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Copyright do texto O 200i by Daniel Munduruku

Editor
Ricardo Azeuedo
pÍojeto gráfico e editoração eletrônica
MariaJordan Azeuedo
Ilustraçôes
Rogério Borges

Revisão
Cláwdia Jorge Cctntarin Dom i ngues

Tratamento de imagens
Siluio Pereira

Livros Studio Nobel Ltda.


Rua Maria Antônia, 108
07222-070 - São paulo
- Sp
Tel /fax (1,1) 257 7599
e-mail: studionobel@livrarianobel.com.br

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a autoÍização do editor

Impresso no Brasil / púnted in Brazil

Dados Intemacionais de Catalogaçào na publicação (CIp)


(Câmara Brasileira do Livro. Sp.
Brasilr
Munduruku, Danlel. L964-
Meu vô Apolinário ; um mergulho no rio da (minha)
memória / Daniel Mundumku ; ilustrações de Rogério
Borges. - São Paulo : Studio Nobel. 2001.

ISBN Bt-85445_95.5

1. Índios - Litemrura infanto-juvenil 2. Índios da


Àmérica
do Sul - Brasil - Cultura 3. Memórjas autobiográfrcas 4.
Mundun-rl«r, Danjel, 1964 - I. BoÍges, Rogério.
01-{537 cDD-980.41
Índ ices pa ra ca t(i logo s istem áti co :
1. lndios : Brasil : Culrura 9g0.+1
2. Índios : Brasil : História 9g0.41
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r\ tlt\l\/À DIl SliR 1ND10

A gente não pede pafa nascer, apenas nasce. Alguns nascem


ricos, outros pobres; uns nascem brancos, outros negros; uns nas-
Cem num país onde faz muito frio, outros, em terras quentes. Enfim,
nós não temos muita opção mesmo. O fato é que, quando a gente
percebe, jâ nasceu. Eu nasci índio. Mas não nasci como nascem
todos os índios. Não nasci numa aldeia, rodeada de mato por todo
lado; com um rio onde as pessoas pescam peixe quase com a mão
de tão límpida que é a âgua. Não nasci dentro de uma LIk'a'
Munduruku. Eu nasci na crdade. Acho que dentro de um hospital.
E nasci numa cidade onde a matofla das pessoas Se parece com
índio: em Belém do Parâ.
Nasci lá porque meus pais moravam lá. Meu par é índio e viveu
numa aldeia, como depois eu iria viver também, Fui o primeiro
filho da família a rrascer na crdade. Antes de mim iâ tinham nasci-
do quatro meninas e dois meninos (um dos meninos nào cheguei
a conhecer), todos nascidos fora da cidade, Depois de mim r-iriam
arnda três meninos. Era uma alegrra sÓ.
Meus pais tinham ido paru Belém em busca de uma maneira de
sustentar tantas bocas,, uma vez que iá nào eta tào fâCrl r-ir-er na
aldera e eles sonhavam Com a cidade. Por isso meu pai aprendeu
uma profissão: Carpinteiro. Foi, e atnda é, um grande mestre nesse
terremoto que
ofício. Minhas primeiras lembranças - além de um
vivi aos quatfo anos - são as de meu pai marteiando, serrando
e
(acho que ele falava era
falando sobre as propriedades da madeira
De qual-
do espírito cías aruores, só que não me lembro bem disso)'
quermodo,meupalefaumgrandeartesãoefoigraçasaeSSaSua
tanto tempo'
úabilidacle que pôde alimentar tantos filhos durante

ürgff

não
Nós sempfe lllofanlos na periferia cle Belém. Nossa maloca',
era nossa e muitas \-ezes tivemos que mudar de lugar,
de casa e de
que ir tra-
bairro. Foi um'.r épocr-l bem sofrida. Meus irmãos tiveram
balhar na cidade pars ;tilrdar nas despesas. Eu mesmo
fui vendedor
de doces, puço.ár. sacos de feira, amendoim' chopp
(Í suco
"T
colocado em saqllini'ros p1ásticos congelados. Em são Paulo
cha-
uma crian-
mam de geladinho). Fazra tr-rdo isso com alegrra, Eu era
Ça qlle gostava de fazer coisas novas'

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Só não gostava de uma coisa: que me chamassem de índio. Não'
Tudo, menos isso! Para meu desespero, nasci Com CaÍa de índio,
cabelo de índio (apesar de um pouco loiro), tamanho de índio'
Quando entrei na escola primârra, entã.o, foi um deus-nos-acuda'
Todo mundo vívía dízendo: "Olha o índio que chegou à nossa
escola". Meus primeiros colegas logo se aproveítarum pafa colocar
em mim o apelido de Aritana3. Ir{ão preciso dizer que isso me dei-
xou fulo da vrda e foi um dos principais motivos das brigas de
rua nessa fase da minha história - e náo foram poucas brigas, não'
Ao contrârio,, brlguei muito e, é clato, apanhei muito também.
E por que eu não gostava que me chamassem de índio? Por
causa das rdéias e imagens que essa palavra Úazia. Chamar alguém
de índio era classifrcâ-lo como affasado, selvagem, preguiçoso' E,
como iâ contei) e:) eÍa uma pessoa trabalhadora que aiudava meus
pais e meus irmãos e isso eta uína honra pata mim. Mas eta uma
honra que ninguém levava em cons ideraçáo. Eu ficava muito tris-
te porque meu trabalho não era reconhecído, Paru meus colegas
só contava a minha aparência... e não o que eu era e fazia.
Somente um lugar me deixava feliz, Aliás, dois. Um era o quintal de
casa, pois a gente mofa:va numa casa onde havia Um i'menso têrre-
no baldio e ali eu reunia meus colegas parabrincar. Ali treinei meus
ouvidos pafa ouvir aS conversas das coruias e dos Sapos. Ali me
refugiava quando queria ficar sozinho e pensar nos conhecimentos
que estava adqutrtndo, os primeiros livros que estava Começando a
ler. Ali comecei a jogar futebol nos campos improvisados que a
gente fazia. Havia, porém, outro lugat maravilhoso pafa onde sem-
pre fazia questão de ir. Paru esse lugat, efitÍetanto, eu não podia ir
sozinho, tinha que ser levado, porque ficava longe da cidade. Era
nossa aldeia famihat em Maracanà'.

