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A Miséria Brasileira
1964 – 1994: do golpe militar à crise social.1
J. Chasin

Apresentação de Milney Chasin.2

O leitor encontrará ao longo das páginas desse livro um conjunto de artigos densos e mais ou menos extensos acerca da
vida nacional, que analisam o período compreendido entre o golpe de 64 e o Plano Real. Trata-se de uma interpretação
rigorosa da realidade brasileira dos últimos 30 anos, abordando temas que vão da economia à política, do perfil ideológico da
burguesia brasileira ao fracasso das esquerdas no âmbito prático e ideológico. Em outros termos, o leitor fará uma incursão no
interior das grandezas e mazelas de nossa sociabilidade, de nossa formação histórica, de nossa formação ideal, de nossas
perspectivas e daquilo que deixamos de fazer por medo ou incompreensões de toda sorte. Em suma, uma rica e cativante
análise sobre o que somos, incluindo nossas origens e perspectivas. A análise chasiniana é feita tal qual a preocupação de um
ourives que, ao lapidar a pedra, reconhece o seu grau de pureza e a expressa sob a forma da objetividade mentada, isso é, do
reconhecimento dos traços marcantes da realidade por si.
Para o leitor ainda pouco familiarizado com a obra chasiniana, faz-se necessário demarcar a originalidade e o conteúdo
de A Miséria Brasileira. Antes de mais nada, tal reflexão é realizada a partir do reconhecimento e do esforço em apreender a
malha constitutiva do processo formativo do capitalismo no Brasil. Ou seja, o objetivo de Chasin era compreender a realidade
nacional, sua natureza própria, sua efetividade, de sorte que sua pesquisa pode e deve ser considerada enquanto análise
imanente do conjunto social que, nas palavras do autor, emerge da seguinte maneira: “Miséria brasileira é determinação
particularizadora, para o âmbito do capital e do capitalismo de extração colonial, da fórmula marxiana de ‘miséria alemã’.
Compreende processo e resultantes da objetivação do capital industrial e do verdadeiro capitalismo, marcados pelo acentuado
atraso histórico de seu arranque e idêntico retardo estrutural, cuja progressão está conciliada a vetores sociais de caráter
inferior e à subsunção ao capital hegemônico mundial” (“A Esquerda e a Nova República”). Isto significa que Chasin recusa
qualquer paradigma científico ou metodológico a priori, reconhecendo que só a escavação das entificações, por meio de
abstrações razoáveis, pode levar ao conhecimento do real em seu significado próprio. Por outro lado, em que pesem acertos
ou equívocos, a reflexão de Chasin procurou se ater aos dados fornecidos pela sociabilidade brasileira, por sua gênese história
e por seu desenvolvimento. Nada de subjetivismos ou imputações que obstaculizam o reconhecimento daquilo que se
pretende conhecer. Em outras palavras, tratava-se de reconhecer a verdade, isto é, as qualidades e os predicados de nossa
formação. Nesse sentido, Chasin é um exemplo de como se deve proceder na crítica da realidade social.
Visando a conhecer tal realidade, Chasin propõe, na segunda metade da década de 70, em sua tese doutoral O Integralismo de
Plínio Salgado, a determinação de Via Colonial para a formação capitalista dos países de extração colonial. Ou seja, ao lado dos
casos clássicos (França e Inglaterra) ou da chamada via prussiana (Alemanha e Itália), Chasin procurou reconhecer uma nova
via de objetivação do capitalismo, isto é, de países que transitaram para o capitalismo só muito tardiamente em virtude de sua
condição colonial. Em termos breves: a Via Colonial reconhece a emergência de países que transitaram para o capitalismo de
forma “hiper-tardia”, ou seja, no momento histórico onde as formações clássicas (França e Inglaterra) já estavam plenamente
desenvolvidas e as formações prussianas (Alemanha e Itália) lutavam por se estabelecer. De modo que países como o Brasil só
se puseram na cadeia capitalista de modo retardatário, o que gerou, necessariamente, mazelas e limites de toda ordem. É,
portanto, sobre os limites históricos de nossa sociabilidade que este livro se debruça. A atenção sobre nossa formação
econômica, social e ideológica é, sem dúvida, o cerne de toda a sua reflexão.
Ao trabalhar a particularidade do caso brasileiro, Chasin emerge como autor original, pois manifesta clareza quanto à
identidade histórica do capitalismo no Brasil, isto é, não se perde em generalizações abstratas, não produzindo falsas analogias
com os casos clássicos ou prussianos. Cabe ressaltar, no entanto, que a particularidade do caso brasileiro não nega
simplesmente a universalidade da via clássica ou prussiana, mas que suas características se mostram com uma identidade
própria que foge, em vários aspectos, das outras formas de entificação.
Se somos herdeiros de um capitalismo “híper-tardio”, quais as heranças que forçosamente carregamos e quais as nossas
perspectivas? É nesse turbilhão infindável de questões que Chasin se e envolve e procura resolver.

1 Coletânea de artigos de J. Chasin (1937-1998) acerca da realidade brasileira, produzidos no decorrer da Ditadura Militar e no período
subseqüente, no qual se dá o processo de transição da autocracia burguesa pelo alto. Os artigos foram reeditados em São Paulo, pela
editora Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.
2 Mestre em Filosofia pela UFMG e Doutor em História pela USP. Professor de Filosofia na UNA – Belos Horizonte - MG.
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No interior das determinações da Via Colonial aparece, em primeiro lugar, a tentativa de compreender a natureza da
burguesia nacional. De sorte que em “¿Hasta Cuando?” Chasin afirma: para a “nossa burguesia /.../ o liberalismo econômico
(a livre troca para sustentar e ampliar sua própria natureza exploradora, através da associação crescente com a exploração
hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre apropriado e conveniente”. Ou seja, Chasin aponta para o caráter
subordinado e dependente de nossas classes dominantes. Em outros termos, vale ressaltar que a nossa burguesia fora gestada a
partir dos pólos hegemônicos das burguesias centrais, gerando, com isso, uma forma de ser do capital insuficiente e
amesquinhada, isso é, atrófica. Um capital que não realiza de forma plena nem as suas tarefas econômicas, que se vê obrigado
e impelido à superexploração do trabalho como forma de remunerar o capital interno e externo. Nas contundentes palavras de
Chasin em “A Esquerda e a nova República”: “Sua face é a de um embrião maldito condenado a uma gestação eterna. Cresce
e encorpa na reprodução de sua incompletude, engrossando sempre mais os cordões umbilicais que o atam às fontes que o
tolhem e subordinam”.
Tal perfil impede que as questões econômicas sejam debatidas e expostas em sua crueza. De modo que a debilidade
econômica de nossa burguesia gera o fenômeno ideológico e prático do politicismo. “Politicizar é tomar e compreender a
totalidade do real exclusivamente pela sua dimensão política e, ao limite mais pobre, apenas de seu lado político institucional”.
De sorte que o politicismo “Expulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo econômico meramente paralelo
ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais” (Id.). O
viés politicista de nossa burguesia mostra-se, em termos práticos, por sua recusa das formas efetivamente democráticas de
dominação. Basta pensar as alternâncias entre o estado de direito e exceção que o nosso século vivenciou. Tais limites foram
analisados e determinados por Chasin como sendo a “incompletude de classe de nossa burguesia”.
Se a burguesia brasileira de extração colonial possui intrinsecamente estes limites, o que será da categoria do trabalho e
de suas perspectivas? Mais de uma vez Chasin manifesta originalidade em apontar que as perspectivas do trabalho,
manifestadas nas oposições, pagaram um alto preço ao politicismo. Em outros termos, Chasin passa a analisar as razões do
fracasso das chamadas esquerdas no Brasil do pós-64, identificando seus limites e incongruências. Chasin sempre manifestou
que as esquerdas no Brasil foram incapazes de reconhecer a tessitura processual da formação brasileira, isto é, jamais
identificaram a natureza particular de nossa formação histórica, acarretando, com isso, um despreparo teórico e prático para
uma intervenção social correta. Nos termos contundentes de “A Esquerda e a Nova República”: “A esquerda brasileira nasce,
portanto, submersa no limbo, entre o inacabamento de classe e o imperativo meramente abstrato de dar início ao processo de
integralização categorial dos trabalhadores. Alma morta sem batismo, não atina para a natureza específica do solo em que pisa,
nem para a peculiaridade de postura e encargo que este chão dela demanda e a ela confere”. Isto reduz a ação das esquerdas ao
mero politicismo, que joga as oposições para o terreno estritamente institucional, ou seja, desconsideram as questões
econômicas, em prol do aperfeiçoamento político, isto é, da democracia. De modo que o caráter antidemocrático de nossa
burguesia faz com que as nossas oposições se coloquem enquanto baluartes da luta pela democracia, pelas franquias
democráticas, esquecendo, no entanto, que a luta pela democracia exigia e exige reformulações na esfera produtiva. Assim foi
com as Diretas-Já, com a eleição indireta de Tancredo Neves, com o Plano Cruzado, enfim, as oposições até bem pouco
tempo jamais focavam o problema econômico ou quando o faziam deixavam intocada a relação entre produção e distribuição,
considerando o problema econômico a partir de um ato político distributivista, isto é, supondo que basta a vontade política
para reordenar a distribuição sem alterar o processo de produção. Amarga ilusão que permanece.
Por último cabe ressaltar que Chasin, nos últimos anos, percebera o fim da Via Colonial. Isso aparece de modo
contundente em “O Poder do Real”, em que a caracterização do mundo atual é reconhecida, uma vez mais, na força de seu
realismo: hoje “o intercâmbio comercial” é “elevado ao primado das trocas infinitas e superpostas, sem embaraços de
fronteira. De modo que crescer passou a supor a capacidade de ocupar nichos na infinitude da malha da produção atualizada,
universo no que os mercados interno e externo não mais se distinguem: ao capital social global corresponde agora o Mercado
Único das trocas elevadas ao paroxismo”. Ou seja, as relações de subordinação, típicas do imperialismo neste século, cedem
lugar à guerra universal do capital sem pátria. O que não subentende o fim das contradições, mas estas ganham novos
contornos e desafios.
Em suma, um livro cujo mérito reside em impor-se como força argumentativa e original, sem rodeios e ao arrepio da
inteligência nacional. Sua leitura é, portanto, obrigatória.
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A “POLITICIZAÇÃO” DA TOTALIDADE:
OPOSIÇÃO E DISCURSO ECONÔMICO*
J. Chasin**

I
Pondo-se e repondo-se, desde 1964, como politicizadora da totalidade, a oposição no Brasil tem colhido sua subsunção,
voluntária ou involuntária, ao diapasão das perspectivas governistas. Não no sentido de encontrar, o que seria legítimo ou pelo
menos compreensível, uma tática operacionalizadora de sobrevivências e convivências possíveis, necessárias ainda que compulsórias,
mas na direção essencial de notas básicas das concepções que sintetizam a existência e os movimentos do social, e direcionam
a atividade prática. Com a diferença maior, substancial em termos de resultantes, de que a atuação situacionista distingue,
taticamente, entre o discurso econômico e o discurso político, recusando-se com “superioridades” ao debate do primeiro,
como se se tratasse de questão, pela natureza “imutável” de seu objeto, intrinsecamente pacífica para os iniciados, enquanto
concede controladamente, numa gradação que vai do zero a alguns magros pontos de uma estreita escala que ela própria
estabelece, a discussão “política”; em contrapartida, a oposição prima por só discutir neste plano, excluindo quaisquer outros,
ou reduzindo-os àquele. Assim, esquivando-se à controvérsia sobre a questão econômica, a situação torna vitoriosa a sua
política, ao passo que a oposição, brandindo dominantemente o “político”, colhe a derrota em todas as “instâncias”. É uma das
maiores e mais sutis vitórias da situação, num curso que já se estende por mais de uma década, fazer precisamente a oposição
propor e polemizar, viver exclusivamente o “político”, enquanto ela própria - a situação - retendo todos os comandos, realiza
seu projeto global. Com isto, desde logo é subtraída à oposição qualquer dimensão de eficácia, restando ainda, no liminar das
“necessidades”, quando a sutileza cede lugar ao poder ostensivamente explicitado, a possibilidade do acionamento do
instrumental da excepcionalidade; para, depois, tudo recomeçar como no fluxo de uma rotina consagrada, a sugerir o falecimento
da história.
Mas, para além do “político”, a história essencial prossegue na regência do espetáculo, o evolver do real não deixa de
se efetuar; e nesta esfera é decisivamente inoperante qualquer instrumento excepcional, tanto ou mais que qualquer inflamado
discurso brossardiano. Um ato pode, com certa facilidade, abolir ou transfigurar toda uma configuração jurídica, anular um
mandato ou algo equivalente, mas é irremediavelmente ineficiente para subtrair o peso específico das “contestações” objetivas
do tecido econômico. O governo, nos seus limites intrínsecos, é obrigado, mesmo a contragosto, a entender isto; a oposição,
ao contrário, é que dá a impressão de não saber ou de não querer compreender tais coisas.
Longe de qualquer dúvida, sob mais diversas formas, a marca que tem selado a identidade da oposição é a da
politização do discurso. Entenda-se por isto a redução do todo problemático nacional ao meramente político. Trata-se, em
suma, de algo que em muito se distingue da consideração de que todo grande problema é um problema político, no sentido de
que as grandes questões sociais têm sempre a magnitude dos negócios públicos. Radicalmente distinto também é do ato de
politizar, que implica em partir de uma equação da totalidade, conceitualmente elaborada. Ao inverso, o discurso politicizado da
oposição é a diluição, o desossamento do todo, a sua liquefação em propostas abstratamente situadas apenas no universo das
regras institucionais. São a autonomização e a prevalência politicológica do “político” em detrimento da anatomia do social, isto
é, do alicerce econômico. Esta elisão do metabolismo social fundante é uma inobservância mais do que visível da consideração
de que as “relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a
partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações
materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’, seguindo os ingleses e franceses do
século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política”[1] . Inobservância que,
justamente por destacar, isolar e hiper-acentuar o “político”, despolitiza, na exata medida que desliga o político da raiz que o
engendra e reproduz; numa palavra, na exata medida que o desqualifica enquanto político real, enquanto dimensão de um todo,
que só pelo todo possui especificidade, e do qual não faz sentido dizer que guarda autonomia, como se fora um cartão
destacável de um fichário de folhas soltas, passível de infinitos “embaralhamentos”. Sem sentido que não é minorado pela
propositura de uma relativização da autonomia afirmada, a não ser como nos clássicos, quando então já não se trata de
autonomia, mas da indicação da não-mecanicidade da relação, o que dizer da sua determinação enquanto vínculo essencial,
irremovível sob pena de desfiguração, que se objetiva num andamento constituinte profusamente mediado. Mediações,
ressalte-se, que se põem como ligamentos que unem organicamente à raiz, e não como desligamentos que dela afastam. O futuro,
que pende da extremidade de um ramo, une-se à raiz pelo esgalhamento que embrica no tronco, o qual, por sua vez, desce ao
solo. Seria tópico demais dizer que o fruto dista da raiz pelo espaço compreendido por ramos e caule, conferindo, assim, à
relação mais superficial e aparente o porte de determinação fundamental.
A autonomização do político e sua conseqüente hiper-acentuação é, de fato, seu esvaziamento numa entidade
abstrata, a perda de sua concretude, e decorrentemente de sua potência e eficácia. De todo modo, a politicização da totalidade
pelo discurso é pelo menos um grosseiro gesto simplificador que, no mínimo, desconhece, desrespeita e/ou elimina a

* Publicado originalmente na Revista Temas de Ciências Humanas, n° 2, São Paulo, Grijalbo, 1977.
** J. Chasin (1937-1998) foi um dos mais fecundos filósofos brasileiros, cujo trabalho intelectual esteve centrado na redescoberta do
pensamento de Marx e na luta pela vida autêntica, seguindo como princípio a formulação marxiana “ser radical é tomar as coisas pela raiz.
Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem”.
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qualidade própria das demais componentes que integram a totalidade. Converter e diluir tais qualidades ao meramente “político”,
além da bárbara arbitrariedade que subentende, é ao mesmo tempo uma condenação à impotência no plano objetivamente
político, na medida que este se põe como ação, pré-figurada mentalmente, que por interesse teleológico se submete à
intrincada causalidade do todo. O que é o mesmo que dizer que o agente para efetivar seu fim a este se submete, subordinando-
se, assim, necessariamente às propriedades e virtualidades de seu objeto. À evasão do concreto, induzida pela politicização, a
verdadeira política contrapõe, pois, a si mesma como prática que toma o trabalho como protoforma[2] .
Notoriamente complexo, o fenômeno da politicização da totalidade, no caso por parte da oposição, transcende ao
período posterior aos eventos de 64; contudo, configurações precisamente opostas a ele também já ocuparam o panorama
nacional: basta indicar que a década e meia que antecedeu o movimento de 64, foi acima de tudo, um período de programas
econômicos, - é suficiente recordar as questões relativas à implantação do monopólio estatal do petróleo, e a propositura, ainda
que muito debilmente elaborada, das chamadas reformas de base. O contraste que aí se configura, independentemente de
outras considerações, é por si só sintomático, indicativo de significações que há que, no devido lugar, determinar pela via única
das análises concretas, repelidas as simplificações generalizadoras, oferecidas como preciosismos, tão a gosto de certos
padrões hoje dominantes no campo historiográfico. De nossa parte, o acima aludido tem por propósito simplesmente
encaminhar para o objeto efetivo deste comentário: o reaparecimento de uma plataforma econômica no seio da oposição.
Com efeito, a abordagem econômica da oposição reduzia-se até recentemente à simples retórica da “A economia vai
bem, mas o povo vai mal”. Não que semelhante afirmação, de origem situacionista, seja completamente destituída de verdade.
Todavia, enquanto ela é efetivamente verdadeira no que diz respeito à sua parte final, implica, ao mesmo tempo, numa dupla
incorreção: a de que a economia, de fato, evolvia numa equação correta, e de que o problema reside simplesmente na esfera da
distribuição da riqueza produzida. Com semelhante retórica a oposição convalidava a política econômica oficial e participava,
algumas vezes mais do que veladamente, das euforias do “milagre”. Isto é, a oposição não só se furtava à crítica das pedras
angulares do projeto global do situacionismo, surpreendida e iludida pela sua “eficácia”, deixando, portanto, de fora o
principal, a base de todo o panorama, como, refugiando-se na trincheira das questões institucionais, limitou-se a reivindicar, e
ainda assim abstratamente, as franquias democráticas. Estas, da perspectiva governista, coroariam as resoluções e as conquistas
“alcançadas” no terreno da riqueza material. Da ótica oposicionista abririam caminho para um partilhamento mais equitativo
dos bens produzidos, ignorado, sem mais, que “A articulação da distribuição é inteiramente determinada pela articulação da
produção. A própria distribuição é um produto da produção, não só no que diz respeito ao objeto, podendo apenas ser distribuído o
resultado da produção, mas também no que diz respeito à forma, pois o modo preciso de participação na produção determina
as formas particulares da distribuição, isto é, determina de que forma o produtor participará na distribuição. /.../Na sua
concepção mais banal, a distribuição aparece como distribuição dos produtos e assim como que afastada da produção, e, por
assim dizer, independente dela. Contudo, antes de ser distribuição de produtos, ela é: primeiro, distribuição dos instrumentos
de produção, e, segundo, distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes tipos de produção, o que é uma
determinação ampliada da relação anterior. (Subordinação dos indivíduos a relações de produção determinadas.) A
distribuição dos produtos é manisfestamente o resultado desta distribuição que é incluída no próprio processo de produção,
cuja articulação determina. Considerar a produção sem ter em conta esta distribuição, nela incluída, é manisfestamente uma
abstração vazia, visto que a distribuição dos produtos é implicada por esta distribuição que constitui, na origem, um fator de
produção. Ricardo, a quem interessava conceber a produção moderna na sua articulação social determinada, e que é o
economista da produção por excelência, afirma mesmo assim que não é a produção, mas sim a distribuição que constitui o
tema propriamente dito da Economia moderna. Aqui ressurge novamente o absurdo dos economistas que consideram a
produção como uma verdade eterna, enquanto proscrevem a História ao domínio da distribuição”[3] . Natural é que tal seja o
pressuposto situacionista, o que alarma é seu partilhamento; sem exceção notável, pelas vozes federadas na oposição. Neste
ponto de convergência entre as “palavras”, perfiladas pela situação de um lado, e a oposição de outro, fica-se sem saber, então, o
que impede a democratização, as aberturas, a distensão, em que a oposição, por falta de melhor inspiração, predominantemente
teima, com certo júbilo, em reiteradamente apostar. E levando a aposta a certos extremos (sempre mal apreendidos como
radicais) certas cabeças rolaram, e, num aparente paradoxo, outras não. É que em termos de radicalidade enquanto raiz a
questão sempre esteve, como não poderia deixar de ser, em outra esfera.
Afinal, politicizando a totalidade, a oposição não tinha como escapar às malhas dos propósitos situacionistas, na exata
medida em que 64 foi posto e determinado por objetivos diretamente vinculados à anatomia da sociedade civil. A intervenção
de 64 só se explica, no essencial, por este ângulo, tanto que seu revestimento político sempre andou atravessado por certa
ambigüidade; basta aludir, desde a herança liberal, portada pelo castelismo, sempre assinalada como ponto maior de referência
dos puros e verdadeiros ideais do movimento, até às fórmulas menos vazias das “democracias especiais”. Tudo isto
consubstanciando muito menos casuísmo do que a maioria dos desorientados observadores imaginam. Assim, desde o
princípio, o “político” estava “aberto” para o aprimoramento, sendo prerrogativa situacionista a determinação da hora de seu
advento. Jamais o econômico gozou de privilégio semelhante. Muito se falou em institucionalizar, em abrir e fechar os
respiradouros políticos, e na sua modelagem. Nada igual ocorreu com a problemática básica da questão nacional. Discutiu-se,
mais ou menos, dependendo do momento, o “político”, e com isto a questão econômica ficou resguardada, inatingível e
preservada no perfil que o poder lhe conferiu. Foi a vitória maior, compreensivelmente a mais acarinhada, do situacionismo.
Foi a derrota maior da oposição, sintomaticamente a que menos a sensibilizou.
Todo este quadro pode ser surpreendente, inquietante pela inamobilidade que possa sugerir, mas não
incompreensível. Ele se elucida, tanto pela formação histórica brasileira, como pelas circunstâncias internacionais que marcam
os últimos 15 anos.
Longe, muito longe de pretender estampar aqui um máximo de aproximação da realidade, e sempre considerado que
faz parte da essência da indagação científica que tal coisa não se possa alcançar senão através de erros e peripécias
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múltiplas[4] , tracejamos a seguir, em brevíssimas linhas, um contorno interpretativo geral, como pano de fundo para as
considerações que, de fato, ocupam o centro das preocupações deste artigo, e que estão especificamente voltadas para o
registro do reaparecimento de uma proposta econômica oposicionista.

II
Em outro lugar, ainda de modo fortemente abstrato, se bem que menos resumidamente do que aqui se fará, buscamos
esquematizar para o caso brasileiro o contorno interpretativo geral acima referido[5] . Lá, como aqui, o esquema pretende-se
razoavelmente ancorado, aberto conseqüentemente a correções e concreções posteriores; mas não uma hipótese provisória, que
evoluciona descompromissadamente no manuseio arbitrário de dados, num jogo de regras precárias ou completamente
destituído delas, no qual a cada pretensa adivinhação sucede, logo a seguir, uma nova descoberta de pequeno curso e moda
passageira. Precisamente, pois, um esquema, uma formulação, portanto, abstrata que se põe como aberta para enri-
quecimentos dentro de seu próprio diapasão. Isto é, assumidamente é fixado um compromisso teórico-metodológico, ele
próprio implicador de sucessivas aproximações cada vez mais concretizantes. Fique isto, então, enfatizado, e também que, de
início, estamos muito mais empenhados em abrir uma brecha à compreensão pelo alinhamento preliminar de um contorno
analítico, do que dar por estabelecido um sistema de interpretação.
A busca de uma apreensão dialética do capitalismo - na especificidade com que se objetivou e se tem reproduzido no
Brasil - quase já tem a antiguidade de meio século. E neste tempo, relativamente longo, algumas aproximações de real
importância vieram à luz, e outros tantos descaminhos foram perpetrados. Não é aqui, evidentemente, o lugar, nem fôlego
haveria para tanto, para tentar satisfazer a premente necessidade de efetuar concretamente o acerto de contas com as diversas
contribuições. Assinalar-se-á exclusivamente que, abstraídos os ponderáveis aspectos positivos de tais esforços, duas ordens
principais de incorreções têm se verificado. De uma parte, o insatisfatório entendimento do que venha a ser o caráter universal
do fenômeno capitalista, conduziu a refletir simplesmente com atributos e leis genéricas, e a “constatar” a ocorrência necessária
destes a qualquer custo, no interior das fronteiras nacionais. Assim, preservaram-se universais, mas não propriamente na
condição de universais concretos, e, muitas vezes, singularidades reais foram perdidas. De outra parte, uma forma de
incorreção mais recente tem hiper-acentuado as singularidades, mas, tomando-as simplesmente como dados empíricos, isto é,
despojadas por inteiro de qualquer espessura ontológica (espessura que, sob feição avariada e debilitada, não importa, restava,
ainda assim, no caso anterior), faz com que a universalidade concreta seja completamente diluída. E a relação entre universal e
singular, aí, se mostra como uma relação entre categorias exteriores uma a outra, como a subsunção de um amontoado de
notas empíricas a um princípio geral[6] . Sem ressaltar as convergências (não casuais - não fora a segunda, em boa medida,
simples reação à primeira) observáveis entre as duas maneiras defeituosas de operar o instrumental dialético, notáveis no que
diz respeito ao malbaratamento do universal concreto, à despreocupação com o ontológico e à confusão entre singularidade
concreta e dado empírico, grife-se, isto sim, que, enquanto a primeira forma de incorreção acentuada o universal e tende a
perder o singular, a segunda acentua o que toma pela singularidade e perde completamente o universal. Observe-se, pois, que a
lógica destes dois casos manobra na polaridade entre universal e singular, entre os quais habita puramente o vácuo. Numa
linguagem lukácsiana, dir-se-ia estar em face de teorias fetichizadas, na medida que lidam exclusivamente com as categorias de
universalidade e singularidade, eliminando ou não reconhecendo exatamente a categoria da particularidade, visto que “O
movimento do singular ao universal ou vice-versa está sempre mediado pelo particular; é um membro real de mediação tanto
na realidade objetiva, quanto no pensamento que reflete de modo aproximadamente adequado esta realidade[7] .
Diga-se, então, sem mais que o problema fundamentalmente de colher, à maneira dialética, a entificação do
capitalismo no Brasil diz respeito à questão dos particulares, ou, realçando a dimensão ondontológica, à verificação de que há
modos e estágios de ser, no ser e no ir sendo capitalismo, que não desmentem a universalidade de sua anatomia, mas que
realizam através de objetivações específicas[8] .
O reconhecimento das formas particulares de objetivação do capitalismo é uma constante em Marx, desde seus
escritos de juventude[9] . Múltiplas são suas indicações, especialmente ao tratar da “miséria alemã”, grifando o caráter tardio e
retardado do processo de constituição do capitalismo na Alemanha, no qual a emersão do novo paga alto tributo ao
historicamente velho, numa conciliação, portanto, entre progresso e atraso sociais que levou, certa vez, Engels a dizer,
comparando a evolução francesa e alemã, que “em cada época para cada problema histórico os franceses encontraram uma
solução progressista e os alemães uma solução reacionária”. Um fragmento do Prefácio à primeira edição de O Capital ilustra
com vigor a questão: “É muito pior que a da Inglaterra a situação nos lugares da Alemanha onde se implantou a produção
capitalista, por exemplo, nas fábricas propriamente ditas, e isto por faltar o contrapeso das leis fabris. Nos demais setores, a
Alemanha, como o resto da parte ocidental do Continente Europeu, é atormentada não apenas pelo desenvolvimento da
produção capitalista, mas também pela carência desse desenvolvimento. Além dos males modernos, oprime a nós alemães um
série de males herdados, originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu séquito de relações políticas e sociais
contrárias ao espírito do tempo. Somos atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos. Le mort saisit le vif”[10] .
Poderíamos multiplicar abundantemente as referências. Tanto Marx, como Engels e Lenin oferecem-nos inesgotável
exemplificação do que estamos rapidamente indicando. Suficiente, no entanto, para os efeitos aqui perseguidos, é aditar certas
determinações sintetizadas por V. I. Lenin em O Programa Agrário da Social-Democracia, dado que realçam, de modo muito
nítido, dimensões da particularidade que, agora, nos importa de forma especial. Ao tratar do problema da transformação da
propriedade agrária, no processo de transição do feudalismo russo para o capitalismo, o referido autor aponta duas formas
possíveis para este desenvolvimento: “Os restos do feudalismo podem desaparecer tanto mediante a transformação das terras
dos latifundiários, como mediante a destruição dos latifúndios dos grandes proprietários, quer dizer, por meio da reforma e
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por meio da revolução. O desenvolvimento burguês pode verificar-se tendo à frente as grandes fazendas latifundiárias, que
paulatinamente se tornam cada vez mais burguesas, que paulatinamente substituem os métodos feudais de exploração por
métodos burgueses, e pode verificar-se também tendo à frente as pequenas fazendas camponesas, que por via revolucionária
extirpam do organismo social a ‘excrescência’ dos latifúndios feudais e se desenvolvem depois livremente pelo caminho das
granjas capitalistas. Estes dois caminhos de desenvolvimento burguês, objetivamente possíveis, nós os denominaríamos
caminho do tipo prussiano e caminho do tipo norte-americano. No primeiro caso, a fazenda feudal do latifundiário se transforma
lentamente em uma fazenda burguesa, junker, condenando os camponeses a decênios inteiros da mais dolorosa expropriação e
do mais doloroso jugo e destacando a uma pequena minoria de Grossbauer (grandes camponeses). No segundo caso, não
existem fazendas de latifundiários ou são destruídas pela revolução, que confisca e fragmenta as propriedades feudais. Neste
caso predomina o camponês, que passa a ser agente exclusivo da agricultura e vai evoluindo até converter-se no granjeiro
capitalista. No primeiro caso, o conteúdo fundamental da evolução é a transformação do feudalismo em sistema usurário e em
exploração capitalista sobre as terras dos latifundiários-feudais-junkers. No segundo caso, o fundo básico é a transformação
do camponês patriarcal em granjeiro burguês”. Mais adiante, Lenin explicita outras decorrências destas formas de objetivação
social, evidenciando-se as mesmas características que os textos anteriores nos revelaram: “A primeira implica na manutenção
máxima da sujeição e da servidão (transformada ao modo burguês), o desenvolvimento menos das forcas produtivas e um desenvolvimento
retardado do capitalismo; implica calamidades e sofrimentos, exploração e opressão incomparavelmente maiores das grandes
massas de camponeses, e, por conseguinte, do proletário. A segunda, entranha o mais rápido desenvolvimento das forcas
produtivas e as melhores condições de existência das massas camponeses (as melhores possíveis sob a produção mer-
cantil)”[11] .
É precisamente para a particularidade do caminho prussiano que desejamos preliminarmente remeter, no afã de tracejar um
contorno interpretativo geral do caso brasileiro. De fato, entendemos que este, sob certos aspectos importantes, é conceitualmente
determinável de forma próxima ou assemelhável àquela pela qual o fora o caso alemão, mas de maneira alguma de forma idêntica. Dito
de outro modo: estamos convencidos da real efetividade de tomar o caminho prussiano como fonte apropriada de sugestões,
como referencial exemplar, e, mais do que tudo, como um caminho histórico concreto que produziu certas especificidades que,
em contraste, por exemplo, com os casos francês e norte-americano, muito se aproxima de algumas das que foram geradas no
caso brasileiro. Mas, grife-se com a máxima ênfase, o caminho prussiano não é tomado como modelo, como contorno formal aplicável
a ocorrências empíricas. Ao contrário, é precisamente enquanto modo particular de se constituir e ser capitalismo que o caminho
prussiano tem para nós importância teórica básica. Enquanto tal, aos diversos níveis de concreção em que é apreensível,
permite, como qualquer objeto, destilar certos caracteres, mais ou menos gerais, que importa considerar para orientar a
apreensão do caso brasileiro.
Assim, de início, importa-nos como particular contrastante aos casos clássicos; clássicos, acima de tudo, porque mais
coerentes, mais congruentes ou consentâneos, mo plano da sua própria totalidade, enquanto totalidade capitalista, na qual as diversas
partes fundamentais imbricam entre si e em relação ao todo de forma mais amplamente orgânica, de maneira que o real se
mostra como racional, no nível da máxima racionalidade historicamente possível. Particular contrastante do qual se avizinha o
caso brasileiro, também diverso dos casos clássicos.
Nessa linha de raciocínio, a conexão que se está indicando situa-se no plano de certas determinações gerais, de
algumas abstrações operadas em relação ao concreto da particularidade do caminho prussiano. Assim, irrecusavelmente, tanto
no Brasil, quanto na Alemanha, a grande propriedade rural é presença decisiva; de igual modo, o “reformismo pelo alto”
caracterizou os processos de modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma solução conciliadora no plano político
imediato, que exclui as rupturas superadoras, nas quais as classes subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso específico, o
que abriria a possibilidade de alterações mais harmônicas entre as distintas partes do social. Também nos dois casos o
desenvolvimento das forcas produtivas é mais lento, e a implantação e progressão da indústria, isto é, do “verdadeiro
capitalismo”, como distinguia Marx, do modo de produção especificamente capitalista, é retardatária, tardia, sofrendo
obstaculizações e refreamentos decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas. Em síntese, num e noutro caso,
verifica-se, para usar novamente uma fórmula muito feliz, nesta sumaríssima indicação do problema, que o novo paga alto
tributo ao velho.
Todavia, se tais características, abstratamente tomadas, são comuns a ambos os casos, e delas se pode dizer, na linha
da lógica de Marx, que enquanto generalidades são generalidades razoáveis, na medida que efetivamente sublinham e precisam
traços comuns, há, no entanto, que atentar, prosseguindo pela mesma diretriz, que “Esse caráter geral, contudo, ou este
elemento comum, que se destaca através de comparação, é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de determinações
diferentes e divergentes”[12] . O que significa, portanto, em termos rápidos, para o caso específico de que tratamos, que o
caminho prussiano, na totalidade concreta do processo real alemão, se põe de modo distinto daquele em que ele se põe na
totalidade concreta do processo real brasileiro. Mesmo porque “se o concreto é tomado como síntese de várias determinações,
esta síntese (Zusammenhang), que sumariza, põe junto, se faz por uma lógica que não se reduz à mera justaposição dos
predicados” reconhecendo, pois, que o decisivo não é tanto o que um nome possa designar, “mas como o objeto nomeado se
objetiva, se individualiza, enquanto entidade social”[13] .
De sorte que estamos diante de singularidades distintas, acolhíveis, do ponto de vista de certos aspectos abstratamente
tomados, sob uma mesmo particular, que antes os separa dos casos clássicos, do que os identifica entre si. Todavia, se isto é
pouco, não é nada desprezível, quando mais não fosse porque obriga a pensar como se objetivam os predicados de e em cada
uma das singularidades.
Desse modo, se aos dois casos convém o predicado abstrato de que neles a grande propriedade rural é presença
decisiva, somente principiamos verdadeiramente a concreção ao atentar como ela se objetiva em cada uma das entidades sociais
consideradas, isto é, no momento em que se determina que, no caso alemão se está indicando uma grande propriedade rural
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proveniente da característica propriedade feudal posta no quadro europeu, enquanto no Brasil se aponta para um latifúndio
procedente de outra gênese histórica, posto, desde suas formas originárias, no universo da economia mercantil pela empresa
colonial.
Do mesmo modo quanto à expansão das forças produtivas. Em ambos os casos o desenvolvimento é lento e
retardatário em relação aos casos clássicos. Mas, enquanto a industrialização alemã é das últimas décadas do século XIX, e atinge,
no processo, a partir de certo momento, grande velocidade e expressão, a ponto da Alemanha alcançar a configuração
imperialista, no Brasil a industrialização principia a se realizar efetivamente muito mais tarde, já num momento avançado da
época das guerras imperialistas, e sem nunca, com isto, romper sua condição de país subordinado aos pólos hegemônicos da
economia internacional. De sorte que o “verdadeiro capitalismo” alemão é tardio, se bem que autônomo, ao passo que o brasileiro, além de
híper-tardio, é caudatário das economias centrais.
A exemplificação da diferenciação poderia, evidentemente, prosseguir, contudo é, aqui, desnecessária. Fácil é a
percepção das distinções, nas expressões concretas que assumem em cada caso, cada uma das características abstratas que
arrolamos como comuns aos dois. Observação que nos conduz, portanto, à constatação não mais apenas de uma única forma
particular de constituição não clássica do capitalismo, mas a mais de uma. No caso concreto, cremos que se está perfeitamente
autorizado a identificar duas, de tal sorte que temos, acolhíveis sob o universal das formas não clássicas de objetivação do
capitalismo, a forma particular do caminho prussiano, e um outro particular, próprio aos países, ou pelo menos a alguns países
(questão a ser concretamente verificada) de extração colonial. De maneira que ficam distinguidos, neste universal das formas não
clássicas, das formas que, no seu caminho lento e irregular para o progresso histórico-social, pagam alto tributo ao atraso, dois
particulares que, conciliando ambos com o historicamente velho, conciliam, no entanto, com um velho que não é, nem se põe
como o mesmo.
Conclusivamente: de um lado, pois, firmemente estabelecido, temos o caminho prussiano; a seu lado, sem que
confiramos demasiada importância aos nomes, fique, sem pretensões, a sugestão designativa de via ou caminho colonial.
Expressão conveniente que tem, nos parece, a propriedade de combinar a dimensão histórico-genética com a legalidade
dialética. Esclareça-se, por fim, que não submetemos qualquer relação de afinidade entre via ou caminho colonial e expressões
semelhantes. Ao contrário, pensamo-la exclusivamente enquanto particularidade, portanto, como mediação necessária e
objetiva entre a universalidade do capitalismo e determinadas singularidades; longe, conseqüentemente, da “criação” de novos
universais, tal como se dá quando, a colonial, se antepõe modo de produção.

