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COMBATE DE NEGRO E DE CÃES

BERNARD-MARIE KOLTÈS
Em um país da África Ocidental, do Senegal à Nigéria, um canteiro de obras públicas de uma
empresa estrangeira.

PERSONAGENS

HORN, sessenta anos, chefe do canteiro de obras.


ALBOURY, um negro misteriosamente introduzido na cidade.
LÉONE, uma mulher trazida por Horn.
CAL, na casa dos trinta, engenheiro.

LUGARES
A cidade, rodeada de cercas e torres de vigilância, onde vivem os funcionários e onde á
depositado o material:
 um jardim de buganvílias; uma caminhonete parada embaixo de uma árvore;
 uma varanda, mesa e espreguiçadeira, uísque;
 a porta entreaberta de um dos bangalôs.
O canteiro de obras: um rio o atravessa, uma ponte inacabada; ao longe, um lago.
Os chamados da guarda: barulhos de língua, de garganta, batida de ferro sobre ferro, de
ferro na madeira, pequenos gritos, soluços, cantos breves, assobios, que correm sobre o arame
farpado como uma risada ou uma mensagem em código, barreira ao barulho da savana, em volta da
cidade. A ponte: dois blocos simétricos, brancos e gigantescos, de cimento e de cabos, vindos de
cada lado da areia vermelha e que não se encontram, em um grande vazio de céu, acima de um rio
de lama.
“Ele havia chamado a criança que lhe havia nascido no exílio Nouofia, o que significa
concebido no deserto.”
Alboury: rei de Douiloff (Ouolof) no século XIX, que se opõe à penetração branca.
Toubab: denominação comum do branco em certas regiões da África.
Traduções para a língua ouolof por Alioune Badara Fall.

“O chacal lança-se sobre uma carcaça mal lavada, arranca precipitadamente alguns
pedaços, come depressa, incapturável e impenitente assaltante, assassino de segunda-mão.
Dos dois lados do Cap1, era a perda certa, e, no meio, a montanha de gelo, sobre a qual o
cego que se chocasse nela seria condenado.
Durante o longo sufocamento de sua vítima, em um gozo mediativo e ritual, obscuramente,
a leoa se lembra das possessões do amor”

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A palavra CAP é usada para indicar uma ponta de terra que avança sobre o mar, ou direção para onde aponta um
navio ou avião; como autor utiliza a palavra com inicial maiúscula, pode estar se referindo também à Província do
Cap, antiga colônia inglesa da África, coberta pelas montanhas do Nieuweweld e do Drakenberg. (NT.)

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I

(ATRÁS DAS BUGANVÍLIAS, NO CREPÚSCULO.)

HORN
— Eu bem que tinha visto, de longe, alguém, atrás da árvore.
ALBOURY
— Eu sou Alboury, senhor; eu vim buscar o corpo; a mãe dele foi até o canteiro de obras
colocar ramos sobre o corpo, senhor, e nada, ela não encontrou nada; e a mãe dele rodará a noite
inteira na aldeia, dando gritos, se não lhe derem o corpo. Uma noite terrível, senhor, ninguém
poderá dormir por causa dos gritos da velha; é por isso que eu estou aqui.
HORN
- Foi a polícia, senhor, ou a aldeia que te mandou aqui?
ALBOURY
- Eu sou Alboury, pra buscar o corpo do meu irmão, senhor.
HORN
— Um caso terrível, é mesmo; uma queda infeliz, um caminhão infeliz que rodava à toda
velocidade; o motorista será punido. Os operários são imprudentes, apesar das punições severas que
lhes são dadas. Amanhã, você terá o corpo; devem tê-lo levado à enfermaria, arrumado-o um pouco,
para uma apresentação mais correta à família. Transmita os meus sentimentos à família. Eu te
transmito os meus sentimentos. Que história infeliz!
ALBOURY
- Infeliz sim, infeliz não. Se ele não tivesse sido operário, senhor, a família teria enterrado a
cabaça na terra e dito: uma boca a menos pra alimentar. É assim mesmo uma boca a menos pra
alimentar, já que o canteiro de obras vai fechar e que, em pouco tempo, ele teria deixado de ser
trabalhador. senhor; então teria sido logo uma boca a mais pra alimentar, então é uma infelicidade
por pouco tempo, senhor.
HORN
— Você, eu nunca tinha te visto por aqui. Venha beber um uísque, não fique aí atrás dessa
árvore, eu tenho dificuldade em te ver. Venha se sentar à mesa, senhor. Aqui, no canteiro de obras,
nós mantemos excelentes relações com a polícia e com as autoridades locais; eu me felicito por
isso.
ALBOURY
- Desde que o canteiro de obras começou, a aldeia fala muito do senhor. Então eu disse:
aqui está a oportunidade de ver o branco de perto. Eu tenho ainda, senhor, muitas coisas pra
aprender e eu disse a minha alma: corra até as minhas orelhas e escute, corra até os meus olhos e
não perca nada do que você vai ver.
HORN
— Em todo caso, você se exprime admiravelmente em francês; além do inglês e de outras
línguas, sem dúvida; vocês têm todos um dom admirável para as línguas, aqui. Você é funcionário
público? Você tem a classe de um funcionário público. E também, você sabe mais coisas do que
você diz. E além do mais, tudo isso já é muito elogio.
ALBOURY
- É uma coisa útil, no início.
HORN
— É estranho. Normalmente, a aldeia nos envia uma delegação e as coisas se resolvem
rápido. Normalmente, as coisas se passam mais pomposamente mas rapidamente: oito ou dez
pessoas, oito ou dez irmãos do morto; eu tenho o hábito de negociações rápidas. Triste história para
o seu irmão; vocês se chamam todos “irmão” aqui. A família quer uma indenização; nós a daremos,
claro, a quem de direito, se eles não exagerarem. Mas você, no entanto, eu tenho certeza de que
nunca te vi antes.

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ALBOURY
— Eu só vim para o corpo, senhor, e eu irei embora assim que o tiver.
HORN
— O corpo, sim sim sim! Você o terá amanhã. Desculpe o meu nervosismo; eu tenho
grandes preocupações. Minha mulher acaba de chegar; tem horas que ela está arrumando suas
coisas, eu não consigo saber suas impressões. Uma mulher aqui, é um grande transtorno; eu não
estou habituado.
ALBOURY
- É muito bom, uma mulher, aqui.
HORN
— Eu me casei muito recentemente; muito muito recentemente; enfim, eu posso te dizer,
não está nem tudo completamente concluído, eu quero dizer as formalidades. Mas é um grande
transtorno assim mesmo, senhor, se casar. Eu não tenho mesmo o hábito dessas coisas; isso me dá
muita preocupação, e não vê-la sair do seu quarto me deixa nervoso: ela está lá ela está lá, e ela
arruma já faz horas. Bebamos um uísque enquanto esperamos, eu vou apresentá-la a você; nós
faremos uma festinha e depois, você pode ficar aqui. Mas venha então à mesa; já não tem quase
nenhuma luz aqui. Você sabe, eu tenho a vista um pouco fraca. Venha então se mostrar.
ALBOURY
— Impossível, senhor. Olhe os guardas, olhe pra eles, lá no alto, Eles vigiam tanto no
campo como fora, eles estão me olhando, senhor. Se eles me vêem sentar com o senhor, eles vão
desconfiar de mim; eles dizem que é preciso desconfiar de uma cabra viva dentro da jaula do leão.
Não fique com raiva do que eles dizem. Ser um leão é com certeza mais honrado do que ser uma
cabra.
HORN
- No entanto, eles te deixaram entrar. É necessário ter uma permissão, geralmente, ou ser
representante de uma autoridade; eles sabem bem disso.
ALBOURY
— Eles sabem que não se pode deixar a velha gritar a noite inteira e amanhã ainda: que é
preciso acalmá-la; que não se pode deixar a aldeia acordada, de guarda, e que é preciso satisfazer a
mãe devolvendo-lhe o corpo. Eles sabem muito bem, eles, por que eu vim aqui.
HORN
- Amanhã, nós mandaremos trazer o corpo para você. Enquanto isso, eu estou com a
cabeça pronta pra estourar, eu preciso de um uísque. É uma coisa insana para um velho como eu ter
trazido uma mulher, não é, senhor?
ALBOURY
— As mulheres não são coisas insanas. Elas dizem aliás que é nas panelas velhas que se
faz a melhor sopa. Não fique com raiva do que elas dizem. Elas têm as palavras delas, mas é muito
honroso para o senhor.
HORN
— Mesmo se casar?
ALBOURY
— Principalmente se casar. É preciso pagar a elas o seu preço, e amarrá-las bem logo em
seguida.
HORN
— Como você é inteligente! Eu acredito que ela vai vir. Venha, venha, vamos conversar.
Os copos já estão ali. A gente não vai ficar atrás dessa árvore, na sombra. Venha, me acompanhe.
ALBOURY
— Eu não posso, senhor. Meus olhos não suportam a luz muito forte; eles ficam piscando e
queimando; eles não têm o hábito dessas luzes fortes que vocês usam, à noite.

HORN
— Venha, venha, você vai vê-la.

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ALBOURY
— Eu a verei de longe.
HORN
- Minha cabeça está estourando, senhor, O que é que alguém pode ficar arrumando durante
horas? Eu vou perguntar a ela quais são suas impressões. Você sabe da surpresa? Que preocupação!
Eu solto um fogo de artifício no fim da noite; fique; é uma loucura que me custou uma fortuna. E
além disso é preciso que nós falemos sobre essa história. Sim, as relações sempre foram excelentes;
as autoridades, eu as tenho no meu bolso. Quando eu penso que ela está atrás daquela porta, lá, e
que eu ainda não sei as impressões dela... E se você é um funcionário da polícia, é melhor ainda; eu
gosto da mesma forma de negociar com eles. A África deve causar uma impressão rude a uma mu-
lher que nunca saiu de Paris. Quanto ao meu fogo de artifício, ele vai te tirar o ar. E eu vou ver o
que fizeram com esse bendito cadáver. (Ele sai)

II

HORN (Em frente à porta entreaberta)


— Léone, você está pronta?
LÉONE (De dentro)
— Eu estou arrumando. (Horn se aproxima) Não, eu não estou arrumando. (Hora se
detém.) Eu estou esperando que isso pare de mexer.
HORN
— O quê?
LÉONE
— Que isso pare de mexer. Quando ficar escuro, tudo irá melhor; é a mesma coisa à noite,
em Paris; eu sinto o coração doendo durante uma hora, o tempo que demora pra passar do dia pra
noite. Aliás, os bebês também gritam quando o sol vai embora. Eu tenho pacotes para pegar; eu não
posso esquecer. (Aparecendo com metade do rosto na porta, ela aponta a buganvília) Como se
chamam essas flores?
HORN
- Eu não sei. (Ela desaparece de novo). Venha beber um uísque.
LÉONE
— Um uísque? ah não, proibido. Só faltaria isso, você me veria então. Isso me é totalmente
proibido.
HORN
— Venha assim mesmo.
LÉONE
— Eu estou fazendo a conta do que falta; está me faltando uma porção de coisas e eu tenho
uma porção de coisas das quais eu nunca vou precisar. Me disseram: um agasalho, a África é fria, à
noite; fria, ai! os bandidos. Aqui estou eu com três agasalhos nos braços. Eu estou completamente
esbodegada. Eu estou com medo de sair, cabritinho, um desses medos de sair e aparecer em público.
Como são os outros homens? As pessoas não gostam de mim, em geral, a primeira vista.
HORN
- Só tem um, eu já te disse.
LÉONE
- O avião, é uma coisa que não me agrada. Na verdade, eu prefiro o telefone; a gente
sempre pode desligar. No entanto, eu me preparei, preparei como uma louca: eu escutava reggae
todo santo dia, o dia inteiro, as pessoas do meu prédio já não agüentavam mais. Sabe o que eu acabo
de descobrir, abrindo a minha mala? Os parisienses têm um cheiro forte, eu sabia disso; o cheiro

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deles, eu já tinha sentido dentro do metrô, na rua, com todas essas pessoas em quem é preciso roçar,
eu sentia o cheiro vagar e apodrecer pelos cantos. Bom, eu ainda estou sentindo esse cheiro, aqui,
na minha mala; eu não suporto mais. Quando um agasalho, uma camisa, qualquer pedaço de pano
pegou o cheiro de peixe ou de batatas fritas ou o cheiro de hospital, tente tirá-lo; e este é mais
resistente ainda. Eu vou precisar de tempo para fazer toda essa roupa tomar um ar. Como eu estou
contente de estar aqui. A África, enfim!
HORN
— Mas você ainda não viu nada, e você não quer nem mesmo sair desse quarto.
LÉONE
— Ah, eu a vi bastante e eu vejo bastante daqui para adorá-la. Eu não sou uma visitante.
Agora eu estou pronta; quando eu tiver terminado a conta do que está faltando e do que eu tenho a
mais, e feito as roupas tomarem um ar, eu vou, eu te prometo.
HORN
— Eu estou te esperando, Léone.
LÉONE
— Não não me espere, não não me espere (Os chamados da guarda; Léone aparece pela
metade). E o que é que é, isso?
HORN
— São os guardas. A noite e a madrugada inteira, de tempos em tempos, para se manterem
acordados, eles ficam se chamando.
LÉONE
— É assustador. (Ela escuta). Não me espere. (Ela entra)j Oh, cabritinho, é preciso que eu
te confesse uma coisa.

HORN
— O quê?
LÉONE (Baixo)
— Logo antes de vir, ontem à noite, eu estava caminhando pela ponte Neuf. E daí? e daí
que eu me sinto de repente tão bem, oh tão feliz, como nunca, sem razão, É assustador. Quando me
acontece alguma coisa desse tipo, bom, eu sei que vai acabar mal. Eu não gosto de sonhar coisas
felizes demais ou me sentir bem demais ou então, isso me deixa nuns estados pelo santo dia inteiro
e eu fico esperando a desgraça. Eu tenho intuições, mas elas são ao contrário. E elas nunca me
enganaram. Ah eu não estou com pressa de sair daqui, cabritinho.
HORN
— Você está nervosa e é bem normal.
LÉONE
— Você me conhece tão pouco!
HORN
— Venha, anda, vem.
LÉONE
— Você tem certeza de que só tem um homem.
HORN
— Eu tenho certeza absoluta.

LÉONE (Aparece o seu braço)


—Você me deixa morrer de sede. Quando eu já tiver bebido, eu vou, eu te prometo.
HORN
— Eu vou buscar alguma coisa pra beber.
LÉONE
— Mas água, principalmente, água! Eu tenho comprimidos pra tomar e pra tomar com
água. (Horn sai; Léone aparece, olha) Tudo isso me impressiona. (Ela se pendura, colhe uma flor
de buganvília, e entra novamente.)

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III

(NA VARANDA. HORN ENTRA.)

CAL (À mesa, com a cabeça entre as mãos.)


- Toubab, pobre animal, por que você partiu? (Ele chora) Qual o mal que eu te fiz? Horn,
você me conhece, você conhece os meus nervos. Se ele não voltar esta noite, eu vou matá-los todos;
comedores de cachorros. Eles o tomaram de mim. Eu não posso dormir sem ele, Horn. Eles o estão
comendo. Eu não escuto nem os latidos. Toubab!
HORN (Arrumando o jogo de gamela.)
— Uísque de mais. (Ele põe a garrafa ao seu lado)
CAL
— Silêncio demais!
HORN
— Eu ponho cinqüenta francos.
CAL (Levantando novamente a cabeça.)
— Sobre cinco números?
HORN
— Sobre cada um.
CAL
— Eu não vou. Dez francos por número, nem um centavo a mais.
HORN (Olhando-o bruscamente.)
— Você fez a barba e se penteou.
CAL
— Você sabe muito bem que eu sempre faço a barba à noite.
HORN (Olhando os dados.)
— É meu. (Ele recolhe.)
CAL
— Aliás, eu quero jogar com os peões; pelo prazer, pelo jogo puro. Você come, você come,
não há mais nenhum prazer; você só encontra prazer em comer, é nojento; cada um por si e nada
pelo prazer. Uma mulher, isso vai nos trazer um pouco de humanidade aqui. Você vai desagradá-la,
isso vai ser rápido. Eu sou por um jogo desinteressado, não para ficar comendo tudo. A gente deve
jogar com os peões. Aliás, as mulheres preferem jogar com os peões. As mulheres trazem
humanidade para o jogo.
HORN (Baixo.)
—Tem um homem aqui, Cal. Ele é da aldeia ou da polícia ou pior ainda, pois eu nunca o
tinha visto. Ele não quer dizer em nome de quem ele vem pedir as contas. Mas as contas, ele vai
pedir, e você vai dar a ele, a ele. Prepare-se. Eu não me misturo mais; eu não estou com cabeça pra
isso; eu não sei de nada; eu não vou te cobrir; eu não estava lá. Meu trabalho está terminado e tchau.
Desta vez, você mesmo vai responder; e você não suporta nem uma gota fodida de uísque.
CAL
— Mas eu não tenho nada a ver com isso, Horn, eu não fiz nada, Horn. (Baixo.) Não é o
momento de se dividir, a gente deve ficar junto, a gente deve ficar unido, Horn. É simples: você faz
um relatório para a polícia, um relatório para a direção, você assina, e pronto; e eu fico tranqüilo.