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Maracanã é o nome de um pírssaro muito bonito que canta belas


meloclias ao amzlnhecer e ao pôr-do-sol. Também é o nome de um
povo indígena qr-re foi drzimaclo ao longo da história e que nào
cleixou quase nenhum vestígio de sua passagem pelo planeta. O
que sabemos sobre ele faz parte da memória de alguns povos vizi-
nhos qlte contam slla saga e seu sofrimento. No lugar da aldeia do
po\ro Maracanã foi erguida Llma ciclade Com eSSe mesmo norle.
Nossa aldeia ficava nesse município e se chamava Terca Alta por
calrsa de sua locahzação geográfrca. Lá eu passei os melhores anos
c1e minha vid:r. Vou contar algumas passagens que podem alé dar
Lrm pollco de inveja da minha infância.
A primeira lembranÇa que carrego comigo é a da escuriclào c1a
noite. As noites eram muito escuras e toda a iluminaeào elr feitl
pelas fogueiras acesas em frente das casas e pelas poLlclls lrrttlp;tli-
nas a quefosene. uma inovação para nós. A gente Se Sents\ a cliar-i-
te das casas dos parentes e ficava horas a ouvir histórlas coritrldas
pelos velhos e velhas da aldeia. Algumas histórias eraltr horlrpii:rn-
tes e clavam medo cle ouvir. Elas falavam dos seres da floreste qlle
gostam de brincar Com os humanos. Essas criaturas apareciam de

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vez em quando para amedrontat aS criancinhas. Era o saci-pererê,
a matífitapetera, o Curupira, o bottatá, entre outros. Nossas anciãS
contavam a história de forma tão encantada que pareciam verda-
deiras e todos morfiam de medo, tanto que, muitas YeZeS, a gente
não tinha Coragem nem mesmo de levanÍaf paÍa ir embora' Nossa
fantasia era alimentada e visitada por esses pequenos Seres - ver-
dadeiros - trazidos até nós pela voz carfiilena de nossas avós'

Lâ eu dormia em rede (aliâs, como todos os outros)' Elas efam


afmadas nos grandes mourões que Cercavam aS CaSaS. Quando
efam muitas aS Íedes pafa Serem atAdAS numa mesma maloca, aS
CrianÇas quase semple iam dormir com os irmãos mais velhos paru
que Coubessem todos. Lembro que eu Sempre Carfiava uma prece
tradicional com meu irmão. Era uma pÍece que falava de um ser da
fiatureza que nos plotegia enquanto dormíamos. Essa é uma lem-
brança muito doce pafa mim. É claro que de manhã cedo meu
irmão logo brigarra comigo. Motivo? Ele estava todo ensopado do
xixi que eu despejava nele. muitas vezes poÍ medo de sait à noite
sozinho para fazer no mato.

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Assim que amanhecia, íamos pafa o igarapéa tomar banho. Depois,
a geÍ'fie comia um delicioso mingau de mandioca e banana com fari-
nha de tapioca e beiju. Quando era dra de ir à toça, saíamos cedo e
camtnhávamos mais de três horas até chegaf ao local. Nós, os meni-
nos, íamos na frente para proteger o grupo. Bem, navetdade íamos
mais é brincando mesmo, coisa que toda Cfiafiça gosta de fazer.
Na roça eu gostaya de ficar perseguindo as formigas. Elas são
t interessantes porque trabalham o tempo todo. Yia todas indo e
vindo para um lugar indeterminado, uma grande confusão. Umas
l levavam enormes folhas nas costas e outras, patecia, vrgiavam o que
aS prime iras fazíam. De yez em quando paravam e trocavam algu-
mas idéias. Eu ficava imagtnando a conversa:
"Olâ, minha parente, tudo bem aí? Está pesada essa folha? Quer
ajtda?"
"Tá um bocadinho, sim, mas acho que dou conta de levar até em
casa. Será que vai chover hoje?"
"Acho que não. O tempo está firme. Mas, pelo sim pelo náo, é
melhor a gente se apressar."
"É isso aít Yamos nessa."
"Tchau!"
Eu tentava persegui-las e ra atfâs delas até onde fosse possível,
no entanto elas sempre escapayam da minha vigilància. Só deixava
de observaf as formigas quando minha mãe me chamava pafa
algum serwiço. Confesso que era muito boa aquela vtda que eu
levava, longe dos conflitos da cidade grande e... dos apelidos
dados por meus amigos.
Às vezes aconteciam coisas difíceis de acreditar. Lembro uma
vez que a gente se perdeu no meio da mata. Eu e meus compa-
nheiros estâvamos brincando juntos em um lugar de onde dava
paÍa ver as mulheres trabalhando no roçado. Tawé, que estava um
pouco mais dentro da mata, nos chamou pafa ver um rastro dife-