III
É, portanto, no quadro do capitalismo que se põe pela via colonial, que foi pensada, na primeira parte deste artigo, a ocorrência
da politicização da totalidade, efetuada pela oposição, e é, evidentemente, considerando o mesmo particular que se passa, agora,
a considerar o reaparecimento de uma plataforma econômica oposicionista.
Este ressurgimento principia na legislatura em curso, precisamente a partir de 1975, pela voz isolada do senador R.
Saturnino Braga e culmina com sua recente proposta de uma equação alternativa para o quadro econômico-social brasileiro.
Nos idos de 75, no recinto fechado da Câmara Alta, por entre educados e respeitosos aplausos, e muitos bens, que desde
logo lhe são parlamentarmente tributados por adversários e correligionários, colhe Saturnino Braga muito poucos acréscimos
dos últimos e curiosos volteios dos primeiros. Estes, visivelmente empenhados em aparar arestas, contornar divergências, mais
do que isto, em dissolver diferenças, procuram retoricamente configurar uma identidade básica entre os pontos de vista do
parlamentar emedebista e os do governo. Virgílio Távora é a estrela desse esforço. Para além dos muros do Congresso, poucas
e parcas notas jornalísticas dão conta do debate. E a federação emedebista, muito ocupada em fazer “política”, não dá sinais
efetivos de compreender a importância do trabalho de seu “economista”.
Pela coletânea dos debates parlamentares do senador fluminense, publicada em fins do ano passado[14] , e que reúne
pronunciamentos realizados ao longo de seu primeiro ano e meio de mandato, observa-se que S. Braga principia como quem
dá início a um serviço novo. Sente-se induzido a pelo menos aludir à necessidade de preencher uma lacuna. Registra, às
primeiras linhas do discurso que abre a coletânea, talvez o primeiro a ter sido pronunciado, que “cabe a nós, da oposição,
dizer que o MDB, também no campo econômico, tem críticas sérias a fazer e sugestões a apresentar, para remediar um estado
de coisas com o qual não concordamos em absoluto”[15] . Afirma, portanto, desde logo, absoluta discordância com o estado de
coisas tal como evolve, ao mesmo tempo que lembra que a oposição também no campo econômico tem algo a dizer. Se tal
afirmação se fez necessária é porque o que tinha de ser dito não o fora até então. Se, quanto a isto, restar ainda alguma dúvida,
basta referir que o vácuo econômico da oposição foi até mesmo explorado pela malícia parlamentar da liderança situacionista,
cobrando Petrônio Portella, em determinado momento, as teses emedebistas sobre a questão, que fossem anteriores às dos
pronunciamentos de S. Barga[16] .
Para muito além, no entanto, da figura e do pioneirismo do senador emedebista, o que importa, aqui, é exclusivamente a
leitura que faz da situação nacional e a resolução programática que oferece, na recuperação que efetua, para a oposição, do
discurso econômico.
O conjunto dos discursos publicados e a proposta de uma nova equação econômica e política para o Brasil, que S.
Braga encaminhou à comissão do MDB que estuda o projeto - governo da oposição - são produtos de uma mesma visão de
mundo; idênticos nas raízes e nas resultantes, de modo que a Proposta é simplesmente a consolidação em texto corrido daquilo
de que os discursos são compostos. Observa-se, ora num caso, ora noutro, uma que outra argumentação mais estendida ou
sistematicamente ampliada, um que outro acréscimo que não adita, nem suprime mérito maior às teses fundamentais. Todavia,
há que ler as duas coisas para superar diferenças tônicas que, de outro modo podem induzir a erro. Vale, porém, registrar uma
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exceção, que diz respeito à questão institucional, quando aparece a idéia de um poder moderador que seria exercido por um
conselho, presidido pelo chefe de estado de uma República parlamentarista. Todo este esquema, no entanto, decorre
visivelmente do empenho em encontrar uma via de transição para o estado de direito, e é condicionado ao caminho legitimador
de uma Assembléia Nacional Constituinte. Ousaríamos dizer, de passagem, que, apesar da amplitude desta sugestão, da ótica
braguista ela não ultrapassa o universo tático.
Mas o universo tático não ocupa a parcela maior, nem a mais importante, do discurso do senador fluminense.
Presente particularmente pelo denso molho da cautela, e envolvido em aura técnica de primeira linha, que acena para elevações
estatísticas, o utensílio tático procura fazer passar um discurso que remete à totalidade.
Com efeito, move-se S. Braga no bojo de uma concepção que pensa e propõe uma sorte de capitalismo “corrigido”.
Proposta assumidamente “reformista e conciliadora por excelência”[17] , que se julga distinta e superior a uma “simples cópia
das diretrizes neocapitalistas” (P, 44/3) e convergente do universo social-democrata. Com isto, entende Saturnino, escapa-se
ao “falso” dilema entre socialismo e capitalismo: “O que importa ficar claro nesse discurso é a necessidade de superar essa
dicotomia capitalismo versus socialismo que, para nós pelo menos, é inteiramente falsa. Aliás, acho que socialismo ou
capitalismo não são fins, objetivos absolutos pelos quais se deva lutar. O que é importante é a liberdade, a justiça social, a
fraternidade, o desenvolvimento. Esses são fins em si mesmos; socialismo, capitalismo ou outro regime são meios de se obter
fins” (P, 41/3). Mas, se estas são as fronteiras explícitas da razão braguista, aliás muito pouco singulares, mais relevante que
explorar os contornos do “falso” dilema é apreender os motivos de restrição aduzidos para cada uma de suas pontas. Assim, o
pólo socialista é descartado pelas esperadas e convencionais conotações do “totalitarismo”[18] , mas a crítica e a “correção” do
capitalismo são bem mais elaboradas. São estas, em contraste com a primeira, que transpassam os textos e informam o projeto
Saturnino. São elas que, de fato, é necessário detalhar, mesmo porque são as únicas que os documentos desdobram.
A crítica, e subseqüente “correção” do capitalismo, operada por S. Braga, tem por centro “o sistema de mercado -
característica básica do capitalismo, tanto que com ele normalmente se confunde -” (P, 41/3). Crítica ao sistema de mercado
enquanto “campo de força orientador da racionalidade”, isto é, como suposto de que “seria o caminho mais rápido e seguro
para o desenvolvimento” (P, 41/2). Para a ótica braguista, ao contrário, o sistema de mercado possui o “defeito básico e
intrínseco” de ser “por si mesmo absorvente, expansionista, e tende a concentrar as energias e atenções do homem para a
produção e transação de mercadorias. A percepção desse fato alcançou a humanidade nos dias presentes, e em todas as nações
do mundo da livre empresa a reação se manifesta com nitidez inocultável”. Mas não apenas em função de seu caráter
absorvente e expansionista; “outras falhas importantes do sistema de mercado vão pouco a pouco sendo reconhecidas e
admitidas para efeito de correção”. E Saturnino as enumera: “O mercado tem falhado completamente em reduzir as
desigualdades entre grupos dentro de uma mesma sociedade. Nos países em desenvolvimento isso é particularmente flagrante,
com a tendência perniciosa ao aprofundamento das disparidades. A supervalorização do fator capital e do fator tecnologia
moderna; a supervalorização do aspecto “moderno” das coisas em geral /.../ atuando simultaneamente nas próprias
engrenagens do mecanismo do mercado produzem efeitos altamente concentracionistas, em termos de distribuição dos frutos
do desenvolvimento, assim como efeitos igualmente maléficos no aumento da dependência da economia nacional para com o
exterior, criando impasses sucessivos na área do balanço de pagamentos” (P, 41/2). Ademais, “O mercado falhou também
escandalosamente em reduzir as desigualdades entre as nações”. E “essas disparidades só tendem a aumentar”. Neste ponto,
Saturnino incursiona por uma visão catastrófica da história para extrair, no entanto, por esta via, uma conhecida verdade
crítica a um antigo preceito do liberalismo econômico: “Neste campo, todavia, há algo de muito grave no horizonte. É que em
razão de obstáculos e custos crescentes, ligados ao esgotamento de recursos naturais e à poluição, a era do ‘crescimento zero’
se aproxima com uma clareza inconfundível. É o fim das ilusões acalentadas pelo dinamismo, em que cada pobre tem a
esperança de melhorar adiante a sua situação, senão relativa pelo menos absoluta” (P, 41/3). Mas o inventário das afecções só
chega ao fim com o registro de “Outra anomalia ou doença do sistema de mercado (que) é a clara e progressiva redução da
liberdade de iniciativa em muitos setores da economia, chegando mesmo a uma completa eliminação da livre empresa em
alguns ramos, onde os oligopólios estabelecidos têm um domínio não apenas virtual mas concreto e total” (P, 41/3).
Por todas estas razões, afirma Saturnino, “Erigir o mercado como critério único ou supremo de orientação para alocar
recursos tem sido outro grande erro”. E completa: “Mesmo num sistema de livre empresa, o mercado deve ser considerado na
sua dimensão própria, que além de ser exclusivamente econômica, não pode abranger nem mesmo a totalidade dessa esfera no
estágio atual da nossa civilização” (P, 41/2). Esta forte restrição ao “sistema de mercado”, todavia, não implica na propositura
(nem isto seria compatível com a ótica braguista) de sua abolição, mesmo porque “O mercado deve ser reconhecido como o
melhor sistema até agora encontrado para, democraticamente e eficientemente, alocar os recursos disponíveis para o
atendimento das necessidades materiais do homem” (P, 41/2). Não se trata de perpetração, por parte do senador emedebista,
de qualquer contradição nos termos, haja vista que “O reconhecimento de que é o melhor (o ‘sistema de mercado’) não
significa entretanto que seja o único, e que a melhor combinação seja aquela onde não entre nenhum outro sistema paralelo,
onde o mercado tenha uma dominância absoluta na organização da sociedade”. Em outros termos, há que bem entender que
Saturnino Braga não se põe contra o “sistema de mercado”, mas contra “A hipertrofia do sistema de mercado, ou que se
poderia chamar de totalitarismo do mercado”, mesmo porque este “parece ter ficado para trás na história da nossa civilização,
tendo atingido seu ponto culminante na primeira metade do século vinte”. E isto, entende o parlamentar, “É o resultado da
compreensão de que a submissão às regras do mercado em todas as facetas, em todas as transações da vida humana leva
fatalmente a uma depreciação, ou a uma consideração secundária de aspectos da maior importância para o sentido da vida do
homem; aspectos que jamais seriam suscetíveis de receber o tratamento que o mercado dá às coisas, fazendo-as mercadorias”
(P, 41/2). Compreensão da qual “A social-democracia no ocidente europeu é uma realidade que cresceu sem nenhum sinal de
reversão, empurrando o livre jogo do mercado para planos cada vez menos importantes, se bem que dominantes”.
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Ver-se-á, no que segue, que os parâmetros social-democráticos não são para Saturnino mais do que pontos de
referência em geral, e não propriamente uma doutrina orgânica à qual há que se filiar. Isto se evidencia quando a questão é o
desenvolvimento brasileiro. Desenvolvimento este que o senador tematiza, isto sim, apoiado na sua visão do que sejam, hoje,
os caracteres do “sistema de mercado”. Caracteres, entre defeitos e “correções”, que o afastam explicitamente das fórmulas
liberais clássicas. É assumindo tais concepções, que não se confundem com o protecionismo, indo muito além deste, que S.
Braga desenvolve a sua leitura crítica da situação brasileira e formula uma proposta alternativa.
Mas, antes de enfrentar o caso brasileiro, tal como é lido da perspectiva braguista, há que ressaltar um dos pontos
fundamentais de sua análise da organização econômica contemporânea, e que exerce papel decisivo em toda sua concepção.
Trata-se da natureza monopolista da atual acumulação capitalista, e que nas palavras de Saturnino, já anteriormente
estampadas, transparece sob a anotação da “clara e progressiva redução da liberdade de iniciativa em muitos setores da
economia, chegando mesmo a uma completa eliminação da livre empresa em alguns ramos, onde os oligopólios estabelecidos
têm um domínio não apenas virtual mas concreto e total”. De fato, diz Saturnino, “a ‘grande empresa’ é entidade inelutável da
economia mundial contemporânea”[19] . “Entidade inelutável”, de cujas vantagens, pensa Saturnino, é “absolutamente ocioso
discorrer”, mas da qual afirma, tanto na Proposta, quanto em Política Econômica e Estatização, que é “sinônimo de crescimento, de
produtividade, de pesquisa e inovação tecnológica, de relativo respeito às reivindicações trabalhistas; sinônimo de progresso na
sua significação atual. E tão forte é essa identificação que seria absurdamente ingênuo, inconcebível mesmo, um projeto de
desenvolvimento que não contemplasse um lugar de destaque, como condição necessária, para a ‘grande empresa’” (PEE,
p.189). Em outra passagem acrescenta: “a verdade é que a grande empresa tem sido a verdadeira forca propulsora desse
desenvolvimento. Sem a grande empresa, sem a sua contribuição decisivas em termos de acumulação de produtividade, de
avanços nos campos da tecnologia e de administração, jamais as nações ricas do ocidente teriam chegado ao estágio de
desenvolvimento em que se encontram” (PEE, p.192). Mas, paralelamente a seus aspectos positivos fundamentais, Saturnino
faz o reparo de suas “desvantagens, nada desprezíveis, nada pequenas, que chegam a quase equilibrar a ponderação com os
benefícios, fazendo com que muitos prefiram a condenação da grande empresa, a sua eliminação, mesmo ao preço de uma
queda acentuada do ritmo de desenvolvimento” (P, 44/2). Defeitos e desvantagens que são resumíveis em ser a “grande
empresa”: a) “foco potencial de recessão ou instabilidade do sistema econômico onde tem uma posição de dominância”; b)
“maximização de poder pois que nesse poder reside a segurança de continuidade do seu crescimento, Poder sobre o mercado,
poder sobre eventuais concorrentes, poder sobre fornecedores, poder sobre consumidores, diversificação de poder por vários
setores (conglomerados), poder sobre governos: - esse é o objetivo permanente da grande empresa de hoje”; c) “além de ser
um foco de instabilidade, de irracionalidade e de desigualdade, a grande empresa é um foco permanente de propagação
inflacionária” (P, 44/2). É, pois, com semelhantes restrições, explicitamente de inspiração keynesiana a primeira, e
galbraithiana a segunda, e considerados os elementos positivos da grande empresa moderna, que Saturnino conclui que “se
buscamos nós o desenvolvimento, não podemos rejeitar a grande empresa. É um mal necessário” (PEE, p.193); “é o preço
que o mundo ocidental está pagando pelo modelo de desenvolvimento com liberdade que escolheu” (PEE, p. 192). E, anote-
se, para efeito do que aqui mais de perto nos interessa, que, em sendo “um mal necessário”, é um “Mal muito pior quando se
trata de empresa estrangeira, com seus centros de decisão fora da área de influência do governo nacional, com política de
investimentos de vendas, de crescimento, orientadas por fatores completamente desvinculados das circunstâncias e dos
interesses nacionais” (P, 44/2).
De sorte que, da ótica braguista, a empresa monopolista, identifica-se como o suporte do progresso, tal como este se
efetiva na atualidade, mas o monopólio traz em seu bojo altos “custos sociais”, “defeitos” de grande teor negativos,
constituindo-se num “mal necessário”, tanto mais intenso quando se trata de empresa estrangeira. Em face de semelhante
“mal necessário”, é que Saturnino sublinha a validade do remédio social-democrata, aplicado nos centros altamente
desenvolvidos. Mas para os países subdesenvolvidos, para os “países em desenvolvimento”, como diz o senador fluminense,
não haveria nada além da mesma terapêutica? “Não haveria meios de obviar esses problemas, de reduzir esses custos sociais
gerados pela grande empresa? Estariam os países em desenvolvimento /.../ condenados a passar pelas mesmas dificuldades, a
contrair as mesmas doenças do mundo ocidental, cuja intensidade só promete aumentar com a entrada dos novos sócios no
clube dos desenvolvidos?” (PEE, p. 193). Para o senador emedebista, antigo Diretor de Planejamento do BNDE, para os
países “em desenvolvimento” há uma solução alternativa, e ela se constitui na chave de seu pensamento. De sua ótica os
países “em desenvolvimento” têm a possibilidade de não contrair as “doenças do mundo ocidental” através de uma forte
presença do estado na área produtiva: “se o campo das grandes empresas for dominado por uma forte presença do Estado,
todos aqueles problemas estarão pelo menos grandemente amortecidos” (P, 44/2). É o preconizado por Saturnino Braga,
dado que “A empresa estatal é a fórmula capaz de obviar os graves problemas gerados pela grande empresa, e oferecer à
Nação um saldo muito maior de benefício em favor do desenvolvimento” (PEE, p. 194). De sorte que, deste prisma, a
“anomalia” monopolista é, pois, “corrigida” pela monopolização estatal. Em face, portanto, da factualidade histórica da
acumulação monopolista não se observa em S. Braga a emersão de inclinação conceitual que conflua para alguma forma da
crítica romântica ao capitalismo. A grande empresa do “capitalismo verdadeiro” é sustentada como o suporte dinâmico efetivo
da acumulação. Com a diferença de que seja estatal; no que S. Braga entende estar apoiado pelas indicações keynesianas:
“Keynes, como todo pensador que lega à humanidade uma contribuição importante, é muito mais citado do que lido e
estudado. Não fosse assim, a meditação séria sobre o último capítulo da sua grande obra - ‘Notas finais sobre a filosofia social
a que poderia conduzir a teoria geral’ - evidenciaria que o sentido verdadeiro das suas observações e proposições era uma
reforma muito mais profunda do sistema do que a revisão neocapitalista que se seguiu ao liberalismo e que constitui o dogma
dos dias de hoje /.../ reporto-me ao último período do Capítulo 12 da Teoria Geral, quando Keynes trata das previsões a
longo prazo, concluindo: ‘Espero ver o Estado, que está em situação de poder calcular a eficácia marginal dos bens de capital a
longo prazo com base na conveniência social geral, assumir uma responsabilidade cada vez maior na organização direta das
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inversões’” (PEE, p. 190). Sem que haja dúvida sobre a sensível diferença entre organização das inversões e a propriedade delas, o
relevante não é esta interpretação ser ou não pertinente, mas que o senador fluminense, compreendendo-se nela fundado,
assegure o caráter “corretivo” do estado e a legitimidade de sua profunda e decisiva intervenção no setor produtivo. Do que
resulta, talvez para surpresa dos incorrigíveis amantes dos universais abstratos, na propositura de um capitalismo “corrigido”,
no qual parcela ponderável da propriedade deixa de ser pensada, pelo proponente, como necessariamente privada, o que
obviamente não altera, concretamente, seu caráter burguês. A questão, no entanto, não reside sobre a natureza da propriedade,
que se mantém pacificamente a mesma, mas na determinação entre estas variantes da propriedade capitalista qual a mais
favorável para os países subdesenvolvidos, particularmente para as classes subalternas. É o que eleva certa, digressões
braguistas do nível meramente piedoso, quando, por exemplo, ao afirmar que sua “linha ofereceria possibilidades bem maiores
de eliminar ou reduzir bastante algumas das graves doenças do mundo ocidental desenvolvido de nossos dias do que a simples
cópia das diretrizes neocapitalistas”, prossegue especificando: “Essa cópia fatalmente nos levaria aos efeitos destrutivos da
sociedade de consumo, a uma quadro onde a instabilidade econômica, as injustiças sociais, as tensões e manifestações de
violência, o desperdício e a irracionalidade, o consumismo neurótico e neurotizante, a desilusão da juventude, o uso crescente
de tóxicos, e o relaxamento progressivo dos valores morais teriam uma intensidade pelo menos igual à que tem hoje nos países
líderes do ocidente, e que tanto nos preocupa, a nós ocidentais, pelo insucesso dos esforços que têm sido feitos para a sua
diminuição” (PEE, p. 194).
É com este eixo básico de reflexão que S. Braga faz o diagnóstico da situação nacional a apresenta sua sugestão.
Ao nível mais abrangente, por tudo que foi dito, compreende-se que o parlamentar, cujas idéias estamos examinando,
apreende o Brasil como um país “em desenvolvimento”, numa quadra histórica em que a livre iniciativa, em seus moldes
clássicos, está inteiramente encerrada. E em se tratando de um país que se desenvolve, registra obviamente êxitos econômicos.
Sucessos que a seu ver não são devidos à “estabilidade política imposta pela força” (P, 44/1), nem ao crescimento das expor-
tações, também não às “reformas do sistema financeiro realizadas a partir de 1964” (P, 44/1), e muito menos ao “desumano
processo de concentração de renda” (P, 44/1). Para Saturnino “o grande período desenvolvimentista brasileiro teve início na
década dos 50”, verdadeiramente “o milagre começou nos anos 50”. Em síntese: “o êxito da economia brasileira nos últimos
25 anos deve-se precipuamente, como causa fundamental, ao crescimento da ação direta do Estado, à chamada estatização
crescente, que hoje é alvo de ataques tão intensos e cerrados, promovidos pelos interesses estrangeiros, transnacionais, que
encontram agora uma forca capaz de se confrontar com eles” (P, 44/1).
É diretamente vinculado a este quadro geral; que devem ser consideradas as duas críticas fundamentais que o senador
fluminense tece à situação atual, resultante que é do “modelo econômico-social segundo o qual se vem processando o
desenvolvimento brasileiro” desde 1964. E a própria “idéia da mudança do modelo /.../ originou-se e fortificou-se com base
na identificação de duas falhas ou defeitos fundamentais do sistema vigente que, uma vez constatadas e denunciadas, não
puderam até agora ser corrigidas ou sequer remediadas” (P, 41/1). São elas, a injustiça social e a dependência externa: “o modelo
atual é socialmente injusto e além de injusto gera um grau de dependência tão grande em relação ao exterior, que tende
cronicamente para a inviabilidade” (P, 41/1).
Relativamente ao primeiro ponto Saturnino é taxativo, determinando, agora, de forma nova a questão. A política
econômica vigente é dada como produtora da injustiça social apontada, não mais se tratando desta como se fora simples
conseqüência de uma pura carência distributiva, que pudesse ser sanada pela adição de uma política dessa ordem àquela. Os
termos agora estão na sua ordem casual. “Não se pode pôr dúvida sobre a acusação de que o modelo vigente produz a
injustiça social” (P, 41/1). “A situação de desigualdade do quadro brasileiro hoje é considerada das mais profundas e gritantes
do mundo”. E isto é tanto mais grave quando se compreende, segundo o entendimento braguista, que “Um país como o
Brasil, com cerca de US$1.200 de renda ‘per capita’, já pode eliminar a pobreza absoluta - aquela que chega à morte pela
subnutrição ou à criminalidade pela total desesperança - sem sacrificar recursos para investimento, apenas transferindo renda
dos 5% mais ricos para os 30% mais pobres” (P, 44/3).
Dispensável é insistir neste ponto, detalhando a argumentação do parlamentar do MDB na seqüência dos índices e
dados numéricos que convincentemente faz desfilar, mesmo porque o essencial era frisar o novo modo de pôr questão, e
também dado que a ela tornaremos, mais adiante, quando tratarmos de expor os traços básicos do “modelo voltado para
dentro”.
Sirva a última expressão como elo para a exposição do ponto subseqüente. Com efeito, Saturnino propõe um
“modelo voltado para dentro” como contraposição ao modelo vigente, determinado como voltado para fora. Estando esta volta
para o exterior rigorosamente em conexão com o problema concentracionista: “As críticas da oposição à política econômica dos
governos da revolução concentram-se em dois aspectos estritamente articulados: a exteriorização ou extroversão excessiva a
que foi levada a nossa economia, e a concentração de riqueza nas mãos de uma minoria privilegiada de brasileiros. São dois
aspectos muito interligados, duas faces do modelo econômico da Revolução que muito dificilmente poderiam existir de forma
independente uma da outra - e que, por isso mesmo, devem ser examinadas e discutidas conjuntamente” (PEE, p. 3). A
denúncia da exteriorização evidentemente diz respeito à ênfase exportadora da política econômica vigente, mas não
exclusivamente a ela, remetendo globalmente às “relações de troca que prevalecem entre países que tem e não tem tecnologia
de produção avançada” (P, 41/1).
Em termos bem sintéticos: “Na falta de uma base de sustentação no mercado interno o lema oficial passou a ser ‘a
solução é exportar’. /.../ Mas as engrenagens do modelo em vigor são diabólicas, e o esforço de exportação e o inegável êxito
no crescimento do valor exportado acabam resultando numa tremenda pressão para importar” (P, 44/4). Ainda mais, e mais
decisivamente, mesmo em termos sumários: “Não há dúvida de que a indústria automobilística, no seu conceito mais
abrangente, incluindo a fabricação de autopeças, é o ramo mais importante, aquele que pesa mais individualmente na
composição e no dinamismo do nosso produto interno. Apesar de ser o ramo mais importante, é uma indústria voltada para a
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particular satisfação de uma parcela ínfima da nossa população - quatro por cento apenas dos brasileiros possuem automóvel -
já que a sua ênfase inicial na produção de caminhões e ônibus foi invertida ao longo do tempo para se concentrar no carro de
passeio. Apesar de ser uma indústria voltada para a satisfação de tão poucos é de longe a que causa maior impacto negativo no
nosso balanço de pagamentos com o exterior, responsável maior que é pelas nossas importações não apenas de petróleo mas
de aço, cobre, alumínio, níquel, magnésio, borracha e outros” (P, 41/1).
Tomado articuladamente o conjunto dessas indicações, temos o esquema básico da leitura braguista dos processos e
efeitos da política econômica em vigor, do modelo voltado para fora. Se bem que insista sempre na conexão indissolúvel entre o
concentracionismo da renda e a exteriorização da economia brasileira, e de outra parte também estabeleça a relação íntima
entre o desenvolvimento de bens de consumo duráveis, dependência externa e concentracionismo, e ainda entre
exteriorização e dependência externa, não se pode dizer a rigor, nem mesmo num plano virtual, que S. Braga efetiva a síntese
de todas estas correlações, apanhando de modo cabal o processo em sua inteira espessura. Impedimentos de perspectiva,
moldagem teórica e o que mais seja restringem a análise, de tal forma que o sentido genético do quadro se esfumaça, e com ele
o próprio caráter determinante da dependência, tantas vezes assinalada. Todavia, isto não impede que, na imediaticidade dos
eventos, Saturnino monte uma equação bastante razoável, que apreende certa porção do significado principal das ocorrências
e seu impasse intrínseco, apreensão que faculta, na seqüência, sua concludência programática.
O esquema fundamental do senador fluminense detecta as articulações centrais da política econômica em vigor e
assinala sua tendência crônica para a inviabilidade. “Talvez não se possa dizer taxativamente que o atual modelo seja inviável
sob o ponto de vista estritamente econômico. Uma nação que tem uma parcela de trinta milhões de pessoas, com uma renda
per capita de quase US$ 2.500, com poder aquisitivo médio bem superior ao que caracteriza os países pobres ou
subdesenvolvidos, tem, dentro de suas fronteiras, um mercado capaz de viabilizar um processo de desenvolvimento. Mas é
claro que ele terá de ter um coeficiente de abertura para o exterior relativamente alto /.../ e que essa abertura, dadas as
relações de troca que prevalecem entre países que têm e não têm tecnologia de produção avançada, tende a produzir déficits
permanentes na balança de pagamentos. Tudo passa a depender, então, da disposição dos centros detentores de capital e
tecnologia de realizar os investimentos na medida capaz de contrabalançar esse déficit crônico (...). O indicador que sugere
com mais evidência esse impasse é o volume da nossa dívida externa, que, ultrapassando em 1977 o nível dos US$ 30 bilhões,
exige que cerca de 50% do valor total das nossas exportações, ampliadas artificialmente à custa de muito subsídio, seja gasto
em juros e amortizações deste ano. Assim, não se chamado de inviável, o mínimo que se pode dizer do atual modelo brasileiro
é que é inseguro, alienante, demasiadamente dependente de decisões tomadas fora do País, fora da nossa área de influência. E
um dos fatores que mais acentuam esse grau de insegurança é o fato de que essa solução cada vez mais divide a nação entre
poucos ricos e muitos pobres, gerando tensões sociais que dificultam sobremaneira a obtenção de estabilidade política exigida
pelos centros de capital e tecnologia” (P, 41/1). Dito de maneira mais anatômica: num país periférico, a uma organização da
produção centrada em torno de bens de consumo duráveis corresponde um mercado consumidor privilegiado bem como uma
desvalorização da força de trabalho, e uma componente importadora que, considera a desigualdade dos parceiros comerciais,
sobrepuja a capacidade exportadora, e implica em progressivo endividamento, ao limite de um impasse que tende a ameaçar o
processo de acumulação.
Tudo isto considera que “É evidente que um aumento substancial das nossas exportações é um resultado positivo.
Altamente positivo se for obtido pela exploração das nossas vocações naturais, pela intensificação do emprego da nossa mão-
de-obra abundante, subempregada, na produção de manufaturados, pela utilização de uma política comercial agressiva e
inteligente” (P, 44/4). Não porém uma exportação de manufaturados que para chegar ao ponto a que foi levada “teve o
governo que dar uma soma tão grande de incentivos - isenção de IPI, isenção do ICM, crédito do IPI, financiamento a juros
subsidiados e outros - imposto de renda, também, que muitos economistas nossos sustentam que estamos vendendo a preços
inferiores aos custos internos de produção, subsidiando, portanto, o consumo de outras nações (enquanto o nosso pobre
consumo interno básico não pode ser subsidiado, por razões que até hoje ignoramos, não pode, nem mesmo, ser aliviado do
ICM). E a política de forçar exportações não se limitou aos manufaturados” (PEE, p. 9). Em face, portanto, da exportação, tal
como se deu, enquanto instrumento do “modelo voltado para fora”, uma pergunta é posta, como uma clara afirmação: terá
semelhante esforço exportador se imposto “Para satisfazer as necessidades de uma pauta de importações que, direta ou
indiretamente, é ditada pelo consumo artificial e conspícuo de uma minoria cada vez mais privilegiada?” (P, 44/4). É, nos
limites da armação conceitual braguista, a forma de ver e indicar a contradição entre um processo de realização industrial que,
objetivando o mercado interno, é, no entanto, propriedade ou financiamento do capital estrangeiro, e a incapacidade do país
periférico em gerar as divisas suficientes para “remunerar” este capital. E assim se põem as ameaças ao prosseguimento da
acumulação, como diz S. Braga, a inviabilidade do desenvolvimento: “A persistir o quadro atual, o Brasil deverá ao exterior
US$ 40 bilhões antes do fim de 1980, com amortizações e juros na ordem de US$ 8 bilhões anuais. Por mais favorável que
seja a evolução da nossa receita cambial, essa despesa com a dívida acabará por se tornar insuportável, e as concessões que o
país terá que fazer aos credores inviabilizará qualquer projeto de desenvolvimento nacional” (P, 45/5). Inviabilização, aliás,
que da perspectiva braguista já está em curso: “desaquecimento de uma economia cujo dinamismo já caiu de 9%, ao ano, para
4%, se não quer dizer recessão, eu já não entendo mais a semântica dos economistas. Mas, se ainda sou capaz de perceber
alguma coisa, vejo, então, o verdadeiro plano do Governo: apelar para a recessão e, dessa maneira, resolver com um só
remédio os dois problemas cruciais: a inflação e o balanço de pagamentos. Um remédio terrível para o país, mas que tem
algumas vantagens: esconde a incompetência, na medida em que se pode pôr a culpa na crise internacional, e joga o peso
maior do sacrifício sobre aqueles que têm menos poder e capacidade de reclamar” (PEE, p. 112).
O modelo voltado para fora é, pois, inseguro e inviável. Mais não é preciso dizer: “Tudo isso é errado /.../; são erros
sobre erros que a oposição não pode deixar de denunciar. E, para não ficar exclusivamente na denúncia, na crítica /.../
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oferecemos a nossa opinião, as nossas idéias que consideramos devam fazer parte de uma política alternativa, viável e correta”
(PEE, p. 112).
O modelo voltado para dentro. “A eliminação das causas geradoras da dependência excessiva - falta de mercado interno,
grau de concentração de renda gerando demanda sofisticada e pressão sobre importações, atraso tecnológico - tem que ser
uma das linhas prioritárias do novo modelo” (P, 44/4).
Em que pensem as claras flexões de causalidade que o fragmento acima espelha, mais uma evidência das fronteiras
perspectivadas pelo senador fluminense, a Proposta braguista se põe como um recurso para evitar o aprofundamento e alcançar
a redução da “dependência”, no preciso momento em que esta, pela crise do “milagre”, pode se tornar ainda maior, se bem
que estejam dadas as condições de sua superação.
O desequilíbrio da balança comercial, e o correlato desequilíbrio da balança de pagamentos são o nó górdio revelador
do esquema vigente. A organização industrial voltada para a produção de bens de consumo duráveis, esta indústria de ponta,
como é chamada, propriedade, na sua parcela mais dinâmica e significativa, de capitais estrangeiros, além de suscitadora de um
mercado consumidor privilegiado, implica numa pressão importadora, bens de produção e insumos básicos, responsável, no
andamento, pela inviabilização do esquema em seu conjunto, na medida que esgota os recursos do esforço exportador e
conduz a um endividamento crescente. “Se as importações de petróleo, momentaneamente, cresceram de forma aguda, a
tendência de prazo mais largo mostra uma taxa média de crescimento das importações de equipamentos bem mais elevada. E
como os países produtores de bens de capital podem reajustar os seus preços reagindo à alta do petróleo, é certo, é inevitável
que ao fim de poucos anos, o gasto com importação de equipamentos ultrapasse de muito o das compras de petróleo. É o
fato de fabricarmos ainda muito pouco das nossas fábricas que faz com que o processo de substituição de importações e o
próprio processo de crescimento econômico em geral resultem em pressão crescente sobre o balanço de pagamentos. De tal
forma que a superação da situação de subdesenvolvimento pareça ou inviável ou dependente de entradas cada vez maiores de
capital estrangeiro” (P, 44/6).
De sorte, e nisto não há margem para qualquer dúvida, a superação do subdesenvolvimento remete à implantação e
crescimento da indústria de base, dos bens de capital, dos insumos básicos, numa expressão precisa - dos bens de produção
(equipamentos e os chamados bens intermediários). É precisamente sobre este ponto que está centrada a Proposta de S. Braga.
O modelo voltado para dentro principia por estabelecer o fundamento, as condições de possibilidades deste giro para
dentro pela propositura da interiorização da produção dos bens de produção. Substituir as importações de bens de capital e
insumos básicos é um imperativo; imperativo é também que o seja tendo por base o capital nacional. Escapar, portanto, à
inviabilidade de superação do subdesenvolvimento, e concomitantemente da entrada cada vez maior de capital estrangeiro,
como Saturnino configura a questão. Todavia, “O rompimento desse ciclo não é fácil. A fabricação de equipamentos exige o
domínio de tecnologias modernas e complexas que só as grandes empresas multinacionais detêm. O investimento em
desenvolvimento tecnológico é um investimento caro e de resultados não muito certos, senão num prazo bem longo. Trata-se
de uma esforço que quase sempre está fora do alcance das empresas privadas nacionais, no grau de capitalização que elas
atingiram” (P, 44/7). “Não obstante tudo isso”, prossegue Saturnino, “o Brasil conseguiu ensaiar os primeiros passos no
campo da indústria de bens de capital. Algumas poucas empresas brasileiras conseguiram se afirmar e ganhar uma parte
apreciável do mercado, antes inteiramente preenchido por bens importados” (P, 44/7). Todavia, avaliando o conjunto da
situação do “setor dos chamados insumos básicos, onde a disputa de poder, de comando dos mercados, aparece, clara e
transparente, entre o Estado e a grande empresa estrangeira” (P, 41/5), como considerando que “O setor de produção de bens
de capital é no momento o que apresenta melhores oportunidades de investimento, não só o investimento comum em
instalações fixas, mas também, e principalmente, aquele investimento, de maturação mais longa, em tecnologia (tecnologia de
processo e tecnologia de produção)” (P, 41/5), Saturnino conclui, declarando: “Para colocar logo a questão nos seus devidos
termos, acho útil repetir a definição geral do ponto de vista que tenho defendido: de que, na área da grande empresa, nos
setores pesados de nossa indústria e dos serviços básicos, nos setores fortemente exigentes em capital e tecnologia, o estado
não deve esperar pela iniciativa privada em nome de velhos preconceitos liberais, mas deve garantir, com seus
empreendimentos, sempre que necessário, o cumprimento no tempo próprio das metas essenciais estabelecidas. A espera só
poderia resultar numa das duas decorrências alternativas: o atraso do setor, com conseqüências graves para o
desenvolvimento, ou a ocupação do setor pela grande empresa de capital estrangeiro” (P, 41/3). Mesmo porque o “centro da
questão colocada à nossa frente é este: quem vai liderar o desenvolvimento brasileiro? A grande empresa estrangeira, a
chamada multinacional ou transnacional, ou a grande empresa brasileira, a empresa estatal, a nossa multinacional? Esse é o
dilema” (P, 44/1).
É um dilema posto num momento especial, pois “só agora ele está maduro para um verdadeira opção. Até agora, o
interesse das multinacionais pelo Brasil era marginal: os grandes mercados da América do Norte e da Europa monopolizavam
suas atenções. Não tenho a menor dúvida de que agora as multinacionais estão realmente interessadas no Brasil. E a produção
de equipamentos será fatalmente o veio mais cobiçado a explorar. Mas também não tenho nenhuma dúvida de que agora a
empresa estatal brasileira, a nossa multinacional, está madura, forte, aparelhada e confiante para enfrentar a batalha. E a
produção de equipamentos, de bens de capital, de tecnologia, de ‘engineering’ será a principal frente de combate nos próximos
anos” (P, 44/1).
De maneira que a superação do subdesenvolvimento, a ruptura com a pobreza e o atraso, bem como a resolução do
confronto com o capital estrangeiro, e, em última instância, o rompimento da condição econômica subalterna, de velha
estrutura colonial, confluem para um mesmo momento de resolução, no preciso instante, instante especial, e isto não é de pouca
importância, em que se trata de edificar a base do “capitalismo verdadeiro”. E o instrumento afirmado para a empreitada
decisiva, mantido o modo de produção vigente, é a grande empresa estatal. Mesmo porque “a produção de matérias-primas e
de equipamentos básicos, dadas as exigências de capital e de tecnologia, dadas as dimensões relativas do nosso mercado, são
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setores onde não existe a liberdade de iniciativa, onde tem que existir um monopólio de fato e onde a presença do estado,
dadas as características do capitalismo nacional, faz-se necessária como alternativa única para enfrentar a possibilidade de
entrega das decisões à empresa multinacional” (PEE, p. 216). E o senador fluminense detalha, sempre enfatizando a
transcendência do setor de produção de bens de produção: “É o setor chave da retomada do processo de substituição de
importações; é a peça essencial da nova feição do modelo brasileiro que reabilita a prioridade dos setores básicos e volta-se
para o mercado interno. É, ainda, um ramo cujo desenvolvimento torna-se primordial para a solução dos nossos problemas de
balanço de pagamento a longo prazo. Por todas essas razões, esse é um setor que não pode falhar” (P, 41/5).
Passo decisivo e vital, face ao qual deve ser repelido qualquer “preconceito antiestatizante, invocando a defesa da
iniciativa privada, a liberdade de iniciativa”. “A começar pelo fato de que esse é tipicamente um setor onde há muito já não
existe liberdade de iniciativa. É um setor completamente dominado pelo entendimento entre as grandes empresas
monopolistas” (P, 41/5). Ademais, “a empresa estatal é uma fórmula bem brasileira. Foi a solução encontrada por sucessivos
governos de diferentes colorações políticas nos últimos 25 anos; foi a solução adotada pragmaticamente, quase
instintivamente, pela sociedade brasileira, pela economia brasileira para buscar o caminho mais viável, o caminho próprio para
o seu desenvolvimento. Uma solução exitosa, uma fórmula feliz” (P, 44/3).
Fórmula feliz para a qual S. Braga reserva quatro esferas de atuação: “1) a da produção de serviços básicos de infra-
estrutura; 2) a da produção de matérias-primas fundamentais; 3) a da produção de equipamentos básicos; 4) a da
comercialização no mercado internacional” (PEE, p.177). Saturnino enfatiza cada um destes itens, mas um em especial,
precisamente o que já várias vezes ressaltamos, o da produção de equipamentos básicos. A ponto de, em um de seus
discursos, chegar a propor a criação da Equipobrás, “uma empresa holding que organizasse a produção do setor, em associação
com as companhias privadas, que distribuísse e aprofundasse as vocações já existentes, as vocações produtivas já existentes
dentro desse importante setor da nossa indústria, participando com capital, criando subsidiárias para produzir o que ainda não
é fabricado, produzindo e fornecendo tecnologia, porque esta empresa se constituiria num núcleo de produção de tecnologia,
coisa que nenhuma empresa privada é capaz de fazer...” (PEE, p.79).
A empresa estatal, esta fórmula feliz e brasileira que, ao contrário do que supõe o preconceito privativista, seria a
condição de existência e desenvolvimento, na perspectiva braguista, da pequena e média empresas privadas, pois, “o que a
empresa privada nacional está precisando é de segurança no fornecimento, a tempo hábil, de equipamentos de boa qualidade
para as suas fábricas, associado a esquema de financiamento adequado à sua rentabilidade previsível. Até agora, isso tem sido
obtido, na parte mais substancial dos equipamentos pesados, pela via das importações, do fornecimento externo. Essa
solução, entretanto, não constituirá mais uma via segura nos próximos anos. Basta observar a correlação entre o nosso
crescimento econômico e a elevação das importações de bens de capital para concluir que o estrangulamento do nosso setor
externo seria uma fatalidade em poucos anos, em decorrência do crescimento dessas importações de máquinas e
equipamentos, independentemente do petróleo. O que a empresa privada nacional está, então, realmente precisando, para
garantia de seu desenvolvimento, é que se instale urgentemente no País uma indústria em grande escala de bens de capital,
cobrindo a extensa gama de ramos e sub-ramos do equipamento pesado, principalmente daquele fabricado sob encomenda,
com uma enorme dose de engenharia embutida em cada caso” (P, 41/5).
Neste registro do ressurgimento de um discurso econômico no seio da oposição, não se faz necessário acompanhar e
anotar todos os aspectos e detalhes da propositura. Todavia, antes de dar por findado o rastreamento dos textos braguistas, é
preciso ainda, rapidamente, anotar certos pontos.
O primeiro diz respeito à questão agrária.
Praticamente o problema não é tematizado nos discursos publicados na coletânea, aflorando simplesmente numa
única frase: “o aumento do emprego agrícola, a reforma agrária, a criação de melhores condições para o pequeno agricultor; aí
está outra perspectiva definida pela oposição e desprezada pelo governo, preocupado, sobretudo, com o desenvolvimento
agrícola baseado na grande empresa” (PEE, P.125). Pouco, sem dúvida, mas reflete uma tomada de posição. Tomada de
posição particularmente significativa pela crítica, se bem que implícita, ao desenvolvimento agrícola exclusivamente pela
grande empresa, e pela consignação da necessidade de uma reforma agrária. Na Proposta a questão aparece mais trabalhada,
todavia, ainda sem se converter num capítulo amplamente desdobrado. Contudo, um passo é dado na justificação dos reparos
a uma política de desenvolvimento agrícola baseada apenas na “grande empresa rural capitalista”, tal como o faz a política
vigente: “A modernização da agricultura brasileira tem significado maciça liberação de mão-de-obra por parte das grandes
propriedades. A contribuição negativa da moderna agricultura para a absorção de mão-de-obra nada teria de grave se a
liberação de trabalhadores fosse compensada, por um lado, pelo barateamento dos alimentos e, por outro, pela inserção de
mão-de-obra em atividade mais produtivas, na indústria ou nos serviços. Mas nada disso vem ocorrendo”. Passo subseqüente,
o senador emedebista extrai a conclusão de que “A reforma agrária é portanto o meio eficaz de criar mais oportunidades de
trabalho no campo”, porém, “A reforma agrária é essencial mas também não basta como elemento principal de uma política
de emprego” (P, 45/2). Deste ponto, S. Braga salta para a questão do imposto territorial rural, criticando a reformulação que
este sofreu em 1965, para constatar que “A estrutura de distribuição de terras não se alterou significativamente nesses dez
anos de vigência do novo imposto, o latifúndio improdutivo continua existindo em larga escala, e a especulação, com a subida
vertiginosa do preço da terra, nunca tinha atingido níveis tão altos” (P. 45/6). O parlamentar conclui pelo parecer “que o
imposto territorial rural realmente pesado, insuportável para o latifúndio, é a melhor solução, a mais realista”, não sem antes,
por mais uma vez, aludir à reforma agrária, “que todo mundo sabe o que é, a distribuição entre pequenos agricultores, de
terras pertencentes a latifúndios improdutivo, associada a uma efetiva assistência a esses pequenos proprietários” (P, 45/6).
Posta nestes termos, a reforma agrária parece não dispor nem mesmo da convicção de seu próprio expositor.
Para finalizar tome-se a questão do mercado interno.
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O modelo voltado para dentro pensa naturalmente uma forte estruturação de um amplo mercado de bens de consumo não
duráveis, o que implica, é evidente, num largo desenvolvimento deste departamento de produção.
Através de medidas tributárias, distributivistas, de intensificação do emprego de mão-de-obra, seja pela utilização de
técnicas ávidas de força de trabalho, ou através de estímulos fiscais, e principalmente pela ampliação do mercado de trabalho,
julga o parlamentar fluminense ser possível constituir um imenso contingente de consumidores de bens operários.
Isto naturalmente tem por suposto uma reorganização da produção: “A produção de um País pode se compor e se
distribuir das mais diversas maneiras, tendo, em cada uma dessas composições, o mesmo valor global e a mesma taxa de
crescimento”. Propondo, então, um deslocamento que abandona os bens de consumo duráveis (Saturnino argumenta explici-
tamente com a indústria automobilística) enquanto centro dinâmico do sistema produtivo, especifica: “os mesmos empregos,
certamente em maior quantidade, os mesmos salários e impostos poderiam resultar do desenvolvimento maior de outras
indústrias - alimentação, tecidos, confecção, calçados, mobiliário etc. que atenderiam às necessidades não de cinco milhões
mas de 110 milhões de brasileiros. É claro que esta nova composição da oferta teria que corresponder a uma nova composição
da demanda, isto é, medidas eficazes de redistribuição de renda teriam que ser adotadas. Mas é óbvio, também, que isso não é
impossível; ao contrário, fica claro que isso é economicamente viável, pois que, como foi dito, um mesmo valor do produto
global pode ser obtido de várias maneiras, com várias composições, dependendo da composição do poder político, de quais os
grupos sociais que exercem maior influência, maior soma de poder. É essa transformação que nós chamamos de mudança de
modelo” (P, 41/1).
Convém observar que esta nova composição da oferta não se converte na nova base dinâmica do sistema produtivo,
esta é detida pelos setores de base, nos quais o monopólio estatal é a pedra angular.
E sejam quais forem os defeitos, maiores ou menores; os limites, mais ou menos estreitos; e as incorreções, mais ou
menos comprometedoras, a análise econômica é politicamente concludente. O universo daquela supõe a esta; esta é a
finalização daquela. Uma totalidade é reposta. E as formas, defeituosas que sejam, pelas quais isto se efetiva, estão, de qualquer
modo, muito além do reducionismo politicista.

