam menos que o salário mínimo, enquanto 4% dos brancos ,
em oposição a 1% dos negros, ganhavam mais de 10 vezes o mínimo.
12
Censo do IBGE, 1980. Mary Garcia Castro, “ Mulheres chefes de família, racismo, códigos de
idade e pobreza no Brasil (Bahia e São Paulo)”, Desigualdade racial no Brasil contemporâneo
(Rio de Janeiro: Cedeplar, 1991).
13
Trinta e cinco por cento das mulheres brancas, contra 40% dos homens negros, ganhavam
menos que o salário mínimo. IBGE, PNDA, 1983. Ibid, p.148.
174 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
14
Os dados citados nesse parágrafo foram extraídos do relatório anual do UNICEF, The World
Situation of Children, 1991
15
Esses dados de pesquisa foram confirmados pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas (IBASE).
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 175
nas regiões mais pobres do País. A fome e falsificam os fatos e geralmente levam
a diarréia são violentos assassinos de vantagem com a falta de acesso dessas
crianças em ambas as regiões, bem como comunidades ao apoio jurídico. Quando
nas áreas rurais do Brasil em geral. as comunidades resistem à ocupação de
suas terras, enviam-se jagunços. Um caso
O assassinato de líderes sindicais e
clássico desse processo é o de Cafundó,
trabalhadores rurais é de tal modo um
em São Paulo (Lavergne, 1980).
lugar-comum no Brasil que o clamor in-
ternacional sobre o caso de Chico Mendes Os trabalhadores rurais migrantes,
se torna um tanto irônico. Entre 1964 e no Brasil, são chamados de bóias-frias,
1986, registraram-se quase mil desses cri- nome remanescente de uma época em
mes16. Pode-se apenas especular sobre que a maioria podia levar consigo suas
o número de não-registrados, pois estes marmitas com o almoço. Esse tempo há
provavelmente constituem a maioria dos muito se foi, devido ao seu progressivo
homicídios no interior do País. empobrecimento.
A posse da terra, tal como a renda, No Brasil rural, não é incomum a es-
está escandalosamente concentrada nas cravidão. Pessoas famintas, afro-brasileiras
mãos de uma reduzida minoria. Uma das em sua quase totalidade, são induzidas a
principais causas de mortes violentas no trabalhar por comida. Elas abandonam
interior é a repressão aos camponeses sem seus lares e logo se vêem aprisionadas em
terras, que ocupam terras improdutivas, campos de trabalho forçado, com condições
ou até mesmo abandonadas, e depois são de vida comparáveis aos campos de con-
forçados a abandoná-las, às vezes por or- centração nazistas. Esses escândalos saem
dem judicial, mas em geral não. Jagunços nos jornais e são prontamente esquecidos.
(assassinos contratados por latifundiários) Quando se identificam os responsáveis,
são comumente empregados no assassi- a impunidade é efetivamente garantida
nato de trabalhadores rurais, sindicalistas por sua estreita identidade com os politi-
e ocupantes de terras, com quase absoluta camente poderosos, a polícia e o sistema
certeza de impunidade, pois os sistemas de judiciário.
polícia e de justiça estão nas mãos de seus
Quando os trabalhadores rurais chegam
chefes.
a ganhar salários, estes são insignificantes.
Existem terras legalmente garantidas a Esses trabalhadores são praticamente alija-
comunidades afro-brasileiras após a abolição, dos do sistema da previdência social. Me-
a fim de manter os ex-escravos nas proprie- eiros, trabalhadores migrantes, trabalha-
dades. Estas têm sido progressivamente dores rurais fixos e camponeses sem terra
tomadas por proprietários vizinhos, que constituem 74% da população rural17, e a
16
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ciência Hoje (suplemento), vol. 5,
nº 28 (janeiro-fevereiro de 1987), p.7.
176 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
17
Dados do Censo Agrícola/Agropecuário de 1970 e 1975 e Registro das Propriedades Graziano
da Silva, O que é a questão agrária (São Paulo: Editora Brasiliense, 1984). A progressiva con-
centração de renda e as desigualdades de posse da terra têm agravado significativamente esses
números desde 1976.
18
Brasil: Anistia Internacional. Documento. Londres: Anistia Internacional, 1991.
19
Estatísticas da Polícia Civil citadas na Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 1991.
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento 177
mais comum entre adultos21. Oitenta que, no ano 2000, superará o contingente
por cento de todos os homicídios são do Exército. O texto conclui que “(...)
cometidos contra adolescentes e jovens os poderes constituídos, Executivo, Le-
africanos de sexo masculino entre 15 e gislativo ou Judiciário, podem solicitar
18 anos de idade22. a colaboração das Forças Armadas no
Os assassinatos são cometidos por sentido de assumir a onerosa tarefa de
esquadrões da morte formados por poli- neutralizar e, com efeito, destruir [essas
ciais aposentados ou de folga, e também crianças], a fim de manter a lei e ordem”24
por seguranças privados. Ligados de per- .
to ao sistema judicial, que praticamente
lhes garante a impunidade, esses grupos Esterilização em massa de mulheres
são financiados, contratados ou pelo O Brasil é líder mundial em opera-
menos tolerados por comerciantes locais, ções cesarianas e na esterilização cirúr-
temerosos da ameaça que as crianças gica de mulheres 25. Os dois fenômenos
pobres representam à sua propriedade. guardam uma relação estreita: durante
Recentemente, quando o Ministro da a cesariana, a mulher tem as trompas
Saúde denunciou essa cumplicidade, o ligadas. O ramo brasileiro da Planned
presidente do Clube dos Diretores Lo- Parenthood, a Bemfam, e outras agências
jistas do Rio de Janeiro, Sílvio Cunha, financiadas pelos Estados Unidos foram
declarou literalmente: “Quando alguém denunciados por vítimas e por organi-
mata um pivetinho, está fazendo um zações de direitos humanos por realizar
favor à sociedade” 23. esterilizações e implantar DIUs sem o
Em 1989, a Escola Superior de Guer- consentimento esclarecido das mulhe-
ra publicou um documento que expressa- res26. Agências como a Associação para
va o mesmo sentimento: as crianças de a Esterilização Voluntária dão às clínicas
rua não são vistas como crianças, mas incentivos monetários, em dólares, para
como uma futura “horda de criminosos” cada esterilização realizada. Programas
20
IBASE, Universidade de São Paulo e Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua,
Relatório de 1991.
21
Anistia Internacional, op.cit.
22
IBASE, op.cit.
23
Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 1991.
24
1990-2000, a década vital por um Brasil moderno e democrático (Brasília: Escola Superior de
Guerra. 1989). Cit. in Jornal do Brasil, 19 de junho de 1991.
25
IBGE, PNDA 1986. Quarenta e nove por cento das mulheres brasileiras que usam consciente
ou inconscientemente a contracepção escolhem a esterilização, e 16% de todas as brasileiras em
idade fértil estão esterilizadas.
26
“ Esterilização: uma arma política”, Cadernos do Terceiro Mundo, nº 141 (julho de 1991). Os
dados seguintes foram extraídos desse artigo e são corroborados por diversas fontes.
178 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
27
As outras nações relacionadas são Índia, Bangladesh, Paquistão, Nigéria, México, Indonésia,
Filipinas, Tailândia, Egito, Turquia, Etiópia e Colômbia. Executive Intelligence Review, Special
Memorandum, Rio de Janeiro, 1991.
Violações dos Direitos Humanos no mundo africano
Abdias Nascimento e Elisa Larkin Nascimento
179
28
Para maiores detalhes sobre as políticas expansionistas brasileiras, ver E. Nascimento, 1980.
180 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
Bibliografia
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dade racial no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Cedeplar, 1991.
Iniciativas Em ofício da Secretaria Extraordinária
de Defesa e Promoção das Populações
Antidiscriminação Negrassolicita-se ao então governador do
Rio de Janeiro, Leonel Brizola, que se crie
Racial uma Delegacia Especializada em Crimes
Raciais.
o manto ideológico, mesmo que puído e mente utilizados por empresas de todos os
esburacado, proporcionado pelo mito da níveis com o objetivo de impedir o acesso
“democracia racial”. Salário, instrução, de afro-brasileiros a determinadas posi-
mortalidade infantil, expectativa de vida – ções no mercado de trabalho, o que levou
todos os indicadores pertinentes mostram a Organização Internacional do Trabalho a
os negros (“pretos e “pardos”, segundo o denunciar o Brasil, no ano passado, como
IBGE) em situação de marcante inferio- violador da sua Convenção 111, que trata
ridade em relação aos brancos. Para não justamente da discriminação no mercado
falar dos aspectos ditos “subjetivos”, como de trabalho.
o sentimento de exclusão que uma criança
Em 1988, com a Lei Caó, a prática
vivencia ao freqüentar uma escola onde
do racismo passa de contravenção penal
não encontra espelhos positivos para ver
a crime inafiançável e imprescritível, sem
refletida sua imagem ou ao ligar um apare-
reflexo, porém, na forma de se lidar com
lho de TV e descobrir que a Escandinávia
esse delito nas delegacias e tribunais.
fica aqui mesmo.
