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A RELIGIÃO INDO-EUROPÉIA

(Pela tradução)

MEILLET,A . Linguistique historique et linguistique générale.


Paris: Librairie Honoré Champion, Éditeur, 1965.p. 323-334.

Pode parecer estranho, ao primeiro olhar, que um lingüista, que nada mais é que lingüista, se
sinta qualificado para tratar da religião indo-européia. A razão é simples: é que os povos de língua
indo-européia só conheceram a escrita muito tarde, quando essa já era praticada na Babilônia e no
Egito há muitos séculos; de todas as línguas indo-européias, apenas o sânscrito, o iraniano, o grego
e os dialetos itálicos, dos quais o latim é o principal, estão atestados antes da Época Cristã. Todas as
outras línguas, eslava, báltica, gêrmânica, céltica, armênia, estão documentadas somente após o
século IV da Era Cristã _ em parte, muito depois _ e por textos cristãos. Ora, mais que qualquer
outra história, a história das religiões tem necessidade de textos e de textos concebidos na própria
língua do povo estudado. É, portanto, impossível fazer história antiga das religiões para os povos de
língua indo-européia.
A lingüística não tem recursos para substituir a história e nem o pretende. Mas, por falta de
indicações fornecidas pela lição dos textos ela traz, ao menos, as poucas luzes que se podem esperar
sobre um período que não nos deixou nenhum testemunho direto nem de seus atos, nem de seus
pensamentos. Porém, antes de interrogar a lingüística, cumpre determinar o que se pode aqui
esperar.

Sabe-se bem que certas línguas da Ásia, e quase todas as línguas da Europa, pertencem a um
mesmo grupo, que se convencionou chamar o indo-europeu (os alemães dizem indo-germânico; o
nome é arbitrário, não importa).

Dizer que o sânscrito, o persa, o eslavo, o germânico, o céltico, o grego o armênio são línguas do
grupo indo-germânico é afirmar que essas línguas são transformações diversas de uma só e
mesma língua. Dessa língua não se tem nenhum testemunho direto, já que ela nunca foi escrita.
Mas a identidade da origem das línguas em questão se traduz por certas semelhanças; e essas
semelhanças não são caprichosas e fortuitas; como o desenvolvimento das línguas é submetido a
leis, há sistemas regulares de correspondência de cada uma das línguas atestadas com todas as
outras línguas do mesmo grupo. Chama-se língua indo-européia, ou, simplesmente, indo-
europeu, o conjunto desses sistemas de correspondências.

