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Citar:

ALVES, Marco Antônio Sousa. A importância da retórica para o direito: para uma justificação razoável das
decisões. Monografia de final de curso (Graduação em Direito) – Orientadora: Miracy Barbosa de Souza Gustin.
Belo Horizonte: UFMG, 2001. 112p. Disponível em: http://ufmg.academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/
Papers/1231080/A_importancia_da_retorica_para_o_direito_para_uma_justificacao_razoavel_das_decisoes.
Acesso em: [data de acesso]

Contato: marcofilosofia@ufmg.br

Marco Antônio Sousa Alves

A importância da retórica para o direito

para uma justificação razoável das decisões

Monografia final de Curso de Graduação

apresentada à Faculdade de Direito da Universidade

Federal de Minas Gerais como requisito parcial à

obtenção do grau de Bacharel em Direito, ênfase

em Ciência e Filosofia do Direito.

Orientadora: Miracy Barbosa de Sousa Gustin.

BELO HORIZONTE
2001

1
Monografia defendida e aprovada, aos 27 de novembro de 2001,

pela banca examinadora constituída pelos professores:

_____________________________________________________

Professora Doutora Miracy Barbosa de Souza Gustin (Orientadora)

__________________________________________________________________________

Professor Doutor Menelick de Carvalho Netto

_______________________________________________________________

Professor Marcos Vinício Chein Feres (UFJF)

2
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------------------- 5

2. RETÓRICA: NOÇÕES FUNDAMENTAIS -------------------------------------------- 6


2.1. Retórica filosófica X retórica literária ------------------------------------------ 7
2.2. Entre a evidência e o arbítrio ---------------------------------------------------- 10
2.3. Retórica X lógica ---------------------------------------------------------------------- 15
2.4. Auditório ------------------------------------------------------------------------------ 20

3. RETÓRICA: BREVE HISTÓRIA ------------------------------------------------------- 22


3.1. Retórica clássica ---------------------------------------------------------------------- 22
3.2. Retórica na modernidade --------------------------------------------------------- 32
3.3. Retórica na contemporaneidade ------------------------------------------- 33
3.3.1. A nova retórica ---------------------------------------------------------------------- 34
3.3.2. A novíssima retórica ----------------------------------------------------------------- 37

4. RETÓRICA FILOSÓFICA: BUSCA DE UMA NOVA RACIONALIDADE ---- 41


4.1. Origem da filosofia ------------------------------------------------------------- 43
4.2. Dialética ------------------------------------------------------------------------------ 47
4.3. Teoria da argumentação: propostas contemporâneas ----------------- 51
4.3.1. Toulmin ------------------------------------------------------------------------------ 53
4.3.2. Apel --------------------------------------------------------------------------------------- 55
4.3.3. Habermas ------------------------------------------------------------------------------ 59
4.3.4. Rorty --------------------------------------------------------------------------------------- 64
4.3.5. Perelman ------------------------------------------------------------------------------ 66

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5. RETÓRICA NO DIREITO: ACEITABILIDADE RACIONAL ---------------------- 70
5.1. Tendências anti-retóricas: positivismo de Kelsen ------------------------- 73
5.2. Aspectos do direito ------------------------------------------------------------- 75
5.2.1. Lógica jurídica X lógica formal ---------------------------------------------------- 75
5.2.2. A prova jurídica: presunções e ficções ------------------------------------------- 79
5.2.3. O uso de noções confusas ---------------------------------------------------- 81
5.2.4. Um direito mais democrático: aceitabilidade X obediência --------------- 87
5.3. Racionalidade jurídica: tendências contemporâneas ----------------- 90
5.3.1. Dworkin ------------------------------------------------------------------------------ 91
5.3.2. Alexy --------------------------------------------------------------------------------------- 93
5.3.3. Habermas ------------------------------------------------------------------------------ 97
5.4. A razoabilidade -------------------------------------------------------------------- 100
5.4.1. Aulis Aarnio: o racional como razoável ----------------------------------------- 101
5.4.2. Perelman: o razoável e o desarrazoado em direito ------------------------ 106
6. CONCLUSÃO ----------------------------------------------------------------------------- 109
7. BIBLIOGRAFIA --------------------------------------------------------------------------- 112

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1. INTRODUÇÃO

A inquietação que deu origem a essa pesquisa pode ser resumida pela

busca de decisões racionais no direito. Dessa busca, desdobram-se basicamente

dois problemas, um relacionado mais de perto com a atividade filosófica e outro

com o campo do direito. A questão chave a ser respondida é como, e em que

condições, uma decisão jurídica será racionalmente aceitável. Essa questão,

eminentemente jurídica, pressupõe uma outra questão de cunho filosófico, que

questiona o estatuto dessa "racionalidade".

O fenômeno retórico é visto como constituindo uma das manifestações do

fenômeno mais amplo da argumentação. O que caracteriza o ponto de vista

retórico é a preocupação relativa às opiniões e valores do auditório a que se dirige

o orador e, mais precisamente, referente à intensidade de adesão desse auditório.

A partir dessa perspectiva, comumente chamada retórica filosófica, analisar-se-á a

questão da racionalidade da argumentação filosófica.

Analisa-se o problema do direito numa perspectiva claramente retórica e

argumentativa. O direito é visto como uma busca dialética de uma boa solução ao

conflito, o que difere em grande medida da mera conformidade a regras. Entende-

se que soluções não arbitrárias aos problemas do direito não serão encontradas se

não se repensar sua racionalidade. As teorias da argumentação fornecem novas

perspectivas filosóficas que podem ser muito úteis nesse sentido.

A retórica servirá tanto para a análise filosófica, referente à racionalidade,

como para a análise jurídica. Procurar-se-á ressaltar as diferenças existentes entre

a prática argumentativa filosófica e jurídica tendo em vista as implicações para

5
uma possível "racionalidade jurídica". No campo da argumentação jurídica, entra-

se no debate acerca da razoabilidade. Uma vez que para ser racional não é

preciso se ater às provas evidentes e às verdades claras e distintas, a

razoabilidade passa a ocupar um novo posto. Recobrando seu valor, a

argumentação razoável servirá em grande medida para o direito.

Ressaltando a importância dos estudos retóricos e argumentativos para a

filosofia e o direito, cito Perelman:

"A racionalidade da teoria da argumentação, a qual não dissocia a forma do fundo


do discurso, e que considera a variedade dos auditórios, exige a adaptação do
discurso aos efeitos procurados no auditório do qual se pretende obter a adesão. A
organização do discurso será concebida em função desta adesão; e assim também
a escolha e a apresentação dos argumentos, a amplitude e a ordem da
argumentação.
A teoria da argumentação, desenvolvida na retórica antiga que conheceu um
grande sucesso no Renascimento, sofreu um declínio a partir do século XVII, sob a
influência das teses do racionalismo e do empirismo. A importância dada, no século
XX, à filosofia da linguagem e à filosofia dos valores contribuiu para o renascimento
da teoria da argumentação, cujos efeitos se revelam especialmente relevantes na
renovação do estudo do raciocínio jurídico e filosófico" (1987:264).

2. RETÓRICA: NOÇÕES FUNDAMENTAIS

A retórica é a arte de persuadir ou de convencer pelo discurso. Não se

pretende aqui elaborar uma teoria geral da retórica. Tal opção se dá basicamente

por dois motivos. Primeiro, porque ampliaria demais o objeto e exigiria uma

pesquisa que excederia o proposto nessa monografia e também a capacidade de

seu elaborador. Em segundo lugar, e este é o principal motivo, porque não acredito

que seja possível uma teoria geral da retórica. Prefere-se, como fazem Reboul,

Barthes e Perelman, falar em "retóricas", que são múltiplas. Pretender algo em

comum a todas elas, uma espécie de essência retórica, seria uma ilusão. Ao

6
contrário, busca-se ressaltar alguns elementos que, antes de constituírem a

essência da retórica, são apenas recorrentes em várias práticas argumentativas.

Esses elementos no conjunto permitem o uso do termo retórica mais no sentido

wittgensteiniano de "semelhanças de família" do que num sentido essencialista.

Para uma melhor introdução ao fenômeno retórico, procurar-se-á analisar

alguns de seus pontos de partida, sendo eles a distinção entre retórica filosófica e

literária, a crítica à busca da evidência, a distinção entre retórica e lógica e a noção

de auditório.

2.1. Retórica filosófica X Retórica literária

A arte retórica comporta dois aspectos, o argumentativo e o oratório.

Barthes divide a inventio retórica em dois grandes caminhos: o do convencimento

e o da comoção (1975:184). Convencer requer uma aparelhagem lógica ou

pseudológica, chamada probatio, na qual o raciocínio faz uma violência justa ao

espírito do ouvinte. Na comoção, ao contrário, deve-se pensar no destinatário, no

humor do auditório. Plebe e Emanuele também reconhecem essa distinção

definindo-a em termos de uma via retórico-dialética e outra retórico-poética. As

duas frentes podem ser definidas como: "uma (derivada de Perelman), que vê na

retórica "uma arma da dialética"; e outra (...) que nela vê "um instrumento da

poética" (1992:1). Entretanto, Plebe e Emanuele partem da convicção de que há

uma acepção mais antiga da retórica, a da retórica como tópica ou arte do

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inventar, que constitui um todo mais amplo, sendo um estudo preliminar à filosofia,

a lógica e a estética (1992:7).

Para Reboul, "é preciso negar-se à opção mortal entre retórica da

argumentação e retórica do estilo. Uma nunca está sem a outra" (1998:90). A

importância do elemento oratório ou estilístico aumenta quanto mais urgente e

controverso for ao auditório o objeto da discussão e menos acessível for à

argumentação lógica. Deve-se unificar os elementos racionais e efetivos num todo:

a retórica. Entretanto, Reboul tende sempre para a análise argumentativa da

retórica, pendendo para a abordagem perelmaniana.

Ainda que nem sempre seja fácil distinguir os dois aspectos, é importante

ressaltar a existência de uma dimensão da retórica que não se resume a produzir

algo, mas que visa a compreender. A persuasão leva o homem a crer em algo

enquanto o convencimento leva-o à compreensão de algo. Nesse ponto, voltamos

ao velho debate entre os filósofos, partidários da verdade e da busca pelo

absoluto, e os retóricos, partidários da opinião e presos à ação. Os filósofos

procurariam convencer seu auditório e estariam preocupados com o caráter

racional da adesão, já os retóricos apenas persuadiriam seus ouvintes pela

emoção, preocupados com o resultado. Procurou-se sempre distinguir o

convencimento e persuasão a partir de um elemento isolado de todo contexto,

considerado racional em si mesmo. Infelizmente, não dispomos de tal evidência.

Todo homem crê num conjunto de fatos e verdades como válidos para todo ser

racional. Perelman pergunta se essa pretensão a uma validade absoluta para todo

auditório composto de seres racionais não é exorbitante (1970:37).

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Num primeiro momento, Perelman chama de persuasiva a argumentação

que vale para um auditório particular e de convincente aquela que busca a adesão

de todo ser racional (1970:36). Ele reconhece que a nuança é muito delicada e

depende da idéia que o orador se faz da encarnação da razão (1970:38). A

tentativa de distinguir rigorosamente a persuasão do convencimento repousa sobre

uma filosofia excessivamente dualista, opondo no homem o ser de crença e

sentimentos ao ser de inteligência e razão. Essa distinção é sempre imprecisa e

deve continuar assim na prática. Enquanto a distinção clássica entre razão e

vontade tinha contornos precisos, irredutíveis entre si, a distinção entre diversos

auditórios é muito mais incerta, assim como a da representação que o orador faz

deles. Se o argumento não se apresenta como válido em si mesmo, como a

evidência, qual auditório pode decidir o caráter convincente, racionalmente válido,

de uma argumentação?

A partir daí, altera-se o foco de atenção. Ao invés de continuarmos preso

num absolutismo filosófico, no qual a razão seria uma espécie de faculdade

compartilhada por todo ser racional, procura-se, ao contrário, ressaltar o aspecto

social do discurso (logos), sendo a razão equiparada a um auditório privilegiado.

Uma vez que não dispomos de um ponto de vista privilegiado, divino, que sirva de

critério evidente para a racionalidade, devemos ver o racional como algo que

pressupõe uma prática argumentativa humana, limitada, situada cultural e

historicamente. Atribui-se racionalidade ao discurso humano não devido a alguma

qualidade divina que este possua, mas unicamente pelo fato de que, em tal prática,

tudo pode ser colocado em questão. A filosofia é racional não porque tenha um

fundamento, mas porque é um empreendimento auto-corretivo, onde nada está

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imune à revisão. O importante passa a ser determinar a qualidade do auditório ao

qual buscamos a adesão.

Apesar da dificuldade em separar o âmbito racional do emocional, ou seja o

lado lógico e o estilístico da retórica, pode-se distinguir duas vertentes nos estudos

retóricos, uma literária e outra filosófica. Como explica Perelman:

"...uma filosófica, cujo objetivo é integrar na lógica as discussões sobre as


matérias controversas, porque incertas, e em que cada um dos adversários
procura mostrar que sua opinião tem a seu favor a verdade ou a verossimilhança;
e outra, literária, cujo objetivo é desenvolver o aspecto artístico do discurso e se
preocupa sobretudo com problemas da expressão". (1997:69)

Nesse trabalho, ressaltar-se-á sobretudo o aspecto filosófico da retórica,

que é aquele relacionado ao estudo dos meios de prova utilizados para se obter

uma adesão.

2.2. Entre a evidência e o arbítrio

A retórica tem seu espaço exatamente entre a evidência e o arbítrio.

Quando temos evidência não há possibilidade de troca de opiniões, de decisão,

mas deve-se apenas concluir necessariamente, curvar-se diante daquilo que se

apresenta como uma prova irrefutável. Do contrário, quando estamos no campo do

arbítrio, da mera vontade que se impõe, também não temos necessidade de troca

de opiniões, uma vez que a simples violência não precisa justificar-se, ela não abre

espaço sequer para a persuasão. Procurar-se-á em seguida analisar a importância

do abandono da evidência tanto na filosofia como no direito.

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A variedade de posicionamentos filosóficos dogmáticos coloca em relevo a

questão da evidência. Será que essa diafonia pode chegar a um termo utilizando-

se apenas processos de demonstração ou de verificação? Para Descartes, uma

filosofia que não se torne ciência evidente, que se resuma à mera opinião, não

merece que nos ocupemos dela. Já Perelman define a filosofia exatamente de

maneira oposta, afirmando ser ela o "estudo sistemático das noções confusas"

(1996:6). Não se acredita mais em revelações definitivas e imutáveis e o sonho de

pôr fim às disputas filosóficas recorrendo ao cálculo é totalmente jogado por terra.

Referindo-se à busca cartesiana pela certeza indubitável, Margutti sugere que

"abandonemos esta trilha e tentemos caminhos alternativos, evitando as

extravagâncias de suposições céticas muito radicais" (1999:322).

O descrédito em relação à evidência enviou vários filósofos

contemporâneos ao estudo da retórica. Segundo Margutti, "eles coincidem no

combate ao dogmatismo, na ligação da filosofia com a vida cotidiana e na tentativa

de fundamentar a filosofia na noção ciceroniana de controvérsia" (1998:15). Ruiz

de Azúa ressalta no panorama atual o domínio da idéia de que a filosofia é um

"pensamento retórico, nem objetivo nem descritivo, mas antes persuasivo, cuja

única finalidade é fazer que a conversação se mantenha, longe de toda afirmação

de princípios últimos e verdades incontroversas" (1992:189). Rejeita-se a violência

da razão e o terrorismo da verdade. O fundacionismo, por se sentir na posse da

Verdade, adota posturas arrogantes e impede o diálogo, uma vez que a

legitimação epistêmica se encontra para além do diálogo inter-humano. O Tratado

da Argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca, publicado em 1958, é um

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marco nesses estudos e caracteriza-se pela ruptura com a concepção cartesiana

de razão e pela valorização da argumentação em detrimento da evidência.

Quando temos evidências, as verdades são meras derivações lógicas, o

orador é impessoal, suas demonstrações são intemporais e o auditório é

irrelevante, cabendo a ele simplesmente curvar-se diante do que é objetivamente

válido. A argumentação é importante justamente quando não dispomos de

evidências. Uma verdade evidente, uma regra absoluta, são em si indiscutíveis,

excluem a possibilidade de argumentação.

Para Perelman, a rejeição do absolutismo filosófico significa, acima de tudo,

a rejeição da evidência e, ao mesmo tempo, a reabilitação da opinião (1997:365).

O conhecimento se torna um fenômeno humano. Parte-se do fato de que os

homens aderem a toda espécie de opiniões com uma intensidade variável. O

importante na argumentação não é o que o orador considera verdadeiro ou falso,

mas a opinião daqueles aos quais ele se dirige. O auditório tem assim o papel de

determinar a qualidade da argumentação.

O próprio Platão, lembrado sobretudo pela sua crítica ferrenha à retórica

sofística, expressa no Fedro a necessidade de se poder elaborar uma retórica

digna do filósofo, que seria aquela capaz de convencer os próprios deuses (273e).

Platão se deu conta exatamente da importância do auditório. Não basta dizer a

Verdade, é preciso ser verossímil. Para realizar a retórica filosófica, Platão altera a

qualidade do auditório, dirigindo-se aos deuses.

O dogmático é exatamente aquele que adere a uma tese controversa, cuja

prova indiscutível não pode ser fornecida, e recusa submetê-la a uma livre

discussão. Sendo assim, ele recusa, nesse ponto, o exercício da argumentação.

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Da mesma maneira funciona o cético. Este, ao exigir uma prova constringente,

uma evidência, desconhece como o dogmático a démarche argumentativa. O erro

deles não está em curvar-se diante da verdade absoluta ou em recusar o estatuto

definitivo dessa verdade, mas em equiparar a adesão a uma tese ao

reconhecimento da verdade absoluta desta1.

O pensamento filosófico se desenvolve e amadurece numa experiência de

trocas argumentativas, de objeções levantadas contra certas teses. A forma de

raciocinar do filósofo é antes a justificação, uma refutação das objeções que uma

demonstração ou uma verificação. Esse aspecto polêmico da filosofia difere do

dedutivismo matemático. Esse empreendimento de justificação que é a filosofia

tem por característica a ausência de um juiz supremo, que garantirá

derradeiramente a causa vencedora, a filosofia definitiva. Talvez a grandeza da

filosofia esteja justamente em nunca estar acabada (Perelman, 1996:276). Esse

pluralismo filosófico pede uma atitude de tolerância e de diálogo. Tal como o juiz, o

filósofo deve ouvir pontos de vista opostos para decidir-se. Sua função não é

descrever e explicar objetivamente o real, mas posicionar-se com relação a ele.

Quanto ao direito, temos que a prática jurídica é essencialmente uma

questão de decisão, no qual várias teses são igualmente defensáveis e nenhuma

se impõe com evidência (Perelman, 1996:385). O desprezo da filosofia pelo direito

é a expressão do "ideal absolutista em filosofia". Nessa visão, o filósofo parte de

princípios necessários e evidentes, dos quais derivam verdades incontestáveis,

uma espécie de visão divina das coisas. Dentre nossas opiniões e crenças, esses

1
Cf. Perelman, 1970:82-83. Perelman é aida mais contundente, utilizando ao invés de dogmático o termo
fanatique.

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filósofos buscariam a rocha sólida, o fundamento inabalável de seu sistema

filosófico, uma evidência que obrigaria todos os seres racionais a curvarem-se

diante da Verdade. Para esses "metafísicos apaixonados pelo absoluto" o direito

nada pode oferecer (Perelman, 1996:364).

O objetivo do direito é organizar a dialética entre vontades e razões

humanas, sabendo que é ilusório supor uma ordem apenas racional, que nunca

recorra à violência (Perelman, 1996:365). Ao contrário das metafísicas

absolutistas, que oscilam da dúvida absoluta à certeza absoluta, o direito fica

sempre no meio-termo. A razão e a vontade não constituem uma dualidade

irredutível, mas estão em constante interação. As teses iniciais de um sistema

jurídico não são consideradas como evidentes, mas também não são arbitrárias,

pois encontram em seu contexto social, político e histórico razões que as explicam

e justificam a aceitação (Perelman, 1996:371).

O direito envolve efetivamente um problema de decisão. Na tradição

filosófica, não houve lugar para a decisão, pois diante da verdade não cabe

escolha. A possibilidade de escolher é correlativa de uma ignorância. Dessa forma,

não se deve vincular a idéia de razão à idéia de Verdade. "Diante da verdade,

temos de inclinar-nos, não temos de decidir" (Perelman, 1999:384). Quando se

trata de decisão, várias teses são igualmente defensáveis e nenhuma se impõe

com evidência.

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2.3. Retórica X Lógica

O elemento comum entre a retórica filosófica e a lógica está exatamente no

estudo das provas. Tal noção na retórica sofre um alargamento, sendo incluído

aquilo que para a lógica formal seria tido como "pseudoprovas" ou ainda "falsas

provas". A melhor maneira de caracterizar os meios retóricos de provas é

justamente contrapô-los aos meios lógicos. Logo de início, deve-se ressaltar a

grande diferença entre a retórica e a lógica, na medida em que a primeira se

interessa sobretudo pela adesão e, ao contrário da lógica, "uma vez que visa a

adesão, a argumentação retórica depende essencialmente do auditório a que se

dirige" (Perelman, 1997:71).

A lógica formal pode ser caracterizada como uma teoria da demonstração

rigorosa, na qual a aplicação de um cálculo mecanizável permite que sejam

derivadas conclusões necessárias de determinadas premissas que são elas

mesmas colocadas fora de questão. O argumento é coercivo e sua correção e

validade são avaliados tendo em vista unicamente sua adequação a determinadas

regras formais de inferência.

A lógica formal apresentou um grande desenvolvimento no início do século

XX, sobretudo a partir do desenvolvimento da lógica simbólica. As teorias de

Boole, Morgan, Frege e Peano ressaltam o aspecto coercivo das inferências

lógicas, fazendo com que a própria lógica deixasse de ser filosófica para

transformar-se numa ciência rigorosa. Tal vertente da lógica formal analisada sob o

ângulo de sua estrutura matemática recebeu o nome de "lógica matemática".

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Afirmava-se que a lógica é uma ciência formal por definição e, sendo assim, falar

numa lógica própria ao direito consistia num grande equívoco.

Curiosamente, o próprio pai da lógica formal, Aristóteles, não se contentou

com suas análises da demonstração apodíctica desenvolvida nos Analíticos. O

estagirita não ignorou uma teoria da argumentação baseada em provas dialéticas,

objeto de estudo dos Tópicos. O Organon aristotélico tem assim um estudo das

provas muito mais abrangente e rico do que a tradição lógica preservou dele.

Já a retórica, enquanto arte de persuadir e convencer, consiste

essencialmente no uso da argumentação, na qual não temos teses nem evidentes

nem arbitrárias. Ela não se resume ao argumento lógico nem à sugestão pura e

simples. Para analisar a retórica em contraposição à lógica, servir-se-á sobretudo

da teoria da "nova retórica", que estuda exatamente a possibilidade de

argumentação e fundamentação racional sem a comprovação empírica e a

dedução lógica.

Enquanto a lógica raciocina sempre no interior de um sistema, que se supõe

aceito, na retórica tudo pode ser questionado, a adesão sempre pode ser retirada.