Neste momento, esta Secretaria está
É possível facilmente constatar o
organizando um Fórum sobre Cidadania
crescimento assustador dos fatos racistas
e Racismo, em conjunto com o Instituto
e discriminatórios registrados pela mídia
dos Advogados Brasileiros, cujo alvo é
nos últimos meses, a ponto de se poder
o de elaborar sugestões ao Congresso
afirmar que toda a estrutura dominante
Nacional no sentido de aperfeiçoar os
atua sincronizada no rumo de derrogar
instrumentos jurídicos de combate ao
os direitos civis e humanos da população
racismo e à discriminação racial.
de origem africana. Do ponto de vista ju-
rídico, até muito recentemente os únicos Recente tese de mestrado mostra a
dispositivos “raciais” de nossa legislação diferença de tratamento entre negros e
eram de caráter antinegro – aqueles de brancos na situação de réus. Além de ser
não-brancos, posteriormente relaxadas agravante para quem comete um delito,
para permitir a entrada de asiáticos. A a cor negra da pele é atenuante para o
aprovação, em 1951, da chamada Lei agressor quando a vítima a ostenta. Isso
Afonso Arinos, longe de significar uma explica a dificuldade de encontrarmos
ruptura com a prática racista até então alguém que tenha sido condenado por
vigente, apenas estruturou novas formas esse crime, ainda que ele ultimamente
de justificativa para os seus perpetradores. freqüente todos os dias as páginas dos
Critérios subjetivos, como a famigerada jornais. São delegados, escrivães e outros
exigência de “boa aparência” até mesmo agentes da polícia que, por desconheci-
para ocupações sem contato com o públi- mento da legislação, aliado à deformação
co, ou supostamente “objetivos”, como profissional, tratam de descaracterizar a subs-
a realização de entrevistas e testes ditos tância racial desses delitos, quando não,
“psicológicos”, passaram a ser ampla- simplesmente, desestimulam as vítimas
Iniciativas antidiscriminatórias
Abdias Nascimento, Leonel Brizola 185
a dar seqüência aos processos, por vezes até de insensibilizada por um racismo que a im-
maneira coercitiva. pede de perceber, e ainda mais de traduzir,
Tal como ocorre com a mulher, a realidade que se apresenta diante de seus
submetida a constrangimentos e coações olhos. Com pessoal especializado, isento
ao apresentar queixa de estupro, o afro- dos vícios originados de uma prática distor-
-brasileiro também se vê obrigado a enfren- cida sistemática, a Delegacia Especializada
tar obstáculos adicionais, nas delegacias, em Crimes Raciais, que informalmente
quando ousa desafiar as normas da tradição já conta com aprovação do Secretário de
e denuncia as agressões raciais de que é Polícia Civil, Dr. Nilo Batista, constituiria
vítima. No Estado do Rio de Janeiro, além um marco histórico na luta pela efetiva
da Lei nº 1814, de 24-4-91, que pune a emancipação dos descendentes de africanos
discriminação nas empresas e no servi- no país mais africano fora da África.
ço públicos, foi criada no mesmo ano a Certos de contar com a compreensão
Secretaria Extraordinária de Defesa e de Vossa Excelência para este pleito da
Promoção das Populações Negras, que, mais alta significação para a Comunidade
no que se refere à discriminação racial,
Afro-Brasileira, subscrevo-me.
recebe, encaminha e acompanha denún-
cias, a par de um trabalho educativo com
Atenciosamente,
as Polícias Militar e Civil, voltado espe-
cialmente para os centros de formação
e aperfeiçoamento de policiais. Mesmo
dotada de um corpo jurídico treinado na ABDIAS DO NASCIMENTO
árdua batalha de dar conseqüência aos Secretário Extraordinário de Defesa e
casos que lhe chegam às mãos, a Sede- Promoção das Populações Negras
pron tem esbarrado nos mesmos obstá-
culos encontrados pelo cidadão comum
No Decreto do Poder Executivo transcrito a
afro-brasileiro em seu confronto com a
seguir, o governador do Rio de Janeiro Leonel
discriminação e a humilhação raciais,
Brizola cria a Delegacia Especializada para
dentre os quais sobressai a atuação dos Discriminação Racial.
responsáveis pelo registro das queixas
nas delegacias.
Decreto nº 19.585 de 26 de janeiro de 1994.
Dessa forma, como medida de
caráter compensatório, corretivo e para- Cria, na estrutura do Departamento Geral
digmático, a criação de uma Delegacia de Polícia Especializada, da Secretaria de
Especializada em Crimes Raciais é ins- Estado da Polícia Civil, a Delegacia Espe-
trumento de valor inestimável na busca cializada para Discriminação Racial – DDR.
de meios concretos para se transformar a
legislação, de letra morta, em mecanismo O Governador do Estado do Rio de
eficiente de reeducação de uma sociedade Janeiro, no uso de suas atribuições legais,
186 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
LEONEL BRIZOLA
Governador do Estado do Rio de Janeiro
189
Ruth de Souza e Abdias Nascimento em ensaio da peça Calígula, de Albert Camuns, tradução de Gerardo Mello Mourão. Teatro Ginástico, Rio de Janeiro, 1949.
Proposta Revisional nº 8583-6 à Constitui-
ção Federal, de 1988, apresentada pelo
deputado Florestan Fernandes sob o título
VIII – Da Ordem Social – Capítulo IX.
Capítulo Art...
Constitucional:
São compreendidos como negros os
dos Negros indivíduos e cidadãos que se consideram
como tal e os que, por estigmatização,
são tratados como “negros” e “pessoas
de cor”.
§ 1º Portadores de uma herança cul-
tural rica e variável, vêem-se privados
de seus padrões, instituições e valores
sociais por pressão fragmentadora do
ambiente. É direito dos negros e dever do
Estado proteger essa vasta herança cul-
tural, em seu sentido histórico e em sua
função diferenciadora das comunidades
negras.
Florestan Fernandes *
§ 2º Eles são proprietários de faixas
descontínuas de terra, com freqüência
192 THOTH 1/ abril de 1997
Depoimentos
seu conteúdo. Neste texto, vamos abor- mais importante, incorporam, preservam
dar algumas dessas dimensões, tecendo e transmitem aspectos da história, filoso-
considerações a respeito de distorções fia, e valores e normas socioculturais do
históricas que perpetuam os estereótipos povo de Gana”.
anti-africanos.
De acordo com a história oral, o
Filosofia e história no simbolismo do sistema dos adinkra tem origem numa
Sankofa guerra que o Asantehene Osei Bonsu,
rei dos asante, fez contra o rei Kofi
O ideograma sankofa pertence a um Adinkra de Gyaaman, região da Costa do
conjunto de símbolos gráficos de origem Marfim. Este teve a audácia de copiar o
akan chamado adinkra. Cada ideograma, banco real do Asantehene, o gwa, e assim
ou adinkra, tem um significado comple- provocou a ira do poderoso soberano.
xo, representado por meio de ditames ou Vencida a guerra, a arte dos adinkra
fábulas que expressam conceitos filosó- foi dominada pelos asante, passando a
ficos. Segundo um texto gentilmente ampliar ainda mais o espaço geográfico
fornecido pela Embaixada da República em que impunha sua presença. Desde
de Gana no Brasil e publicado pelo antes, havia sido patrimônio dos mallam
Centro Nacional de Cultura, localizado e dos denkyira, outros povos da África
em Kumasi, capital do povo asante, o Ocidental que desenvolveram a técnica
ideograma sankofa significa “voltar e no passado remoto.
apanhar de novo. Aprender do passado,
construir sobre as fundações do passado. O sankofa pertence, então, a um
Em outras palavras, volte às suas raízes antigo sistema de escrita africano. A
e construa sobre elas para o desenvolvi- importância desse fato é imensurável
mento, o progresso e a prosperidade de quando consideramos que o academi-
sua comunidade em todos os aspectos da cismo convencional nega à África a
realização humana”. sua historicidade, classificando-a como
pré-histórica, com base na alegação do
Tradicionalmente, os adinkra são es- que seus povos nunca desenvolveram
tampados com tinta vegetal em tecido de sistemas de escrita. Entretanto os afri-
algodão. Adinkra significa adeus, e esse canos estão entre os primeiros povos a
tecido é usado em ocasiões fúnebres ou desenvolver a escrita. Além dos hieró-
festivais de homenagem, para despedir- glifos egípcios, existem inúmeros siste-
-se do falecido. O adinkra já se tornou mas de escrita desenvolvidos por povos
uma arte nacional ganense, somando africanos antes da invasão muçulmana,
mais de 60 símbolos, destacados pelo que introduziria a escrita árabe.
conteúdo que trazem seus ideogramas.
