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MAX
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DA BELEZA DE IMAGENS FEIAS
,

TRADUCAO
, MARIANA SIMONI

ZAZIE EDIÇÕES
DA
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MAX BROD
col. MAD MAX
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BELEZA DE IMAGENS FEIAS
,

TRADUCAO MARIANA SIMONI


,

ZAZIE EDIÇÕES
2017 © Max Brod

"" col. MAD MAX


TÍTULO ORIGINAL
Über die Schönheit häßlicher Bilder
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Laura Erber e Karl Erik Schøllhammer
EDIÇÃO
Laura Erber
""""
TRADUÇÃO
Mariana Simoni
REVISÃO DE TEXTOS
Fernanda Volkerling
DESIGN GRÁFICO
Maria Cristaldi

Bibliotek.dk
Dansk bogfortegnelse-Dinamarca
ISBN 978-87-93530-06-5

Zazie Edições
www.zazie.com.br
DA BELEZA DE IMAGENS FEIAS

“Pena que nem tudo seja como nas operetas” Laforgue

Ainda hoje quando por acaso me atinge um sopro tépi-


do da grade bronzeada de um aquecedor a vapor (oh,
lembrança, sórdida rival afortunada do presente!)... me
lembro daquela exposição de arte no Künstlerhaus em
Viena que fez parte da minha educação. Naquele tempo
isso era excitante. Já a caminho, nas ruas, o vento ás-
pero de março levantava os chapéus acima dos pentea-
dos rebeldes de todas as senhoras (Balzac diria: nesse
vento tão típico de Viena quanto de etc.)... Já a caminho,
eu me regozijava com esse Künstlerhaus que imagi-
nava cálido e, de acordo com seu nome, um lugar de
encontro de gigantes lendários da arte, sim, daqueles
Ticianos, vagueando por lá como patrícios em conver-
sas com reis de roupagem suntuosa e imaculada. Mas
não fiquei muito desapontado de aí encontrar apenas
quadros, incontáveis quadros, e em certas partes da
parede, entre dois quadros, aquelas grades comuns do
aquecimento central, que de repente espalham ondas
de ar tropical. Eu ficava sempre no espaço entre os qua-
dros. Minha companheira, no entanto, já estava seduzi-
da, arrebatada, dominada pela magia da arte. Ela inala- 3
va prazerosamente o ar de um pôr do sol pintado com
precisão, ainda que neste ar flutuassem nuvens oleosas
de refrigerante de framboesa, ela viajava nos gigantes-
cos cenários límpidos dos fiordes, ficava embevecida e
simultaneamente aprendia a respeito da execução de
Charlie Stuart... “Mas tudo isso é puro kitsch! Como
você pode gostar disso?”, exclamava eu, entre sério e
debochado, esforçando-me em dar um ar satírico à mi-
nha atitude, justificável pela necessidade de calor. Ela
me olhava melindrada e passava adiante para a próxima
sala. Eu seguia... Lá também poltronas de vime, tapetes,
palmeiras, luz do teto e, nas paredes, anjos da guarda
com asas de ganso conduzindo garotinhas sobre pas-
sarelas de feitio nada prático; um Lohengrin, de mo-
vimentos delicados em sua armadura de prata, como
se vestisse o mais confortável dos fraques, beijava a
sua coquete Elzinha; na sala ao lado, jovens artesãos
de aspecto saudável, contudo melancólico, em suas
roupas antiquadas1, davam adeus a sua assaz poética
cidade natal; louríssimas moças rosadas como que saí-
das fresquinhas da confeitaria carregavam partituras e
uma lira e também um poeta, pálido mesmo em pleno
sono, enfeitando com graça a sua cabeça com uma
coroa; em cenários de campos nevados (branco, fraise,
cinza-pérola) emergiam corvos crocitantes, simboliza-
dos sempre pela figura de duas vírgulas contíguas; e
o exótico surge representado por beduínos, dançarinas
da espada, camponeses eslovacos, cenas de Bukhara,
centauros a galope, mulheres felás encostadas nas co-
nhecidas retrancas inclinadas das barcas do Nilo. Este
oriente, sim, continua fascinante... Minha companheira,
no entanto, um tom acima da minha indignação “e isso
não te agrada?” me leva até a criada mais encantadora