IV
Tentador seria, nesta última parte, articular os três seguimentos que o antecederam. Concretar analiticamente, portanto, na
particularidade da via colonial, ou caminho “prussiano”-colonial, como for preferido, a ocorrência da politicização da totalidade
operada pela oposição, e a “recuperação” posterior daquela para esta última pelo ressurgimento do discurso econômico em
seu seio. Todavia, por óbvias razões, limitar-nos-emos a pespontar, tão-somente, alguns poucos passos iniciais.
Assinale-se, então, de início, que o ressurgimento de um programa econômico da oposição só se verificou como
“esgotamento” do “milagre”. Apenas emergiu quando a política econômica em vigor evidenciou da forma mais explícita
possível a sua inviabilidades intrínseca enquanto aparato resolutor das questões nacionais em seu conjunto. O que ressalta
agudamente a abstratividade que pautou a atuação oposicionista, incapaz de ver e proclamar, desde logo, nos próprios
momentos de implantação e de sucesso tópico daquela, a falsidade básica da mesma. O próprio senador S. Braga evidenciou,
indiretamente, que tempo foi consumido para formar a convicção de que o sistema era transpassado por “defeitos
fundamentais”. Isto se aprende, logo às primeiras linhas de sua Proposta, quando se lê que a “idéia da mudança do modelo
econômico-social” proveio da verificação de tais “falhas”, e que estas “uma vez constatadas” levaram à formulação de um novo
modelo. Este “uma vez” nos dá a medida de um antes de constatar, feito de perplexidade e ilusão, que é altamente significativo e
sintomático.
Perplexidade e ilusão que traduzem acima de tudo a debilidade social dos segmentos da sociedade brasileira que, de
algum modo, são espelhados pelo contingente oposicionista. Mais do que isto, abrangentemente espelham a debilidade do
modo de produção capitalista no Brasil, em especial do modo especificamente capitalista de produção, que precisamente se
singulariza pelo capital industrial. Fraqueza por gênese histórica que é particularmente aguda no que tange à classe que em seu
bojo supostamente deveria ocupar o espaço hegemônico.
Tudo isto já encerra na particularidade da objetivação da via colonial para o capitalismo.
Numa formulação mais do que esquemática, fácil é observar o caráter hiper-tardio da entificação histórica do capital
industrial no Brasil. Bastaria referir que até a atualidade este processo não se completou, haja vista que a grande questão que,
hoje, torna a se pôr (e que data de suas origens), é a da produção de bens de produção. Bastaria também lembrar que a
industrialização, nas fronteiras nacionais, atravessou toda a primeira metade deste século em tentativas e contra-marchas que
não lograram ultrapassar o nível da incipiência. Considerados, pois, os casos clássicos de objetivação do modo de produção
especificamente capitalista (Inglaterra, França), face aos quais a industrialização alemã e a italiana já são tardias (datando das
últimas décadas do século passado), a industrialização brasileira é hiper-tardia.
A questão aí indicada, é óbvio, não é simplesmente cronológica. Enquanto a industrialização tardia se efetiva num
quadro histórico em que o proletariado já travou suas primeiras batalhas teóricas e práticas, e a estruturação dos impérios
coloniais já se configurou, a industrialização hiper-tardia se realiza já no quadro da acumulação monopolista avançada, no tempo
em que guerras imperialistas já foram travadas, e numa configuração mundial em que a perspectiva do trabalho já se
materializou na ocupação do poder de estado em parcela das unidades nacionais que compõem o conjunto internacional.
Ainda mais, a industrialização tardia, apesar de retardatária é autônoma, enquanto a hiper-tardia, além de seu atraso no tempo,
dando-se em países de extração colonial, é realizada sem que estes tenham deixado de ser subordinados das economias
centrais.
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É numa configuração desta ordem que se põe o capital industrial no Brasil, tendo por suporte, então, uma burguesia
especialmente despojada de “ilusões humanitárias”, e especialmente tolhida por fronteiras objetivas e subjetivas que demarcam
seu estreito espaço histórico. Para ainda ressaltar a debilidade essencial desta burguesia é suficiente ponderar que a organização
produtiva nacional que a precedeu, a economia agro-exportadora “era uma economia que exportava seu excedente”, não
tendo, pois, conduzido previamente a “uma acumulação que se cristalizasse na máquina”[20] .
Frente a isto, e saltando mediações que este pequeno ensaio pode, provisoriamente, dispensar, de imediato as
questões da acumulação e da hegemonia, na objetivação do “capitalismo verdadeiro” no Brasil, se mostram tanto específicas
quanto altamente problemáticas.
Disse certa vez Engels, referindo-se à burguesia alemã, que “Por mais lamentável que sejam as manifestações da nossa
burguesia no domínio político, é inegável que sob a relação industrial e comercial nada fez senão cumprir seu dever”[21] .
Poder-se-á repetir o mesmo quanto à burguesia brasileira? Certamente que sim, quanto à primeira parte, de nenhum modo,
todavia, quanto à segunda. E isto faz toda a densa diferença. Seqüente à economia agro-exportadora que não teve a gentileza
de lhe legar o enxoval das bases capitalistas para a industrialização, mas a fez herdeira do contrapeso latifundiário que mesmo
sob as “melhores” condições, sempre lhe reduziu o fôlego, a burguesia industrial brasileira teve que se contentar com fatias de
reinado no colegiado dos pactos, e acumular sob a proteção do estado e o olho guloso do capital estrangeiro. Existência
estranha, se se raciocina com a imagem da redentora clássica do “ancien régime”. Mas outra não é a nossa heroína nacional, em
foto 3x4, com data no peito para colar em documento de identidade.
De sorte que a presença do estado na economia, bem como a detenção do poder em forçosa companhia é da essência
mesmo do capitalismo no Brasil desde as ocorrências da década dos 30. Se a isto se agrega a presença do capital estrangeiro os
contornos principais estão traçados. De fato, parece que à medida que pela via colonial se avança na objetivação do “verdadeiro
capitalismo”, tanto menos a classe, classicamente por ele responsável em cada fronteira nacional, é capaz de reproduzir seus
atributos universais, a ponto de não realizar, ao contrário das burguesias simplesmente tardias, nem mesmo seus precípuos
deveres econômicos[22] . O estado e o capital estrangeiro podem assim, de vários modos, proferir seus discursos, de nenhum
modo necessariamente idênticos ou confluentes.
Mas que não se conclua com participação. Se os pactos sociais são as formas pelas quais o poder tem sido detido, eles
não são idênticos entre si, e o critério que os separa em dois grandes ramos básicos é a presença ou não, em seu bojo, de
alguma forma de representação das classes subalternas. É assim que tem caminhado, na particularidade da via colonial, o evolver
do processo brasileiro, pagando cada avanço pesado tributo ao historicamente velho.
Conseqüentemente, tudo considerado, não é casual, mas empuxo de realidade que o ressurgimento de um discurso
econômico no seio da oposição se faça precisamente repondo questões e personagens que muitos, sob várias maneiras,
pretenderam conceitualmente sepultar. Não é também casual que o discurso braguista aponte para a necessidade da
substituição do pacto no poder por outro com a presença das forças populares; que indique claramente na direção de um
capitalismo de estado como forma de conter e enfrentar o capital estrangeiro, pois, se a assim chamada “teoria” da
dependência desarmou teoricamente para a compreensão do imperialismo, e, a também mal chamada “teoria” do populismo
desarmou para as concretas equações políticas, isto não altera a realidade de que o imperialismo e o latifúndio (para usar uma
expressão sintética) são o historicamente velho, e a presença popular a virtualidade do novo. Mesmo porque, para além da
questão sobre as viabilidades, no dia em que a oposição colher votos sobre um programa econômico, alternativo para o que aí
está plantado, a história efetivamente política terá recomeçado, dado que da perspectiva do trabalho, como recordou, não há muito,
um autor português, o empenho pela democracia jamais pode ser postulado à parte das questões fundamentais que dizem
respeito aos modos pelos quais o produtor direto está concretamente envolvido, em cada momento dos processos, na
produção e reprodução da existência material da sociedade.