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rente que ele havia encontrado. Eram pegadas de um animal que
nunca tínhamos visto antes. Parccia um pé humano, porém peque-
no e com sete dedos. No chão havia pegadas para todos os lados,
por isso era impossível saber para onde tena Ldo "a coisa,,. Ficamos
meio enfeitiçados por aquilo e fomos seguindo um grupo de pega-
das que ia mata adentro. sentíamos medo, mas um incentivava o
outro a continuar atrâs do bicho. E lá fomos nós: andamos, anda-
mos, andamos e as pegadas iam ftcando mais fundas; deduzimos
que estávamos próximos de descobrir que ,,cotsa,, eru aquela.
o tempo passou bem rapidinho à medida que entrávamos na
mata. Escurecia e nossa única preocupaçã,o era poder ver de pefio
o bicho de pegada diferente. se tivéssemos sorte, poderíamos
agarrâ-lo e levá-lo para a aldeia.
só nos demos conta de que estávamos nos afastando demais das
muiheres quando ouvimos o pio da coruja anuncian do a noite que
chegava. Isso parece que nos despertou. Koru choramingou. segu-
rei a máo dele, mas não paramos de seguit as pegadas. euanto
mais andâvamos, mais sentíamos estar próximos. De repente, ouvi-
mos uma risada forte e estranha. Não era uma risad,a humana.
Paramos para ouvir melhor. Tudo era silêncio. Ficamos conversan-
do, a fim de decidir o que fazer. Todos sabíamos que estávamos
perdidos. Nào tínhamos deixado nenhum sinal e, estranhamente,
as pegadas hat-iam desaparecido. Não víamos mais nad,a à nossa
frente nem atrás.
Arô começou a chorar. Nós o acalmamos. paramos sob uma gtan-
de ârvore. Não adiantana nada queÍeÍ voltar ou procu raÍ. o caminho
que nos levasse de r-olta, Estávamos perdidos mesmo e somente
pela manhã poderíamos ÍetoÍnar ou aguatdar os adultos chegarem.
No silêncio da noite podíamos ouvir todos os tipos de barulho
da floresta: Iâ longe. o rosnar da onça pintada; mais perto, víamos
o olho brilhante da coruja; yez por outra sentíamos o voar de aves

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inquietas com nossa presenÇa. o medo nos acompanhava. Andei
um pouquinho ao redor da ârvore qlle nos hospedava e encontrei
Lrma planta que mell pai dizia ser mágica, pois tornava invisível
aquele que a passasse em sell corpo, bem como anulava seu cheiro.
Com isso, afastamos os animais.
Peguei a planta e, com uma pedra, soquei-a até ficar pastosa.
cuspi nela e a esfreguei no corpo d.e cad"a um dos amigos que
estavam comigo: Tawé, Koru, Arô, Kaxi, Kabâ, Tonhô. Fizemos
uma pequena cobertura com palha de tucum pafa nos proteger da
chuva que ameaÇava cair. Entào, mascamos um pouco cle erva de
-t dormir e nos juntamos uns aos outros para nos aquecer.
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Acordamos anres do sol graÇas a gritos que ouvíamos ao longe.


Eram os adultos que estavam nos procurando. Levantamos bem
rápido. Tan-é subiu na á^.ore para balançâ-la a fim de fazer os
aclultos notarem nossa presença. Ele balançava a ârvore e nós gri_
távamos. Depor-s fizemos silêncio. o grito que ouvimos em segui-
da nos deu a impressào de que os aclultos estavam se afastando.
Resolvemos [oni1r ir direção clo sol quando nasce. Ela nos levaria
até o grande rio Tapajós. Sabíamos que quando nos perdêssemos
deveríamos procllrar Ll1jr rgarapé: ele nos levaria para um grande
i rio e seria mais fáci1 nos localizar. Assim fizemos. Em pouco tempo
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encontramos o igarirpé e seguimos até o rio.