Conforme o mesmo texto do Centro Há várias tipos de sistema de escrita:
Nacional de Cultura de Kumasi: “Não pictográficos, ideográficos, fonológicos
só os desenhos do adinkra são estética (alfabético ou silábico), e também a es-
e idiomaticamente tradicionais, como, crita por meio de objetos. Na África,
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 201
O SIMBOLISMO DO ADINKRA
ADINKRA
ADINKRA
Obi nka obi (Não mordam um Akoko nan tiaba na enkin ba.
ou outro). Evite os conflitos. A galinha que pisa no seu pinto
Símbolo de unidade. não o mata. Ver o emblema no
bastão do lingüista no respec-
tivo quadro.
DJAYOBWE
bronze utilizados para pesar mercadorias, sal e ouro. Trazem mensagens paralelas àquelas do
adinkra, dos gwa e dos bastões de lingüistas. Muitas vezes, a simbologia é relacionada a provérbios
representados pelos animais que envolvem. No exemplo abaixo, os dois crocodilos dividem um
estômago e logo aprendem que, ao brigar entre si, ficam os dois com fome. É o símbolo, também
representado no adinkra, da necessidade de unidade, sobretudo quando os destinos se confundem.
(Foto do djayobwe reproduzido do catálogo Coleção arte africana do Museu Nacional de Belas-
-Artes (1983: 28).
GWA
(o banco do rei)
O banco do rei simboliza a autoridade do Estado, representando o poder político. Existem tantos
bancos quanto chefes tradicionais, muitos deles proverbiais, conforme as ilustrações exemplificam.
O mais famoso dos bancos reais é o Sika Gwa Kofi, o banco dourado, que teria sido invocado do
céu por Okomfo Anokye, sacerdote principal de Osei Tutu, então Asantehene, rei dos Asante. Seu
furto pelos ingleses foi o motivo das Guerras de Asante, que perduraram por quase um século.
Sankofa Gwa – Tem o mesmo significado Adinkra Gwa – Banco do rei Adinkra,
que o respectivo ideograma: nunca é tarde soberano de Gyaman, que transmitiu o sis-
para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás. O tema simbólico dos ideogramas aos Asante.
pássaro com a cabeça voltada para trás consiste
no símbolo desse provérbio. Provavelmente,
o desenho do ideograma seja uma estilização
desse pássaro, representado também no bastão
do lingüista (ver quadro a seguir).
206 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
BASTÃO DO LINGÜISTA
Ilustração da cirurgia descrita pelo Dr. Felkin no Edinburgh Medical Journal de 1884.
Desenho de Sylvia Bakos, publicado em Van Sertima, Blacks in science (1985: 152-153.)
Fechamento de ferida pós-cesariana feita pelos africanos banyoro em 1879, e a faca utilizada na
cesária descrita por Felkin em 1879. Desenho de Sylvia Bakos, publicado em Van Sertima, Blacks
in science (1985: 152-153.)
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 211
À esquerda, um desenho feito pelos dogon, na areia, da órbita de Sírio B (PoTolo) em torno de Sírio: à direita, um desenho astronômico
moderno.
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 213
O GRANDE ZIMBÁBUE
Parte do muro do complexo urbano do Grande Zimbábue. Na arquitetura desse complexo monu-
mental, da mesma forma que naquela dos sítios históricos do Peru, como Macchu Picchu e Cuzco,
as pedras são colocadas uma em cima da outra, sem cimento. Foto: Diop, 1974: 173.
Sankofa: Resgatando a cultura afro-brasileira
Elisa Larkin Nascimento 215
As mulheres retratadas são do oásis Bordai, região do Tebesti, Chade. Exemplificando o discurso
dos estudiosos europeus sobre a África do Norte, Emil Schulthess (1958: 22-23) as descreve as-
sim: “Embora não sejam negras, muitas têm a pele escura e traços negróides”. Fonte: Chandler,
in Van Sertima, 1985: 169-170.
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Sankofa: Memória e Resgate
uma renascença intelectual de grandes o ser humano dos outros animais. Dessa
proporções na Europa (ver ilustrações forma, o seccionamento da África e a
apresentadas por Chandler, 1985; Van escamoteação da história das civilizações
Sertima, 1985). subsaaranas impõem-se como dois eixos
fundamentais à formulação das teorias
Complementando a imagem do
racistas antiafricanas.
africano do Norte como branco semítico,
formulou-se ainda a teoria da raça “ha- A história da região saariana nos ofe-
mítica” ou “vermelho-escura”, distinta rece uma imagem bem distinta daquela
dos africanos negros, que teria criado as que a separa do restante do continente.
civilizações clássicas núbia e egípcia. Durante milênios, o Saara era verde e
Alternativamente, postulam-se grupos habitado por gente africana negra que iria
dominantes não-negros, invasores do encontrar-se, no decorrer de migrações
Nordeste africano, como responsáveis rumo ao vale do rio Nilo, com popula-
pela construção das civilizações antigas ções originárias da África Central. Jun-
daquela região e do Sudeste Asiático. tos, esses povos africanos iriam formar a
Cheikh Anta Diop (1974) comprova base demográfica da civilização clássica
cientificamente a inexistência dessa núbio-egípcia. Mesmo depois do período
“raça páleo-mediterrânea branca a quem verde, o Saara sempre foi habitado por
devemos todas as civilizações humanas, gente “subsaariana”, ou seja, africanos
inclusive a egípcia”, oferecendo farta negros.
documentação gráfica da verdadeira A divisão da África pelo Saara trans-
feição, negra, dos autores africanos da mite a noção errônea do deserto como
civilização egípcia. uma barreira intransponível, capaz de
Atribuindo a um povo supostamente isolar os povos subsaarianos do rumo
branco, não africano, o progresso civi- da história vivida no norte do continen-
lizatório da África do Norte, nega-se à te. Entretanto o fluxo de comerciantes,
África subsaariana o seu protagonismo viajantes e migrantes através do Saara,
na construção de civilizações e avanços nos dois sentidos, caracterizou um inter-
científico-tecnológicos. Apaga-se das câmbio ativo, constante, entre os povos
páginas da história humana a memória ao norte e ao sul do deserto.
de grandes centros urbanos caracteri- O ideograma sankofa também sim-
zados pela erudição e pela sofisticada boliza essa verdade, na medida em que os
organização política de Estados e im- povos akan, seus criadores, são originá-
périos soberanos como Mali, Songai, rios exatamente da região saariana, e há
Gana, Quíloa, Zimbábue e tantos outros. evidências extensas de que eles constitu-
Estabelecida a imagem da África negra am uma espécie de elo etno-histórico en-
“selvagem”, nega-se aos seus povos a tre o Egito clássico e a África Ocidental.
própria condição humana, uma vez que De acordo com Molefi Asante (1990),
o desenvolvimento da cultura diferencia os adinkra e os djayobwe, bem como o
220 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
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224 THOTH 1/ abril de 1997
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225
Elenco da peça O filho pródigo, de Lúcio Cardoso. Da esquerda para a direita: Roney da Silva
(Moab), Ruth de Souza (Aila), Abdias Nascimento (Pai), José Maria Monteiro (Assur), Aguinaldo
Camargo (Manassés) e Marina Gonçalves (Selene). Teatro Ginástico, Rio de Janeiro, 1947.
Várias interrogações suscitaram ao
meu espírito a tragédia daquele negro
infeliz que o gênio de Eugene O’Neill
transformou em O imperador Jones.
Isso acontecia no Teatro Municipal de
Lima, capital do Peru, onde me encon-
trava com os poetas Efraín Tomás Bó,
Teatro Godofredo Tito Iommi e Raul Young,
argentinos, e o brasileiro Napoleão
Experimental Lopes Filho. Ao próprio impacto da
peça juntava-se outro fato chocante: o
do Negro: papel do herói representado por um ator
branco tingido de preto.