Notas:
[1] . K. MARX, Prefácio - Para a Crítica da Economia Política, Abril Cultural, São Paulo, 1974, p. 135.
[2] “Pressupomos o trabalho em uma forma que pertence exclusivamente ao homem. /.../ Ao cabo do processo de trabalho
advém um resultado que, de início, estava presente idealmente na representação do trabalhador. Não se trata de que apenas
efetue uma alteração de forma nos materiais naturais; ao mesmo tempo efetiva nos materiais naturais seu fim (Zweck),
conhecido por ele e que determina como lei seu modo e maneira de fazer, e ao qual deve subordinar sua vontade. E esta
subordinação não é um ato momentâneo. Além do esforço dos orgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se
manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o
trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo modo de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de
fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais”. K MARX, O Capital, Livro I, Parte Terceira.
[3] K. MARX, Introdução à Crítica da Economia Política, Abril Cultural, São Paulo, 1974, pp. 118-119.
[4] G. LUKÁCS, “Carta sobre o Stalinismo”, in Revista Temas 1, Grijalbo, São Paulo, 1977, p.16.
[5] Referimo-nos ao capítulo final de nosso trabalho — O Integralismo de Plínio Salgado, São Paulo, Ad Hominem, 1999.
[6] “Hegel jamais chamou de dialética a subsunção de uma massa de “cases” under a general principle”. K. MARX. “Carta a Engels
de 9 de dezembro de 1861”.
[7] G. LUKÁCS, “Sobre la Categoria de la Particularidad”, in Prolegómenos a una Estética Marxista, Grijalbo, México, 1965, p.
121.
[8] Tome-se apenas como ilustração do que acaba de ser considerado, uma breve passagem da Crítica ao Programa de Gotha: “A
sociedade atual é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de complementos
16
medievais, mais ou menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada país, mais ou menos
desenvolvida”. K. MARX, in Textos 1, Ed. Sociais, São Paulo, 1975, p. 239, (os grifos são nossos).
[9] “A relação entre a indústria, o mundo da riqueza em geral, e o mundo político é um problema da época moderna. Sob que
forma principia este problema a ocupar os alemães? Sob a forma das tarifas protecionistas, do sistema proibitivo da economia nacional.
O germanismo passou dos homens à matéria, e um belo dia nossos cavalheiros do algodão e nossos heróis do ferro viram-se
convertidos em patriotas. Assim, pois, na Alemanha se começa por reconhecer a soberania do monopólio no interior,
conferindo-lhe soberania em relação ao exterior. Quer dizer, na Alemanha se começa por onde se principia a terminar na França e
na Inglaterra. /.../ Porém a Alemanha não escalou simultaneamente com os povos modernos as fases intermediárias da
emancipação política. Não chegou sequer, praticamente, às fases que teoricamente superou /.../ Fixemo-nos, primeiramente
nos governos alemães, e os veremos impulsionados pelas condições da época, pela situação da Alemanha, pela perspectiva da
cultura além, e, finalmente, por seu próprio instinto certeiro, a combinar os defeitos civilizados do mundo dos Estados modernos, cujas
vantagens não possuímos, com os defeitos bárbaros do antigo regime, dos quais nos podemos jactar à saciedade, de tal modo que a
Alemanha, se não por bom senso, pelo menos por falta de senso, tem que participar cada vez mais daquelas formações estatais
que ficam para além de seu status quo. /.../ Assim como no panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações, no sacro
império romano germânico se reúnem os pecados de todas as formas de estado”. “En Torno de la Crítica de la Filosofia del
Derecho de Hegel”, in La Sagrada Família, Grijalbo, México, 1960, pp. 7, 11 e 12.
[10] O Capital, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, p. 5.
[11] El Programa Agrário de la Socialdemocracia. Obras Completas, Cartago, Buenos Aires, 1960, Tomo XIII, pp. 241-242 e 246 (os
grifos são nossos).
[12] Introdução à Crítica da Economia Política, op. cit., p. 110.
[13] J. A. GIANNOTTI, “Notas Sobre a Categoria ‘Modo de Produção”’, in Estudos Cebrap, nº 17, São Paulo, 1976, p. 163.
[14] R. Saturnino BRAGA, Política Econômica e Estatização, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976.
[15] Ib., p. 3.
[16] “— Não posso deixar, todavia, de fazer um reparo à assertiva de V. Exa., segundo a qual, se o governo tivesse ouvido, há
cinco anos passados, o MDB, não teria incidido em erros, alguns dos quais apenas apontados de forma incidente por V. Exa.
Gostaria que V. Exa., em tempo oportuno, apresentasse à nação, desta tribuna que V. Exa. tanto honra e ilustra tanto,
exatamente os pronunciamentos do MDB, demonstrativos do acerto de suas teses, das teses que V. Exa. preconiza, mas que
não são exatamente as teses do seu partido e, muito menos, foram pelo seu partido defendidas há cinco anos passados. De
maneira que, sabendo da seriedade que V. Exa. empresta a tudo que diz e a tudo que faz, espero que, brevemente, V. Exa.,
coligidos os dados nos Arquivos, nos Anais do Senado, ou fora dele, V. Exa. possa demonstrar que suas teses já eram
defendidas há cinco anos passados pelo partido que V. Exa. tanto ilustra. /.../ Vossa Excelência citou casos isolados, e não
atentou para o sentido do meu aparte. V. Exa. faz uma análise global, defende determinadas teorias econômicas que não são as
do seu Partido. A circunstância de episodicamente, e em termos isolados, o MDB ou figuras do MDB haverem defendido
algumas dessas teses não responde à pergunta por mim feita a V. Exa.” Ib., pp. 107 a 109.
[17] R. Saturnino BRAGA, Proposta de Modelo Econômico e Político para o Brasil, versão condensada e publicada pela Folha de S.
Paulo, em 26 de junho de 1977, 4° Caderno, pp. 41, 44 e 45. Daqui para diante será citada simplesmente, no próprio corpo do
texto, como P, seguindo-se à letra o número da página do jornal em que se encontra o fragmento e o número da coluna. No
caso: (P, 44/2).
[18] “/.../ o socialismo, na sua definição clássica, o socialismo ortodoxo ou totalitário demonstrou ser inseparável - por
motivos evidentes - da ditadura política de um grupo dirigente. E basta o potencial de monstruosidades que essas situações
ditatoriais carregam para justificar sem a necessidade de discussão de outros aspectos (ligados à eficiência, por exemplo), para
sustentar a sua rejeição” (P, 41/3 - os parênteses são do original).
[19] Política Econômica e Estatização, op.cit., p. 189. Citada daqui para diante apenas como PEE.
[20] Francisco de OLIVEIRA. A Economia da Dependência Imperfeita, Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1977, p. 116.
[21] F. ENGELS, As Guerras Camponesas na Alemanha, Grijalbo, São Paulo, 1977, p. 18.
[22] “/.../a chamada burguesia nacional hoje tem um peso econômico insignificante na estrutura da dominação, ou na
repartição do comando da estrutura de produção material. A ironia reside em que a grande parcela das classes dominantes de
caráter estritamente nacional está no campo. E este, pelo seu caráter subordinado do processo produtivo, confere à burguesia
nacional agrária e aos latifundiários um peso político descendente. No nível do setor industrial, a burguesia nacional também
tem um peso específico que é declinante desde há muito tempo”. F. de OLIVEIRA, op. cit., p. 122.
17

A VIA COLONIAL DE ENTIFICAÇÃO DO CAPITALISMO*

O problema das formas atípicas ou, melhor dizendo, particulares de formação do modo de produção capitalista interessa-nos,
no âmbito desse trabalho, especialmente por duas razões: a primeira liga-se à questão do fascismo, a segunda à questão do
integralismo.
Figure, apenas como preambulação de ordem geral, uma pequena passagem de Marx, extraída de sua Crítica ao
Programa de Gotha: “A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista que existe em todos os países civilizados, mais ou menos
expurgada de elementos medievais, mais ou menos modificada pela evolução histórica particular de cada país, mais ou menos
desenvolvida. O ‘estado atual’, pelo contrário, muda com a fronteira. É diferente no Império prussiano-alemão e na Suíça, na
Inglaterra e nos Estados Unidos. O ‘estado atual’ é pois uma ficção. No entanto, os diversos estados dos diversos países
civilizados, não obstante a múltipla diversidade das suas formas, têm todos em comum o fato de que assentam no terreno da
sociedade burguesa moderna, mais ou menos desenvolvida do ponto de vista capitalista. É o que faz com que certos caracteres
essenciais lhes sejam comuns. Neste sentido, pode falar-se do ‘estado atual’ tomado como expressão genérica, por contraste
com o futuro em que a sociedade burguesa, que no presente lhe serve de raiz, terá deixado de existir” (os grifos são nossos)
[1] . Basta isto para que fique ressaltado, o que aliás é explícito, que a “sociedade é a raiz do estado”. Numa outra passagem,
poucas linhas acima, o mesmo já havia sido afirmado expressamente, exigindo Marx que se tratasse “a sociedade presente (e
isto é válido para qualquer sociedade futura) como o fundamento do estado presente (ou futuro, para a sociedade futura)”, e isto
para condenar cabalmente o tratamento que considera “o Estado como uma realidade independente, que possui os seus
próprios ‘fundamentos intelectuais, morais e livres’”[2] . De modo que estamos, aqui, completamente afastados de uma
concepção em que a determinação em última instância do estado pelo econômico seja uma forma de pensar a relação como uma
sorte de distanciamento e afrouxamento da determinação econômica. Ao contrário, última instância significa determinação
essencial, raiz para além da qual nada há a buscar, terminação precisamente porque ela é a radicalidade das coisas e sua gênese.
Que medeie aí uma rica gama de mediações e a determinação fundamental não seja entendida mecanicamente também é uma
clara evidência. Tanto que há uma anatomia universalmente válida para a sociedade civil, enquanto que para o estado atual não
resta mais do que uma expressão genérica, súmula apenas de certos caracteres essenciais, estes devidos também, sem escape,
diretamente ao fato de que as diversas formas de estado assentam todas no terreno da sociedade burguesa. E, para anotar que as
diferenciações possíveis sobre a mesma anatomia são dadas como enormes, basta reproduzir o contraste estabelecido por Marx
entre a “república democrática” que implica o “reconhecimento do que se chama a soberania do povo” e que já vigora na
Suíça, nos Estados Unidos etc., e que “não existe de modo algum no interior das fronteiras do Império alemão”, e o estado
prussiano “que não passa de um despotismo militar, com uma armadura burocrática e blindagem policial, adornado de formas
parlamentares, com misturas de elementos feudais e de influências burguesas”[3] . Mas, grife-se com toda força, não se trata de
qualquer combinatória de ordem aleatória.
Tais determinações ficam ainda mais adensadas quando atentamos para que, no fragmento da Crítica inicialmente
citado, há algo mais, um outro aspecto que nos interessa muito de perto: a sociedade pode se apresentar mais ou menos
desenvolvida do ponto de vista capitalista, mais ou menos expurgada de elementos pré-capitalistas, mais ou menos modificada
pelo processo histórico particular de cada país. De maneira que há modos e estágios de ser, no ser e no ir sendo capitalismo, que
não desmentem a anatomia, mas que a realizam através de concreções específicas.
Tudo considerado, não se está em face do conceito de modo de produção como diante de um quadro sinótico, rígido
na sua unidirecionalidade achatada de uma só dimensão, mas diante de uma totalidade anatomicamente ordenada e em processo,
apta e obrigada a colher o particular concreto.
Posto isto, retomemos a noção de via prussiana.
Via prussiana, ou caminho prussiano para o capitalismo, como a denominou Lenin, aponta para um processo
particular de constituição do modo de produção capitalista. No dizer de Carlos Nelson Coutinho, trata-se de um itinerário para
o progresso social sempre no quadro de uma conciliação com o atraso: “Ao invés das velhas forças e relações sociais serem extirpadas
através de amplos movimentos populares de massa, como é característico da ‘via francesa’ ou da ‘via russa’, a alteração social
se faz mediante conciliações entre o novo e o velho, ou seja, tendo-se em conta o plano imediatamente político, mediante um
reformismo ‘pelo alto’ que exclui inteiramente a participação popular”[4] .
Se a denominação é devida a Lenin, a observação da particularidade do atraso alemão, sabe-se, é algo bem mais antigo.
As menções que fizemos da Crítica do Programa de Gotha (1875) a contêm, e basta lembrar da Introdução à Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel (1843) para constatar a antigüidade e a permanência da postura. Lê-se expressamente neste último texto:
“Porém a Alemanha não escalou simultaneamente com os povos modernos as fases intermediárias da emancipação política.
Não chegou, sequer, praticamente, às fases que teoricamente superou”[5] . E ainda mais: “Todavia, se a Alemanha só tem
acompanhado com a atividade abstrata o desenvolvimento dos povos modernos, sem chegar a tomar parte ativa nas lutas reais
deste desenvolvimento, não é menos certo que, de outra parte, tem compartilhado dos sofrimentos deste desenvolvimento,
sem participar de seus gozos, nem de sua parcial satisfação. À atividade abstrata, de um lado, corresponde, de outro, o
sofrimento abstrato. E, assim, a Alemanha se encontrará, um bom dia, ao nível da decadência européia antes de haver chegado
jamais ao nível da emancipação européia. /.../ Consideremos, primeiramente, os governos alemães, e os veremos impulsionados

* Excerto do livro O Integralismo de Plínio Salgado - Forma de Regressividade no capitalismo Híper-tardio. São Paulo, Ad Hominem/UNA, 1999, (2ª
edição).
18
pelas condições da época, pela situação da Alemanha, pela perspectiva da cultura alemã e, finalmente, por seu próprio instinto
certeiro, a combinar os defeitos civilizados do mundo dos estados modernos, cujas vantagens não possuímos, com os defeitos bárbaros do
antigo regime, dos quais nos podemos jactar à saciedade, de tal modo que a Alemanha, se não por bom senso, pelo menos por
falta de senso, tem que participar cada vez mais daquelas formações estatais que ficam para além de seu status quo. /.../ Assim
como no panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações, no sacro império romano germânico se reúnem os pecados
de todas as formas de estado”[6] . E logo no prefácio à primeira edição de O Capital, que temos, cerca de um quarto de século
depois, se não a plena confirmação das mesmas determinações? “É muito pior que a da Inglaterra a situação nos lugares da
Alemanha onde se implantou a produção capitalista, por exemplo, nas fábricas propriamente ditas, e isto por faltar o
contrapeso das leis fabris. Nos demais setores, a Alemanha, como o resto da parte ocidental do continente europeu, é
atormentada não apenas pelo desenvolvimento da produção capitalista, mas também pela carência desse desenvolvimento.
Além dos males modernos, oprime a nós alemães uma série de males herdados, originários de modos de produção arcaicos,
caducos, com seu séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do tempo. Somos atormentados pelos vivos e,
também, pelos mortos. Le mort saisit le vif.”[7] Trata-se, enfim, da “miséria alemã”, que Lukács, numa de suas muitas
retomadas da questão, menciona do seguinte modo: “Engels comparou uma vez a evolução francesa e a alemã desde os
princípios da liquidação do feudalismo até a constituição da unidade nacional da democracia burguesa. E chega à conclusão de
que em cada época e para cada problema histórico os franceses encontraram uma solução progressista e os alemães uma
solução reacionária”[8] . E outras coisas mais diz Engels relativas ao caso, por exemplo, em As Guerras Camponesas na
Alemanha, das quais vale a pena mencionar especialmente uma, pelo seu caráter de síntese: “A burguesia alemã tem a infeli-
cidade - o que está bem de acordo com o procedimento favorito dos alemães - de chegar sempre tarde demais. Sua
prosperidade coincide com um período em que a burguesia dos outros países da Europa Ocidental está politicamente em
declínio”[9] . É sempre, portanto, o caráter retardatário e conciliador do processo alemão que é ressaltado. Vale neste sentido
aduzir mais um colorido fragmento de Engels: “o estranho destino da Prússia quis que ela atingisse, em fins deste século XIX,
sob a forma agradável do bonapartismo, sua revolução burguesa, começada em 1808-1813 e que deu outro passo adiante em
1848. E se tudo for bem, se o mundo permanecer sereno e tranqüilo, quando todos nós já formos muito velhos, poderemos
talvez ver, em 1900, o governo da Prússia suprimir todas as instituições feudais e a própria Prússia atingir enfim o ponto em
que se encontrava a França em 1792”. E, logo a seguir, abandonando a ironia, detalha o “convênio tácito que se encontra à
base de todos os debates do Reichstag, e da Dieta prussiana: de um lado o governo, a passos de tartaruga, reforma as leis no
sentido do interesse burguês; afasta os obstáculos ao desenvolvimento industrial, criados pelo feudalismo e o particularismo
dos pequenos estados; estabelece a unidade da moeda, dos pesos e medidas; introduz a liberdade profissional e de circulação,
pondo à completa e ilimitada disposição do capital a mão-de-obra da Alemanha; favorece o comércio e a especulação; por
outro lado a burguesia abandona ao governo todo o poder político efetivo; vota os impostos e os empréstimos; cede-lhe
soldados e ajuda-o a dar às novas reformas tal aparência legal que o velho poder policial mantém toda sua força ante os
indivíduos recalcitrantes; a burguesia compra sua emancipação social gradual ao preço de uma renúncia imediata de seu
próprio poder político. Mas - prossegue Engels - por mais lamentáveis que sejam as manifestações da nossa burguesia no
domínio político, é inegável que sob a relação industrial e comercial nada mais faz senão cumprir com seu dever. /.../ O que
se produziu nesse sentido depois de 1869, na região industrial renano-westfaliana, é verdadeiramente inédito para a Alemanha e faz
lembrar o surto dos distritos fabris ingleses ao começo do século. O mesmo acontece no Saxe e na Alta Silésia, em Berlim e Hanôver e
nas cidades marítimas. Afinal temos um comércio mundial, uma indústria verdadeiramente grande, uma burguesia
verdadeiramente moderna” (os grifos são nossos)[10] . Evidentemente que com um retardo de aproximadamente um século
com relação aos casos clássicos, e sob condições político-sociais totalmente diversas: “A supressão do feudalismo, se queremos
ser positivos, significa a instauração do regime burguês. À medida que caem os privilégios aristocráticos, a legislação se torna
burguesa. E aqui nos encontramos no próprio âmago das relações da burguesia com o governo. Vemos que o governo foi cons-
trangido a introduzir essas reformas lentas e medíocres. Mas, à burguesia ele apresentou cada uma dessas pequenas concessões
como um sacrifício feito aos burgueses, como uma concessão arrancada à coroa, e a muito custo, concessão em troca da qual
os burgueses deviam, por sua vez, ceder um pouco ao governo”[11] . Em poucas e precisas palavras de Lukács: “A natureza
real da Alemanha é a do compromisso surgido com a forma bismarkiana do estado alemão graças à necessidade do
desenvolvimento econômico”[12] .
Mencionemos ainda, nesta rápida pincelada da questão, através de textos clássicos, que Lenin, ao tratar do problema
da transformação da propriedade agrária, no processo de transição do feudalismo russo para o capitalismo, aponta duas
formas possíveis para este desenvolvimento: “Os restos do feudalismo podem desaparecer tanto mediante a transformação
das terras dos latifundiários, como mediante a destruição dos latifúndios, dos grandes proprietários, quer dizer, por meio da
reforma e por meio da revolução. O desenvolvimento burguês pode verificar-se tendo à frente as grandes fazendas
latifundiárias, que paulatinamente se tornam cada vez mais burguesas, que paulatinamente substituem os métodos feudais de
exploração por métodos burgueses, e pode verificar-se também tendo à frente as pequenas fazendas camponesas, que por via
revolucionária extirpam do organismo social a ‘excrescência’ dos latifúndios feudais e se desenvolvem depois livremente pelo
caminho das granjas capitalistas. Estes dois caminhos de desenvolvimento burguês, objetivamente possíveis, nós os
denominaríamos caminho do tipo prussiano e caminho do tipo norte-americano. No primeiro caso, a fazenda feudal do
latifundiário se transforma lentamente em uma fazenda burguesa, junker, condenando os camponeses a decênios inteiros da
mais dolorosa expropriação e do mais doloroso jugo e destacando a uma pequena minoria de Grossbauer (grandes
camponeses). No segundo caso, não existem fazendas de latifundiários ou são expulsas pela revolução, que confisca e
fragmenta as propriedades feudais. Neste caso predomina o camponês, que passa a ser agente exclusivo da agricultura e vai
evoluindo até converter-se no granjeiro capitalista. No primeiro caso, o conteúdo fundamental da evolução é a transformação
do feudalismo em sistema usurário e em exploração capitalista sobre as terras dos latifundiários-feudais-junkers. No segundo
19
caso, o fundo básico é a transformação do camponês patriarcal em granjeiro burguês”[13] . Mais adiante, Lenin explicita
outras conseqüências socio-econômicas de um e de outro caso, evidenciando-se as mesmas características que os textos
anteriores nos revelaram: “A primeira implica a manutenção máxima da sujeição e da servidão (transformada ao modo
burguês), o desenvolvimento menos rápido das forças produtivas e um desenvolvimento retardado do capitalismo; implica calamidades e
sofrimentos, exploração e opressão incomparavelmente maiores das grandes massas de camponeses e, por conseguinte, do
proletariado. A segunda entranha o mais rápido desenvolvimento das forças produtivas e as melhores condições de existência
das massas camponesas (as melhores possíveis sob a produção mercantil)” (o grifo é nosso)[14] .
Sinteticamente, a via prussiana do desenvolvimento capitalista aponta para uma modalidade particular desse processo,
que se põe de forma retardada e retardatária, tendo por eixo a conciliação entre o novo emergente e o modo de existência social
em fase de perecimento. Inexistindo, portanto, a ruptura superadora que de forma difundida abrange, interessa e modifica
todas as demais categorias sociais subalternas. Implica um desenvolvimento mais lento das forças produtivas, expressamente
tolhe e refreia a industrialização, que só paulatinamente vai extraindo do seio da conciliação as condições de sua existência e
progressão. Nesta transformação “pelo alto” o universo político e social contrasta com os casos clássicos, negando-se de igual
modo ao progresso, gestando, assim, formas híbridas de dominação, onde se “reúnem os pecados de todas as formas de
estado”.
Marx, Engels e Lenin tiveram possibilidade de acompanhar, por quase um século, o caso alemão no seu evolver
marcado pelo caminho prussiano. Mas apenas Lukács pôde assistir, já instrumentado na mesma perspectiva conceitual
daqueles, ao inteiro desdobramento do processo alemão já no período das guerras imperialistas. E é inegável que tenha sido o
filósofo húngaro, desde os anos 20, o investigador que mais continuada, profunda e sistematicamente tenha se ocupado, neste
século, da particularidade do caminho prussiano, especialmente de suas determinações no terreno do pensamento e da
literatura. E não é exagero dizer que não poucas de suas brilhantes determinações são produto deste esforço, exercitado por
décadas a partir especialmente das precisas considerações de Marx, às quais Lukács deu desdobramento, e às quais agregou o
produto de suas próprias análises concretas, mantendo, assim, no nível devido o estudo da séria questão da determinação
social do pensamento.
No Brasil, só em anos muito recentes o problema da via prussiana mal que aflorou, e alguns raríssimos pesquisadores
voltaram sua atenção para ela, em busca de referencial para efeito da análise do caso brasileiro. Neste diapasão, Carlos Nelson
Coutinho, assumindo explicitamente a trilha teórico-metodológica lukacsiana, tem-se destacado como pioneiro fértil e bem
sucedido, com especial dedicação no campo da análise literária[15] .
Dizíamos nós, páginas atrás, ao aludir à particularidade da formação do modo de produção capitalista no Brasil, que a
chamávamos - provisoriamente - de via prussiana.
De fato, com isso indicávamos, desde logo, que entendíamos o caso brasileiro, sob certos aspectos importantes,
conceitualmente determinável de forma próxima ou assemelhável àquela pela qual o fora o caso alemão, mas de maneira alguma de
forma idêntica. Outra, aliás, não tem sido, no essencial, a maneira de pensar dos que, como C. N. Coutinho, estão convencidos
da real efetividade de tomar o caminho prussiano como fonte apropriada de sugestões, como referencial exemplar e, mais do que
tudo, como um caminho histórico concreto que produziu certas especificidades que, em contraste, por exemplo, com os casos
francês e norte-americano, muito se aproximam de algumas das que foram geradas no caso brasileiro. Em outros termos, o
caminho prussiano não é tomado como modelo, como contorno formal aplicável a ocorrências empíricas.
É precisamente enquanto modo particular de se constituir e ser capitalismo que o caminho prussiano tem para nós
importância teórica básica. Enquanto tal, aos diversos níveis de concreção em que é apreensível, permite, como qualquer
objeto, destilar certos caracteres mais ou menos gerais que importa considerar para orientar a apreensão do caso brasileiro.
Assim, de início, importa-nos como particular contrastante aos casos clássicos; clássicos, acima de tudo, porque mais
coerentes, mais congruentes ou consentâneos, no plano da sua própria totalidade, enquanto totalidade capitalista, na qual as diversas
partes fundamentais embricam entre si e em relação ao todo de forma mais amplamente orgânica, de maneira que o real se
mostra como racional, na máxima racionalidade historicamente possível. Particular contrastante do qual se avizinha o caso
brasileiro, também diverso dos casos clássicos.
Nessa linha de raciocínio, a conexão que se está indicando situa-se no plano de certas determinações gerais, de
algumas abstrações operadas em relação ao concreto da particularidade do caminho prussiano. Assim, irrecusavelmente, tanto
no Brasil quanto na Alemanha a grande propriedade rural é presença decisiva; de igual modo, o reformismo pelo “alto”
caracterizou os processos de modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma solução conciliadora no plano político
imediato, que exclui as rupturas superadoras, nas quais as classes subordinadas influiriam, fazendo valer seu peso específico, o
que abriria a possibilidade de alterações mais harmônicas entre as distintas partes do social. Também nos dois casos o
desenvolvimento das forças produtivas é mais lento, e a implantação e a progressão da indústria, isto é, do “verdadeiro
capitalismo”, do modo de produção especificamente capitalista, é retardatária, tardia, sofrendo obstaculizações e refreamentos
decorrentes da resistência de forças contrárias e adversas. Em síntese, num e noutro casos, verifica-se, para usar novamente
uma fórmula muito feliz, nesta sumaríssima indicação do problema, que o novo paga alto tributo ao velho.
Todavia, se tais características, abstratamente tomadas, são comuns a ambos os casos, e delas se pode dizer, na linha
da lógica de Marx, que enquanto generalidades são generalidades razoáveis, na medida em que efetivamente sublinham e
precisam traços comuns, há, no entanto, que atentar, prosseguindo na mesma diretriz, que “Esse caráter geral, contudo, ou
este elemento comum, que se destaca através de comparação, é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de determi-
nações diferentes e divergentes”[16] . O que significa, portanto, em termos rápidos, para o caso específico de que tratamos,
que o caminho prussiano, na totalidade concreta do processo real alemão, põe-se de modo distinto daquele em que se põe na
totalidade concreta do processo real brasileiro. O que nos faz lembrar que “se o concreto é tomado como síntese de várias
determinações, esta síntese (Zusammenhang), que sumariza, põe junto, se faz por uma lógica que não se reduz à mera
20
justaposição dos predicados”, e recordar, uma vez mais, que o decisivo não é tanto o que um nome possa designar, “mas como
o objeto nomeado se objetiva, se individualiza, enquanto entidade social”[17] .
De sorte que estamos diante de singularidades distintas acolhíveis, do ponto de vista de certos aspectos abstratamente
tomados, sob um mesmo particular, que antes os separa dos casos clássicos, do que os identifica entre si. Todavia, se isto é pouco,
não é nada desprezível, quando mais não fosse porque obriga a pensar no como se objetivam os predicados de e em cada uma
das singularidades.
Desse modo, se aos dois casos convém o predicado abstrato de que neles a grande propriedade rural é presença
decisiva, somente principiamos verdadeiramente a concreção ao atentar como ela se objetiva em cada uma das entidades sociais,
isto é, no momento em que se determina que, no caso alemão, se está indicando uma grande propriedade rural proveniente da
característica propriedade feudal posta no quadro europeu, enquanto no Brasil se aponta para um latifúndio procedente de
outra gênese histórica, posto, desde suas formas originárias, no universo da economia mercantil pela empresa colonial.
Do mesmo modo quanto à expansão das forças produtivas. Em ambos os casos o desenvolvimento é lento e
retardatário em relação aos casos clássicos. Mas enquanto a industrialização alemã é das últimas décadas do século XIX, e atinge,
no processo, a partir de certo momento, grande velocidade e expressão, a ponto de a Alemanha alcançar a configuração impe-
rialista, no Brasil a industrialização principia a se realizar efetivamente muito mais tarde, já num momento avançado da época
das guerras imperialistas, e sem nunca, com isto, romper sua condição de país subordinado aos pólos hegemônicos da
economia internacional. De sorte que o “verdadeiro capitalismo” alemão é tardio, enquanto o brasileiro é híper-tardio.
A exemplificação da diferenciação poderia prosseguir, contudo é, aqui, desnecessária. Fácil é a percepção das
distinções, nas expressões concretas que assumem em cada caso, cada uma das características abstratas que arrolamos como
comuns aos dois. Observação que nos conduz, portanto, à constatação não mais apenas de uma única forma particular de
constituição não-clássica do capitalismo, mas a mais de uma. No caso concreto, cremos que se está perfeitamente autorizado a
identificar duas, de tal sorte que temos, acolhíveis sob o universal das formas não-clássicas de constituição do capitalismo, a forma
particular do caminho prussiano, e um outro particular, próprio aos países ou pelo menos a alguns países (questão a ser
concretamente verificada) de extração colonial. De maneira que ficam distinguidos, neste universal das formas não-clássicas, das
formas que, no seu caminho lento e irregular para o progresso social, pagam alto tributo ao atraso, dois particulares que,
conciliando ambos com o historicamente velho, conciliam, no entanto, com um velho que não é nem se põe como o mesmo.
Conclusivamente: de um lado, pois, firmemente estabelecido, temos o caminho prussiano; a seu lado, sem que
confiramos demasiada importância aos nomes, fique, sem pretensões, a sugestão designativa de via ou caminho colonial.
Expressão conveniente que tem, nos parece, a propriedade de combinar a dimensão histórico-genética com a legalidade dialé-
tica[18] .
Dissemos, páginas atrás, ao início deste segmento, que as formas particulares de constituição do modo de produção
capitalista interessavam-nos, na esfera deste estudo, especialmente pelas questões do fascismo e do integralismo. De fato, pois
a Alemanha (e não só ela), enquanto resultante do caminho prussiano, e o Brasil, enquanto produto também do “caminho
prussiano” (com aspas) ou, se nos for permitido, da via colonial, é que vivem as décadas dramáticas das guerras imperialistas,
época do surgimento e vigência tanto do fascismo como do integralismo.