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Em você, todo mundo acredita; eu só tenho o meu cachorro, eu, ninguém me escuta. É preciso
ficarmos juntos contra todos. Eu não vou falar com esse negro; o negócio é simples e eu te disse
toda a verdade e é a sua vez de jogar. Você conhece os meus nervos, Horn, você conhece bem; é
melhor que eu não o veja. Aliás, eu não quero ver ninguém enquanto o meu cachorro não voltar.
(Ele chora.) Eles me vão comê-lo.
HORN
- Eu ponho cinqüenta francos por número, e nem um centavo a menos.
CAL (Ele coloca cinqüenta francos. Gritos de sapos, bem perto.)
— A gente estava olhando o céu, os operários e eu; o cachorro tinha sentido o cheiro da
tempestade. Um sujeito atravessava o campo; eu o vejo. Nesse instante, estoura um temporal. Eu
grito: vem Toubab, vem! O cachorro levanta o focinho, levanta os pêlos; ele sente o cheiro da
morte; isso o excita, pobre animal. Depois eu o vejo correr em direção ao negro, lá longe, debaixo
da tromba d’água. Vem, Toubab! Eu o chamo; pobre animal. Então, no meio da gritaria, uns clarões
desencontrados, eu vejo um grande raio. Toubab parou; todos olham. E a gente vê o negro cair, no
meio dos barulhos de trovão; atingido, debaixo das rajadas de chuva; ele se deita na lama. Em nossa
direção vem o cheiro de enxofre; depois, o barulho de um caminhão, lá longe, que acelera, em nossa
direção. (Horn balança os dados.) Meu Toubab desapareceu, eu não posso dormir sem ele, Horn.
(Ele chora.) Desde que ele é bem pequeninho, dorme em cima de mim; o instinto o fazia sempre
voltar pra mim, ele não poderá se virar sozinho, Horn; pobre animal. Não estou escutando ele latir;
eles o comeram. Eu, à noite, aquilo me fazia uma bola de pêlos em cima da barriga, das pernas, do
saco: isso me fazia dormir, Horn, já estava no sangue, pra mim. Que mal fiz a ele?
HORN (Olhando os dados)
— Doze. (Cal recolhe.)
CAL (Com uma piscada de olho)
— Que surpresa, Horn! Você diz: eu vou ao aeroporto; você volta, você me diz: minha
mulher está aqui! Que susto. Eu nem sabia que você tinha achado uma pra você, afinal. O que é que
te deu de repente, meu velho? (Eles apostam.)
HORN
— Um homem não deve acabar sua vida desenraizado.
CAL
— Sim, meu velho, claro. (Ele recolhe.) O que conta, é que você tenha feito uma boa
escolha.
HORN
— Então na última vez que eu fui a Paris, eu disse: se você não encontrar agora, você não
vai encontrá-la nunca.
CAL
— E você encontrou! Que sedutor, meu velho! (Eles apostam), Desconfie assim mesmo do
clima. Faz as mulheres ficarem loucas. É científico, isso.
HORN
— Não esta. (Cal recolhe.)
CAL
— Que ela ponha bons sapatos, que eu poderei lhe emprestar, diz isso pra ela, meu velho.
As mulheres se preocupam com a elegância e não conhecem nada dos micróbios africanos, esses
que a gente pega pelos pés, meu velho.
HORN
— Esta não é uma mulher comum, não.
CAL (Com uma piscada de olho.)
— Então, eu darei a ela uma boa impressão. Eu encontrarei a oportunidade de lhe beijar a
mão; ela verá a elegância.
HORN
— Eu disse: você gosta de fogos de artifício? Sim, ela disse; eu disse: eu preparo um todo
ano, na África, e este será o último. Você quer vê-lo? Sim ela disse. Então, eu dei a ela o endereço, o

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dinheiro para a passagem de avião: esteja lá dentro de um mês, o tempo que a encomenda de
Ruggieri possa chegar. Sim, ela disse. Foi assim que eu a encontrei. Para o último fogo de artifício;
eu queria uma mulher que o visse. (Ele aposta) Eu disse a ela que o canteiro de obras iria fechar e
que então eu deixaria para sempre a África. Ela disse sim pra tudo. Ela sempre diz sim.
CAL (Depois de um tempo.)
- Por que eles desistem da obra, Horn?
HORN
- Ninguém sabe. Eu pus cinqüenta francos. (Cal aposta.)
CAL
— Por que logo assim, Horn? por que sem explicação? Eu ainda quero trabalhar, Horn. E o
trabalho que nós fizemos? Uma metade de floresta derrubada, vinte e cinco quilômetros de estrada?
uma ponte em construção? e a cidade, os poços a escavar? todo esse tempo pra nada? Por que a
gente não sabe de nada, Horn, nada do que se decide? e por que você mesmo não sabe?
HORN (Olhando os dados.)
— Sou eu que pego. (Silêncio, os chamados da guarda.)
CAL (Baixo.)
— Ele está rangendo os dentes.
HORN
— O que?
CAL
— Ali, atrás da árvore, o negro, diz pra ele ir embora, Horn. (Silêncio. Latidos ao longe;,
Cal tem um sobressalto.) Toubab! Eu o estou ouvindo. Ele está zanzando perto do esgoto; que ele
caia lá dentro, eu não vou me mexer. (Eles apostam.) Sacanagem; ele fica zanzando e quando eu
chamo, ele não responde, ele dá uma de que está pensando. E ele? É. Pense bem, meu cachorrinho;
eu não vou te buscar. Ele deve ter sentido o cheiro de um bicho desconhecido; que ele se vire; ele
não deve cair; e se ele cair, eu não me mexo. (Eles olham os dados. Cal recolhe, baixo.) O cara,
Horn, eu posso te dizer, não era nem mesmo um operário; um simples diarista; ninguém o conhece,
ninguém vai falar dele. Então ele quer ir embora; eu digo: não, você não vai embora. Deixar o
canteiro de obras uma hora antes; é importante, uma hora; se a gente deixa uma hora, tem o
exemplo que isso dá. Como eu te falei, eu digo então: não. Aí ele me cospe nos pés e vai embora.
Ele me cuspiu nos pés, e por dois centímetros teria acertado o sapato. (Eles apostam) Então eu
chamo os outros caras, e digo pra eles: vocês estão vendo, esse cara? (Imitando o sotaque negro)
Sim chefe nós estamos vendo — ele atravessa o canteiro de obras sem esperar o fim do expediente?
sim chefe sim chefe sem esperar o fim do expediente — sem capacete, pessoal, por acaso ele está
com o capacete? — não chefe agente está vendo bem ele não está usando capacete. Eu digo:
lembrem-se disso: ele saiu sem que eu o autorizasse — sim chefe oh sim chefe sem que você o
autorizasse. Aí ele caiu: o caminhão estava chegando e eu pergunto ainda: mas quem está dirigindo
o caminhão? mas a que velocidade ele vai? ele não viu o negro? E aí, hop! (Cal recolhe)
HORN
— Todo mundo te viu atirar. Imbecil, você não suporta nem mesmo essa sua raiva fodida.
CAL
— É como eu te digo: não sou eu; é uma avalanche.
HORN
— Um tiro. E todo mundo te viu subir no caminhão.
CAL
— O tiro é a tempestade; e o caminhão, é a chuva que cegava tudo.
HORN
— Eu talvez não tenha ido à escola, mas todas as besteiras que você vai dizer, eu já
conheço de antemão. Você vai ver o que elas valem; pra mim, tchau, você é um imbecil e isso não é
negócio meu. Eu ponho cem francos.
CAL
— Eu vou.

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HORN (Batendo na mesa)
— Por que você tocou nele, meu Deus? Aquele que toca em um cadáver caído na terra é
responsável pelo crime, é assim nessa merda de país. Se ninguém tivesse tocado nele, não haveria
responsável, seria um crime sem responsável, um crime fêmeo, um acidente. O negócio era simples.
Mas as mulheres vieram buscar o corpo e elas não encontraram nada, nada. Imbecil. Elas não
encontraram nada. (Ele bate na mesa.) Se vira. (Ele balança os dados.)
CAL
— Quando eu o vi, eu disse pra mim mesmo: esse aí, eu não vou poder deixá-lo em paz. O
instinto, Horn, os nervos. Eu não o conhecia; ele tinha apenas cuspido a dois centímetros dos meus
sapatos; mas o instinto, é assim que funciona: Você, não é agora que eu vou te deixar em paz, está aí
o que eu disse pra mim enquanto olhava pra ele. Então eu o pus no caminhão, eu fui até o depósito
de lixo e joguei ele lá em cima: é tudo o que você merece e pronto; e depois eu voltei pra casa. Mas
eu voltei lá, Horn; eu não agüentava ficar parado, os nervos estavam acabando comigo. Eu o peguei
de volta no depósito de lixo, lá do alto, e o pus de volta no caminhão; eu o levo até o lago e o jogo
dentro d’água. Mas isso estava me deixando perturbado, Horn, deixá-lo em paz na água do lago.
Então eu voltei lá, eu entrei na água até o pescoço e o peguei de novo. Ele estava dentro do
caminhão e eu não sabia mais o que fazer, Horn: você, eu não vou poder te deixar em paz, nunca, é
bem mais forte do que eu. Eu olho pra ele, eu digo pra mim mesmo: ele vai acabar com os nervos,
esse bubu. É aí que eu encontro. Eu disse pra mim: os esgotos, está aí a solução: nunca você vai
mergulhar lá dentro para pegá-lo de novo. E é assim, Horn: para deixá-lo em paz, apesar de não
querer, de uma vez por todas, Horn; enfim, eu vou poder me acalmar. (Eles olham os dados) Se eu o
tivesse enterrado, Horn, aí, eu teria de desenterrá-lo, eu me conheço bem; e se eles o tivessem
levado para a aldeia, eu teria ido buscá-lo. O esgoto, era o mais simples, Horn, era o melhor: aliás
isso me acalmou, um pouco. (Horn se levanta; Cal recolhe) E sobre os negros, meu velho, os
micróbios dos negros são os piores de todos; diga isso pra ela também. As mulheres nunca estão
prevenidas o suficiente contra o perigo. (Horn sai.)

IV

HORN (Encontrando-se com Alboury debaixo da árvore.)


— Ele estava sem o capacete, é o que eu acabo de saber. Eu te falava da imprudência dos
operários: eu tinha pensado certo. Sem capacete: isso nos tira toda a responsabilidade.
ALBOURY
— Que me entreguem o corpo sem o capacete, senhor, que me entreguem como ele está.
HORN
— Mas é o que eu vinha te dizer: eu te peço para escolher. Fique aqui ou não fique aqui,
mas não fique na sombra, atrás da árvore. É irritante sentir a presença de alguém. Se você quer vir à
nossa mesa, você vem, eu não disse o contrário; mas se você não quer, vá embora, eu te peço: eu te
receberei no escritório amanhã de manhã e nós examinaremos. Aliás, eu preferiria que você fosse
embora. Eu não disse que eu não quero te servir um copo de uísque; não foi o que eu disse. E então
o quê? você se recusa a vir tomar um trago? você não quer vir ao escritório amanhã de manhã? E
aí? Escolha, meu senhor.
ALBOURY
— Eu espero aqui para pegar o corpo, é tudo o que eu quero; e eu digo: quando eu tiver o
corpo do meu irmão, eu vou embora.

HORN
— O corpo, o corpo! Ele não estava com o capacete, o seu corpo; tem testemunhas: ele

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atravessou o canteiro de obras sem capacete. Eles não terão nem um centavo, diga isso pra eles,
senhor.
ALBOURY
— Eu direi isso a eles quando eu levar o corpo: sem capacete, sem um centavo.
HORN
— Pense um pouco na minha mulher, senhor. Esses barulhos, essas sombras, esses gritos;
tudo é tão assustador aqui para alguém que chega de repente. Amanhã, ela estará acostumada, mas
esta noite! Ela acaba de chegar, então, se além disso, atrás da árvore, ela vê, ela percebe, ela
adivinha alguém! Você não faz idéia. Ela ficará aterrorizada. Você quer aterrorizar minha mulher,
senhor?
ALBOURY
— Não, não é isso que eu quero; eu quero entregar o corpo para a família dele.
HORN
— Diga isso pra eles, senhor: eu darei cento e cinqüenta dólares para a família. Pra você,
eu vou dar duzentos, pra você; eu vou te dar amanhã. E muito. Mas é provavelmente o último morto
que nós teremos neste canteiro de obras: e então o quê! Pronto. Dê o fora.

ALBOURY
— É o que eu vou dizer a eles; cento e cinqüenta dólares: e eu levarei o corpo comigo.
HORN
— Diz pra eles, é, diz pra eles; é o que lhes interessa. Cento e cinqüenta dólares vão fechar
o bico deles. Quanto ao resto, acredite em mim, isso não lhes interessa nem um pouco. O corpo, o
corpo, ah!
ALBOURY
— Ele me interessa.
HORN
— Dá o fora.
ALBOURY
— Eu fico.
HORN
— Eu vou te fazer sair.
ALBOURY
— Eu não vou sair.
HORN
— Mas você vai assustar a minha mulher, meu senhor.

ALBOURY
— A sua mulher não vai ter medo de mim.
HORN
— Vai sim; uma sombra, alguém! E então finalmente, eu vou fazer os guardas atirarem em
você, é isso o que eu vou fazer.
ALBOURY
— O escorpião que a gente mata sempre volta.
HORN
— Senhor, meu senhor, você está ficando irritado; o que você está dizendo? Até o
momento, eu sempre me fiz entender muito bem... Por acaso eu estou ficando irritado? É preciso
admitir que você é particularmente difícil; é impossível negociar, com você. Faça um esforço do seu
lado. Fique, tudo bem, fique, já que parece ser o que você quer. (Baixo) Eu sei muito bem que o
pessoal do ministério está furioso. Mas eu, compreenda, eu não tomo parte nessas decisões de alto
nível; um simples chefe de canteiro de obras não decide nada: eu não tenho nenhuma
responsabilidade. Aliás, é preciso que eles compreendam: o governo encomenda, encomenda, e não
paga; já faz meses agora que ele não paga. A empresa não pode manter canteiros de obras

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funcionando quando o governo não paga; você compreende? Eu sei que tem por que não estar
satisfeito: pontes inacabadas, estradas que não levam a lugar nenhum. Mas o que eu posso fazer, eu,
hein? O dinheiro, o dinheiro, pra onde ele vai então? O país é rico, por que as caixas do Estado
estão vazias? Eu não digo isso para te ofender, mas me explique isso, senhor.

ALBOURY
— O que dizem é que o palácio do governo se transformou num lugar de sacanagem, lá;
que fazem vir champanha da França e mulheres muito caras; que ficam bebendo e trepando, o dia
inteiro e a noite inteira, nos escritórios dos ministérios, e aí está o caixa vazio, é o que me disseram,
senhor.
HORN
— Que ficam trepando, veja só você! (Ele ri) Ele goza os ministros do seu próprio país,
veja você. Taí, eu acho você simpático. Eu não gosto dos funcionários públicos e você no final das
contas não tem cara de funcionário público. (Baixo) Então, se é assim, como você mesmo está
dizendo, quando é que a juventude vai começar a se movimentar? quando então eles vão se decidir,
com as idéias progressistas que eles trazem da Europa, a substituir essa podridão, a tomar tudo isso
nas mãos, a pôr ordem nisso? Será que um dia a gente vai ver essas pontes e estradas ficarem
prontas? Me conte tudo; me dê umas ilusões.
ALBOURY
— Mas dizem também que da Europa, o que se traz, é uma paixão mortal, o carro, senhor;
que só se pensa nisso; que se brinca com isso noites e dias; que se espera morrer com isso; que tudo
foi esquecido; é o retorno da Europa; é o que me disseram.
HORN
— Os carros, sei; Mercedes, ainda; eu vejo bem eles, todos os dias, dirigindo como loucos;
isso me deixa triste. (Ele ri) Mesmo em relação à juventude, você não tem nenhuma ilusão, você me
agrada de verdade. Eu tenho certeza de que a gente vai se entender.
ALBOURY
— Eu, eu estou esperando que me entreguem o meu irmão; é por isso que eu estou aqui.
HORN
— Enfim, explique pra mim. Por que você insiste em recuperá-lo? Me lembre o nome
desse homem?
ALBOURY
— Nouofia, era o seu nome conhecido; e ele tinha um nome secreto.
HORN
— Enfim, o corpo dele, que importância tem pra você o corpo dele? É a primeira vez que
eu vejo isso; no entanto, eu acreditava que conhecia bem os africanos, essa ausência de valor que
eles dão à vida e à morte. Eu aceito acreditar que você seja particularmente sensível; mas enfim,
não é amor, bem, que te faz ficar tão obstinado? É uma coisa de europeu, o amor?
ALBOURY
— Não, não é amor.
HORN
— Eu sabia, eu sabia. Eu muitas vezes percebi essa insensibilidade. Note que ela choca
muitos europeus, aliás; eu, eu não condeno; note também que os asiáticos são piores ainda. Mas,
bom, por que então você é tão obstinado por uma coisa tão pequena, hein? Eu disse pra você que eu
indenizaria.
ALBOURY
— Muitas vezes, as pessoas pequenas querem uma coisa pequena, muito simples; mas essa
coisa pequena, elas a querem; nada vai desviá-las dessa idéia; e elas se deixariam matar por ela; e
mesmo quando as tivessem matado, mesmo mortas, elas a quereriam ainda.
HORN
— Quem era ele, Alboury, e você, quem é você?
ALBOURY