Trajetória
Àquela época, 1941, eu nada sabia de
e Reflexões * teatro, economista que era, e não possuía
qualificação técnica para julgar a qualida-
de interpretativa de Hugo D’Evieri. Po-
rém algo denunciava a carência daquela
força passional específica requerida pelo
texto, e que unicamente o artista negro
poderia infundir à vivência cênica desse
protagonista, pois o drama de Brutus
Abdias Nascimento
Jones é o dilema, a dor, as chagas exis-
228 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
Por que um branco brochado de ne- Devemos ter em mente que até o
gro? Pela inexistência de um intérprete aparecimento de Os Comediantes e de
dessa raça? Entretanto lembrava que, Nélson Rodrigues, que procederam à
em meu País, onde mais de 20 milhões nacionalização do teatro brasileiro em
de negros somavam a quase metade de termos de texto, dicção, encenação e
sua população de cerca de 60 milhões impostação do espetáculo, nossa cena
de habitantes, na época, jamais assistira vivia da reprodução de um teatro de
a um espetáculo cujo papel principal marca portuguesa que em nada refletia
tivesse sido representado por um artista uma estética emergente de nosso povo e
da minha cor. Não seria, então, o Brasil de nossos valores de representação. Essa
uma verdadeira democracia racial? Mi- verificação reforçava a rejeição do negro
nhas indagações avançavam mais longe: como personagem e intérprete, e de sua
na minha Pátria, tão orgulhosa de haver vida própria, com peripécias específicas
resolvido exemplarmente a convivência no campo sociocultural e religioso, como
entre pretos e brancos, deveria ser normal temática da nossa literatura dramática.
a presença do negro em cena, não só em Naquela noite em Lima, essa cons-
papéis secundários e grotescos, confor- tatação melancólica exigiu de mim uma
me acontecia, mas encarnando qualquer resolução no sentido de fazer alguma
personagem – Hamlet ou Antígona –, coisa para ajudar a erradicar o absurdo
desde que possuísse o talento requerido. que significava para o negro e os prejuízos
Ocorria de fato o inverso: até mesmo um de ordem cultural para o meu País. Ao
Imperador Jones, se levado aos palcos fim do espetáculo, tinha chegado a uma
brasileiros, teria necessariamente o de- determinação: no meu regresso ao Brasil,
sempenho de um ator branco caiado de criaria um organismo teatral aberto ao pro-
preto, a exemplo do que sucedia desde tagonismo do negro, onde ele ascendesse
sempre com as encenações de Otelo. da condição adjetiva e folclórica para a
Mesmo em peças nativas, tipo Demônio de sujeito e herói das histórias que repre-
familiar (1857), de José de Alencar, ou sentasse. Antes que uma reivindicação
Iaiá Boneca (1939), de Ernani Fornari, ou um protesto, compreendi a mudança
em papéis destinados especificamente pretendida na minha ação futura como
a atores negros se teve como norma a a defesa da verdade cultural do Brasil
exclusão do negro autêntico em favor do e uma contribuição ao Humanismo que
negro caricatural. Brochava-se de negro respeita todos os homens e as diversas
um ator ou atriz branca quando o papel culturas com suas respectivas essenciali-
contivesse certo destaque cênico ou al- dades. Não seria outro o sentido de tentar
guma qualificação dramática. Intérprete desafiar, desmascarar e transformar os
negro só se utilizava para imprimir certa fundamentos daquela anormalidade ob-
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 229
jetiva dos idos de 1944, pois dizer Teatro de São Paulo, em 1922, sempre evitaram
genuíno – fruto da imaginação e do poder até mesmo mencionar o tabu das nossas
criador do homem - é dizer mergulho nas relações raciais entre negros e brancos,
raízes da vida. E vida brasileira excluindo bem como o fenômeno de uma cultura
o negro de seu centro vital, só por cegueira afro-brasileira à margem da cultura con-
ou deformação da realidade. vencional do País.
Polidamente rechaçada pelo então
Fundação e estréia do TEN festejado intelectual mulato Mário de
Andrade, de São Paulo, minha idéia
Engajado a esses propósitos, surgiu de um Teatro Experimental do Negro
em 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro recebeu as primeiras adesões: o advo-
Experimental do Negro, ou TEN, que gado Aguinaldo de Oliveira Camargo,
se propunha resgatar, no Brasil, os companheiro e amigo desde o Congresso
valores da pessoa humana e da cultura Afro-Campineiro que realizamos juntos
negro-africanas, degradados e negados em 1938; o pintor Wilson Tibério, há
por uma sociedade dominante que, desde tempos radicado na Europa; Teodorico
os tempos da colônia, portava a bagagem dos Santos e José Herbel. A esses cinco,
mental de sua formação metropolitana se juntaram logo depois Sebastião Ro-
européia, imbuída de conceitos pseudo- drigues Alves, militante negro; Arinda
-científicos sobre a inferioridade da raça Serafim, Ruth de Souza, Marina Gonçal-
negra. Propunha-se o TEN trabalhar pela ves, empregadas domésticas; o jovem e
valorização social do negro no Brasil por valoroso Claudiano Filho; Oscar Araújo,
meio da educação, da cultura e da arte. José da Silva, Antonieta, Antonio Barbo-
Pela resposta da imprensa e de sa, Natalino Dionísio e tantos outros.
outros setores da sociedade, constatei,
Teríamos que agir urgentemente em
aos primeiros anúncios da criação desse
duas frentes: promover, de um lado, a
movimento, que sua própria denomi-
denúncia dos equívocos e da alienação
nação surgia em nosso meio como um
dos chamados estudos afro-brasileiros,
fermento revolucionário. A menção
e fazer com que o próprio negro tomas-
pública do vocábulo “negro” provocava
se consciência da situação objetiva em
sussurros de indignação. Era previsível,
que se achava inserido. Tarefa difícil,
aliás, esse destino polêmico do TEN,
quase sobre-humana, se não esquecer-
numa sociedade que há séculos tentava
mos a escravidão espiritual, cultural,
esconder o sol da verdadeira prática do
socio-econômica e política em que foi
racismo e da discriminação racial com a
mantido antes e depois de 1888, quando
peneira furada do mito da “democracia
teoricamente se libertara da servidão.
racial”. Mesmo os movimentos culturais
aparentemente mais abertos e progres- A um só tempo o TEN alfabetizava
sistas, como a Semana de Arte Moderna seus primeiros participantes, recrutados
230 THOTH 1/ abril de 1997
Claudiano Filho e Ruth de Souza em Aruanda, de Joaquim Ribeiro. Teatro Ginástico, Rio de
Janeiro, 1948.
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 233
will be negro dramatists of real merit entre eles o fotógrafo José Medeiros, o
to overcome this lack.* diretor teatral Willy Keller, o cenógrafo
Santa Rosa, o diretor Léo Jusi, assim
como o ator Sady Cabral, que encarnou
Essa generosa adesão e lúcido con-
o Smithers de O imperador Jones.
selho tiveram importância decisiva em
nosso projeto. Transformaram o total de-
Sob intensa expectativa, a 8 de maio
samparo das primeiras horas em confiança
de 1945, uma noite histórica para o teatro
e euforia. Ajudaram que nos tornássemos
brasileiro, o TEN apresentou seu espetá-
capazes de suprir com intuição e audácia
culo fundador. O estreante ator Aguinal-
o que nos faltava em conhecimento de
do Camargo entrou no palco do Teatro
técnica teatral e em recurso financeiro Municipal do Rio de Janeiro, onde antes
para enfrentar as inevitáveis despesas nunca pisara um negro como intérprete
com cenários, figurinos, maquinistas, ou como público, e numa interpretação
eletricistas, contra-regra. Encontramos inesquecível viveu o trágico Brutus Jones
em Aguinaldo de Oliveira Camargo a de O’Neill. Na sua unanimidade, a crítica
força dramática capaz de dimensionar saudou entusiasticamente o aparecimento
a complexidade psicológica de Brutus do Teatro Experimental do Negro e do
Jones. Ricardo Werneck de Aguiar nos grande ator negro Aguinaldo Camargo,
ofereceu uma excelente tradução. Os comparando-o em estatura dramática a
mais belos e menos onerosos cenários Paul Robeson, que também desempenhou
que poderíamos pretender foram criados o mesmo personagem nos Estados Unidos.
pelo pintor Enrico Bianco, os quais se Henrique Pongetti, cronista de O Globo,
tornaram clássicos no teatro brasileiro. A registrou: “Os negros do Brasil – e os
colaboração desses dois amigos brancos brancos também – possuem agora um
do teatro negro iniciou uma tradição que grande ator dramático: Aguinaldo de Oli-
depois se consolidaria com a ação soli- veira Camargo. Um antiescolar, rústico,
dária de muitos outros amigos do TEN, instintivo grande ator.”
* “O senhor tem a minha permissão para encenar O imperador Jones isento de qualquer direito
autoral, e quero desejar ao senhor todo o sucesso que espera com o seu Teatro Experimental do
Negro. Conheço perfeitamente as condições que descreve sobre o teatro brasileiro. Nós tínhamos
exatamente as mesmas condições em nosso teatro antes de O imperador Jones ser encenado em
Nova York em 1920 – papéis de qualquer destaque eram sempre representados por atores brancos
pintados de preto. (Isso, naturalmente, não se aplica às comédias musicadas ou ao vaudeville, onde
uns poucos negros conseguiram grande sucesso.) Depois que O imperador Jones, representado
primeiramente por Charles Gilpin e mais tarde por Paul Robeson, fez um grande sucesso, o caminho
estava aberto para o negro representar dramas sérios em nosso teatro. O principal impedimento
agora é a falta de peças, mas creio que logo aparecerão dramaturgos negros de real mérito para
suprir essa lacuna.”