Toda reflexão, aqui, precisamente porque o problema é devidamente considerar as formas particulares de objetivação do
capitalismo, tem necessariamente que levar em decisiva linha de conta que “o capital industrial é a forma fundamental do
regime capitalista, sob a qual este impera sobre a sociedade burguesa”[19] . Isto é, entender que os caminhos particulares são
caminhos diversos para o “verdadeiro capitalismo”, e que este é posto pela forma do capital industrial. “Consideradas em
função dela, todas as demais formas aparecem como formas simplesmente derivadas ou secundárias - formas derivadas, como
a do capital usurário, e ademais secundárias, posto que correspondem a um capital invertido em uma função específica que cai
dentro de seu processo de circulação -; por isso, à medida que vai evoluindo, o capital industrial tem de principiar por impor-
se àquelas duas formas (comercial e usurária) e convertê-las em formas derivadas, submetidas a ele. O capital industrial se
encontra com estas outras formas tradicionais no momento em que nasce e se instaura; são condições prévias a ele, não
condições que ele mesmo implante como formas de seu próprio processo de vida. /.../ Quando a produção capitalista se
desenvolve plenamente e passa a ser o regime fundamental de produção, o capital usurário se submete ao capital industrial e o
capital comercial se converte em uma modalidade deste, em uma forma derivada do processo de circulação. Para tanto, ambos
têm de se render e sujeitar previamente ao capital industrial.”[20] Razão pela qual Marx, na Crítica do Programa de Gotha,
lembrando o Manifesto de 48, afirma: “A burguesia é considerada aqui como uma classe revolucionária - enquanto agente da
grande indústria - em relação aos feudais e às classes médias decididos a manter todas as suas posições sociais, que são
produtos de modos de produção caducos”[21] . Também não é por outro motivo que H. Lefebvre assegura que “A
Industrialização caracteriza a sociedade moderna”. Ainda mais: “sem possibilidade de contestação, o processo de
industrialização é, há um século e meio, o motor das transformações na sociedade”. Conseqüentemente temos nada mais nada
menos de que “A industrialização fornece o ponto de partida da reflexão sobre nossa época”[22] .
Ora, como vimos, as formas particulares não-clássicas de objetivação do capitalismo revelam-se, em ponto essencial,
precisamente em relação ao processo de industrialização. De maneira que, em suma, e de resto para efeito dos nossos
propósitos analíticos, há que atentar para o modo pelo qual se pôs a industrialização nos casos que nos tangem de imediato.
Façamo-lo, então; contudo de maneira muito sumária, pois outro não poderia ser o tratamento, aqui, neste nosso
anexo esquemático de uma questão tão complexa.
Basta certa indicação de P. Singer, muito feliz em sua expressão sintética, para demarcar suficientemente o quadro de
industrialização retardatária que desejamos fortemente acentuar; para tanto, simplesmente transcrevemos, chamando especial
21
atenção para as épocas assinaladas: “entre 1868 e 1870, dá-se a unificação da Itália e da Alemanha, o que cria condições
propícias à rápida industrialização destes países; em 1867 se dá a Revolução Meiji, que tem as mesmas conseqüências para o
Japão”[23] . Considerando que são precisamente as últimas décadas do século XIX que marcam a arrancada imperialista, e que
a Revolução Industrial na Inglaterra é do último quartel do século XVIII, está bem grifado o capitalismo tardio de tais países.
De fato, “Em 1860, a Alemanha era um país ainda pouco desenvolvido industrialmente, e de ampla base agrária. Em
1868 a metade de sua população continuava sendo agrícola e só uma terça parte dela tinha ocupação artesanal ou industrial. A
produção agrícola representava 60% da produção de mercadorias e os artesãos trabalhavam para o mercado local, fornecendo
a maior parte da produção não agrícola (suas vendas ascendiam a 82% da cifra das vendas realizadas sobre produtos acabados
ou semi-acabados). A dispersão territorial da produção industrial /.../ continuava subsistindo, e tão-somente algumas regiões
(Saxônia e a província renana) tinham um caráter nitidamente industrial. Em 1860 ainda existia o sistema corporativo em
algumas regiões, e na indústria predominava a manufatura sobre a fábrica que dispusesse de um motor. A maior parte das
fábricas empregavam de 30 a 100 operários, em face dos 100 a 500 empregados na Grã-Bretanha da mesma época. /.../ Em
1860, a Alemanha, do ponto de vista do valor de sua produção industrial, ocupava o quarto lugar mundial, depois da Grã-
Bretanha, França e Estados Unidos”[24] . E é desta situação de atraso que arranca o momento histórico subseqüente,
caracterizado por forte expansão industrial e monopolização econômica, tendo por condicionante a sua tardia unificação
nacional, que se dá com a criação do Império alemão imediatamente depois da guerra de 1870: “De 1860 a 1913 a expansão da
indústria alemã aparece notavelmente; enquanto que de 1800 a 1860 o índice /.../ da produção industrial - incluindo o
artesanato - praticamente quintuplicou /.../, de 1860 a 1913 ela mais do que setuplicou. O valor da produção industrial (sem
incluir o artesanato) passou de, aproximadamente, quatro milhões de marcos em 1860 a quarenta milhões em 1913. Por isso,
nesta data, a Alemanha ocupou o segundo lugar mundial entre os países industrializados, atrás dos Estados Unidos, enquanto
que a Grã-Bretanha passava para o terceiro lugar e a França (desde 1880) ao quarto. A progressão industrial da Alemanha,
favorecida pela anexação das regiões ricas em jazidas de minério de ferro da Lorena, foi, principalmente, apreciável no que
concerne à produção siderúrgica, cujo índice passou de 4 a 100 entre 1860 e 1913, enquanto que a indústria da hulha viu
aumentar seu índice de 12 a 100 e a indústria têxtil de 16 a 100. Enquanto o índice geral da produção industrial havia se
multiplicado por sete, o da Grã-Bretanha se multiplicou por menos de três e o da França por quatro; unicamente os Estados
Unidos experimentaram uma progressão mais rápida - o coeficiente foi de doze - a ponto da produção industrial alemã, que
representava 90% da americana em 1860, somente representava em vésperas da Primeira Guerra Mundial 40% da produção
americana. Esta expansão industrial se viu acompanhada de uma rápida concentração econômica: a produção industrial
cresceu três vezes mais rapidamente que o número de empresas. /.../ No campo do comércio mundial, a Alemanha luta cada
vez mais vitoriosamente contra a competição britânica; de 1880 a 1913 as exportações inglesas de bens de consumo se multi-
plicam por 2,9, enquanto as exportações alemãs por 6; para as exportações de bens de produção, os coeficientes são, respecti-
vamente, de 3 e de 21. /.../ Em resumo, em 1913 a economia alemã, na seqüência de um período de rápido crescimento,
encontrava-se, do ponto de vista industrial, em segundo lugar das grandes potências e, do ponto de vista das exportações de
capital, em terceiro lugar”[25] .
Em proporções distintas, mesmo porque o caso alemão é, em todos os níveis e planos, a singularidade polar,
“clássica”, da particularidade a que estamos remetendo, o caso italiano também é revelador, conquanto seja tomado nas suas
efetivas dimensões; delas Lukács assinalou, já falando de sua resultante fascista: “Temos também, é certo, o caso Mussolini,
com suas fontes filosóficas tomadas de James, Pareto, Sorel e Bergson; porém, nem sequer neste caso descobrimos uma
repercussão internacional tão extensa nem tão profunda como a que corresponde ao período de preparação da Alemanha
fascista, e mais ainda ao período de Hitler”; e ainda numa reafirmação do mesmo tipo, fala do fascismo italiano como “de um
fascismo, certamente, que, apesar de seus horrores, não chegou a alcançar nunca a significação universal daquela calamidade
que o hitlerismo foi para o mundo inteiro”[26] .
De qualquer modo, e ressalvadas todas as diferenças - particularmente a da “desigualdade fundamental entre o
desenvolvimento industrial e a lentidão do estabelecimento do capitalismo nos campos. Desigualdade presente também na
Alemanha, porém que na Itália revestiu o caráter de um verdadeiro fosso, concretado ademais no problema de Mezzogiorno”[27] -
“Na Itália, o processo de industrialização foi particularmente tardio, não se iniciando de maneira decisiva até as proximidades
de 1880. O feudalismo assinalado pelo predomínio do setor agrícola deu provas, no contexto da dispersão territorial e política
da Itália perpetuada pelas ocupações estrangeiras sucessivas, de uma persistência notável. Contudo, em vésperas da Primeira
Guerra Mundial, a Itália havia entrado já no estágio imperialista, se bem que de maneira muito particular”[28] .
Com distinções e diferenças que nem de leve ousamos tocar, registre-se também que “O capitalismo japonês não
começou a se emancipar até que a Primeira Guerra Mundial acelerou o ritmo do desenvolvimento industrial. Entre 1913 e
1920, a produção de aço acabado saltou de 255 a 533 milhares de toneladas. A capacidade de energia elétrica também
aumentou em mais do dobro durante o mesmo período, passando de 504 a 1.214 milhares de quilowatts. Mesmo depois deste
auge, no entanto, a indústria capitalista japonesa não avançou até o ponto alcançado na Alemanha, Inglaterra ou Estados
Unidos”[29] . De qualquer forma, porém, “À medida que a indústria foi se desenvolvendo, dotou o Japão dos meios para uma
política exterior ativa, e as conseqüências de tal combinação se fizeram mais visíveis e perigosas. /.../ Não foi o espírito
guerreiro enquanto tal que impulsionou o Japão durante o século XX pela senda das conquistas exteriores e a repressão
interior. /.../ Repressão dentro do país e agressão contra países estrangeiros foram, pois, em termos muito gerais, os máximos
efeitos do desmoronamento do sistema agrário e o desenvolvimento da indústria”[30] .
Seja como for, nos três casos estamos diante de objetivações capitalistas tardias - e que não são acompanhadas pelo
progresso social que marca os casos clássicos, mas que atingem o estágio imperialista no alvorecer do século XX ou muito
pouco depois.
22
Assim, se “As forças revolucionárias da sociedade japonesa não eram o bastante poderosas para remover por si sós os
obstáculos à modernização”, mas “podiam proporcionar e proporcionaram uma base limitada de apoio para medidas
modernizadoras quando os governantes resolveram tomá-las a fim de assegurar seu próprio poder, criando um Estado forte”,
e a “era Meiji (l868-1912) se caracterizou pela associação de elementos feudais e capitalistas na empresa de criar um poderoso
estado moderno”[31] ; e se o estado prussiano marca o quadro alemão, o que demarca o perfil italiano é a “Revolução
conservadora segundo uns, revolução de uma burguesia ‘que não soube, nem quis completar sua vitória’, segundo Engels,
revolução passiva, segundo Gramsci. Revolução passiva, cuja própria denominação indica o parentesco com a revolução pelo alto
de Bismarck - parentesco assinalado por Gramsci - /.../”[32] .
E é assim que elas comparecem e se põem, em suas debilidades, como elos da cadeia imperialista. Elos débeis, e de debilidades
distintas em grau e natureza, mas elos da cadeia imperialista. Ou, no dizer de Poulantzas: “Vejamos, agora, o caso italiano, que é
bastante distinto do caso alemão. Todavia, pode-se descobrir uma similitude característica se se tem em conta - e somente
assim - o lugar da Itália na cadeia imperialista. A similitude reside precisamente na debilidade do elo italiano na cadeia. Esta
debilidade não se deve às mesmas razões que a do elo alemão: ainda que apareçam semelhanças relativas em caracteres
‘isolados’ de ambos os casos, estes caracteres não podem, enquanto tais, fundamentar o parentesco das duas formações. São
seus efeitos, distribuidores de lugares na cadeia, que assumem importância. Dito de outro modo, é a cadeia imperialista ela
própria que determina a homologia dos efeitos - fragilidade dos elos - devidos em cada caso a razões diferentes”[33] .
De maneira que há de atentar que, se a Alemanha, por volta do princípio do século, na seqüência de uma rápida
expansão, se encontrava num ponto elevado da acumulação capitalista, “No entanto, esta evolução não carecia de pontos
débeis: 1°) Do ponto de vista das matérias-primas, as bases da indústria alemã eram insuficientes. Em 1913 só dispunha de
quantidades suficientes de carvão, zinco e potássio; carecia de petróleo, cobre, estanho, níquel, enxofre etc.; inclusive era
deficitária em mineral de ferro. 2°) Do ponto de vista dos mercados, subseqüente ao período de expansão, a Alemanha, que
dispunha de um aparato de produção capaz de trabalhar a fundo para o mercado mundial, chocava-se frente às posições
adquiridas pelas outras grandes potências; este era o pesado tributo de sua industrialização tardia, conseqüência esta, por sua
vez, dos obstáculos com que se deparou a constituição de sua unidade econômica e de sua unidade nacional. Com efeito, em
1876, enquanto que a França e a Inglaterra já gozavam de suas imensas possessões, o campo colonial alemão era quase
inexistente, e a extensão que seguidamente alcançou no transcurso dos anos seguintes não teve nenhuma importância para o
desenvolvimento econômico da Alemanha, nem como fonte de matéria-prima, nem como saída para suas mercadorias.
Enquanto que em 1913 a Inglaterra dirigia 40% de suas exportações para suas possessões, a Alemanha só encaminhava a suas
colônias mais evoluídas menos de 0,5% das suas, isto é, menos de 50 milhões de marcos. De outra parte, enquanto nos
mercados restantes a Alemanha ocupava um lugar honroso junto da Grã-Bretanha, via-se eliminada das possessões britânicas,
onde suas exportações se elevavam a 410 milhões de marcos, frente aos 4.800 milhões das exportações inglesas. O problema
das saídas se colocava, pois, em termos agudos para a economia alemã, tanto do ponto de vista da exportação de mercadorias
como do ponto de vista das exportações de capitais; as colônias alemães não haviam podido absorver mais que 1,5% dos
capitais alemães exportados. A necessidade em que se encontrava a Alemanha até 1913 de garantir o controle de um
determinado número de mercados para seus produtos - com o risco, em caso contrário, de ver estalar as contradições entre o
desenvolvimento de suas forças produtivas e as possibilidades de dar-lhes uma saída - constitui, sem discussão possível, uma
das fontes do primeiro conflito mundial”[34] .
Adite-se, complementarmente, atentando exclusivamente para a linha básica da asserção, que “Também no plano da
política exterior o jovem Reich se considerava uma ‘nação tardia’. Conservadores e liberais coincidiam na convicção de que a
Alemanha devia neutralizar o mais rapidamente possível a vantagem das grandes potências. Ambos consideravam uma
reivindicação natural conseguir a hegemonia na Europa central e participar na distribuição e penetração colonial e político-
econômica do mundo. /.../ Hitler recebeu esta herança depois que a República de Weimar não pôde resistir ao confronto com
um revisionismo radical que, no final de contas, queria anular os resultados da guerra. Hitler tentou solucionar violentamente
esta problemática dando um forte giro do expansionismo político-colonial ao continental imperialismo”[35] .
Desnecessário parece-nos, aqui, prosseguir acentuando tais pontos com novos exemplos de outros casos. Para efeito
de nossas necessidades, a linha interpretativa, cremos está indicada.
O eixo fundamental sobre o qual se põem os elementos essenciais da questão, tomando o caso alemão como exemplo
especial, é, pois, que: “Na seqüência do estabelecimento reacionário da unidade alemã, esse atraso se apresentou
ideologicamente sublimado e estilizado, como se precisamente aquela Alemanha estivesse chamada a superar as contradições
da democracia moderna em uma ‘unidade superior’. Não é casual que o antidemocratismo se tenha constituído pela primeira
vez como concepção de mundo naquela Alemanha atrasada, nem que no período imperialista a Alemanha tenha ocupado o
primeiro lugar na função de produzir ideologias reacionárias. Porém o decisivo é que logo a grande velocidade de
desenvolvimento do capitalismo tardio na Alemanha fez do Reich um estado imperialista de primeira ordem. Um estado impe-
rialista, contudo, cujas possessões coloniais e cujas esferas de interesses mostravam-se desproporcionadamente pequenas,
comparadas com sua força e com as pretensões de seu capitalismo. Este é o fundamento último de que a Alemanha tenha
tentado por duas vezes forçar uma nova divisão do mundo mediante guerras totais”[36] .
A deficiência mais freqüente que se verifica, nos tratamentos analíticos que geralmente têm sido dispensados ao
problema do fascismo, é precisamente o descaso comprometedor com as formas particulares de objetivação do capitalismo.
Conseqüentemente, a concreção particular é desprezada, tomando lugar a universalização abstrata, que propende a crescer,
sempre ideologicamente.
De nossa parte, no que ficou para trás, procuramos configurar, num volteio mais ou menos longo, ainda que
esquemático, o contorno precisamente de um processo particular. E é ele exatamente que nos permite compreender o
23
fascismo enquanto totalidade. Não apenas, portanto, no raquitismo de uma abstração politológica, ou numa também abstrata lei
geral economicista.
Neste diapasão, é realmente verdadeira a conexão orgânica entre grande indústria, capital financeiro e fascismo. Mas
não é verdadeira em geral, mas na particularidade do capitalismo tardio, quando casos, que assim se objetivaram, emergem, na fase
imperialista, na condição de elos débeis da cadeia imperialista.
Ou, nos termos de H. Lefebvre, que, por distinta preocupação e outro roteiro, aponta para a mesma direção, além de
desmistificar, de passagem, a fetichização da determinante nacionalista: “Uma assombrosa mistura de nacionalismo e de
democracia caracteriza a práxis e a vida francesa durante o período que consideramos. Ademais, não é evidentemente por azar
que o fascismo não pôde triunfar sobre a democracia nas nações economicamente asseguradas, quer dizer, imperialistas e
colonialistas com êxito: França, Inglaterra. O fascismo era nacionalista, e o nacionalismo ia ao fascismo contra a democracia.
Porém, a democracia (burguesa) e a nação (burguesa) proporcionavam meios políticos e ideológicos melhores que o fascismo
para a dominação colonial. O fascismo provia meios, a rigor, para a conquista de um Império colonial de um mundo já
ocupado. É assim que o fetichismo da nação, tão poderoso na França, não pôde desembocar em um fascismo”[37] .
Tudo considerado, compreendemos, então, o real significado da afirmação lukacsiana de que “Uma conseqüência da
desigualdade do desenvolvimento é que a humanização cada vez maior da vida produz, do outro lado, formas cada vez mais
desenvolvidas de desumanidade. Nunca pude admitir que o horror gerado, por exemplo, pelo fascismo tenha sido apenas uma
espécie de recaída na Idade da Pedra ou qualquer coisa do gênero. O fascismo é a atrocidade, a desumanidade, de uma forma de
capitalismo altamente desenvolvido. Um fenômeno humano como Eichmann nunca existiu no tempo dos canibais, no qual,
acredito, não teria podido surgir um homem em condições de fazer do aniquilamento em massa dos homens uma operação
tranqüilamente burocrática. Trata-se de um produto da época imperialista, como nunca existiu antes; nem mesmo a Inquisição
produziu figuras semelhantes: somente fanáticos e políticos” (os grifos são nossos)[38] . Dito de outro modo, estamos diante
do “encaminhamento das sobrevivências da ‘miséria alemã’ na direção de um imperialismo especialmente reacionário”[39] ,
isto porque “Ao converter-se a Alemanha em uma grande potência capitalista, a divisão colonial do mundo chegava já ao seu
fim, o que fazia que a Alemanha imperialista, se queria chegar a adquirir um império colonial afinado com seu poderio
econômico, só pudesse fazê-lo por meio da agressão, arrebatando a outros suas colônias. Isto fez nascer na Alemanha um
imperialismo especialmente ‘voraz’, agressivo, ávido de botim, que pressionava de um modo veemente e implacável na direção
de uma nova divisão das colônias e das esferas de influência”[40] .
De modo que, em síntese, a ideologia fascista se põe e mostra como uma ideologia de mobilização nacional para a
guerra imperialista, na particularidade, nunca é demais repetir, do capitalismo tardio, quando emerge como elo débil da cadeia
imperialista.
Assim, estritamente determinado pela análise concreta, escapa tanto das singularizações empiristas, como das
universalizações vazias. Recuperando o conceito de fascismo a universalidade que lhe é possível, isto é, a generalidade própria a
um particular, pois, determinado como foi, abrange todos os casos de objetivação tardia do capitalismo que tenham emergido, de fato,
como elos débeis da cadeia imperialista e nos quais o fascismo tenha se manifestado. Isto é, desde a polaridade alemã, passando
pelo abrandado caso italiano, até, digamos, assim, numa conjectura legítima, os casos ainda mais débeis, ao limite dos quais
possam se encontrar aqueles tão extraordinariamente fracos a ponto de o fascismo neles não ter sequer alçado à hegemonia,
sem contudo, por isto, ter deixado de ser fascista, ainda que seus cantos guerreiros não tenham passado de paródias
bufarinhas. Extremo do qual o próprio caso italiano, segundo alguns, e sob certos aspectos, não esteve muito longe. De
qualquer forma não se tratará nunca de um número elevado de casos, como reduzidas numericamente também são obviamente
as vagas na confraria imperialista.
Precisamente esse caráter bélico do fascismo, em conseqüência dinâmico em suas propostas e manifestações, tem sido
um dos aspectos que mais têm desnorteado de modo lamentável certos investigadores, a ponto de chegarem ao extremo de
perpetrar a rombuda diferenciação entre um fascismo revolucionário e um fascismo conservador. Separam, dando nomes errados,
exatamente ao que perfaz a unidade do fascismo real: a substantividade de um movimento de expansão, determinado pelas
necessidades econômicas da acumulação capitalista que atingiu a fase imperialista, e a substantividade de um movimento de
regressão, no que tange ao desenvolvimento da trama das relações sociais, políticas e ideológicas. Para usar uma expressão muito
incompleta, mas até certo ponto feliz pelo seu caráter sintético, ainda que demasiado formal: “o fascismo, no fundo, é uma
combinação de expansão econômica e repressão”[41] .
Já disse Lukács, em alguma parte, que é falso e condenável identificar o novo pelas exterioridades reluzentes. De fato,
isto pode conduzir aos maiores desatinos. Confundir o rebrilhar das baionetas nas guerras imperialistas com a luminosidade
dos partos da história o que será? Mesmo o controvertido W. Reich, apesar de sua leitura naturalizante e psicologizante dos
eventos históricos, soube observar com correção que o nacional-socialismo se revelou “como um nacionalismo imperialista da
grande burguesia, /.../ que prepara a guerra por todos os meios”[42] . A desatenção a este ponto, no mínimo, condena a
análise ao fracasso. De forma que não há qualquer revolucionarismo no fascismo. De igual modo não se trata de uma repressão
qualquer. A regressividade fascista é algo mais determinável: “tem de eliminar da herança burguesa todos os elementos
progressivos”[43] ; e isto também não é um traço universal da resposta burguesa ao mundo, mesmo considerados todos os
passos para trás desde meados do século passado. No fascismo, repressão é concomitantemente violenta agressão imperialista,
em que o terror é a forma “nova”, aprofundada e desenvolvida da repressão intrínseca ao modo de objetivação do capitalismo
pela via prussiana, isto porque, aí, “o progresso social e a evolução nacional não se apóiam e pressionam mutuamente, como na
França, mas se encontram em contraposição”[44] . Mesmo porque, “Já se travam no ocidente as primeiras grandes batalhas de
classe do proletariado ascendente quando em 1848 aparecem pela primeira vez em forma concreta para a Alemanha os
problemas da revolução burguesa. Sem dúvida que, excetuando a Itália, somente na Alemanha se colocam esses problemas (os
24
da entrada tardia no caminho da transformação burguesa da sociedade) de tal modo que a questão central da revolução
burguesa resulta ser a da unidade nacional que ainda tem que ser criada”[45] .