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euando já havíamos
I andado bastante. our-irlos novos gritos à nossa frente. Eram os
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guerreiros que esta.vam chegando. Gritamos de volta e logo ele nos
alcançaram. Quando viram que estava tudo bem conosco, nos abra-
Çaram e ftzeram grande festa, elogiando-nos pela coragem e esper-
teza em vencer os espíritos da noite; aproveitaram também para
nos dar uma bronca por termos nos distanciado de nossas mães.
De noite, o velho pajé da aldeia nos disse que tivemos muita
sorte; segundo ele, quem havia nos desorientado com suas pega-
das mâgicas fora o curupita) o espírito que anda para trás. EIe
engana os desavisados, chamando-os para a floresta para deixá-los
à mercê dos espíritos que se alimentam à noite. E ainda fica rindo
de sua traquinagem.
Quando eu cresci um pouco mais e játinha oito anos, meu tio me
levou paratirar caranguejo no mangal (ou manguezal). Foi uma festa
para mim e para os amiguinhos. Era uma espécie de rirual de inicia-
ção por que estávamos passando. Era um sinal de que estávamos
crescendo, ficando homens e de que )â tínhamos alguma responsa-
bilidade no sustento da aldeia. Só quando se chegaya a essa idade é
que os mais velhos deixavam a gente turar caÍanguejo no mangue.
O mangal fícava distante da aldeia. Era preciso camrnhar por seis
horas mata adentro paÍa chegar lâ. É bom dizer que o manguezal
é a lama que fica sob as âwores quando a maré fica batxa. É Iâ que
o caranguejo mora. Toda vez que percebe perigo o bichinho caya
um buraco na lama e foge. Os tiradores de catafiguejo têm de esti-
car o braço atrâs dele. Quando têm sorte, conseguemtrazer o bicho
na mào. Algumas yezes ele vem pendurado no dedo, pois para se
defender pinça o agressor com as patas. A mordida ébem dolorosa.
É claro que não tínhamos experiência e apenas carregâvamos o
paneiro, uma espécie cle cesto com grandes furos paru que o adul-
to colocasse sua presa dentro dele. Essa "pesca" do caranguejo
durava o dia inteirinho e só retornâvamos para a aldeia quando jâ
estava escurecendo e todos nos esperayam paru fazer um gostoso
)antar com os bichos que a gente trazia.

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Isso tudo acontecia durante as férias escolares, nos meses de julho,


dezembro, )aneiro e fevereiro. Eram dias muit o felizes, de paz e úan_
qüilidade. Embora minha mãe gostasse muito dessa vida pacata da
aldeia, tinha que acompanhar meu pai na cidad.e, e nós, de nossa
parte, torcíamos para que as férias nunca acabassem.
A cidade era um universo à parte para mim. Eu tinha bons amí_
gos e com eles podia aprovertar minhainfància. Foi com eles que
aprendi muitas brincadeiras interessantes. Brincadeiras de pular
corda, salto altos, de rodas, de namoricos e de beijinhos rru,
Divertia-me avaler ouvindo as piadas que eles contavame suas -.rrirrur.
con-
versas de como fazíam paru conquistar as primeiras namoradinhas.
Quando precisava ajudar em casa, eu ia paru a feira vender algu-
ma coisa ou então ia simplesmente ajudar as pesso as a cartegar
seus volumes nos supermercados e assim ganhar algum trocado.
E,
como já disse, fazia tudo isso com alegria.
Gostava muito de ir à escola. Era uma escola religiosa com bas_
tante espaço paÍa brincadeiras e jogos, comuns nas obras salesia_
nas. Lá, eu passava paÍte do meu dia.
Jogava futebol, nadava, pÍz-
trcava atletismo, jogava pingue-pongue, espiribol, andorinha,
entre
outras coisas. E esrudava, é craro. porém foi Iâ também que vivi
minha primeira crise. Já disse que meus colegas de escola coloca_
vam apelidos em mim e que eu não gostava disso. o motiv o da
minha crise foram os apelidos. Nessa época, eu estava coÍ.n quase

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nove anos e cursava a terceka série pimâtia. Já era, portanto, um
homem... ou quase. Todos os meus colegas falavam de suas namo-
radinhas, de suas paqueras de escola. E eu? Não acontecia nadar.tl
Eles até gozavam de mim, achando que eu era... bicha. Bicha, eu?
Que nada! Eu gostava de uma menina de minha idade... Também
era apatxonado pela professora de Português, paru quem escrevi
meus primeiros versos românticos.
Um dia tomei coragem e fui falar com minha "paixáo" secreta'
Ela era linda e tinha Línda no nome.Lindalva. Ela sabia que eruhnda
e por isso era um pouco convencida. Quando a chamei paru con-
versar, ela veio meio a contragosto.
- Oi, Lindalva. Eu queria muito falar com você. Sabe, faz tempo
que sinto algo por você. Não percebeu isso, não?
- Eu não. Nunca percebí nada diferente em você.
- Mas é verdade. Eu gosto muito de você. Não quer namorat
comigo?
- O quê? Você acha que sou besta, é? Acha que vou ttocar o gato
do Edmundo por um, um, um... índio, feito você? Você tem é titi-
ca de galinha na cabeça. Se quiser ser meu amigo, não toque mais
nesta história, tâ legal?
O mundo veio abaixo para mim, desmoronou. Fiquei triste,
magoado com Linda. O pior, contudo, veio depois. Linda contou
para todo mundo o que tinha acontecido e meus colegas cakam
matando em cima de mim, repetindo tudo o que eu não queria
ouvir: o índio levou o fora da Linda porque é feio, porque é selva-
gefl, porque é índio.
Foi a gota d'âgua. Por sorte era sexta-feíra e minha màe iá tinha
prometido que a gente ia para a aldeia de Terra Alta passar uns
dias. Que alívio! Foi realmente um alívio, e também o começo de
uma grande avenfirta pessoal e espiritual. Foi 1á que comecei a
olhar o mundo de outra maneira.