235
Fernando Araújo (Jeff) e Aguinaldo Camargo (Brutus Jones) em O imperador Jones, peça de Eugene
O’Neill. Produção de estréia do TEN no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 8 de maio de 1945.
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 237
outra coisa é o seu até então oculto co- da Silva, O filho pródigo foi considerada
ração, isto é, o negro desde dentro. A por alguns críticos como a maior peça do
experiência de ser negro num mundo ano teatral. Em seguida, o TEN montou
branco é algo intransferível. Aruanda, outro texto especialmente
Enquanto não dispunha dessa li- criado para ele, escrito por Joaquim
teratura dramática específica, o TEN Ribeiro. Trabalhando elementos folcló-
continuou trabalhando. Ao Imperador ricos da Bahia, o autor expõe de forma
Jones seguiram-se outros textos de tosca a ambivalência psicológica de uma
O’Neill, a começar por Todos os filhos mestiça e a convivência dos deuses afro-
de Deus têm asas, encenado em 1946 -brasileiros com os mortais.
no Teatro Fênix, com cenários de Mário Nossa encenação compôs um es-
de Murtas. Trocando de lugar comigo, petáculo integrado organicamente, com
Aguinaldo Camargo assumiu, dessa vez, dança, canto, gesto, poesia dramática,
a direção dos intérpretes Ruth de Souza, fundidos e coesos harmonicamente.
Abdias do Nascimento, Ilena Teixeira e Usamos música de Gentil Puget e pon-
José Medeiros. Cristiano Machado, do tos autênticos recolhidos dos terreiros
Vanguarda, comentou na sua crítica que de candomblé. O resultado mereceu do
“Não basta apenas representar O’Neill; poeta Tasso da Silveira este julgamento:
o autor de Todos os filhos de Deus têm “É um misto curioso de tragédia, opereta
asas exige que o saibam representar. e ballet. O texto propriamente dito cons-
Foi o que aconteceu no espetáculo a que titui, por assim dizer, simples esboço:
assistimos no Fênix”. Mais tarde, o TEN umas poucas situações esquemáticas,
ainda produziu, de Eugene O’Neill, O uns poucos diálogos cortados, e o resto é
moleque sonhador e Onde está marcada música, dança e canto. Acontece, porém,
a cruz. que com tudo isso, Aruanda resulta numa
realização magnífica de poesia bárbara”.
Literatura dramática negro-brasileira
Quando terminou a temporada de
Aruanda, as dezenas de tamboristas,
No seguinte ano de 1947, houve,
cantores e dançarinos organizaram outro
afinal, o encontro com o primeiro texto
grupo para atuar especificamente nesse
brasileiro escrito especialmente para o
campo. Depois de usar vários nomes,
TEN: O filho pródigo, um drama poético
esse conjunto se tornaria famoso e co-
de Lúcio Cardoso, inspirado na parábola
nhecido como a Brasiliana, havendo
bíblica. Com cenário de Santa Rosa, o
percorrido quase toda a Europa durante
artista que renovou a arte cenográfica
cerca de 10 anos consecutivos.
do teatro brasileiro, e interpretação
principal de Aguinaldo Camargo, Ruth Há um autor que divide o Teatro
de Souza, José Maria Monteiro, Abdias Brasileiro em duas fases: a antiga e a
do Nascimento, Haroldo Costa e Roney moderna. É Nelson Rodrigues. Dele é
Teatro Experimental do Negro
Abdias Nascimento 239
Anjo negro, peça que focaliza sua trama que depois do espetáculo o Ismael, fora
no enlace matrimonial de um preto com do palco e na companhia de outros ne-
uma branca. Ismael e Virgínia se erguem gros, saísse pelas ruas caçando brancas
como duas ilhas, cada qual fechada e para violar...
implacável no seu ódio. A cor produz a Dir-se-á uma anedota. Entretanto
anafilaxia que deflagra a violenta ação não existe nem ironia nem humorismo.
dramática e reduz os esposos à condi- É fato que, aliás, se repetiu por ocasião
ção de inimigos irremediáveis. Virgínia da montagem de Pedro Mico, de Antonio
assassina os filhinhos pretos; Ismael Callado. A imprensa refletiu a apreensão
cega a filha branca. É a lei de talião co- de certas classes, achando possível a
brando vida por vida, crime por crime. população do morro entender a repre-
São montros gerados pelo racismo que sentação em termos de conselho à ação
tem nessa obra sua mais bela e terrível direta. Os favelados, a imensa maioria
condenação. Ismael responde: “ Sempre de negros, desceriam dos morros para
tive ódio de ser negro”, quando a Tia o agressões à moda Pedro Mico que, por
adverte sobre a mulher: “ Traiu você para seu turno, deseja reeditar os feitos de
ter um filho branco”. Prisioneira das Zumbi dos Palmares. Antonio Callado
muralhas construídas pelo marido para realizou obra da maior importância,
afastá-la do desejo de outros homens, sacrificada na montagem do Teatro Na-
Virgínia ameaça: “ Compreendi que o cional de Comédia (órgão do Ministério
filho branco viria para me vingar. De ti, da Educação e Cultura) pela caricatu-
me vingar de ti e de todos os negros”. ral figura betuminosa do Pedro Mico,
Infelizmente, a encenação de Anjo ressalvando-se a excelente categoria do
negro (1946) não correspondeu à auten- ator Milton Morais.
ticidade criadora de Nelson Rodrigues. Recentemente, em 1994, houve
O diretor Ziembinski adotou o critério de uma encenação de Anjo negro livre dos
supervalorizar esteticamente o espetácu- ditames da censura institucionalizada e
lo, em prejuízo do conteúdo racial. Foi dotada com a feliz participação de atores
usada a condenável solução de brochar e atrizes negros como Léa Garcia, Jacyra
um branco de preto para viver no palco Silva, Ruth de Souza, Antonio Pompeo.
o Ismael. Tal fato estava intimamente Entretanto mais uma vez o conteúdo da
ligado a outro: Anjo negro teve muita peça foi preterido, agora em favor da
complicação com a censura. Escolhida dimensão erótico-sensual. Houve até
a peça para figurar no repertório de tem- cortes de texto na tentativa de esvaziar
porada oficial do Teatro Municipal do a questão racial, verdadeiro âmago da
Rio de Janeiro, impuseram as autoridades obra, abordada pelo gênio de Nelson de
uma condição: que o papel principal de forma tão contundente que dificilmente
Anjo negro fosse desempenhado por um a sociedade brasileira, até hoje, consegue
branco pintado. Temiam, naturalmente, compreendê-la.
240 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
primordial sentido era o de marcar o mo- das letras brasileiras e diretor da revista
mento da conquista da independência dos literária Verde de Cataguazes, escreveu
países africanos com uma homenagem para o Teatro Experimental do Negro, em
ao papel de sua cultura, mundialmente 1946, o seu Auto da noiva, Farsa em um
difundida, como catalisadora do processo ato (prólogo e quatro quadros). Delicio-
libertário – pois era exatamente nesse sa paródia crítica da perversa ideologia
sentido que o TEN trabalhava a cultura da “democracia racial” brasileira, o Auto
negra no Brasil. da noiva não chegou a ser encenado no
Entretanto o Festival era um acon- Brasil, embora o TEN tenha trabalhado
tecimento patrocinado pela UNESCO, o texto em várias leituras e ensaios. Foi
organismo intergovernamental, e as ges- apenas em 1974, na distante cidade norte-
tões para a participação das delegações -americana de Bloomington, Indiana, que
eram feitas por meio de canais oficiais. a universidade daquele Estado produziu
O Governo brasileiro desmereceu o a peça em português. Tive a alegria de
trabalho do TEN enquanto manifesta- assistir à encenação, levada com muita
ção de arte negra digna de patrocínio competência pelos alunos do Departa-
para participar do evento. Historiando o mento de Línguas e Letras Românicas.
episódio da intolerância racial do nosso Ironides Rodrigues, literato auto-
Ministério do Exterior, omitindo o TEN didata e homem culto da comunidade
da delegação brasileira, escrevemos uma afro-brasileira, escreveu uma Sinfonia da
“Carta Aberta” dirigida aos participantes favela, encenada por um grupo amador
do Festival, à UNESCO, e ao Governo carioca na década de 1950. Também nos
da República do Senegal, publicada em deu sua versão de Orfeu negro.
1966 nas revistas Présence Africaine
De minha autoria, surge em 1952
(Paris/Dacar, Vol. 30, no. 58) e Tempo
a Rapsódia negra, espetáculo que lan-
Brasileiro (Rio de Janeiro, Ano IV, nos.