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— Há muito tempo, eu disse pro meu irmão: eu sinto que estou com frio; ele me diz: é que
tem uma pequena nuvem entre o sol e você; eu digo a ele: é possível que essa pequena nuvem me
faça congelar enquanto tudo em volta de mim, as pessoas transpirem e o sol as queime? Meu irmão
me diz: eu também, eu congelo; nós então nos aquecemos juntos. Eu digo em seguida ao meu
irmão: quando então vai desaparecer essa nuvem, que o sol possa nos aquecer, nós também? Ele me
disse: ela não vai desaparecer, é uma nuvenzinha que vai nos seguir em todos os lugares, sempre
entre o sol e nós. E eu sentia que ela nos seguia em todos os lugares, e que no meio das pessoas
rindo nuas no calor, meu irmão e eu nós congelávamos e nos aquecíamos juntos. Então meu irmão e
eu, debaixo dessa nuvenzinha que nos privava do calor, nós nos habituamos um ao outro, para nos
aquecermos. Se as minhas costas coçavam, eu tinha o meu irmão para coçá-las pra mim; e eu
coçava as costas dele quando ele precisava; a preocupação me fazia roer as unhas das mãos dele e,
no sono, ele chupava o dedo da minha mão. As mulheres que nós tivemos se agarraram a nós e
começaram a congelar também; mas a gente se aquecia tanto se abraçando debaixo da pequena
nuvem, a gente se habituava uns aos outros e o arrepio que tomava conta de um homem repercutia
de um lado ao outro do grupo. As mães vinham ficar conosco, e as mães das mães e os filhos delas e
os nossos filhos, uma família enorme da qual mesmo os mortos nunca se desgrudavam, e eram
mantidos apertados no meio de nós, por causa do frio debaixo da nuvem. A nuvenzinha tinha
subido, subido em direção ao sol, privando do calor uma família cada vez maior, cada vez mais
habituada cada um a cada um, uma família impressionantemente numerosa feita de corpos mortos,
vivos e para vir, indispensáveis cada um a cada um na medida em que nós víamos recuar os limites
das terras ainda quentes sob o sol. É por isso que eu venho reclamar o corpo do meu irmão que
arrancaram de nós, porque a sua ausência rompeu essa proximidade que permite que nos
mantenhamos quentes, porque, mesmo morto, nós precisamos do calor dele para nos aquecer, e ele
precisa do nosso para manter o seu.
HORN
— É difícil de se compreender, senhor. (Eles se olham) Eu acredito que,
independentemente do esforço que se faça, será sempre difícil coabitar. (Silêncio)
ALBOURY
— Me disseram que na América os negros saem de manhã e os brancos saem à tarde.
HORN
— Te disseram isso?
ALBOURY
— Se é verdade, senhor, é uma ótima idéia.
HORN
— Você pensa isso mesmo?
ALBOURY
— Penso.
HORN
— Não, é uma idéia muito ruim. É preciso ser cooperativo, ao contrário, senhor Alboury, é
preciso forçar as pessoas a serem cooperativas. Aqui está a minha idéia. (Um tempo.) Aqui, meu
bom senhor Alboury, eu vou te deixar sem fala. Eu tenho um excelente projeto pessoal do qual eu
nunca falei pra ninguém. Você é o primeiro. Você vai me dizer o que você pensa dele. A propósito
desses famosos três bilhões de seres humanos, com os quais se faz uma montanha: eu calculei, que
alojando-os todos em prédios de quarenta andares — cuja arquitetura faltaria definir, mas quarenta
andares e nem um a mais, isso não chega nem ao tamanho da torre Montparnasse, meu senhor —
em apartamentos de área média, meus cálculos são razoáveis; que estes prédios constituam uma
cidade, eu digo bem: uma só, cujas ruas teriam dez metros de largura, o que é completamente
correto. Bom, essa cidade, senhor, cobriria a metade da França; nem um quilômetro quadrado a
mais. Todo o resto seria livre, completamente livre. Você pode verificar os cálculos, eu os fiz e refiz,
eles estão absolutamente exatos. Você acha o meu projeto estúpido? Só vai ficar faltando escolher o
lugar desta cidade única; e o problema estará solucionado. Nada mais de conflito, de país rico, nada
mais de país pobre, todo mundo no mesmo barco, e reservas pra todo mundo. Você vê, Alboury, eu

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sou um pouco comunista, eu também, à minha maneira. (Um tempo.) A França me parece ideal: é
um país temperado, bem irrigado, sem desproporção no clima, na flora, nos animais, nos riscos de
doença; ideal, a França. Poderia-se claro construí-la na parte sul, a mais ensolarada. No entanto, eu,
eu gosto dos invernos, os bons velhos rudes invernos; você não conhece os bons velhos invernos
rudes, senhor. O melhor seria então construí-la, esta cidade, de comprimento, dos Vosges até os
Pireneus, margeando os Alpes; os amantes do inverno iriam para a região da antiga Estrasburgo e
aqueles que não suportam a neve, os bronquireiros e os friorentos, iriam para os espaços onde
tivéssemos destruído Marselha e Bayonne. O último conflito desta humanidade aqui seria um
debate teórico entre os charmes do inverno alsaciano e os da primavera da Côte d’Azur. Quanto ao
resto do mundo, senhor, seria o estoque. Livre a África, senhor; exploraríamos suas riquezas, seu
subsolo, a terra, a energia solar, sem incomodar ninguém. E só a África seria suficiente para
alimentar a minha cidade durante gerações, antes que fôssemos obrigados a meter o nariz na Ásia e
na América, Aproveitaríamos ao máximo a técnica, leva-se um mínimo estrito de operários, por
turnos, bem organizado, alguma coisa como um serviço cívico; e eles nos trazem o petróleo, ouro,
urânio, o café, as bananas, tudo o que você quiser, sem que nenhum africano sofra pela invasão
estrangeira, já que eles não estarão mais aqui! Sim, a França seria bela, aberta aos povos do mundo,
todos os povos misturados perambulando por suas ruas; e a África seria bela, vazia, generosa, sem
sofrimento, teta do mundo! (Um tempo.) Meu projeto te faz rir? No entanto aqui está uma idéia,
senhor, mais fraternal que a sua. É assim que eu, senhor, eu quero e persisto em pensar.
(ELES SE OLHAM; O VENTO SOPRA.)

(NA VARANDA)

CAL (Percebendo Léone, ele grita.)


— Horn! (Ele bebe.)
LÉONE — (Com a flor na mão)
— Como se chamam essas flores?
CAL
— Horn!
LÉONE
— Você sabe onde eu poderia encontrar de beber?
CAL
— Horn! (Ele bebe.) Onde ele se meteu?
LÉONE
— Não o chame, não se incomode; eu encontrarei sozinha. (Ela se distancia.)

CAL (Fazendo-a parar.)


— É com esses sapatos que você conta para andar aqui?
LÉONE
— Meus sapatos?
CAL
— Sente-se. E então, eu te meto medo?
LÉONE
— Não. (Silêncio; latidos do cachorro, ao longe.)
CAL
— Em Paris, não sabem o que é, um sapato: em Paris, não sabem nada e fazem as modas
de qualquer jeito.

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LÉONE
— É a única coisa que eu comprei pra mim, e aqui está você me dizendo isso. Os bandidos,
o preço que eles te fazem pagar por esse pedaço de couro! Saint-Laurent, butique África, no
entanto. Caro, isso! Ouh. Uma loucura.
CAL
— É preciso que eles subam, que eles segurem o tornozelo. Com bons sapatos, a gente
agüenta o rojão, é o mais importante, os sapatos. (Ele bebe.)

LÉONE
— É.
CAL
— Se é a transpiração que te dá medo, bom, é idiota; uma camada de transpiração, isso
seca, e depois então uma outra, uma outra, isso faz uma carapaça, protege. E então, se é o cheiro
que te dá medo, o cheiro, ele desenvolve o instinto. Aliás, quando se conhece o cheiro, se conhece
as pessoas; e também, é bem prático, a gente reconhece as coisas de cada um, tudo fica mais
simples, é o instinto e pronto.
LÉONE
— Ah é. (Silêncio)
CAL
— Beba um trago, por que você não bebe?
LÉONE
— Uísque? Oh não, eu não posso. Meus remédios. E também, eu não estou com tanta sede.
CAL
— Aqui, é preciso beber, com sede ou sem sede; senão, a gente seca. (Ele bebe, silêncio)
LÉONE
— Eu vou precisar costurar um botão. Isso, deixa comigo; as casas não, é difícil demais
pra mim. Nenhuma paciência, nenhuma. Eu as deixo sempre pro fim e finalmente, bom, pronto: um
alfinete de mola. Os vestidos mais chiques que eu fiz pra mim, eu te juro, é ainda e sempre um
alfinete de mola que irá fechá-los. Sua megera, um dia, você vai levar uma alfinetada.
CAL
— Eu também antes, o uísque, eu cuspia em cima; e eu bebia leite, eu, nada além de leite,
eu posso te dizer; litros, barricas; antes de viajar. Mas, desde que eu viajo, olha só; essa sujeira de
leite em pó deles, esse leite americano, leite de soja, não tem um pêlo de vaca que entra nesse leite
aí. Então, se é obrigado a se meter nessa sujeira. (Ele bebe.)
CAL
— Felizmente que essa sujeira aqui a gente encontra em todo lugar; isso, eu nunca fiquei
sem, em nenhum lugar do mundo. E no entanto eu viajei; e você pode acreditar em mim. Você
viajou?
LÉONE
— Ah não, é a primeira vez.
CAL
— Eu, jovem como você está me vendo, eu viajei, acredite em mim, acredite em mim.
Bangcoc eu fiz; eu fiz Ispahan, o mar Negro; Marrakesh, eu fiz, Tânger, a Reunião, o Caribe,
Honolulu, Vancouver, eu; Chicoutimi; o Brasil, a Colômbia, a Patagônia, as ilhas Espanholas, a
Guatemala, eu; e finalmente essa sujeira de África aqui, olha, Dakar, Abidjã, Lomé, Léopoldville,
Johannesburgo, Lagos; pior do que tudo, a África, eu posso te dizer. Bom, em todo lugar o uísque
ou o leite de soja: e nada de surpresa, não. Eu sou jovem, no entanto; e bom, eu posso te dizer que
um uísque se parece com um uísque, um canteiro de obras com um canteiro de obras, uma empresa
francesa com uma outra empresa francesa; tudo a mesma sujeira.
LÉONE
— É.
CAL

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— Não, essa empresa aqui, não é a pior, que não me façam dizer o que eu não digo, não.
Ao contrario, talvez seja ate a melhor. Ela sabe tomar conta ele você, ela te trata como se deve, a
gente é bem alimentado, bem alojado. ela é francesa, ora: você vai ver; não sou eu que você vai
ouvir falar contra, guarde isso. (Ele bebe.) Não é como essas sujeiras de empresas italianas,
holandesas, alemãs, suíças e não sei quê mais, que enchem a África agora, que são uma verdadeira
zona. Não, não a nossa; não, ela é como se deve ser. (Ele bebe) Eu não gostaria de ser italiano ou
suíço, você pode acreditar.
LÉONE
— Oh sim oh não.
CAL
— Beba isso. (Ele lhe estende um copo de uísque)
LÉONE
— Mas onde ele está então: (Silêncio)
CAL (Baixo)
— Por que você veio pra cá?
LÉONE (Levando um susto.)
— Por quê? Eu queria ver a África.
CAL
— Ver o quê? (Um tempo.) Isso não é a África, aqui. É um canteiro francês de obras
publicas, bebê.
LÉONE
— Não deixa ele ser...
CAL
— Não. Horn te interessa?
LÉONE
— A gente deve se casar, sim.
CAL
— Com Horn, se casar?
LÉONE
— Sim, sim, com ele.
CAL
— Não.
LÉONE
— Mas por que você diz sempre... Onde está o e cabritinho?
CAL
— Cabritinho? (Ele bebe.) Horn não pode se casar, você sabe, não? (Silêncio.) Ele já te
falou do...
LÉONE
— Sim, sim, ele me falou disso.
CAL
— Ele te falou disso, então?
LÉONE
— Sim, sim, sim.
CAL
— É um corajoso, Horn. (Ele bebe.) Ficar um mês sozinho com alguns bubus, sozinho
aqui; para vigiar o material, durante essa porra de guerra deles; não seria comigo que teriam feito
essa sacanagem. Então ele te contou tudo, a briga com os ladrões, seu ferimento — um ferimento
horrível, Horn e tudo? (Ele bebe.) É um esbanjador, Horn.
LÉONE
— É.
CAL
— Não. De quê isso adianta pra ele, agora? O que ele tem de mais, será que você sabe,

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você?

LÉONE
— Não, eu não sei.
CAL (Com uma piscada de olho)
— Mas o que ele tem de menos, você deve saber! (Ele bebe.) Ela soa engraçada, essa
história. (Ele olha pra ela.) O que interessa a ele, em você? (Chamados dos guardas; silêncio.)
LÉONE
— Eu estou com sede demais.

(ELA SE LEVANTA, SE DISTANCIA SOB AS ÁRVORES.)

VI

(O VENTO LEVANTA URNA POEIRA VERMELHA; LÉONE VÊ ALGUÉM DEBAIXO DA


BUGANVÍLIA. NOS MURMÚRIOS E SOPROS, NO BATER DAS ASAS QUE A
CONTORNAM, ELA RECONHECE O SEU NOME, E ENTÃO ELA SENTE A DOR DE UMA
MARCA TRIBAL GRAVADA EM SUAS BOCHECHAS. O HARMATTAN, VENTO DE AREIA,
CARREGA-A ATÉ AO PÉ DA ÁRVORE.)

LÉONE (Aproximando-se de Alboury.)


— Eu estou procurando água. Wasser, bitte. (Ela ri) Você compreende o alemão? É a única
língua estrangeira que eu conheço um pouco. Você sabe, minha mãe era alemã, verdadeiramente
alemã, de origem pura; e meu pai alsaciano; então eu, com tudo isso... (Ela se aproxima da árvore)
Eles devem estar me procurando. (Ela olha Alboury.) Ele tinha me dito no entanto que...
(Docemente.) Dich erkenneich, sicher (Ela olha ao redor dela.) Foi quando eu vi as flores que eu
reconheci tudo; eu reconheci essas flores cujo nome eu não sei; mas elas estavam penduradas assim
aos ramos na minha cabeça, e todas as cores, eu as tinha já na minha cabeça. Você acredita nas
vidas anteriores, você? (Ela olha para ele) Por que ele me disse que não havia ninguém além deles?
(Agitada.) Eu acredito, eu acredito nelas. Momentos tão felizes, muito felizes, que me vêm de tão
longe; muito doce. Tudo isso deve ser muito velho. Eu acredito nisso. Eu conheço um lago à beira
do qual eu passei uma vida, já, e isso me volta constantemente, na cabeça. (Mostrando-lhe uma flor
de buganvília) Isso, a gente não encontra em outros lugares fora os países quentes, não é? Acontece
que eu as reconheci, vindo de muito longe, e eu estou procurando o resto, a água morna do lago, os
momentos felizes. (Muito agitada.) Eu já fui enterrada debaixo de uma pequena pedra amarela, em
algum lugar, debaixo de flores parecidas. (Ela se inclina na direção dele.) Ele havia me dito que
não tinha ninguém (Ela ri.) e tem você! (Ela se distancia) Vai chover, não? então, explique pra mim
como farão os insetos quando chover? Uma gota d’água sobre a asa deles e eles estão fodidos.
Então, o que eles vão virar, debaixo da chuva? (Ela ri) Eu estou tão contente que você não seja
francês nem nada assim; isso evitará que você me tome por uma idiota. Aliás, eu também não sou
verdadeiramente francesa. Metade alemã, metade alsaciana. já sei, a gente foi feito para... Eu vou
aprender a sua língua africana, é, e quando eu estiver falando bem, pensando bem para cada palavra
que eu vou dizer, eu te direi ... as coisas... Importantes... que... eu não sei. Eu não ouso mais olhar
pra você; você é tão grave, e eu, a gravidade! (Ela se agita.) Você está sentindo o vento? Quando o
vento revira desse jeito é o diabo que revira. Vervchwinde, Teufel; pschlttt, vai. Então, a gente fazia

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soar os sinos da catedral, para que o diabo fosse embora, quando eu era pequena. Não tem catedral,
aqui? É engraçado, um país sem catedral; eu gosto das catedrais. Tem você, tão grave; eu gosto
bastante da gravidade. (Ela ri.) Eu sou uma horrorosa, desculpe. (Ela pára de mexer.) Eu preferiria
ficar aqui; o tempo está tão bom. (Ela toca nele sem olhar) Komm mit mir; Wasser holen. Que
idiota. Eu tenho certeza de que eles estão me procurando; eu não tenho nada a fazer aqui, é claro.
(Ela o solta) Tem alguém aqui. Eu ouvi... (Baixo) Teufel! Verschwinde, pschttt! (Na orelha dele:) Eu
voltarei. Espere por mim. (Alboury desaparece sob as árvores) Oder Sie, kommen Sie zurück!
(ENTRA CAL)

VII

CAL (Um dedo sobre a boca)


— Não fale tão alto, bebê; ele não vai gostar.
LÉONE
— Quem? Só tem nós dois, aqui.
CAL
— Justamente, bebê, justamente, só tem nós dois. (Ele ri.) É um ciumento, Horn. (Latidos
próximos.) Toubab? O que ele está fazendo aqui, tão perto? (Pegando Léone pelo Braço.) Havia
alguém, ali?
LÉONE
— Quem é Toubab?
CAL
— Meu cachorro. Ele late quando vê um bubu. Você viu alguém?
LÉONE
— Então você o adestrou?
CAL
— Adestrou? Eu nunca adestrei o meu cachorro. É o instinto e não precisa mais nada. Mas
você, desconfie se você vir alguma coisa; deixe os bichos ajustarem suas contas entre eles; corra e
venha se refugiar.
LÉONE
— O quê? Se eu vir o quê?
CAL
— Um bom golpe no ventre ou uma faca nas costas e aí está o que te espera se você se
mete a se perguntar coisas em vez de correr. Eu te digo: você vê qualquer coisa, alguma coisa que
você ainda não viu ou que eu não te mostrei, você dá o fora rápido e vem se refugiar. (Pegando
Léone nos braços.) Pobre bebezinho! Eu também, um dia, eu desembarquei aqui, cheio de idéias
sobre a África; o que a gente vem ver, o que a gente vem ouvir! Na minha cabeça eu a amava, a
gente não vê nada, a gente não ouve nada daquilo que a gente esperava; eu compreendo a sua
tristeza.
LÉONE
— Eu não estou triste. Eu estava procurando algo pra beber, só isso.
CAL
— Seu nome?
LÉONE
— Léone.
CAL
— É o dinheiro que te interessa?
LÉONE
— Qual dinheiro? O que você está dizendo? (Cal solta-a, aproxima-se do caminhão.)
CAL
— Essa mulher é maliciosa, perigosa. (Ele ri) Qual trabalho você fazia, em Paris?
LÉONE