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Todo mundo percebeu que eu estaYa aborrecido naqueles dias'


Só não sabiam por que eu não queria me divertir como sempre
fazia quando chegava à aldeia. Todos Yffam que eu comecei a
andar sozinho. Estava triste e cabisbaixo. Todos olhavam paÍa mim
tentando adivinhar o que aconteceÍa, mas eu não dizia nada' Esta-
va nervoso e não queria que ninguém chegasse perto de mim'
Nós temos o costume de tomar banhos comunitários nos rgaru-
pés. As mulheres vão primeiro e fazem o serviço da casa, Como
7uuu, os utensílios domésticos e as roupas sujas. Passam horas den-
to d'á,gua junto Com as crianças de colo e aquelas Com menos de
cinco anos. À tarde, é a vez dos homens irem pata o rgatapé e fica-
rem muitas horas Conversando sobre diferentes assuntos. Nesse
momento do dia os meninos também podem ir, especialmente
quando jâ têm mais de cinco anos.
No entanto, tive a impressão de que essa regra havia sido abo-
lida. Não conseguia perceber o tempo passando, as pessoas cum-
prindo suas tarefas, as c;rtanÇas se divertindo. Tudo estaYa meio
esquisito, como se o mundo tivess e parudo' Tinha a sensação de
estar muito sozinho e de que algo diferente itia acontecer" ' e
aconteceu.

sta:nua
BIBLIoTEêA
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Nler,r ar'ô Apolir-rítrio - qLle ainda niio apareceu nesta l-ristória.


porqlle até aqr-ri nào har.ia marcado presenÇa em rninha metnciria

infantil - surgin r.io meu lado como nLlrr pesse cle mírgiclt. Passor,t
c
ã
* a n'riro slllr\remente sobre minl-ra cal>eca e clisse:
§
- Hole velTlos torrlar banho só nos c1ois.
Enr segtricla. começou a anclar em clireçao ao igarapé e elr senti
qr-re cler-ia ecompanhá-lo.

C.onfesso qlre I figr-rra de meu ar'-ô sempre foi r,rm mistéric> para
n-tinr. ,\leu pui nLllrce fular.a sobre ele. Perece até qlle os clois nào
se gosta\ alrl. Eu nuncrl solrbe t razà<>. NIas ele era lrma figura
ir-t-tponente. \rt época elx qlle se p,lssa esta história ele jír clevi:r
estrlr corl rlars cie oitenta anos. À.Iesmo assin-r. f'azia t<tcl:rs a.s coi-
ses qlle trrr hor"r-renr r-r-r,tis jor,.em Íttzia: cllÇ2rv:r, pesczrva, i:.r para a
r roÇil. prepal'a\ l bc1í:.rillos paneiros com talas de btrriti. Estar.u
sellpre trabalhundo. E era sernpre assim clLle elr o'r.i:.r quanclo che-
g1l\'1r à elcleia: sentrckr de cócoras sobre os culcanh:.rres. pitanclcr
§ r-rn-r cig:rrro cle p:r1he e coln :rs r-r-u1os ocupaclas, tecenclo Lrln novo

ri
par-ieilo.
§
E
ü
T
26
Embora eu o visse Sempre, nunca me aproximei muito dele'
Achavao velho um tanto misterioso e sentia, confesso, um pouco de
medo. As pessoas, eu via, sempre se apfoxlmavam dele a fim de falat,
pedir conselhos ou pafa que ele feceitasse alguma erva pafa a cutfa
de doenças. A todos ouvia com muito carinho, no entanto quase
nunca levanÍaya a CabeÇa ao dttgir-Se àS pessoas' Ftcava o tempo
todo de olhos fechados, patecia que estava dormindo. Mas não
estaya. Quando a pessoa acabaYa de dizer tudo o que queria,
ele
se levant ava) ra até o quintal de sua Ca'Sa e Úazia nas mãos algumas
folhas e as entr egava ao doente explicando o que devería fazet
paÍa se curar.
Outras yezes - quando o assunto parecia ser mais sério -, ele
mesmo opetaYa a Cvta do paciente. Fazia a pessoa deitaf-se ou
sentar-se dentro de sua maloca, pegava uns ramos de folhas, incen-
sava-as com seu cigarro de palha, molhava-as em âgua nova e
então as iogaYa pelo corpo do paciente enquanto recítaYa uma
prece numthngua, pelo menos parecia a mim, estranha. Também
usava o maracâ e penas de mutum. O doente sempre Se CuraYa e
trazia, como pagamento, algum produto por ele cultivado.
Essas etam as lembranÇas que tinha do meu avô quando ele me
chamou pafa tomar banho naquela tarde de sâbado. E eu fui, sem
saber o que ffta acontecer.