Logo, não há coerção na argumentação retórica, pois ela não se desenvolve no

interior de um sistema cujas premissas e regras de dedução são unívocas e

fixadas de maneira invariável. (Perelman, 1997:77).

A noção de contradição, essencial na lógica, na retórica recebe uma

roupagem diferente, devendo ser substituída pela incompatibilidade, que é o

resultado de uma decisão e não é inconcebível que se possa removê-la, ao passo

que diante de uma contradição seria preciso inclinar-se. Enquanto na lógica a

contradição leva ao absurdo, na retórica a incompatibilidade leva ao ridículo, que é

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a desqualificação do interlocutor. Essa distinção coloca a retórica frente a um

problema ausente na lógica, pois a retórica, por não ser coerciva, precisa dar-se

conta da amplitude da argumentação. Não se sabe de antemão quais provas serão

suficientes para determinar a adesão (Perelman, 1997:77-80).

Como não é formal, a retórica implica a ambigüidade e confusão dos termos

no qual se baseia. Sempre se acreditou que a polissemia dos termos eram defeitos

graves, mas a retórica visa exatamente compreender como a noção confusa é

manejada, qual é o seu papel e o seu alcance, procurando mostrar que aquelas

noções tidas em geral por claras só o são mediante a eliminação de certos

equívocos, a partir de uma redução (Perelman, 1997:81).

A idéia de validade, que na lógica tem um papel fundamental, na retórica

passa a ser vista como eficácia. Mas a eficácia tomada como único critério não

permitiria distinguir o êxito do charlatão do filósofo eminente (Perelman, 1997:87).

Apesar disso, a retórica não buscará em um critério absoluto a solução para esse

problema. Ao invés disso, a retórica reconhecerá que a única garantia para os

nossos raciocínios está na qualidade do auditório, ou seja, no grau de

discernimento dos ouvintes aos quais se dirige a argumentação. O argumento mais

válido é aquele que é eficaz para o melhor auditório possível. Resumindo,

enquanto na lógica a validade estava relacionada a uma regra formal de inferência,

na retórica a "validade" deve incorporar seu aspecto material, que é a eficácia do

argumento num determinado auditório.

Dentre as novas concepções da lógica retórica ressaltam-se também as de

Viehweg e Toulmin.

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Para Viehweg (1991), não há divisão entre argumentação dialética, objeto

de estudo da Tópica, e a demonstração dedutiva, objeto de estudo da lógica

formal. A lógica formal é necessária porém insuficiente, pois esclarece apenas a

forma do pensamento. Já a dialética cuida da lógica do conteúdo. Segundo

Viehweg, "é facilmente compreensível que a interpretação pode perturbar

sensivelmente a estreiteza de um sistema dedutivo" (1991:39). Opõe-se dessa

forma a lógica do conteúdo (interpretação), da forma do pensamento (lógica

formal). Enquanto a última vive da univocidade, a primeira vive do oposto. A

dialética mostra a fecunda tensão do contraditório e o aspecto simplista da lógica.

Viehweg explica a tradição anti-retórica a partir da distinção feita entre a

lógica vista como techné e a lógica como episteme (scientia). A técnica lógica

eqüivale a uma teoria operativa, uma techné retórica tal como concebeu Górgias,

Aristóteles e a escolástica. Já a tradição anti-retórica privilegiou a visão da lógica

como episteme, como uma ciência formal que reflete o mundo, sendo válida

sempre e em todo lugar.

No direito, a lógica jurídica supera o marco da lógica formal. O âmbito

racional é mais amplo que o da lógica formal. Para dar conta desse aspecto

material, complementar ao formal, Viehweg propõe uma volta aos Tópicos de

Aristóteles. Ele procura conciliar esses pontos de vista e afirma no âmbito jurídico

que a teoria retórica seria um acréscimo à teoria pura do direito de Kelsen, uma

espécie de complemento material. A lógica formal determinaria a estrutura da

demonstração (sistema dedutivo) enquanto a tópica mostraria a estrutura da

argumentação. A distinção entre a dogmática e a zetética, enquanto investigação

ilimitada, devem ser em última instância minimizada. Na prática cotidiana do

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direito, as dogmatizações são indispensáveis. A zetética é, por excelência,

corretiva de toda dogmatização. Uma disciplina completa do direito deve abarcar

conjunta e reciprocamente as atividades dogmáticas e zetéticas. Em suma, a

proposta de Viehweg aspira a uma criatividade jurídica controlável. Para Viehweg:

"O sistema tópico está em permanente modificação. Suas respectivas


formulações indicam, meramente, progressivas etapas da argumentação lidando
com problemas particulares. O sistema pode ser razoavelmente chamado de um
sistema aberto, já que a discussão, isto é, seu enfoque de um problema particular,
está aberto a novos pontos de vista. Em relação ao seu conteúdo, este renuncia à
noção de um argumento final ou decisivo, porém recomenda um método de
argumentação que proceda não dedutivamente mas dialogicamente. Sua ultima
ratio é o discurso razoável". (1969)

Para Toulmin (1964), a lógica é algo que tem relação com a maneira como

os homens pensam, argumentam e efetivamente inferem. Seu estudo é antes

descritivo do que prescritivo, ou seja, procura-se analisar na prática como os

homens realmente argumentam. Toulmin desloca o centro de atenção da teoria

lógica para a prática lógica (working logic). Sua crítica é ainda mais radical que a

de Viehweg e Perelman, na medida em que sua teoria teria aplicação para a

argumentação em geral, e não somente para o direito ou para a razão prática. A

lógica é vista como jurisprudência generalizada, ou seja, como algo similar a um

processo legal. Opõe-se assim o modelo da geometria ao modelo da

jurisprudência, no qual há um paralelismo entre processo racional e o processo

jurídico, sendo o bom argumento identificado àquele que resiste a crítica, ao

tribunal da razão. Toulmin aponta duas grandes falhas na lógica tradicional:

primeiro, ela parte de argumentos infreqüentes na prática e, segundo, ela não leva

em consideração as diferenças entre garantia e respaldo e garantia e condição de

refutação, limitando-se a diferenciar as premissas da conclusão. Ao contrário da

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lógica formal, Toulmin não se interessa pelo estudo do argumento como um

encadeamento de raciocínio (a train of reasoning), mas, pelo contrário, o que

interessa a Toulmin são os argumentos enquanto interações humanas, ligados à

experiência prática. A correção de um argumento é uma questão de procedimento,

de critérios substantivos e históricos apropriados para cada campo, mudando o

raciocínio conforme as diferentes situações em que se argumenta. Toulmin

acrescenta também a noção de força do argumento (soundness of argument), uma

vez que na vida prática a passagem para a conclusão não é necessária, mas se dá

por meio de qualificadores modais, tendo os argumentos intensidades variáveis.

2.4. Auditório

Ao estudar os meios de provas utilizados para se obter adesão, a retórica

filosófica implica necessariamente a noção de auditório, que pode ser definido

como o conjunto daqueles aos quais se quer ganhar a adesão. Mudando o

auditório, a argumentação muda de aspecto (Perelman, 1970:9-10). O importante

na argumentação não é o que o orador considera verdadeiro ou falso, mas a

opinião daqueles aos quais se dirige. O auditório tem assim o papel de determinar

a qualidade da argumentação e o comportamento do orador. (Perelman, 1970:31-

32).

Se o argumento não se apresenta como válido em si mesmo, como a

evidência, qual auditório pode decidir o caráter convincente, racionalmente válido,

de uma argumentação? Perelman encontra na prática filosófica ocidental três

20
espécies de auditórios considerados como privilegiados: o sujeito ele mesmo, o

interlocutor no diálogo e o auditório universal (1970:39-40).

A argumentação consigo mesmo ou com um único interlocutor foram

considerados auditórios privilegiados na medida em que o sujeito mesmo ou o

adversário no diálogo foram vistos como a encarnação do auditório universal. Esse

universal é freqüentemente a generalização ilegítima de uma intuição particular. O

diálogo e a deliberação consigo mesmo são sempre encarnações precárias do

auditório universal. O auditório universal tem importância primordial enquanto

norma da argumentação objetiva, sendo descrito por Perelman como aquele

"constituído por toda humanidade ou ao menos por todos os homens adultos e

normais" (1970:39).

A ampliação da noção de auditório para a de auditório universal é discutível.

Viehweg, por exemplo, entende que mesmo sem essa ampliação, a noção de

auditório já representa uma ampliação essencial da racionalidade. Entretanto, se

se permanece na noção de auditório particular, ter-se-á problemas em se separar

a argumentação eficaz aqui e agora daquela que pretende ser verdadeira,

convincente, ou seja, eficaz para todo ser racional. Dificilmente se poderá eximir tal

perspectiva de cair numa abordagem antropológica restritiva. No capítulo referente

à retórica filosófica, e mais precisamente naquele dedicado a Perelman, procurar-

se-á tratar mais detalhadamente esse assunto.

Quanto ao desinteresse da filosofia moderna em relação ao auditório, tal se

explica em função de seu esforço divino de purificação, de ascese, apoiada numa

relação entre sujeito e objeto, eu e Deus, devendo as verdades serem

reconhecidas por todo ser de razão, a quem elas deveriam se impor pela sua

21
evidência. Assim, a verdade, a razão e a evidência permitiam dispensar a adesão

efetiva do auditório (Perelman, 1197:180-181).

Resumindo, temos que:

"O que caracteriza o ponto de vista retórico em filosofia é a preocupação


fundamental relativa às opiniões e aos valores do auditório a que se dirige o
orador e, mais particularmente, referente à intensidade de adesão desse auditório
a cada uma das teses invocadas pelo orador" (Perelman, 1997:181).

3. RETÓRICA: BREVE HISTÓRIA

3.4. A retórica clássica 2

A retórica antiga girará entre dois pólos: o da prática judiciária e o da

dialética filosófica. No âmbito judiciário, quando se conhece a verdade, a causa se

extingue e não há mais o contraditório. Os antigos observaram isso e buscaram

elaborar uma teoria que desse conta desse aspecto verossímil do direito, que

recebeu o nome de retórica. A retórica teórica teve assim sua origem na prática

judiciária na Sicília por volta de 465 a.C. Nessa época, houve na Sicília inúmeros

processos de propriedade, uma vez que tais direitos eram ainda bastante obscuros

e confusos. Tais processos tiveram por característica a mobilização de grandes

júris populares, onde o importante era ser eloqüente para persuadir. Tal eloquência

transformou-se rapidamente em objeto de estudo e seus primeiros expoentes

2
Para este breve estudo histórico, as principais fontes foram: Plebe (1978), Barthes (1975), Reboul (1998),
Cassin (1986), Tordesillas (1986), Dixsaut (1986), Plebe & Emanuele (1992), Perelman (1997), além dos
diálogos platônicos e textos aristotélicos.

22
foram Empédocles, Córax e Tísias, que afirmavam ser capazes de persuadir

qualquer pessoa de qualquer coisa.

O primeiro a levar a retórica siciliana para a Grécia continental foi

Protágoras. Com os sofistas, a retórica serviu como uma doutrina capaz de

legitimar tanto a violência como a tolerância. Protágoras defendia uma espécie de

relativismo pragmático, para o qual não há verdade em si e o importante é aquilo

que lhe permite fazer-se valer e impor-se. Privado da realidade objetiva, o discurso

humano (logos) fica sem referente e não tem outro critério senão o próprio

sucesso. Protágoras sabia modelar os discursos (tornando-os longos ou concisos)

e buscava encontrar as palavras mais convenientes. A única ciência possível é a

do discurso, a retórica. A finalidade dessa retórica não é encontrar o verdadeiro,

mas sim dominar através da palavra. Ela distancia-se do saber para degenerar-se

num poder.

A retórica estética e propriamente literária deve seu surgimento a Górgias.

Protágoras pode ser considerado o pai da retórica prática, enquanto Górgias foi o

primeiro teórico da arte retórica como disciplina independente. Ele se preocupou

sobretudo com o estudo da eficácia do logos, tanto na prosa (discurso sem metro)

como na poesia (discurso com metro). Apesar de delimitar a disciplina retórica,

Górgias estuda essa arte como criadora de crenças e não de ensinamentos. Seu

poder é puramente persuasivo e não científico: é sempre possível adaptar o

discurso ao auditório com habilidade técnica e não científica (kairós)3. O valor de

3
Segundo Tordesillas: "En rhétorique, le kairós est le principe qui gouverne le choix d´une argumentation, les
moyens utilisés pour prouver et, plus particulièrement , le style adopté. (...) L'examen des diverses
représentation de la notion de kairós et l'analyse des occurrences du terme convergent pour dégager une notion
qui lie le temps, la circonstance, le degré, la proportion et la mesure" (1986:33-34).

23
uma argumentação deve ser estudado dentro de um contexto de opiniões (doxa), e

não se refere à ciência.

Isócrates, grande humanista ateniense, afirma que a retórica só é aceitável

se estiver a serviço de uma causa honesta e nobre. Dessa forma, ele procura

moralizar a retórica, que deixa de ser vista como um discurso meramente

persuasivo para ser produtora de sabedoria. Mas essa sabedoria, condição da

justiça e da verdade, depende, em cada caso, da doxa, sendo assim uma espécie

de bom senso4. A persuasão muda de natureza, deixando de ser a imposição de

uma opinião para ser antes a criadora de modelos de civilização, de cultura e de

homens. Apesar da história ocidental ter classificado Isócrates ao lado dos

sofistas, ele se diz "filósofo" e anti-sofista. Isócrates era discípulo tanto de Górgias

como de Sócrates e seu pensamento reflete essa posição intermediária. Ele estava

convencido de que o homem não pode conhecer as coisas como são, assim busca

integrar a filosofia na arte do discurso, sendo ela para a alma o que a ginástica é

para o corpo. A filosofia está ligada à aprendizagem, ao trabalho e à cultura, e não

a uma ciência que desconhece a imprevisibilidade e a diversidade dos coisas no

mundo. Ele rejeita a possibilidade de uma ciência do logos e de qualquer

codificação dos processos discursivos. A retórica está unida à poética e aqueles

que dissociam a argumentação da criação são chamados sofistas5.

4
Para Dixsaut, "La détermination de la pensée comme bon sens suffit à elle seule pour exclure Isocrate de
l'histoire de la philosophie" (1986:68). Ele afirma mais adiante que "grâce à Nietzsche nous pouvons entendre
la philosophie d'Isocrate autrement que comme un sens commun" (1986:85).
5
" Ceux qu'Isocrate nomme "sophistes" sont tous ceux qui participent à cette entreprise de démembrement,
d'autonomisation des champs. De la dissociation naît la démesure, c'est-à-dire l'autonomie des fins. Commence
alors l'histoire de la connaissance pour la connaissance, du pouvoir pour le pouvoir, de la parole pour la parole,
de l'art pour l'art... Isocrate, ce Grec des Grecs, n'assigne au savoir d'autre fin que la vie. (...) Tel est le point
central à partir duquel nous pouvons à la fois comprendre pourquoi nous ne comprenons plus Isocrate,
pourquoi ses textes sont devenus pour nous inclassables et décevants. (Dixsaut, 1986:75).

24
Tais concepções fizeram de Isócrates alvo de vários ataques de Platão.

Aliás, no diálogo Górgias, parece que o grande visado era ele e não o próprio

Górgias. Platão sustenta o existência de uma "ciência" no domínio da justiça e da

felicidade e aproxima a filosofia da medicina e a retórica da culinária, como uma

arte que se vale da ignorância do auditório. Isócrates replicaria que a "ciência"

(episteme) de Platão, que se opõe a retórica (doxa), ainda está para ser feita e

estará sempre, pois o homem poderá chegar apenas a opiniões mais ou menos

justas. Apesar de afirmar que a ciência (episteme) pertence apenas aos deuses,

Isócrates não nega a sophía, mas a iguala à phrónesis. A certeza, universalidade e

unidade da ciência são negadas em favor da pluralidade de opiniões e da

falibilidade de toda reflexão.

A relação de Platão com a retórica difere ao longo de sua vida intelectual,

oscilando entre o desprezo e a valorização da boa retórica. Entretanto, Platão

manteve sempre um discurso de cunho científico, dizendo-se adversário da

retórica. Quanto ao seu mestre, Sócrates, sua relação com a retórica é também

dúbia, devido sobretudo ao fato de não ter deixado nada escrito. O "verdadeiro

Sócrates" já foi objeto de inúmeras discussões entre os "gregófilos" e não seria

pertinente entrar nessa querela. Apesar das divergências, seguindo a leitura de

Plebe, entendo que Sócrates tenha professado com grande êxito a técnica

retórica, e vê-lo como um adversário irredutível da sofística e da retórica é analisá-

lo apenas pelos olhos de Platão (1978:21).

Os diálogos de Platão que trataram mais diretamente do problema retórico

são o Górgias e o Fedro. No Górgias, Platão mostra claramente sua antipatia e

25
desprezo pela arte retórica. Aliás, a retórica não seria nem ciência nem uma

verdadeira arte, mas apenas uma habilidade prática (465a). A retórica não tem

nenhum comprometimento com o valor de seu conteúdo e não tem necessidade

alguma de conhecer os assuntos de que trata, mas apenas de encontrar um meio

de persuadir (459b-c). O Górgias representa o ápice da reação platônica à retórica

sofística e contribuiu em grande medida para o posterior descrédito lançado sobre

a retórica.

Apesar de ser um texto extremamente anti-retórico, vários especialistas

acentuam também que a atenção que Platão revelará posteriormente à retórica já

está antecipada aqui. Plebe, por exemplo, chega a afirmar que: "Platão não tinha

outro objetivo senão o de demolir a retórica; mas, das entrelinhas da polêmica

transparece um vivo interesse e até uma certa atração por essa arte por ele tão

violentamente combatida" (1978:25).

Enquanto no Górgias Platão critica toda a retórica, no Fedro, obra bem

posterior, ele distinge a retórica sofística da dialética e ressalta o valor desta

última. No Fedro, Platão parece dar uma interpretação mais condescendente da

retórica, procurando reabilitá-la. Nesse diálogo, o Sócrates platônico afirma a

necessidade e a importância de se examinar melhor a retórica humana (266d).

Platão observa que não basta estar na verdade, mas é também preciso conduzir o

seu interlocutor para a verdade6. Para tal, faz-se necessário uma retórica que, ao

contrário do demagogo, visará sempre a verdade (260e). É claro que não se trata

da retórica sofística, considerada uma má retórica, uma arte descompromissada

6
Segundo Brisson, "La connaissance du vrai, pour l'être humain du moins, n'est pas immédiate. Elle exige
l'application d'une méthode: la dialectique" (2000:137).

26
com a verdade, chamada de logosofia. Mas a retórica pode também servir ao

método dialético, que é o método da verdadeira filosofia7. Tal retórica não buscaria

a adesão das multidões mas dos próprios deuses8. Platão classifica tal retórica de

psicagogia (formação das almas pela palavra), que busca a condução das almas

para a verdade (261a). Essa retórica está assim comprometida com a verdade e

deverá ser chamada mais propriamente de dialética.

Em Aristóteles, a retórica ocupa um posto intermediário entre a poética e a

filosofia, numa escala que é ascendente no sentido intelectualista. A retórica é

definida como a "faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser

capaz de gerar a persuasão" (Arte Retórica, livro I, cap.2, I, p.34). A verdadeira

retórica deve ser uma técnica rigorosa do argumentar. A retórica de Aristóteles é

sobretudo uma retórica da prova, do raciocínio, do silogismo aproximativo.

Contudo, Aristóteles celebra a utilidade da retórica e não o seu poder. Ainda que

possa ser usada desonestamente, tal não subtrai o seu valor. O estagirita dá uma

fundamentação mais sólida à retórica, privilegiando não o seu poder de dominar,

mas o seu poder de defender-se. É preciso ser capaz de defender tão bem o

contra como o pró não para torná-los equivalentes, mas para compreender o

mecanismo da argumentação adversária e assim a refutar. Aristóteles acredita que

o verdadeiro e o justo são por natureza mais fortes que seus contrários.

Aristóteles admite ao mesmo tempo a ciência exata de Platão e a

argumentação do preferível. Para o estagirita, existem dois mundos: o mundo

7
Para Brisson, "Platon refuse ainsi à la rhétorique son autonomie: elle dépend d'une autre technique, la
dialectique, qui s'efforce d'atteindre au vrai dont dépend le vraisemblable" (2000:138).
8
Segundo Diès, "... le but n'en est pas d'apprendre à dire et à faire ce qui plaît aux hommes, mais d'apprendre à
dire et à faire, autant que possible, ce qui plaît aux dieux" (1927:424).

27
divino, etéreo, com movimentos necessários, portanto calculáveis e previsíveis; e o

mundo sublunar, a Terra, lugar do acaso, da contingência, da imprevisibilidade,

aberto à ação humana, onde é impossível uma ciência perfeita, havendo apenas o

verossímil, o provável. O primeiro mundo seria cognoscível pela razão

demonstrativa enquanto o segundo seria o campo da retórica. Ao conciliar a

episteme e a doxa, ele não coloca a retórica num plano inferior, como a prova do

pobre, uma espécie de "quebra-galho" devido a ignorância dos auditórios

populares. O estagirita procura ao contrário ressaltar a importância da arte de

defender-se argumentando em situações nas quais a demonstração não é

possível.

Aristóteles encontra racionalidade para além da lógica analítica,

demonstrativa, acreditando ser possível uma lógica da discussão e do diálogo, um

raciocínio silogístico para realizar a condição de confrontabilidade, sempre

obrigado a comunicação com outra pessoa. A dialética é a prática da discussão

orientada a comprovar a força de uma tese. As premissas do silogismo dialético se

apresentam assim de forma interrogativa, e não afirmativa como na demonstração.

Seu ponto de partida não é a certeza, mas antes o problema. O raciocínio dialético

se move entre dois pólos: de um lado científico e do outro construído sobre

opiniões. Sua função é ordenar o mundo das opiniões. Enquanto a lógica realiza

uma demonstração irrefutável, pelo método das evidências, os entimemas ou

silogismos retóricos partem do convincente, cujas premissas podem ser refutadas.

Aristóteles classifica as premissas retóricas em quatro grupos: as provas, os

exemplos, as verossimilhanças e os sinais. Nenhuma dessas premissas possui o

rigor das premissas lógicas e apresentam grau de certeza variável. De cada uma

28
dessas premissas deriva um tipo diferente de entimema: o entimema apodíctico9, o

entimema indutivo10, o entimema anapodíctico11 e o entimema aparente12.

O que diferencia o silogismo dialético do erístico é que o primeiro se funda

em premissas prováveis, que Aristóteles define como aquelas “opiniões recebidas

por todos, ou pela maioria, ou pelos sábios, e, entre estes últimos, pelos mais

notáveis e pelos mais ilustres” (Tópicos, liv.I, cap.1, 100b), sendo a erística uma

falsificação da dialética, uma vez que se assenta em opiniões que na aparência

são prováveis, mas que na realidade não são. O raciocínio dialético, tal como foi

formulado por Aristóteles, foi grandemente injustiçado ao ser equiparado à erística,

a uma mera técnica a serviço de interesses mesquinhos.