18
— Num hotel. Arrumadeira.
CAL
— Empregadinha. Ganha-se menos aqui do que você pensa.
LÉONE
— Eu não penso nada.
CAL
— A gente trabalha muito e não ganha nada.
LÉONE
— Não, eu sei que você ganha muito.
CAL
— E de onde você tirou isso, sua empregadinha? Por acaso eu tenho o ar de ganhar muito?
(Ele mostra as mãos.) Por acaso eu tenho o ar de não trabalhar, eu?
LÉONE
— Não é porque você trabalha que você não é rico.
CAL
— Uma verdadeira riqueza não nos destruiria as mãos, está aí a verdadeira riqueza. A
riqueza suprime tudo, todos os esforços, não sobra um, nem uma gota de suor, nem mais um
mínimo movimento, aquilo que a gente não tem vontade de fazer; nem mais uma dorzinha. Esta é a
verdadeira riqueza. Mas nós! Tire isso da cabeça. Eles pagam, sim, mas não o suficiente; não o
suficiente. Os verdadeiros ricos não sofrem mais nem um pouco. (Olhando para Léone) Com essa
aventura, durante a guerra, Horn, com esse... acidente, ele deve ter ganhado muito dinheiro, Horn;
ele nunca fala disso, então, deve ser uma quantia enorme. O dinheiro te interessa, hein, bebê?
LÉONE
— Não me chame de bebê. Você usa umas palavras: bubu, bebê, e o nome do seu cachorro.
Não dê a todo mundo nomes de cachorro. Não é o dinheiro que me fez vir atrás do cabritinho, não.
CAL
— Então, por quê?
LÉONE
— Eu vim atrás dele porque ele me chamou pra vir.
CAL
— Qualquer um que tivesse te chamado, então, você teria vindo atrás, hein? (Ele ri.) Essa
mulher tem caráter.

LÉONE
— Qualquer um não me chamou.
CAL
— E você gosta de fogos de artifício, hein, bebê?
LÉONE
— Gosto, também, ele me falou disso também.
CAL
— Você gosta de sonhar, hein? e você gostaria de me fazer sonhar também, hein? (Duro.)
Mas eu, eu sonho com a verdade, eu não sonho com mentiras. (Ele olha para ela.) Essa mulher é
uma ladra. (Léone leva um susto; Cal puxa-a novamente para os seus braços.) Eu me divirto, bebê,
não se preocupe. Nós, a gente não vê mulher desde tanto tempo, eu estava com vontade de me
divertir com uma mulher. Eu te dou a impressão de um selvagem, não?
LÉONE
— Não, oh...
CAL
— No entanto, claro que nos transformaríamos em selvagens, se a gente se deixasse levar.
Mas não é porque a gente está no fundo desse buraco que é preciso se deixar levar, é o que eu me
digo. Eu, por exemplo, eu me interesso por uma porção de coisas, você vai ver, e eu gosto de falar,
gosto de me divertir, eu gosto de trocar, principalmente. Olha só, eu, eu era louco por filosofia, você

19
pode acreditar. Mas o quê, aqui, o que é que se vê de tudo isso? Não, a África, não é o que a gente
pensa, bebê. Mesmo os velhos que estão aqui nos impedem de trazer idéias novas; a empresa, o
trabalho, não nos deixam tempo. As idéias, no entanto, eu tenho; eu tinha. Mas de tanto pensar,
pensar, pensar sempre sozinho, a gente acaba sentindo as idéias estourarem dentro da cabeça, uma a
uma; desde que eu ponho uma em marcha: pluf, como um balão: pluf, você deve ter visto, na vinda,
na beira da estrada, os cachorros, a barriga inchada como balões, e as patas pra cima. No entanto, o
que conta, é poder trocar com alguém. Eu sempre fui curioso; por música, por filosofia; Troyat,
Zola, principalmente Miller, Henry. Você poderá vir no meu quarto e se servir dos meus livros, eu
tenho todo o Miller, meus livros são seus. Seu nome?
LÉONE
— Léone.
CAL
— Eu estava realmente arrebatado pela filosofia, quando eu era estudante. Sobretudo por
Miller, Henry; lê-lo me desbloqueou completamente. Eu estava arrebatado, em Paris, eu. Paris, o
maior cruzamento de idéias do mundo! Miller, sim. Quando ele sonha que mata Sheldon com um
tiro de pistola dizendo: “Eu não sou um Polak!” Você conhece?
LÉONE
— Eu não sei... Não.
CAL
— Então, quando a gente vem aqui, não é questão de se deixar levar, não, bebê.
LÉONE
— Léone.
CAL
— Essa mulher está com reservas comigo. (Ele ri) Não é preciso, é preciso ser
absolutamente direto. Nada nos separa, a gente é da mesma idade, a gente se parece; eu, em todo
caso, eu sou absolutamente direto. Não tem razão pra ficar bloqueado.
LÉONE
— Não, não tem razão.
CAL
— E também a gente não tem escolha: a gente está sozinho; aqui, você não vai encontrar
ninguém com quem falar, ninguém; aqui, aqui é um lugar perdido. Principalmente agora, que é o
fim: só sobrou eu e ele. E quanto a ele, a sua cultura... E também ele é um velhote, Horn.
LÉONE
— Um velhote! Você tem umas palavras! Eu gosto de conversar com ele.
CAL
— Sim talvez, não; mas a gente tem necessidade de admirar, com o passar do tempo. É
muito importante, a admiração. A mulher admira a cultura do homem. Seu nome?

LÉONE
— Léone, Léone.
CAL
— Então?
LÉONE
— Então o quê?
CAL
— Por que Horn?
LÉONE
— Por que o quê?
CAL
— Você poderia se casar com um homem a quem falta... O principal? você poderia, por
dinheiro? Essa mulher é nojenta!
LÉONE

20
— Me solta.
CAL
— Vamos, bebê: era só para ver a sua cara. Eu, na verdade, essa história, não é a minha.
Você está chorando ou o quê? Não precisa levar assim. Eu compreendo que você está triste, bebê.
Mas por acaso eu estou triste, eu? No entanto, você pode acreditar, eu, eu teria todas as razões do
mundo pra estar triste, e razões de verdade. (Docemente.) Eu vou te emprestar os meus sapatos; só
faltava você pegar uma doença suja. Aqui, a gente se transforma quase em selvagens eu sei: é que é
o avesso do mundo, aqui. Não é uma razão para chorar. Olha pra mim: eu tenho mais diplomas,
mais qualificações, mais estudos do que Horn, e no entanto, eu estou abaixo. Você acha isso
normal? Tudo é invertido, aqui. No entanto, bebê, eu, por acaso eu faço disso uma doença? por
acaso eu choro?
LÉONE
— Aqui está o cabritinho. (Ela se levanta)j
CAL
— Não se mexa. Um ladrão entrou na cidade. É perigoso.
LÉONE
— Você vê ladrões em tudo quanto é lugar.
CAL
— Um bubu. Os guardas o deixaram passar por engano. Você só tem o tempo de vê-lo um
segundo e está pronta para: hop na barriga ou nas costas, hop! Entre na caminhonete.
LÉONE
— Não. (Ela o empurra.)
CAL
— Era para te proteger. (Depois de um tempo) Você está me julgando mal, bebê, eu sei.
Mas a gente não vê mulher aqui, desde o início da construção: então ver uma, ver você, isso me
perturba, é isso. É difícil para você entender: você vem de Paris. No entanto, isso me perturbou, te
ver; eu adoraria ser diferente, eu, eu senti que a gente podia se dar bem logo de cara. Mas como eu
sou não é como eu gostaria de ser. No entanto, eu tenho certeza de que a gente deve se dar bem. Eu
tenho o instinto, para as mulheres. (Ele pega a mão dela.)
LÉONE
— Eu me sinto toda vermelha, oh!
CAL
— Você, você tem temperamento, isso se vê logo de cara. Isso me agrada, o temperamento.
A gente se parece, bebê. (Ele ri) Essa mulher é muito atraente.
LÉONE
— As mulheres daqui devem ser tão bonitas. Oh, como eu me sinto feia! (Ela se levanta.)
Cabritinho chegou.
CAL (Aproximando-se dela.)
— Não seja tão pudica, minha empregadinha. Eu tenho o instinto, eu, para certas coisas.
LÉONE (Olhando para ele)
— Eu acho a gente tão feio! Ele está aqui; eu o estou ouvindo; ele está aqui me
procurando. (Cal segura-a forte; ela acaba fugindo.)
CAL
— Pudica!
LÉONE
— Bandido!
CAL
— Paris, o maior bordel do mundo!
LÉONE (De longe)
— Verschwinde, werschwinde!
CAL
— Sacanagem. (Depois de um tempo) Quando não se vê mulheres durante tanto tempo,

21
depois, a gente espera... como se fosse ser... a explosão. E então nada, nada, nada. Uma noite a
mais, perdida. (Ele se distancia)

VIII

(À MESA, EM FRENTE AO JOGO DE GAMELA.)

LÉONE
— O equilíbrio, essa é a palavra. Como na alimentação: justa medida de proteínas e de
vitaminas; justa medida de gorduras e de calorias; equilíbrio do bolo alimentar; organização das
entradas, dos pratos, e das sobremesas. É assim que deve se construir um bom fogo de artifício, no
equilíbrio: organização das cores, senso de harmonia, justa medida na sucessão das explosões, justa
medida nas alturas de lançar. Construir o equilíbrio do conjunto e o equilíbrio de cada momento, é
um verdadeiro quebra-cabeça, eu te digo. Mas você vai ver, Cal, o que Ruggieri e eu a gente faz do
céu, você vai ver!
CAL (Parando bruscamente de jogar).
— Eu acho esse jogo idiota.
HORN
— Idiota? o que é que ele tem de particularmente idiota, esse jogo?
CAL
— Eu acho ele idiota.
HORN
— Meu Deus, eu não vejo o que você está achando nele.
CAL
— Justamente, não há nada a achar nele, nada.
HORN
— E o que você queria mais, meu Deus? Nós somos dois, eu não vejo o que a gente pode
jogar, a dois. Você talvez não o ache suficientemente complicado para você. A gente pode
complicar, você sabe, eu conheço umas variantes: a gente faz uma banca, e só tem o direito de
apostar sobre...
CAL
— Eu acho que é ainda mais idiota se é mais complicado, esse jogo.
HORN
— Então, você não joga mais?
CAL
— Eu não quero mais, não; eu acho que a gente fica idiota, jogando.
HORN (Depois de um tempo)
— Meu Deus, não, eu não compreendo.
CAL (Com a cabeça nas mãos)
— Pluf!

HORN
— O quê?
CAL

22
— Eu estou dizendo que cada vez que a gente joga esse jogo a gente perde uns neurônios 2 .
(Ele bate na cabeça.) É aqui que eu sinto.
HORN
— Mas o que é que te deu? Em tudo quanto é lugar, eles jogam, em todos os canteiros de
obras; e eu nunca vi ninguém, em lugar nenhum, parar em pleno meio dizendo: isso me tira uns
neurônios. Que neurônios, meu Deus? Você também não aliás, tem meses que eu te vejo jogar... Se
você quiser, eu vou buscá-la e a gente faz uma partida de...
CAL
— Não, não, não; pôquer. não!
HORN
— Porque as cartas, também...
CAL
— É ainda mais idiota, não.
HORN
— Então todas as pessoas que jogam cartas são idiotas? Há séculos que se jogam cartas e
em todos os países, e são todos idiotas e ninguém se deu conta ainda, exceto você? Meu Deus!
CAL
— Não, não, não, eu não quero mais jogar nada.
HORN
— Então, o que é que a gente deve fazer?
CAL
— Eu não sei. Não ser idiota.
HORN
— Tudo bem, de acordo. (Eles fecham a cara.)
CAL (Depois de um tempo.)
E aqui está o barulho da África. Não é nem o tantã, nem a moenda de milho, não. É o
ventilador, ali, em cima da mesa; e o barulho das cartas, ou o do cartucho de dados. (Depois de um
outro tempo, baixinho.) Amsterdã, Londres, Viena, Cracóvia...
HORN
— O quê?
CAL
— Tem todas essas cidades, no norte, que eu gostaria de conhecer... (Depois de um tempo,
eles se servem de beber.) Eu ponho quinhentos francos no número dez.
HORN
— Com uma banca ou sem?
CAL
— Não, não, o mais simples.
HORN
— Eu estou. (Eles fazem girar os dados. Horn põe de lado a garrafa uísque.) É que você
bebe demais.
CAL
— Demais? Com certeza não. Eu nunca fico bêbado, nunca.
HORN
— Mas o que ela está fazendo, meu Deus, onde ela se meteu?
CAL
— Eu é que sei? (Ele recolhe.) Ao contrário, as pessoas embriagadas sempre me
desagradaram. Aliás, é bem por causa disso que eu gosto daqui. Eu sempre tive horror em ficar na
frente de alguém que está bêbado. É por isso que eu gostaria, sim, eu gostaria que para o próximo
canteiro de obras... (Eles apostam.) Eu poderia ter caído com alguém bêbado todas as noites como
existe em certos canteiros de obras; eu sei muito bem que isso existe; eu poderia, sim, eu poderia.
2
Jogo de palavras sem correspondência em português. Case, “casebre de negros” e “casa” do jogo; no sentido figurado,
pode designar ainda um “compartimento do cérebro”. (NT.)

23
(Os dados giram) Para a próxima obra, você poderia pedir que eu fosse com você. Você tem
bastante peso, meu velho; você é bastante velho na casa. Vão te escutar, velho.

HORN
— Não haverá próxima obra, não para mim.
CAL
— Mas sim, velho, você sabe muito bem; você sabe muito bem, velho. Você se vê numa
casinha pequena, na França, no Midi, entre os choramingos de uma mulher e um jardinzinho, meu
velho? Você nunca vai deixar a África. (Ele recolhe.) Você tem isso na pele, você. (Depois de um
tempo.) Não pense que eu quero te puxar o saco: mas você, pra começar, você tem o comando na
pele; você é o tipo de chefe ao qual a gente se apega, é preciso reconhecer isso; você é o chefe ao
qual a gente se habitua; é isso, o bom chefe. Eu estou habituado a você, você é meu chefe
naturalmente, eu nem reparo mais, não há nada mais para dizer. No canteiro de obras, quando me
dizem: chefe isso chefe aquilo, eu digo sempre: perdão, o chefe não sou eu é Horn o chefe. Eu, o
que é que eu sou? nada. Eu sou: nada, eu não tenho vergonha de dizer isso. Independentemente de
você: nada de nada. A você, nada mete medo; mesmo os guardas não te metem medo. Eu, ao
contrário, independente de você, bom... eu tenho medo, eu não tenho vergonha de dizer. Medo, mas
medo de verdade; na frente de um guarda bubu, eu fujo; e assim: na frente de um bubu não-guarda,
eu atiro. É uma questão de nervos, o medo, a gente não pode fazer nada. Mesmo na frente de uma
mulher eu entraria em pânico, velho, eu sou bem capaz disso. Então eu, eu preciso de você. (Baixo)
Tudo é podre, aqui; o canteiro de obras não é mais como antes; entram, saem dele; então se a gente
se separa, nós, a gente vai ficar sozinho, ainda por cima. (mais baixo.) Será que não é uma idiotice
que você fez, trazer uma mulher pra cá? (Mais baixo ainda.) E o bubu, será que ele não veio porque
ele sabia que havia uma mulher? (Eles apostam.) A gente deve ficar como os dedos da mão, essa é a
minha idéia. Só de pensar em estar em outro canteiro de obras, na frente de uns caras bêbados todas
as noites, eu te digo que eu atiro no meio da pilha de gente, é isso o que eu faço. (Eles olham os
dados: Cal recolhe.)
HORN (Levantando-se.)
— O que ela pode estar fazendo, meu Deus?
CAL
— Mais uma partida, chefe, a última partida. (Sorrindo). Mil francos no número dez. (Ele
põe; Horn hesita.) Um esbanjador como você, velho; você não vai hesitar? (Horn aposta, eles
jogam os dados.) Espere. (Eles escutam.) Ele está falando.
HORN
— O quê?
CAL
— Atrás da árvore. Ele continua lá e ele está falando.
(ELES ESCUTAM. RAJADA BRUSCA DE VENTO; AS FOLHAS MEXEM E DEPOIS
PARAM; BARULHO SECO DE UMA CORRIDA, PÉS NUS SOBRE A PEDRA, AO LONGE,
QUEDAS DE FOLHAS E DE TEIAS DE ARANHA; SILÊNCIO.)

IX

(ALBOURY AGACHADO DEBAIXO DAS BUGANVÍLIAS. LÉONE ENTRA; ELA SE


AGACHA NA FRENTE DE ALBOURY, A UMA CERTA DISTÂNCIA.)