27
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sempre tomava
Quando chegamos ao rgarapé onde a gente
banho, eu parei. Apolinário apenas balanÇou a cabeça negattYa-
mente e apontou um lugar mais adianÍe. Fui atrás dele' Eu nunca
tinha tido coragem de subir o rio, mas não fiquei surpreso com o
convite de meu avô. Ele me levou para um lugar belíssimo, com
uma queda-d'âgua mais ou menos alÍa. Abaixo dela havia um
poço'
Fiquei .n untudo com a beleza do lugar. Apolinário me disse sim-
plesmente:
- Está vendo aquela pedta lâ na cachoeka?
Respondi que sim.
eu não mandat'
- Então sente nela e fique 1á, Não saia enquanto
Você só tem que obse ÍvaÍ e escutar o que o rio quer dizer pra você'
Foi o que fiz. Lâ embarxo, Apolinârro entrou na âgua e com as
mãos em concha começou a iogar âgua sobre seu corpo velho e
cansado, Ficou ali por bastante tempo sem sair do rio' Eu olhava
fixament e pafa as âguas pensando no que eu deveria ouvir' Não
ouvi nada, é claro. Não daquela vez.
chamou.
Quando a tarde iâ estava caindo, meu avô me
- Agora iâ pode tomar banho.
Mergulhei com vontade na água fria' Ao subir à tona, me vi sozi-
nho. Olhei para todos os lados' Meu avô tinha me deixado, Vesti
correndo meu calçào e comecei a grrtar por ele' Ele reapareceu de
surpresa, como sempre.

)o
I
- Por que você estâ gritando?
Fiquei envergonhado, mas ele compreendeu.
- Fui f.azer xixi. Você não sabe que não se deve fazer xixi no iga-
rupé? O igarapé é de âgua pura e o xixi o contamrna, enfraquece
seu espírito. Espero que tenha aprendido alguma coisa com nossa
vínda até aquí.
Fiquei quieto. Não tinha aprendido nada, pelo menos não tinha
me dado conta ainda.

Você chegou à aldeia muito nervoso estes dias, náo foí? Veio
-
assim da cidade, lugar de muito barulho e maldade. Lâ as pessoas
o maltrataram e você se sentiu aliviado quando soube que viria
para cá., nã.o foi? Sei que está assim porque as pessoas o julgam
inferior a elas e seus pais não o ajudam muito a compreender tudo
isso. Pois bem. Jâ é hora de saber algumas verdades sobre quem
você é. Por isso eu o trouxe aqui. Você viu o rio, olhou para as
águas, O que eles the ensinam? A paciêncra e a perseveranÇa.

30
Paciência de seguir o próprio caminho de forma constante, sem
nunca apressar Seu Curso; pefseveÍanÇa para ultrapassar todos os
obstáculos que surgirem no caminho. Ele sabe aonde quer chegar
e sabe que vai chegar, não importa o que tenha de fazer para isso.
Ele sabe que o destino dele é unir-se ao grande rio Tapaiós, dono
de todos os rios. Temos de ser como o rio, meu neto. Temos de ter
paciêncía e coragem. Caminhar lentamente, mas Sem pafaf . Temos
de acreditar que somos patÍe deste rio e que nossavida vai se jun-
tar a ele quando jâ tivermos partido desta vida. Temos de acreditat
que Somos apenas um fro na grande teía da Yrda, mas um fio
importante, sem o qual a teía desmorona. Quando você estiver
-veÍuhra pata cá ouvir o rio.
Com eSSeS pensamentos outra vez,

Acho que esse foi o maior discurso que ouvi de meu avô. Depois
disso conversamos muitas vezes. Sempre sobre Coisas maravilho-
sas. Nasceu entre nós uma cumplicidade muito grande e ele foi me
conduzindo por um caminho de conhecimento que nunca imaginei
que fosse possível ter fora da cidade. O mais impressionante é que
o velho Apolinário não conhecia nada da cidade de Belém ou de
nenhuma outra. Nunca Soube que ele tivesse viaiado paru outros
lugares. Meu pai depois,confirmou que, de fato, meu avô nunca
havia saído da aldeia.

37
O \/ÔO DOS PÂSSÀROS

,Í Depois daquele dia no rio voltei a aproveitat a vrda da aldeia.


d
,4 Tornei-me alegre e brincalhão com todos. Porém, não consegui
f,
mais falar com meu avô, sempre ocupado em atendet a outras pes-
â
ã
soas. Passei a freqüentar mais a aldeia. Pedra pafa minha máe ir
paru 1á todo final de semana e, paÍa altdar a pagar a passagem, eu
me esforÇa.va ainda mais na escola e vendia produtos na feita livre.
Fiquei apaixonado pelo vô Apolinârto.
Num outro frnalde semana, logo que cheguei ele me chamou e
disse que queria caminhar um pouco comigo. Pegou seu caiado,
que servta de bengala, e saímos andando a esmo. Quando chega-
mos bem perto de uma grande mangueira, ele limpou um espaÇo
no chão e disse paru eu me deitar olhando para o céu. Obedeci.
Ele também se deitou. Apontou para o céu e acompanhou com o
dedo o vôo dos pássaros. Hoje posso dizer que ele era um maes-
tÍo acompanhando a melodia que os pássaros tocavam lá no céu.
- Os pássaros são porta-vozes da màe-natuteza. Eles sempre nos
contam algo. Do fururo ou do presente. O canto do pássaro pode
ser um pedido para que você aia com o cofaÇáo, Sonhar com um
pássaro significa que uma presenÇa ancestral está mostrando sua
força. Hâ visitas a\adas que Írazem bons augúrios e hâ as que