E o caso brasileiro?
Efetivamente, como diz com muito sabor J. H. Rodrigues, “O processo histórico brasileiro é sempre não
contemporâneo”[46] .
Dito no espírito da problemática das formas particulares de objetivação do capitalismo que nos informa, e das quais
estivemos falando há pouco: “No Brasil, bem como na generalidade dos países coloniais ou dependentes, a evolução do
capitalismo não foi antecedida por uma época de ilusões humanistas e de tentativas - mesmo utópicas - de realizar na prática o
‘cidadão’ e a comunidade democrática. Os movimentos neste sentido, ocorridos no século passado e no início deste século,
foram sempre agitações superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular. Aqui, a burguesia se ligou às
antigas classes dominantes, operou no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando as transformações políticas se
tornavam necessárias, elas eram feitas ‘pelo alto’, através de conciliações e concessões mútuas, sem que o povo participasse
das decisões e impusesse organicamente a sua vontade coletiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, ao invés de promover uma
transformação social revolucionária - o que implicaria, pelo menos momentaneamente, a criação de um ‘grande mundo’
democrático - contribuiu, em muitos casos, para acentuar o isolamento e a solidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo
de uma mesquinha vida privada”[47] .
Uma vez que o Brasil, tal como a Itália e a Alemanha[48] , jamais conheceu a revolução democrática burguesa, a
questão é saber em que estágio de desenvolvimento ele se achava, por volta das décadas dos anos 20 e 30, quando aqueles
outros dois países, de constituição capitalista tardia, já se encontravam, na seqüência de uma rápida industrialização, na con-
dição de elos débeis da cadeia imperialista. Indagando de forma sintética: a esse tempo em que ponto estava a objetivação do
“verdadeiro capitalismo” no Brasil?
Já fizemos algumas indicações a respeito, quando tratamos da via prussiana, e buscamos distinguir, com a ajuda desta, o
particular próprio aos casos a que pertence o brasileiro, sugerindo, então, para ele, o designativo de via colonial.
Na Introdução de 1933 a Serafim Ponte Grande, a mordacidade de Oswald de Andrade entreabre para um breve e
incisivo retrato do grau de desenvolvimento da indústria brasileira atingido à época: “O movimento modernista, culminado no
sarampão antropofágico, parecia indicar um fenômeno avançado. São Paulo possuía um poderoso parque industrial. Quem
sabe se a alta do café não ia colocar a literatura nova-rica da semicolônia ao lado dos custosos surrealismos imperialistas? Eis
porém que o parque industrial de São Paulo era um parque de transformação. Com matéria-prima importada. Às vezes
originário do próprio solo nosso. Macunaíma”[49] .
Quem será, nesta rapsódia, “o herói sem nenhum caráter”?
Diante das palavras de Oswald, para acentuar diferenças, e não para desqualificar ou minimizar as dores do penalizado
processo da industrialização brasileira, não resistimos à tentação de dizer que, se a história se repete - uma vez como drama,
outra como comédia -, a industrialização tardia da via prussiana é o drama, enquanto a industrialização hiper-tardia da via
colonial é a penosa comédia.
Sem mais ironias ou cifrados retóricos, diga-se, de uma vez, que por mais distintas que se mostrem as interpretações
sobre pontos inúmeros, por mais diferentes que sejam as bases fundantes de que partam, por mais diversas que sejam as
ilações teóricas e práticas que extraiam, os autores, no entanto, convergem, quando se trata de indicar, no geral, o significado
essencial do processo histórico nacional das primeiras décadas do século; para usar uma indicação de Celso Furtado, dir-se-ia
que no curso desses anos o quadro brasileiro faz transparecer a necessidade de uma alternativa para a ordem agro-
exportadora, que evolve em longo andamento de notórias vicissitudes, conduzida pela extensa crise do café[50] . Em outras
palavras: “Observando nossa evolução desde princípios do século atual, verifica-se que é então que se situa a última
culminância daquele sistema. Saía-se de uma fase de expansão ininterrupta e o futuro ainda parecia brilhante. Entretanto,
verificou-se um estacionamento, e logo em seguida o declínio que depois de 1930 se torna precipitado. Isto evidencia que a
base oferecida pelo nosso antigo sistema, voltado precipuamente para o exterior, se torna progressivamente mais estreita e
incapaz por isso de sustentar a vida do país”[51] . E “Fica evidente, enunciados todos os teoremas, que tanto o auge quanto a
inviabilidade da economia agro-exportadora brasileira típica da República Velha e suas seqüelas que marcaram todo o bloqueio
do avanço do capitalismo no país, não podem ser explicados sem um acurado exame das relações internacionais que a
emolduraram. A intermediação comercial e financeira externa, que tanto se enfatizou /.../, não é um caso nessa trama de
relações: ela é a relação. Seu epicentro é a Inglaterra, na fase típica de exportações de capitais; seu nome é imperialismo”[52] .
É precisamente num panorama dessa ordem que principia a brotar a industrialização brasileira. Abstraindo
secundárias erupções anteriores, é apenas no bojo contraditório do auge e concomitante desequilíbrio do sistema agro-
exportador que a industrialização brasileira, de fato, tem início. E assim mesmo como uma das possibilidades, na diferenciação
de atividades buscada como alternativa em face da crise do café. “E assim, /.../ centralizando-se a economia brasileira na
produção de um pequeno número de gêneros exportáveis, com desprezo de tudo mais, desabrocha em oposição uma
evolução em sentido contrário, para tirar daqueles gêneros a exclusividade de que gozavam. O interessante é que será
justamente em São Paulo, onde aquela restrição de atividades alcançará talvez sua expressão extrema com a monocultura do
café levada ao máximo de exagero, que se encontrarão as primeiras iniciativas no sentido de diversificar a produção. A
administração pública terá aí um papel considerável, criando e multiplicando campos de experimentação, nos quais será
cultivada e selecionada toda sorte de produtos agrícolas, e postos zootécnicos. Tais iniciativas permanecerão longamente sem
grandes resultados; mas terão no futuro efeitos econômicos consideráveis. Mas é sobretudo num outro setor que esta
25
diferenciação de atividades sairá logo de seu estado potencial, assumindo rapidamente importância e determinando
conseqüências de vulto: na indústria manufatureira. E neste caso /.../ o progresso das atividades estará direta e imediatamente
ligado às circunstâncias derivadas do desequilíbrio crônico das finanças externas do país. É, assim, do íntimo das contradições
inerentes ao sistema econômico do país que brotam as forças que com o tempo o vão transformando”[53] .
Para devidamente avaliar a estreiteza e desfavorabilidade das condições sob as quais principia a emergir o “capitalismo
verdadeiro” no Brasil, basta considerar, o que é essencial, que “Concretamente as condições /.../ levam à reiteração da
chamada ‘vocação agrícola’ do país, especializando-o ainda mais na produção de mercadorias de realização externa. O
aprofundamento dessa especialização fez com que o financiamento da realização do valor da economia agro-exportadora
fosse, também, e não por acaso, externo. Este ponto, fundamental para a compreensão do processo, forma uma espécie de
círculo vicioso: a realização do valor da economia agro-exportadora sustentava-se no financiamento externo e este, por sua
vez, exigia a reiteração da forma de produção do valor da economia agro-exportadora. Simultaneamente, o mecanismo de
financiamento externo bloqueava a produção do valor de mercadorias de realização interna. Na exacerbação desse processo, os
requerimentos do financiamento externo acabavam por consumir todo o valor da economia agro-exportadora, com o que
negavam a própria forma de produção; em última análise, o valor gerado pela economia agro-exportadora acabou por
destinar-se substancialmente a pagar os custos da intermediação comercial e financeira externa, operando-se uma redistribuição da
mais-valia entre lucros internos e lucros e juros externos completamente desfavorável aos primeiros; em outros termos, uma parcela
substancial do produto não podia ser reposta senão através dos mesmos mecanismos de financiamento externo”[54] .
Conseqüentemente, “enquanto se inviabilizava em si mesma, a economia agro-exportadora bloqueava o avanço da divisão
social do trabalho no rumo do capitalismo industrial, na medida em que reiterava os mecanismos da intermediação comercial e
financeira externa, que nada tinham que ver com a realização interna do valor da produção de mercadorias dos setores não-
exportadores. O financiamento da acumulação de capital nos setores não-exportadores não passava pela intermediação
comercial e financeira externa típica da economia agro-exportadora, que consumia a maior parte do excedente social
produzido não apenas pelas atividades de exportação, mas pela totalidade do sistema econômico. /.../ Apoiando-se as receitas
federais principalmente nos impostos sobre a importação e secundariamente sobre o consumo, verifica-se que, longe de ter
havido transferência de recursos ou de renda do setor exportador para os demais setores, houve o contrário, o que reafirma o
fato de que a intermediação comercial e financeira externa própria da economia agro-exportadora representou uma restrição
ao avanço da divisão social interna do trabalho ao próprio tempo em que se negava”[55] .
É, pois, sob tais circunstâncias, profundamente retardadoras e retardatárias, configurantes do capitalismo híper-tardio
brasileiro, que se põe a industrialização, à época que nos ocupa, de tal forma que “A Revolução de 1930 marca o fim de um
ciclo e o início de outro na economia brasileira: o fim da hegemonia agrário-exportadora e o início da predominância da
estrutura produtiva de base urbano-industrial. Ainda que essa predominância não se concretize em termos da participação
industrial na renda interna senão em 1956, quando pela primeira vez a renda do setor industrial superará a da agricultura”[56] .
É o que fundamentalmente nos competia estabelecer, no âmbito das necessidades do nosso trabalho: a presença
concreta, sim, porém incipiente e ultra-retardatária dos primeiros momentos significativos da objetivação do “verdadeiro
capitalismo” no Brasil, exatamente nos anos em que o ideário pliniano foi elaborado. Anos que para os países que efetiva-
mente conheceram o fascismo são, já de algum tempo, de plena atividade imperialista, e até mesmo uma guerra dessa natureza
já se conta em sua história. Tal a disparidade do estágio de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, em face daqueles países,
que quaisquer igualizações ou identificações, além de impossíveis, são verdadeiramente uma brutalidade teórica. Tamanhas as
diferenças de grau e de forma de objetivação do capitalismo que, parodiando Engels quando compara a Alemanha à França,
em plena vigência da via prussiana, diríamos que, mesmo se tudo corresse bem para o Brasil, e a estabilidade dominasse o
panorama universal, ainda assim, quando todos já estivéssemos bem velhos, lá por volta do ano 2000, o Brasil ainda não teria
atingido o estágio da Alemanha em 1913, na qualidade desta de emergente elo débil da cadeia imperialista. A absurdidade de
equiparar politologicamente, de algum modo e até mesmo com algumas cautelas, o Brasil, a Alemanha e a Itália das primeiras
décadas do século salta à vista quando se considera que, em última análise, o que se está equiparando são elos débeis da cadeia
imperialista, portanto fenômenos do capitalismo altamente avançado, entidades da fase superior do capitalismo, com uma
formação que integra precisamente as áreas da disputa imperialista, faz parte justamente do território colonial que os elos débeis
forçam por ver redistribuído. E que, no caso brasileiro, mal principia a objetivar os débeis passos iniciais do estrito modo de
produção capitalista. E o atraso de tal objetivação, se no caso alemão, e também no italiano, se marca não só em comparação
com os casos clássicos, mas também pelo fato de a industrialização destes países ter principiado posteriormente às primeiras lutas
do proletariado, no caso brasileiro se grifa obviamente em relação aos casos clássicos, também em relação às objetivações do
capitalismo tardio, e ainda pela consideração de que a crítica teórica e prática do proletariado, quando o Brasil inicia sua
caminhada estritamente capitalista, já está inclusive consubstanciada pela detenção do poder em um dado país.
Ademais, quando dizemos primeiros passos não estamos afirmando que antes deles nada houvera[57] . Ocorre que a
partir do período em causa é que se verifica o movimento industrializador que não mais será interrompido, como surtos e
iniciativas anteriores o foram nessa história de vários começos (o que é mais um traço da via colonial) que é a história do processo
de industrialização do país, e que o livro de Nícia Vilela Luz, sob muitos aspectos, preciosamente traz à claridade[58] . São,
portanto, os primeiros passos do processo que concretamente objetivou a indústria no Brasil. E, enquanto tais, põem
materialmente um quadro de “capitalismo verdadeiro” nascente, na marca, obviamente, do que estamos chamando de
capitalismo híper-tardio.
É, pois, na particularidade de uma formação imperialisticamente subsumida, e que principia hiper-tardiamente a
consecução da forma industrial de produção, que aparece e se põe a proposta ruralista do integralismo pliniano. É
precisamente, portanto, uma erupção ideológica diretamente atada ao processo que faz transitar o país da economia agro-
exportadora para a forma urbano-industrial.
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Há que notar, com a devida ênfase, que a proposta, de retorno à terra, de Salgado não é uma reflexão a partir da
perspectiva agro-exportadora, já em fase, digamos, remetendo mais uma vez a Francisco de Oliveira, autofágica, que se nega e
bloqueia a indústria. A reação ruralista pliniana, em face do incipiente “verdadeiro capitalismo” brasileiro, não tem a ótica
daquela, não possuindo, decorrentemente, suas possíveis pretensões restauradoras. A antimodernização pliniana é mais
extremada, manifestando-se, na crítica romântica ao capitalismo, e na reação diante do que toma como a derrocada mundial deste
(o primeiro conflito mundial, as crises de superprodução e desemprego, a instauração do estado soviético), como um salto para
trás em busca de formas pré-capitalistas de entificação social. Donde, numa expressão formal, ao contrário do fascismo que,
no fundo, é uma combinação de expansão econômica com regressão social, política e ideológica, o integralismo pliniano articula visceralmente
duas regressividades: a deste último plano, e a regressividade econômica.
De maneira que, diante do capitalismo internacional em crise, e em face da industrialização brasileira (que se levada
adiante só poderia conduzir à mesma ruína capitalista em que o mundo desenvolvido já se encontra, e cuja última fase é o
comunismo), aproveitando a lição das nações antigas e cansadas, Salgado, na evasão de um mundo desconfortável e inquietante - raiz de seu
utopismo reacionário e do desespero pequeno-burguês - retoma a “vocação agrária” brasileira, agora pelo nível mais baixo dos
pequenos proprietários. Para tanto, impõe-se a frenagem da expansão das forças produtivas. Convicto de que é parcela do
cobiçado botim do imperialismo, e convencido também de que, em face dele, não dispõe, nem mesmo em percentagem
mínima, dos recursos para uma defesa material efetiva, lança à arena de luta o combate espiritual ao imperialismo. O
anticosmopolitismo, o nacionalismo defensivo o expressam perfeitamente: é a dimensão de seu antiimperialismo regressivo.
Conclusivamente, na indefinição aberta pelos eventos de 30, e antes pela autofagia do sistema agro-exportador, na
ambigüidade das possibilidades do real, solicitável e solicitado, à época, em busca de uma direção para o evolver brasileiro,
Salgado oferece a sua diretriz: a regressão, a contenção, no mínimo, do desenvolvimento do “verdadeiro capitalismo”, já que
“Não existem as situações estancadas; todas têm que se desenvolver, para frente ou para trás”[59] . E como a via colonial não
predispõe, como se pode estimar com facilidade, para as batalhas pelo progresso, não é de estranhar que um número tão
significativo de brasileiros, embalados por tantas razões pela “vocação agrária”, tenham acompanhado, pelo menos durante
algum tempo e com reduzida consciência, o chefe integralista. Mesmo porque, por mais estranho que possa parecer, e estas
coisas têm sido, quando o são, com raras exceções, muito precariamente estudadas, há que registrar, em plena segunda década
do século, portanto nas fronteiras do período que nos interessa mais de perto, um forte movimento de franca oposição à
industrialização e à urbanização do país. Recolhamos, simplesmente, as valiosas indicações de N. V. Luz: “Além dessa reação
liberal, que exemplificamos com Murtinho (Joaquim Murtinho, Ministro da Fazenda por todo o quadriênio Campos Sales; foi
o grande divulgador do conceito de indústria artificial pela guerra tenaz que lhe moveu), uma outra corrente de protesto
levantava-se contra o artificialismo do nosso desenvolvimento industrial. Protecionista, ela reclamava, entretanto, preferência
para a produção agrícola, alegando o descuido da República pela terra, pelo campo, cujos habitantes constituíam, entretanto, o
cerne da nacionalidade brasileira. Américo Werneck, um dos mais típicos representantes dessa corrente, revoltava-se contra
esse esquecimento do homem do campo que, a seu ver, era o fator de nossa grandeza e o esteio de nossa soberania. /.../ Ora,
essa população rural estava sendo sacrificada pelo alto custo da nossa produção industrial. E, como Murtinho e outros
adversários das indústrias denominadas artificiais, Werneck atribuía-lhes, em grande parte, a responsabilidade pela carestia da
vida no Brasil. /.../ Esse ruralismo que se evidencia no pensamento de Américo Werneck [Secretário da Agricultura e Obras
Públicas do Estado de Minas, de 1898 a 1901; dedicou-se também às letras] e esse protesto contra a predominância do
elemento urbano na política republicana traduzir-se-ão, na segunda década do século XX, num movimento mais radical de
franca oposição à industrialização e à urbanização do país. A reação ruralista tinha, evidentemente, suas raízes nas tendências
fisiocratas de certa corrente do pensamento econômico brasileiro. A predominância das atividades rurais, no Brasil, não
deixou de favorecer a eclosão de uma mentalidade que encontrava nas doutrinas fisiocratas uma justificativa para urna econo-
mia de base essencialmente agrícola. Não se limitavam, porém, aos princípios econômicos, os ideais desse grupo ruralista.
Transcendendo a ordem econômica, penetravam nos domínios da moral, preconizando uma filosofia antiindustrialista,
antiurbana, ressaltando as vantagens e a superioridade da vida do campo. /.../ Na segunda década do século XX, os excessos
do protecionismo industrial, a elevação cada vez maior do custo de vida que muitos atribuíam à política protecionista, os
primeiros sinais de agitação social, o contraste entre o campo e a cidade, enfim, uma série de circunstâncias decorrentes da
nossa evolução econômica e social levaram certos espíritos a preconizar uma volta ao campo, em nome desse mesmo
nacionalismo que outros invocavam ao pleitear uma política de industrialização. /.../ Alberto Torres, o grande líder do
movimento ruralista que visava à reintegração da nossa civilização em bases mais sadias – as da vida rural que considerava a
expressão máxima da nacionalidade brasileira, /.../ invectivava a ação invasora desse capital (estrangeiro) e a leviana
negligência do governo em facilitá-la”[60] .
Salgado, portanto, não criava no vácuo. Vinha na esteira de uma espessa tradição. Tradição na qual, naturalmente, há
que distinguir diversas perspectivas sociais, e suas diferentes objetivações ideológicas. Mas, inegavelmente, e não há
dificuldade em o compreender, no geral: o ruralismo é, no Brasil, todo um caldo de cultura.
O que para trás ficou estampado leva-nos à constatação de que as contradições vivas, que geram a existência social
brasileira da época de que nos ocupamos, distam ponderavelmente daquelas que fazem o tom da época no plano internacional.
É palpável que, nesta esfera, a contraposição predominante é a configurada entre fascismo e antifascismo. Mas, considerando
que os dinamismos preponderantes dos períodos não condicionam (não o fazendo também nem mesmo a realidade essencial de toda
uma época) “de maneira imediata e total todos os fenômenos e mesmo todos os períodos dessa época”[61] , compreendemos
que o dinamismo preponderante da oposição entre fascismo e antifascismo, que “durante um longo período de
desenvolvimento determinou a estrutura histórica da sociedade humana”[62] , só tenha podido determinar, na particularidade
brasileira, mediado pela via colonial, e na medida das resultantes desta. De tal forma, então, que a realidade mostrou, na sua
condição própria, se comportava ou não, imediatamente, esta ou aquela questão, este ou aquele pensamento; não mimetizou
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ou deixou simplesmente de mimetizar, mas revelou ou não, em razão do grau de desenvolvimento em que se encontrava, e da
forma pela qual aí chegara, se já objetivava ou não, e em que grau e forma, o que era o decisivo imediato para os centros hege-
mônicos internacionais. E tudo isto sem deixar de gerar para si, particularmente, o que era obrigada, só para si, a gerar. E,
nesta produção, as idéias que se puseram não tinham como aparecer como deslocadas de seu espaço devido; com aparências
semelhantes a outras, mais ou menos desenvolvidas, ou melhor conhecidas, podendo, no entanto, ser concretamente outra
coisa, e, enquanto tais, ocupando perfeitamente o lugar que lhes competia. Mesmo porque a questão não é buscar o lugar certo
das idéias, mas a idéia “certa”, própria dos lugares, na medida em que as idéias não são pedras subsumidas à lei da gravidade,
sem que sejam, contudo, passíveis de fuga aos critérios universais do verdadeiro.
Isto posto, e retomados os cernes de que o fascismo é uma ideologia de mobilização nacional para a guerra
imperialista, que se põe nas formações de capitalismo tardio, quando estas emergem na condição de elos débeis da cadeia
imperialista, e o integralismo uma manifestação de regressividade nas formações de capitalismo híper-tardio, uma proposta de
frenagem do desenvolvimento das forças produtivas, com um apelo ruralista, no preciso momento em que estas principiam a
objetivar o “capitalismo verdadeiro”; ou ainda, numa palavra, se o fascismo é um fenômeno de expansão, da fase superior do
capitalismo, e o integralismo se põe como fenômeno do capitalismo imaturo ou nascente, a traduzir uma proposta de regressão,
em país de extração colonial que emerge como formação hiper-tardia do “capitalismo verdadeiro”, o que pode significar a
tendência a estudá-los equiparadamente a partir de certas similitudes pinçadas apenas e exclusivamente na estreita faixa do
estritamente político, senão que toda a ciência politológica de tal análise, tal como toda a sabedoria dos economistas modernos, de que
fala Marx, na Introdução Geral à Crítica da Economia Política, reside no esquecimento das diferenças essenciais. Mesmo porque
“Hegel nunca chamou de dialética a subsunção de uma massa de ‘casos’ a um princípio geral”[63] .
As inelidíveis diferenças essenciais de objetivação do “capitalismo verdadeiro”, nas particularidades indicadas,
mostram-se, então, palpavelmente como concretos geradores de diversas necessidades, incluídas, aí, as necessidades ideológicas. De
tal sorte que o fato ideológico fascista se põe como uma totalidade distinta da totalidade do fato ideológico integralista.
E, na medida em que a consciência do agente não é critério de verdade, pois “não se julga o que um indivíduo é a
partir do julgamento que ele faz de si mesmo”[64] , e tampouco a análise de ideologias “julga das intenções, mas dos fatos, da
expressão objetivada dos pensamentos”[65] , a análise dos textos de Salgado apontava, a cada passo, na oportunidade em que
elas próprias se punham, constituindo o todo e por ele sendo informadas, as especificidades e, portanto, as diferenças e suas
densidades. Assim, pode-se apreender - e a análise comparativa entre os discursos fascista e integralista, que está fora dos
propósitos do presente trabalho, poderá explorar a fundo e sistematicamente, numa aproximação que necessariamente passa
pela análise imanente, nos moldes da realizada para o discurso de Salgado, pelo menos dos discursos fascistas de suas figuras
mais características - objetivações ideológicas marcadamente diversas que vale, aqui, num ou noutro ponto, e à guisa de
conclusão, repetir e acentuar.
Considere-se, então, o ponto nodal: a diversidade entre os fundantes das objetivações ideológicas em causa.
Enquanto, no integralismo, o suposto último é uma concepção espiritualista do universo e do homem, concretada
essencialmente em termos do catolicismo tradicional, no caso “clássico” do fascismo temos uma expressão do darwinismo
social, levado às últimas conseqüências, consubstanciando literalmente o dogma central da teoria da raça. No caso italiano, que
nunca teve a exemplaridade mundial do fascismo alemão, o mito é constituído principalmente em torno da concepção do
império, tendo como canal condutor, no dizer de Lukács, “Sorel, através do qual se converteu em veículo da ideologia fascista
o pragmatismo e a intuição bergsoniana”66[66] . Teríamos o “indiferentismo” bergsoniano transfigurado em Sorel em
“atividade patética” e servindo, no seu “vazio de conteúdo”, como veículo do ecletismo mussoliniano. Recobrindo toda essa
colcha de retalhos, um vago apelo à espiritualidade, de incursões panteístas. Desde os primeiros tempos de agressão ao catoli-
cismo até a época de suas manobras com a Igreja, Mussolini nunca se deu ao trabalho de esclarecer, de fato, de que deus
falava, algumas vezes. Como indaga um pesquisador: “Porém, qual é o Deus de Mussolini? Trata-se de um ser pessoal ou de um
ser impessoal no sentido panteísta? Trata-se de um ser conhecido pelo homem, de sorte que é possível estabelecer relações
entre Deus e o homem, ou Deus é o desconhecido, um nome que o homem dá ao que está situado para além do
conhecido?”67[67] E diga-se também que não escapa ao fascismo italiano, se bem que de forma mais atenuada, a
preocupação racial, nele se dando “a afirmação de um nacionalismo de fundo étnico e racial”[68] . Além do mais, com a
conquista da Abissínia cessaram as vacilações do fascismo italiano: “Enquanto, até agora, o mundo liberal sempre contrapôs
como ‘argumento’, à doutrina racial nacionalista a ‘posição humanitária’ do fascismo italiano em assuntos raciais, esse mesmo
fascismo italiano começa agora, com relação à recém-adquirida África do leste (Abissínia), a empreender uma política racista,
que está em oposição às teorias assimilatórias dos teóricos fascistas, e ainda à idéia do Novo Império Romano, formulado por
ocasião de sua fundação: ‘Sua Idéia (do Império Romano) está acima de qualquer realidade de dependência do sangue ou da
origem territorial’. Nem por isto, Mussolini não hesitou nenhum momento em 9 de janeiro de 1937 em baixar o decreto
decisivo, proibindo, sob as mais severas penas, o concubinato entre italianos e negros. A imprensa se empenhou em colocar
essa confissão básica do fascismo a favor de uma política racial, severa e consciente, não como algo de especial e
surpreendente, mas, como escreve o ‘Giornale d’Itália’ como ‘continuação natural, sim, como síntese da política populacional
de Mussolini’. ‘Os italianos devem’, escreve o jornal, ‘manter a sua raça pura e criativa no seu tipo original’. /.../ A pureza da
raça é tão preciosa como a de um metal ou de uma pedra preciosa”[69] .
Efetivamente a questão racial é, no fascismo, uma questão central, e é altamente ilustrativo que o autor, do qual
extraímos a citação acima estampada, ao longo de todo seu livro, que versa sobre o integralismo, constituindo-se no único
estudo acadêmico deste realizado da perspectiva fascista que conhecemos, conduz toda sua crítica ao integralismo brasileiro tendo
por eixo a debilidade da “Teoria Assimilatória” que este esposa, em lugar de adotar, como seria correto, uma definida posição
racial, almejando, o tempo todo, que o integralismo evolua em “direção a uma modificação de sua posição na questão racial e
étnica no Brasil”70[70] , ao mesmo tempo que demonstra preocupação com o catolicismo de Salgado: “Existem muitos
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integralistas que falam de uma posição ultra-religiosa - católica - de seu chefe, e temem vários perigos para o movimento”[71] .
Sua insistência sobre a questão racial traduz-se, por exemplo, em denúncias de que “o integralismo brasileiro adota a teoria
assimilatória, antibiológica do nativismo lusitano /.../. Destruindo, porém, os diversos grupos étnicos - e isto ocorre se se
sacrificam as características particulares, que eles possuem por vontade divina, a favor da idéia vaga de uma raça mista do
futuro - destrói-se simultaneamente também os valores inerentes a esses grupos. Sim, pode até ser dito que o integralismo
concorda neste ponto com as idéias materialístico-estáticas do comunismo, que também não reconhece os limites por vontade
divina dos povos, na sua originalidade disposta pelo destino. A teoria de Meltingpot (assimilatória) do integralismo está,
portanto, diametralmente em oposição à sua própria idéia dinâmica de base, isto é, àquela qualidade pela qual o integralismo
brasileiro supera o seu homônimo português”[72] . As formulações do tipo se repetem: nelas, é visível, a tese pliniana da “raça
harmoniosa do futuro” é inteiramente impugnada, tanto quanto a própria posição geral do integralismo em face da sua recusa
em adotar a teoria racial como fundamento ideológico: “É impossível formar no Brasil qualquer movimento vivo político ou
cultural ou de outra natureza sem que se adote uma perfeita atitude frente ao problema racial. Oficialmente o integralismo
afirma não conhecer o problema racial. Mas, na verdade, ele adotou a atitude racial do nativismo lusitano que muito se
assemelha à sua. Ambos afirmam que o problema racial no Brasil só poderá ser solucionado de acordo com a realidade
brasileira, em harmonia com a brasilidade, mas não com o que os cientistas europeus constataram em seus laboratórios. Mas
se em outros pontos já constatamos a fragilidade e a interpretação subjetiva do conceito de brasilidade, com maior razão
ocorre isto no problema racial”[73] .
Ostensivamente, e até mesmo de forma acusada por adeptos do fascismo, as bases fundantes do integralismo e do
fascismo são distintas e perfeitamente discerníveis, repercutindo isto no conjunto dos dois ideários, e de forma decisiva.
Diríamos melhor que necessidades de objetivação social diferentes, em condições diversas, levaram a reflexões de natureza
distintas determinando ideologias que de modo nenhum podem ser confundidas.
De fato, entre ter, como suposto último, uma concepção social que se identifica com o catolicismo tradicional ou o
racismo biológico vai uma grande distância. De imediato repercute sobre a espessura do irracionalismo em jogo. Enquanto no
integralismo ele é, digamos assim, barrado ou reduzido pelos dogmas da revelação, próprios da doutrina da Igreja, o irracionalismo
fascista não conhece barragem. Evidentemente que os dogmas da revelação não constituem uma negação da irracionalidade, ao
contrário, mas há que observar que eles ainda impõem um certo regramento, um conjunto de princípios obrigados a certa
organização, e que determinam contornos à reflexão, onde a logicidade só ao limite último cede lugar à fé. O racismo fascista
desconhece qualquer destes lineamentos, posto arbitrariamente, arbitrariamente procede. É mais amplamente irracionalista
que o irracionalismo próprio do integralismo. Aquele inventa sua lógica, este, no limite, adota os valores de uma lógica que o
transcende, e à qual, numa porção de seu tecido conceitual, se subordina. Era a isto, a esta porção menos irracionalista do
discurso pliniano, que nos referíamos, nas primeiras páginas deste capítulo, quando dizíamos que o discurso de Salgado,
estruturalmente retórico por natureza, possuía como residual algo não-retórico, indicando, desde logo, que isto assumia grande
importância para a determinação da natureza do ideário pliniano. Nada semelhante a isto se encontra no discurso fascista. E é
provavelmente por isto que o discurso fascista aparece sempre como descosido, como distante de perfazer os contornos de uma
doutrina. Seu ecletismo absoluto o casa com seu irracionalismo extremo. Em contraste, o integralismo, no seu
desalinhavamento, alinhava; um perfil, apenas tracejado, se põe para o foco visual. O elemento residual não-retórico propicia
o cimento necessário. E Salgado, nós o vimos, é muito cioso do caráter mais doutrinário de sua proposta. Mussolini, por sua vez,
pedira a certa altura um pensamento para a sua ação, enquanto Hitler “não suportava, nem mesmo acima de si próprio, a
autoridade de uma idéia”[74] . Afluentemente dirá um acólito, depreciando os clássicos da filosofia alemã: “Hitler não é menos
do que a idéia, mas é mais do que ela, pois é real”[75] .
Mas isto não deriva de que um seja um pouco mais, o outro um pouco menos, débil teoricamente. Mas o maior ou
menor nível teórico espelha, no plano do tecido doutrinário, as exigências das necessidades concretas das entidades sociais em
que estão inseridas. E é muito interessante observar que seja precisamente o integralismo, dentro de seu primarismo, que
apresenta algo menos inferior que o fascismo. O que aponta para certa observação lukacsiana, segundo a qual as condições de
inferioridade de uma realidade concreta não condicionam mecânica e obrigatoriamente a inferioridade em todos os seus
aspectos.
Mas o que vale, acima de tudo, muito bem observar é que o irremediavelmente descosido discurso fascista, arrimado
sobre um irracionalismo extremado, sem folga ou resíduo, que objetiva, em face do integralismo, um padrão teórico ainda mais
baixo do que deste, não poderia ser outra coisa, pois é uma ideologia que radicalmente não propõe, simplesmente mobiliza e
mobiliza simplesmente para o saque. Convencendo, persuadindo ou aterrorizando. Na consecução da acumulação capitalista dispõe-
se a esfacelar literalmente o homem e o mundo. Uma doutrina esfacelada o representa com toda propriedade.
Em contrapartida, o integralismo, diante de um mundo em radical crise e transformação (o colapso do liberalismo, o
primeiro conflito mundial, o surgimento do primeiro estado socialista), inserido num segmento territorial de extração colonial,
lê catastroficamente o evolver do mundo e, na sua fragilidade colonial, propõe um retrocesso. Donde o caráter radical da
antimodernização pliniana, que sendo proposta, no contexto da via colonial, mostra bem a espessura de sua regressão. Mas
Salgado salta para trás, recusa a acumulação do “verdadeiro capitalismo” em nome precisamente da preservação da integridade
humana, identificando a totalidade real, porém limitada, do camponês e do artesão como a totalidade humana possível. É uma
proposta regressiva, mas uma proposta. É a pequena propriedade contra o grande capital. Só uma formação do capitalismo híper-
tardio poderia ainda dar margem, em plena época das guerras imperialistas, a que reflexões desse calibre de puerilidade reacio-
nária se dessem. Só a uma formação visceralmente impregnada pelo ruralismo poderia ainda sensibilizar a idéia de que o “vício
é a base do progresso social”, diante do qual um imaginário e idealizado camponês salta para trás.
De modo que o “burguesismo - mal do século” não é uma farsa retórica, mas a forma da crítica romântica no
capitalismo híper-tardio. E uma moral da resignação, da pobreza edificante, se põe como a “revolução espiritualista” e,
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enquanto tal, é a defesa de uma totalidade inferior. Mas a defesa de uma totalidade, não o esfacelamento de toda e qualquer totalidade.
O fascismo esfacela para expandir; o integralismo retrocede com medo do esfacelamento.
Ontológica e teleologicamente, fascismo e integralismo se põem como objetivações distintas.

Notas:
[1] e 2. K. Marx, Crítica do Programa de Gotha, Porto, Portucalense Editora, 1971, pp. 29-30.
[3] Ib., pp. 30-31.
[4] C. N. COUTINHO, Realismo & Anti-Realismo na Literatura Brasileira, Paz e Terra, Rio de Janeiro, p. 1924.
[5] e 6. K. MARX, “En Torno a la Crítica de la Filosofia del Derecho de Hegel”, in La Sagrada Família, Grijalbo, México, 1960,
pp. 11 11-2.
[7] K. MARX, O Capital, Civ. Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, p. 5.
[8] G. LUKÁCS, Goethe y su Época, Grijalbo, Barcelona, 1968, p. 54.
[9] F. ENGELS, As Guerras Camponesas na Alemanha, Grijalbo, São Paulo, 1977, p. 11.
[10] Ib., pp. 17-18 e 17.
[11] Ib., pp. 17-18 e 17.
[12] G. LUKÁCS, Conversando com Lukács,Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1969, p. 49.
[13] V. I. LÊNIN, “El Programa Agrario de la Social-Democracia”, in Obras Completas, Cartago, B. Aires, 1960, Tomo XIII,
pp. 241-242 e 246.
[14] V. I. LÊNIN, “El Programa Agrario de la Social-Democracia”, in Obras Completas, Cartago, B. Aires, 1960, Tomo XIII,
pp. 241-242 e 246.
[15] Obrigatório é também registrar que Luiz Werneck Vianna procurou, em seu recente Liberalismo e Sindicato no Brasil (Ed.
Paz e Terra, 1976), valer-se também do conceito de caminho prussiano. Tendo o sindicalismo por objeto de análise, W.
Vianna inegavelmente produziu uma importante contribuição para a compreensão do problema no Brasil, contribuição que
em muito contrasta, em sua condição de superioridade, com a bibliografia anteriormente produzida a respeito. E isto, apesar
de seu emprego prussiano do conceito de via prussiana, isto é, conciliado, de uma parte, a todo um quadro de ressonâncias
althusserianas, que rende curiosas tramas analíticas, e de outra com uma desnecessária e taticista somatória de conceitos
dissonantes e residuais, que em nada auxiliam na sustentação das muitas e vigorosas teses apresentadas ao longo da obra.
[16] K. MARX, Introdução à Crítica da Economia Política, Abril Cultural, São Paulo, 1974, p. 110.
[17] 17. J. A. GIANNOTTI, “Notas Sobre a Categoria ‘Modo de Produção’”, in Estudos Cebrap n° 17, São Paulo, 1976, p. 163.
[18] Não subentendemos qualquer relação de afinidade entre via ou caminho colonial e expressões semelhantes. Ao contrário,
pensamo-la exclusivamente enquanto particularidade, portanto como mediação necessária e objetiva entre a universalidade do
capitalismo e determinadas singularidades; longe, conseqüentemente, da “criação” de novos universais, tal como se dá quando a
colonial se antepõe modo de produção.
[19] K. MARX, História Crítica de la Teoría de la Plusvalía, Fondo de Cultura Económica, México, 1945, vol. III, p. 389.
[20] K. MARX, História Crítica de la Teoría de la Plusvalía, Fondo de Cultura Económica, México, 1945, vol. III, p. 389.
[21] K. MARX, Crítica do Programa de Gotha, op. cit., p. 23.
[22] Henri LEFEBVRE, O Direito à Cidade, Ed. Documentos, São Paulo, 1969, pp. 9-10.
[23] Paul SINGER, “O Brasil no Contexto do Capitalismo Internacional 1889-1930”, in História Geral da Civilização Brasileira -
O Brasil Republicano 1, Difel, São Paulo, 1957, p. 347.
[24] Charles BETTELHEIM, La Economia Alemana Bajo el Nazismo, Editorial Fundamentos, Madrid, 1972, pp. 17-18.
[25] Ib., pp. 18 a 20.
[26] G. LUKÁCS, El Asalto a la Razón, Fondo de Cultura Económica, México, 1959, pp. 14 e 27.
[27] e 28. Nicos POULANTZAS, Fascismo y Dictadura, Siglo XXI, México, 1971, pp. 25 e 23.
[29] a 31. Barrington MOORE, Los Orígenes Sociales de la Dictadura y de la Democracia, Ed. Península, Barcelona, 1973, p. 236.
[32] Nicos POULANTZAS, Fascismo y Dictadura, op. cit., p. 27.
[33] Ib., p. 23.
[34] C. BETTELHEIM, La Economia Alemana Bajo el nazismo, op. cit., pp. 20-21.
[35] Karl Dietrich BRACHER, La Dictadura Alemana, Alianza Editorial, Madrid, 1973, vol. 1, pp. 33-34.
[36] G. LUKÁCS, Goethe y su Época, op. cit., pp. 57-58.
[37] Henri LEFEBVRE, Au-Delá du Structuralisme, Antropos, Paris, 1971, p. 230.
[38] G. LUKÁCS, Conversando com Lukács, op. cit., p. 136.
[39] e 40. G. LUKÁCS, El Asalto a la Razón, op. cit., pp. 58 e 54.
[41] Francisco de OLIVEIRA, “A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista”, in Estudos Cebrap 2, 1972, p. 71.
[42] Wilhelm REICH, Psicologia de Massa do Fascismo, Publicações Escorpião, Porto, 1974, p. 42.
[43] G. LUKÁCS, Aportaciones a la História de la Estética, Grijalbo, México, 1966, p. 345.
[44] G. LUKÁCS, Goethe y su Época, op. cit., p. 56.
[45] G. LUKÁCS, Goethe y su Época, op. cit., p. 55.
[46] José Honório RODRIGUES, Conciliação e Reforma no Brasil, Civ. Brasileira, Rio de Janeiro, 1965, p. 70.
[47] Carlos Nelson COUTINHO, Literatura e Humanismo, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1967, p. 142.
[48] “/.../ l’Italie et l’Allemagne n’ayant pas connu de révolution bourgeoise, l’idéologie bourgeoise libérale est fragile et
faiblement enracinée.” Max GALLO, “L’Idéologie Fasciste”, in Les ldéologies dans le Monde Actuel, DDB, Paris, 1971, p. 145.
[49] O. de ANDRADE, Obras Completas, vol. 2, pp. 132-133.
[50] Celso FURTADO, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, Ed. Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1961, Cap. 6.
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[51] Caio PRADO JÚNIOR, História Econômica do Brasil, Brasiliense, São Paulo, 1970, p. 296.
[52] Francisco de OLIVEIRA, “A Emergência do Modo de Produção de Mercadorias: Uma Interpretação Teórica da
Economia da República Velha no Brasil”, in O Brasil Republicano 1, Difel, São Paulo, 1975, p. 412.
[53] Caio PRADO JÚNIOR, História Econômica do Brasil, op. cit., p. 216.
[54] e 55. Francisco de OLIVEIRA, A Emergência do Modo de Produção de Mercadorias, op. cit., pp. 408 e 4l0.
[56] F. de OLIVEIRA, A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista, op. cit., p. 9.
[57] “Quando se realizou no Brasil o Censo de 1920, verificou-se que de todos os capitais investidos no País em atividades
industriais, quase que uma quarta parte (exatamente, 24,2%) o foram de 1915 a 1919, o que comprova o impacto da Primeira
Guerra Mundial no processo de industrialização. Entretanto, porcentagem ainda maior, mais do que a quarta parte
(precisamente, 26,2%) o tinham sido no período de 1880 a 1894, quando antes, desde a Colônia, só haviam sido aplicados
6,4%, e depois, de 1895 a 1904, verificara-se uma crise industrial.” Cf. Maurício Vinhas de QUEIRÓS, “O Surto Industrial de
1880-1905”, in Debate & Crítica, n° 6, julho de 1975, p. 95.
[58] Nícia Vilela LUZ, A Luta pela Industrialização no Brasil, Difel, São Paulo, 1961.
[59] G. LUKÁCS, El Asalto a la Razón, op. cit., p. 54.
[60] Nícia V. LUZ, A Luta Pela Industrialização no Brasil, op. cit., pp. 78 a 91.
[61] e 62. G. LUKÁCS, Realismo Crítico Hoje, Coordenada Editora de Brasília, Brasília, 1969, pp. 27 e 27.
[63] K. MARX, “Carta a Engels (9 de dezembro de 1961)”, in Correspondencia, Cartago, B. Aires, 1972, p. 116.
[64] K. MARX, Prefácio - para a Crítica da Economia Política, Abril Cultural, São Paulo, 1974, p. 136.
[65] G. LUKÁCS, El Asalto a la Razón, op. cit., pp. 4 e 27.
[66] G. LUKÁCS, El Asalto a la Razón, op. cit., pp. 4 e 27.
[67] G. R. de YURRE, Totalitarismo y Egolatria, op. cit., p. 268.
[68] J. MEDEIROS, “Introdução ao Estudo do Pensamento Político Autoritário Brasileiro”, in Rev. de Ciências Política da FGV,
vol. 18, setembro de 1975, p. 84.
[69] Karl Heinrich HUNSCHE, Der Brasilianische Integralismus, Verlag von W. Kohlhammer, Stuttgard, 1938, pp. 150, 152 e
146.
[70] a 71. Karl Heinrich HUNSCHE, Der Brasilianische Integralismus, Verlag von W. Kohlhammer, Stuttgard, 1938, pp. 150, 152
e 146.
[72] Ib., pp. 143 e 81.
[73] Ib., pp. 143 e 81.
[74] Joachim FEST, Hitler, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1976, p. 6.
[75] BAEMLER, Mannerbund und Wissenschaft, apud G. LUKÁCS, El Asalto a la Razón, p. 437.
31

CONQUISTAR A DEMOCRACIA PELA BASE*

Brasil vive, há mais de treze anos, sob a égide e o comando da ditadura e do “milagre”.
A análise desta situação deve principiar compreendendo que, nem as ditaduras, nem os “milagres” são novidades na
história brasileira; ao contrário, fazem parte, lamentavelmente, do que há de mais característico, profundo e dominante da
nossa formação histórica. Ditaduras e “milagres” traduzem o caráter essencial de nossa formação e estrutura coloniais.
Estrutura que se vem conservando sob formas diferentes - mais ou menos complexas, ou mais ou monos sofisticadas, como
eixo básico de nossa existência social. Assim é, desde a empresa açucareira colonial, até a recente tentativa de um economia de
exportação de manufaturados.
Assim é, para só falar da nossa história republicana, desde a máscara democrático-liberal da República Velha, até a
ditadura explícita da última década e tanto.
Em poucas palavras, e só para relembrar os períodos dominantes e mais decisivos do nosso processo econômico-
social: sucessivamente tivemos o “milagre” da cana-de-açúcar, o “milagre” da mineração, o “milagre” do café, e finalmente,
dentro do “milagre” da industrialização subordinada ao imperialismo, o menor e mais curto de todos, o “milagre” de 1968 a
1973.
Este último, baseado na dinâmica econômica da indústria automobilística e produtos correlatos, os chamados bens de
consumo duráveis, destinados a uma absorção por segmento privilegiado do mercado interno; “milagre” também sustentado
pelo “esforço” exportador predominantemente, como sempre, de produtos primários e matérias-primas, e, de modo
complementar, mais na aparência do que em termos efetivos, pela venda ao exterior de manufaturas.
Entrelaçadamente com os “milagres” e afinados com estes, temos a sucessão das especialidades políticas. Sem contar
o período monárquico, que fala por si mesmo, montado que esteve sobre a mão-de-obra escrava, o período republicano, em
sua primeira fase de pouco mais de quarenta anos, fez vigorar a “política dos governadores” - estrutura de poder autocrático,
de fachada liberal-democrática, real ditadura das oligarquias rurais.
A segunda metade da década de trinta, depois de irrelevantes e pouquíssimos anos constitucionais, vê surgir a ditadura
do Estado Novo, que só findará com o término do segundo conflito mundial em meados da década seguinte. Os anos
quarenta terminaram com o governo constitucional de Dutra, sob o patrocínio da Constituição de 46 e da política imperialista
da guerra fria, redundando em repressão geral, particularmente aos comunistas, que são postos na ilegalidade, com a cassação
de todos os seus parlamentares, após curta existência legal. Do retorno de Vargas ao poder, por via eleitoral, até o golpe de 64
transcorrem os anos “mais democráticos e liberais” da vida nacional. Menos, portanto, de década e meia, através da qual a
democracia vigente, com todas as suas limitações, foi várias vezes duramente atacada, e ao cabo da qual não se conseguiu
firmar.
É muito fácil notar, portanto, mesmo numa simples e apressada panorâmica como esta, que a história do Brasil é
“rica” em ditaduras e “milagres”. Pobre efetivamente de soluções econômicas de resolução nacional e carente de verdadeira
tradição democrática.
Trata-se, pois, no Brasil de conquistar a democracia, e não propriamente de reconquistá-la, visto que, até hoje, em
termos concretos não a conhecemos de forma duradoura e real, nem mesmo nos limites mais acanhados do que se entende
por democracia burguesa.
Toda via, os “milagres” e as ditaduras da vida nacional, apesar de seus decisivos e comuns significados gerais, devem
ser analisados na sua especialidade. É preciso entender a dinâmica de cada uma, suas contradições próprias e decorrentemente
o modo pelo qual principalmente as massas devem lutar contra elas. Mais do que isso, é preciso compreender, para conduzir
vitoriosamente a ação das massas, a caráter de cada momento de um processo ditatorial, principalmente quando este momento
é um momento de crise.