Um conceito que será trabalhado por Aristóteles e que apresentará um

interesse especial para o direito será o de topoi. Os topoi são lugares de onde se

podem tirar argumentos para uma causa, métodos de argumentação. Os topoi se

dividem em lugares comuns e lugares específicos. Os lugares comuns são os que

versam sobre tudo e formam silogismos tanto a respeito da justiça, da física como

de qualquer assunto. São eles três: o possível-impossível, o existente-inexistente e

o mais-menos. Já os lugares específicos são aqueles relativos a cada espécie,

sendo a expressão de conhecimentos particulares. A Tópica consistia

originariamente numa coletânea de lugares comuns de dialética e apenas em

9
Tal entimema é o indício certo, que não pode ser de outra forma. Ele se aproxima do silogismo científico,
embora se baseie apenas numa universalidade de experiência. (ver Barthes, 1975:191-192)
10
A indução é as vezes oposta ao entimema e noutras tido como uma de suas sub-espécies. (ver Plebe,
1978:45)
11
A certeza de tal entimema está na idéia de geral que, ao contrário do universal, é não-necessário e
determinado pela opinião do maior número. (ver Barthes, 1975:192-193)
12
O sinal é um indício mais ambíguo, muito incerto. De tão incerto, Quintiliano o exclui da técnica do orador.
(ver Barthes, 1975:193)

29
Aristóteles ela se transforma em método, que nos deixa em condição de fornecer

conclusões verossímeis sobre qualquer assunto proposto.

Após Platão e Aristóteles, num período por vezes denominado segunda

sofística, assiste-se o fortalecimento de uma retórica filosófica. Segundo Cassin:

"essa inversão sofística/filosofia, e a vitória sofística, operou-se sob o terreno da


retórica e não da filosofia, e isso devido a insistência no "falar a" em detrimento ao
"falar de", pela importância dada desde às origens no papel farmacêutico 13 da
linguagem"14 (1986:15).

Para os estóicos, a retórica passou a eqüivaler-se à dialética, identificada

com o "falar bem", que significava o mesmo que dizer a verdade. A retórica era

além de uma arte uma ciência, ou seja, exatamente o oposto que Platão afirmou

em Górgias. A retórica, alçada à condição de ciência, passou a compor

organicamente a filosofia ao lado da dialética.

Com maior interesse para o direito temos a doutrina retórica de

Hermágoras, que apesar de não ter a profundidade filosófica de Aristóteles, é

apontado como um dos mais importantes retóricos da antigüidade. Ele institui uma

divisão geral na retórica entre o gênero racional e o gênero legal. O gênero

racional é aquela que visa o verdadeiro, ou seja, é a retórica racionalista e

filosófica. Quanto ao gênero legal, temos aqui a retórica acentuadamente jurídica,

que visa o justo. Hermágoras divide o gênero legal em quatro subgrupos: quando a

letra da lei não concorda com seu espírito, quando temos leis contrárias, quando

13
O papel farmecêutico dado à linguagem refere-se a seu poder similar ao de uma droga, um phármakon, que
tanto pode ser o remédio que cura como o veneno que mata. No caso do discurso, tal tem a propriedade de
conduzir tanto para a verdade como para o erro. (ver Derrida, 1997)
14
No original: "Cette inversion sophistique/philosophie, et la victoire sophistique, s'est opérée sur le terrain de
la rhétorique et non de la philosophie par une insistance sur le "parler à" au détriment du "parler de", par
l'accent mis dès l'origine sur le rôle pharmaceutique du langage".

30
temos ambigüidade e, por fim, quando tem-se o silogismo. Esses quatro subgrupos

indicam aspectos que serão bastante estudados pela hermenêutica jurídica.

No seu período latino, a retórica voltará a elevar-se ao nível das disputas

filosóficas sobretudo a partir de Cícero, que sustentará o caráter complementar

entre a retórica e a filosofia. Não é possível ser bom orador sem a filosofia e nem

deve o filósofo ignorar e muito menos desprezar a retórica. Cícero moraliza a

retórica e reage contra o ensino das escolas, reivindicando o homem honesto

contra a especialização. Cícero caracteriza-se sobretudo pela desintelectualização

de Aristóteles (abandono da retórica sistemática), pela busca da clareza, pela

nacionalização da retórica (adaptada a Roma), pela junção com o empirismo

profissional e pela vocação à grande cultura. Segundo Plebe, "pode dizer-se que,

em Cícero, chega ao ponto mais alto a valorização da retórica como ciência

complementar da filosofia na Antigüidade" (1978:70).

Após experimentar o seu ponto alto em Cícero, a retórica latina entra em

crise. Ainda virá Quintiliano, um retor oficial de grande fama, que assume posição

semelhante a de Cícero no que se refere à relação entre a retórica e a filosofia. E

um pouco depois Tácito, que via uma contradição no fato da retórica ser ensinada

no Império Romano, onde não havia democracia e, portanto, as decisões não eram

submetidas a debates públicos. Sendo assim, Tácito entende que o ensino da

eloquência em Roma era totalmente artificial, ornamental e vazio. Por fim, a

retórica se diluirá num sincretismo. Contudo, tal crise não significou a morte da

retórica, que ocupará um lugar no trivium, ao lado da gramática e da lógica.

31
3.5. A retórica na modernidade

Segundo Barthes, a retórica será a "prima infeliz do trivium", relacionada

sobretudo com o aspecto meramente ornamental, reputado acidental com relação

à verdade a ao fato (1975:167). O trivium transformou-se em bivium, sendo a

retórica absorvida pela gramática e pela lógica (Kuentz, 1975:113). A partir do

século XII e XIII a lógica passa a dominar, repelindo a retórica e absorvendo

inclusive a gramática. O domínio retórico não parou de diminuir, passando a ser

equiparado a uma forma de pré-saber confuso e nebuloso, uma pseudociência que

teria dado origem às ciências humanas. Seu recuo foi inversamente proporcional

aos progressos experimentados pela filologia, psicologia, lógica formal e

antropologia.

A promoção do valor da evidência, que se basta a si mesma e dispensa a

linguagem ou serve dela apenas como instrumento, é a grande responsável pelo

grande descrédito em relação à retórica. Tal evidência, segundo Barthes, toma três

direções: uma evidência pessoal, como no protestantismo, uma evidência racional,

como no cartesianismo, e uma evidência sensível, como no empirismo

(1975:175)15. A retórica perde completamente suas ambições lógicas e, quando é

tolerada, não passa de um ornamento.

Ao reconhecer apenas a evidência, a modernidade significou o desprezo

completo pela retórica. A evidência pessoal desdobrou-se no romantismo, e a

15
Perelman também utiliza essa distinção, dizendo: "o critério de evidência, fosse a evidência pessoal do
protestantismo, a evidência racional do cartesianismo ou a evidência sensível dos empiristas, só podia
desqualificar a retórica" (1997:88).

32
evidência racional e sensível no positivismo. Em comparação aos gregos, os

modernos foram muito mais otimistas com relação à prática filosófica. Mesmo

Platão, conhecido por sua exacerbada idealidade e apelo à evidência, à ciência

exata, teve mais sensibilidade teórica ao tratar do problema retórico, propondo a

dialética como uma espécie de método retórico para se alcançar a verdade. Os

modernos apegaram-se apenas à evidência e não constituem assim um período

histórico relevante para se pensar a retórica.

3.6. A retórica na contemporaneidade

Apesar da flagrante derrota da retórica no plano filosófico, ainda pode-se

encontrar vários ecos contrários. Nietzsche, por exemplo, contraria a visão

platônica da imoralidade sofística e, a partir de uma inversão dos valores, faz o

elogio de Cálicles. As novas correntes filosóficas surgidas na virada do século XIX

para o XX refletiram em grande medida uma desconfiança em relação ao otimismo

moderno em suas evidências. Não é sem fundamento que se chama comumente

ao filósofo pós-moderno de pós-nietzscheano. Não se pretenderá analisar aqui

todas essas correntes, o que seria uma empreitada de fôlego. Antes, busca-se

somente ressaltar a vinda desses novos ventos filosóficos.

Para restringir-se ao aspecto retórico dessa transformação, que assume

proporções muito mais amplas, procurar-se-á analisar duas propostas referentes a

esse campo. Uma nascida em meados do século XX com Perelman e que recebeu

o nome de "nova retórica" e outra surgida recentemente com Boaventura de Sousa

33
Santos e que recebeu o nome de "novíssima retórica" em explícita menção à

proposta perelmaniana.

3.6.1. A nova retórica

A nova retórica difere em vários aspectos da antiga, a começar pelo

alargamento de seu campo e pelo seu aspecto fragmentário. Num primeiro

momento, houve um renascimento da retórica puramente literária, sem relação

com a persuasão e o convencimento16. À retórica literária opõe-se Perelman e

Olbrechts-Tyteca que, já em 1958, no Tratado da Argumentação, procuram

reabilitar a grande tradição retórica de Aristóteles, elaborando uma teoria do

discurso persuasivo e convincente.

Já na primeira parte dessa monografia vários pontos do nova retórica foram

trabalhados e ainda o serão em diversos ítens posteriores. Sendo assim, torna-se

desnecessária uma longa explicitação dessa teoria, que constitui o fundo mesmo

desse trabalho e está espalhada ao longo de todo o seu desenvolvimento. Busca-

se aqui apenas apresentar resumidamente cinco pontos principais da proposta de

Perelman, sendo eles:

a) a ligação com a abordagem clássica;

b) a argumentação incluí juízos de valor;

c) a argumentação se dá na linguagem coloquial;

d) a nova retórica propõe um estudo descritivo;

16
Nesse movimento, iniciado nos anos 60, estão Jean Cohen, o Grupo , Roland Barthes e Gérard Genette.
Eles se preocuparam sobretudo em conhecer os procedimentos da linguagem caracterνsticos da literatura.

34
e) o auditório é um conceito de fundamental importância.

A nova retórica analisa a possibilidade de argumentação e fundamentação

racional sem a comprovação empírica e a dedução lógica. Incluí-se os juízos de

valor na argumentação racional. Enquanto a lógica formal limitava-se aos

imperativos, a nova retórica estendeu o setor da linguagem e encorajou a

passagem do imperativo para a persuasão e vice-versa. Perelman insiste sempre

na insuficiência do raciocínio dedutivo e indutivo. Na sua opinião, o estudo dos

argumentos não se prende a uma teoria da demonstração rigorosa. Aristóteles, o

fundador da lógica formal, teria sido o primeiro a constatar isso. O Organon

comporta, ao lado dos Analíticos, os Tópicos, do qual se extrai conclusões

verossímeis, representando uma forma diversa de raciocinar. Raciocinar não se

resume a inferir, calcular e demonstrar, mas consiste também em fornecer razões

pró ou contra uma dada tese. Para Perelman, parece inaceitável ignorar esses

argumentos a pretexto de que são alheios à lógica formal. O próprio pai da lógica

formal, Aristóteles, não deixou de tratar da lógica da controvérsia.

A perspectiva retórica põe claramente o problema semiótico e desperta o

interesse pela dialógica, no sentido da lógica operativa. A pragmática é o campo

da retórica. A nova retórica se esforça para fazer compreensível toda

argumentação dentro da situação do discurso. Partindo-se da pragmática, procura-

se tornar compreensível todos os demais resultados do pensamento. O acontecer

cotidiano se desenvolve diferentemente do modelo semântico: aquilo que aqui e

agora é aceito, resulta de uma situação de comunicação complexa. Na retórica, o

que interessa é elucidar como se leva a cabo a comunicação, sendo necessário

investigar o permanente processo de criação que na situação de discurso produz

35
significados lingüísticos. O uso da linguagem tem aqui importância especial, pois

impede-se a mecânica rígida e possibilita-se uma criação flexível e controlável.

Quanto ao caráter descritivo levado a cabo no estudo da nova retórica,

segundo Perelman a filosofia pode lucrar muito abandonando sua tradição anti-

retórica e procurando aprender mais com o direito. A análise de como se raciocina

efetivamente sobre valores pode servir de elemento para modificar inteiramente a

perspectiva do raciocínio em geral. A situação do filósofo se parece muito mais


17
com a do juiz do que com a do matemático: a ele também cabe decidir . Como diz

Perelman, “a análise das decisões judiciárias fornece, assim, um excelente

material para a constituição de uma lógica dos juízos de valor, integrados numa

teoria geral da argumentação" (1996:620). Perelman propõe assim um estudo

descritivo, que parte de como os homens efetivamente argumentam e constrói, a

partir daí, os esquemas argumentativos.

Quanto à noção de auditório, ela é essencial em qualquer perspectiva

retórica, na qual o argumento não é impessoal, mas busca a adesão do auditório.

Podemos conceituá-lo como o conjunto daqueles dos quais se quer ganhar a

adesão. A argumentação correta é aquela que é eficaz sobre o auditório, tendo por

base a plausibilidade. Perelman distingue vários tipos de auditórios e o único

critério para avaliar os argumentos está na qualidade do auditório.

17
Quanto à importância do modelo jurídico na argumentação filosófica, ver o debate entre Perelman e Ricoeur
(Perelman. 1996:119-122)

36
3.6.2. A novíssima retórica

A proposta de Boaventura de Sousa Santos (2000), sua "novíssima

retórica", insere-se numa rede teórica que incorpora, além da nova retórica de

Perelman, a crítica epistemológica, realizada por pensadores como Nietzsche,

Heidegger, Gadamer e Foucault, e a influência do pragmatismo americano via

James, Dewey e também a leitura de Habermas.

O problema retórico apresenta-se para Boaventura dentro de seu estudo

acerca do conhecimento emancipatório, como uma espécie de estratégia para

proliferar as comunidades interpretativas. O resultado do conhecimento retórico é

sempre provisório, fruto de uma negociação de sentido realizada num auditório

relevante. Ao contrário de Perelman, que chega na questão retórica a partir da

lógica, Boaventura tem preocupações sobretudo de cunho epistemológico e

sociológico.

Boaventura distingue na retórica, em sua relação com a ciência, duas

versões: uma fraca e outra forte. A primeira encontra retórica na ciência e a

segunda vê toda a ciência como retórica (2000:98). Boaventura assume a segunda

versão, mais radical, e desenvolverá um longo estudo crítico da ciência moderna

(ocidental, capitalista e sexista) procurando elaborar uma ciência pós-moderna

fundada na tolerância, na prudência, no encantamento da natureza, no caráter

retórico e na solidariedade. Desses elementos, o que interessa aqui é seu aspecto

retórico, e sobretudo sua crítica dirigida contra a retórica de Perelman.

Na leitura de Boaventura de Sousa Santos (2000:98-106), podemos

distinguir cinco críticas principais levantadas contra a proposta de Perelman. A

37
primeira, afirma que a nova retórica é eminentemente técnica, e por isso não

consegue adjudicar entre a persuasão e o convencimento. Em segundo lugar, o

auditório e a comunidade seriam imutáveis para Perelman. A nova retórica não

reflete os processos sociais de inclusão ou exclusão e encara o auditório apenas

como um dado. Em terceiro lugar, a nova retórica seria manipuladora, constituída

por oradores que visam apenas influenciar e não se consideram eles mesmos

influenciados. Em quarto lugar, a distinção perelmaniana entre orador e auditório

teria dado ao orador um papel preponderante, sendo ele o protagonista dessa

relação, algo semelhante ao que ocorre na relação da ciência moderna entre

sujeito e objeto. Por fim, em quinto lugar, a nova retórica estaria presa à

necessidade de topoi fixos, trabalhando com a estabilidade e a duração das

premissas. Em suma, Boaventura conclui que a retórica de Perelman é demasiado

moderna para contribuir para o conhecimento pós-moderno.

Na "novíssima retórica" intensifica-se a dimensão dialógica. A distinção

orador-auditório perde sua rigidez e se transforma numa seqüência dinâmica de

posições com resultados sempre inacabados. Os topoi são postos em questão,

inventa-se novos topoi, novos campos de conhecimento partilhado e novas

batalhas argumentativas (2000:105). Três elementos, no mínimo, são essenciais

para se entender a proposta de Boaventura: a sociologia da retórica, a neo-

comunidade e a tópica social.

Na sociologia da retórica, o auditório está em permanente formação, não

sendo algo fixo, mas ao contrário um processo social. Inclui-se nesse estudo

também a relação entre os auditórios. Observa-se assim toda uma preocupação

38
sociológica referente à prática argumentativa, devendo-se levar em consideração

os processos de inclusão e exclusão, as relações de poder, etc.

A neo-comunidade é definida como a constelação de neo-auditórios

relevantes, um processo sócio-histórico que parte do consenso local-imediato

mínimo sobre pressupostos de um discurso argumentativo que permita identificar o

colonialismo como forma de ignorância e avança à medida que a argumentação é

mais solidária (2000:109).

E a tópica social parte da idéia de que existem tantos sensos comuns

quantos são os domínios tópicos. As comunidades são relações sociais e os

auditórios são vistos como enquadramentos argumentativos dessas relações,

existentes numa dada formação social. Nas formações sociais capitalistas,

Boaventura encontra seis domínios tópicos: o espaço doméstico, o da produção, o

do mercado, o da comunidade, o da cidadania e o mundial. Como não pode haver

emancipação sem uma tópica de emancipação (2000:110), propõe-se assim, para

cada domínio tópico respectivamente a seguinte superação: da tópica patriarcal

para a da libertação da mulher, da tópica capitalista para a eco-socialista, da tópica

do consumismo para a das necessidades fundamentais, da tópica chauvinista para

a cosmopolita, da tópica democrática fraca para a forte e, por fim, da tópica do

Norte para a do Sul. Para Boaventura, "a invenção social de um novo

conhecimento emancipatório é (...) uma das condições essenciais para romper

com a auto-reprodução do capitalismo" (2000:117). Nesse sentido, ele buscará em

várias oportunidades desenvolver esse projeto de criação de novos sensos

comuns emancipatórios, que se caracterizam sobretudo pelo caráter solidário,

participativo e reencantado.

39
Para concluir esse estudo histórico, seria interessante voltar ao debate entre

Perelman e Boaventura, no sentido de procurar tomar uma posição em relação a

essas duas propostas. Apesar da inclusão de aspectos sociológicos e

epistemológicos na problemática retórica constituir uma postura interessante e

pertinente, não se vê em Boaventura uma concatenação que seria ideal desses

elementos. Além disso, ressaltar o aspecto social da prática argumentativa

acarreta uma série de problemas lógicos que deveriam ser tratados

detalhadamente, como a questão da validade ou eficácia da argumentação. Talvez

por faltar esse estudo, Boaventura acaba assumindo uma distinção que do ponto

de vista lógico é bastante perigosa, que é aquela entre persuasão e

convencimento. Boaventura acusa a nova retórica de ser técnica exatamente

porque não consegue adjudicar entre esses dois pólos. De um lado, a adesão

baseada na motivação para agir e, de outro, a adesão baseada na avaliação das

razões para agir. Boaventura privilegia o convencimento e acentua as razões em

detrimento dos resultados. Como foi ressaltado, diferenciar persuasão de

convencimento de maneira rígida constituiu um resquício vindo desde a Grécia

Antiga, que opunha os sofistas dos filósofos, e assenta-se numa concepção

ingênua da razão, como procurar-se-á mostrar no próximo capítulo, consagrado à

retórica filosófica.

Uma vez que o objetivo desse estudo está voltado para a questão da

racionalidade, privilegiar-se-á a proposta de Perelman relativa à retórica. Não se

quer com isso dizer que a "novíssima retórica" errou em todas as suas críticas

dirigidas contra a "nova retórica" e que a inclusão do aspecto sociológico e

epistemológico não são interessantes para a problemática retórica. Ao contrário,

40
constituem um campo fértil e que deve ser explorado. Porém, ater-se-á aqui a

questão da retórica enquanto uma postura filosófica para se pensar a racionalidade

e o direito. Alongar mais suas relações com a sociologia e a epistemologia seria

alargar em excesso o campo o ser tratado e desviaria o texto.

4. RETÓRICA FILOSÓFICA: BUSCA DE UMA NOVA RACIONALIDADE

Assiste-se, há quarenta anos, a um lento renascimento da importância da

retórica. A perspectiva retórica permite compreender melhor o próprio

empreendimento filosófico, definindo-o consoante uma racionalidade que

ultrapassa a idéia de verdade, sendo o apelo à razão compreendido como um

discurso dirigido a um auditório.

Quando as premissas não são evidentes em si, mas apenas parecem

verdadeiras a um auditório particular, aparentemente caímos num relativismo ("a

cada um sua verdade"). Mas a objeção de que a retórica não está a serviço da

"verdade" repousa sobre uma idéia falaciosa da verdade, na qual seria verdadeiro

aquilo que espelha de alguma maneira a realidade. A retórica filosófica procura

explicar o que se tem por racional, verdadeiro e objetivo sem contudo recorrer a

uma concepção ingênua da razão, como uma espécie de faculdade divina

partilhada por todo ser humano. Reboul chega a dizer que "à ilusão infantil opomos

a razão adulta" (1998:230). Nesse sentido, chamar tal perspectiva de relativista

não auxilia em nada a prática filosófica, mas ao contrário procura pensar a filosofia

a partir de clivagens eternas: de um lado verdades eternas e de outro relativismo.

Tais posturas partem da idéia de que a filosofia desde sempre deve ser analisada

41
necessariamente como uma oscilação entre dois pólos eternos e, independente de

qualquer pesquisa, não é possível elaborar novos conceitos que deixem

impertinente tal cisão. Nesse sentido, vale lembrar Heidegger que, quando

elaborou sua crítica ao cético e à postulação de verdades eternas, alertou para o

perigo das fissuras filosóficas. Sua ontologia existencial do Dasein repousava

numa via nova, que não se deixava classificar como antropológica ou subjetiva

idealista. Dizia Heidegger:

"Pode-se chamar isso uma filosofia antropocêntrica ou idealista subjetivista. Mas


tais etiquetas não dizem nada quanto à atividade filosófica, elas são destinadas
apenas a fazer valer sem fundamento tal ou qual ponto de vista, ou ainda a
estigmatizá-lo demagogicamente de maneira também completamente arbitrária" 18
(Heidegger, § 18, p.269).

O alerta de Heidegger é importante aqui para se pensar a retórica filosófica

que, embora esteja bastante distante da ontologia heideggeriana, também procura

novos conceitos e rompe com antigas cisões filosóficas. É claro que existe o risco

de cair-se num relativismo, mas para que tal crítica seja realizada, deve-se

esclarecer a partir de onde ela é feita. Costuma-se criticar o pluralismo filosófico a

partir de um ponto de vista divino, de alguém que possa julgar todos os auditórios

possíveis sem partir de nenhum. Infelizmente, não dispomos desse ponto de vista

privilegiado, o que nos convida a uma prática filosófica mais tolerante, baseada no

discurso não constringente. Pode-se dizer que os auditórios se julgam uns aos

outros e que procurar julgar a todos os auditórios é querer ser Deus, ou seja, uma

tarefa exorbitante e ilusória. O esforço da retórica filosófica estaria exatamente em

18
No francês: "On peut nommer cela une philosophie ou idéaliste subjectiviste. Mais de telles étiquettes ne
disent rien quant à l'activité philosophique, elles ne sont destinées qu'à faire valoir sans fondement tel ou tel
point de vue, ou encore à le stigmatiser démagogiquement de manière tout aussi arbitraire".

42
estudar a racionalidade sem partir de uma idealização divina da razão e sem

contudo cair num relativismo.

Para realizar o estudo da retórica filosófica enquanto busca de uma nova

racionalidade, procurar-se-á num primeiro momento analisar a origem da prática

filosófica como atividade mítica e depois avaliar como se deu a passagem para a

dialética, enquanto método da argumentação filosófica. Após esse estudo dos

antecedentes históricos, procurar-se-á explicitar em que consiste a teoria da

argumentação e avaliar algumas de suas propostas contemporâneas.