ALBOURY
— Man naa la wax dara?
LÉONE
— Wer reitet so spät durch Nacht un Wind...

24
ALBOURY
— Walla niu noppi tè xoolan tè rekk.
LÉONE
— Es IST DER Vater mit seinem Kind. (Ela ri.) Eu também falo estrangeiro, está vendo! A
gente vai acabar se compreendendo, eu tenho certeza.
ALBOURY
— Yow dégguloo sama lakk waandé man dégg naa as bos.
LÉONE
— Sim, sim, é assim que é preciso falar, você vai ver, eu vou acabar entendendo. E eu,
você me compreende? se eu falo bem devagar? Não se deve ter medo das línguas estrangeiras, ao
contrário: eu sempre pensei que, se a gente olhar por muito tempo e cuidadosamente as pessoas
quando falam, a gente compreende tudo. E preciso tempo, só isso. Eu te falo estrangeiro e você
também, então, a gente estará bem depressa sobre o mesmo comprimento ele onda.
ALBOURY
— Wax ngama dellusil, maa ngi nii.
LÉONE
— Mas lentamente, não é? senão, não chegaremos a nada.
ALBOURY (Depois de um tempo.)
— Dégguloo ay yuxu jegéén?
LÉONE
— Siehst, Vater, du den Erlkönig nicht?
ALBOURY
— Man dé degg naa ay jooyu jigéén.
LÉONE
— ... Den Erlenenköinig mit Kron und Schweif?
ALBOURY
— Yu ngelaw li di andi fii.

LÉONE
— . . . Mein Sohn, es istein Nebelstreif. Acaba vindo, não é? você vê. Oh, claro, a
gramática toma mais tempo, é preciso ter passado muito tempo junto para que fique perfeito; mas
mesmo com os erros... O que conta, é um mínimo de vocabulário; nem isso: é o tom que conta.
Aliás nem isso, é suficiente se olhar no olho, sem falar. (Tempo: eles se olham; latido de cachorro,
muito longe: ela ri.) Não, eu não posso me calar, a gente vai se calar quando a gente se
compreender. Mas e agora, eu, eu não sei o que dizer. No entanto, eu sou uma faladeira terrível,
normalmente. Mas quando eu olho pra você... Você me impressiona; mas eu gosto de ficar
impressionada. Então você, agora é você quem vai falar alguma coisa, por favor.
ALBOURY
— You laay gis waandé si sama bir xalaat, bènbèn jigéén laay gis budi jooy te di tére waa
dëkk bi nelaw..
LÉONE
— Mais, mais, mas mais devagar.
ALBOURY
— Jooy yaa ngimay tanxal.
LÉONE (Baixo.)
— Você é o único que olha pra mim, aqui, quando fala comigo.
ALBOURY
— Dégguloo jooyu jigéen joouju?
LÉONE
— Sim sim, veja você, eu bem que me pergunto por que eu vim. Todos eles me dão medo,
agora. (Ela sorri para ele.) Exceto você. É justamente, olha que nessa língua sua, eu não sei ainda
nada, nada, nada. (Num profundo silêncio, dois guardas se interpelam bruscamente, brutalmente;

25
em seguida, volta o silêncio.) Azar, eu vou gostar assim mesmo de ficar com você. Eu me sinto tão
terrivelmente estrangeira.
ALBOURY
— Lan nga ñaw ut si fii?
LÉONE
— Eu acho que estou começando a te compreender.
ALBOURY
— Lan nga ñaw def si fii?
LÉONE
— Sim, oh, eu sabia que ia acabar vindo!
ALBOURY (Com um sorriso)
— Você está com medo?
LÉONE
— Não.
(DE REPENTE UM TURBILHÃO DE AREIA VERMELHA TRAZENDO GRITOS DE
CACHORRO AMASSA AS FOLHAS E DOBRA OS GALHOS, ENQUANTO SOBE DO CHÃO,
COMO UMA CHUVA AO CONTRÁRIO, UMA NÉVOA DENSA DE EFEMÉRIDAS SUICIDAS
E HISTÉRICAS QUE ESCONDE TODA A CLARIDADE.)

(À MESA)

CAL
— Aqui está uma noite perdida, uma noite passada na espera; você não acha, você, que é
uma noite estranha? Uma partida que a gente abandona e retoma, uma mulher que a gente espera e
que desaparece, e até um fogo de artifício. Por enquanto, aqui está o fogo de artifício que nos
oferece a África: essa poeira de bichinhos mortos.
LÉONE — (Examinando um inseto)
— É estranho: não choveu, normalmente elas saem depois da chuva. Eu nunca vou
entender nada dessa merda de país.
CAL
— Que desperdício, é isso que se chama desperdício: essa mulher não se ocupa nem
mesmo de você: ela deve estar chorando num canto, ou vai saber o quê. A mim, isso não me
surpreende; desde que eu a vi, eu senti, por instinto. Eu não quero te deixar com raiva, velho, ao
contrário. Seu dinheiro, claro, você faz o que você quer com ele, ele é seu, bem seu, você paga os
prazeres que você quer, velho. Só tem uma coisa, a gente não conta com as mulheres para o prazer
na vida; é uma merda, as mulheres; é preciso contar conosco, só conosco, e dizer a elas de uma vez
por todas: que a gente encontra mais prazer, nós, bem mais prazer em um bom trabalho bem-feito
— não vai ser você, velho, quem vai dizer o contrário! — que é um prazer sólido, que nenhuma

26
mulher nunca vai valer isso: uma ponte sólida criada pelas nossas mãos e pela nossa cabeça, uma
estrada bem reta e que resistira a estação das chuvas, sim, é aí que está o prazer. As mulheres, velho,
eles nunca vão compreender nada do prazer dos homens, por acaso você diria o contrário, velho? Eu
sei, muito bem que não.
HORN
— Eu não sei, talvez, talvez você tenha razão. Eu me lembro da primeira ponte que eu
construí; a primeira noite, depois que a gente tinha posto a última viga, dado a última caprichada, aí,
bem a véspera da inauguração; o que eu me lembro, é que eu fiquei pelado e quis dormir a noite
toda pelado, sobre a ponte. Eu poderia ter quebrado o meu pescoço dez vezes de tanto que, durante
a noite inteira, eu caminhei, e eu a tocava em tudo quanto era lugar uma puta ponte, eu trepava ao
longo dos cabos e às vezes, eu a via inteira, com a lua, por cima da lama, branca, eu me lembro
muito bem como ela era branca.
CAL
— Essa aqui, no entanto, você deixa inacabada; que desperdício!
HORN
— Em relação a isso, eu não posso fazer nada.
CAL
— Eu deveria ter escutado minha primeira idéia e trabalhado com petróleo, sim, era isso
com o que eu sonhava, eu. Tem nobreza no petróleo. Olhe os que trabalham nisso, a maneira com a
qual eles olham pra nós: eles sabem muito bem, eles, que eles são os melhores do pedaço. A mim,
isso sempre fascinou, o petróleo; tudo o que vem do subsolo, aliás sempre me fascinou. As pontes
me desagradam. agora; nós, os trabalhos públicos, o que é que a gente é? uns nadas, ao lado dos
petroleiros; a gente é a miséria, a gente é menos que nada. Todo o nosso trabalho na superfície,
bestamente, à vista e na frente de todo mundo, com uma mão-de-obra sem qualificação. Que tipo de
homem trabalha aqui? Uns homens para atirar, empurrar, carreear, conduzir; uns homens burricos,
homens elefantes, uns animais de carga; nós somos todos uns animais de carga, nós somos o
depósito dos homens sem qualificação. Ao passo que no petróleo, ah: seis ou sete homens
qualificados, e olha, olha, velho, a fortuna que eles vêem escorrer entre as suas mãos! Eu sou um
animal de carga, eu também, é nisso que eu me transformei. No entanto, as qualificações, elas estão
aqui, elas estão aqui! no entanto eu precisaria ser utilizado com todas as minhas forças. Quando eu
vejo, à noite, lá longe, as tochas do campo de petróleo, lá longe, eu ficaria horas olhando.
HORN (Apostando)
— Jogue.
CAL
— Eu não estou com o coração para jogar, velho, não, eu não estou com o coração. (Baixo)
Então, você vai mesmo me abandonar, Horn, é essa, a sua idéia? fala, fala: não é que você esta me
abandonando, velho?
HORN
— O quê?
CAL
— Faça ele levar um tiro dos guardas. Nós estamos no nosso direito. merda!
HORN
— Não se preocupe com isso. Jogue e não se preocupe mais.
CAL
— Por que você falou com ele? O que vocês disseram? Por que você não faz ele ir embora,
merda!
HORN
— Esse aí não é como os outros.
CAL
— Eu tinha certeza; você está cedendo; eu queria muito saber o que vocês conversaram;
em todo caso, você está me abandonando. Eu já tinha entendido.
HORN

27
— Imbecil; você não compreende que no final eu vou foder com ele e pronto?
CAL
— Você vai foder com ele?
HORN
— Eu vou foder com ele.

CAL
— Mesmo assim, eu acho que você está estranho, com esse negro.
HORN
— Meu Deus meu Deus, mas quem é o responsável, aqui?
CAL
— Você, velho, eu não estou dizendo o contrário. Mas justamente...
HORN
— Quem tem o encargo de consertar as idiotices dos outros: quem tem o encargo de
resolver tudo, sempre e em todo lugar, de um canto a outro da cidade; da manhã até a noite nesse
canteiro de obras: quem deve ter tudo sempre na cabeça, desde a peça mais insignificante do mais
insignificante caminhão até o número de garrafas de uísque em reserva? Quem deve planejar tudo,
julgar tudo, conduzir tudo, tanto de noite como de dia? quem deve ser aqui policial, prefeito, diretor,
general, pai de família, capitão de barco?
CAL
— Você, velho, você, com certeza.
HORN
— E quem está de saco cheio, definitivamente de saco cheio?
CAL
— Você, velho.

HORN
— É verdade, eu não tenho qualificações, eu, mas o patrão. ainda sou eu.
CAL
— Eu não quero te aborrecer, velho, eu só queria te dizer, completamente no ar, assim, que
eu estava te achando estranho, com esse negro aí, Horn, conversando normalmente e estranhamente
com ele, só isso. Mas se você está dizendo que você vai acabar com ele, então, é porque você
acabará com ele.
HORN
— Já é um caso praticamente resolvido.
CAL (Depois de um tempo.)
— Você é assim mesmo um tipo estranho. Me deixe então fazer a festa dele, iria mais
rápido.
HORN
— Você não vai fazer mais nada. Eu faço.
CAL
— Você tem métodos estranhos.
HORN
— Não é só com tiros de revólver que a gente se defende, na vida, meu Deus. Eu sei me
servir da minha boca; eu sei falar e me servir das palavras. Talvez eu não tenha ido à escola, mas a
política eu sei me servir dela. Você, você só sabe resolver os negócios com tiros de pistola e depois.
você fica bem contente que alguém esteja lá para te tirar do apuro e te ver chorar. É então a atirar
que se aprende nessas suas escolas de engenheiros, e vocês esquecem de aprender a falar? Bravo;
bela escola! Agora façam tudo segundo a cabeça de vocês; sirvam-se da pistola se quiserem e
pronto; e depois venham chorar, venham chorar. Pra mim, é a última vez, depois disso, eu vou
embora. Depois que eu for, faça tudo o que você quiser.
CAL

28
— Não se aborreça. velho.
HORN
— Vocês são uns destruidores e isso é tudo o que vocês aprenderam nessas suas excelentes
escolas. Continuem. senhores, com esses seus benditos métodos de destruidores de merda. É, vocês
fazem com que a África inteira deteste vocês, em vez de fazê-la gostar de vocês; ora, no final das
contas, vocês não terão conseguido nada, nada, nada. Vocês têm muito peito, a pistola no bolso e o
gosto da grana rápida e a qualquer custo, então, senhores, eu digo a vocês: no final vocês não terão
nada e nada e ainda nada. A África, não é, vocês estão pouco se fodendo pra ela, senhores; vocês só
pensam em pegar o máximo que vocês podem e em não dar nada, principalmente não dar nada. Ora,
no final, não vai sobrar nada pra vocês, nada de nada, e pronto. E a nossa África, vocês a terão
destruído completamente, senhores canalhas, destruído.
CAL
— Mas eu, eu não quero destruir nada, Horn.

HORN
— Você não quer gostar dela, da África.
CAL
— Não, eu gosto dela, eu gosto dela. Senão, eu não estaria aqui?
HORN
— Jogue.
CAL
— Eu não estou com coração pra jogar, velho. Com o risco, aqui mesmo, todo na cidade,
que um bubu te dê um tiro nas costas não, isso acaba com os meus nervos, velho. Eu acho, eu, que
ele veio aqui para se aproveitar dessa história e fazer muito barulho. É isso o que eu entendo.
HORN
— Você não entende completamente nada. Ele quer nos impressionar. É política.
CAL
— Ou então, é pela mulher, como eu tinha dito antes.
HORN
— Não, ele tem outra coisa na cabeça.
CAL
— Na cabeça, o quê na cabeça, que outra coisa, numa cabeça de bubu? Você, você está me
abandonando, Horn, eu entendi.
HORN
— Eu não posso te abandonar, imbecil.
CAL
— E você vai provar que foi um acidente, Horn, você vai provar?
HORN
— Um acidente, sim, por que não? quem disse o contrário ?
CAL
— Eu sabia. Nós temos todo o interesse em permanecermos unidos; unidos, nós
acabaremos com eles. Eu estou entendendo, agora: você conversa pra foder melhor com ele; é um
método, eu não digo o contrário. Mas cuidado assim mesmo, velho. Com os seus métodos, você
corre o risco de acabar com um balaço na barriga.
HORN
— Ele não está armado.
CAL
— Mesmo assim, mesmo assim, mesmo assim, você deveria desconfiar. Esses canalhas
todos lutam karatê e eles são fortes, esses canalhas. Você corre o risco de acabar caído no chão antes
de ter dito uma palavra.
HORN (Mostrando duas garrafas de uísque)
— Eu tenho as minhas armas. Não se resiste fácil a esses uísques.

29
CAL (Olhando as garrafas)
— Umas cervejas, já seriam bem suficientes.
HORN
— Jogue.
CAL (Ele aposta suspirando)
— Que desperdício!
HORN
— Mas enquanto eu falo com ele, você vai encontrar o corpo. Não discuta, vire-se, mas
encontre o corpo. Procure, eu preciso dele. Senão, é a aldeia que a gente tem nas costas. Encontre-o
antes de amanhecer, ou eu te abandono de uma vez por todas.
CAL
— Não, não é possível, não. Eu nunca vou encontrá-lo novamente. Eu não posso.
HORN
— Encontre algum, qualquer um.
CAL
— Mas como, como você quer?
HORN
— Ele não deve estar muito longe.
CAL
— Não! Horn.
HORN (Olhando os dados.)
— É para mim.
CAL
— Seus métodos são umas idiotices. (Ele dá um soco no jogo.) Você é um idiota, um
verdadeiro idiota.
HORN (Levantando-se.)
— Faça o que eu estou dizendo. Ou então eu deixo pra lá. (Ele sai.)
CAL
— Essa canalha está me abandonando. Eu estou fodido.

XI

(NO CANTEIRO DE OBRAS, AO PÉ DA PONTE INACABADA, PERTO DO RIO, NUMA


SEMI-ESCURIDÃO, ALBOURY E LÉONE.)

LÉONE
— Você tem cabelos superlegais.
ALBOURY
— Dizem que os nossos cabelos são enrolados e pretos porque o ancestral dos negros,
abandonado por Deus e em seguida por todos os homens, ficou sozinho com o diabo, abandonado
ele também por todos, que então acariciou sua cabeça em sinal de amizade, e foi assim que os
nossos cabelos se queimaram.
LÉONE
— Eu adoro as histórias com o diabo; eu adoro como você as conta; você tem uns lábios
superlegais; aliás o preto, é a minha cor.
ALBOURY

30
— É uma boa cor para se esconder.
LÉONE
— Isso, o que é isso?
ALBOURY
— O canto dos sapos: eles chamam a chuva.
LÉONE
— E isso?
ALBOURY
— O grito dos gaviões. (Depois de um tempo.) Tem também o barulho de um motor.
LÉONE
— Eu não estou ouvindo.
ALBOURY
— Eu estou.
LÉONE
— É o barulho da água, é o barulho de outra coisa; com todos esses barulhos, impossível
ter certeza.
ALBOURY (Depois de um tempo)
— Você ouviu?
LÉONE
— Não.