De fato, a rigor, nada se sabe da língua cuja existência é deduzida pelos estudos de suas
correspondências, feitos pela gramática comparada. Não se sabe por que pessoas foi falada: dos
homens que falam hoje as diversas línguas indo-européias, uns são dolicocéfalos, outros
braquicéfalos; uns são morenos, outros louros; uns são grandes, outros pequenos; na maioria são de
raças muito misturadas; por que raça era falada a língua indo-européia, ignora-se, ignora-se mesmo
se era uma raça pura ou não. _ Não se sabe onde essa língua era falada; localizaram-na na Ásia, a
seguir transportaram-na a todas as regiões possíveis na Europa, das estepes do Volga aos Cárpatos,
dos Cárpatos à Escandinávia e da Escandinávia à Lituânia; e faltam razões decisivas para
circunscrevê-la em qualquer parte. _ Não se sabe quando essa língua foi falada; pode-se ver bem em
que medida os diversos dialetos divergem entre si; mas, como o grau de rapidez com o qual as
línguas se transformam é muito variável, não se poderia tirar nenhum conclusão, mesmo
aproximada.
O indo-europeu é, portanto, um sistema de correspondências lingüísticas que supõem uma
língua x, falada por um povo x, em um lugar x, em um tempo x.
Esse sistema de correspondências tem uma grande importância já que permite determinar
quais relações sustentam entre si as línguas da família e, ao menos, entrever os traços principais do
desenvolvimento dessas línguas nos séculos que precederam imediatamente os textos mais antigos.
Prolonga-se, assim, a história de cada uma dessas línguas indo-européias, ao menos numa certa
medida, até o período em que todas essas línguas se reuniam em apenas uma. . É inútil acrescentar,
hoje, que esse período não é um período primitivo, e que a gramática comparada não nos aproxima
muito da origem da linguagem; o indo-europeu não é mais primitivo que o velho babilônio ou o
velho egípcio, que, absolutamente, não o são.
As únicas correspondências a examinar aqui, são as que nos informam sobre fatos do
vocabulário. É claro que, se uma correspondência atesta, no sistema lingüístico, a existência de uma
palavra designando uma noção definida, dever-se-á atribuir essa noção ao povo que falava a língua
suposta pelo sistema. Mas, as conclusões desse gênero são necessariamente muito vagas.; as noções
ligadas às palavras mudam freqüentemente, sem que as palavras mudem por isso. Por outro lado, o
número de fatos utilizáveis é pequeno: só há correspondências para os termos mais gerais; tudo que
é técnico e particular é especial a cada uma das línguas do grupo e não comporta correspondências
em nenhuma outra. A gramática comparada apenas pode, portanto, fornecer indicações vagas,
incompletas e, muitas vezes, duvidosas a respeito do estado de civilização de um povo suposto de
língua indo-européia; a esse respeito, por muito tempo, traçaram-se ilusões, das quais já se retornou,
atualmente.
Por pouco que se deva esperar, vale a pena interrogar a lingüística indo-européia e examinar
o que ela pode dizer sobre as idéias religiosas do povo que forneceu as línguas empregadas por uma
parte notável da Ásia e por quase todo a Europa. Procedendo-se com crítica, pode-se obter
conclusões pouco numerosas e que não correspondem às vastas esperanças que se conceberam em
outros tempos: a gramática comparada tornou-se uma ciência bastante desenvolvida, enquanto que a
mitologia comparada, fundada sobre a lingüística, pode se sentir à vontade numa exposição de
algumas páginas. Mas essas algumas páginas merecem ser escritas, pois se podem consignar
resultados precisos, que não poderiam ser obtidos de nenhuma outra forma..