1
O adjetivo vormärzlich refere-se à moda anterior à revolução de março
4 de 1848.
que sabe proteger a vela com sua mãozinha com tanta
habilidade que os raios de luz maquiam seu rosto de
amarelo avermelhado... E agora, vencido, tudo passa a
me agradar. Esqueço-me dos franceses, do progresso,
de Meier-Graefe, dos deveres de um indivíduo moderno.
Mergulhado no passado dos anos de uma juventude ir-
responsável, divirto-me com a boca desdentada de um
monge bonachão apertando contra si, como simples
humano, do lado direito e do esquerdo, garrafas de vi-
nho revestidas de palha trançada; e fico estupefato com
as batalhas reluzentes, com os lenços de cabeça cuida-
dosamente ensanguentados dos feridos, com os sabres
polidos dos cavaleiros. E a ordem é “tropa, descansar!”
quando cantis encaixados em mochilas lançam sua luz
cinza contra a poeira cinza das estradas. E juncos niti-
damente estriados nascem de reflexos branco-chumbo
da superfície espelhada de um alagado “antes da tem-
pestade”. Despedidas dão-se ao piano, talvez para sem-
pre. Rosas, fenecendo, despencam de copos d’água.
Vacas descansam nos prados. Faça as contas, menina,
quem é o maior, você ou o Barry …2

Desde então amo o aconchego, a graça inconsciente


de imagens feias, esta ironia que nada sabe de si, esta
elegância dos efeitos involuntários. Como são pobres ao
lado destas as imagens sérias que impelem o espírito do
espectador em uma única direção pretendida pelo artis-
ta. São tão óbvias, tão perfeitas, tão feias... as imagens
belas. Em compensação, os deleites de um balé intuitivo
da própria natureza inesgotável, arbitrária, o caos e as
cerimônias ancestrais, estes eu os encontro em clichês
de anúncios, imagens publicitárias, selos, colagens, ce-

2
Possível referência ao arquiteto e paisagista inglês Sir Charles Barry
(1795-1860), responsável, entre outros inúmeros projetos de palácios e jar-
dins no século 19, pelo desenvolvimento na Inglaterra do estilo italiano de
jardim, típico da Renascença. 5
nários de teatro infantil, decalques, vinhetas; me encan-
to com o romantismo do mau gosto.

Desde aquele tempo minhas coleções de pintura são


os cartazes nas esquinas das ruas. Lá um automóvel de
luxo vermelho, representando um autêntico “Laurin &
Clement”, ocupado por um homem e uma mulher em
traje chiquíssimo, acha-se ante uma paisagem alpina
amarela de ovos mexidos empilhados. Com um movi-
mento elegante da mão, o homem parece mostrar este
raro espetáculo da natureza à mulher que, indiferente
aos olhares lançados por seus ostentativos óculos de
mergulhador, procura rasgar com a ponta do nariz o pró-
prio véu... Um Chamberlain de monóculo e com cantos
da boca imperialístico-insolentes chama conveniente-
mente a atenção para a abertura de uma loja de confec-
ção masculina... Contudo, menos feliz é a apresentação
do “Altvater Jägerndorf”3 por um ancião de olhos reme-
lentos, com barrete de penacho e lampião...

6 3
Aguardente austríaca de ervas.
Será que conseguimos resistir a essa Galateia de aná-
guas ingenuamente levantadas, ao rapaz jocosamente
rascunhado em um cartaz de variedades?... E de joelhos,
de joelhos diante do retrato de Zola, diante das rugas de
sua testa, bem apropriadas ao autor de livros sérios, e
ainda intensificadas pela esperta colagem especialmen-
te enrugada deste cartaz… Se você ainda duvidar do
efeito desta arte autenticamente primitiva, surge logo,
não para punir mas antes para persuadir, um gênio, ro-
busto, mas virginal, envolto em vestimenta combinada
de bolero e chiffon e de asas casualmente simétricas,
enquanto pregas desordenadas, com um sopro, desfa-
zem a bainha de sua roupa. Anunciando “Festejos de
maio”, atira uma coroa com a mão esquerda e dobra
o braço direito para manter o equilíbrio, mas coloca o
trombone inadvertidamente na orelha em vez da boca,
assemelhando-se assim a uma pomposa corneta acús-
tica. Não parece ser um símbolo inadequado, uma vez
que ele próprio passa a ter vontade de escutar as admi-
ráveis óperas por ele anunciadas. E, indiferente a tudo
o mais, ele adentra na fotografia do prédio do teatro,
apesar de visível resistência e de a luz, perturbadora, o
iluminar pela esquerda e o teatro pela direita.