ALBOURY
— Um cachorro.
LÉONE
— Eu não acho que estou ouvindo. (Latidos de um cachorro ao longe.) É um cachorrinho,
um cachorrinho de nada, isso se reconhece pela voz; é um cachorrinho, ele está muito longe; não se
ouve mais. (Latidos)
ALBOURY
— Ele está me procurando.
LÉONE
— Que ele venha. Eu gosto deles, eu dou carinho, eles não atacam se a gente gosta deles.
ALBOURY
— São uns bichos ruins; eu, eles sentem meu cheiro de longe, eles correm atrás para me
morder.
LÉONE
— Você tem medo?
ALBOURY
— Sim, sim, eu tenho medo.
LÉONE
— Por causa de um cachorrinho de nada que a gente nem está ouvindo mais!
ALBOURY
— Nós, a gente bem que mete medo nas galinhas; é normal que os cachorros nos metam
medo.
LÉONE
— Eu quero ficar com você. O que você quer que eu vá fazer com eles? Eu abandonei meu
trabalho, eu abandonei tudo; eu deixei Paris, ai, eu deixei tudo. Eu estava justamente procurando
alguém a quem ser fiel. Eu encontrei. Agora, eu não posso mais me mexer. (Ela fecha os olhos) Eu
acho que eu tenho um diabo no coração, Alboury; como eu o paguei, eu não sei de nada, mas ele
está aqui, eu sinto. Ele me acaricia por dentro, e eu já estou toda queimada, toda preta por dentro.
ALBOURY
— As mulheres falam tão rápido; eu não consigo acompanhar.
LÉONE

31
— Rápido, você chama isso de rápido? quando faz pelo menos uma hora que eu só penso
nisso, uma hora pra pensar nisso e eu não poderia dizer que é sério, bem refletido, definitivo? Diz
pra mim o que você pensou quando você me viu.
ALBOURY
— Eu pensei: é uma peça que deixaram cair na areia; no momento, ela não brilha para
ninguém; eu posso pegá-la e guardá-la até que reclamem por ela.
LÉONE
— Guarde-a, ninguém vai reclamá-la.
ALBOURY
— O homem velho me disse que você era dele.
LÉONE
— Cabritinho, é o cabritinho então que te incomoda? meu Deus! ele não faria mal a uma
mosca, pobre cabritinho. O que você acha que eu sou, pra ele? Uma pequena companhia, um
pequeno capricho, porque ele tem dinheiro e não sabe o que fazer com ele. E eu que não tenho
dinheiro, não é uma sorte terrível tê-lo encontrado? eu não sou uma horrorosa por ter tanta sorte?
Minha mãe, se ela soubesse, oh, era faria vista grossa. ela teria me dito: espertinha, essa sorte só
acontece com as atrizes ou com as prostitutas; no entanto, eu não sou nem uma nem outra e isso
aconteceu comigo. E quando ele me propôs encontrá-lo na África, sim eu disse sim, eu estou
pronta. Du bist der Teufel selbst, Schelmin! Cabritinho é tão velho, tão bonzinho; ele não pede nada,
sabe. É por isso que eu gosto dos velhos e, normalmente, eles gostam de mim. Com freqüência eles
sorriem pra mim, na rua, eu fico bem, com eles, eu me sinto próxima deles, eu sinto suas vibrações;
você sente as vibrações dos velhos, Alboury? Às vezes, eu mesma, eu tenho pressa de ficar velha e
boazinha; a gente conversaria durante horas, sem esperar mais nada de ninguém, sem pedir nada,
sem ter medo de nada, sem falar mal de ninguém, longe da crueldade e da desgraça, Alboury, oh por
que os homens são tão duros? (Barulho de galhos quebrando, de leve.) Como tudo é calmo, como
tudo é tranqüilo! (Barulhos de galhos quebrando, chamados confusos ao longe.) Aqui, nós estamos
tão bem.

ALBOURY
— Você, sim; mas eu, não. Aqui, é um lugar de brancos.
LÉONE
— Mais um pouco, então, um minuto, ainda. Meus pés estão doendo. Esses sapatos são
terríveis; eles apertam o tornozelo e os dedos. Será que isso não é sangue? Olha: uma verdadeira
porcaria, três pedacinhos de couro mal— ajambrados só pra te arrebentar os pés e, por esta porcaria,
te arrancam os olhos da cara; ouh. Oh, com isso, eu não tenho muita coragem de andar muitos
quilômetros.
ALBOURY
— Eu terei cuidado de você o máximo de tempo que eu pude. (Barulho de caminhonete,
próximo)
LÉONE
— Ele está se aproximando.
ALBOURY
— É o branco.
LÉONE
— Ele não vai te fazer nada.
ALBOURY
— Ele vai me matar.

LÉONE
— Não!
(ELES SE ESCONDEM; ESCUTA-SE QUE PÁRA, A LUZ DOS FARÓIS ILUMINA O CHÃO.)

32
XII

(CAL, UM FUZIL NA MÃO, COBERTO DE LAMA ESCURA.)

HORN (Surgindo da escuridão)


— Cal!
CAL
— Chefe (Ele ri, corre em sua direção) Ah, chefe, como eu estou contente em te ver.
HORN (Fazendo uma careta.)
— De onde você saiu?
CAL
— Da merda, chefe.
HORN
— Bom Deus, não chegue perto, você vai me fazer vomitar.
CAL
— Foi você, chefe, que me disse pra me virar para encontrá-lo.
HORN
— E então? você o encontrou?
CAL
— Nada, chefe, nada. (Ele chora)
HORN
— E foi pra nada que você se cobriu de merda! (Ele ri) Bom Deus, que imbecil!
CAL
— Não fica me gozando, chefe, A idéia foi sua e eu, eu sempre tenho que me virar sozinho.
À idéia foi sua e eu vou pegar tétano por sua causa.
HORN
— Vamos pra casa. Você está completamente tonto.
CAL
— Não, chefe, eu quero encontrá-lo, é preciso que eu o encontre.
HORN
— Encontrá-lo? Tarde demais, imbecil. Ele está boiando agora sabe lá em que rio. E vai
chover. Tarde demais. (Ele vai em direção a caminhonete) Os andaimes devem estar fodidos. Meu
Deus, como isso fede!
CAL (Agarrando-o pela camisa.)
— É você o patrão, chefe, é você o boss, patrão. Você deve me dizer agora o que eu devo
fazer. Me segure bem! Eu não sei nadar, eu me afogo, velho. E também, tome cuidado, idiota, não
fique me gozando.

HORN
— Cuidado com os seus nervos; não fique excitado. Cal, vamos; você sabe muito bem que
eu não estou te gozando, nem um pouco. (Cal solta-o) O que foi então que aconteceu com você?

33
Vai ser preciso te desinfetar, agora.
CAL
— Olhe como eu transpiro, merda, olha isso; isso não quer secar. Você não tem uma
cerveja? (Ele chora.) Você não tem um copo de leite? eu queria beber leite, velho.
HORN
— Acalme-se; vamos voltar pra cidade; você tem que se lavar e vai chover.
CAL
— Então eu posso acabar com ele, agora, bem, eu posso acabar com ele?
HORN
— Não fale tão alto, meu Deus.
CAL
— Horn!
HORN
— O quê?

CAL
— Eu sou um canalha, velho?
HORN
— O que você está falando? (Cal chora.) Cal, meu garoto!
CAL
— De repente, eu vi Toubab na minha frente, me olhando com os seus olhinhos
pensativos. Toubab, meu cachorrinho! eu digo: o que você fica sonhando, você está pensando em
quê? ele solta um grunhido, eriça o pêlo, rodeia calmamente o esgoto. Eu o sigo. Toubab, meu
cachorrinho, em que você fica refletindo? você farejou alguém? Ele eriça o pêlo, dá um pequeno
latido e pula dentro do esgoto. Eu me digo: ele farejou alguém. Eu o sigo. Mas eu não encontrei
nada, chefe; só merda, chefe. No entanto, eu bem que tinha jogado ele ali, mas ele deve ter fugido.
Eu não posso percorrer todos os cursos de água da região e revirar o lago para encontrar esse
cadáver, chefe. E agora Toubab fugiu também. Eu estou sozinho de novo e estou cheio de merda.
Horn!
HORN
— O quê?
CAL
— Por que eu estou sendo punido, velho, o que é que eu fiz de mal?
HORN
— Você fez o que você devia fazer.

CAL
— Então, eu posso acabar com ele, velho, é isso o que eu devo fazer, agora?
HORN
— Meu Deus, não grite, você então quer que te escutem até na aldeia?
CAL (Armando seu fuzil)
— Esse canto aqui é perfeito: ninguém pra ver nada, ninguém pra reclamar ou pra vir
chorar. Aqui, você desaparece no meio das samambaias, meu canalha, aqui, sua pele não vale um
puto. Agora eu me sinto cheio de novo, eu me sinto quente, velho. (Ele começa a farejar.)
HORN
— Me dá aqui esse fuzil. (Ele tenta tomar-lhe o fuzil; Cal resiste.)
CAL
— Toma cuidado, velho, cuidado. No karatê talvez eu não seja bom, na faca talvez eu não
seja bom, mas no fuzil eu sou terrível. Terrível terrível. Mesmo no revólver ou na metralhadora,
você não vale um puto na frente disso.
HORN
— Você quer ficar com a aldeia toda contra você? Você quer ter de se explicar à polícia?

34
Você quer continuar com as suas besteiras? (Baixo.) Por acaso você confia em mim? você confia ou
não confia? Então, deixe-me fazer. Não se deixe dominar pelos nervos, meu rapaz. É preciso
resolver as coisas a frio; e antes que amanheça essa história estará resolvida, pode acreditar. (Um
tempo.) Eu não gosto de sangue, meu rapaz, nem um pouco; eu nunca pude me acostumar a isso,
nunca; isso me deixa fora de mim. Eu vou falar com ele mais uma vez e, dessa vez, eu o terei, pode
acreditar. Eu tenho os meus pequenos e próprios meios secretos. Pra que serviria, todo o tempo que
eu passei na África, se não fosse para conhecê-los melhor que você, para conhecê-los direitinho;
para ter os meus próprios meios contra os quais eles não podem nada, hein? Pra que serviria, fazer
primeiro correr sangue, se as coisas podem se arranjar sozinhas?
CAL (Farejando.)
— Cheiro de mulher, cheiro de negro, cheiro de samambaias que reclamam. Ele está aqui,
chefe, você não sente?
HORN
— Pare de bancar o espertinho.
CAL
— Você não está ouvindo, chefe? (Latidos, ao longe.) É ele? Sim, é ele; Toubab! Vem
cachorrinho, vem, não vá embora nunca mais, vem que eu te dou carinho, meu queridinho, que eu te
beijo, porcariazinha. (Ele chora.) Eu gosto dele, Horn; Horn, por que eu estou sendo punido, por
que eu sou um canalha?
HORN
— Você não é um canalha!
CAL
— Mas você é um idiota, um idiota fodido, chefe. Claro que sim, que eu sou um canalha.
Aliás, eu quero, eu decidi ser um. Eu sou um homem de ação, eu; você, você fala, fala, você só sabe
falar; e o que você vai fazer, você, hein, se ele não te escutar, hein, se os seus pequenos meios
secretos não funcionarem, hein? Eles não vão funcionar, merda, e então felizmente eu sou um
canalha, eu, felizmente que há um aqui, para a ação. Para a ação, os idiotas fodidos não servem de
nada. Eu atiro num bubu se ele cospe em mim, e eu tenho razão, eu, merda; e é bem graças a mim
que eles não cospem em você, não por causa do que você fala, você fala, e porque você seja um
idiota. Eu, eu atiro se ele cospe e você fica bem contente: porque mais dois centímetros e era em
cima do nosso pé, dez centímetros mais alto e era a calça, e um pouquinho mais alto a gente levava
na cara. O que você fazia, então, você, se eu não tivesse feito nada? você falava, você, falava, com o
cuspe dele bem no meio da cara? Idiota fodido. Porque eles cospem o tempo todo, aqui, e você, o
que é que você faz? Você faz como se você não visse. Eles abrem um olho e cospem, abrem um
outro olho e cospem, cospem andando, comendo, bebendo, sentados, deitados, de pé, agachados;
entre cada mordida, entre cada gole, a cada minuto do dia; isso acaba cobrindo a areia do canteiro
de obras e as pistas, penetra no interior, isso faz lama e, quando a gente pisa em cima, nossas pobres
botas afundam. Ora de que é composto um cuspe? Quem sabe? De líquido, com certeza, como o
corpo humano, noventa por cento. Mas do que mais ainda? dez outros por cento de quê? Quem
poderá me dizer? você? Cuspes de bubus são ameaça para nós. Se nós reuníssemos todos os cuspes
de todos os negros de todas as tribos de toda a África e de um só dia, cavando fossas onde fosse
obrigatório cuspir, canais, diques, represas, barragens, aquedutos; se a gente reunisse as valetas de
todos os cuspes cuspidos pela raça negra sobre todo o continente e cuspidos contra nós, a gente
chegaria a cobrir as terras emersas do planeta inteiro com um mar de ameaça para nós; e não
sobraria mais nada além dos mares de água salgada e os mares de cuspes misturados, os negros
sozinhos nadando no seu próprio elemento. Isso, eu não vou deixar fazer, não vou; eu sou pela ação,
eu, eu sou um homem. Quando você tiver acabado de falar, velho, quando você tiver acabado,
Horn...
HORN
— Deixe-me fazer primeiro. Se eu não conseguisse convencê-la...
CAL
— Ah ah, chefe.

35
HORN
— Mas que você fique calmo, primeiro; que você consiga acalmar os seus nervos de
mulher, meu Deus.
CAL
— Ah ah, chefe.
HORN
— Veja bem, Cal, meu garoto...
CAL
— Cala a boca. (Latidos, ao longe; Cal parte como uma flecha.)
HORN
— Cal! Volta, é uma ordem: volta!

(BARULHO DO CAMINHÃO QUE DÁ A PARTIDA. HORN FICA.)

XIII

(BARULHOS DE GALHOS QUEBRANDO. HORN ACENDE SUA LANTERNA.)

ALBOURY (Na sombra.)


— Apague!
HORN
— Alboury? (Silêncio) Venha. Mostre-se.
ALBOURY
— Apague a sua lanterna.
HORN (Ele ri)
— Como você está nervoso! (Ele apaga por um instante sua lanterna)i Você tem uma,
uma voz: de dar medo.
ALBOURY
— Mostre o que você está escondendo atrás das costas.
HORN
— Ah ah, atrás das minhas costas, bem? fuzil ou revólver? Adivinhe o calibre. (Ele tira de
trás de suas costas duas garrafas de uísque.) Ah ah. Aqui está o que eu estava escondendo. Você
duvida ainda das minhas intenções? (Ele ri, reacende a lanterna.) Vamos, descontraia-se. Eu tinha a
intenção de te fazer experimentar; são os meus melhores. Reconheça que todos os passos, senhor
Alboury, fui eu que dei; não se esqueça disso, quando nós recapitularmos. Você não quer vir até
mim, então eu venho até você: e acredite em mim, é por amizade, amizade pura. O que você quer:
você conseguiu me deixar preocupado; eu quero dizer: me deixar interessado. (Ele mostra o
uísque.) Aqui está quem vai te forçar a se abrir um pouco na minha frente. Eu esqueci os copos: eu
espero que você não seja esnobe; aliás, o uísque é bem melhor na garrafa, isso evita que ele
evapore; é nisso que a gente reconhece um bebedor; eu quero te ensinar a beber. (Baixo.) Você não
tem a consciência tranqüila, senhor Alboury.
ALBOURY
— Por quê?
HORN
— Eu não sei. Você gira sem parar o olhar em todas as direções.
ALBOURY
— O outro branco está me procurando. Ele está com um fuzil.
HORN
— Eu sei eu sei eu sei; por que você acha que eu estou aqui? Comigo aqui, ele não fará
nada. Olha, eu espero que você não veja inconveniente em beber na mesma garrafa que eu?
(Alboury bebe.) Bravo, você não é esnobe, em todo caso. (Horn bebe.) Deixe que ele tenha tempo
de descer bem; é depois de algum tempo que ele solta o seu segredo. (Eles bebem.) Assim, eu fiquei

36
sabendo que você era um ás do karatê; você é mesmo um ás?
ALBOURY
— Isso depende do que quer dizer: um ás.
HORN
— Você não quer me dizer nada! Mas eu concordo em aprender um ou dois golpes, um dia
em que nós tivermos tempo. Eu prefiro assim mesmo te dizer de uma vez que eu desconfio das
técnicas orientais. O velho e bom boxe! Você já lutou alguma vez o velho e bom boxe tradicional?
ALBOURY
— Tradicional, não.
HORN
— Bom, então, como você pensa em se defender? Eu vou te ensinar um ou dois golpes, um
dia desses. Eu era muito bom, eu até combati no profissional, quando era jovem; e é uma arte que a
gente não esquece nunca. (Baixo.) Fique então calmo; não se preocupe; você está aqui na minha
casa e, para mim, a hospitalidade, é a regra sagrada; aliás, você está aqui praticamente em território
francês; você não tem então nada a temer. (Eles passam de uma garrafa a outra.) Eu tenho pressa
em conhecer onde vai a sua preferência; isso diz muito sobre o caráter. (Eles bebem) Esse aqui é
claramente, claramente pontiagudo; você sente como ele é pontiagudo? Enquanto o outro, é muito
claro, ele escorrega; são tipos de bolinhas, milhares de bolinhas, metálicas, não? Como você sente,
você? Ah, a pontada desse aqui não deixa nenhuma dúvida; com, se a gente toma o tempo de
apreciá-las, arestas nele todo, que se esfregam levemente dentro da boca, não? E então?

ALBOURY
— Eu não sinto nem as bolinhas, nem a pontada, nem as arestas.
HORN
— Ah não? No entanto, é indiscutível. Tente outra vez. Você talvez esteja com medo de
ficar bêbado, talvez?
ALBOURY
— Eu pararei antes.
HORN
— Muito bem, bom, excelente, bravo.
ALBOURY
— Por que você veio aqui?
HORN
— Para te ver.
ALBOURY
— Por que, me ver?
HORN
— Olhar para você, conversar, perder meu tempo. Por amizade, por pura amizade. Por um
monte de outras razões também. Minha companhia te pesa? Você no entanto havia me dito que se
alegraria em aprender as coisas, não?