32
lrazem agouros. Preste atençã,o: toda vez que for tomar uma deci-
são importante, um seÍ alado aparecerâ.
Era sempre assim . Falava pouco. Dizia muito. Eu ainda estava
um pouco surdo e nào compreendia muito bem o que ele queria
drzer, mas guardava tudo no fundo do coração.
Um dia, na beira da fogueta, ele me disse assim:
- Tem coisas que nunca iremos saber porque nossa vrda é cufia.
Só que elas estão escritas na natureza. As angústias dos homens da
cidade têm seu remédio na terra e eles olham para o céu. Quem
quiser conhecer todas as coisas tem que perguntat para nosso
irmão fogo, pois ele esteve presente na criaçà,o do mundo. Ou
aos ventos das quatro direções, às águas puras do rio, ou à nossa
Mãe Primetrai a teffa.
E se calava, como se eu tivesse condições de compreender tudo
aquilo,
- Nosso mundo está vivo. A terra estâ viva. Os rios, o fogo, o
vento, as ârvores, os pássaros, os animais e as pedras, estão todos
vivos. São todos nossos parentes. Quem destrói a terca destrói a si
mesmo. Quem não reverencia os seÍes da natureza náo merece
viver.

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três anos foi assim. Eu ia para a cidade estudar, mas


Durante
para poder ouvir a sabedota
queria estar de volta o quanto antes
é que' aos poucos' fui me
do meu avô. o -ãin"t desta história
se as pessoas me chamavaffr
aceitando índio. Jâtnáome importava
deíndio,poisagoraissoeramotivodeorgulhoparamim'Eusem-
sua origem' Ele me havta
pre lemb ruuu Ã"u avô, orgulhoso de quão bonito
a me ensinando
feito sentir orgulho também. Ele estav ancestralidade'
era tet uma origem, um povo'} Lrma ratz) Y-u
que ele me disse:
Falando nisso, ,e-co'do o dia em
_QuandoospássaÍosvieremtevisitaremsonhos,ébomouvi-
com eles para dar
forças
los, pois são os àncestrais que vêm iunto
e lembrar quem você é' - 1. 1 - -r:- ^^ff irlr '

Tudoqueébomacabalogo,dizoditado.EdtzComjustl'ça,
Numa tarde de outubro' meu pai me chamou a
porque é vetdade'
umCantoemedeuanolíciamaistristequelâtinhaouvidona
minhaCuftavida:meuavôtinhamorrido.Sempremeemociono
muitoquandolembroessapassagefil-daminhavtda,Deixoto|ar
uma lâgrrma. Lâgrima que se
junta ao rio que levou o meu avô'

35
Fiz questào de ir vê-1o pelur úrltime yez. N{er-r pai pecliu dispensa no
trabalho e me acompanhou. Fomos ele e elr apenas. Chegztnclo lâ,
Í o r.e1ho jár estava no caixão. Tinha um rosto bem sereno e tranqiii-
i
iI 1o. Peguei nas rnãos dele pala sentir, r-rma úrltirlrl vez, e encrgia clo
ancião qlle se transfonnaria em ancestral pLlra mells filhos e netos.
Nesse momento minha mente recuou alguns meses antes, quanclo
timidamente perguntei a e1e o qlle era ser índio. A resposta veict
como um relâmpago'
- É ter urna históri:r que não tem começo nem firn. É vir.er o pre-
sente conlo urn presente, uma cládrr.a cle Deus.

t-:
t

I
Tocando nas nrrto-: clo metr avô faleciclo, recorclei-n-re ainda cle
nosso úrltimo encontro. err que ele me anLlnciou qr-re stra hora
I havia chegaclo. -\h.: nrio foi assim, de qualqr-rer modo. Antes ele
ouvin o que elr tinl-ir1 palrr the drzer pois eu havia chegaclo :i aldeia
todo contente e ir,rr inrecliutamente procurá-lo. Com todo o orgr-rlho
ê
clo rnunclo. anr-rnciei r meu nvô: sou índio. E1e abrill Lrm linclo sor-
'#
€ riso com sua bocrr jír r-rnr tllnto desdentacla, abrzrçou-ilre e clisse:
r
!
36
Preciso me unir ao Grunde Rio'
- Então a mirlha hora já chegou.existem duas coisas importantes
Lembre sempre, porém, que só
pequenas;
paru saber na vida: 1) Nunca se preocupe com coisas
2) Todas as coisas são Pequenas'

Agoraeleestavaajri.Asabedoriaquemeencheudeorgulho
fazii parte do passado que ele não queria que eu fememorasse.
mui-
Hoje compreendo mais sobre o que ele me dtzia. Já sonhei
deles em meus
tas yezes com pássaros. Eu mesmo iâ me tornei um
pássaro gigan-
sonhos, certamenÍe amparado pelas grandes asas do
sem
te que é meu avô no mundo ancestral. Nunca tomei decisões
antes ouvir os enviados alados e escutar o que eles
têm a me dizet'
(a)vô(o) pafa minha
conforme meu avô me pediu. Ele, que foi meu
de um
compreensão e ancestialidade. Esta história mesma nasceu
sonho.
esqueço de
)â enfrento o mundo com mais serenidade e nunca
colocar os pés no chão, na âgua, nem de sentir o vento
batendo
em meu rosto úazendo notícias de longe. Não tenho pressa
de
que, como
chegar,pois sei esperar e ouvir e persevefar; sei também
o rio, irei chegar aonde quero.