4.1. Origem da filosofia 19

A filosofia surge de uma disposição retórica associada a um treinamento

dialético e um estímulo agonístico. Ela é fruto da sabedoria grega e tem sua

origem no culto délfico. Para entender o impulso que deu origem à filosofia, é

preciso investigar a relação entre o delírio e o mito e o delírio e a sabedoria como

matrizes do pensamento filosófico. A princípio, a sabedoria estava relacionada com

a exaltação religiosa e tinha um caráter agônico. Enigmas eram propostos aos

homens pelos deuses (Apolo20) ou através do oráculo. Ao se colocar um enigma, o

agonismo é evidente, pois a derrota significa a morte. Nesse sentido, quando

Édipo vence a Esfinge, conseguindo desvendar o enigma proposto, tal façanha

19
Esse estudo baseia-se sobretudo em Colli (1996).
20
Apolo simboliza o olho penetrante, seu culto celebra a sabedoria. Contrário a Nietzsche, afirma Colli que "a
esfera do conhecimento e da sabedoria liga-se com muito mais naturalidade a Apolo do que a Dionísio. Falar
de Dionísio como o deus do conhecimento e da verdade, entendidos estritamente como intuições de uma
angústia radical, significa pressupor na Grécia um Schopenhauer que lá não existiu" (1996:13).

43
significou a morte do caráter oracular e divino dos problemas propostos. O debate

desviou-se da relação Deus-homem para a relação homem-homem.

Também o labirinto, na mitologia grega, remete a essa idéia do desafio

divino. Como no enigma, o labirinto é um jogo que se transforma num trágico

desafio, em perigo mortal do qual apenas o sábio ou o herói podem se salvar. O

labirinto é uma armadilha, uma espécie de confusão geométrica, racional, tal como

um problema matemático de enormes proporções, dentro do qual o homem se

perde. Segundo Colli:

"A forma geométrica do Labirinto, com sua insondável complexidade, inventada


por um jogo bizarro e perverso do intelecto, alude a uma perdição, a um perigo
mortal que insidia o homem, quando este se arrisca a enfrentar o deus. (...) O
conflito deus-homem, que na visibilidade é representado simbolicamente pelo
Labirinto, na sua transposição interior e abstrata encontra seu símbolo no enigma."
(1996:23).

Aos poucos o fundo religioso desaparece e emerge o caráter humano. A

razão é humanizada pela dialética, que se caracteriza por ser um discurso

autônomo que tem seu lugar na esfera pública. "Essa prática de discussão foi o

berço da razão em geral, da disciplina lógica, de todo o refinamento discursivo"

(Colli, 1996:65). O agonismo entretanto continua presente, mas na dialética o

enigma é humanizado (relação homem X homem). Também o filósofo é colocado

frente a um desafio que precisa ser vencido. Segundo Colli:

"A dialética nasce no terreno do agonismo. Quando o fundo religioso se afastou e


o impulso cognoscitivo não precisa mais ser estimulado por um desafio do deus,
quando uma disputa pelo conhecimento entre os homens não mais requer que
estes sejam advinhos, eis que aparece um agonismo apenas humano." (1996:63).

Enquanto a razão existente na exaltação religiosa versava sobre um objeto

externo à discussão mesma, existente numa outra esfera privilegiada, com o

44
processo de humanização da razão esta transforma-se num discurso autônomo,

que se dá na esfera pública. A retórica surge nesse processo de humanização da

razão como uma variante degenerada da dialética. A retórica preserva o caráter

agônico, porém o feixe dialético tradicional entre os dois adversários desaparece e

aparece no lugar desse único adversário um auditório, que para ser conquistado

deve ser também analisado quanto ao seu caráter emocional. "Dramaticidade,

dialética, retórica, visão teorética e escrita constituem os elementos básicos do

surgimento da filosofia e do conhecimento científico" (Paviani, 1993:52). Nesse

sentido, Górgias vai dizer que não existe mais sábio, mas apenas sofistas,

assumindo assim explicitamente o niilismo teórico.

A distinção entre sofia e filosofia é importante para clarear como se deu o

surgimento da segunda e o descrédito da primeira. A sofia está relacionada à

exaltação religiosa, a alguma forma de intuição privilegiada. Já a filosofia relaciona-

se ao discurso. Platão diferenciou a figura do filósofo daquela do sábio. A sofia é

divina e o sábio é um homem divino. Jamais Sócrates se disse sábio, e seu mérito

estaria em ter vivido filosofando, ou seja, examinando a si mesmo e aos outros,

interrogando, refutando, dialogando e colocando à prova. A grande sabedoria

humana consistiria em saber que é preciso filosofar. Curiosamente a tradição leu a

filosofia platônica como um saber equivalente em tudo à sofia. Segundo Dixsaut:

"Tudo aquilo que nos diálogos constituíam a diferença da filosofia entrou dentro do
campo da sofia e virou objeto para uma sofia. (...) Depois de Platão, o nome
(filósofo) permanecerá, designando exatamente aquilo que antes dele, num
sentido ou noutro, era chamado sofia"21 (1985:56).

21
No original: "Tout ce qui dans les Dialogues constitue la différence de la philosophia est entré dans le champ
de la sophia, est devenue objet pour une sophia. (...) Après Platon, le nom restera, désignant très exactement ce
qui avant lui, dans un sens ou dans un autre, s'était appelé sophia."

45
Ressalta-se também como importante a passagem da tradição oral para a

expressão escrita. Platão observou bem como a filosofia escrita tinha um caráter

dúbio, pois significava também a morte do pensamento vivo ao transformar os

debates filosóficos em algo fixo, o que contrariava a dinâmica mesma do logos.

Talvez por isso Platão tenha escrito sob a forma de diálogos, procurando preservar

ao máximo o movimento inerente ao logos. O ensino na Academia era

essencialmente oral e paralelo aos textos, destinados ao grande público, parece

sustentável que Platão tivesse desenvolvido as "teorias não-escritas", de caráter

esotérico e restrito apenas aos iniciados.

Querer apartar completamente Platão do misticismo, lendo-o como apenas

intelectualista, é mascarar grande parte do conteúdo de seus diálogos e procurar,

como fizeram os modernos, racionalizar os gregos. Na Grécia Antiga existiam ecos

múltiplos de bruxaria, cultos primitivos e técnicas de ilusão, e a busca da verdade

filosófica constituía algo novo, o chamado "milagre grego", mas que não existia

completamente dissociado dos demais elementos, sobretudo antes de Aristóteles

ter definido de maneira mais clara o estatuto mesmo da filosofia. As forças que

entram na atividade filosófica assemelham-se àquelas presentes nos oráculos e a

distinção entre essas atividades não se deu facilmente. Aliás, é de se questionar

se ainda hoje o caráter de iniciação e encantamento estão realmente apartados da

prática filosófica. O que permanece do mito na filosofia torna-se uma presença

desafiadora.

Nesse intento de buscar na filosofia uma prática distinta da exaltação

religiosa, Platão teria sido o primeiro a colocar claramente o problema. De um lado,

tinha-se o oráculo, o discurso mítico e de outro a sofística, mera técnica retórica de

46
persuasão. Com o oráculo estava a verdade, porém em seu aspecto intuitivo, não

discursivo. Com os sofistas estava a arte do discurso, porém sem

comprometimento com a verdade. Em seus diálogos de juventude essa questão

ainda não se colocava claramente, somente após o Fedro que a exigência de uma

retórica e de uma filosofia eficazes juntaram-se à aspiração em direção à verdade

e à sua busca. Segundo Brès:

"Eros é de uma só vez feiticeiro, encantador, iniciador aos mistérios filosóficos da


verdade, da autenticidade e da felicidade. Uma vez efetuada a desmistificação,
precisava-se recorrer a novos meios que vão talvez transformar a atitude do
filósofo em relação à busca da verdade"22 (1968:359).

Platão encontrou nos pitagóricos, que preservavam ainda o caráter oracular,

a possibilidade de transpor suas teorias a partir do logos discursivo, que seria

agora comprometido com a verdade. Esse discurso respeitava um método próprio,

a dialética ou boa retórica, e nesse espaço intermediário Platão ergueu a filosofia.

"A dialética é a única ciência digna desse nome. Instaurando um uso diferente do

logos, sabendo interrogar e responder, ela sabe também que não há outra

modalidade de saber" (Dixsaut, 1985:66).

Resumindo a transição do enigma divino à filosofia tem-se, primeiramente, a

relação Deus-homem, num segundo momento tem-se a relação advinho-advinho,

em que se preserva o caráter oracular do debate (possível apenas entre os

"iniciados" na sofia) e, por fim, a relação homem-homem, através de um logos

22
No original: "Erôs est à la fois le sorcier, l'enchanteur, l'initiateur aux mystères philosophiques de la vérité,
de l'authenticité et du bonheur. Une fois effectuée la démystification, il faudra avoir recours à de nouveaux
moyens qui vont peut-être transformer l'attitude du philosophe envers la recherche de la vérié."

47
discursivo (dialética). Numa linha tem-se: exaltação religiosa, enigma oracular,

sabedoria e filosofia.

4.2. A dialética

A dialética é a arte do discurso vivo, do discurso a dois. "O diálogo é

agressivo, tem em mira uma vitória que não é predeterminada: é uma batalha de

silogismos" (Barthes, 1975:172). O processo é binário (sim ou não) e reúnem-se

testemunhos contraditórios. "Tudo é codificado, ritualizado num manual que

regulamenta minuciosamente a disputatio, para impedir a discussão de desviar-se"

(Barthes, 1975:173). Procura-se levar o oponente a se contradizer, para assim

dominá-lo, eliminá-lo e anulá-lo. Cálicles, no diálogo Górgias, prefere calar-se a

contradizer-se. O silogismo é a arma e ambos combatentes são carrascos que

tentam castrar-se mutuamente. A dialética não é nem moral nem imoral, mas

apenas um jogo. Como todo jogo, existem regras que devem ser preservadas, e

foram exatamente essas regras que Aristóteles insistiu que diferenciava a dialética

da sofística, enquanto mera trapaça.

Reboul define a dialética como "um jogo cujo objetivo consiste em provar ou

refutar uma tese respeitando-se as regras do raciocínio" (1998:32). Entretanto, no

uso filosófico da dialética, abandona-se o mero jogo tendo em vista o cumprimento

de um papel epistemológico. O filósofo não joga apenas, mas busca se utilizar da

dialética para buscar a verdade. Segundo Reboul:

48
"no uso filosófico, têm-se em mente todas as objeções possíveis, ainda que estas
jamais tenham sido formuladas nem sejam formuláveis. O filósofo está diante de
um adversário que renasce a cada instante, pois está sempre insatisfeito: ele
mesmo" (1998:33).

Relacionando a retórica com a dialética, pode-se dizer que essas duas

disciplinas se entrecruzam, se opõem e se identificam às vezes. É muito difícil

precisar em que consistiu exatamente essas disciplinas, tendo em vista que em

suas origens temos as mais variadas concepções. As opiniões dos especialistas

contemporâneos refletem essa confusão e tornam uma descrição ainda mais

complicada. Nesse estudo, adota-se a visão partilhada pela maioria dos autores

analisados23, na qual a retórica é uma técnica do discurso que busca o

convencimento e a persuasão podendo utilizar a dialética como instrumento

intelectual, enquanto a dialética é um jogo intelectual que, dentre as suas possíveis

aplicações, comporta a retórica.

O esquema da dialética funciona com dois oradores: o defensor e o

atacante. O atacante é aquele que propõe a pergunta inicial e dirige toda a

discussão. O atacante tem uma grande vantagem a seu favor, sendo considerado

o perfeito dialético, aquele que lança a flecha e espera o momento em que ela

acertará seu adversário (a violência protelada de Apolo). Ao defensor cabe dar a

resposta que servirá de tese da discussão e também a ingrata função de tentar

escapar das tentativas do atacante em contradizê-lo.

Para ilustrar um discurso dialético, expõe-se o seguinte debate:

23
Cf. Perelman (1970,1997), Reboul (1998), Barthes (1975). Contrário a opinião majoritária temos Plebe e
Emanuele (1992), para quem "a dialética se caracteriza essencialmente pela sua natureza colaborativa, e a
colaboração é o oposto da competição. Na dialética, uma determinada tese se contrapõe às outras não, como
na retórica, para vencê-las e afirmar a sua superioridade, mas para, juntas, procurar superar o antagonismo
numa nova visão, que tenha se possível a concordância de todos" (Plebe & Emanuele, 1992:31-32).

49
Atacante: o homem é um animal sensato?

Defensor: Não.

Atacante: o homem é um animal racional?

Defensor: Sim.

Atacante: Aquele que é racional é também sensato?

Defensor: Sim.

Atacante: O homem é então um animal sensato?

Defensor: Sim. (CONTRADIÇÃO)

A argumentação dialética teve suas implicações ignoradas ao longo da

trajetória da filosofia ocidental, sendo considerada um saber menor, relegada ao

plano dos sofismas, identificada a técnicas de persuasão sem compromisso ético.

Apesar dessa forte tendência anti-retórica da filosofia ocidental, mais do que

nunca, o conceito de dialética da antigüidade se coloca atual. A pretensão de

elaborar uma lógica dos julgamentos de valor sem partir da lógica moderna (que

parte da natureza do raciocínio) reenvia vários pensadores contemporâneos aos

antigos tratados de retórica e aos tópicos. Quando Toulmin critica a concepção

geométrica de validade da lógica ou quando Perelman propõe a “nova retórica”

incluindo os juízos de valor na argumentação racional, vemos como a lógica

dialética fundada na arte do debate pode servir de um instrumental interessante

para repensarmos a racionalidade. A maior contribuição que a dialética clássica

deu para as teorias da argumentação está exatamente na ampliação da

racionalidade para além do raciocínio puramente formal. Ainda assim, não

devemos esquecer as limitações da dialética clássica, procurando compreender as

situações discursivas da atualidade, que se dão em sua maioria entre um orador e

50
um auditório e de forma escrita. "A disputatio desapareceu, mas o problema das

regras do jogo verbal permanece: como é que argumentamos hoje?" (Barthes,

1975:173). Unicamente uma análise do discurso intelectual poderá responder isso.

Nesse sentido desenvolveram-se contemporaneamente várias pesquisas no

sentido de uma teoria da argumentação e análise do discurso.

4.3. Teoria da argumentação: propostas contemporâneas

A teoria da argumentação consistiu numa grande revolução para a

compreensão de nossa racionalidade e o estudo da retórica é essencial para

podermos avaliar a importância dos argumentos. A concepção de racionalidade é o

ponto central de qualquer teoria da argumentação. Partindo de uma concepção

mais ampla da argumentação racional, as diferentes teorias da argumentação

contemporânea diferem exatamente na concepção de racionalidade, preservando,

contudo, algumas características comuns, ou seja, a compreensão do discurso

como atividade social, que envolve opiniões e que se dirige a um auditório. Para

elaborar um quadro dessas teorias, Toulmin (1976) fez uma distinção entre

diferentes concepções de racionalidade a partir de três abordagens distintas: a

geométrica, a crítica e a antropológica.

A abordagem geométrica caracteriza-se pelo apelo à evidência, que

garantiria premissas irrefutáveis, pela aplicação do método dedutivo típico da

matemática, que permitiria inferências válidas, e pelo caráter universal e eterno de

seus resultados, que se dão independentemente da cultura e da época histórica. A

tradição moderna da filosofia é o maior exemplo de tal abordagem. Descartes, ao

51
buscar com rigor matemático as conseqüências que se impunham a partir do

critério de evidência racional, constitui um grande marco nessa abordagem

filosófica. O método para bem conduzir a razão confia somente no que é evidente

ou redutível à evidência. Essa exigência de progredir de evidência em evidência,

de certeza em certeza, ultrapassou a modernidade e levou progressivamente ao

neopositivismo.

Quanto à abordagem crítica, sua principal característica está na

preocupação de estudar as condições de possibilidade da racionalidade. A partir

de nossa prática argumentativa, dos nossos usos com sentido da linguagem, seria

possível elaborar uma teoria que desse conta das condições de possibilidade de

tal prática. Tal estudo assemelha-se em grande medida a uma atitude

transcendentalista nos moldes kantianos. Parte-se de um estudo analítico

regressivo e chega-se às condições da racionalidade. Contemporaneamente,

destacam-se nessa perspectiva Apel e Habermas.

Já a abordagem antropológica caracteriza-se por focalizar a prática social.

Tal abordagem iniciou-se com os empiristas e sofreu grande impulso com os

avanços dos estudos antropológicos e da filosofia da linguagem. Nessa

perspectiva estão grande parte da filosofia pós-nietzscheana e pós-heideggeriana,

incluindo praticamente todas as correntes pós-modernas. Rorty, por exemplo,

entende que devemos, como fizeram Kuhn e o segundo Wittgenstein, voltar nossa

atenção para o contexto social da justificação. O conhecimento é prática social e

não é possível uma meta-prática. A atitude transcendentalista é suspeita e

desnecessária, sendo suficiente apenas uma antropologia cultural em seu sentido

lato, que inclua a história intelectual.

52
Essa classificação, apesar de elucidar bem várias perspectivas

argumentativas contemporaneas e servir para mostrar a diferença entre uma

abordagem crítica e antropológica, apresenta também limitações. Propostas como

a de Perelman apontam para uma espécie de via intermediária entre a abordagem

crítica e a antropológica. Também a própria proposta de Toulmin não pode ser

descrita apenas como crítica. De qualquer maneira, entende-se que, na falta de

uma melhor taxonomia, a de Toulmin ajuda ao menos a situar melhor os

posicionamentos atuais.

Procurar-se-á expor em seguida as propostas de Toulmin, Apel, Habermas,

Rorty e Perelman relativas à argumentação, procurando ressaltar sobretudo a

questão da racionalidade.

4.3.1. Toulmin

As teses centrais de Toulmin são de que toda argumentação é racional em

princípio e que os critérios de correção de um argumento dependem do assunto

tratado. Toulmin realiza uma crítica radical à lógica formal, dizendo ser ela

irrelevante para a prática e, partindo da via aberta pelo segundo Wittgenstein24, dá

primazia à linguagem natural.

Toulmin realiza um estudo descritivo, analisando a maneira como os

homens efetivamente pensam, argumentam e inferem. Ele propõe deslocar o

centro da atenção da teoria lógica para a prática lógica (working logic),

24
Para uma análise da filosofia de Toulmin dentro das correntes analíticas e sua comparação com Wittgenstein,
ver Camacho (1995).

53
contrapondo o modelo da geometria ao modelo da jurisprudência. Em sua

concepção, a lógica é jurisprudência generalizada, com um processo racional, no

qual o bom argumento é aquele que resiste às críticas do Tribunal da Razão. O

senso comum é o respaldo final dos argumentos diante de qualquer tipo de

audiência (idéia de comunidade racional). Isso é possível, pois, para Toulmin,

todos os seres humanos têm necessidades semelhantes e vivem vidas

semelhantes, e assim compartilham fundamentos de que necessitam para usar e

compreender métodos semelhantes de raciocínio.

O argumento, enquanto interação humana, liga-se à experiência prática. O

raciocínio muda conforme as diferentes situações em que se argumenta,

conservando, contudo, a mesma estrutura dos argumentos (criteria) e a força dos

argumentos. Ressalta-se, assim, na argumentação um campo invariante (field-

invariant) e um campo dependente (field-dependent). Quanto aos diferentes

campos da argumentação, Toulmin divide cinco âmbitos ou empresas racionais, o

do direito, da moral, da ciência, dos negócios e da arte.

A principal contribuição de Toulmin para a teoria da argumentação está em

seu modelo argumentativo, que não diferencia apenas as premissas das

conclusões, mas relaciona vários elementos (a pretensão ou afirmação, a garantia,

o respaldo ou suporte, os dados, o qualificador modal e a refutação). Entretanto,

várias foram as críticas posteriores dirigidas à sua teoria. Pode-se dizer que ele

não agradou nem aos lógicos nem aos teóricos da argumentação. Habermas

critica sua separação dos âmbitos racionais que é feita segundo critérios

institucionais, separando-se funcionalmente (sociologicamente), e não em termos

de lógica da argumentação (cf. Atienza, 2000:165). Eemeren (1987) critica sua

54
noção do argumento válido, que é ao mesmo tempo formal (validade, logical

sense) e retórico (aceitável, logical concept of sound). Toulmin confunde-se e

sofre sérias conseqüências devido a essa ambiguidade.

4.3.2. Apel

Apel constrói sua pragmática transcendental sobre dois pontos de partida: o

da crítica do sentido, elaborada por Heidegger e Wittgenstein, e o das condições

de validade, vindas de Kant e Peirce. Apel aproveita o argumento transcendental

kantiano, incorporando as inovações da semiótica. No lugar do “eu penso”, a

unidade sintética da apercepção da filosofia kantiana, Apel coloca o “nós

argumentamos”, a unidade sintética da comunicação, que é a comunidade ideal

desta e se dá a priori. Essa comunidade oferece as condições transcendentais de

possibilidade de acordo intersubjetivo de sentido e validade e representa o que

pode ser conhecido por uma comunidade ideal. O individualismo metodológico

kantiano é superado pelo socialismo lógico de Peirce25.

Para sustentar essa posição, Apel utiliza como argumento a contradição

performativa, que caracteriza-se por ser um argumento transcendental e

irrefutável. Ela é uma contradição no desempenho. Nela não há inferência, parte-

se da linguagem como um fato irrefutável e conclui-se pela comunidade ideal. Para

Apel, o fato lingüístico da argumentação como ponto de partida intersubjetivo é

incontestável. Ele busca é as condições de sentido das argumentações, que serão

25
Sobre essa relação entre Kant, Apel e a semiótica, ver Cortina (1995).

55
encontradas na Comunidade Ideal de Comunicação, que não pode ser negada

sem que se negue também o sentido e caia-se em contradição.

Apel (2000b) rejeita o consenso fático como a única regra possível de

comunicação. Conforme reconhece o próprio autor, Apel pensa com Wittgenstein

contra Wittgenstein. Partindo da teoria dos jogos de linguagem, ele conclui por

uma fundamentação última do saber. Toda forma de vida é capaz de transcender-

se e ampliar-se mediante auto-reflexão no sentido filosófico. O elemento vital dos

argumentos filosóficos é um jogo transcendental de linguagem. Os jogos de

linguagem pressupõem um jogo de linguagem último, filosófico, através do qual

todos são mutualmente comunicáveis e onde se pode falar desde o princípio com

pretensão de validade universal sobre todos os jogos de linguagem. Tal jogo

transcendental de linguagem é a meta-instituição de todas as instituições humanas

possíveis. Para Apel, não é possível negar isso sem que se caia em auto-

contradição. O próprio Wittgenstein ao falar em semelhanças de família teria

incidido nesse erro. A autoaplicação do princípio do falibilismo conduziu a um

paradoxo semelhante ao do mentiroso. A questão decisiva para Apel seria buscar

as condições de possibilidade não criticáveis de uma crítica e autocrítica filosóficas

válidas intersubjetivamente (1983:285).