Uma correspondência nítida, uma das mais claras e mais seguras que se tem em todo o
vocabulário indo-europeu estabelece a existência de um termo para a idéia de “divindade”; é o
sânscrito devah, o lituano dëvas, velho prussiano deiws (genitivo deiwas), latim deus ( diue. etc),
velho irlandês dia, gaulês dêvo- ( em Devognata “nascida de um deus”, nome próprio), velho
islandês tívar (plural).
Essa correspondência se exprime pelo símbolo *deiwos, que dá ao menos uma idéia do que
pôde ser a palavra representada pelas formas citadas. Vê-se que o termo não está limitado a uma
parte do domínio indo-europeu; pode ser encontrada nas extremidades oriental e ocidental do
domínio; se ela não aparece no eslavo, existe nos dialetos bálticos que lhe são estreitamente
aparentados; e se ela não se conservou em grego, há, ao menos, um derivado igualmente antigo:
grego dios, idêntico ao sânscrito divyah “celeste” e ao latim dius “divino”.
Se, portanto, em algum lugar temos o direito de falar de uma palavra indo-européia, é aqui.
A forma é por toda parte a que se deve esperar das regras de correspondências fonéticas: essas
regras descartam totalmente a idéia de que o grego  (theos) teria relação com o latim deus:
sobre a origem de  há diversas hipóteses; uma dessas, apontando  com o significado
original de, “sopro, espírito” não é inadmissível e parece mesmo verossímel; toda afirmação sobre
esse ponto é impossível; sabe-se, apenas,  que não corresponde ao latim deus; em matéria de
etimologia, como em todas as outras matérias científicas, as primeiras impressões são enganosas.
O sentido de *deiwos é “divindade”, da maneira mais geral, e esse sentido é o mesmo em
toda parte; após ter designado de uma maneira geral os antigos deuses, a palavra tinha bastante
leveza para se aplicar ao Deus único judaico-cristão, e nós a empregamos, às vezes, para o Deus
cristão e para todos os outros deuses. Apenas o iraniano diverge, mas não de maneira essencial: os
daêva do Avesta não são deuses, mas são os seres não humanos, os inimigos, os deuses, os
demônios. Para “deus” há, aqui, um termo cuja extensão não vai longe: baga do velho persa só se
encontra no bog eslavo; o emprego não difere, de resto, daquele de *deiwos. É inútil falar da
palavra germânica (alemão gott), pois é um caso isolado, e as hipóteses que se podem fazer sobre
sua etimologia podem ser mais ou menos plausíveis, mas nada acrescentam aos fatos indo-
europeus.
Se a palavra *deiwos fosse isolada, a lingüística afirmaria, apenas, a existência de uma idéia
de “divindade”, o que seria pouco; mas, por felicidade, a palavra faz parte de um grupo definido e
conhecido, podendo-se, assim determinar a que espécie de noções o indo-europeu apela para
designar a “divindade”.
O sânscrito védico tem uma palavra, dyauh, que significa, ao mesmo tempo, “céu” e “dia”;
essa palavra tem uma declinação muito complicada, conforme, aliás, às regras gerais da flexão
indo-européia; e a essa palavra corresponde um apalavra grega conhecida, reconhecida mesmo
como o nome de um deus particular, mas visivelmente de um deus do céu, pois é um deus que
troveja e que chove; em grego  “chove”, o agente é  (Zeus):   “Zeus chove”:
Nominativo: sânscrito dyauh, grego 
Dativo: sânscrito divé, grego 
Acusativo: sânscrito dyam, grego 
Em latim encontra-se o mesmo vocábulo, mas sob as formas mais complicadas ainda, pois
essa mesma palavra forneceu vários termos, dos quais mencionam-se, aqui, os dois principais. Um
tirado do nominativo, do vocativo e do locativo designa um deus particular que é bem semelhante a
: Júpiter é  “o Zeus pai”; Joue é o locativo sânscrito dyavi; o osco tem Diuvei ao
lado de Iuvei, e o velho latim Diouei Dioue; mas ao sânscrito dvam corresponde o latim diem “dia”,
e esse acusativo deu lugar à formação da palavra latina dies “dia”. Sem entrar em mais detalhes
lingüísticos, vê-se que existe uma palavra indo-européia simbolizada por*dyeus *dyem *diewes, etc
que significa “céu” e “dia”. E essa palavra deve ser agrupada, evidentemente, com *deiwos “deus”
e *diwyos “divino”.

A noção do “deus” indo-europeu se deixa precisar e completar, ainda, por uma outra
observação. A idéia do “deus” é apenas uma abstração à qual se chega, em parte, exteriorizando
certas noções da experiência humana e, em parte, negando outras noções de experiência, de maneira
a criar uma diferença essencial entre homem e deus. O homem sendo um ser terrestre e mortal, os
deuses serão celestes e imortais; essas duas noções são freqüentemente indicadas por Homero, por
exemplo: somos, assim, levados a nomear o homem por oposição, seja o “terrestre” seja o “mortal”.