2
A crise atual, apesar de recente, não é uma recém-nascida, - já data do segundo semestre de 1973. Numa palavra, vem
cobrindo todo o período do governo Geisel.
A crise atual é a crise do último “milagre”, e não, portanto, uma crise à superfície das instituições. É o fracasso de um
política econômica, o fracassado que, numa terminologia errônea, vem sendo chamado de “modelo”, e não simplesmente o
“cansaço”, desgaste ou esgotamento da ditadura implantada em 64, supostamente ruída pelo tempo. Muito menos é a crise
atual, o resultado de uma vaga aspiração nostálgica e abstrata pelas “liberdades”, nem o poderia ser -, haja vista que isto se
mostra historicamente improcedente - quando se leva, na devida conta, o que ficou esclarecido no item anterior.

* Este artigo foi escrito entre setembro e dezembro de 1977, visando contribuir para análise e discussão das condições nas quais se
processava a luta política pela democracia no país. À época, o texto circulou restritamente em versão mimeografada, posto que não se
destinava à publicação. Seu caráter não ultrapassa o de um conjunto de anotações para posterior desenvolvimento. Foi publicado
originalmente na revista Temas de Ciências Humanas nº 6. Editora Ciências Humanas, 1979.
32
Tais afirmações parecem contrariar o que seria “evidencia” do que vem ocorrendo nos últimos tempos. Parecem
cometer o engano de recusar a “efervescência” política em marcha, e parecem também cometer o equívoco de desconhecer o
renascimento de um “debate” tão valorizado por alguns setores.
Mostraremos que não, que não se ignora ou desvaloriza acontecimentos, mas tão-somente que se repõe as coisas, pela
análise correta, nos seus devidos e justos lugares.
É sabido que os aspectos de uma totalidade nacional tendem a se alterar quando se registram modificações (positivas
ou negativas) na sua viga mestra, isto é, na sua estrutura de produção material. também é conhecido, se bem que menos, que a
correspondência entre tais alterações não é uma relação mecânica ou automática, embora se mantenha sempre, o que é
decisivo, a direção básica da determinação, isto é, os aspectos políticos são essencialmente determinados, enquanto a realidade
econômica é por natureza determinante. Em nossos dias, ainda que sabidas, estas concepções voltaram a exigir que sejam
relembradas, dada a enorme diluição e mistificação por que passa a elaboração teórica (inclusive a que se pretende ligada à
dialética), não sendo demais reafirmar com Engels, a título de simples ilustração, que, ao se realizar uma análise política, “trata-
se de reduzir, segundo a concepção de Marx, os acontecimentos políticos e efeitos de causas que, em última instância, são
econômicas” .
De modo que não se trata de negar a efetividade de certos acontecimentos, nem de recusar certa “efervescência”
política, e também não de desvalorizar um dado “debate” que procura renascer.
Trata-se, isto sim, de compreender tais coisas em suas devidas dimensões e significados; no seu tamanho e sentido
reais; no seu lugar próprio, enquanto especificidades determinadas por uma totalidade que se ordena e estrutura pela base
econômica[1] .
Só assim compreender-se-á o que está acontecendo, superando as opiniões imediatistas e superficiais que se formam
apressadamente em contato apenas com as aparências. Para a dialética a aparência é um aspecto do real, seu aspecto mais
superficial e elementar, a aparência (o que aparece) traduz as relações mais simples do real, é a epiderme que se mostra e que,
na maioria das vezes, está em contradição com a essência dos fenômenos. Se assim não fosse, Marx não teria observado que
“Toda ciência seria supérflua se a aparência das coisas coincidisse diretamente com sua essência”. (O Capital.) Impõe-se,
conseqüentemente, ultrapassar o nível das aparências. É o que significa aprofundar dialeticamente a análise.
É o que permitirá apreender concretamente a realidade, no processo do conjunto de seus múltiplos fenômenos,
identificando, assim seus fatores estruturais, responsáveis pelos significados decisivos do momento atual. E as próprias
aparências poderão, então, revelar verdadeiros significados, permitindo, assim, que sejam objetivamente consideradas para
efeitos programáticos.
Para realizar, é óbvio que somente em parte, o aprofundamento analítico proposto - e dele extrair as conseqüências
para o terreno dos programas políticos, pois que é de política, acima de tudo, que aqui se trata, e de política na perspectiva das
massas -, principiemos pela consideração das duas questões fundamentais até aqui apontadas: o fracasso do “milagre” e a
movimentação política em curso.
Pelo exposto até aqui, o fracasso do “milagre” aparece como o aspecto profundo e estrutural do momento brasileiro,
e a movimentação política, até agora registrada, como sua aparência.
É preciso logo de início, deixar claro o que se compreende por fracasso do “milagre”. Trata-se de um fenômeno
complexo da acumulação capitalista no Brasil, comportando determinações contraditórias. Para facilitar a compreensão deve-
se dizer que o “milagre” de 1968-1973 é duas vezes um fracasso e uma vez um efetivo sucesso.
Ele é um fracasso, pela primeira vez, desde suas origens, desde os momentos iniciais de sua implantação. Nesse
sentido ele é, desde logo, uma enorme e grave falsidade enquanto formulação de um projeto econômico para o país. Sob este
aspecto o “milagre” é uma proposta política econômica que jamais poderia encaminhar soluções, nem mesmo em parte, para
os básicos problemas matérias que afligem de longa data as classes dominadas do Brasil. Ao contrário, a dinâmica econômica
que ele propôs e implantou tem como base necessária a maciça exclusão das camadas populares dos resultados que produz.
Em termos rigorosos a estrutura de produção em que se baseia o “milagre” produz necessariamente uma distribuição negativa
para as classes subalternas. Para se realizar, o “milagre” obrigatoriamente tem de gerar a miséria de amplas camadas
populacionais; o aviltamento da maior parte da forca de trabalho empregada é a condição de seu funcionamento.
Deste ponto de vista, a oposição brasileira em seu conjunto não foi capaz de compreender o caráter de dinâmica
posta em marcha, e passou simplesmente, no melhor dos casos, a reclamar inutilmente por uma impossível correção das
“formas injustas” de distribuição da riqueza gerada, não denunciando criticamente na raiz, como seria o caso, a forma de
produção implantada, responsável causal direta, esta sim, pela distribuição negativa, revelando desconhecer a determinação
marxista fundamental de que a distribuição é produzida e condicionada pela formas de produção. A oposição, assim, em suas
componentes mais avançadas, de quem se poderia esperar uma visão mais correta, não compreendeu o que estava
concretamente em curso, e sua atuação pôs-se, conseqüentemente, à margem do essencial, não atacando os fatores
determinantes do quadro objetivo. Isto é verificável mesmo sem considerar que, no próprio seio da oposição, havia e há
forcas para as quais “iludir-se” com o “milagre” é uma conseqüência de suas posições de classe e decorrentemente de seus
interesses econômicos imediatos.
O “milagre” é fracasso, uma segunda vez, quando considerado como esgotamento de uma fase de acumulação. Isto é,
quando se torna evidente, mesmo no nível das aparências, das relações mais visíveis e à flor da pele, que a larga acumulação
efetivada entre 68-73 não tinha mais como prosseguir, que havia chegado a seu termo. Isto é, quando se torna ostensivo que a
estrutura de produção em vigor não é mais capaz de prosseguir multiplicando o capital no mesmo ritmo que o vinha na fase
imediatamente anterior, isto é, durante os anos do “milagre”.
Sintetizando as duas formas de fracasso do “milagre”: do ponto de vista das necessidades gerais da nação, ele e um
fracasso como projeto e organização da produção, consideradas as necessidades das classes subalternas, numa palavra, do
33
conjunto do povo brasileiro; é também um fracasso, ao cabo de poucos anos, quando se consideram, a partir de 73, as
exigências naturais do próprio capital: a acumulação deste é entravada pela própria estrutura de produção que durante um
certo tempo o beneficiou larga e exclusivamente. Em suma: o “milagre” fracassa como projeto e prática do desenvolvimento
nacional, dado ter por base insuperável a exclusão da maioria do povo brasileiro desse desenvolvimento, e fracassa também,
esgotando rapidamente suas possibilidades, mesmo como simples forma restritamente voltada apenas para a acumulação do
capital. Para facilitar a exposição passaremos a chamar, daqui para frente, os dois aspectos do fracasso do “milagre”, respec-
tivamente por fracasso geral e por fracasso específico do “milagre”.
Tanto quanto em relação ao primeiro, também relativamente ao fracasso restrito a oposição não esteve à altura dos
acontecimentos. Se aos primórdios da implantação da política econômica vigente, a oposição não foi capaz de pôr a nu e
denunciar as mecanismos do projeto econômico da ditadura, e a partir daí equacionar e lutar por um programa político
verdadeiro e eficiente, também quando se verificou o fracasso restritivo, quando o “milagre”, se esgotou, a oposição não
compreendeu verdadeiramente o que ocorria. Sem dúvida que esta segunda incompreensão nasceu e esteve condicionada pela
primeira, mas dada a diferença entre os dois fracassos, os momentos histórico-sociais também são distintos, e as
conseqüências das duas incompreensões também se mostram diversas, principalmente no terreno prático da atuação política.
Quanto a isto basta recordar três pontos: 1) a falsificação do índice de inflação referente a 1973, operada pelas
agencias oficiais; 2) a assim chamada crise do petróleo; 3) os pronunciamentos do empresariado.
No que se refere ao primeiro ponto, a questão é gritante. Já como sinal da pane do “milagre” houve o
recrudescimento do processo inflacionário. A ditadura, no final do mandato Médici e ainda sob o império da “genealidade” de
Delfim Neto, não encontrou, em seu arsenal de recursos, resposta melhor do que a pura falsificação do índice inflacionário,
reduzindo fortemente sua expressão numérica.
O DIEESE certificou sua discordância quanto aos cálculos oficiais anunciados, publicando os índices reais. A
oposição não se sensibilizou com a questão e não houve ação parlamentar que levasse o problema às tribunas. A oposição
simplesmente desconheceu o significado da ocorrência, que duramente lesava, sob mais uma forma, os já fortemente
achatados salários da massa trabalhadora. Não entendendo os mecanismos econômicos vigentes, não compreendeu o
potencial político que podia ser explorado e que estava contido no episódio da falsificação, pois o exame da mesma permitira
elevar a crítica aos fundamentos da ditadura, e principiar a desmascará-los, agora que o “milagre” esboroava, e já não podia
constituir pretexto para a ideologia do “crescimento do bolo”. Se assim tivesse procedido, a oposição, ou pelo menos seus
representantes mais avançados, teria apoiado a massa trabalhadora e a ela tentado se unir de fato e pela raiz, criando, desse
modo, estímulos à ação sindical, dura e persistentemente reprimida, e propiciado o início de uma acumulação de forcas junto
ao proletariado, sem o qual e qualquer esperança política é vaga e insubsistente. Todavia, o silencio imperou nas hostes
oposicionistas, e, assim prosseguiu, quase que inalteradamente, até mesmo quando o relatório do Banco Mundial denunciou a
fraude, e até mesmo Mário H.Simonsen se viu obrigado a reconhecer a “divergência” dos índices, revelando mesmo que desde
73 sabia da questão e sobre ela prevenira o futuro presidente Geisel, em relatório confidencial, quando aquele estruturava sua
equipe e programa. E nem mesmo quando recentemente o movimento sindical se repôs, de público, valendo-se maduramente
da questão, nem mesmo então, a oposição, ou seus representantes mais avançados, compreendeu a imensa dimensão política
da ocorrência. Mais uma vez, e nesta oportunidade de forma a mais bisonha, a oposição deixou passar a oportunidade de
iniciar a efetivação de um real e concreta ação oposicionista. Sem dúvida, à oposição brasileira vem faltando, por inteiro, o
sentido da perspectiva do trabalhador, razão pela qual ela tem-se mostrado tão extraordinariamente frágil e inconseqüente.
Relativamente ao segundo ponto, ao da assim chamada “crise do petróleo”, o panorama é também de poucos méritos
e creditar para as fileiras oposicionistas.
A ditadura, a braços com o fracasso específico do “milagre”, isto é, com o esgotamento de um ciclo de acumulação,
tomou a crise geral do sistema capitalista, os desequilíbrios e as dificuldades mundiais do sistema internacional do capitalismo,
particularmente a reformulação por que passou o comércio petrolífero, como a explicação e justificativa para as suas próprias
e ásperas dificuldades. Com esta forma de interpretação cometeu duas inversões analíticas ao mesmo tempo: deu à questão do
petróleo a qualidade da causa da crise capitalista, e a ambas, principalmente à primeira, como razões dos problemas
econômicos nacionais. Num primeiro lance, o Brasil era afirmado ainda exceção num mundo conturbado, “uma ilha de
desenvolvimento e tranqüilidade, num universo de recessão e atrocidades”. Este diagnóstico falsificado da realidade brasileira
e mundial permeou a oposição, desarmada (ou armada?) pela sua incompreensão básica da realidade nacional.
Tanto quanto acreditou no “milagre”, a maior parte da oposição também, em boa medida, foi sensibilizada pela
explicação da ditadura; pelo menos articulava os conceitos de modo muito próximo ao esquema governamental. Mais uma vez
desconhecendo (e não casualmente) a estrutura da organização da produção em vigência, a oposição não soube compreender,
e daí tirar proveito político, que a “crise do petróleo” era efeito da crise do sistema capitalista no seu todo, e não o inverso, e
que, no Brasil, o aumento dos preços do petróleo não gerava o esgotamento do “milagre”, mas simplesmente precipitava seu
desenlace e acentuava suas debilidades estruturais, levando mais rapidamente a um desequilíbrio da balança de pagamentos e
ao progressivo endividamento externo. Não entendeu, mesmo quando a realidade se esfregava em seu nariz, que o
desequilíbrio da balança de pagamentos, bem como da balança comercial, e ainda a fenomenal dívida externa eram
conseqüências intrínsecas do próprio “milagre”. Isto é, que mesmo sem a “crise do petróleo”, ainda que talvez um pouco
menos rapidamente, os mesmos desequilíbrios e a mesma dívida seriam os resultados inevitáveis do “milagre”. Não
compreendeu que o desequilíbrio da balança comercial que gera o desequilíbrio da balança de pagamentos, donde redunda o
endividamento crescente, tem por principal fator estrutural a importação de bens de produção e insumos básicos; que os
gastos com a importação destes são progressivos, superando crescentemente os relativos à importação do petróleo que, aliás,
tendem a uma certa estabilização, ao contrário daqueles. Importação de bens de produção de bens de consumo duráveis,
visando à absorção de tais valores na própria organização da produção tal como está subentendida pela política econômica do
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“milagre”, voltada que está para a produção de bens de consumo duráveis, visando à absorção de tais valores por estreita e
privilegiada faixa social. Não compreendeu, numa palavra, o conjunto da oposição que um “modelo exportador”, nas
condições de subdesenvolvimento é concomitante, irreversível e determinantemente um “modelo importador”. É sob este
ângulo que a pata imperialista melhor se mostra em toda sua anatomia. Há que fazer justiça a pouquíssimas vozes isoladas da
oposição, que no parlamento federal buscaram e fizeram importantes esforços críticos em relação à política econômica
governamental.
Todavia, tais pronunciamentos, até agora, não conseguiram vencer e superar a barreira da alienação do conjunto da
oposição, nem sequer fazer com que as forcas mais válidas, entre as agrupadas na frente emedebista, se voltassem para o
imprescindível exame da base da ditadura.
Em síntese, a oposição que, pelo exame e debate da “crise do petróleo”, poderia desnudar o “milagre” revelando as
raízes do regime antipopular e antidemocrático no poder, e, em conseqüência, formular uma política alternativa, mais uma vez
passou a si mesmo um atestado de ignorância e incompetência; deficiências estas, classisticamente determinadas, é evidente,
mas não por isso mais desculpáveis, principalmente quando presentes junto a forcas que julgam representar, de algum modo
perspectivas de ordem popular.
Por fim, o terceiro ponto, o mais próximo do momento atual, e que, em parte, ainda vivemos; aquele que indicamos
sob a expressão de “os pronunciamentos do empresário”.
Tanto quanto os dois pontos demonstrativos das agudas incorreções do comportamento oposicionista que acabamos
de examinar, também este último relaciona-se diretamente com o fracasso específico do “milagre”, mesmo porque é somente
a ocorrência deste último que passam a ocorrer os “pronuncia-mentos do empresariado”.
Vale preliminarmente não deixar desapercebido que, se sabe, que diretamente relacionado com o fracasso específico,
o erro e engano de avaliação que a oposição tem cometido quanto aos “pronunciamentos do empresariado” tem também
como condicionante de fundo, tanto quanto os dois outros pontos examinados, a incapacidade que ela também revelou
quanto à compreensão do fracasso geral do “milagre”.
A própria época em que vão-se dar os “pronunciamentos dos empresários” faz compreender o seu verdadeiro
significado. Só a profunda alienação que a oposição vive em seu conjunto, sob diversas formas, há longos anos, permite
entender a confusão que tem praticado quanto a essa questão.
É de vital importância atentar que os empresários só vem a público para determinadas manifestações de opinião em
termos recentes, precisamente quando o país já está às voltas com o fracasso específico do “milagre”. Isto é, quando a
acumulação capitalista propiciada pelo “milagre” chega a seu esgotamento.
Quando, portanto, a taxa de acumulação e de lucro decrescem. Num primeiro momento, tais manifestações se
explicitam sob a forma de combate ao estadismo. Longa e sistemática campanha foi, então, movida nesse sentido e dominou
os primeiros anos do governo Geisel. E não casualmente: se num plano geral se estava diante do esgotamento do “milagre”,
mais especificamente, tendo o governo Geisel identificado o problema, havia sido o II PND que enfatizava um programa
econômico voltado para a indústria de base, o que entreabria o “perigo” de uma intervenção estatal na economia ainda maior.
A campanha antiestadista levou à derrocada do II PND.
Não é preciso dizer do vital interesse do imperialismo quanto a esta questão, nem de sua decidida e decisiva
intervenção.
O segundo momento dos “pronunciamentos dos empresários” principia timidamente em fins do ano passado e vai
num crescendo ao longo dos primeiros 7 ou 8 meses de 1977. É o “desaquecimento da economia” que está em pauta, são suas
conseqüências negativas relativamente à dinâmica dos negócios que inquietam o capital e suscitam suas verbalizações, movidas
por interesses imediatos, e encapadas em expressões políticas que, por vezes, tem a aparência de licitações liberalizantes. São
pronunciamentos quase sempre individuais que não chegam a alcançar forma estruturada e representativa maior. Quando de
forma organizada o empresariado vem a se pronunciar temos sua verdadeira face. A expressão maior disto se verificou
recentemente, durante a CONCLAP, capitaneada pelos representantes dos monopólios estrangeiros e nacionais, onde a voz
das pequenas e médias empresas foi praticamente nula, tendo-se limitado a instituir nas suas perenes e reais necessidades de
financiamento. Deixando de lado os aspectos pitorescos -, como o de Bardella aventando a possibilidade de “oferecer” a
legalidade aos comunistas, caso os “comunistas existam”, quando mais natural seria e melhor faria em se ocupar por garantir
para o capital nacional, que é o seu, espaço na produção de bens de produção, deixando para os comunistas, caso “existam”,
que pensem e lutem por sua legalidade -, a CONCLAP tornou evidente o pensamento dominante entre os grandes
empresários, que se mostrou surpreendente. Seus arroubos “democráticos” sintetizam-se no propósito de excluir o Estado da
atividade econômica, seja como investidor, seja como controlador.
Defendem, pois, uma organização econômica de tradicional talhe, verdadeiramente pré-keynesiano. Mas estes
baluartes do liberalismo econômico já não são tão fantásticos quando se trata de democracia.
Ao contrário, neste sentido suas convicções são completamente destituídas de vigor. Efetivamente não quebram
lanças pelas prerrogativas políticas democráticas. de fato as temem, pois os direitos políticos teriam de ser partilhados com as
massas, caso formalmente instituídos. De modo que os “pronunciamentos dos empresários” revelam liberalismo econômico,
mas não a defesa de princípios democráticos. Portanto, a “democracia” dos empresários se resume um lutar pelos lucros, no
que seguem não só a inclinação básica e natural do capital, mas as características das classes dominantes brasileiras, que são
economicamente liberais, mas não politicamente democráticas. O que faz, no momento, que a “democracia” dos empresários
se esgote reacionariamente na luta contra a estatização. No que se conjuga plenamente com os interesses do imperialismo.
Fácil é compreender que socialmente é mais eficiente e viável lutar pelos imediatos interesses econômicos
empresariais encapando-os ilusoriamente com os interesse democráticos dos maiorias, do que apresentando-os em sua nudez
privatista.
35
Que este seja o significado real dos “pronunciamentos dos empresários”, que este não se tenha convertido de repente
e por milagre à democracia, basta recordar, que, enquanto o “milagre” funcionou o empresário sustentou, honrou e defendeu
intransigentemente o regime em toda a sua extensão ditatorial. Não é, pois, do regime da ditadura que os empresários se
cansaram, mas o que eles não toleram é o fim do “milagre” e suas conseqüências diretas sobre seus negócios. De tal modo que
ao discutirem a “democracia”, o que fazem realmente é debater e lutar pelas formas e condições em que se dará a nova fase da
acumulação capitalista.
Os diversos setores empresariais querem simplesmente garantir as suas fatias do novo bolo a ser cozido. Por estas
razões, e não porque as diversas frações das classes dominantes ainda não acertaram entre si o novo “modelo” político, é que
se vem assistindo a uma certa movimentação neste campo, mesmo porque o regime que ah está, com uma pequena caiação, é
precisamente do que usufruíram e continuam precisando os monopólios. Dele não estão, nem nunca estiveram cansados.
O que cansa e desestimula, e não ao capital, é ver que não poucos nutrem a ilusão de que as massas trabalhadoras
tenham com isto qualquer afinidade ou coisa em comum, que a luta das massas pela democracia seja confundida com batalha
reacionária do grande capital - brasileiro e estrangeiro - pelo liberalismo econômico, isto é, pela expulsão do Estado da
atividade econômica.
Não atuando através de uma real compreensão dos acontecimentos objetivos, não distinguindo seus diversos
componentes, a oposição não vem sabendo fazer mais do que confundir as necessidades democráticas das massas (que
abrangem vários planos, e não apenas o institucional) com o “liberalismo” econômico dos monopólios, atuando oportunis-
ticamente na pseudoconvergência entre ambos. Em mais esta ocorrência, a dos “pronunciamentos dos empresários” a
oposição deixou escapar a oportunidade de fazer a crítica de fundo da política econômica em vigor, e, assim, está deixando de
aproveitar a ocasião, aberta pelos referidos pronunciamentos, para introduzir nos debates a sua própria perspectiva e com isto
dar conteúdo concreto à movimentação em curso. Não o fazendo, sua plataforma acabou por se esvaziar progressivamente
até se reduzir ao formalismo inerme de uma Constituinte oca, absolutamente destituída de qualquer diretriz. Com isto a
oposição no seu todo, e lamentavelmente até mesmo suas componentes mais avançadas fazem o jogo e ficaram a reboque de
seu próprio adversário. Isto evidencia de forma dramática a ausência, no curso dos acontecimentos, da perspectiva do
trabalho. Em última análise, o trabalhador brasileiro, de fato, não está sendo verdadeiramente considerado e representado, na
oposição. E este é, sem margem para qualquer dúvida, o problema maior para as forcas políticas mais avançadas da oposição.
De sua solução depende, a curto, médio e longo prazos, a luta contra a ditadura, bem como qualquer passo concreto, por
menor que seja na direção da conquista de um quadro social um pouco menos desfavorável para as amplas e sempre
sacrificadas massas brasileiras. Só a presença da perspectiva do trabalho no seio da oposição dará conseqüência à luta
oposicionista. No quadro de uma ampla frente, sim, mas frente que necessita ganhar contorno e estrutura palpáveis, que só a
perspectiva do trabalhador a obrigará a adquirir e sustentar.
Falou-se, mais atrás, que o “milagre” foi duas vezes fracasso, mas não se deixou também de assinalar que ele foi uma
vez verdadeiro sucesso. Em que constituiu tal sucesso é do que nos ocuparemos agora, aproveitando para sumariamente
expor o esqueleto da política econômica que o consubstancia.
O “milagre” é uma forma de desenvolvimento capitalista; desenvolvimento no quadro dos países economicamente
submetidos ao imperialismo, que beneficia o capital monopolista e que expulsa as massas populares da esfera dos direitos
políticos e econômicos.
Semelhante desenvolvimento atende ao objetivo essencial e único da acumulação capitalista enquanto tal. Atende às
exigências do capital em sua forma monopolista, submetendo tudo o mais a seus próprios objetivos, vinculados estes
especialmente ao grande capital externo.
No caso brasileiro, os mecanismos principais do “milagre” podem ser simplificadamente assim delineados.
A organização da produção foi sistematizada sobre dois eixos básicos, indissolúveis em sua complementaridade
orgânica: a produção de bens de consumo duráveis para absorção de uma fatia privilegiada do mercado interno, e o, assim
chamado, esforço exportador, que, mantendo a tradicional dimensão exportadora da economia brasileira, baseada em bens
primários, a ela buscou agregar um componente de bens manufaturados.
Da conjugação destas duas linhas produtivas é que se desenhou, pelo prazo de alguns anos, o “milagre”. Não sendo
esta mais do que uma expressão complexificada e sofisticada da estrutura de caráter colonial ou neocolonial da economia
brasileira. Por outros termos, a economia do país realiza-se e está voltada, como subordinada, para os interesses e
determinações das economias centrais que a imperalizam. As necessidades internas, as carências nacionais, particularmente as
das vastas camadas trabalhadoras das cidades, e dos campos ficam relegadas a planos infinitamente secundários,
desentendidas, mesmo em suas necessidades primárias. Numa palavra, amplas camadas populares são inteiramente
sacrificadas, coagidas a níveis baixíssimos de subsistência, e sobre este sacrifício e por causa dele realiza-se a acumulação
capitalista, atendendo à dinâmica do capital monopolista, particularmente o estrangeiro.
No caso do último “milagre (1968-1973) o pólo dinamizador da economia esteve montado sobre a produção de bens
de consumo duráveis, notadamente a indústria automobilística e seus correlatos, bem como de produtos afins dos
denominados bens de consumo burguês. Destinada ao consumo interno, esta forma de produção tinha que gerar impres-
cindivelmente um privilegiado mercado de consumo, socialmente muito restrito, numericamente acanhado, mas
suficientemente dimensionada para ser apto a absorver a produção efetuada, e assim realizar a mais valia criada, é
precisamente a isto que se chamou de “pacto social com a classe média”. A concentração de renda é, pois, decorrência lógica
da organização da produção posta em andamento, decorrência lógica e absolutamente necessária. A miséria produzida pelo
“milagre” é resultante, portanto, da organização da produção que ele subentende, e não a simples falta de uma equação
distributiva e mais eqüitativa. Isto é, por mais que o “bolo crescesse” jamais poderia render para as massas trabalhadoras.
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Quanto a este setor produtivo há que ressaltar ainda sua condição de propriedade dos capitais estrangeiros. E, em
decorrência, que a realização final da mais valia por ele apropriada só se efetiva na sua remessa para o exterior. Ou seja,
produzindo para consumo do mercado interno brasileiro, realiza sua mais valia em cruzeiros, que precisam ser convertidos em
dólares quando se trata de remeter o produto de suas operações para os centros que o comandam e determinam. Além disso,
o desenvolvimento da produção de bens de consumo duráveis implica, nas condições do subdesenvolvimento brasileiro, a
importação de bens de produção e insumos básicos. O que significa, no conjunto, a necessidade de obter volumosas
quantidades de divisas. Daí o chamado “esforço exportador” para obter dólares. Todavia, por mais forte que ele tenha sido,
por mais incentivado que ele seja, nunca foi capaz de atender às necessidades na geração de tais recursos.
Daí o crônico e crescente desequilíbrio da balança comercial e correlativamente da balança de pagamentos. Como
conseqüência foi-se compondo com grande velocidade o endividamento externo, que atinge hoje, mesmo em cifras oficiais, a
casa dos 30 bilhões de dólares, devendo alcançar em 1980 algo em torno de 45 bilhões. O que significa em 1978 só com o
serviço da dívida (juros e amortizações) os cofres nacionais terão de desembolsar aproximadamente 7,5 bilhões de dólares, e
mais de 8 bilhões em 1979. O que implica dizer que só com o serviço da dívida o Brasil absorveria 55% de suas exportações
prováveis. E, mesmo segundo técnicos a serviço do capital estrangeiro, uma evolução insuportável da dívida externa.
Esta linha de tendência, que chega a seu impasse, veio-se compondo desde o segundo semestre de 1973. Em síntese:
os próprios mecanismo do “milagre” levam à sua inviabilidade ostensiva.
Inviável como projeto de real desenvolvimento, inviabilizar-se, em poucos anos, no curso de sua própria aplicação.
No que foi, então, o “milagre” um sucesso? Precisamente em ter propiciado, ainda que por um curto prazo, uma fase,
um período de acumulação. Atendeu às demandas naturais de acumulação do capital. Sob a atrofia e sacrifício de tudo o mais,
é verdade, mas realizou uma fase de acumulação. Aproveitamento uma disponibilidade financeira exterior e achatando
violentamente os salários das massas trabalhadoras, sob o pretexto, aliás real, porém isento de novidade, de ter de levar ao
mercado externo produtos e preços competitivos, cujo significado concreto é vender barato e comprar caro, que é a marca
estrutural dos países economicamente subordinados.
O “milagre”, pois, é um milagre sobretudo para o capital financeiro internacional, sob a condição de que veja
constantemente assegurada a certeza de que os mecanismos econômicos montados produzam e reproduzam a captação dos
dólares necessários para “remunerá-los”. E é precisamente o contrário disto que hoje se verifica, num processo que vem-se
explicitando cada vez mais agudamente desde os primeiros momentos do governo Geisel. Numa palavra, o “milagre”
incompatibilizou-se consigo mesmo. Não é mais capaz de ir reproduzindo os passos do processo de acumulação,
contradizendo a si mesmo.
Face a isto acabou por se impor, após um momento de inconformidade e relutância, a política do desaquecimento
econômico, o que equivale dizer que o “milagre”, incompatibilizado em seus próprios mecanismos, convertido numa fera
voraz quanto mais crescia com mais apetite devorava seus próprios fundamentos, teve de ser amordaçado e manietado. Os
altos índices de crescimento do PNB deixaram de ser estimados e ostentados como demonstrativos e coroamento dos
sucessos da ditadura, convertidos, agora, em resultados ameaçadores que deveriam ser evitados a qualquer preço.
Mas a política de desaceleração econômica não tinha como satisfazer a nenhum dos setores econômico-sociais, pois
condena a todos, quando não ao retrocesso, pelo menos a níveis de estagnação, ou a ritmos reduzidos de crescimento.
Contudo, mesmo face à inquietação política que assim se gerou, não havia, dentro do sistema, outra alternativa e o
desaquecimento se pôs como medida de urgência para evitar a crise em seus aspectos mais dramáticos ou aprofundados, e
como instrumento de transição para a nova fase de acumulação que exigia fosse demarcada e desencadeada no mais breve
prazo possível.
Estes são os problemas básicos que estiveram e estão em jogo, num crescendo, ao longo dos últimos tempos.
Questões decisivas de infra-estrutura, que a nível de superfície mostraram-se como turbulência política, ou melhor,
institucional.
Moveu se, portanto, a sociedade, há que ressaltar de novo, particularmente alguns de seus setores, não como o
fracasso geral do “milagre”, que agravou os problemas da questão nacional e relegou violentamente as amplas massas
trabalhadoras a condições extremamente negativas. Mas movimentaram-se tais setores somente com o fracasso restrito. Não
os moveu, conseqüentemente, inspirações ou anseios democráticos: não os movimentou qualquer fantasioso cansaço pela
ditadura. Quando passaram e reivindicar maior participação para si, maior direito de opinar sobre o “futuro da nação”,
estavam, e estão, é disputando o “direito” no bojo desconfortável do desaquecimento, de pagar o menor ônus possível pelo
fracasso restrito do “milagre”, e buscando garantir a melhor posição possível na futura organização da produção que regerá a
nova fase de acumulação. Eis a “democracia” em que estão empenhados.