Satisfeito por nem sempre a física ter a última palavra,


me volto a outros prazeres da arte. Eles me aguardam
em todas as vitrines, como estas maravilhosas offenba-
chianas da vida. As perfumarias enfeitam-se com o co-
lorido de flores tão esquemáticas que ficamos tentados
a chamá-las, sorridentes, de “Kinder Floras” …4

4
Kinder Floras: pode referir-se tanto a um tipo de flor quanto ao quadro
“Kinder Floras, Mädchen flechten Kränze” do pintor austríaco da Escola
de Viena, Josef Straka (1864-1946), muito reproduzido em postais naquele
tempo. 7
O chocolate em pó Van Houten é totalmente impensável
sem essa dama nórdica que, na primeira classe de um
compartimento de trem, vira as costas a uma desolado-
ra paisagem hibernal para sorver em sua chávena favo-
rita, de smakelijkste, in’t Gebruk de vordeeligste. Isso não
soa como o alemão fantástico de um escritor de primeira
categoria totalmente soberano?

Engraçado, engraçado… Em uma loja de seda, esbarro


numa página virada da revista “Wiener Mode”. Que figu-
ras estranhas dominadas por ritmos místicos e de ros-
tos abertos, inteligentes, inocentes, típicos da “Wiener
Mode”… Firmas de papel exibem cartões postais, en-
graçado, engraçado, essas capelas cobertas de neve na
floresta, os casais amorosos fotografados no progresso
das situações, saudações pascais inofensivas, coelhos
mascarados de lebres, geleiras alpinas de opereta, dor
e alegria, aprendizes de sapateiro, Villa Miramare, im-
probabilidades coloridas à mão… E o comerciante de
delicatessen na loja ao lado. Como é engraçado o bebê
puxar seu carrinho repleto de chocolate Suchard, como
é aventureira e fora de controle a colheita de chá nestes
8 pacotinhos. De uma garrafa de vinho, um cavaleiro nos
9
saúda galante com a sua cartola; espanholas seduzem
do alto de latas de conservas; em caixas de bombom
surgem, como num passe de mágica, fadas e cavalei-
ros; a água gasosa de Karlsbad borbulhando incessante
naquela coluna de caixas de hóstias doces5;

alguns fabricantes de aguardente preferem paisagens


montanhosas, outros, o bravo caçador que apoia o ca-
chimbo sobre a mesa de madeira; arautos que anunciam
a glória do espumante alemão, enquanto os Biscuits
Pernod ocupam a Alemanha com os seus piou-pious6
de calças vermelhas.

Volto para casa, abandono o espetáculo popular teatral


do cotidiano, mas até em casa me espera diversão su-
ficiente, o mágico dos maços de cigarro, as etiquetas
dos frascos de perfume, cenas fabulosas de vaudeville
em caixas de cartas e calendários de parede, diplomas,
lembranças de viagem...

5
As hóstias doces são uma espécie de bolacha, típica da cidade tcheca
de Karlsbad, preparadas com a água mineral de suas famosas fontes
termais.
10 6
Soldados franceses de infataria, que trajavam pantalona vermelha.
E mais ainda a pasta amada de gravuras japonesas em
madeira … Pare! Volte!... Gravuras japonesas em madei-
ra são reconhecidamente belas! Creio ter dito algo assaz
ridículo (“dito” é um modo de falar… antes, escrito)…
Mas a dificuldade nessa coisa em si tão simples consis-
te precisamente na demarcação de uma fronteira.
E estou convencido, inclusive, de que não há nada mais
urgente para toda a humanidade do que meu novo sis-
tema da estética, há muito sendo escrito com zelo e apli-
cação quase bárbara, mas em minha firme decisão só
será publicado no dia vinte e sete de maio de 1934, no
meu 50º aniversário. Mesmo assim, já antes, todos os 11
dias entre três e quatro, permaneço à disposição de de-
legações de lugares do mundo especialmente perplexas
com este tema. Nessa hora costumo ficar sossegado
em casa jogando cartas com dois amigos correligioná-
rios. A magia destas pequenas imagens nas cartas de
fato ultrapassa tudo. Rapazes de cabelo encaracolado
de olhar sonhador fatigado fazem ginástica, cruzam a
espada e o sabre gasto, rufam o tambor, tocam flauta,
exibem orgulhosos os seus pregueados colarinhos bran-
cos, os coletes bordados.