O deus sendo celeste, o homem é terrestre: daí, um dos principais termos que designam o
homem nas línguas indo-européias: latim homo, osco, humus “os homens”, gótico guma, velho
alemão gomo (que se conserva em Bräuti-gam, nome alemão para o “noivo”), velho islandês, gume,
lituano (plural) zmones; essa palavra aproxima-se do nome da terra: latim humus, grego 
lituano zemê, velho eslavo zemlja, zend zem-, duplo do sânscrito ksam-, grego . A palavra
deus e a palavra homem sobrevivem ainda em francês; o sentido original se perdeu; apenas o
lingüista aí discerne o ser celeste e o ser terrestre; mas essas duas palavras de nossa língua atual são
as testemunhas de concepções antigas, que têm, em parte, sobrevivido. Deus não é mais o céu, mas
está sempre nos céus.
É verdade que na nossa concepção moderna de mundo, desde Galileu e Copérnico, isso não
significa mais nada, e que um homem que pensa não pode atribuir a “Nosso Pai que está nos céus”
nenhum sentido razoável; mas, embora se saiba muito bem que a terra gira, sempre se olha para o
céu para rezar. As velhas palavras perderam sua significação e as idéias, seu valor, mas os usos, os
gestos subsistem.
Deus sendo imortal, o homem é mortal; e Homero, que qualificou os deuses αμβροτοι
imortais”, nomeia, freqüentemente, os homens βροτοι “mortais”; ou, com uma outra forma mais
clara,  ; também os armênios chamam o homem mard, e o sentido dessa palavra perde-se no
início da época histórica: mard, para o armênio, é o “homem”, não o “mortal”; o velho persa, da
mesma forma, tem martya e o persa moderno mard. Essa denominação do homem pela raiz mer-
que designa “morrer, não se encontra nos dialetos ocidentais. Mas o irlandês tem uma denominação
muito semelhante: o irlandês duine “homem”é um derivado de uma forma aparentada ao gótico
diwans “morto”e ao alemão tod. É sempre a mesma idéia, se não o mesmo material lingüístico.
Enfim, para Homero, os deuses são “doadores de bens” e a Antigüidade dessa noção é
marcada pela palavra iraniana e eslava; a palavra sânscrita bhagah significa, ao mesmo tempo,
aquilo que se partilha e deus que partilha; e é essa palavra que se encontra no velho persa baga e no
eslavo bog; também, em eslavo ubog e ne-bog significam “pobre”, aquele que não tem parte nas
riquezas.
Tal é a concepção do deus indo-europeu: celeste e luminoso, imortal, doador de bens; e essa
concepção não está muito afastada daquela que tem o homem do povo, na Europa ocidental.

Por sua natureza e pelas próprias condições em que se apresenta, a lingüística não pode
apresentar mais que noções muito gerais. Mas, para completar a teoria, resta apontar alguns fatos
significativos que são importantes e, talvez, significativos.
Inicialmente, nota-se a ausência de um termo indicando algo que se assemelhe a local de
culto, a um instrumento servindo ao culto, em resumo, a um sacrifício. Há uma palavra indo-
iraniana que significa “sacrificar”, o sânscrito yajati, yajate e o zend yazaite “ele sacrifica”; mas
esse termo não ultrapassa os limites do dialeto indo-iraniano; o único termo que se aproxima, em
uma outra língua, é o grego  ; mas sua etimologia não é evidente; é simplesmente possível,
pela forma, que o sânscrito yaja- corresponda ao grego  - e nem é mesmo provável, por razões
técnicas que não vamos abordar aqui; e, quanto à significação que é o que mais importa, se a
aproximação é válida, isso não prova nada, pois o grego  não se relaciona a nenhum lugar
de sacrifïcio; indica antes um sentimento de temor religioso, de veneração, e, em ausência de uma
terceira língua que permita decidir entre o sentido indo-iraniano “sacrificar” e o sentido grego
“possuir um temor religioso” nada se pode dizer do sentido indo-europeu. É provável que o latim
sacer, sancio, sanctus é em realidade a palavra aparentada à  do grego; os sentidos
concordam; e a diferença entre c do latim e y do grego se deixa explicar.
Isso não quer dizer que a idéia de sagrado, que é a idéia fundamental em matéria religiosa,
não tenha tido expressão em indo-europeu; mas, só existe uma correspondência para testemunhá-la
do ponto de vista lingüístico e essa correspondência só se estende a um domínio lingüístico muito
estreito; o báltico tem o lituano szventas, o eslavo tem o velho eslavo svetu (russo svjat), o iraniano
tem o zend spentô; encontra-se, aqui, uma palavra limitada a um pequeno domínio constituído pelo
báltico, o eslavo e o iraniano; faz lembrar o eslavo bog, ao lado do persa baga. Também tem sido
considerado como próximo ao nome germânico de “sacrifício”, o gótico hunsl, mas outras
explicações foram propostas, não se chegando a consenso quanto ao sentido dessas palavras.