ALBOURY
— Eu não tenho nada pra aprender com você.
HORN
— Bravo; é verdade. Eu desconfiava mesmo que você estava me gozando.
ALBOURY
— A única coisa que eu aprendi com você, apesar de você, é que não tem bastante lugar na
sua cabeça e em todos os seus bolsos para guardar todas as suas mentiras; agente acaba vendo.
HORN
— Bravo; mas isso, ao contrário, não é verdade. Tente; peça qualquer coisa pra mim, pra te
provar que eu não estou te enganando.
ALBOURY

37
— Me dê uma arma.
HORN
— Exceto uma arma, ah não; vocês ficam todos loucos, com suas armas!
ALBOURY
— Ele tem uma, ele.
HORN
— Azar dele. Chega desse imbecil. Ele vai acabar na prisão e será bem melhor assim. Que
me deixem livre dele e eu vou ficar bem contente. Melhor te dizer tudo, Alboury: é ele, a causa de
todas as minhas preocupações; me livre dele e eu não vou me mexer. Melhor me dizer tudo
também, Alboury: quais são então as intenções dos seus superiores?
ALBOURY
— Eu não tenho superior.
HORN
— Mas então, por que você afirma ser da polícia secreta?
ALBOURY
— Doomi xaraam!
HORN
— Oh, você prefere continuar brincando de esconde-esconde? Como você quiser. (Alboury
cospe no dedo) Não fique com raiva por causa disso.
ALBOURY
— Como um homem poderia se reconhecer em todas as suas palavras e traições?
HORN
— Quando eu te digo, Alboury: faça o que você quiser eu não o cubro mais, não é uma
mentira, acredite em mim. Eu não estou jogando.
ALBOURY
— É uma traição.
HORN
— Traição? Trair o quê? Do quê você está falando então?
ALBOURY
— Seu irmão.
HORN
— Ah não, por favor, nada dessas palavras africanas. O que faz esse homem não é negócio
meu, a vida dele não tem nada a ver comigo.
ALBOURY
— No entanto, vocês são da mesma raça, não são? da mesma língua, da mesma tribo, não?
HORN
— Da mesma tribo, se você quiser, sim.
ALBOURY
— Vocês dois são patrões, aqui, não? patrões de fechar e abrir os canteiros de obras sem
serem punidos por isso? patrões de contratar e despedir os operários? patrões de parar e fazer
funcionar as máquinas? proprietários os dois dos caminhões e das maquinas? das casas de tijolo e
de eletricidade, de tudo aqui, vocês dois, não são?
HORN
— Sim, se você quer, para você, a grosso modo, tudo bem, sim. E então?
ALBOURY
— Por que então você tem medo da palavra irmão?
HORN
— Porque, Alboury, em vinte anos, o mundo mudou. E o que mudou no mundo, é a
diferença que existe entre ele e eu, entre um assassino louco, descontrolado, ávido, e um homem
que veio aqui completamente com um outro espírito.
ALBOURY
— Eu não sei o que que é esse seu espírito.

38
HORN
— Alboury, eu mesmo fui um operário. Acredite em mim, eu não sou um patrão por
natureza, sabe. Quando eu vim pra cá, eu sabia o que era ser um operário: e é por isso que eu
sempre tratei os meus operários, brancos ou negros, sem distinção, como o operário que eu era foi
tratado. O espírito do qual eu falo, é esse; saber que, se a gente trata o operário como um bicho, ele
se vingará como um bicho. Aí está a diferença. Agora, pelo resto, você não vai me censurar pelo
fato de o operário ser infeliz, aqui como em outro lugar; é a condição dele, eu não posso fazer porra
nenhuma. Eu fui pago para conhecê-la. Por acaso, você acha que algum operário no mundo pode
dizer: eu sou feliz? Aliás, você acredita que algum homem no mundo vai dizer algum dia: eu sou
feliz?
ALBOURY
— De que importam aos operários os sentimentos dos patrões e aos negros os sentimentos
dos brancos?
HORN
— Você é um duro, Alboury, eu estou chegando à conclusão. Eu não sou um homem, pra
você qualquer coisa que eu diga, qualquer gesto que eu faça, qualquer idéia que eu tenha, mesmo se
eu te mostrar o meu coração, você só vê em mim um branco e um patrão. (Depois de um tempo.)
Qual importância, finalmente. Isso não nos impede de beber juntos. (Eles bebem) É estranho. Eu te
sinto sempre de lado, como se tivesse alguém atrás de você; você é tão disperso! Não, não, não me
diga nada, eu não quero saber nada. Beba. Você já está bêbado?
ALBOURY
— Não.
HORN
— Muito bem, bravo. (Baixo) Eu tenho um favor pra te pedir, Alboury. Não diz nada pra
ela, não diz pra ela o que te traz aqui, não fale de mortos ou dessas coisas desagradáveis, não tente
influenciá-la, não diga nada a ela que pudesse fazê-la fugir. Eu espero que você já não tenha feito
isso. Eu talvez não devesse tê-la trazido aqui, eu sei disso, mas isso me tocou, é assim. Eu sei muito
bem que é uma loucura mas realmente, isso me tocou de um leito e agora, não, não se deve fazê-la
sentir medo. Eu preciso dela: preciso senti-la por perto. Eu a conheço muito pouco, eu não sei quais
são os desejos dela, eu a deixo livre. Pra mim é suficiente vê-la por perto e eu não peço nada além
disso. Não a faça fugir. (Ele ri) O que você quer, Alboury, eu não quero acabar sozinho, como um
velho imbecil. (Ele bebe) Eu vi muitos mortos, na minha vida, muitos — e muito os olhos deles,
dos mortos; acontece que cada vez que eu vejo os olhos de um morto, eu me digo que é preciso se
pagar rápido rápido tudo o que a gente tem vontade de ver e que o dinheiro deve ser gasto rápido
rápido com isso. Senão, o que você quer que a gente faça com o dinheiro? Eu não tenho família.
(Eles bebem) Isso desce bem, não desce? Você não tem ar de quem desconfia do álcool, é bom.
Você ainda não está bêbado? Você é um duro. Mostra? (Ele pega a mão esquerda de Alboury).Por
que você deixa crescer a unha tão grande, e justamente essa? (Ele contempla a unha do dedinho) É
um negócio religioso? é um segredo? já tem uma hora que essa unha me incomoda. (Ele a tateia)
Isso deve ser uma arma terrível, se sabemos usá-la, um puta punhal. (Mais baixo.) Isso te serve
talvez no amor? Ah, meu pobre Alboury, se você não desconfiar também das mulheres, você está
perdido! (Ele o olha) Mas você se cala, você guarda todos os seus pequenos segredos; eu tenho
certeza de que no fundo, e desde o início, você está me gozando. (Ele tira bruscamente um maço de
notas de seu bolso e estende pala Alboury) Aqui está, meu rapaz. Eu tinha te prometido. Tem
quinhentos dólares. É o máximo que eu posso fazer.
ALBOURY
— Você tinha me prometido o corpo de Nouafia.
HORN
— O corpo, sim, esse bendito corpo. A gente não vai falar de novo nisso, não é? Nouofia,
é isso. E ele tinha um nome secreto, você me disse? qual era esse nome, ainda?
ALBOURY
— É o mesmo, para nós todos.

39
HORN
— Aqui estou eu bem adiantado. Qual era ele?
ALBOURY
— Eu te digo: o mesmo para nós todos. Ele não se pronuncia de outro modo: ele é secreto.
HORN
— Você é obscuro demais pra mim; eu gosto das coisas claras. Toma, vamos. (Ele estende
o maço)
ALBOURY
— Não é o que eu estou esperando de você.
HORN
— Não exageremos, senhor. Um operário morreu, tudo bem; é grave, tudo bem, eu não
quero de maneira alguma minimizar a coisa, nem um pouco. Mas é uma coisa que acontece em
qualquer lugar, a toda hora; você acha que na França os operários não morrem? É grave mas é
normal; é parte do trabalho; se não fosse ele, teria sido um outro. O que você está achando? O
trabalho aqui é perigoso; todo mundo, a gente corre riscos; aliás, eles não são excessivos, nós
ficamos dentro das proporções, nós não ultrapassamos o limite. Sejamos claros, não é? O trabalho
custa o que custa, o que você quer. Qualquer sociedade sacrifica a ele uma parte dela mesma,
qualquer homem sacrifica a ele uma parte dele mesmo. Você vai ver. Você acha que eu não
sacrifiquei nada? Está na ordem do mundo. Isso não impede o mundo de continuar, hein, não é você
que vai impedir a terra de girar, bem? Não seja ingênuo, meu bom Alboury. Seja triste, isso, eu
posso compreender, mas não ingênuo. (Ele estende o dinheiro.) Anda, toma.
(ENTRA LÉONE)
XIV

(CLARÕES, CADA VEZ MAIS FREQÜENTES.)

HORN
— Léone, eu estava te procurando. Vai chover, e você não sabe o que a chuva quer dizer,
aqui. Só um instante e então nós entraremos em casa. (A Alboury, baixo.) Na verdade, você é
complicado demais pra mim, Alboury. Seus pensamentos são misturados, obscuros, indecifráveis,
como sua savana, como a sua África inteira. Eu me pergunto por que eu gostei tanto dela; eu me
pergunto por que eu quis tanto salvar você. É pra acreditar que todo mundo, aqui, fica insano.
LÉONE (A Horn)
— Por que você o faz sofrer? (Horn olha pra ela.) Dê pra ele o que ele está te pedindo.
HORN
Léone! (Ele ri.) Meu Deus, como tudo isso está ficando pomposo! (A Alboury) Saiba então
que o corpo desse operário não é encontrável. Ele está boiando em algum lugar, já deve fazer um
bom tempo que ele foi comido pelos peixes e pelos gaviões. Desista de uma vez por todas de
recuperá-lo. (A Léone.) Vai chover, Léone, venha. (Léone se aproxima de Alboury.)
ALBOURY
— Me dê uma arma.
HORN
— Não, meu Deus, não. Não vai ser uma matança, aqui. (Depois de um tempo.) Sejamos
razoáveis. Léone, venha. Alboury, pegue esse dinheiro e suma daqui, antes que seja tarde demais.
ALBOURY
— Se eu perdi Nouofia para sempre, então, eu terei a morte de seu assassino.
HORN
— O raio, a torrente, meu velho; ajuste suas contas com o céu e suma daqui, suma daqui,
suma, dessa vez! Léone, aqui!

40
XV

LÉONE (Baixo.)
— Aceite, Alboury, aceite. Ele está te oferecendo até dinheiro, gentilmente dinheiro, do
que você precisa mais? ele veio para arrumar as coisas, é certo; bom, é preciso arrumar já que é
possível. Pra que serve querer brigar por alguma coisa que não tem mais nenhum sentido quando se
vem gentilmente propor resolver tudo, e com dinheiro ainda por cima? O outro é que é um louco,
mas para isso, a gente sabe agora, a gente só precisa prestar bastante atenção e enfim, pra nós três, a
gente vai conseguir impedi-lo de incomodar todo mundo, é claro, de fazer mal, e então, tudo vai
correr às mil maravilhas. Ele, não é nem um pouco a mesma coisa; ele veio para falar gentilmente
mas você, você diz não, você aperta os punhos, você permanece teimoso, ouh! eu nunca vi tão
teimoso. E você acha que vai conseguir alguma coisa assim? Meu Deus, mas ele não sabe nem um
pouco como agir, esse aí, nem um pouco; ao passo que eu saberia muito bem como agir se você me
deixasse fazer: com certeza não seria apertando os punhos, não, muito menos tomando ares de
guerra e teimoso, ah não. Pois não é a guerra que eu quero viver, não, não é brigar que eu quero,
nem tremer o tempo todo, nem ser infeliz. Eu, é simplesmente viver que eu quero, tranqüilamente,
numa casinha pequena, onde você quiser, tranqüilos. Oh eu aceito ser pobre, pra mim tanto faz, e
buscar água bem longe e colher das árvores e todas essas tralhas; eu aceito viver de absolutamente
nada, mas não ficar matando e brigando e me preocupando em apertar os punhos oh não, por que
ser tão duro? Ou então eu não valho um morto já comido pela metade, eu não valeria isso! Alboury,
é então por que eu tenho a infelicidade de ser branca? No entanto, você não pode se enganar a meu
respeito, Alboury. Eu não sou verdadeiramente uma branca, não. Oh eu já estou tão acostumada a
ser o que não se deve ser, não me custa nada ser negra por cima disso tudo. Se é por isso, Alboury,
minha brancura, eu já cuspi em cima há muito tempo, eu joguei ela fora, eu não a quero. Então, se
você também não me quiser mais... (Um tempo.) Oh preto, cor de todos os meus sonhos cor do meu
amor! Eu juro: quando você for voltar pra sua casa, eu irei com você; quando eu te vir dizer: minha
casa, eu direi: minha casa. Aos seus irmãos eu direi: irmãos, à sua mãe: mãe! Sua aldeia será a
minha, sua língua será a minha, sua terra será minha terra, e até no seu sono, eu juro, até na sua
morte, eu te seguirei ainda.
HORN (De longe.)
— Você está vendo bem que ele não quer saber de você. Ele não está nem te escutando.
ALBOURY
— Démal falé doomu xac bi! (Ele cospe na cara de Léone)
LÉONE (Virando-se em direção a Horn.)
— Me ajuda, me ajuda.
HORN
— O quê? Você se comporta debaixo do meu nariz sem a menor dignidade com esse
sujeito e eu deveria te ajudar, ainda? Você acha que pode me tratar como uma merda e que eu não
vou reagir? Você acha que eu só sou bom para pagar, pagar e pronto, e que podem me tratar como
uma merda? Amanhã, meu Deus, é, você vai voltar pra Paris. (Virando-se na direção de Alboury.)
Quanto a você, eu poderia muito bem acabar com você como um vagabundo comum. Você acha
então que está na sua casa aqui? você me toma por uma merda? você nos toma todos por merda?
Você tem muita sorte que eu não goste de derramar essa porra de sangue. Mas você pode ir
perdendo esses grandes ares, eu te digo, você pode ir mordendo os seus dedos. Você achou que
podia, assim, levar uma mulher francesa na conversa, debaixo do meu nariz, dentro de uma
propriedade francesa, sem que agora você tenha de pagar as conseqüências? Dê o fora daqui. Eu te
deixo se arrumar com os da sua aldeia, quando eles saberão que você tentou levar uma branca na
conversa enquanto nos chantageava. Eu deixo você se virar para sair daqui sem encontrar o outro
que só está esperando isso pra acabar com você. Dê o fora daqui, desapareça, e, se agente te vir de

41
novo na cidade, você será morto, pela polícia se for preciso, como um ladrão comum. Eu lavo as
minhas mãos em relação à porra da sua pele.
(ALBOURY DESAPARECEU. A CHUVA COMEÇA A CAIR.)

XVI

HORN
— E você, eu te peço, não tenha a sua crise, agora; só faltava isso. Ah não, não não, eu
não posso pressentir as lágrimas, isso me deixa fora de mim; pare com isso, por favor, mostre um
pouco de dignidade. Olha só, ainda vai me vir uma idéia como essa, é, uma idéia excelente, o
imbecil! Pára; pára, pára por favor, um pouco de dignidade. Tudo se ouve, aqui, o menor barulho se
ouve a quilômetros de distância; a gente tem o ar fino, eu te juro; que bela imagem você passa de
nós, se você se visse. Psiu, vamos; se vira pra se conter mas psiu. Pare de respirar algum tempo,
faça o que você quiser, beba um gole grande de uma vez, como pra quando a gente está com soluço,
isso deve funcionar também, mas me pára com isso. Anda, dá um gole. (Ele joga a garrafa. Léone
bebe.) Mais, não molengue, isso vai te dar um pouco de dignidade pois tudo isso está faltando, é. O
que Cal está fazendo então com a merda da caminhonete? Cal! meu Deus. Por favor, você! Se você
acha que o sujeito não ficou por perto nos olhando, ha! esfregando as mãos de ver essa crise
lamentável e indigna, sim. Que imagem você dá dos brancos. Que idéia maravilhosa eu tive, meu
Deus. Léone, eu te suplico, eu não suporto as crises. (Ele anda em todos os sentidos.) Eu estou me
sentindo muito mal, esta vez, sim, eu estou mal, muito mal. (Ele pára bruscamente perto de Léone.
Baixo e bem rápido.) Por favor, e se... se a gente fosse embora daqui, hein? que eu abandone o
canteiro de obras agora, será que... (Ele pega a mão dela.) Não me... Não chore mais... Não me
deixe sozinho. Eu tenho dinheiro suficiente para ir embora sem aviso prévio e então Cal teria uma
promoção e então dentro de dois dias a gente estaria na França ou em outro lugar, na Suíça ou na
Itália, no lago de Bolsena ou no lago de Constance, ou como você quiser. Eu tenho bastante
dinheiro, muito. Não chore, não chore, Léone, com você eu... Diz pra mim: tudo bem. Não me
deixe, eu estou muito mal agora, Léone, eu quero me casar com você, é o que a gente queria, não é?
Diz: tudo bem!
(LÉONE SE RECOMPÔS. CONTRA UMA PEDRA, ELA QUEBRA A GARRAFA DE UÍSQUE
E RAPIDAMENTE, SEM UM GRITO, OLHANDO A SOMBRA ONDE DESAPARECEU
ALBOURY, COM UM PEDAÇO DE VIDRO, ELA GRAVA NAS BOCHECHAS,
PROFUNDAMENTE, AS MARCAS INCISIVAS, PARECIDAS COM O SINAL TRIBAL DO
ROSTO DE ALBOURY.)
HORN
— Cal! meu Deus, Cal! Está sangrando; isso não tem nenhum sentido. Cal! Tem sangue,
pra todo lado!
(LÉONE DESMAIA. HORN CORRE GRITANDO, EM DIREÇÃO À LUZ DOS FARÓIS QUE
SE APROXIMAM)

XVII

(NA CIDADE, PERTO DA MESA,. CAL LIMPA SEU FUZIL.)