No dez de copas um cupido mira o público, mas, de es-


guelha, acerta o coração vermelho-cobre. E tu, rapaz,
em estranha roupa, qual canção tocas para o teu cão
fiel? Reis imponentes, solenes, apesar das pernas cur-
tas demais, onde se encontram os vossos súditos, os
vossos países quiméricos?... Depois guardamos o ba-
ralho de skat. E nos tarôs somos cativados pelos sarra-
cenos, albaneses em postos avançados, dançarinas de
czarda, casais de amantes usando chapéu de fez e de
caçador, matrimônios juvenis deleitando-se com cha-
ramelas, cartomantes e cavalos nobres, os fascínios do
Levante, de Lord Byron, pelo ar aventuroso das guerras
turcas, talvez das cruzadas.

Diverte-nos a águia heráldica, agarrando com fúria seu


lema antiquado “Indústria e Felicidade”. Trememos pelo
destino da nobre dama que, hesitante, não mira o gon-
doleiro embora tanto quisesse ser raptada...

12
MAX BROD

Publicado originalmente em 1913, “Da beleza das ima-


gens feias” é o ensaio de abertura da coletânea ho-
mônima reunindo outros 32 textos de Max Brod, com
o subtítulo “Ein Vademecum für Romantiker unserer
Zeit” [Um compêndio para românticos do nosso tem-
po]. A indagação sobre o valor pragmático atual destes
pequenos escritos eloquentes aponta certamente para
sua configuração panóptica que (des)organiza temas
como cabides franceses, música e teatro moderno, en-
tre outros, plasmando retratos dinâmicos do desenvolvi-
mento de toda uma vida cultural do início do século 20.
Em consonância com o frescor de pleitos vanguardistas
da época, Brod reivindica a pregnância de arte na vida
a partir do olhar estético para imagens da vida cotidiana
– cartazes publicitários, capas de revista, logomarcas
de produtos, programas de ópera etc. – em contraste
com o engessamento morto dos quadros dos museus,
comprometidos com um ideal de beleza absolutamen-
te desvinculado da vida burguesa urbana das grandes
metrópoles culturais em emergência.

A associação imediata e quase automática entre os


nomes de Max Brod e Franz Kafka sinaliza efeitos recí- 13
procos de um gesto polêmico – por muitos considera-
do como traição – que conferiu a ambos os escritores
papéis destacados em escritas de histórias de literatura
ocidentais. Brod se tornou conhecido sobretudo como
amigo, biógrafo, herdeiro dos manuscritos inéditos de
Kafka e responsável pelas publicações póstumas de O
processo e O castelo que, embora contrariassem a vonta-
de manifestada em vida pelo próprio escritor, o tenham
projetado postumamente para a posteridade. Sem a pu-
blicação de seus manuscritos por Max Brod, Kafka pro-
vavelmente não teria alcançado fama mundial. E ainda
que Brod tivesse obtido rapidamente sucesso como es-
critor e logo ascendido, à época, como figura importan-
te dos círculos culturais de Praga, sem Kafka talvez seus
escritos estivessem hoje à margem das histórias de li-
teratura oficiais, perdidos enquanto testemunhos vagos
de uma “geração ausente”, cujos caminhos promissores
foram brutalmente interrompidos pelos horrores de am-
bas as Guerras Mundiais.

Nascido em Praga, em 1884, Brod estudou Direito e


concluiu seu Doutorado em Ciências Jurídicas em 1907,
tendo sido logo contratado pela Direção dos Correios
de Praga. Devido à curta jornada de trabalho exigida
pelo cargo, pôde dedicar mais tempo a seus projetos
literários e no ano seguinte publicou o romance Schloss
Nornepygge (1908), aclamado em Berlim como obra-pri-
ma expressionista.

Em 1918, a partir da constituição da Tchecoslováquia,


Brod foi Vice-Presidente do Conselho Nacional Judaico
e, após deixar o emprego nos Correios, trabalhou como
crítico de arte e autor independente. Com a ascensão do
Nacional-Socialismo seu nome passou a figurar na lista
dos autores proibidos e seus livros, na lista das obras
14 a serem queimadas. Pouco antes da tomada de Praga
pela Alemanha, em 1939, Brod emigrou para a Palesti-
na e, após a criação do Estado de Israel, se estabeleceu
em Tel Aviv, onde trabalhou como autor independente e
Dramaturg no Teatro Nacional Habimah até sua morte,
em 1968.

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