Não significa que não tenham existido, ao menos temporariamente, homens investidos de
funções religiosas. Mas não se lhes encontra traço bem estabelecido em nenhuma correspondência
lingüística. O brahman- védico tem sido, muitas vezes, aproximado do flamen romano; mas,
admitindo a aproximação que não é evidente, mesmo assim, a palavra só existiria em sânscrito e em
latim: tratar-se-ia de uma dessas correspondências de termos religiosos entre o indo-iraniano e o
ítalo-céltico que M. Vendryes colocou em evidência e que são remarcáveis (ver o artigo das
Memórias da Sociedade de Lingüística, XX, p. 265 e seguintes). Há certamente uma aproximação,
mas a palavra que ela fornece não se refere a nenhuma função religiosa definida; além disso, ela só
figura nos dialetos ocidentais: latim vates “profeta”, “adivinho”, gaulês  “adivinho”,
traduzido pelo grego , irlandês faith “poeta”, gótico wods “possuído, furioso”, velho alto
alemão wuot “furor” ( o alemão Wuth ), velho islandês odr “poesia” (daí o derivado Edda ); o
personagem designado por essa palavra tem certamente um um caráter religioso, mas não é um
propriamente um padre, é um ser inspirado, um adivinho.
Em resumo, não há palavras fixas para designar o lugar do culto, o sacrifício, nem o padre.
Isso é facilmente explicável, quando nos lembramos de que do indo-europeu só possuímos os
termos gerais, aqueles que se estendem por todo o domínio. Ora, o culto do homem pouco
civilizado é essencialmente o culto de uma tribo; a tribo tem seus lugares de culto, seus sacrifícios e
seus oficiantes que lhes são estritamente próprios. A falta de termos comuns indica a ausência de
instituições comuns; e essa é uma observação importante. Nada mais importante que o culto de uma
população de civilização inferior.
Daí, podemos compreender porque não há nome de deus particular que seja indo-europeu:
querer achar, em indo-europeu, um nome de deus é supor ao conjunto das populações cuja língua é
designada pelo nome de indo-europeu; essa hipótese não é, a princípio, verossímel e, mesmo que o
fosse, não é comprovada. Fez-se muito esforço para encontrar, na Índia, os deuses helênicos e, na
Grécia, os deuses hindus, não se chegando a nenhum resultado Todas as aproximações propostas
vem se chocar contra as leis estritas das correspondências fonéticas e os lingüistas que tentaram
salvar um mínimo dessas correspondências, vira-se obrigados a confessar que a fonética dos nomes
dos deuses não é a mesma das outras palavras, ou que intervieram acidentes impossíveis de
justificar detalhadamente. Indra é específico da Índia, Apolo da Grécia, Marte da Itália e assim
sucessivamente.
A lingüística não fornece à gramática comparada quase nenhum fato utilizável e as ilusões,
alimentadas por volta de 1850, que o talento de Max Muller largamente propalou, não são
partilhadas hoje por nenhum homem competente: pode haver uma mitologia comparada, mas ela
não será fundada sobre a lingüística, pois a gramática comparada só fornece termos gerais e os
cultos são particulares.

Perdura, no entanto, um grande fato, no qual a lingüística está sobremaneira interessada. A