37
Pi\1.,r\\rlli\S D 0 ruTOR
§
e
t
I

i
I
t

Escrer.i esta história inspiraclo por dois grandes amigos, José Sebas-
tião e l)irce Akamine, que conhecem culturas do mundo todo. Eles cos-
tumam clizer qlte os índios têm uma coisa qlle o povo brasileiro não
tem: a a.ncestraLidacle.
I Fiquei pensando o qtle queria dtzer essa palavra e deparei com Llm
significackt n-u,tito bonito: quer dizet tet raízes. Conclr-rí, então, que esses
:rrlrgos clizraru qlte Sef índio é ter taízes. Isso me fez buscar - na
rl nremór'il - r'r'rinhrrs r:rízes rlncestrais. Aí me lernbrei de mett avô. Foi ele
qllelr lTle e1-i>11rolr :1 scr ínclio.
Descobelto Lsr,,. f-tt'ti pltra escfever um texto com os ensinamentos
que metl ar-ô nte p:r.SSoLl Tinha que SeÍ Llm texto em que aS peSSOaS
pudessem vel O qrtc i Coltto a gente aprende; um texto que trouxesse a
poesia da sabeclori.t clos nossos '.rnciãos e como eles têm um lugar de
- destaque dentro rlc t-tLlSS:l -socieclade e de nossos coraçÕes.
Minha ic1éia Ü l-LzcL qrrl11 QLle as pessoas que lerão este livro olhem
para clentro cle :i - c trr-ttbétl para fora - e veiam Como é possível con-
=
viver coilI o chfelert:c .,:t'tt perder a própria identidade.
::1
l==

t Daniel
=
r{
I
38
1'r\1, N/l\i\S D 0 ll,tls'f l(i\D 0R

clesde a époczt
Sempre gostei mnito de ilustral a tem/.lticzr indígena,
clcts trabllhos cle escola. uu tempo attírs.
fiz Llma coleção com o
sobte este assltnto'
orl:rnclo Villas-Bôas e pr-rde pesqilisar um pollco
de ttln indío'
A oportuntclacle de tr:rcluzir etl]I itnagens es experiênci:rs
contadasporelemesmo.foip:rr.al.t-iilnurnprivilégio.
pela escassez cle
Neste trabalho procttrei cltr-ibinar r'áti'.ts cultttras,
informaçÕes vrsuais sollre o po\-o ]lr-rncir-trr-lktt.
e. também' fazer referên-
cia à cttltttra inclígena em gelal'
O texto sensírlel e agr-tcict c1o Deniel. princip'.rlmente nos
momentos
pois mcu artô tambél-r-t
em qlle se len-rl1lra do :rvô, llle lXotiverall tt-it-tito,
continu:t vivo clentro cle mit't-t'
qr-rericlo atl-tigo' e acr
Agracleço à editOra, ao Ric:rrdo Azevedo. fiiell
cle estar conrri-
próp'ri,, Dániel Mrncl,ruku, a ajucla e a opoÍttlniclade
cl''-L nossa
buinclo, ainda que srngel'.rmente^ p'.1fa a necessária lerlbranÇlt
hotnem cr'tia cttl-
história esquecida, p-árn este r'ôc, c1a mernória cle um
"
tura iir estavil :tqui qr-rando chegauos'
Rogério

39
Wíe7ry-á:*)àZir
R$.Jq
--*
n.o rle chamada

98o,1r
t41q? à

(iI,0ssN{0

I (Jk'a: palavra da língua Munduruku que significa "casa".


2 lf;aloc* grande casa comunal onde moram vârias famílias. É também um jeito
popular de referir-se à moradia.
3 Atitanaz nome de uma novela. O protagonísta, que na novela era chamado de
Aritana, era Carlos Alberto Ricceli em seu primeiro papel na televisão. Só depois
de crescido é que fiquei orgulhoso por ser chamado de Aritana porque esse é o
nome de um grande líder do povo Yawalapiti do Parque Nacional do Xingu.
4lg;anpêzpalavra que em tupi quer dizer "caminho da âgua".Isso porque se trata
de um canal estreito por onde se espalham as âgu4s de um grande rio.
5 Salúo alto: brincadeira que consiste em amaÍÍaÍ duas latas na extremidade de uma
corda e sair andando com elas. Havia "güeíras" de rua com grupos de salto alto.
ffi
Meu uô Apolruario parece ter brotado de
marcas e paisagens carregadas pela me-
mória. Também, com cefteza, foi escrito
com o coração. Tudo isso misturado à
imaginação pois, afrnal, é impossível
transformar em palavras o passado, oLr
afetos e sonhos, sem cruzar as frontei-
rus da ficção. Recorrendo a uma lingua-
gem marcada pela sonoridade da fala,
Daniel Munduruku mostra que a partir
cla saudade é possível abordar temas
muito importantes: a constmção da iden-
tidade; a busca da auto-estima; o conflito
entre as diferenças cr-rlturais; a diversi-
dade de pontos de vista a respeito da vi-
da e do mundo e, alnda, a relação entre
homem e natureza, qrrase perdida, infe-

,ffi
lizmente, em nossa civilizaçào, mas pro-
funda, coticliana e essencial em muitas
olltÍas culturas.

*-

ffi
lsBN 85-85445-95-5

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