çou duas artistas de grande destaque:
9/10) . Sob as mais falsas alegações, o
a primeira dançarina do espetáculo foi
TEN foi excluído e Além do rio ficou
a coreógrafa Mercedes Batista, recém-
aguardando a oportunidade de sua reve-
chegada de seus estudos em Nova York
lação no palco.
com Katherine Dunham, e a atriz Léa
Outra peça inspirada na atuação Garcia, cuja arte de interpretação conti-
do TEN foi O castigo de Oxalá, escrita nua a enriquecer a vida cultural do País.
em 1961 por um dos poucos autores
Em 1951, já havia escrito o mistério
dramáticos afro-brasileiros da época,
negro Sortilégio, cuja encenação fora
Romeu Crusoé, e encenada pelo grupo
proibida pela censura. Durante vários
amadorista Os Peregrinos no Teatro da
anos, tentamos a liberação da obra,
Escola Martins Pena.
incriminada, entre outras coisas, de
O escritor afro-brasileiro Rosário imoralidade. Finalmente, em 1957, o
Fusco, conhecido como o enfant terrible TEN apresentou Sortilégio nos Teatros
242 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
Orlando Macedo, Abdias do Nascimento e Léa Garcia em Onde está marcada a cruz, de Eugene
O’Neill. Teatro Dulcina, Rio de Janeiro, 1954.
Esta introdução foi feita para a versão em
inglês da antologia Dramas para negros e
prólogo para brancos (Rio de Janeiro: Teatro
Experimental do Negro, 1961), organizada por
Abdias Nascimento.
go sono em que estava submergido desde Entretanto aqui precisamos ser atentos:
a Abolição, se conscientiza enfim de si não é exatamente como arma de combate
mesmo, como autocriador de cultura, que devemos falar corretamente dessa
mas não chega a se libertar da ideologia negritude, mas como uma reivindicação
dominante que lhe impõe o branco para construtiva – o negro quer ser totalmente
melhor assegurar seu domínio: aquela do brasileiro e continuar sendo negro, sem
progressivo embranquecimento ou aria- ser obrigado a “mulatizar-se”.
nização da população. O negro certamen- Sem embargo, aqui devemos exami-
te pode subir na sociedade, mas somente nar outro aspecto, desta vez não negativo,
destruindo-se como negro, dissolvendo a mas positivo, da sociedade brasileira, que
“mancha” de sua cor por meio da lei pela denominamos sua “democracia racial” e
qual ele se metamorfoseará num mulato que torna possível ao branco engajar-se
cada vez mais claro até que finalmente na mesma luta com os negros. Entre as
seja aborvido pela massa dos brancos ou sete peças aqui reunidas, somente duas
quase-brancos. Esse processo se torna são escritas por autores negros. Os cinco
outra forma de autodestruição por via da autores brancos dessa antologia se jun-
assimilação dos valores europeus, que tam a Abdias Nascimento e Guerreiro
podem abrir-lhe a porta social, em vez da Ramos, teórico e terapeuta do TEN, na
porta da cozinha; fazendo dele um “negro mesma tarefa de celebração do negro
de alma branca”, isto é, cortando-lhe as que continua negro. Uma colaboração
raízes, convertendo-o num ser artificial fraterna de que só podemos nos orgulhar.
ou numa mera convenção. Entretanto o leitor será levado, mesmo
Esmagado por essa ideologia que o assim, a observar certas coisas. As pe-
obriga a se suicidar como negro para vir ças dos autores brancos não se colocam
a ser brasileiro, o negro não tem outra no mesmo plano daquelas dos autores
saída que se entregar ao complexo de negros. É como se os brancos, apesar de
inferioridade que lhe possibilita evitar sua inegável benevolência, não conse-
qualquer choque com o branco, social- guissem unir-se totalmente com o negro
mente, isolando-se; esteticamente, confi- na sua obra criativa – como se o humanis-
nando-se ao único papel que o branco lhe mo, que é o fundamento da democracia
destinou, o de artista de diversão pública. racial, criasse uma última barreira a ser
O Teatro Experimental do Negro (TEN) ultrapassada entre as raças.
atuava como uma importante catarse O que realmente caracteriza as peças
contra esse complexo de inferioridade, dos brancos – O filho pródigo (Lúcio
tanto no domínio da vida social como Cardoso) e Além do rio (Agostinho Ola-
no da arte, conforme Guerreiro Ramos vo) –, como também a peça de Vinicius
tão bem demonstrava. O negro surge de Moraes que inspirou o célebre filme
no palco, como autor e como ator, com Orfeu negro, e que devemos incluir
seus próprios valores. Sua negritude. nesta lista, é sem dúvida a valorização
Dramas para negros e prólogo para brancos
Roger Bastide 251
do negro, mas por intermédio daquilo que tempo a privá-lo do essencial, isto é,
poderíamos chamar de uma mitologia jun- do drama de seu cotidiano, fazendo-o
guiana. Certamente, o negro é valorizado; retornar ao seu exotismo, enfim, vendo
ele é Orfeu, Medéia, o Filho Pródigo, ele na sua negritude apenas o seu aspecto
reencontra na profundeza de seu incons- espetacular e não a sua autenticidade?
ciente coletivo os heróis gregos e bíblicos; Parece-me que Anjo negro, de Nelson
mas os arquétipos que ele expressa são os Rodrigues, é, entre todas as peças escritas
da humanidade em comum. Ele está aqui por brancos, a que mais profundamente
como homem e apenas na medida em que penetra na denúncia dessa ideologia que
seu inconsciente se integra na mitologia criticamos por ser nada menos que uma
universal. Podemos então perguntar se, forma hipócrita de genocídio.
nessa ideologia estética, ainda não persiste As duas peças de autores negros
algo daquela ideologia de arianização encontradas nesta coletânea produzem
da qual não podemos nos livrar – se não outros efeitos. E mesmo quando, como
conseguimos alcançar o heroísmo a não acontece em Sortilégio (Abdias Nasci-
ser colocando entre parênteses a cor da mento), os deuses africanos descem para
pele? o palco, não o fazem para representar
É verdade que as outras peças de suas vidas míticas por meio do rito; eles
autores brancos representam um passo convertem-se na expressão de tendências
adiante, procurando uma mitologia negra profundas do povo afro-brasileiro, situado
que escape à universalidade do arquétipo num contexto social bem determinado. A
para especificar uma raça ou uma cultura. liturgia exótica dá lugar, então, à proble-
A história de Oxalá (Zora Seljan) é um mática do negro na sociedade de brancos.
mito nagô que se preservou no Brasil, no O primeiro desses autores é Rosário Fus-
interior dos candomblés. Aruanda (Joa- co. Seu Auto da noiva retoma a ideologia
quim Ribeiro) é um mito banto-caboclo do embranquecimento, devolvendo-a
que cria homens de hoje dominados pelos contra o branco, que a criou no seu próprio
deuses africanos, os senhores de seus interesse depois da supressão do negro
destinos. ao trabalho servil, por meio de uma sábia
estratégia humorística.
Evidentemente, o caminho mais fácil
para a valorização do negro brasileiro é Seu coro de mulheres, de uma cena
por meio da transformação dos ritos e para a outra, canta:
cerimônias afro-brasileiros em teatro, Alveja, negra, limpa, negro,
assim como o teatro grego nasceu do en-
contro entre o culto de Dionísio e o culto Lava, negra:
dos heróis eponímicos. Mas será o cami- – seu destino é clarear.
nho mais fácil inevitavelmente o melhor?
Seu destino é fazer branco
Valorizando o negro como negro dessa
forma, não nos arriscaremos ao mesmo Aquilo que o branco sujar.
252 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
Essa é a mais bela inversão do em- herói de Abdias – o elogio do negro mau,
branquecimento que conheço. Porque que mata e violenta as brancas, contrastado
é o branco que fica negro, que não faz com o negro Pai João, castrado pela bon-
outra coisa senão sujar, que torna preto dade pragmática do branco – e a descoberta
tudo que toca; e o negro, incansavel- da liberdade e da autenticidade por meio
mente, devolve tudo aquilo que o branco da recusa. Mas Sortilégio agrega àquela
sujou à sua pureza primitiva, sua bran- do Filho nativo outra dimensão: o enrai-
cura alvacenta, sua beleza autêntica, zamento na herança africana por via da
aquela beleza que o branco vem sempre macumba carioca, que livra essa revolta
manchando. do absurdo de ser nada mais que uma
resposta ao desafio do branco – e que lhe
Com seu grito, sem levantar a voz, permite concluir com uma mensagem,
sem se esconder atrás de uma filosofia num discurso dos deuses à assembléia
revolucionária qualquer como o marxismo dos homens reunidos.