Para Apel, o abandono da metafísica tradicional feita após o falibilismo não

envolve o abandono da fundamentação última. A dúvida universal do falibilismo

radical não tem sentido. O falibilismo pressupõe o princípio do discurso. Qualquer

tentativa de contestar o a priori argumentativo conduz à autocontradição

performativa, e além da contradição, leva a uma metafísica dogmática, uma vez

que se abstém da pergunta pelas condições de sua validade. A possibilidade de

56
fundamentação das normas éticas com ajuda das teorias dos speech acts e da

competência comunicativa só é viável, no entender de Apel, se é possível

descobrir nas regras pragmáticas universais da comunicação um núcleo não

empírico, normativo transcendental. Tem-se assim uma rigorosa filosofia

transcendental de caráter ético. Ainda que em outros termos, Apel mantém a

distinção platônica entre psicagogia e logosofia, ao pregar a necessidade de se

separar a retórica da convicção da retórica do mero convencimento e de vincular a

primeira à lógica filosófica da argumentação, no âmbito de uma pragmática

transcendental do discurso (2000a:74-75).

Apel afirma que mediante uma reflexão sobre o ato argumentativo

compreendem-se as evidências performativas do nosso saber de ação

argumentativa. Apel chama de falácia abstrativa a eliminação da dimensão

pragmático-transcendental da linguagem. Tendo em conta essa dimensão, a

evidência é uma possibilidade perfeitamente aceitável, e não pode ser considerada

como uma interrupção da fundamentação (1983:288). O que não são aceitáveis

são evidências independentes dos usos lingüísticos e atividades dos sujeitos, ou

seja, um mero sentimento de evidência. Tal evidência diferencia-se assim tanto da

dedução lógica de proposições a partir de proposições como da intuição de uma

consciência. A evidência da consciência, como a de Descartes e Husserl, é

insuficiente, pois negligencia a função mediadora da linguagem. Reabilita-se a

teoria da verdade-evidência, como certeza, apoiada na crítica que a lógica da

linguagem e a hermenêutica dirigem à fenomenologia (1986:103). Em princípio, as

certezas da reflexão podem ser expostas a uma crítica e correção, mas disso não

se deve concluir que perdem o caráter de evidências apodícticas e certezas

57
infalíveis, já que se pode mostrar a priori que esta tentativa de crítica e correção

pressupõe as pressuposições postas em questão.

Habermas critica Apel por cair numa forma de pensamento anterior à virada

lingüística. Apel teria excluído a necessidade de uma teoria consensual da verdade

pois, se temos uma evidência direta e infalível, o consenso torna-se supérfluo. Já

para Apel (1990) é Habermas quem cai em incoerência lógica ao negar a

fundamentação última, e dessa maneira perde a capacidade de fundar uma teoria

crítica.

Já Margutti acusa Apel de cometer a falácia da generalização apressada,

pois:

"como, a partir da análise das condições de possibilidade do argumentar racional


em um momento histórico-cultural particular, estabelecer as condições universais
a priori da possibilidade do argumentar racional cuja validade vai muito além do
momento considerado?" (1995:23)

Negar a evidência do a priori argumentativo não implica em autocontradição,

pois, conforme Margutti, a afirmação da contingência não pressupõe aquilo que

nega. Apel confunde os níveis de linguagem e tem por garantido o a priori

argumentativo antes mesmo de prová-lo (1995:26)26. Apel generalizou

inadequadamente o princípio wittgensteiniano de que a dúvida pressupõe certeza.

Tal princípio valia no interior de uma forma de vida, onde é possível duvidar de

tudo em porções determinadas, cada hora partindo de algum tipo de evidência,

mas não se pode duvidar de tudo de uma só vez. O falibilismo sempre se exerce

26
À luz do pensamento perelmaniano, poderíamos classificar Apel de "fanático", pois "le fanatique est celui
qui, adhérant à une thèse contestée, et dont la preuve indiscutable ne peut être fournie, refuse néanmois
d'envisager la possibilité de la soumettre à une libre discussion, et par conséquent refuse les conditions
préalables qui permettraient, sur ce point, l'exercice de l'argumentation" (1970:82).

58
de maneira parcial, em combinações múltiplas. Nega-se a possibilidade de um

ponto privilegiado de certeza, condição transcendental de toda dúvida possível.

Apel atribui validade universal a priori ao princípio de que a dúvida pressupõe a

certeza, dando valor universal a uma regra local. Não há nada em Apel que

autorize tal salto. Segundo Margutti, "com base na absolutização do jogo da dúvida

filosófica, Apel atinge o equívoco culminante. As pressuposições deste jogo são

também absolutizadas" (1995:25). Dessa forma é postulada a comunidade ideal de

argumentação como fundamento transcendental.

Quanto à tentativa de fundamentação última não-metafísica, Apel ainda se

filia de alguma forma, à metafísica, apesar de afirmar o contrário. Ele apenas

deslocou a metafísica kantiana em direção à prática social, mas carrega ainda

consigo a exigência de uma entidade ideal, universal e a priori da razão

argumentativa (a atitude transcendental). A argumentação envolve pluralidade de

atividades análogas que não constituem algo como a essência da argumentação.

É mais atraente considerar contingentes as condições de validade da

argumentação e tal afirmação não implica uma metafísica dogmática, pois não

oferece uma resposta radicalmente fundante (Margutti, 1995:20).

4.3.3. Habermas

De maneira resumida, pode-se dizer que a teoria habermasiana é um misto

da teoria da racionalidade e da sociedade. Quatro são suas principais influências:

a teoria crítica (Marx via Adorno), a hermenêutica da comunicação (Gadamer), a

59
contraposição entre neurose e ideologia (Freud) e, por fim, a teoria dos atos de

fala (Austin, Searle e Wittgenstein).

Habermas entende que a verdade tem a ver com procedimentos capazes de

estabelecer um consenso fundado. Na teoria consensual da verdade, a afirmação

é válida num processo de argumentação discursiva, e não em função de uma

correspondência à realidade. O uso comunicativo é o modo originário da linguagem

e para se chegar a um consenso faz-se desnecessária qualquer outra estratégia

que não a força das razões e dos argumentos (Gustin, 1999:176). Habermas

preocupa-se em delimitar as condições de uma tomada de decisão racional e

especificar as condições para realizar-se tal consenso, propondo critérios

universais da razão que têm por base a racionalidade comunicativa.

Habermas visa um alargamento da razão, opondo-se à concepção

cartesiana ou kantiana de racionalidade, que postulavam um ser pensante

monológico, solitário e auto-suficiente. Abandonam-se os grandes sistemas

filosóficos baseados em fundamentos indubitáveis. A racionalidade tem menos a

ver com o conhecimento como tal do que com o modo como se utiliza o

conhecimento. A razão está assim conectada ao processo de justificação e

fundamentação entre as pessoas implicadas. A racionalidade cognitiva deve ser

complementada com a comunicativa. A racionalidade passa a pressupor a

comunicação.

Ao analisar o locutor, participante de um processo comunicativo, Habermas

observa que ele levanta pretensões de validade que podem estar conectadas à

esfera da objetividade material, à esfera social ou da subjetividade. Quando não há

consenso imediato, torna-se necessário um processo argumentativo

60
(Gustin,1999:170). A racionalidade define-se pela capacidade dos locutores em

alcançar um saber falível ou justificável. Quando as pretensões de validade se

fazem explícitas, temos o processo de argumentação. A argumentação

caracteriza-se por ser o tribunal de apelação da racionalidade inerente à

comunicação cotidiana. É o que faz possível, sem recorrer à coação, continuar a

ação comunicativa quando surgem disputas. Assim, o conceito de racionalidade

relaciona-se a um problema de pretensões de validade que deve ser elucidado por

uma teoria da argumentação (Gustin, 1999:171).

Em Habermas (1987:13), a teoria da atividade comunicativa não é uma

metateoria, e não deve ser confundida com a busca, por outros meios, da teoria do

conhecimento. A pragmática universal analisa as condições gerais da competência

e da performance, tendo por objeto a reconstrução de um sistema de regras

mediante as quais o locutor pode estabelecer situações de consenso. Nesse

estudo, assumem-se as idéias fundamentais de Austin e Searle. Para Habermas,

essa reconstrução não coincide com a tradicional reflexão transcendental, que em

Kant e seus sucessores recebeu a forma de uma fundamentação última.

Habermas inclina-se em direção a uma posição defendida pela filosofia analítica,

que consiste numa interpretação minimalista ou débil do significado de

transcendental. Na interpretação de Ruiz de Azúa (1992:136-137), a reconstrução

pragmática universal renuncia ao apriorismo forte de Kant, enquanto investigação

da constituição da experiência. A demonstração do a priori é substituída pela

investigação transcendental das condições de justificação argumentativa das

pretensões de validade, que remetem, ao menos implicitamente, a uma justificação

discursiva. Habermas abandona o termo transcendental por dois motivos: primeiro,

61
porque as estruturas da comunicação devem ser estudadas a partir do aspecto

consensual e não da experiência, que é secundária; segundo, porque tal termo

oculta a ruptura com o apriorismo kantiano.

Para Habermas, a argumentação não pode alcançar uma fundamentação

última e tal ausência é irrelevante. Aqueles que mantêm tal exigência, como Apel,

no entender de Habermas ainda não se liberaram da filosofia da consciência. A

necessidade de uma fundamentação última é incoerente com o paradigma da

filosofia da linguagem. Uma teoria da argumentação ou da verdade deve também

submeter-se de novo ao marco do jogo argumentativo. Não há nenhum

metadiscurso, capaz de prescrever regras a todos os demais.

O mérito de Habermas está em situar a ética na comunicação. Sua teoria

dos atos de fala, contudo, é bastante restritiva e reducionista, pois não consegue

explicar toda força ilocucionária. Nem todo jogo de linguagem encaixa-se na

classificação proposta por Searle e aceita por Habermas, na qual os atos de fala

podem ser comunicativos, constatativos, representativos ou regulativos.

Partindo de uma abordagem antropológica da argumentação, como a de

Rorty, pode-se criticar a filosofia de Habermas e Apel dizendo que a competência

comunicativa muda de acordo com a sociedade e não é universal. Não é possível

conversar para além das limitações históricas. A Comunidade Ideal de

Comunicação, que para Apel é a condição de possibilidade de qualquer

comunicação, para Rorty não passa de etnocentrismo. Esse salto transcendental

não passaria de mais uma tentativa européia de elevar um determinado auditório

historicamente localizado à condição de Tribunal Universal da Razão, válido para

todos os homens e para todos os tempos.

62
A tentativa de desenvolver uma pragmática universal é muito suspeita, pois,

como diz Rorty, as condições da inquirição científica não são nem inevitáveis, nem

passíveis de serem descobertas por uma reflexão sobre a lógica da inquirição, mas

são apenas fatos sobre os quais uma dada sociedade considera como bom terreno

para asserções de um certo tipo (1979:385). Giddens também não acha

convincente a conexão realizada entre a linguagem, a racionalidade e a situação

ideal de comunicação postulada contrafactualmente. Isso parece a Giddens um

último suspiro da teoria crítica, que estabelece suas esperanças na virada

lingüística (1994:184-185).

Habermas diferencia o convencimento racional da manipulação estratégica

e diz que o primeiro é indicativo da verdade e justificação. Ele parece sustentar

assim uma espécie de distinção entre lógica e mera retórica, enquanto deveríamos

falar apenas na presença ou ausência de justificação adequada. Ele vê a noção de

validade universal não apenas como útil, mas como indispensável. Contudo, tal

validade pressupõe a adesão de uma audiência ideal, que testou todas as

hipóteses e realizou todos os experimentos possíveis. Mas nossa finitude implica

no fato de que nunca haverá tal audiência, mas apenas audiências espacial,

temporal e socialmente restringidas. Além disso, o sonho de guiar a argumentação

e o convencimento apenas pela força do melhor argumento é irrealizável. Não há

nenhuma via que conduza com segurança ao consenso fundamentado, pelo

contrário, o fato de a argumentação estar inserida sempre em um contexto socio-

histórico implica a impossibilidade de se indicar uma solução como a única correta

de maneira definitiva. Isso, contudo, não é motivo de resignação pois, a partir daí,

63
extrair-se-á importantes conseqüências para a argumentação, como a exigência de

um discurso sempre aberto e tolerante.

4.3.4. Rorty

Em Rorty, a conversação substitui o confronto gerado pela busca de

representações privilegiadas (1979:176). Rorty prega o abandono da noção de

epistemologia como busca, iniciada por Descartes, daqueles itens privilegiados no

campo da consciência, que seriam as pedras de toque da verdade (1979:210). A

teoria do conhecimento é, para Rorty, um desejo de restrição, de encontrar

fundamentos, representações que não podem ser contestadas (1979:315). Ele leva

suas críticas além e afirma que a epistemologia está fadada ao desaparecimento.

Nesse sentido, devemos, como fizeram Kuhn e o segundo Wittgenstein, voltar

nossa atenção para o contexto social da justificação.

Rorty entende como igualmente equivocada a busca de fundamentos para o

conhecimento e a noção de filosofia como tendo fundamentos. Assim, qualquer

tentativa de fazer da filosofia da linguagem uma filosofia primeira está desde o

início equivocada. A filosofia é antes um gênero literário, uma voz na conversação

da espécie humana. Não precisamos de uma noção de verdade oposta à

justificação, basta falarmos em "afirmabilidade garantida" (1979:264). Entende

Rorty, seguindo Sellars, que a filosofia é racional não porque tenha um

fundamento, mas porque é um empreendimento autocorretivo, onde nada está

imune à revisão (1979:180).

64
Rorty (1979:365-372) introduz a noção de "filósofo edificante" como aquele

que é reativo, que não busca argumentos construídos para a eternidade e que

desrespeita a meta-regra da filosofia "normal", que é a busca da adequação à

realidade. A filosofia edificante ama a sabedoria no sentido de preveni-la contra a

degeneração da conversação em inquirição. Tal filosofia nunca terá fim, nunca

descobrirá a Verdade, mas buscará ao contrário continuar uma conversação.

Dessa forma, evita-se a auto-frustração de querer ser a imagem de Deus.

Uma crítica comumente dirigida a Rorty está no abandono da busca da

comensuração, de um terreno comum, o que caracterizaria o relativista. Mas a

chave dessa filosofia está justamente no abandono da epistemologia e de qualquer

esperança transcendental de fundamentação. É difícil imaginar uma filosofia não-

epistemológica, talvez por isso Habermas e Apel insistam em criticar o

pragmatismo e o realismo científico como produtos de uma epistemologia

inadequada. É difícil visualizar até que ponto a objetividade pode ser trocada pela

solidariedade. Além disso, como critica Habermas, se algo é verdade apenas

porque é reconhecido como justificado por nós porque é bom para nós, não há

motivo racional para expandir o círculo de membros (In: Brandom,2000:51). Não

há razão para aumentar esse auditório, para incluir mais pontos de vista.

Assim, uma teoria que tratasse da argumentação evitando os perigos de

uma proposta ideal como a de Habermas e Apel e que não desconsiderasse o

apelo à universalidade, tal como Rorty, seria bastante interessante. Nesse sentido,

talvez caminhe a proposta perelmaniana.

65
4.3.5. Perelman

Para analisar o que Perelman entende por racionalidade é sobre o conceito

de auditório universal que se deve debruçar. Nas palavras de Perelman: "Que é a

razão? Ela se define, a meu ver, pelo recurso ao auditório universal" (1996:137)

Perelman entende que não devemos dar à filosofia um caráter definitivo e

rígido (1996:265). Devemos trocar a soberba filosófica pela compreensão da

insuficiência, do aspecto unilateral dos nossos próprios discursos. Desconfia-se da

idéia de validade transcendental, admitindo que a coisa mais absurda pode passar

por racional, desde que esteja situada num contexto apropriado, e que concorde

com o ambiente de crenças e desejos. O pensamento filosófico se desenvolve e

amadurece numa experiência de trocas argumentativas, de objeções levantadas

contra certas teses. Esse empreendimento de justificação que é a filosofia tem por

característica a ausência de um juiz supremo, que garantirá derradeiramente a

causa vencedora, a filosofia definitiva (1996:276). Talvez a grandeza da filosofia

esteja justamente em nunca estar acabada.

Na perspectiva de Perelman, o esforço de racionalidade do filósofo é

exatamente o de se dirigir ao auditório de melhor qualidade possível

(1997:87,1996:114). A argumentação mais crítica que o filósofo pode conceber é

aquela dirigida ao auditório universal. Ele não é efetivo, mas uma hipótese que

corresponde à idéia de objetividade. A própria razão se define pelo recurso ao

auditório universal. Perelman entende que essa hipótese pode ser utilizável, pois

está sempre submetida ao controle e à verificação (1996:137). Quanto aos

66
membros desse auditório, isso depende dos diferentes filósofos das diferentes

épocas. Cada filósofo tem sua linha de pensamento e seus tipos de argumentos

preferidos e tendem a menosprezar certos tipos de argumentos, afastando-os de

sua visão filosófica (1996:110-111). A dificuldade central é saber como as pessoas

poderiam entender-se nesse pluralismo.

O auditório universal tem importância primordial enquanto norma da

argumentação objetiva (1970:40). A variedade de auditórios é quase infinita e a

tentativa de encontrar algo válido em todos os auditórios possíveis, um desejo de

transcender as particularidades históricas ou locais motivou toda a busca filosófica

pela objetividade. Segundo Perelman, os auditórios se julgam uns aos outros e a

busca de um auditório privilegiado, que julgue todos os demais a partir de um

ponto de vista divino, é uma ilusão perigosa (1996:111). Essa objetividade

absoluta passa a ser vista como um sonho irrealizável e tal noção na

argumentação deve ser repensada e reinterpretada no sentido de fundir a

afirmação feita com aquele que a faz. O que temos por "objetivo" eqüivale ao

conjunto de proposições que entendemos válidas para esse melhor auditório

possível, que está situado historicamente. Segundo Perelman, os filósofos sempre

pretendem se dirigir a um auditório universal (1970:41), que foi descrito por ele

como aquele "constituído por toda humanidade ou ao menos por todos os homens

adultos e normais" (1970:39). Tal auditório não é um fato experimental, mas uma

elaboração da mente do orador, podendo ser mais ou menos ampla. Ao invés de

acreditar na existência de um auditório análogo ao espírito divino, que adere

apenas à Verdade, pode-se caracterizar cada orador pela imagem que forma ele

mesmo do auditório universal, do qual ele busca ganhar a adesão. Assim, cada

67
cultura, cada indivíduo, tem sua própria concepção do auditório universal e o

estudo dessas variações ao longo da história ajudaria a ver o que foi tido pelos

homens como real, verdadeiro e objetivamente válido (1970:43). Visto dessa

forma, de um ponto de vista exterior, o auditório universal de cada orador pode ser

considerado um auditório particular (1970:40). Segundo Perelman, "julgamos o

filósofo de acordo com a concepção que ele tem desse auditório universal"

(1996:143), logo, nada mais coerente do que julgar o próprio Perelman a partir de

seu auditório universal.

O auditório universal implica, a um só tempo, uma questão de direito e de

fato (1996:137). Como a adesão de todos nunca pode ser alcançada faticamente,

o que se assemelha ao argumento contrafactual da situação ideal de comunicação,

tal acordo é uma questão de direito e não de fato (1970:41). Entretanto, ainda que

a adesão do auditório universal seja o critério para a racionalidade e objetividade

da argumentação, tal auditório em Perelman não tem a significação ideal que a

situação ideal de comunicação apresenta em Habermas. O auditório universal é

também uma questão de fato. Ao ser analisado exteriormente ele é um auditório

particular, localizado social e historicamente. O papel normativo do auditório

universal é assim limitado27. O orador sabe que se dirige a um auditório particular

(questão de fato), mas faz um discurso que tenta superá-lo, dirigindo-se a outros

auditórios possíveis que estão além dele (questão de direito – ideal

argumentativo). Permanece assim a dificuldade em determinar exatamente o

estatuto desse auditório, oscilando sempre entre o particular e o universal.

27
Alguns autores, como Alexy (1997:163), obscurecem essa diferença e afirmam ser o acordo do auditório
universal em Perelman o mesmo que o consenso alcançado sob condições ideais em Habermas.

68
Uma vez que as questões relativas à objetividade e racionalidade não são

passíveis de serem tratadas eliminando-se esse caráter dual, que oscila entre o

universal e o particular, a dificuldade enfrentada por Perelman está exatamente em

articular de forma convincente esses dois aspectos. Em Perelman, apesar de se

valorizar sobretudo a prática social da argumentação, todo discurso que se

pretende racional e objetivo visa também a adesão de um auditório mais amplo,

uma espécie de ideal argumentativo. Mas a constituição desse auditório

privilegiado é determinada cultural e historicamente, não sendo acessível a partir

de uma atitude transcendentalista, ainda que débil.

É difícil enquadrar Perelman na classificação de Toulmin, uma vez que a

noção de auditório universal aponta numa direção intermediária entre a

comunidade ideal de comunicação e a antropologia cultural. Uma crítica que pode

ser levantada contra Perelman está na solidez do conceito de auditório universal.

Atienza (2000:114-116) ressalta as ambigüidades de tal conceito e duvida que

tenha recebido de Perelman uma elaboração cuidadosa. Mas, ainda que se

concorde com a crítica de que o os seus elementos não receberam uma

articulação convincente, ainda assim o auditório universal permanece ao menos

como uma feliz intuição.

Outra crítica levantada contra Perelman vem de Plebe e Emanuele, para

quem a argumentação perelmaniana é uma invenção executiva, não criativa

(1992:3). Perelman teria deixado em segundo plano a imaginação inventiva para

privilegiar a força de persuasão e com isso teria enfraquecido as bases de sua

teoria da argumentação. Resumindo os problemas:

69
"O primeiro deles é a contradição congênita entre ver na retórica uma força
inovadora, mas estudá-la como um procedimento conservador e mentalmente
preguiçoso; o segundo é sua tendência a fazer o mundo da retórica deslizar do
plano lógico-filosófico para o plano meramente sócio-psicológico" (Plebe e
Emanuele, 1992:106).

Entretanto, na terceira parte do Tratado da Argumentação, Perelman realiza

um estudo da invenção e, como ressalta Margutti, convém lembrar que a retórica

não é pura invenção e mesmo Plebe e Emanuele são forçados a reconhecer que

não se inventa a partir do nada (Margutti, 1998:17). "Assim, parece perfeitamente

plausível afirmar que a Retórica só pode inventar a partir de um patrimônio

argumentativo estabelecido" (Margutti, 1992:18). Além disso, o deslocamento feito

do plano lógico-filosófico para o sociopsicológico visa sobretudo mostrar que o

primeiro desses planos não está imune às influências do último, o que parece

bastante razoável.

5. RETÓRICA NO DIREITO: ACEITABILIDADE RACIONAL DAS DECISÕES

A pretensão de fundar o direito em bases racionais é um desafio que se

coloca continuamente ao profissional do direito. A negação de uma racionalidade

na prática jurídica seria a afirmação do arbítrio e o abandono da organização da

conduta humana à violência. Problemas quanto a aplicação do direito, tal como

ocorre hoje em nossos tribunais, revelam a insuficiência do atual arcabouço teórico

para justificar racionalmente uma decisão. A lógica formal, ao ser aplicada na

realidade jurídica, não responde às exigências que lhe são apresentadas partindo

unicamente de suas premissas. Uma vez que o Judiciário não pode se abster de

70
decidir um conflito que a ele se apresenta, problemas como as lacunas no direito

positivo ficam a margem de uma resposta racional dentro do sistema atual, que

postula como racional apenas a aplicação que realiza perfeitamente a subsunção

de um fato a norma jurídica.