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CAL
— Na luz, eu não posso nada. Nada. Os guardas me veriam fazendo, e então eles
poderiam testemunhar. Eles poderiam correr até a polícia e eu não quero nada que fazer com a
polícia; ou eles poderiam correr até a aldeia e eu não quero ficar com a aldeia contra mim. Com
toda essa luz, eu não posso nada.
HORN
— Os guardas não farão nada. Eles estão contentes demais por terem esse trabalho, eles
estão apegados, pode acreditar. E por que eles correriam até a polícia, ou até a aldeia para perder o
lugar? Eles não vão se mexer, eles não vão ver nada, eles não vão ouvir nada.
CAL
— Eles já o deixaram entrar uma vez, e depois esta outra vez ainda. Ali, atrás da árvore, ele
está ali de novo; eu o ouço respirar. Os guardas, eu desconfio deles.
HORN
— Eles não o viram entrar, ou eles estavam dormindo. Aliás, a gente não está mais ouvindo
os guardas. Eles dormiram; eles não vão se mexer.
CAL
— Dormindo? Você não está enxergando bem, velho. Eu estou vendo os guardas. Eles se
viraram na nossa direção; eles estão olhando pra nós. Eles estão com os olhos meio fechados mas eu
estou vendo bem que eles não estão dormindo e que eles estão olhando pra nós. Ali está um que
acaba de caçar um mosquito com o braço; aquele outro está coçando a perna; ali, um que acaba de
cuspir no chão. Com toda essa luz, eu não posso fazer absolutamente nada.
HORN (Depois de um tempo)
— Seria preciso que o gerador tivesse um tipo de pane.
CAL
— Seria preciso, sim; é preciso absolutamente. Senão, eu não posso fazer nada.
HORN
— Não, o melhor, é esperar a manhã: nós enviaremos um chamado de rádio e a
caminhonete até a aldeia. Vamos, eu vou pôr os morteiros no lugar
CAL
— Os o quê?
HORN
— Os porta-lanças, as caldeiras: todo o material para o meu fogo de artifício.

CAL
— Mas já vai amanhecer, Horn! Aliás, ela está fechada dentro do bangalô, ela não vai
querer sair para olhar, ela nem quis tomar nada; se ela pegar tétano, nós teremos de cuidar dela. Que
mulher estranha, e agora ela tem essas marcas pra vida toda: no entanto, ela era bonita. É
engraçado. E você... Mas quem você queria que visse, velho, o seu fogo de artifício?
HORN
— Eu, eu vou ver; é pra mim que eu faço, eu o comprei pra mim.
CAL
— E o que é que eu devo fazer? Vamos ficar juntos, velho: é preciso acabar com ele de
uma vez por todas, agora.
HORN
— Eu confio em você. Seja prudente, só isso.
CAL
— Se que eu estou frio, agora, então, eu não tenho mais idéia do que é preciso fazer.
HORN
— Uma pele negra se parece com uma pele negra, não é? A aldeia reclama um corpo: é
preciso dar-lhes um; nós não teremos paz enquanto nós não dermos a eles um corpo. Se a gente
esperar mais, o dia em que eles nos enviarão dois sujeitos para reclamar, a gente não vai poder fazer
mais nada.

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CAL
— Mas eles vão ver muito bem que não é o operário. É que eles se reconhecem, entre eles.
HORN
— Não se pode reconhecê-lo. Se não se pode reconhecer a cara, quem pode dizer: é ele,
ou: é um outro! A cara, é isso é só isso que a gente reconhece.
CAL (Depois de algum tempo)
— Sem fuzil, eu, eu não posso fazer nada; eu não gosto de brigar e eles são todos fortes
demais, esses canalhas, com o karatê deles. E com um fuzil, velho, a gente vai ver bem a marca, um
buraco na cara essa e a marca que eles vão ver e então a gente vai ficar todo mundo com a polícia
nas costas.
HORN
— Então, o melhor, é esperar a manhã. Façamos tudo dentro das regras, meu rapaz, é o que
há de melhor. Nós falaremos com a polícia e resolveremos da melhor maneira, dentro das regras.
CAL
— Horn, Horn, eu estou ouvindo-o, ali, respirando. O que é que eu posso fazer, o que é que
eu devo fazer? Eu não tenho mais idéias. Não me abandone.
HORN
— Um caminhão pode passar em cima dele, Quem pode dizer: é um tiro de fuzil, ou: é um
tiro de pistola, ou: é um caminhão, hein? Um tiro de fuzil não se parece mais com nada se um
caminhão passou por cima depois.
CAL
— Finalmente, eu vou dormir. Eu estou com a cabeça assim.
HORN
— Imbecil.
CAL (Ameaçando)
— Não me chame de imbecil. Horn, nunca mais de imbecil.
HORN
— Cal, meu garoto, os seus nervos! (Depois de um tempo.) O que eu quero dizer, é que
esse aí, se a gente deixar ele entrar na aldeia, eles vão voltar em dois ou três e vai se virar com dois
ou três! Ao passo que, senão, a gente manda levarem o corpo dele amanhã para a aldeia e a gente
manda dizer: é o rapaz que foi atingido pelo raio, ontem, no canteiro de obras e veja, um caminhão
passou por cima dele. Depois, tudo volta à ordem.
CAL
— Mas eles vão nos pedir as contas por esse aí, então; eles vão perguntar: por onde ele
passou, esse ai?
HORN
— Esse aí não é um operário, nós não temos nenhuma conta pra acertar por esse aí; nunca
foi visto. A gente não sabe de nada. Então?
CAL
— Frio, assim, é duro.
HORN
— Quando eles forem muitos e que os guardas, depois, vão deixar passar todo mundo, o
que é que a gente vai fazer, então? hein?
CAL
— Eu não sei, eu não sei; diz pra mim, velho.
HORN
— É melhor exterminar a raposa do que fazer sermão pra galinha.
CAL
— Sim, chefe.
HORN
— Aliás, eu já o amoleci. Ele não é mais perigoso, esse cara. Ele custa a ficar de pé; ele

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bebeu como uma esponja.
CAL
— Sim, chefe.
HORN (Baixo.)
— Cuidadosamente, no meio da cara.
CAL
— Sim.

HORN
— E depois, o caminhão, cuidadosamente.
CAL
— Sim.
HORN
— E prudência, prudência, prudência.
CAL
— Sim, chefe, sim chefe.
HORN
— Cal, meu garoto, eu decidi, olha só, nem ficar até o fim das obras.
CAL
— Chefe!
HORN
— É, meu garoto, é assim; eu estou cheio, olha bem; da África eu já não entendo mais
nada; é preciso usar outros métodos, sem dúvida, mas eu, eu não entendo mais nada daqui. Então,
quando você precisar, você, resolver as coisas, Cal, meu Deus; me escuta bem: não esconda nada da
direção, não faça suas besteiras, conte tudo, ponha-os do seu lado. Eles podem compreender tudo,
tudo; eles podem resolver tudo, tudo. Mesmo a polícia, você não a conhece: que eles se dirijam à
empresa. A direção da sua empresa, é tudo o que deve existir, pra você, lembre-se sempre disso.
CAL
— Sim, chefe.
HORN
— Dentro de duas horas, vai amanhecer: eu vou começar o meu fogo.
CAL
— E a mulher, velho?
HORN
— Ela vai embora daqui a pouco com a caminhonete. Eu não quero mais ouvir falar disso.
Ela nunca existiu. Nós estamos sozinhos. Tchau.
CAL
— Horn!
HORN
— O quê?
CAL
— Tem luz demais, luz demais, demais.

(HORN LEVANTA OS OLHOS EM DIREÇÃO À TORRE DE VIGILÂNCIA E AOS GUARDAS


IMÓVEIS.)

XVIII

(EM FRENTE À PORTA ENTREABERTA DO BANGALÔ.)

HORN (Falando para dentro do bangalô.)


— Dentro de algumas horas, uma caminhonete vai para a aldeia, levar documentos; ela vai

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buzinar; esteja pronta; é um excelente motorista. Enquanto você espera, vai ser perigoso sair; tran-
que-se no seu quarto e não se mexa, não importa o que você ouvir, até que soe a buzina da
caminhonete. Quando você partir, eu já estarei no trabalho, então: tchau. Vá a um médico, quando
chegar eu desejo que ele te conserte tudo isso, sim, talvez um bom médico poderá te fazer ficar
apresentável de novo e consertar isso. Quando você voltar, também, eu te peço pra não falar demais.
Pense o que você quiser, mas não faça mal à empresa. Ela te deu hospitalidade apesar de tudo; não
se esqueça disso; não lhe cause dano; ela não é responsável por nada daquilo que te aconteceu. Isso,
eu te peço como... como um favor. Eu dei tudo pra ela, tudo; ela é tudo pra mim, tudo; pense de
mim o que você quiser, mas a ela, não faça mal a ela, porque senão seria erro meu sim, meu próprio
erro. É um favor que você pode muito bem me fazer; pois é com uma passagem de avião paga com
o meu dinheiro que você está voltando; você aceitou a passagem de ida: agora, você precisa aceitar
a volta. Então, bom... Tchau. Eu não vou mais te ver: a gente não vai mais se ver. Não. (Ele sai.)

(LÉONE APARECE, NA FRENTE DA PORTA, COM AS MALAS NA MÃO. SEU ROSTO


ESTÁ AINDA SANGRANDO. BRUSCAMENTE, A LUZ SE APAGA DURANTE ALGUNS
SEGUNDOS; EM SEGUIDA, ESCUTA-SE O GERADOR QUE VOLTA A FUNCIONAR. CAL
APARECE; LÉONE ESCONDE O ROSTO ATRÁS DO BRAÇO, E FICA ASSIM DURANTE
TODO O TEMPO EM QUE ELE OLHA PRA ELA.)

XIX

(A LUZ TEM AINDA ALGUMAS FALHAS, QUE INTERROMPEM CAL DE VEZ EM


QUANDO.)

CAL
— Não se preocupe, não se preocupe, bebê, é o gerador. Essas grandes engenhocas não
são fáceis pra manejar; provavelmente vai haver uma pane, são coisas que acontecem, Horn deve
estar se ocupando disso, não se preocupe. (Ele se aproxima dela.) Eu me lavei. (Ele se cheira.) Eu
acho que não estou mais cheirando. Eu passei loção pós-barba. Eu ainda estou com cheiro? (Um
tempo) Pobre bebê; encontrar novamente trabalho, agora, não vai ser fácil, bem, eu imagino;
principalmente em Paris: cidade dura. (Um tempo.) Deve estar nevando, em Paris, agora, não? Você
tem razão em voltar: aliás, eu sabia: eu sabia aliás que ele acabaria te desagradando. Eu continuo
não entendendo o que você viu nele, no Horn. Quando eu te vi, de longe, desembarcar, vermelha,
tão vermelha! com essa elegância, esse chique das parisienses, esse lado última moda, tão frágil! e
que eu te vejo agora... Horn, que idiota! A gente não deve mostrar os porões e os esgotos para as
criancinhas, não; ele deveria saber disso, A gente deve deixá-las brincando na varanda e no jardim,
e proibi-las de entrar nos porões. No entanto, assim mesmo, sim, bebê; pra nós que trabalhamos
aqui, você, você trouxe um pouco de humanidade. Finalmente, sim, eu compreendo, velho Horn,
velho sonhador! (Ele pega a mão dela.) Em todo caso, eu estou contente por ter te conhecido, bebê,
eu estou contente que você tenha vindo. Com certeza você me julga mal, bebê: com certeza, eu não
tenho idéia. Mas de que me interessa, o seu julgamento, já que você está voltando pra Paris, e que a

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gente não vai mais se ver? Com certeza você vai falar mal de mim pras suas amigas, durante algum
tempo, e com certeza, enquanto você se lembrar de mim, vai ser do lado ruim e no fim, você não vai
se lembrar de mais nada. Mas em todo caso, eu fiquei contente de trocar com você. (Ele beija a
mão dela.) Agora, quando é que a gente vai ver de novo uma mulher, uma mulher de verdade como
você, bebê? Se divertir com uma mulher, quando? quando eu vou ver uma mulher novamente no
fundo desse buraco? Eu estou perdendo a minha vida, no fundo desse buraco; eu estou perdendo os
que, em outro lugar, seriam os melhores anos. Ficando sozinho, sempre sozinho, a gente acaba não
sabendo mais a própria idade; então de te ver, eu me lembrei da minha. Vai ser preciso que eu a
esqueça de novo. E o que é que eu sou, aqui, o que é que eu continuo sendo: nada. Tudo isso por
dinheiro, bebê; o dinheiro nos toma tudo, mesmo a lembrança da nossa idade. Olhe isso. (Ele
mostra as mãos) Por acaso alguém diria que são ainda mãos de um homem jovem: você já viu mãos
de engenheiro, na França? Mas, sem dinheiro, pra que nos serviria, ser jovem, hein? Finalmente, eu
me pergunto, por que, sim, por que eu estou vivendo. (A luz se paga, definitivamente, desta vez.)
Não se preocupe; é apenas uma pane; não se mexa. Eu devo ir; adeus, bebê. (Depois de um tempo.)
Não me esqueça. não me esqueça.

XX

(ULTIMAS VISÕES DE UM CERCADO LONGÍNQUO)


(UM PRIMEIRO FEIXE LUMINOSO EXPLODE SILENCIOSAMENTE E RAPIDAMENTE
NO CÉU ACIMA DO JARDIM DE BUGANVÍLIAS.
CLARÃO AZUL DE CANO DE FUZIL. BARULHO SECO DE UMA CORRIDA, PÉS
DESCALÇOS, EM CIMA DA PEDRA. GEMIDO DE CACHORRO. CLARÕES DE
LANTERNAS. ASSOBIO. BARULHO DE UM FUZIL SENDO ARMADO. SOPRO FRESCO
DO VENTO.
O HORIZONTE SE COBRE COM UM IMENSO SOL DE CORES QUE CAI, COM UM
BARULHO DOCE, SUFOCADO, EM FAÍSCAS SOBRE A CIDADE.
DE REPENTE A VOZ DE ALBOURY: DO PRETO JORRA UM CHAMADO, GUERREIRO E
SECRETO, QUE GIRA, LEVADO PELO VENTO, E SE LEVANTA DO CONJUNTO DE
ÁRVORES ATÉ A CERCA DE ARAME FARPADO E DA CERCA ATÉ AS TORRES DE
VIGILÂNCIA.
ILUMINADA PELOS CLARÕES INTERMITENTES DO FOGO DE ARTIFÍCIO,
ACOMPANHADA POR EXPLOSÕES SURDAS, A APROXIMAÇÃO DE CAL EM DIREÇÃO À
SILHUETA IMÓVEL DE ALBOURY. CAL APONTA SEU FUZIL PARA O ALTO, EM
DIREÇÃO À CABEÇA; O SUOR CORRE EM CIMA DE SEU ROSTO; SEUS OLHOS ESTÃO
INJETADOS DE SANGUE.
ENTÃO SE ESTABELECE, NO CORAÇÃO DOS PERÍODOS NEGROS ENTRE AS
EXPLOSÕES, UM DIÁLOGO INCOMPREENSÍVEL ENTRE ALBOURY E AS ALTURAS DE
TODOS OS LADOS. CONVERSA TRANQÜILA, INDIFERENTE; PERGUNTAS E
RESPOSTAS BREVES; RISOS, LINGUAGEM INDECIFRÁVEL QUE RESSOA E SE
AMPLIFICA, CORRE AO LONGO DA CERCA DE ARAME DE ALTO A BAIXO, PREENCHE
O ESPAÇO INTEIRO, REINA SOBRE A ESCURIDÃO E RESSOA AINDA SOBRE TODA A
CIDADE PETRIFICADA, NUMA ÚLTIMA SÉRIE DE ESTRELAS CADENTES E DE SÓIS
QUE EXPLODEM..
CAL É PRIMEIRAMENTE ATINGIDO NO BRAÇO; ELE SOLTA O FUZIL. NO ALTO DE
UMA ÁRVORE, UM GUARDA ABAIXA SUA ARMA; DE OUTRO LADO, UM OUTRO
GUARDA LEVANTA A SUA. CAL É ATINGIDO NO VENTRE, DEPOIS NA CABEÇA; ELE
CAI. ALBOURY DESAPARECEU. NEGRO.
O DIA AMANHECE, DOCEMENTE. GRITOS DE GAVIÕES NO CÉU. NA SUPERFÍCIE
DOS ESGOTOS A CÉU ABERTO, GARRAFAS DE UÍSQUE VAZIAS SE CHOCAM. BUZINA

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DE UMA CAMINHONETE. AS FLORES DE BUGANVÍLIA BALANÇAM; TODAS
REFLETEM A AURORA.)

LÉONE (Muito longe, escuta-se com dificuldade sua voz, coberta pelos barulhos do dia; ela se
inclina em direção ao motorista.)
— Haben Sie eine Sicherheitsnadel? Mein Kleid geht auf. Mein Gott, wenn Sie Keine bei
sich haben, muss ich ganz nackt.. (Ela ri, sobe na caminhonete), toda nua! nach Paris zurück. (A
caminhonete se distancia.)
(PERTO DO CADÁVER DE CAL. SUA CABEÇA ESTOURADA ESTÁ EMBAIXO DO
CADÁVER DE UM CACHORRINHO BRANCO QUE MOSTRA OS DENTES. HORN PEGA O
FUZIL CAÍDO NO CHÃO, LIMPA O ROSTO E LEVANTA OS OLHOS EM DIREÇÃO ÀS
TORRES DE VIGILÂNCIA DESERTAS.)

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