arqueologia pré-histórica da Europa não revela ídolos; e, por onde quer que haja testemunho de
povos de data indo-européia ou de civilizações pouco avançadas, esses testemunhos indicam
ausência de deuses pessoais. A onomástica indo-européia concorda com essas constatações; ela não
demonstra que uma grande importância tenha sido atribuída a deuses pessoais; os nomes próprios
dos de pessoas indo-européias são compostos de dois termos que indicam certas qualidades e não de
derivados de deuses pessoais; podem-se chamar “aquele que tem boa reputação”, sânscrito
Suçravas-, zend Husravah- gr. ,  , mas não se chamam, em geral, “sevidor de tal
ou tal deus”, como nas línguas semíticas. Há muitos nomes comuns como  (Apolíneo)
na Grécia, ou Esugenos (descendentes de Esus) na Gália, mas é uma pequena minoria, não é o mais
comum.
E isso conduz a uma observação importante: os únicos nomes de personagens divinos
comuns a várias línguas indo-européias são nomes de astros, de fenômenos naturais, ou coisas do
gênero. O melhor exemplo dessa série já foi citado; é o sânscrito Dyauh pitâ, o grego , o latim
Júpiter: vê-se aqui um nome divino comum a várias línguas, porque a adoração do céu luminoso
acha-se, em todo o domínio indo-europeu, como o atesta, por si só, o nome deiwos. Mas, também
pode-se dizer que esse nome foi reservado ao céu como ser divino, e que o céu material tenha
recebido um outro nome; é o que se observa em grego e em latim; aí, quase não se tem mais a noção
de que  ou Júpiter seja o céu; cada vez mais e mais esses personagens são entendidos como
deuses pessoais; esses fatos já são propriamente gregos ou romanos, não mais indo-europeus.
Na fase em que a religião é atestada por testemunhos pouco precisos, vê-se o céu e a lua
divinizados e adorados por seus próprios nomes; esse fato se manteve tanto na Lituânia até o século
XVI _ sabe-se que o paganismo perdurou muito tempo entre os lituanos _ como na Índia védica ou
na Grécia antiga. É sob o nome comum que esses astros são divinizados: assim é o estado indo-
europeu: astros e fenômenos naturais são divinizados sob seu nome usual.
O grande deus eslavo Perunû é o trovão, o relâmpago e o sentido de “trovoada e relâmpago”
é bem conservado em eslavo; o “relâmpago” é ainda piorun no atual polonês. O lituano tem uma
forma um pouco diferente, Perkúnas, com o mesmo valor. Isso esclarece o nome do deus védico da
tempestade: Prjanyah; esse termo não tem mais o sentido de “tempestade”, é, mais exatamente, um
personagem divino; mas o eslavo e o lituano revelam o sentido do nome, que foi, inicialmente, um
nome comum e só se tornou nome próprio por um sentido secundário. A palavra prende-se à raiz
*per- significando “bater”; a alternância da forma *per- com as formas *perk-, *perg- acha-se no
verbo armênio cujo aorista é hari “eu bati”, e o presente, harkanem “eu bato” ( o k armênio
representa um antigo g ); a gutural se acha em céltico, no irlandês orgim “eu mato ”, por exemplo. É
provável que o grego  fosse, antigamente o “mar”, simplesmente; lembra, de muito perto,
triath “mer” (genitivo trethan ) do irlandês.
E não somente os fenômenos naturais foram assim divinizados; um belo exemplo indo-
iraniano mostra os fatos sociais também divinizados; Um dos personagens divinos mais importantes
da Índia e do Irã é Mitra; ora, ainda no Avesta, mirô designava, ao mesmo tempo, o “contrato”e o
deus Mira; na Índia as coisas são um pouco menos claras, mas ainda transparentes: mitrah é o
amigo, mitram significa a amizade; a comparação com o mostra bem que não se trata,
originalmente, da amizade sentimento, mas do contrato de amizade, tal como o praticam os homens
em determinado estágio de civilização. Mitra é o contrato; a palavra é aparentada ao eslavo mirû
que significa “paz” e a grande família do do sânscrito mayate “ele troca”, lituano maînas “troca”,
latim com-munis “comum”, gótico gamains (alemão ge-mein ) “comum”. Sendo o contrato
divinizado, Mitra é aquele que leva a sanção do contrato; portanto, ele vê tudo, mesmo o que está
oculto; é o olho que tudo vê; e, como o solo, ele é também o olho do céu, o olho que tudo vê ( em
irlandês, o nome céltico do sol súil tornou-se, também o nome comum de “olho” ); Mitra aproxima-
se do céu o que a torna um mito solar, embora a evidência da etimologia que revela um fato social
divinizado. O sentido da origem de deus persiste, ainda, numa fórmula tradicional hindu: o hóspede
a quem se apresenta um prato de hospitalidade, diz a esse prato; “eu te olho com o olho de Mitra”.
Todo o sentido de Mitra está lá: o contrato de amizade e o olhar que dele resulta.

É inútil multiplicar os exemplos: os dados aqui demonstrados bastam para revelar o caráter do
deus indo-europeu; é um fato natural ou social ao qual se atribui uma importância particular; o deus
não tem um nome distinto do fato. O deus não é um personagem tendo um nome próprio; é o fato
em si, é sua essência, sua força íntima. Na medida em que a lingüística deixa entrever as coisas, o
culto indo-europeu não se dirige a seres autônomos, mais às próprias forças naturais e sociais.

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