Dessa forma, uma lógica que saísse dessas estreitas regras formais, e que,

apesar disso, conservasse a qualidade de ser racionalmente aceitável, seria de

grande valia para a aplicação do direito. É exatamente como substituto dessa

lógica formal que a retórica entra no campo do direito. Entretanto, a retórica

jurídica não se limita a possibilitar novos caminhos decisórios, como aconteceu na

antigüidade grega e romana e de alguma forma perpetuou-se nas práticas

jurídicas. Não se trata de um arcabouço prático, uma coleção de topoi e regras de

ação que possibilitam dar fim a um conflito. Não se trata assim de aplicar a retórica

no direito como uma técnica que, estando a serviço do advogado visa a vencer

uma causa e estando a serviço do juiz visa sobretudo a fazer coisa julgada. Não se

trata muito menos de simples receitas oratórias, ornamentárias, que visam tornar o

discurso mais belo e persuasivo.

O importância da retórica para o direito ultrapassa em muito essa mera

utilidade estilística e técnica. Como foi ressaltado, a retórica comporta também

uma outra face, a sua dimensão filosófica, preocupada sobretudo com o estudo

das provas, com tudo aquilo que conduz alguém a pensar algo. Nessa perspectiva,

foi analisada no capítulo anterior a questão da racionalidade. A partir desse estudo,

pode-se voltar ao direito, a área de origem das preocupações retóricas, para se

repensar o problema da aceitabilidade das decisões. Ao contrário do objetivo de

Perelman, que era mostrar para os filósofos a importância de se pensar o direito e

71
suas formas de argumentação tipicamente retóricas, cumpre agora, após vários

estudos filosóficos contemporâneos sobre essa questão da racionalidade

argumentativa, voltarmos para o direito e seus problemas. Tendo em vista essa

nova racionalidade, procurar-se-á deixar claro que a volta da retórica não constitui

um substituto mais fraco do positivismo jurídico e sua ambição lógico-sistemática.

Ao contrário, assim como o positivismo jurídico criticou as formas jurídicas

retóricas como inadequadas a nova racionalidade que pretendiam estender ao

direito, também aqui procurar-se-á criticar o positivismo a partir da racionalidade

por ele assumida.

No caso do direito, o estudo da retórica deve levar em consideração o seu

auditório específico, que difere do auditório da filosofia. Na filosofia, tudo sempre

pode ser questionado, bastando que seja retirada a adesão. Já o direito precisa

dar uma resposta definitiva, uma solução a um conflito que faça coisa julgada. A

tese filosófica difere da causa jurídica na medida em que a primeira nunca é

imposta, mas apenas proposta, enquanto a segunda visa ser suplantada, através

da imposição do veredicto. O filósofo procura sustentar tanto o pró como o contra,

sendo ao mesmo tempo o advogado e seu adversário. Seu Tribunal não está

instituído e nem está em lugar nenhum, mas é antes a sua própria visada

universalista ou, como chamou Perelman, o auditório universal. É aqui que as

limitações impostas pelo procedimento em busca dessa decisão necessária retiram

do direito a racionalidade tal como temos na filosofia.

No judiciário, o objetivo do diálogo não é convencer a parte contrária, mas

uma terceira parte, o Tribunal. A solução decorre do debate contraditório. Mas será

ela racional? Não será de modo mais próprio apenas mais razoável?

72
Para realizar o estudo da busca da aceitabilidade racional das decisões

jurídicas dividir-se-á quatro partes. Primeiro, buscar-se-á analisar as tendências

anti-retóricas e criticar o positivismo de Kelsen. Na segunda parte, procurar-se-á

analisar alguns aspectos do direito que recebem um novo colorido com a retórica.

Na terceira parte serão analisadas algumas tendências contemporâneas acerca da

racionalidade jurídica e, por fim, na quarta parte, será abordada a questão da

razoabilidade.

5.1. Tendências anti-retóricas: positivismo de Kelsen

Com o advento da modernidade filosófica e sua concepção iluminada de

razão, o pensamento ocidental experimentou grandes transformações. A

importância da retórica, como foi ressaltado, é inversamente proporcional à

importância e crédito dado à evidência. Disso se segue que na modernidade,

época em que prevaleceu a evidência, a retórica foi amplamente criticada e caiu no

esquecimento. Tal postura atingiu também ao direito, ainda que remotamente.

Começou-se a acreditar numa espécie de sistematização lógico-formal do direito.

Elaborou-se grandes codificações jurídicas com a esperança de oferecer à ação

humana um conjunto de regras e normas coerentemente organizadas, de forma

que a decisão jurídica seria sempre racional se respeitasse determinados

procedimentos formais de subsunção lógica. Esperava-se com isso expulsar o

arbítrio do domínio jurídico e transformar o processo de decisão jurídica numa

espécie de mecanismo lógico-racional, dentro do qual tudo estaria previsto, assim

como acontecia na matemática, paradigma da ciência moderna.

73
Apesar dessa forte tendência anti-retórica da filosofia ocidental, o

esgotamento do modelo cientificista do conhecimento do direito, que teve suas

possibilidades de desenvolvimento exauridas em Kelsen, serviu de propulsor a

uma ruptura com essa tradição. Kelsen deu valor unicamente a um saber não

controverso, desprezando totalmente a argumentação ao excluir toda justificação

racional das normas, que não passariam de ideologias. Diz Perelman:

"Parece-me que todos os paradoxos da teoria pura do direito, bem como todas as
suas implicações filosóficas, derivam de uma teoria do conhecimento que não
atribui valor senão a um saber incontroverso, inteiramente fundado nos dados da
experiência e na prova demonstrativa, negligenciando totalmente o papel da
argumentação" (1996:476).

A teoria pura do direito de Kelsen, como aliás a razão moderna, radicaliza a

distinção entre a evidência e o arbítrio e não consegue vislumbrar um meio termo,

saltando da dúvida absoluta para a certeza absoluta. No campo do direito isso é

expresso na distinção entre o puro arbítrio e o sistema jurídico perfeito. Perelman

coloca as seguintes questões:

"Mas seria preciso, à falta de prova demonstrativa, renunciar a justificar por uma
argumentação igualmente convincente e possível nossas escolhas e decisões,
nossos valores e normas ? E seria preciso, na ambição de constituir uma ciência
do direito e uma teoria pura do direito, considerar como juridicamente arbitrário
tudo o que só pode ser justificado por meio de semelhante argumentação?"
(1996:477).

Para o estudo do direito numa perspectiva retórica, deve-se renunciar ao

positivismo jurídico. Viehweg tenta ainda conciliar a teria pura do direito com a

retórica, mas entendo que tal intento não leva a sério todas as conseqüências da

postura retórica. Para Perelman, o dualismo kelseniano não corresponde nem à

metodologia jurídica nem à prática judiciária:

74
“Se uma ciência do direito pressupõe posicionamentos, tais posicionamentos não
serão considerados irracionais, quando puderem ser justificados de uma forma
razoável, graças a uma argumentação cujas força e pertinência reconhecemos”
(1996:480).

5.2. Aspectos do direito

Nessa parte da monografia, buscar-se-á simplesmente indicar como a

retórica insere-se em alguns aspectos jurídicos. Tal apresentação, superficial e

fragmentária, irá se limitar a alguns pontos escolhidos devido a nova roupagem

que assumem diante da perspectiva retórica. Nessa análise, a fonte principal será

Perelman (1996).

Num primeiro momento será analisada a distinção entre lógica jurídica e

lógica formal, que espelha em grande medida a distinção entre retórica e lógica.

Num segundo momento, analisar-se-á como se dá a utilização de provas no direito,

ressaltando o recurso às presunções e ficções jurídicas. Na terceira parte, o objeto

a ser estudado será a presença e importância das noções confusas no direito. Por

fim, será brevemente analisado o aspecto democrático do direito, sobretudo a

partir da oposição entre aceitabilidade e obediência.

5.2.1. Lógica jurídica X Lógica formal

O direito se caracteriza por ser a expressão de um consenso político e

social sobre uma solução razoável, sendo assim, o direito só ganha forma através

dos conflitos e das controvérsias. A lógica jurídica é entendida como uma lógica da

controvérsia, na qual o conflito dos juízos de valor está no centro de todos os

75
problemas. O erro do direito positivo estava exatamente em ver o direito como um

sistema coerente e claro, no qual as controvérsias são acidentes sem importância.

Na perspectiva retórica, insiste-se sempre na insuficiência do raciocínio dedutivo e

indutivo. O estudo dos argumentos não se prende a uma teoria da demonstração

rigorosa. A solução de direito nasce do choque de discursos contraditórios. A

pergunta que se coloca é : como motivar, justificar, as decisões tomadas? Que

espécie de raciocínio o juiz vai utilizar?

Perelman define o raciocínio jurídico como “o raciocínio do juiz, tal como se

manifesta numa sentença ou arresto que motiva uma decisão”28 (1996:480).

Assimilar o raciocínio judiciário a um silogismo é mascarar a própria natureza do

raciocínio prático, pois elimina-se todo fator de decisão que lhe é essencial. Sendo

assim, a lógica jurídica comporta o estudo de esquemas argumentativos não-

formais. A concepção de Perelman difere em grande medida das de Klug, Engisch

e Kalinowski, que, ainda que de maneira distintas, terminam por definir a lógica

jurídica como a lógica formal aplicada ao raciocínio jurídico.

Para Perelman, o que há de específico na lógica jurídica é justamente que

ela não é uma lógica da demonstração formal, mas da argumentação. Ela não usa

provas analíticas, mas dialéticas, no sentido aristotélico. Essa lógica jurídica

permite levar a seu termo uma controvérsia, em que argumentos são confrontados.

É exatamente esse vaivém de argumentos, que implicam juízos de valor, que

caracteriza o raciocínio jurídico.

28
Entretanto, ao afirmar isso, Perelman não diz que fora de uma decisão jurídica não possamos encontrar
raciocínios jurídicos, mas apenas que a sentença e o arresto lhes fornecem um paradigm-case. A esse respeito,
veja a discussão entre Kalinowski e Perelman, publicada em Études de Logique Juridique: Le raisonnement
juridique et la logique déontique, pp.19-31.

76
Perelman opõe claramente à lógica formal a lógica da controversa. Em sua

discussão com Kalinowski, Perelman afirma que "as duas perspectivas são

claramente opostas, pois aquele que conclui não decide"29 (In: Kalinowski,

1970:26). Raciocinar não se resume a inferir, calcular e demonstrar, mas consiste

também em fornecer razões pró ou contra uma dada tese. Para Perelman, parece

ridículo ignorar esses argumentos a pretexto de que são alheios à lógica formal.

Como já ressaltei anteriormente, o próprio pai da lógica formal, Aristóteles, não

deixou de tratar da lógica da controvérsia.

Se pensamos a justiça não como um sistema impessoal, composto por

regras coercivas, vemos necessariamente subir em importância o papel de

apreciação do juiz. Na justiça impessoal, a função do juiz é puramente passiva,

apenas somar 2+2, concluir como uma máquina. Mas o juiz não deve limitar-se ao

cálculo de um autômato, deve, ao contrário, recorrer aos recursos da

argumentação. O juiz se propõe a justificar uma decisão, o que é evidentemente

oposto ao cálculo, pois quem conclui, não decide. Tudo isso mostra que não basta

deduzir as conseqüências jurídicas das condições de fato previstas em lei.

A mente do jurista deve funcionar num vaivém da situação para a regra e

vice-versa. Partindo dessa concepção, Perelman descarta completamente a

possibilidade de uma jurisprudência mecânica, pois tal dialética só é possível numa

mente capaz de juízo, que pode ser definido como a capacidade de escolher ou de

decidir de forma não arbitrária, de preferência razoável, que não se oponha à

razão e ao senso comum e que manifeste bom senso. Noções variáveis conforme

29
No original: “les deux démarches sont nettement opposées, car celui qui conclut ne décide pas”.

77
o contexto social necessitam de uma apreciação, de um juízo que a maquina é

incapaz de fornecer.

A lógica jurídica proposta por Perelman, que confronta valores para se

chegar a uma decisão, não possui o mesmo rigor e falta de ambigüidade da lógica

formal. Perelman justifica sua postura dizendo que “introduz-se certa insegurança

no direito, em nome de outros valores, tais como a equidade, a eficácia, etc.”

(1996:527). A segurança jurídica consistiria exatamente na aceitabilidade racional

da decisão e não no rigor de um sistema dedutivo.

5.2.2. A prova jurídica: presunções e ficções

A motivação das decisões é campo das mais diversas interpretações. A

solução mais simples consiste em opor o espírito à letra da lei. Opõe-se assim a

vontade do legislador à vontade do legislador razoável, que não poderia querer o

que é socialmente inaceitável. Assim, pela motivação, o juiz só tinha de justificar-

se perante o legislador, mostrando que não violava a lei. Mas quando a motivação

se dirige à opinião pública, quer-se ainda que tal interpretação seja conforme à

equidade e ao interesse geral. Perelman observa aqui que, muitas vezes, é ao

qualificar os fatos, e não ao reinterpretar explicitamente a lei, que o juiz possui

maior margem de apreciação. Ao submeter o juiz à obrigação de julgar, deve-se

autorizá-lo a utilizar todas as técnicas de interpretação que lhe permitiriam motivar

suas decisões. O juiz poderá remontar das conseqüências às premissas para lhe

modificar, se for o caso, o sentido e o alcance.

78
Muitas vezes, o direito tem evoluído no sentido de estreitar o campo de

apreciação do juiz. Perelman cita o exemplo do legislador belga que em 1958,

instituiu uma lei sobre a repressão das infrações de trânsito, substituindo a noção

“estado de embriaguez” por uma determinação quantitativa, 0,015 de alcoolemia

(1996:575). A pessoa embriagada era entendida como aquela que não tem o

controle permanente de seus atos ou de seus gestos, deixando ao juiz uma larga

margem de apreciação. Isso já não ocorre com a taxa de alcoolemia, que reduz o

poder de apreciação jurídica do juiz, possível apenas no caso de uma

contraperitagem. A verificação da taxa de alcoolemia não deixa lugar a nenhuma

discussão e ao juiz cabe apenas aplicar, de modo automático, a regra geral ao

caso particular. Nesses casos, o recurso à ficção manifesta a revolta dos juizes e

do júri, que não hesitam em recorrer a uma falsa qualificação dos fatos para

escapar às conseqüências inaceitáveis de uma regra jurídica.

As presunções e ficções jurídicas, particularidades do raciocínio jurídico30,

são fontes de verdade jurídica e introduzem um fator arbitrário e artificial na

decisão. São um procedimento técnico ainda mais arbitrário e artificial que os

precedentes. Em suma, não passam de uma mentira: toma-se o falso por

verdadeiro com o intuito de chegar a um resultado conveniente. Foriers, a respeito

dessas técnicas jurídicas, diz que "tudo isso indica que em direito, dentro do

domínio da prova, introduz-se valores que podem aparecer como suficientes para

30
Segundo Wróblewski, “les présomptions ont une valeur purement pratique. C’est la technique propre au droit
qui n’existe ni dans l’éthique ni dans d’autres formes de l’activité humaine” (1974:57).

79
que seja feita uma contorção da verdade, reputando por verdadeira uma situação

que pode ser falsa"31 (1974:11).

A justificação dessa possibilidade de alterar a verdade, que é dado ao juiz,

encontra-se na escolha de um valor, que é o da paz social: a coisa julgada é

destinada a por fim a um conflito. Foriers afirma que "a mentira ajuda a ultrapassar

um difícil obstáculo, a habituar o espírito dos juizes e das jurisdições a uma idéia
32
nova" (1974:23). Mais adiante, afirma que "em suma, graças à mentira,

salvaguarda-se a aparência e portanto o sistema. De onde a possibilidade de um

novo passo"33 (1974:26). Essa mentira permite assim uma reforma sábia e

justificada.

A dimensão pragmática da ficção jurídica estende-se aos objetivos de

segurança e de ordem, próprios à todo sistema jurídico. Segundo Delgado-

Ocando:

"A ficção satisfaz o interesse do jurista em obter novas soluções como se elas
fossem o resultado de uma aplicação do virtuosismo dos princípios e das
categorias do direito existentes. Através de uma técnica de economia dos meios
jurídicos, a ficção manipula os recursos disponíveis, regulamenta anteriormente os
efeitos da relação pelo método da equivalência funcional e assegura a
continuidade da evolução do direito"34 (1974:89).

31
No original: “Tout ceci indique qu’en droit, dans le domaine de la preuve, s’introduisent des valeurs et que
ces valeurs peuvent apparaître comme suffisantes pour qu’il soit fait une entorse à la vérité, tout en réputant
pour vraie une situation pouvant être fausse” Bayart (1974) comenta as afirmações de Foriers e, ao se
questionar se é possível eliminar as ficções do discurso jurídico, ele conclui que a técnica da ficção é
substituível pela do argumento por analogia. Já Delgado-Ocando (1974) entende que a ficção difere da
analogia uma vez que implica uma diferença de natureza entre os casos assimilados um no outro. Para
Perelman (1974), a ficção nega a diferença enquanto a analogia insiste na identidade.
32
No original: “le mensonge aide à passer un cap difficile, à habituer l’esprit des juges et des justiciables à une
idée nouvelle”
33
No original: “en somme, grâce au mensonge, on sauvegarde l’apparence et partant le système. D’où la
possibilité d’un nouveau pas”.
34
No original: “... la fiction satisfait l’intérêt du juriste pour obtenir de nouvelles solutions comme si elles
étaient le résultat d’un déploiement de la virtualité des principes et des catégories du droit existant. A travers
une technique d’économie des moyens juridiques, la fiction manipule les recours disponibles, règlemente
d’avance les effets du rapport par la méthode de l’égalisation fonctionnelle et assure la continuité dans
l’évolution du droit”.

80
O caráter retórico do raciocínio jurídico facilita essa tarefa, na medida em

que a técnica do pensamento problemático conduz a uma pluralidade de sistemas.

A ficção insere dentro de um sistema estreito e rígido novos conceitos, afim de

obter uma solução prática. A ficção confirma que a coerência e a ordem jurídica

são pragmática e plurisistemática. Perelman entende que essa discussão acerca

das ficções e presunções em direito concerne aos problemas da verdade em

direito, o papel da prova e da qualificação, a distinção entre realidade e realidade

jurídica e por fim as relações entre ciência jurídica, a doutrina e a ideologia. A

ficção tem importância para o direito na medida em que as categorias e técnicas

jurídicas reconhecidas não fornecem uma solução aceitável e um problema jurídico

que deve ser resolvido. Perelman compara a ficção em direito às hipóteses

auxiliares que são inventadas nas teorias físicas quando estas não dão conta da

realidade e devem adaptar-se melhor às experiências.

5.2.3. O uso de noções confusas

A linguagem artificial dos matemáticos forneceu, durante séculos, o ideal de

univocidade e claridade. Toda ambigüidade, toda obscuridade, toda confusão, são

assim consideradas como imperfeições, e o objetivo da língua natural deveria ser

imitar a artificial quanto à sua clareza. Tentou-se impor a linguagem científica,

típica da demonstração e da verificação, para todas as linguagens. Uma noção

perfeitamente clara é aquela em que todos os casos de aplicação são conhecidos

e que não admite um uso novo e imprevisto. A tradição filosófica do ocidente

81
condenou as idéias confusas substituindo-as por idéias claras, as únicas utilizáveis

em ciência e em filosofia racionalista. Mesmo no século XX, séculos após

Descartes, Spinoza e Leibniz, o positivismo lógico também adotou as exigências

de clareza e de rigor do racionalismo, agora não mais em termos de razão, mas de

linguagem: a filosofia científica deveria construir uma linguagem ideal, que não dá

azo a nenhuma ambigüidade, a nenhuma controvérsia.

No direito, entretanto, o juiz não pode fazer como o matemático, que declara
º
que um problema é irresolúvel. Após o Código de Napoleão, que em seu art.4

proclamou que o juiz não pode deixar de julgar sob o pretexto de silêncio, de

obscuridade ou de insuficiência da lei, temos que o juiz deve decidir e motivar sua

decisão ainda que a situação não tenha sido prevista pelo legislador. Partindo daí,

Perelman afirma que "devido a isso, não é possível, como sugere Bobbio, de

aproximar o rigor do direito daquele das matemáticas nem, como propõe Kelsen,

de ver no direito apenas uma ordem fechada"35 (1970:176).

Uma noção só pode ser perfeitamente clara no seio de um sistema formal.

Passamos assim a ter problemas com a precisão dos conceitos, na medida em que

o uso das noções não é formalizado. No que concerne às noções fundamentais da

moral e da filosofia, Perelman entende que apenas a argumentação e a

controvérsia permitem mostrar as ambigüidades do que antes era considerado

claro. A lógica formal e seu saber puramente teórico desconhecem aspectos

fundamentais do pensamento humano, pois ignora a influência que as

necessidades de decisão e de ação exercem sobre a linguagem e o pensamento.

35
No original: “Pour ces raisons, il n’est pas possible, comme le suggère Bobbio, de rapprocher la rigueur du
droit de celle des mathématiques ni, comme le propose Kelsen, de ne voir dans le droit qu’un ordre fermé”.

82
Fora de um puro formalismo, as noções só podem ficar claras e unívocas se

as relacionamos a um domínio de aplicação conhecido e determinado. Sendo

assim, para alterar o sentido de uma noção, basta inseri-la num novo contexto e

integrá-la aos novos raciocínios. Uma noção parece suficientemente clara até que

uma nova situação lhe confira interpretações divergentes. Quando tal situação

surge, a noção se escurece, mas após uma decisão que deixe sua aplicação

unívoca, tal noção parecerá ainda mais clara que antes, sob a condição que tal

decisão seja aceita unanimemente. Se o uso das noções está ligado às suas

conseqüências práticas, a modificação dessas conseqüências acarreta, por sua

vez, reações quanto ao uso dessas noções.

A maneira como as noções são apresentadas numa discussão depende do

fato delas estarem ligadas às teses que nós atacamos ou defendemos. A

flexibilização e o endurecimento das noções são técnicas adotadas na

argumentação. Como coloca Perelman:

"A ordem adotada dentro de nosso estudo nos tem levado a considerar em último
lugar o uso e a transformação das noções, quer dizer, o aspecto sob o qual o
problema da escolha nos obriga a repensar, dentro de uma perspectiva retórica, a
maior parte dos problemas semânticos"36 (1970:189).

A escolha dos termos usados para exprimir nosso pensamento se dá quase

sempre de forma argumentativa. A equivalência dos sinônimos só pode ser

assegurada levando-se em consideração a situação do conjunto no qual se insere

o discurso, e sobretudo de certas convenções sociais que o regem. Para

36
No original: “L’ordre adopté dans notre étude nous a amenés à considérer en dernier lieu l’usage et la
transformation des notions, c’est-à-dire l’aspect sous lequel le problème du choix nous oblige à repenser, dans
une perspective rhétorique, la plupart des problèmes sémantiques”.

83
Perelman, podemos considerar como habitual o termo que passa desapercebido.

Após realizar algumas observações sobre o uso argumentativo dos pronomes, dos

artigos e do demonstrativo, Perelman conclui que "o que se visa numa

argumentação é menos a precisão de certas modalidades lógicas atribuídas às

afirmações, que os meios de obter a adesão do auditório graças às variações na

expressão do pensamento"37 (1970:220).

A perspectiva retórica põe claramente o problema semiótico e desperta o

interesse pela dialógica, no sentido da lógica operativa. A nova retórica se esforça

para fazer compreensível toda argumentação dentro da situação do discurso.