– Auto da noiva é uma farsa –, Rosário
Fusco cria, a partir da política sistemática A crítica literária considera O filho
do branco, um bumerangue que se vira nativo uma etapa na evolução do pen-
contra seu criador para abençoar sua samento norte-afro-americano. Porém,
morte. apenas uma etapa, pois o romance propõe
uma pergunta que os negros nos Estados
Em relação à peça de Abdias Nasci- Unidos, privados de sua própria cultura,
mento, Sortilégio, na minha opinião ela não poderiam ainda responder; antes do
ocupa na literatura brasileira exatamente poder negro, eles precisavam criar uma
o mesmo lugar que ocupa O filho nativo cultura. Entretanto essa cultura negra
na literatura afro-norte-americana. Certas que os negros nos Estados Unidos irão
frases ecoam de um hemisfério para o parir nos Harlems ou nos guetos existe
outro, de Richard Wright para Abdias no Brasil, até mais autenticamente, des-
Nascimento, demonstrando a unidade de há muito tempo, o fruto americano
fundamental das Américas negras além da diáspora dos deuseus africanos na
da diversificação das ideologias, de situ- América do Sul. Qual será, então, o le-
açães políticas e das estratégias variáveis gado de Sortilégio? Não poderia, no fim
do branco: desta Introdução, deixar de colocar essa
questão. O que importa, enfim, não é
Agora me libertei. Para sempre. colocá-la. Importa a resposta. A resposta
Sou um negro liberto da bondade. que os autores negros do Brasil trarão ao
Liberto do medo. povo de que são os arautos.
Liberdade do medo, desse medo que Sortilégio não é uma conclusão. É
visita o filho nativo assim como visita o uma lâmina rotativa nascida do medo,
Dramas para negros e prólogo para brancos
Roger Bastide 253
Paris, 1972
afro-brasileira
Um pequeno histórico
re. Mas só no século XVII é que aparece e Sousa, natural de Cabo Frio. Com o
o escritor negro, expressando toda a sua Filho do pescador, em 1843, fundou o
angústia e reivindicando tudo aquilo a romance entre nós. Embora a preferência
que tinha direito. Um exemplo frisante da época fosse a do folhetim novelesco,
é a arquitetura revolucionária, plasmada foi com um romance de Teixeira, Maria
em pedra-sabão, em Vila Rica, Minas ou a menina roubada, que na nossa
Gerais, por um João Francisco Lisboa, o ficção apareceu pela primeira vez um
Aleijadinho, de obras artísticas em várias personagem negro atuando de forma
igrejas e dos 12 profetas de Congonhas. humana e dentro do contexto do livro.
Outro é a música sacra e até a modinha Enquanto Maria é heroína branca, Pedro
sestrosa do padre José Maurício: dois Mandigueiro é o vilão, que rouba a preta
gênios de nossa raça se realizando iso- Laura, e Pedro Pascoal é o preto simpá-
ladamente. O negro só deu o seu brado tico que protege Maria. Teixeira e Sousa
liberatório e de contestação com o baiano publicou seus livros num livreiro amigo,
Gregório de Matos Guerra, o Boca do que o protegeu enormemente: Paula
Inferno, criticando os lusos gatunos, sa- Brito, diretor da revista A Marmota, de
fados e plenos de luxúria de sua época. influência cultural no Rio de Janeiro im-
Embora voltasse sua poesia satírica para perial. Paula Brito era livreiro avançado,
atacar o crioléu e os mestiços do tempo: mulato que se preocupou com sua raça,
“Ser mulato / Ter sangue de carrapato / fundando o primeiro jornal que pugnava
Cheirar-lhe a roupa a mandongo / É cifra pelos problemas do negro: O Homem de
da perfeição / Milagres do Brasil são”. Cor, data auspiciosa de nossa negritude,
O negro pouco aparece na poesia pois que apareceu em 14 de setembro de
da Escola Arcádica mineira, do século 1833.
XVIII. A não ser episodicamente, como A negritude brasileira tem coisas
por exemplo em Manuel da Rosa Alva- curiosas: um Antônio Gonçalves Dias,
renga, que era mulato, mas não sentia a maranhense, apesar de sofrer na carne
sua raça em Glaura. Só em Domingos o preconceito de cor, só sentiu o drama
Caldas Barbosa o negro reponta, em seus do nosso índio em Marabá, canto do
versos fesceninos, lúbricos, de ampla Piaga ou I. Juca Pirama, escritos em
sexualidade de nossa raça em Viola de vernáculo castiço e clássico. Daí os fic-
Lereno, em que há lundus, modinhas, cionistas brancos deturparem à vontade a
feitas em tom popularesco e lascivo. Já é realidade trágica do negro brasileiro: José
o negro levando a nossa melodia popular de Alencar (O tronco do ipê e Demônio
até os paços reais de Portugal. familiar), Joaquim Manuel de Macedo
Antes, não tínhamos o romance. Esse (Vítimas algozes e A moreninha). Mas
gênero só nos foi trazido ao Brasil por sempre houve um gênio com sangue ne-
um mulato de muito talento e engenho gro nas veias para defender a raça contra
inventivo: Antônio Gonçalves Teixeira a interminável maldição de Cam: Antô-
Introdução à Literatura afro-brasileira
Ironides Rodrigues 257
e poesia, no Quarto de despejo e Casa dade / Não quero ser marginal / Quero
de alvenaria. Uma escritora de respeito, entrar em toda parte”). Seus poemas já
traduzida em muitos idiomas. Raimundo são divulgados em outros países. Belsiva
Sousa Dantas, sergipano, expõe sua expe- e seus poemas negros, bem populares e
riência negra em livros interessantes como até emocionantes, em Lamentos, só la-
África difícil, Agonia e o comovente Um mentos, que ele declamava com ênfase
começo de vida. Romeu Crusoé tem um e muita euforia. Poeta representativo de
romance pungente e de grande significado nossa raça: “A África está se libertando
social e literário: A maldição de Canaã, / A África está se libertando”.
sobre o preconceito racial sofrido por J. B. Romão da Silva, estudioso da
um negro angustiado. Romance sério e língua tupi, é o evocador seguro e atraen-
pioneiro no gênero. Do mesmo estofo te de Luís Gama e suas poesias satíricas
do romance acima é Água Funda, relato e o biógrafo sensível e capaz de Teodoro
sobre gente humilde de uma cidade entre Sampaio. Um memorialista evocando
Minas e São Paulo, escrito por uma grande suas lutas de líder negro, José Correia
romancista negra: Ruth Guimarães, com Leite em Lumiar de uma ideologia.
estilo original e atraente, assim como é
notável Romeu Crusoé. Ruth é também Mestre Didi, da Bahia, escreve seus
folclorista respeitada. contos de origem africana à maneira dos
griôs, narrando suas façanhas através de
No Teatro Experimental do Negro épocas diferentes do Continente Negro.
havia um jornal doutrinário bem atu- Noronha Santos, historiador mulato de
ante: Quilombo. Em São Paulo, são os respeito, era amado por Lima Barreto,
Cadernos Negros, com poemas e contos que o consultava nas evocações cariocas
bem de vanguarda literária. Daí também de seus romances. O crítico Agripino
surgiram poetas do mais inspirado estro, Grieco o reverenciou em muitas páginas
fazendo poesias de combate anti-racista de crítica saborosa.
e de impressionante expressão poética.
Lino Guedes e os seus poemas de as- Enfoque: o transcendentalismo po-
suntos ingênuos, mas belos e de espírito ético e simbólico na poesia negra de
combativo: Sunscristo, Vigília do pai Eduardo de Oliveira
João e Canto do cisne preto. Grande
poeta, humano e sensível, abridor de ca- Quando o analista se detém com pro-
minhos na poesia de assunto negro. A po- fundidade exegética em face de “Além
esia negra de Carlos de Assumpção tem do pó”, “Ancoradouro”, “Banzo”, ou
ressonância universal em seus poemas, mesmo em outros cantos de sublime
dos mais emocionantes de toda a negritu- ressonância musical, como “Restingas”,
de, publicados no livro Protesto. Poucos “Cancioneiro das horas” ou “Gestas líri-
poetas no mundo igualam sua criação cas da negritude”, se depara com a am-
bela e comovente: (“No porão da socie- plitude poética de Eduardo de Oliveira. É
262 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
uma poesia que vem lá do fundo da alma limitou sua poética genial só em exaltar o
negra, no que tem de mais dilacerante, alvinitente e lirial alvor da cútis branca,
dorida e, antes de tudo, humana e emo- que lhe parecia ter uma atração singular.