Partindo-se da pragmática, procura-se tornar compreensível todos os demais

resultados do pensamento. O acontecer jurídico cotidiano se desenvolve

diferentemente do modelo semântico: aquilo que aqui e agora é aceito como justo,

resulta de uma situação de comunicação complexa. Na retórica, o que interessa é

elucidar como se leva a cabo a comunicação, sendo necessário investigar o

permanente processo de criação que na situação de discurso produz significados

lingüísticos. O uso da linguagem tem aqui importância especial, pois impede-se a

mecânica rígida e possibilita-se uma criação flexível e controlável.

Os termos da linguagem não-jurídica são adotados no direito com seu

sentido usual. Enquanto a semântica das ciências formais tem por regra primeira

evitar qualquer ambigüidade, jamais utilizar um mesmo signo em sentidos

diferentes, para os juristas, em geral, o sentido dos termos que utilizam são

37
No original: “Ce que l’on vise dans l’argumentation c’est moins la précision de certaines modalités logiques
attribuées aux affirmations, que les moyens d’obtenir l’adhésion de l’auditoire grâce aux variations dans
l’expression de la pensée”.

84
precisados com relação a determinados contextos jurídicos. Nas palavras de

Perelman:

“A operação intelectual consistente na determinação do sentido e do alcance dos


termos da lei se fundamenta, a um só tempo, nos elementos teóricos e nas
considerações práticas que justificam a decisão do juiz de interpretar a lei de uma
ou de outra forma” (1996:580).

Por ser obrigado a julgar, é mister deixar ao juiz certa liberdade de

interpretação. Temos assim que a exigência de evidência, tal como propôs

Descartes, torna impossível toda atividade que depende de deliberação, inclusive

as decisões judiciárias. Isso acarreta, no entender de Perelman, o reconhecimento

do papel crescente do juiz na elaboração do direito.

O uso de noções vagas não é necessariamente um defeito no direito. A

clareza e a precisão não deixam ao juiz poder de apreciação quanto à qualificação

dos fatos. Contudo, não se deve conferir total liberdade ao senso de equidade do

juiz, pois este, na medida do possível, deve amoldar-se à legislação e levar em

conta os precedentes judiciários. Dessa forma, ao lado da equidade aparece a

segurança jurídica. Não se deve permanecer em qualquer dos dois extremos. Uma

justiça sem juiz, mecânica, é uma justiça sem equidade. E uma justiça sem

legislador é por demais arbitrária, sem segurança jurídica. A administração da

justiça consiste, portanto, num constante vaivém entre segurança e equidade,

entre a letra e o espírito da lei. Nas palavras de Perelman:

“É a dialética entre o legislativo e o poder judiciário, entre a doutrina e a


autoridade, entre o poder e a opinião pública, que faz a vida do direito e lhe
permite conciliar a estabilidade e a mudança” (1996:631).

85
Sendo impossível do legislador prever tudo e regulamentar tudo com

precisão, deve ele introduzir deliberadamente, no texto da lei, noções com

conteúdo variável. Essas noções não podem ser aplicadas de modo uniforme, o

que impede integrá-las num sistema de direito coerente e estável. Perelman diz

que “quanto mais vagas e indeterminadas são as noções jurídicas aplicáveis,

maior é o poder de apreciação deixado ao juiz” (1996:662). Por fim, Perelman

critica a tradição do direito dizendo:

“Com efeito, os juristas profissionais são obcecados pelo temor da arbitrariedade,


que muitos dentre eles não hesitam em identificar à injustiça. É esse o grande
perigo que vêem na aplicação das noções com conteúdo variável, cuja
determinação parece abandonada ao poder discricionário dos magistrados”
(1996:663).

Ainda que as preocupações de humanidade e de eqüidade às vezes

prevalecem sobre a segurança jurídica, Perelman ressalta sempre a importância

de tal segurança para o direito. O jurista opõe-se à arbitrariedade pelo valor dado

ao princípio de igualdade, garantia de uniformidade e da imparcialidade na

aplicação da lei, que justifica o respeito concedido aos precedentes judiciários.

Analisando os variados campos do direito, vemos que a importância do uso

das noções confusas se dá de maneira diversa em cada um. Não se pretende aqui

estudar cada ramo detidamente, mas apenas lembrar a diversidade do universo

jurídico e a necessidade de adaptações específicas das noções confusas em cada

área. No âmbito do direito internacional, por exemplo, o recurso às noções

confusas é totalmente inevitável. Este é o único meio hábil a realizar um acordo

entre Estados que têm ideologias tão diferentes. É assim que foi possível, por

86
exemplo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem: as noções confusas

permitiram a cada signatário interpretá-las à sua maneira.

Um problema importante que não pode deixar de ser mencionado diz

respeito ao uso e ao abuso das noções confusas. Nas noções matemáticas, que

são formalmente definidas, o abuso se define pela incorreção, pela violação de

uma regra reconhecida. Se a operação matemática é correta, não há abuso,

independente do resultado da operação. Quanto à aplicação de uma noção

confusa, mesmo não existindo um procedimento unanimemente admitido, tal

aplicação não é inteiramente arbitrária. Ainda assim há um limite, o do uso

desarrazoado. O comportamento desarrazoado não pode ser considerado válido

em direito em nenhuma hipótese. Mas se é indispensável o uso de noções

confusas, quando tal uso será considerado abusivo? Perelman responde

asseverando ser essa uma questão difícil, pois não dispomos de critérios objetivos

na matéria. A única observação que ele acredita possível diz respeito ao abuso de

linguagem. Os usuários de uma língua comum não devem servir-se dela para

induzir seu interlocutor ao erro. Há abuso se há embuste, voluntário ou

involuntário. O papel da retórica e da teoria da argumentação é justamente

precaver-nos contra o uso abusivo das noções confusas.

5.2.4. Um direito mais democrático: aceitabilidade X obediência

A teoria da nova retórica não assegura soluções certas e incontroversas,

como pretende o raciocínio demonstrativo, mas dá soluções aceitáveis. Para tal,

Perelman admite a alteração significativa da lei, dentro de um novo campo de

87
problemas interpretativos e decisórios. Sua teoria opõe-se à axiomática e à

dogmática, que atêm-se à claridade e inalterabilidade da significação jurídica dos

textos legais. Os métodos interpretativos são apenas diretrizes retóricas para o

raciocínio do jurista. Sendo o papel do juiz o de procurar soluções a um só tempo

conformes ao direito e aceitáveis, temos que a retórica cresce em importância no

direito na medida em que aumenta a independência do poder judiciário, ou seja, na

medida em que este procura motivar suas decisões e não as impor por via

autoritária.

O papel da retórica torna-se indispensável numa concepção do direito

menos autoritária e mais democrática. Para Perelman, a paz judiciária significa que

o direito não deve apenas ser obedecido, mas deve ser também reconhecido. O

juiz deve motivar sua decisão com argumentos admitidos pelas partes, pelas

instâncias judiciárias superiores e pela opinião pública. Além da correlação formal,

a sentença deve ser convincente. Além de legal, a decisão deve ser aceitável.

Dessa forma, contrapõe-se ao positivismo jurídico uma visão menos formalista do

direito, que insiste na aceitação das decisões judiciárias.

Com respeito da lógica jurídica, Perelman entende que esta não pode

desinteressar-se do contexto social e político. Toda argumentação tem lugar num

determinado contexto que não deve ser ignorado. Numa sociedade

democrática, o respeito às regras deve conciliar-se ao respeito à pessoa

humana, preocupação essa alheia à lógica formal. A lógica da controvérsia visa

estabelecer em cada caso a preeminência de um ou de outro valor. Para Barthes,

"num regime democrático, o aristotelismo seria então a melhor das sociologias

culturais" (1975:220). Se o direito visa proteger simultaneamente vários valores, a

88
lógica jurídica deve apresentar-se como uma argumentação destinada a motivar

decisões judiciárias pelo consenso. Dessa forma, a administração da justiça num

Estado democrático resulta de uma constante confrontação de valores, de um

diálogo entre o poder judiciário, o legislativo e a opinião pública. De acordo com

Maia:

"Este reconhecimento de que no estado democrático de direito a motivação das


decisões constitui um dos principais deveres dos juizes, abre a possibilidade para
que haja uma cobrança e uma fiscalização por parte dos cidadãos em face ao
judiciário".

O exercício do poder de apreciação pelo juiz, em direito, não deve ser

arbitrário, mas supõe a possibilidade de uma escolha razoável entre várias

soluções. O juiz é visto assim como o detentor de um poder, e não como “a boca

que pronuncia as palavras da lei”. Ele opera escolhas na busca da solução mais

adequada à situação. Sendo detentor de um poder no regime democrático, o juiz

deve prestar contas de como se utiliza dele mediante a motivação, que ocorre

perante as partes, a opinião pública e as instâncias superiores. Dessa forma,

conclui Perelman que “o direito é, simultaneamente, ato de autoridade e obra de

razão e de persuasão” (1996:570).

No direito, a oposição entre aceitabilidade e obediência deve ser mediada

de forma que nem a racionalidade nem a autoridade sejam destruídas. Nesse

propósito, entende-se que a noção de razoabilidade seria capaz de servir como um

mediador interessante, na medida em que interpreta a racionalidade de maneira

débil, possibilitando que nela seja incorporada a necessidade de decidir, de se

fazer coisa julgada. E, por outro lado, a razoabilidade não destrói a autoridade,

mas lhe concede poder na medida em que busca soluções adequadas. A

89
razoabilidade impede assim a aceitabilidade racional vista de forma evidente e a

autoridade vista de forma arbitrária. Nesse intervalo busca seu espaço o direito

como uma prática decisória razoavelmente aceitável.

5.3. Racionalidade jurídica: tendências contemporâneas

Vários foram os pensadores que voltaram a sua atenção nos últimos anos

para o problema da racionalidade jurídica. Não se pretende aqui elaborar um mapa

detalhado dessas teorias, muito menos destrinchá-las minuciosamente. Os pontos

de partida de tais estudos e suas linhas diretivas são os mais diversos e

perpassam praticamente todas as escolas jus-filosóficas da contemporaneidade.

Selecionou-se três pensadores que foram responsáveis por proposições bastante

significativas, sendo eles Dworkin, Alexy e Habermas. Quanto a Aarnio e

Perelman, eles serão analisados no próximo capítulo, referente à razoabilidade.

Pode-se objetar o porquê da exclusão de pensadores como Viehweg38,

Recaséns Siches39, Tércio Ferraz40, Boaventura41, Ricoeur42, Luhmann43, dentre

38
Theodor Viehweg propõe uma volta aos tópicos aristotélicos como uma forma de sanar o descuido que o
formalismo moderno teve em relação às suas premissas. Esse filósofo do direito alemão acredita que uma
retórica mais desenvolvida deveria ocupar-se dessa argumentação primária e estabelecer uma vinculação
razoável entre a lógica e a ética.
39
Luis Recaséns Siches, jurista espanhol estabelecido no México, também criticou a lógica formal e procurou
desenvolver uma lógica do razoável. Na sua opinião, no raciocínio jurídico o razoável é uma noção que
aparece com muito maior freqüência que as de racional e irracional. Seria portanto fútil tentar reduzir o direito
a um formalismo e a um positivismo jurídico, uma vez que o desarrazoado não pode ser admitido na atividade
jurídica.
40
Tércio Sampaio Ferraz, professor na USP, desenvolveu longos estudos seguindo a via aberta por Viehweg e
caracteriza-se também pela volta aos tópicos como instrumento interessante para se pensar o problema da
decisão jurídica.
41
Boaventura de Sousa Santos pretende apresentar um direito dissociado dos défices e excessos da
modernidade. Este repensar radical do Direito procura estabelecer um direito pós-moderno cujos objetivos
principais seriam a incorporação das ordens jurídicas subalternas, a realização da democracia, o

90
outros, numa lista quase interminável. Obviamente muitos ficaram de fora, e tal se

deu fundamentalmente por dois motivos: primeiro porque seria impossível tratar

todos os pensadores pertinentes, devido à sua enorme quantidade e, segundo,

porque entende-se que tais pensadores ou escapam um pouco da perspectiva

adotada nesse estudo44 ou são ainda propostas que assumirão feições mais

completas em outros teóricos. Procurando-se evitar desvios, entendeu-se que os

cinco autores selecionados constituiriam uma amostragem interessante acerca dos

estudos realizados sobre a racionalidade jurídica.

5.3.1. Dworkin

Ronald Dworkin procura evitar as falhas das teorias realistas, positivistas e

hermenêuticas a partir da elaboração de um procedimento de elaboração

construtiva, pelo qual o juiz pode chegar a uma decisão correta, construída a partir

de princípios jurídicos. Sua teoria busca uma racionalidade para a decisão jurídica,

que tenha por função reduzir a incerteza do direito. Segundo Calsamiglia:

"Dworkin sustenta que quando existe um conflito não se pode deixar o tema nas
mãos da discrição do juiz. Este deve dar o triunfo ao princípio que tenha maior
força de convicção. A tarefa do juiz será a justificação racional do princípio eleito.
(...) A decisão correta será aquela que satisfaça o máximo de adesão." (In:
Dworkin, 1989:19).

reconhecimento da natureza argumentativa do discurso jurídico e a intersubjetividade e dialogicidade como


elementos de legitimação.
42
Paul Ricoeur, eminente filósofo francês, voltou-se para o estudo do direito e procurou solucionar o
problema da decisão jurídica a partir da noção aristotélica de phronesis. O raciocínio jurídico exigiria uma
certa flexibilidade e inventividade.
43
Niklas Luhmann, intrigante pensador alemão, propõe integrar o direito numa teoria mais geral dos sistemas.
A argumentação jurídica é um acontecimento comunicativo, uma operação interna ao sistema do direito.
44
Por exemplo, apesar de entender que a teoria dos sistemas constitui uma interessante via teórica para
trabalhar a questão da racionalidade jurídica atualmente, tal estudo se desviaria muito do foco retórico aqui
pretendido. Krawietz (1985) ressalta a dificuldade de se integrar a teoria dos sistemas à atual racionalidade do
direito.

91
Dworkin abandona explicitamente as teorias positivistas ressaltando

sobretudo a proximidade entre direito e moral na prática jurídica dos Tribunais. O

raciocínio jurídico depende do raciocínio moral, sobretudo nos casos difíceis. Seu

ataque baseia-se na distinção entre regras e princípios. Ambos servem como

argumentos na fundamentação jurídica, porém têm valores distintos na lógica da

argumentação. Para Habermas, "contra o positivismo, ele (Dworkin) afirma a

possibilidade de decisões "corretas", cujo conteúdo é legitimado à luz de princípios

(e não apenas formalmente, através de procedimentos)" (1997:252)

No processo decisório, sobretudo nos casos difíceis, deve-se exigir do juiz

que pese os princípios e decida pelo que tem o maior peso. Segundo Calsamiglia,

"nos casos difíceis os juizes não baseiam suas decisões em objetivos sociais ou

diretrizes políticas. Os casos difíceis se resolvem com base nos princípios que

fundamentam o direito." (In: Dworkin, 1989:21). Dworkin elabora assim a figura do

Hércules, juiz omnisciente capaz de solucionar todos os casos encontrando

respostas corretas. Tal juiz dissolveria a tensão entre originalidade judicial e

história institucional. Para Habermas:

"O "juiz Hércules" dispõe de dois componentes de um saber ideal: ele conhece
todos os princípios e objetivos válidos que são necessários para a justificação; ao
mesmo tempo, ele tem uma visão completa sobre o tecido cerrado dos elementos
do direito vigente que ele encontra diante de si, ligados através de fios
argumentativos." (1997:263).

Segundo a interpretação de Juliana Neuenschwander Magalhães, "a

aplicação do direito, tendo em vista a justiça como equidade, é tarefa de um juiz

dotado de qualidades quase que impossíveis de coexistirem em uma só pessoa,

razão pela qual chama este juiz "ideal" de Hércules" (p.438). Assim, o programa de

92
Dworkin apresenta-se como irrealizável, sobrecarregando o juiz com tarefas cuja

solução é impossível.

Dworkin sustenta ainda que a teoria do direito será capaz de reduzir a

insegurança mediante a justificação de critérios objetivos. Tal proposta aproxima-

se assim mais do positivismo que da retórica jurídica. Ao invés de se justificar

idealmente o direito na coerência de um sistema, deve-se procurar reconstruir

racionalmente o direito numa teoria mais modesta. A própria segurança jurídica

deveria ser vista como mais um princípio dentre os outros, e não como um

princípio superior ao qual o juiz deveria sempre articular todos os demais em vista

dele.

Habermas entende que Dworkin deveria libertar Hércules de uma

construção teórica empreendida monologicamente, acreditando que "é possível

ampliar as condições concretas de reconhecimento através do mecanismo de

reflexão do agir comunicativo, ou seja, através da prática de argumentação"

(1997:277). Concluindo suas críticas e indicando o caminho para a sua proposta,

Habermas conclui dizendo que:

"A crítica à teoria do direito solipsista de Dworkin tem que situar-se no mesmo
nível e fundamentar os princípios do processo na figura de uma teoria da
argumentação jurídica, que assume o fardo das exigências ideais até agora
atribuídas a Hércules." (1997:280).

5.3.2. Alexy

A tese principal sustentada por Alexy é a de que “o discurso jurídico […]

pode conceber-se como um caso especial do discurso prático geral que tem lugar

93
sob condições limitadoras como a lei, a dogmática e o precedente”45 (1997: 177). E

o paradigma de tal teoria é a teoria do discurso racional (1985:44). Alexy, embora

criticamente, toma da teoria habermasiana da situação ideal do diálogo. Esta

consiste numa situação lingüística ideal em que a comunicação entre os

participantes não pode ser impedida nem por causas contingentes externas nem

por coações que surjam ao longo do processo discursivo. Tanto a coação quanto a

falta de sinceridade podem comprometer o discurso. Alexy defende esta idéia de

Habermas quando afirma que é possível uma realização aproximada desta

situação.

Concebendo o discurso prático racional como discurso normativo, o autor

vai apontar como características dele uma série de regras. "O problema central da

teoria do discurso é a formulação e justificação do sistema de regras" (1985:52).

Estas regras são “consideradas como normas para a fundamentação de normas”

(1997: 178). Dentro deste contexto, Alexy (1997) aponta as regras fundamentais,

as regras da razão, as regras sobre o encargo da argumentação, as formas de

argumentos, as regras de fundamentação e as regras de transição. Alexy procura

afirmar que o discurso jurídico contém estas regras citadas do discurso prático

geral, e também a pretensão de correção é comum ao discurso jurídico.

Alexy centra sua análise na questão das decisões jurídicas, adotando a

noção de justificação interna e justificação externa. A justificação interna consiste

na estrutura silogística para aplicação de uma determinada norma a um caso

concreto. Já a justificação externa tem por meta averiguar a correção das

45
No espanhol: “el discurso jurídico[…] puede concebirse como um caso especial del discurso prático
general que tiene lugar bajo condiciones limitadoras como la ley, la dogmática y el precedente”.

94
premissas utilizadas na justificação interna. Em suma, há seis grupos de

justificação externa, a saber: os cânones de interpretação, a argumentação

dogmática, o uso dos precedentes, a argumentação prática geral, a argumentação

empírica e as formas especiais de argumentos jurídicos. O objetivo central da

justificação externa é a análise destes grupos acima citados com vistas à

“compreensão de sua necessidade e a possibilidade de sua vinculação” (1997:

223).

Em verdade, há uma interseção entre o discurso jurídico e o discurso prático

geral, uma vez que nem todas as regras do discurso jurídico vão derivar do

discurso prático geral. A racionalidade jurídica é a mesma racionalidade que se

pretende alcançar no processo comunicativo. Habermas observa uma grande

falha, ou pelo menos uma fraqueza teórica, nessa afirmação, dizendo que:

"Alexy teria que mostrar que esses princípios processuais e máximas de


interpretação (...) apenas especificam as condições gerais do processo de
discursos prático-morais em relação à ligação com o direito vigente. Para
satisfazer a essa exigência não basta fazer uma breve referência às semelhanças
estruturais entre as regras e formas de argumentos aduzidos para os dois tipos de
discurso." (1997:288-289).

É importante verificar que a discursividade jurídica vai apresentar

especificidades que devem ser tratadas de forma especializada e não de forma

subsidiária como ocorreria se se adotasse a tese alexyana do caso especial. "A

dimensão de validade mais complexa das normas do direito proíbe equiparar a

correção de decisões jurídicas à validade de juízos morais e, nesta medida,

considerá-la como um caso especial do discursos morais" (Habermas, 1997:290).

Para Habermas precisa-se enfrentar a tarefa de uma reconstrução racional do

direito vigente, entretanto:

95
"Seria natural encaminhar a teoria discursiva do direito conforme o modelo da ética
do discurso, melhor elaborada. Entretanto, nem o primado heurístico dos
discursos prático-morais, nem a exigência segundo a qual regras do direito não
podem contradizer normas morais, permitem que se conclua, sem mais nem
menos, que os discursos jurídicos constituem uma parte das argumentações
morais." (1997:287).

Posto isto, não se pode deixar de assegurar que a contribuição do jurista

alemão é relevantíssima para o estudo da racionalidade do discurso jurídico. Ao

tentar provar a tese do discurso jurídico como caso especial do discurso prático

geral, Alexy acabou por promover importantes avanços na teoria da argumentação

jurídica, principalmente porque incorporou a idéia de racionalidade habermasiana à

dogmática jurídica, com a possibilidade de recorrer-se, sempre que possível, a

enunciados práticos gerais. Neste contexto, a decisão jurídica deve passar por um

processo de racionalização que, sem dúvida, contribui para o aprimoramento das

instituições e dos operadores do Direito.

Outra importante crítica a se considerar é o fato de que Robert Alexy

apenas elaborou uma teoria cujo objetivo maior não foi a busca pela racionalidade

comunicativa específica do discurso jurídico, mas antes a adequação de regras do

discurso jurídico e sua coincidência com as do discurso prático racional. De fato,

Alexy foca sua análise na procedimentalização da fundamentação jurídica, ou seja,

no aspecto meramente formal. Entretanto, uma decisão jurídica só deve ser

considerada racional se pudesse ser justificada por uma instância meta-jurídica,

caracterizada pela obediência às regras do discurso.

Por fim, as regras do discurso jurídico elaboradas por Alexy não servem

como critério para solucionar qualquer caso jurídico, sobretudo os difíceis. Como

diz Atienza, "Alexy teria de ter desenvolvido algo como uma teoria da

96
razoabilidade, que fornecesse algum critério para escolher, entre as diversas

soluções racionais, a mais razoável." (2000:300). Entretanto, os critérios de

racionalidade prática são muito estreitos e sua proposta é excessivamente

procedimentalista e formalista.

5.3.3. Habermas

Habermas entende o problema da racionalidade jurídica sobretudo como

uma tensão entre facticidade e validade, ou seja, uma tensão entre o princípio de

segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas. Segundo Habermas:

"Para preencher a função socialmente integradora da ordem jurídica e da


pretensão de legitimidade do direito, os juízos emitidos têm que satisfazer
simultaneamente às condições da aceitabilidade racional e da decisão
consistente. E, uma vez que ambas nem sempre estão de acordo, é necessário
introduzir duas séries de critérios na prática da decisão judicial." (1997:246).
"O problema da racionalidade da jurisprudência consiste, pois, em saber como a
aplicação de um direito contingente pode ser feita internamente e fundamentada
racionalmente no plano externo, a fim de garantir simultaneamente a segurança
jurídica e a correção." (1997:247)

A busca da decisão correta para Habermas difere das exigências ideais

postuladas por Dworkin uma vez que o primeiro busca traduzir essas exigências

centradas no juiz Hércules numa exigência de um processo cooperativo, de um

discurso jurídico que satisfaça o ideal regulativo de uma decisão correta sem

contudo abandonar a falibilidade da prática concreta de decisão. "Correção

significa aceitabilidade racional, apoiada em argumentos" (Habermas, 1997:281), o

que só é possível através do discurso, pelo caminho de uma fundamentação que

se desenvolve argumentativamente.

97
Para Habermas, a simples possibilidade de revisão obriga os tribunais a

uma fundamentação cuidadosa, que decida cada caso particular sem comprometer

a ordem jurídica em seu todo. Há argumentação racional quando se leva em conta

não somente a validade dedutiva (lógica formal) e a validez (eficácia social) mas

também a legitimidade.

Levando em conta a ação orientada ao entendimento, a intersubjetividade e

a dialogicidade, componentes essenciais da racionalidade comunicativa, é natural

que o discurso jurídico se aproxime do ideal democrático, uma vez que, ao

estabelecer-se o diálogo entre os participantes, é necessário que a todos sejam

garantidos meios necessários e suficientes para expressarem-se e apresentarem

seus argumentos de forma a obter-se, ao final, o consenso. Por isso, pode-se dizer

que o discurso jurídico, quando compreendido a partir da racionalidade

comunicativa, caminha naturalmente no sentido de obter consenso e entendimento

os quais decorrem da apresentação de argumentos legítimos.

Este discurso jurídico será tanto mais efetivo quanto mais capaz for de

incorporar as diversas visões de mundo e experiências (o mundo da vida)

daqueles que tomam parte na comunicação. De fato, o mundo da vida é o pano de

fundo, pressuposto para realização desta ação voltada para o entendimento que se

pretende, no caso específico, na esfera do direito. Dessa forma, é necessário que

a racionalidade não se reduza ao mero resultado final do procedimento de

justificação das decisões jurídicas. Segundo Gustin, "Habermas defende em sua

Teoria da Ação Comunicativa a descolonização do mundo da vida e a recuperação

de um processo que promova a solidariedade, a espontaneidade e a cooperação

98
como fundamentos da ação comunicativa" (1999:185). Dessa forma, o direito

assume nitidamente uma função emancipatória.

Para Habermas, a ordem, do ponto de vista da teoria jurídica, extrai sua

legitimidade da suposição de que os cidadãos são sempre capazes de se

entenderem. A comunidade jurídica constitui-se a partir de um acordo obtido

discursivamente e não mais através de um contrato social. Dessa maneira,

substitui-se uma ficção por outra. Ao invés de se acreditar num acordo inicial, crê-

se na possibilidade de um consenso guiado apenas pela força do melhor

argumento, o que já foi criticado quando da exposição da filosofia de Habermas.

O professor Alessandro Pinzani, em palestra proferida na Faculdade de

Direito da UFMG, elaborou uma série de críticas à teoria jurídica de Habermas, das

quais ressalta-se três: primeiro, Habermas não realizou uma distinção

suficientemente clara entre direito e moral, parecendo antes que o primeiro assume

as funções do segundo; em segundo lugar, a questão do uso legítimo da força,

elemento essencial do conceito mesmo de direito, não recebeu nenhuma

consideração de Habermas; em terceiro lugar, Habermas reduz a questão da

legitimidade do direito à questão dos mecanismos que permitem a produção de

normas jurídicas legítimas e identifica este mecanismo no procedimento formal

democrático, no papel da opinião pública e na existência de direitos fundamentais,

os quais, por só existirem dentro de um ordenamento jurídico positivo, resultam

insuficientes como critério para a legitimidade da norma jurídica e da instituição do

Direito.

Concluindo, tem-se que Habermas, seguindo uma abordagem crítica da

racionalidade, procura mostrar que os pressupostos da argumentação racional

99
dão-se em toda argumentação, como condição de possibilidade e de sentido da

linguagem mesma. No plano do direito, Habermas busca uma sustentação para a

racionalidade jurídica como racionalidade consensual e discursiva. A partir da

distinção entre racionalidade instrumental, como uso parasitário da linguagem e da

comunicação, e racionalidade comunicativa, como exercício coerente da

comunicação, Habermas procura assim justificar uma distinção entre a retórica

como técnica de persuasão e como argumentação racional. Ao pretender fundar a

racionalidade jurídica na comunicativa, Habermas além de carregar consigo todos

os problemas advindo de sua postulação da "situação ideal de fala", analisada no

capítulo 4.4.3, ele obscurece a distinção entre direito e filosofia, pretendendo

aplicar o mesmo critério de racionalidade tanto para o jurista como para o filósofo.

Ao contrário, deveria-se ressaltar o aspecto fático da decisão jurídica e sobretudo

a necessidade de solução. Tal problema deve-se à concepção habermasiana de

que toda comunicação tende ao entendimento como seu telos imanente, o que não

permitiu a Habermas observar que nem sempre é possível chegar a um consenso

apenas pela força do melhor argumento. Ou seja, ao invés de racional, a decisão

jurídica deve buscar ser sobretudo razoável, sem pretender excluir completamente

o uso da força na esperança de um telos imanente à comunicação.

5.4. A razoabilidade

A razoabilidade é o elemento articulador essencial, associado à idéia de

aceitabilidade. Em verdade, a razoabilidade pode ser definida como a aceitação

100
numa dada comunidade a partir de consideração racional e de determinados

valores culturalmente estabelecidos. O direito pós-moderno, que se pretende

democrático, deve produzir um discurso interconectado com as necessidades, os

anseios e os valores culturalmente aceitos numa determinada sociedade. Em

decorrência disso, está aberto a incertezas, instabilidades e mudanças, mas não

deixa de ser previsível, porque seu resultado advirá sempre de procedimentos e

análises interpretativos razoáveis, isto é, aceitos por aqueles que participam do

discurso.

Em seguida, serão analisados dois pensadores do direito que buscaram no

razoável o campo para a justificação das decisões jurídicas, sendo eles Aarnio e

Perelman.

5.3.4. Aulis Aarnio: racional como razoável

A teoria de Aarnio tem por objeto a interpretação e justificação jurídica.

Neste propósito, procura o autor combinar três grandes pontos de vista: a nova

retórica de Perelman, a filosofia lingüística do último Wittgenstein e a racionalidade

discursiva de Habermas. Deve-se ressaltar que o próprio Aarnio verifica ser difícil

realizar a junção e a conciliação destas três vertentes filosóficas. No entanto, seu

principal objetivo é mais modesto, pois se resume a buscar pontos de contato

fecundos (cf. Aarnio, 1991).

Partindo da idéia de aceitabilidade racional, Aarnio substitui a racionalidade

jurídico-instrumental pela racionalidade comunicativa. A razoabilidade aqui se põe

como um conceito complexo cujo objetivo é impregnar o processo de

101
argumentação jurídica não só de regras do discurso prático geral mas também de

valores extrajurídicos. Constata-se que razoável significa aceitação geral da

comunidade em relação à criação e à aplicação do direito, mediante o uso de

regras do discurso racional. Com isso, Aarnio elaborou uma verdadeira doutrina de

justificação da justificação em que a razoabilidade nada mais é do que um

acréscimo qualitativo à teoria da racionalidade jurídico-dogmática. Neste sentido,

diz-se que o razoável representa a busca pelas características de fundo, ou

melhor, pelo conteúdo material do processo argumentativo no direito. Aarnio,

servindo-se da teoria dos jogos de linguagem do segundo Wittgenstein, pretende

analisar a dogmática jurídica da forma mais razoável possível. O autor finlandês

não se contenta em colocar a dogmática no campo da racionalidade formal.

Aarnio (1991) apresenta dois elementos substanciais na conceituação de

certeza jurídica: a correção da decisão e a ausência de arbitrariedade. Sabe-se

que a pretensão de correção foi amplamente exposta por Alexy ao tentar criar um

procedimento racional de fundamentação das decisões jurídicas fundado no

discurso prático geral. No entanto, o diferencial ocorre no fato de que, para obter a

plena certeza jurídica, é preciso evitar arbitrariedades, tornando, pois, a aplicação

do Direito previsível. Aarnio vai acrescentar à idéia de eliminação de arbitrariedade

dois aspectos: a decisão deve estar de acordo com o Direito Positivo e estar em

conformidade com normas sociais não jurídicas.

Dentro desta perspectiva, poder-se-ia pensar que a razoabilidade

substituiria qualquer outra forma de aplicação do Direito, como um meio

universalmente aceito. No entanto, é o próprio Aarnio quem alerta para o fato de

que:

102
"não há meios universalmente aplicáveis que permitam controlar um argumento tal
como o da razoabilidade de uma solução. Sem pôr em perigo a estabilidade, não é
possível tomar uma decisão jurídica ou explicá-la totalmente deixando de lado a lei
e aduzindo somente a razoabilidade, a eqüidade ou outros fins considerados muito
valiosos. A decisão jurídica cria sempre um equilíbrio entre a letra da lei e outros
fatores que influem no assunto. Trata-se da questão de saber como aplicar a lei de
forma tal que conte com a aceitação geral" (1991: 34-35).

O autor finlandês procura conciliar as versões legalistas com as anti-

legalistas de forma a chegar a uma espécie de denominador comum. Isso quer

dizer que a razoabilidade vai dar um novo contorno ao processo de justificação das

decisões jurídicas (justificação da justificação).

Sem dúvida, a razoabilidade, em Aarnio, é um conceito complexo e elástico

cujo objetivo maior é alcançar a aceitação geral. Aarnio diz que a dogmática

jurídica não necessita de uma ontologia do direito e afirma que a questão pela

existência de uma norma converteu-se numa questão de validade. Seguindo a

idéia de Wittgenstein de “semelhanças de família”, Aarnio diz que os jogos de

linguagem que se ocupam da validade funcionam sem necessidade de adotar

novas entidades. Não se necessita de nenhuma suposição ideal das normas

jurídicas para entender os jogos de linguagem. Neste contexto, Aarnio procura

explicar a aplicação do razoável tendo em vista a divisão tripartiste de Wróblewski,

a saber, validade sistêmica (vigência), validade fática (eficácia) e validade

axiológica (aceitabilidade). A validade sistêmica se restringe a uma análise de

conteúdo formal, isto é, se a lei foi promulgada segundo o procedimento devido,

não foi derrogada, não contradiz outra norma do sistema e se, havendo

contradição, existe uma regra para solucionar o conflito. A eficácia ou validade

fática é aquela que se preocupa com a eficácia real, e ocorre quando os cidadãos

103
seguem regularmente a norma em seu comportamento. A aceitabilidade ou

validade axiológica prevalece quando há racionalidade na argumentação e uma

certa base valorativa. Neste caso, a justificação se comporia de elementos

extrajurídicos referentes a um certo código de valores. Somente à luz deste

terceiro tipo de validade é possível compreender a relatividade das interpretações.

Para Aarnio, “as normas jurídicas não estão baseadas unicamente na validade

formal mas também em valores aceitos ou aceitáveis (racionalmente) na

sociedade” (1991: 295).

Dentro deste contexto, qual seria o objetivo da argumentação razoável

segundo Aarnio? A resposta parece simples. O fim de toda argumentação seria

demonstrar quais normas deveriam ser aceitas em uma comunidade jurídica se os

assuntos são considerados racionalmente.

Já se disse acima que a razoabilidade está conectada com a idéia de

aceitabilidade. De fato, deve ser entendida como aceitação geral dentro de um

contexto valorativo. Todavia, o que distingue a razoabilidade da racionalidade? “A

racionalidade jurídica refere-se ao paradigma da dogmática jurídica” (Aarnio, 1991:

240). Acontece este tipo de racionalidade quando se aplicam as fontes do direito e

se seguem as pautas de interpretação. Consiste no paradigma tradicional do

raciocínio jurídico.

A racionalidade pode entretanto assumir duas facetas: racionalidade jurídica

ou jurídico-instrumental e a racionalidade comunicativa habermasiana. Até este

momento, ainda não se fez menção à aceitabilidade e sua relação com a

racionalidade. Haveria implicação entre estes conceitos? Aarnio confirma que a

aceitação não se confunde com o tipo de racionalidade jurídico-instrumental, que é

104
característica do resultado final do procedimento de justificação jurídica. Isso quer

dizer que a aceitabilidade não está relacionada entre um dos instrumentos

necessários à consecução do procedimento de argumentação jurídico-racional tal

qual exposto por Alexy. Por isso, Aarnio fala em “aceitabilidade racional dos

pontos de vistas interpretativos” (1991: 241), o que demonstra o caráter dialógico

da interpretação e naturalmente liga a aceitabilidade à racionalidade comunicativa.

Esta nada mais é do que a estrita vinculação à argumentação e ao convencimento,

em poucas palavras, é a base da compreensão humana.

Segundo Aarnio, “o conceito de racionalidade está conectado com a

conclusão, quer dizer, com o conteúdo material da interpretação e não com a

forma do raciocínio ou com as propriedades do procedimento justificativo” (1991:

247). Por isso, a razoabilidade é algo mais em relação à racionalidade, na

concepção aarniana, pois este autor se refere ao resultado razoável da

interpretação e não do procedimento razoável de justificação.

Aarnio acaba por se distanciar da racionalidade proposta por Alexy, uma vez

que este se atém às questões formais do processo de justificação, ou seja, a uma

verdadeira procedimentalização da noção de fundamentação na dogmática

jurídica. Em vista disso, o que seria para Aulis Aarnio o resultado aceitável? Em

síntese, seria aquele que corresponda ao sistema de valores da comunidade

jurídica. Será mais correto considerar a aceitabilidade do ponto de vista axiológico

e não meramente formal. Por isso mesmo, outra não pode ser a conclusão do

autor finlandês senão a de que a aceitabilidade racional é resultado de uma análise

cultural, haja vista seu conteúdo valorativo.

105
Retomar a idéia de mundo da vida, neste momento, é algo essencial, uma

vez que, para a existência de compreensão mútua e consenso no processo

racional comunicativo, faz-se necessário este pano de fundo a partir do qual os

participantes interagem. Eis aqui o elemento cultural a que se refere Aarnio como

imprescindível para alcançar um resultado aceitável racional. O mundo da vida

será o contexto, o background onde as pessoas podem lograr entendimento

recíproco.

Será a partir desse aprimoramento na busca pela implementação da

aceitabilidade racional, ou seja, da razoabilidade, é que se obterá a tão sonhada

certeza jurídica. Não se trata da segurança jurídica que é legada pelo positivismo

jurídico, mas sim certeza jurídica que significa previsibilidade e pretensão de

correção tendo em vista o contexto de aceitação geral de uma determinada

sociedade situada no tempo e no espaço.

5.4.1. Perelman: o razoável e o desarrazoado em direito

Para Perelman, o direito é a expressão de um consenso político e social

sobre uma solução razoável. Em matéria de direito, o desarrazoado constitui um

limite para qualquer formalismo. É por essa razão que a teoria pura do direito de

Kelsen é insuficiente, uma vez que ela separa o direito do meio em que ele

funciona, das reações sociais desse meio. Perelman faz assim uma oposição entre

o racional e o razoável no direito. As idéias de razão e racionalidade se ligaram a

modelos religiosos ou lógicos enquanto as de razoável são ligadas às reações do

meio social. Com diz Perelman:

106
"Enquanto as noções de “razão” e de “racionalidade” se reportam a critérios bem
conhecidos da tradição filosófica, tais como as idéias de verdade, de coerência e
de eficácia, o razoável e o desarrazoado são ligados a uma margem de
apreciação admissível e ao que, indo além dos limites permitidos, parece
socialmente inaceitável" (1996: 436).

Como foi visto no tópico 5.2.1., a respeito da lógica jurídica, Perelman opõe

claramente à lógica formal a lógica da controversa, dizendo que são duas

démarches claramente opostas. O direito não pode desinteressar-se do contexto

social e político. Dessa forma, a administração da justiça num Estado democrático

resulta de uma constante confrontação de valores, de um diálogo entre o poder

judiciário, o legislativo e a opinião pública.

Perelman critica tanto a teoria legalista do direito quanto a teoria da livre

vontade do juiz. Na perspectiva legalista, o direito é a expressão da vontade do

poder Legislativo que deve ser apenas aplicado pelo Judiciário. O juiz tem papel

apenas passivo, sendo apenas mais uma peça nessa justiça mecânica, na qual

não há equidade. A interpretação jurídica baseia-se numa lógica silogística

formalista, que não admite ambigüidades e preza pela coerência e completude do

sistema. Quanto à postura oposta, baseada na livre decisão do juiz, Perelman

considera ela por demais arbitrária, sem nenhuma segurança. Perelman procura

não permanecer em qualquer dos dois extremos.

A administração da justiça é um vaivém constante entre a letra e o espírito

da lei, uma constante confrontação de valores. Nesse jogo, a personalidade dos

juizes desempenha um papel essencial, a ele não cabe apenas concluir como um

autômato, mas sobretudo decidir e justificar sua decisão. Perelman define o juízo

como a capacidade de escolher ou de decidir de forma não arbitrária, de

107
preferência razoável, que não se oponha à razão e ao senso comum e que

manifeste bom senso. O direito é uma questão de decisão, e não de cálculo. O

juiz, ao interpretar a lei, deve levar em consideração a vontade do legislador

razoável, que não pode querer o que é socialmente inaceitável. No direito, vários

pontos de vista podem se apresentar como igualmente razoáveis e o problema

está em decidir da melhor maneira possível. De início, deve-se eliminar o

desarrazoado, ou seja, o que é inadmissível, o que não pode ser aceito pela

opinião comum, o que for manifestamente inadequado à situação ou contrário à

equidade.

Ao se perguntar de que tipo seria a argumentação jurídica tal como

Perelman a entende, Garcia Amado apresenta uma interessante interpretação:

"Perelman admite que a argumentação jurídica difere, devido aos


condicionamentos práticos a que está submetida, do tipo de argumentação
racional encarnado pela filosofia. A argumentação jurídica pode ser mencionada
inclusive como exemplo de justificação dirigida a um auditório particular. Daí que o
direito e sua racionalidade possível apareçam em Perelman em termos um tanto
equívocos: o direito é simultaneamente ato de autoridade e obra de razão e de
persuasão. (...) Com isso nos encontramos ante o dilema de se no manejo prático
do direito e na justificação de suas decisões se dá realmente mais relevância ao
dado da eficácia ou ao elemento da razão". (2000)

Apesar da oposição entre razão e eficácia ser um problema, já foi visto que

a perspectiva retórica ultrapassa esse dilema ao conceituar a própria razão como

um discurso humano dirigido a um auditório universal. No caso do direito, não se

deve pensá-lo como oscilando da autoridade para a razão, mas antes buscando a

decisão mais razoável, que não será nem evidente nem arbitrária. Garcia Amado

não percebeu todas as implicações da postura retórica e assim insiste na oposição

108
entre razão e mera eficácia, tal qual um dilema não solucionado, frente ao qual o

direito deve escolher a razão.

Resumindo, pode-se dizer que em Perelman encontra-se a eterna dialética

entre o formalismo e o pragmatismo jurídicos. Para solucionar a questão, Perelman

propõe que se abandonem as clássicas noções de razão e racionalidade pela de

razoabilidade. Em suas palavras, “introduzindo a categoria do razoável numa

reflexão filosófica sobre o direito, julgamos esclarecer utilmente toda a filosofia

prática, por tanto tempo dominada pelas idéias de razão e de racionalidade”

(1996:436).

6. CONCLUSÃO

O direito não deve ser exercido de maneira arbitrária. Mas disso também

não resulta que deva ser eminentemente racional. Existe um meio termo, que pode

ser classificado como outra espécie de exercício racional "mais débil", denominado

razoabilidade. O razoável está ligado ao que é aceitável numa comunidade dada e

não à idéia de verdade. Como a razoabilidade da decisão não se mostra como

evidente ou necessária, mas deve ao contrário ser justificada, o instrumento

adequado para tal será a retórica.

Para justificar porque a razoabilidade deve ser o critério de justificação

jurídica e não a racionalidade, deve-se voltar ao problema filosófico da

racionalidade. Espera-se assim mostrar em que consiste a racionalidade filosófica

e daí concluir porque a filosofia pode ser dita racional e o direito não.

109
Como toda argumentação se desenvolve em função de um auditório, o

grande dilema da teoria da argumentação está na tensão entre eficácia e

racionalidade da justificação. Para solucionar esse problema deve-se voltar a

atenção para o problema da qualidade do auditório. Vimos que, na filosofia, a

racionalidade foi encontrada na postulação de um auditório universal, que ainda

que seja constituído local e historicamente, retira seu caráter privilegiado do fato

do orador visar com a argumentação filosófica um auditório sempre mais amplo,

incluindo a si mesmo. Do fato da argumentação filosófica estar sempre aberta,

podendo tudo sempre ser colocado em questão, é que ela pode ser dita racional. A

racionalidade da filosofia não advém de um fundamento último, colocado fora de

qualquer discussão, mas decorre simplesmente do fato dela ser um

empreendimento autocorretivo, onde nada está imune à revisão.

Já no direito, tem-se como característica primordial a necessidade de se fazer

coisa julgada. O direito não pode se calar diante de uma questão a ele

apresentada e também não pode submeter tais questões a debates infindáveis. A

obrigatoriedade de decidir e de fazê-lo de maneira aceitável constitui o grande

drama da decisão jurídica. Ao se eqüivaler a aceitabilidade da decisão jurídica ao

fiel cumprimento de uma subsunção lógica, o positivismo deixou vastas áreas

descobertas e entregues ao arbítrio. Mesmo abandonando a ilusão da

sistematização lógica completa do mundo jurídico, a racionalidade jurídica também

não oferece uma saída aceitável.

Em que sentido podemos dizer que a decisão jurídica é racional? Não se

acredita que o mero cumprimento de determinados procedimentos pode conferir tal

título à decisão. Para tal, seria necessário haver uma justificação para tais

110
procedimentos que seria, ela mesma, externa ao debate jurídico. Sendo assim,

como pode ser racional, no mesmo sentido filosófico, uma justificação que ocorre

num espaço duplamente limitado? Primeiro, porque o próprio procedimento

discursivo está colocado fora de questão e, segundo, porque tal discussão deve

obrigatoriamente chegar a uma solução. Como foi visto, não se deve postular o

consenso como o caminho natural da argumentação. Dessa forma, apenas um

procedimento pode garantir que se chegará a uma decisão, mas ele mesmo nada

pode dizer a respeito da racionalidade dessa decisão.

Nesse sentido, propõe-se a razoabilidade como substituto da racionalidade.

A decisão jurídica será aceitável não devido a seu caráter racional, como temos na

filosofia, mas devido a sua razoabilidade. A razoabilidade não deve ser equiparada

ao arbítrio e nem à evidência. Como foi visto, também a retórica encontra-se nesse

intervalo. Uma vez que não se tem mais essa clivagem rígida (razão-violência),

pode-se falar em graus de racionalidade e de arbítrio. A retórica filosófica analisa a

argumentação enquanto uma prática que, por suas características, pode ser dita

racional. Já a retórica jurídica, devido a especificidade do direito, deve buscar

antes o razoável.

111
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