tiva. Existem nesses cantos que parecem Cruz e Sousa como simbolista, conforme
compostos para serem declamados pelos declaração de Roger Bastide, foi o único
troveiros e rapsodos populares da minha negro do Simbolismo universal, e por
África, os griôs, que os recitavam ao som isso só podia extravasar a sua revolta
do balafon, para que a memória coletiva racial em versos de sentido matafórico,
os fosse perpetuando pelos séculos afora. com os símbolos se superpondo à clareza
Embora esse poeta sendo um simbolista, meridiana própria dos poetas parnasia-
na mais pura expressão semântica, na nos ou românticos. É só ler atentamente
musicalidade léxica ou vocabular, na os poemas de Cruz e Sousa para sentir
significação alegórica e no sentido sim- neles toda uma efervescência negra,
bólico que toma vários de seus poemas, em ebulição criadora. Joaquim Ribeiro,
nunca deixa de ser um poeta social do seu emérito folclorista e historiador, via na
século, olhando com peculiar interesse musicalidade impressionante de Cruz e
poético e ternura sentimental todos os Sousa vagas reminiscências evocativas
problemas éticos, políticos e religiosos da estranha melodia que ressoa do idio-
que atormentam as consciências de nossa ma quimbundo. E isso nos “Violões que
raça. Quando mestre Tristão de Athayde, choram”, “Dor obscura”, “Réquiem do
num depoimento de grande e cristalina sol” ou qualquer poema de dilacerante
essência analítica, chamou Eduardo de dor emotiva daquele que, com Castro
Oliveira de um novo Cruz e Sousa, ele Alves, no dizer de Agripino Grieco, foi
enxergava nesse poeta aquele sopro de um dos dois maiores espantos da poesia
excelsa espiritualidade do Dante Negro; brasileira. Eduardo de Oliveira já podia
aquela universidade de temas em que se expressar com maior liberdade poética
se debatem os anseios e sofrimentos da que Cruz e Sousa, pois teve o privilégio
gente negra, que o genial Cruz e Sousa de ser contemporâneo de um movimento
já descerrava o velório, desta angústia de de admiráveis idéias políticas e literárias
sua raça, no “Emparedado”. como a Negritude, cujo manifesto inicial
é de 1950, apregoada em seus cânones
Eduardo de Oliveira não é um revolucionários por Léopold Sédar Sen-
epígono do vate vibrante dos Faróis e ghor, Aimé Césaire e Léon Damas, em
Broquéis, mas um poeta que já tem seu Paris. Não foi de propósito, com esse
próprio estilo, que na sua temática de evento circunstancial, que um dos livros
profunda beleza estilística e musical mais expressivos de sua poética simbo-
decanta a nostalgia, os anseios, o sofri- lista e de combate cerrado ao racismo
mento e toda a magnitude do desespero de todas as latitudes se chama Gestas
da progênie de Cam. É engano de Tristão líricas da negritude, comprovando que
de Athayde pensar que o vate catarinense sua voz já era a mensageira livre, solta e
Introdução à Literatura afro-brasileira
Ironides Rodrigues 263
desimpedida, como bem afirmou Jean- Todo o livro é feito de sonetos de im-
-Paul Sartre, no seu rumoroso manifesto pecáveis tessituras formais, não naquela
em prol dos movimentos sociais de nossa rigidez marmórea e impassibilidade
raça, no Orphé noir. Afirmava, categóri- olímpica dos versos como burilados
co, o filósofo francês do existencialismo pelo cinzel hierático de um Heredia, de
que, o dia em que fossem retiradas as “Les trophés”, ou com aquela vaga mu-
mordaças que silenciavam as vozes sicalidade dos poemas de Verlaine, Be-
angustiadas dos negros, eles gritariam audelaire, Albert Samain ou a estâncias
tão alto contra o segregacionismo da sua de uma tonalidade musical de sonata de
raça e ameaçando os grilhões das potên- um Régnier e Moreas. Aí o poema é um
cias imperialistas que os brancos seriam mistério, do qual o leitor deve penetrar
obrigados a ouvir as reivindicações justas
o imo ou o sentido profundo e filosófico.
e as acusações ferozes dos ex-escravos
Eduardo de Oliveira é sonetista perfeito,
de ontem, agora mais conscientes de sua
mas que dá um alcance imaterial e de
luta e da dignidade de sua causa sagrada.
inefável encanto poético à temática negra
Teriam a apoiá-los as consciências dos
de seu marcante livro de versos Túnica
povos livres e os orixás de Aruanda,
que por trás do firmamento infinito estão de ébano.
atentos aos nossos protestos milenares.
Túnica de ébano é outra gritante mani- Vozes afro-brasileiras
festação poética de Eduardo de Oliveira,
com seu lastro mais livre e desenvolto, É chegado o momento em que de-
a inspiração de requintada beleza, as verá o exegeta negro reunir os aedos ou
palavras em forte consonância musical, menestréis afro-brasileiros e analisá-los,
sempre o poeta com seu brado de alerta, num livro de ensaio de aguda interpreta-
denunciando a eterna servidão do negro, ção de suas criações poéticas diferentes,
enganado pelos engodos de uma fictícia mas tão valiosas para a nossa negritude
“Lei Áurea”, nos fins do século passado. literária. Assim estaria aí, no seu relevo
Em “Negra é a minha pele” há todo um mais criador, em seu tempo, em sua
protesto severo contra uma escravidão mensagem eterna de vate de sua gente, a
tardia de nossa raça: poesia bem popular, que respira o hálito
mais puro da massa eufórica, o poeta
Nada fui! Nada sou! Nada serei, Belsiva Lino Guedes veria, com o canto
Só porque negra é a cor de minha magoado do Pai João banzando a sua
pele! tristeza, ao som do lendário urucungo.
Mesmo que tudo eu dê, pouco Solano Trindade e o cortejo fantástico
terei, do bumba-meu-boi, dos folguedos po-
Nesta Sodoma em que a ambição a pulares pernambucanos ou dos negros
impele! em genuflexão aos orixás da Aruanda
264 THOTH 1/ abril de 1997
Sankofa: Memória e Resgate
Cena de Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, com Deise Paiva (Eurídice) e Abdias Nas-
cimento (Aristeu). Teatro Municipal, Rio de Janeiro, 1956.
A República Popular de Angola
tem um papel no cenário africano que
pode ser considerado imprescindível
para o equilíbrio e o desenvolvimento
do continente. Depois da vitória contra
o colonialismo, não se podia esperar que
Reconciliação tantas forças retrógadas inerviessem nas
Nacional, questões internas do povo angolano, que
buscava se reestruturar enquanto Estado
a outra luta e Nação, segundo os ideais revolucioná-
rios de Agostinho Neto e de seus com-
de Angola panheiros. A interferência em Angola
implicou uma guerra civil, um verdadeiro
fratricídio patrocinado, ao longo de mais
de 20 anos, por países que, no campo
das relações internacionais, posam de
guardiães da democracia, da autogestão
e dos direitos humanos
O rastro de destruição deixado
pela guerra arruinou vidas e famílias,
além de desestruturar a economia, levan-
do o Estado à beira do caos e da inviabi-
lidade. Entretanto há de se reconhecer o
272 THOTH 1/ abril de 1997
Mundo Africano
abrindo nova frente de luta contra o outros públicos que também são vítimas
racismo e pela identidade cultural das do preconceito. Por meio do CEAP, a
comunidades negras. comunidade judaica quer estreitar rela-
ções com a população afro-brasileira e
As articulações do CEAP com im-
promover ações conjuntas de combate
portantes personalidades e organizações
ao racismo e de provocação do progresso
do Movimento Negro internacional estão
social.
se tornando cada vez mais consistentes.
Recentemente tivemos importantes reu- No início de 1997, o CEAP rea-
niões com o pastor afro-americano Jesse lizou o Seminário Interétnico de Direitos
Jackson e entidades de países africanos, Humanos e Cidadania, em conjunto com
como a visita ao Brasil de membros de a Federação Israelita do Estado do Rio de
ONGs da Guiné-Bissau. Temos conse- Janeiro. Todas as ações aqui apresenta-
guido interferir positivamente nas deci- das reafirmam o compromisso do CEAP
sões do Consulado Norte-Americano da em combater o racismo, com o firme
cidade do Rio de Janeiro nos casos de propósito de construir uma sociedade
negativa de vistos de entrada nos Estados democrática onde a população afro-
Unidos para cidadãos negros. -brasileira esteja incluída nos beneficios
Vale ressaltar as iniciativas do CEAP e direitos que o Estado deve garantir aos
no sentido de ampliar seu diálogo com seus cidadãos.
Instituído em 20 de novembro
de 1995, o Grupo de Trabalho Intermi-
nisterial para a Valorização da População
Negra é formado por representantes de
oito ministérios e duas secretarias da
GTI Presidência da República, além de oito
componentes da sociedade civil, estes
População Negra militantes do Movimento Negro.
Trata-se de mecanismo criado
pelo Governo a partir das reivindicações
e propostas do Movimento Negro, sendo
assim mais uma conquista e não algo que
tenha sido simplesmente implantado a
partir de mero paternalismo do Estado.
O GTI/População Negra é um
espaço aberto ao afro-brasileiro e a seus
aliados para a elaboração de propostas
com o objetivo da democracia, entendi-
da como a participação efetiva do povo
negro em todos os escalões da sociedade
e a eliminação do racismo.
Vale lembrar a Fundação Cul-
Carlos Moura*
tural Palmares, o Memorial Zumbi, o
284 THOTH 1/ abril de 1997
Movimento Negro Hoje