3
Para bem compreender o instante atual e encaminha uma equação tática, digna das perspectivas das classes trabalhadoras e de
suas necessidades, e que de fato seja eficiente no encaminhamento da luta pelas conquistas democráticas o que subentende
cercar, desmoralizar e derrubar a ditadura (que nenhuma cai por si só, apenas pelo corroimento interno), retomemos, para
certo desenvolvimento, alguns pontos já mencionados.
A política econômica da ditadura conheceu seu estrangulamento pela contradição que se estabeleceu, dadas as
condições do país economicamente subordinado, entre o esforço exportador e as exigências de importação. Estas superando
sempre aquelas, gerando os desequilíbrios das balanças comercial e de pagamentos implicando progressivo endividamento.
Evidentemente, completam ainda este quadro os demais ônus decorrentes da forte presença no interior da economia brasileira
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do capital estrangeiro. Como já indicamos, a responsabilidade maior pelas importações reside nos bens de produção,
equipamentos e insumos básicos. Alto e crescente é o percentual que lhe corresponde na absorção dos dólares captados nas
relações de troca com o exterior. Ao contrário do que foi propalado pela ditadura, como justificativa de suas dificuldades, os
gastos com o petróleo são meros pertubadores, seja pela sua grandeza absoluta, seja porque seu consumo tende a uma certa
estabilização, ao contrário dos bens de produção e insumos básicos que implicam demanda crescente, e são diretamente
responsáveis pela continuidade do processo de acumulação. Obstar ou restringir este consumo produtivo é interferir
diretamente no processo de reprodução do capital. Ao limite é a recessão que se põe.
O II PND, preparado pela equipe Geisel quando formulava seu plano de governo, divisou a questão e enfatizou um
projeto de desenvolvimento desse setor. Em últimas instância, propunha-se a operar uma nova fase do processo de
substituição de importações, posta esta, agora, a nível da indústria de base.
Pretendia com isto resolver o problema do estrangulamento econômico que se estabeleceu, e que principiava a se
tornar evidente.
Seja em razão da subordinação econômica do país aos centros altamente industrializados, seja pelo encaminhamento
contraditório que o II PND dava à questão, buscando canalizar capital estrangeiro para tal fim, sejam pelas múltiplas pressões
que foram exercidas de todos os lados, seja, enfim, pelo retardo com que a questão foi enfrentada (e não por acaso,
considerados os interesses do imperialismo desde a década de 50) a verdade é que o II PND foi reduzido praticamente a nada.
A questão, portanto, da produção dos bens de produção (equipamentos e insumos básicos) não foi realmente encaminhada e
muito menos resolvida.
E este é, insuperavelmente, como já o foi no passado, o grande desafio do momento. Sob este aspecto o “milagre” de
1968-1973 foi simplesmente uma forma de contornar e protelar a questão, mas que não escapou de repô-la com ênfase ainda
maior.
E é o que se faz hoje, o cerne de toda a discussão. É a pedra angular de todas as disputas e combates, na exata medida
em que, de 64 para cá, o Brasil, mais do que nunca, foi convertido à situação de arena de disputas dos monopólios
internacionais.
É quanto a isto que os setores dominantes buscam se acertar, no clima de desfavorável transição do desaquecimento,
onde os inconformismos diante do fracasso específico do “milagre”, que recalca certos setores econômicos a planos
secundários, ainda não foram superados.
Não é, portanto, difícil entender por que a disputa pelo poder se manifesta desta vez com particular intensidade,
sendo cada uma das candidaturas afloradas o produto ou a incorporação de tendências ou interesses que buscam impor suas
convivências e soluções de vantagem. É isto que está em jogo, e não simplesmente futricas de caserna. É guerra brava,
envolvendo o país em suas estruturas fundamentais, onde o ventilar do aspecto institucional, além de se prestar a dilações e
mascaramentos, e até mesmo a instrumento do jogo cênico para os olhos do grande público, que esconde a batalha interna e
oculta, para a qual estão centradas, para valer, todas as baterias, pode ser também, quando considerado isolado e
prioritariamente, utensílio para encaminhar soluções econômicas subjacentes que antagonizam os interesses das massas
populares e ferem negativamente o encaminhamento adequado da questão nacional. De modo que as forças dominantes, em
todas as suas componentes, disputam o jogo da “sucessão presidencial” preocupadas e ocupadas com o conjunto dos
problemas nacionais sabendo, no entanto, distinguir com precisão as questões de base das complementares, empenhando-se, a
nível decisivo quanto às equações relativas à política econômica; quanto ao mais é sempre possível passar por cima. No que
sequem, aliás, a tática de todos os governos da ditadura de 64 para cá. Ventilar as questões institucionais para um eventual
“aperfeiçoamento” a ser decidido em horas indeterminadas, pelos arquipoderosos senhores, enquanto as questões econômicas
são mantidas fora de discussão, como um tabu, foi uma tática que os governos ditatoriais sempre utilizaram, e que o governo
Geisel levou à perfeição. E diante dela a oposição acabou por perder a visão do todo, soçobrando ao diapasão institucional.
Tudo isso se vê plenamente confirmado pelo pronunciamento, a 1° de dezembro, da presidência da República. Numa
reafirmação de seus propósitos institucionalizadores, anunciados e repetidos desde 73, de seus objetivos de “aperfeiçoamentos
democrático” Geisel expressa agora que as “leis de exceção” podem ser substituídas por dispositivos constitucionais que
garantam os “princípios e idéias de 64”. Em outros termos: a ditadura julga possível e conveniente consolidar suas diretrizes
globais sob forma do estado de Direto. No que realizam velho e acalentado projeto e cujo enunciado já se encontra na
Geopolítica de Golbery do Couto e Silva, quando afirma que não é possível deter o poder para todo o sempre, sob a forma de
excepcionalidade. Institucionalizar os projetos de 64 foi, aliás, propósito tentado desde os tempos castelistas e não é casual que
Geisel, Golbery, Cordeiro de Farias etc., tenham pertencido a esta “equipe”.
Evidentemente, Estado de Direito e Democracia não se identificam ou confundem. Só os ingênuos e os superficiais
teimam em deixar para amanhã o exame de suas radicais diferenças, quando mesmo, o que não é freqüente, se dispõe a algum
exame.
Há que notar ainda que a fala presidencial pelo simples fato de ter-se dado, nos termos em que foi pronunciada, induz
à compreensão que a equação da nova fase de acumulação já se encontra esboçada. Que o “acento” entre as diferentes forças
econômicas que dominam o quadro brasileiro estão perto de um ponto de convergência. Sintoma altamente ponderável são os
indícios referentes ao programa Figueiredo. O ungido do Palácio do Planalto, que terá por “obrigação” a continuidade do
processo de “aperfeiçoamento democrático”, além de incorporar as “soluções” do capital estrangeiro para a indústria de bens
de produção, traz a novidade de se propor à modernização do campo, através também dos monopólios internacionais. O país
converter-se-ia no “celeiro do mundo”, exportador de alimentos, que no plano interno, a nível de uma dieta mínima, seriam
subsidiados. É no que consistirá a novidade no plano distributivista. Eis o novo perfil da ditadura, via institucionalização.
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É a plena continuidade do projeto global da ditadura. verdadeiramente um programa, hostil às massas populares e aos
interesses nacionais, mas um programa, que além do mais, obviamente não se ilude ou esgota com sua tática
institucionalizadora.
Tática, todavia, que funcionou para a oposição, a ponto desta, na sua alienação, chegar a um estágio em que manifesta
perplexidade “porque a ditadura ainda não caiu”, mas é incapaz de formular e propor um programa mínimo para o conjunto
de questões populares e nacionais da nação brasileira.

4
Em face a tudo isto, o que pode ser, e como pode-se dar o soerguimento da oposição, submersa no seu exclusivismo
institucionalista, ardil do situacionismo do qual ela não soube identificar ou enfrentar?
Em termos diretos, as questões que se põem, com máxima urgência, são a dos programas e a da frente.
Obviamente não se tratam de problemas novos, as experiências de década e meia de ditadura devem enriquecer as
formulações e deixar nítidas (mais nítidas) os passos táticos que até 1964 não estavam plenamente incorporados à consciência
das forças mais conseqüentes da oposição brasileira, evidenciando-se tais debilidades principalmente no campo prático.
Não é possível esgotar, neste trabalho, que já se mostra demasiado extenso, tais questões, do mesmo modo que não
pretendemos esgotar todas as questões anteriormente tratadas. Na mesma linha destas, preocupa-nos oferecer um esquema
para o debate dos oposicionistas, mais avançados e conseqüentes, daqueles que efetivamente se põem na perspectiva do
trabalho, especialmente do trabalhador brasileiro no quadro atual da história nacional.
Os impasses da infra-estrutura brasileira no momento atual, da perspectiva do trabalho, só podem ser enfrentados a
nível programático por uma dupla resolução básica:
1. derrotar toda e qualquer versão ou modalidade de um política econômica que tenha por fundamento o
superaviltamento e a superdepreciação do valor da forca do trabalho. Por outras palavras, opor-se firmamente às políticas do
achatamento salarial. Uma política deste tipo, no processo, correta, lúcida e firmemente conduzida, sem as precipitações dos
imediatismos, conduzirá à mobilização das vastas camadas trabalhadoras, das cidades e dos campos, à sua unificação pelas suas
mais prementes e legítimas aspirações; elevará seu nível de organização, seu grau de consciência sindical e política, e as fará
emergir como uma forca política e social de peso específico e de presença marcante no cenário econômico e político do país.
No prazo possível, uma forca dessa ordem tornará impossível políticas econômicas do tipo que subjaz ao milagre de
1968/1973, e que a ditadura pretende, sem margem para discussões, levar adiante. Geisel vem-se cansando em repetir que
patrocina o “aperfeiçoamento do regime político”, mas também que o modelo econômico é imutável. Seu discurso de 1° de
dezembro é mais do que transparente sob este aspecto. É óbvio que impedir, por completo, a possibilidade de tal política não
se dará de repente e por milagre. Mas já no encaminhamento desse objetivo as classes trabalhadoras irão obtendo certas
vantagens e criando progressivamente dificuldades concentradas para a sua vigência.
Este item programático, portanto, compreende tarefas a curto, médio e longo prazos.
2. A segunda resolução básica de um programa oposicionista da perspectiva do trabalho conduz à defesa e a luta por
uma correta participação do estado nas atividades econômicas do país.
No seu sentido geral trata-se de um aspecto da luta contra a desnacionalização da economia brasileira, mas também
conduz, no processo, a fazer com que tal intervenção venha a ganhar progressivamente funções de ordem social.
De imediato, estando em jogo o desenvolvimento da indústria de base, a luta deve encaminhar-se no sentido de que o
estado assuma, neste campo, papel decisivo, que a iniciativa privada nacional pode completar, mas onde o capital estrangeiro
não possa atuar. Neste campo, o imperialismo só pode acarretar deformações mais graves e profundas maiores ainda das que
introduziu no nosso processo de industrialização, levando-nos à constituição, basicamente, de uma indústria de “ponta”. Ao
pequeno e meio capital ficam assim reservadas a produção para o vasto mercado interno, particularmente a dos chamados
bens de consumo operários.
À política de flanquear o campo ao imperialismo deve ser oposta uma política que reponha na ordem do dia a questão
agrária, superando as generalidades do passado e fazendo das reivindicações trabalhistas sua arma e objetivo estratégico
central. O que não implica deixar de lado outras válidas e necessárias proposições.
Com isto, é óbvio, não desenhamos o programa completo para a oposição, mas simplesmente assinalamos seus
pontos fundamentais, o eixo central sobre o qual há de compor a sua perspectiva programática e orientar a sua ação na
conquista de uma existência democrática para o país.
Não está aqui esquecida, nem subestimada a questão institucional, que muitos erroneamente vem chamando de
questão democrática. A questão democrática, da perspectiva do trabalho, e mesmo do prisma de certo liberalismo menos
acanhado e superado, não é puramente entendida como a questão relativa às formas de governo, ou melhor, aos modos pelos
quais as classes dominantes exercem sua hegemonia. Destes pontos de vista a questão democrática não se esgota nos aparatos
institucionais do poder, não é pensada simplesmente como a democracia política, mas implica necessariamente a democracia
econômica, a democracia social, a democracia cultural etc., isto é, implica todas as especificidades que compõem a totalidade
da vida em sociedade.
Esta é verdadeiramente a questão democrática. dela estivemos, pois, falando ao longo de todo este trabalho.
E na medida em que ele é a base de nossas reflexões, a questão institucional ganha sua efetiva dimensão. Do que se
depreende que a luta por instituições políticas democráticas faz parte da luta mais ampla e concreta que é a luta pela
democracia no seu todo concreto.
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O que vigorosamente tem de ser evitado, particularmente da perspectiva do trabalho é restringir a luta pela
democracia à luta pelas instituições políticas democráticas. Por uma razão de fundo e por tática. Porque a democracia é, em
especial para os trabalhadores, muito mais que instituições políticas, e porque, particularmente sob formas ditatoriais como as
que vigoram no Brasil, e consideradas as condições e as características das nossas massas populares, a luta somente por
instituições não é suficientemente sensibilizadora e mobilizante. Não fere suas necessidades mais pungentes e imediatas. O
que não é simplesmente uma debilidade porque obriga, de imediato, a considerar e agir sobre as estruturas fundamentais da
sociedade nacional.
Tudo isto nos põe, agora, face a face com a questão vital da frente.
Grave e tradicional problema das forças do progresso em nosso país, ela nunca foi adequadamente sustentada no
plano teórico, e pior ainda conduzida no plano prático.
É problema para dissertar por todo um grosso volume. Aqui tão-somente aludiremos a alguns aspectos principais,
particularmente voltados para as nossas necessidades mais urgentes.
Dito sumariamente: entre nós, a frente tem sido concebida como uma prioridade ou um objetivo em si, e não como
uma imposição política decorrentemente tem sido uma concepção, onde desapareceram as contradições. O que ao limite é a
liquidação da própria frente, pois uma verdadeira frente ampla é a articulação de forças sociais distintas e contraditórias, que
assim se mantém, mas que convergem um programa dado, num histórico determinado.
A inclinação entre nós tem sido a de eliminar as contradições internas da frente, sob a alegação das necessidades de
uma unidade taticista. o que é um novo erro. O que não pode deixar de conduzir a posições reboquistas, diluentes dos
conteúdos, cujo dano maior é levar, ao contrário do pretendido, ao enfraquecimento da frente, verdadeiramente à sua diluição.
Face a que, em certos momentos, somos levados a soluções aventureiras, o que, é óbvio, é ainda outro erro que desestrutura
as ações unitárias concretas de uma frente efetivamente concebida e praticada.
Na medida em que se pratica uma concepção abstrata de frente, a despreocupação programática se impõe, e fica-se
reduzido a reivindicações formalistas, o que no limite é não mais pensar a frente como conjugação de forças sociais, mas de
simples indivíduos. A frente não mais articula forças sociais, mas soma indivíduos: inadvertidamente passa-se da idéia de
frente para o consenso liberal. E daí não há mais o que impeça que a visão taticista da frente, como simples política da
“esperteza”, do “envolvimento” e “manipulação” do aliado. Tudo em nome, é claro, de uma “astúcia” (vulgar, é evidente) que
toma a frente como aparência, e os encaminhamentos táticos como momentos autônomos da ação “política”. Tudo isso
traduz, é nítido, uma concepção de frente exclusivamente pela cúpula, onde “iludir” o aliado é toda a “glória” marota de
qualquer individualidade permeada pela ideologia pequeno burguesa, particularmente de nossos segmentos mais intelec-
tualizados.
Por razões facilmente determináveis a frente emedebista acabou por se configurar numa federação dessa ordem. Que
quanto mais cresce, mais vazia se mostra; que quanto parece avançar, menos sabe onde se dirige. Uma frente, da perspectiva
do trabalho, e que a história provou e aprovou em várias e distintas circunstâncias, é algo completamente diferente. dessa
perspectiva, a frente é concretamente uma articulação efetiva de concretos componentes sociais, articulada a partir das massas,
das quais a cúpula dirigente é articuladora, mobilizadora, mas sob cujas perspectivas históricas se põe.
Uma frente pelas massas, pode levar mais tempo para se estruturar, impõe inúmeras dificuldades, mas é a única que
confere solidez e dá consecução, ou pode dar consecução a um programa, que aliás é por ela exigido. Tudo porque escapa das
simples e pueris “astúcias”, lançando raízes no solo denso das necessidades populares.
Dado o atual quadro de nossa realidade, uma frente dessa ordem, a única real e conseqüente, tem por eixo a aliança
entre os trabalhadores urbanos e rurais, na luta por suas reivindicações trabalhistas e sociais que ferem na raiz a política
econômica da ditadura. vinca-se a este eixo fundamental a burguesia das pequenas e médias empresas que o capital
monopolista (nacional e estrangeiro) levam ao estrangulamento. A ela interessa o desenvolvimento do mercado interno,
particularmente de bens operários. juntam-se ainda à frente as camadas médias, particularmente as intelectualizadas, motivadas
em especial pelas reivindicações próprias à democracia cultural, e em geral pelas agruras materiais que o “desaquecimento”
tende a lhes bindar. este conjunto de categorias sociais brasileiras perfazem a maioridade de sua população. Uma análise mais
detalhada pode determinar ainda outras frações, numericamente menos importantes, mas não por isso desprezíveis. O que há
necessariamente a evitar é confundir a “mais ampla frente possível” com toda a população brasileira, pois é cair na diluição
abstrata de eliminar pela palavra os inimigos da democracia. Democracia que, assim posta, implica ser conquistada e
consolidada a partir das bases nacionais, da base econômica e da base de massas. Única via possível para as conquistas
democráticas no Brasil, pois só a elas interessa a concreta democracia em nosso país, só elas tem necessidade dela, como nossa
própria formação histórica demonstra.

Nota:
[1] F. Engels, Introdução à As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, de Karl Marx.
40

AS MAQUINAS PARAM, GERMINA A DEMOCRACIA!*

Em verdade, a História só surpreende aos que de História nada entendem.


Há os que a ignoram, e outros que a temem. Os que se recusam a compreende-la e os que estão socialmente
impedidos de fazê-lo.
Se os pormenores não são, de fato, previsíveis, dada a infinidade de fatores intervenientes, sempre conhecíveis de
modo apenas aproximado; se os contornos, pois, só ganham corpo na própria hora em que se efetivam os processos, do
mesmo modo que os eventos não são rigidamente programáveis, a nível dos dias e das horas; por outro lado, ao contrário
disto, as grandes linhas de tendência, a necessária ocorrência dos acontecimentos básicos são amplamente discerníveis,
divisáveis mesmo a longo prazo. Basta admitir a existência de uma ciência da História e que haja disposição social para
rigorosamente se submeter à sua lógica.
Tudo isso, obviamente, não é nada fácil. Contudo, no que consiste impulsionar os partos da História, se não, nos
fatos, intervir à luz da própria lógica destes? Que, no Brasil, a História retomaria seu curso era absolutamente certo. Por que,
então, tanta dúvida, receio, incompreensão e até mesmo certa perplexidade, quando a partir de maio de 78, assim como que de
repente, os trabalhadores, alteando a cabeça, reingressaram na cena sócio-econômico-política nacional? É que à História não
são estranhos os avanços e os retrocessos, nem dela são próprios os passos automáticos ou simplesmente em linha reta. E,
nos últimos quinze anos, estivemos submersos ao historicamente velho, que se reproduziu de forma veloz e ampliada, inchou
e se estendeu por toda parte. As vistas ficaram enevoadas, e a bruma que se formou tem dificultado a percepção da
reemergência do efetivamente novo, ao passo que não pouco galho seco tem sido tomado por ele. Confusões se
estabeleceram, inversões foram criadas, convicções insustentáveis se cristalizaram, debilitamentos de toda ordem se viram
efetivadas. E a tudo isso, agora, paga-se ônus pesado. Os descaminhos cobram seus tributos, quando a própria forca da
realidade se põe a resgatar e a levar adiante a construção do concreto e verdadeiro.
Impõe-se superar todo embotamento. A hora, na sua imperatividade, é mais do que propícia. Move-se
ascendentemente o que há de mais fundamental no quadro brasileiro. O que era latência, possibilidade, ganhou a carne viva do
imediato. Que não se perca esta maior de todas as oportunidades.
O que segue são algumas reflexões de um observador; circunstancialmente distante, para quem o Brasil de Figueiredo
- de mão estendida e empunhando rédea curta, sob medida talhada - é um cenário apenas palmilhado através das folhas de
jornal e das páginas de revistas. Donde faltará,talvez, o “cheiro” da vivência, a temperatura da pele diretamente apalpada. Mas,
se se persiste na ousadia de falar do não vivido, é que, sempre, o que mais importa é ir para além do tópico, e, sem desprezo
por este, agarrar o subjacente tecido estruturado, determinante real do fluir e encrespar das águas de superfície. Ademais, é
hora de contribuir, incondicionalmente, em busca da transparência.
Muitos estarão dispostos a concordar, com maior ou menor ênfase, que sejam importantes os sucessivos caudais
grevistas em curso há um ano. Também admitirão que certas coisas se alteram, no jogo das forcas, com o reaparecimento
público do movimento operário. De igual modo como não discordarão que o movimento oposicionista se veja fortalecido
pela adesão de mais um agente.
No entanto, bastará dizer, sacudindo gravemente a cabeça, que as greves são importantes, que sua presença modifica
determinadas situações e encaminhamentos, e que, com elas, amplia-se numericamente o contingente democrático? Ter-se-s
com semelhantes afirmações tocado no âmago das ocorrências? será suficiente falar alusiva e vagamente em importância,
modificação e ampliação das hostes democráticas, como se o movimento das massas trabalhadoras fosse, ao fim e ao cabo,
um mero e simples - mais um - aderindo, por fim e afinal, a um caudal anteriormente formado? Assim raciocinando não se
estará deixando escapar o que mais importa, o conteúdo principal: não se estará perdendo, a escorrer entre os dedos,
exatamente o advento de uma qualidade nova? E, assim, em conseqüência, relegando à obscuridade desdobramentos e decor-
rências políticas, anteriormente, em verdade, impossível? E Também não se estará deixando de devidamente interrogar o
como e o porque do advento? Vale enfatizar que da resposta que se der a estas questões depende o verdadeiro significativo
que se reconhece no ressurgimento do movimento operário, e substancialmente o que se poderá esperar dos passos futuros. E
tudo isso importa, por razões eminentemente práticas, acima de tudo e antes de a mais ninguém, às massas operárias e
trabalhadoras.
Quanto aos pormenores,talvez sejam possíveis tônicas diversas de interpretação. Maior ainda é a probabilidade de que
seja válido precisar uma infinidade de questões. E, sem dúvida, é de todo necessário identificar com rigor os aspectos
positivos, as vitórias conseguidas, e os momentos desfavoráveis, as derrotas sofridas e que não foi possível evitar; descobrir ah
os erros cometidos e superá-los nas próximas empreitadas. Tudo isso tem de ser feito, mas, sejam quais forem as respostas
que se venham a obter, algo essencial é líquido e certo, e deve mesmo, imprescindivelmente, orientar todos os planos das
análises subseqüentes. De maio de 78 a marco de 79, neste curto espaço de menos de um ano, o país reencontrou o fluir de
sua História, - na dinâmica de seu principal e decisivo fundamento para a democracia: a massa trabalhadora.

* Publicado originalmente na Revista Escrita/Ensaio nº 7. Escrita, São Paulo, 1980.


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Brotou em maio, é certo. Mas que não venham com o grosseiro equívoco de pensar em tardios rebentos de outono,
pois teve de germinar, como que hibernando, ao longo de catorze anos. E atrás de si, há que reconhecer, não domina o vácuo.
Ao inverso, há toda uma História que 64 interrompeu, mas que jamais poderia extinguir.
Hoje ela reemerge em novas circunstâncias e com atributos acrescidos, renovada e ampliada em suas forcas.
Objetivamente não recusa seu passado, supera-o. Aliás, por enquanto não pensa nisso, age. Reencontra o melhor de uma
tradição e a leva adiante com maiores possibilidades, se não a curto, com certeza a longo prazo.
E, se desse passado não tem maior ou mais exata notícia, não é culpa sua. Ademais, por que não recordar Também a
antiga observação de que “eles não sabem, mas o fazem?” Inquietos, surpreendidos,tapando os olhos teimosamente, ficam os
que Já por década e meia forcejam por “reinventar” o mundo, em lugar de transformá-lo. E aqui não falamos dos que
reprimiram e perseguem, dos que tolheram e aprisionam, dos que cassaram e demitem. Estes levaram e levam a cabo sua sina
histórica. Magoa e repugna, mas não pode espantar. Falamos dos outros, dos que desserviram sob o manto e a auréola dos
devotos, na ciência ou na inconsciência, e sua banda de música ainda soa e ressoa em todos os quadrantes, desejosa de apagar
com esponja de conceitos vesgos a completa e contraditória realidade de cerca de duas décadas.
Desejaram suprimir, ou pelo menos expurgar, os tempos de 45 a 64.
E, entre eles, até outros mais gulosos se apresentaram. Com o retorno da História sairão, gradativamente, de foco.
Mas, enquanto isso, não é permissível que a nova fase, em início, seja, como a outra, tergiversada. Motivo Também porque,
hoje, é preciso estabelecer e defender o fundamental com toda urgência.

DOS BRAÇOS CRUZADOS ÀS ASSEMBLÉIAS DE MASSAS

Antes de cruzarem os braços, em maio de 78, os trabalhadores vinham mantendo as m,os sempre muito ocupadas e a boca em
longo e contrariado silencio: não diziam de sua fome progressiva. Se a fome não era nova, e não era (e hoje, evidentemente,
nem de longe é coisa ultrapassada), é preciso compreender que havia atingido um ponto agravado, onde as premências da
necessidade dissolviam pela desesperança qualquer ilusão ou crença enganadora com que, durante anos, se acenara para
futuros “bolos” - gordos e impossíveis. Já não havia, fazia tempo, confeitos no horizonte. E, nas vitrinas de todos os
comentários, crescia a exibição do fracasso do “milagre econômico”. Extinguiam-se clima e motivo para mais esperas.
É preciso assumir, sem espaço para dúvidas ou lugar para especulações, em toda profundidade e conseqüências, o
exato diagnóstico de Luís Inácio da Silva: “A causa mais imediata da greve foi que o estômago do trabalhador estava colando.
Foi a verdade que tivemos coragem de dizer ao trabalhador e que poucos haviam dito antes. A greve aconteceu pela franqueza
com que essa palavra foi colocada dentro das fábricas” (A Greve na Voz dos Trabalhadores, História Imediata nº 2, Alfa-
Omega, p.56).
E Lula diz mais,sempre determinando as coisas com exatidão de fatos e propriedade analítica: “...a paralisação não se
constituiu em nenhuma surpresa. Ela estava sendo plantada há alguns anos. O auge foi a luta pela reposição dos 34% no final
de 1977”. O que equivale a dizer, como ele de fato o diz, que “...a classe não está dormindo, como nunca esteve nestes últimos
14 anos” (idem).
E este líder, hoje consagrado, o primeiro de toda História sindical brasileira a presidir assembléias de quase uma
centena de milhar de operários, confessando que antes das paralisações de maio “nunca tinha estado numa greve”, faz a
síntese, apontando o eixo essencial: “O arrocho salarial fez com que a classe trabalhadora brasileira, após muitos anos de
repressão, fizesse o que qualquer classe trabalhadora do mundo faria: negar sua forca de trabalho às empresas. Era a única
forma que os operários tinham de recuperar o padrão salarial, ou melhor, entrar no caminho de sua recuperação” (idem).
E qual a natureza de toda a movimentação? Mais uma vez as palavras do dirigente metalúrgico de São Bernardo
mostram uma visão realista e isenta de preconceitos politicista: “Eu acho que o econômico e o político são dois fatores que a
gente não pode desvincular um do outro. São duas coisas muito interligadas. Em conseqüência, acredito que o resultado da
greve foi político.
Seria mentiroso da minha parte dizer que o movimento foi de cunho econômico. da mesma forma que seria enganoso
da minha parte dizer que a classe trabalhadora vai fazer uma greve eminentemente política, sem nenhuma reivindicação. A luta
que aconteceu no ABC foi por salário, mas a classe operária, ao brigar por salário, teve um resultado político na sua
movimentação. Por isso, afirmo que a primeira lição da greve é que não pode subestimar a capacidade de luta do trabalhador
brasileiro” (idem).
Enfim, o que temos? Respondamos, resumida e lineamente, para que, na busca do como e do por que, sobressaiam
com ênfase devida os significados axiais. Na raiz da fome, - o arrocho, na raiz da greve, - a fome.
Direto e áspero. Tudo o mais, condicionantes suplementares; determinantes insuficientes se se trata de agarrar a razão
de fundo; fatores ativos, sim, apenas quando se pensa nos detalhes do perfil, no instante e no aroma, digamos assim, e não na
alma do que está a suceder.
Suceder que não surpreende - em maio o cruzar de braços, em marco as greves declaradas - e não surpreende por três
razões: primeira, - pela existência do arrocho e seus cruéis derivados em todos os planos, a preparar pela base o leito de uma
reação natural e específica; segunda, - é da lógica universal da forca de trabalho valer-se, mais cedo ou mais tarde, da arma da
greve; terceira, - a movimentação estava sendo “plantada, há alguns anos”, “a classe nunca esteve dormindo nos últimos 14”.
Diga-se de passagem que bastam estas últimas afirmações para pôr abaixo, num só golpe, as especulações sobre o
espontaneísmo, que alguns desejam fazer dominante, na apreciação de todo o panorama.
Tornando ao conjunto das evidencias que, acima, vinham sendo arroladas, vale grifar que bastava alguma
sensibilidade, e ter por suposto a universalidade da lógica, mais atrás referida, buscando determinar a forma particular pela
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qual ela se manifestaria,para saber de todas essas coisas. Em outras palavras, era suficiente não pretender “reinventar” o
mundo pela sua politicização, isto é, equivocadamente tomar a totalidade social pela parte de seu aparato político-
institucional.
Por fim e ao cabo, mobilizadas pelas suas necessidades matérias básicas, as massas desencadearam uma atuação que,
logo à saída, derrubou dispositivos jurídicos, na letra até hoje vigente, configurando, de sua parte, inequívoca intervenção
política no quadro nacional. A respeito, diria Lula, ainda em 1978, no mesmo depoimento que Já citamos outras vezes: “Hoje
nós entendemos que o trabalhador aprendeu que greve não é uma coisa proibida de se fazer. A greve pode ser cerceada por
uma lei injusta, mas a paralisação deve ser feita,mesmo que exista essa lei que a impeça.
Com a condição de que ela seja feita quando for necessária e sempre dentro das possibilidade de vencê-la” (idem,
p.58).
Por que as greves eram necessárias, cremos que Já está visto.
A questão, agora, é saber por que, em torno de uma certa época, elas passam a ser viáveis e a estar dentro das
possibilidades de serem vitoriosas.
Neste renascer do movimento operário brasileiro - de maio de 78 a marco de 79 - não pode haver dúvida que a
primeira e grande vitória foi a própria realização das greves. De cada uma delas, em que pesem diferenças de conquistas e
diversidades de condução e encaminhamento. diferenças, de fato, relevantes, que devem ser ponderadas; e diversidades, em
verdade, efetivas, que não podem ser esquecidas. Contudo, nada deve empanar o principal: as greves das massas trabalhadoras
reencetaram o curso histórico no país.
Que quadro tornou isso possível? Retomemos a verdade essencial: o chão da greve é a fome e o chão da fome é o
arrocho.
E qual é a raiz do arrocho salarial? Evidentemente não é outra do que a própria plataforma econômica do regime
implantado em 64, e que recebeu a indecorosa designação propagandística de “milagre econômico brasileiro”. Tabu durante
quase quinze anos, ainda hoje, quando alguns Já reclamam sua discussão, se bem que com imenso atraso, não está sendo
examinado e denunciado como é vital e decisivo que o seja.
Cabe naturalmente aos economistas o destrinchamento em detalhe de todos os esquemas e mecanismos específicos
que foram armados e postos em funcionamento ao longo de todo esse tempo.
Convém ressaltar, apenas como quem lembra uma antiga e sabida lição, que semelhante análise, para alcançar a
objetividade, terá que perfilar pela perspectiva do trabalho e alcançar a concludência política.
Contudo, na falta de um arsenal analítico dessa ordem, em que se pesem algumas contribuições, e para efeito deste
comentário, basta-nos avançar alguns traços muito simples, ainda que fundamentais, assim como quem oferece um esquema
para posteriores e múltiplos enriquecimentos.
Dissemos, às primeiras linhas, que na última década e meia estivemos submersos ao historicamente velho, que este
inchou, reproduzindo-se de forma veloz e ampliada. Outros, talvez, ainda prefiram dizer que, de 64 a nossos dias, o
capitalismo no Brasil sofreu um processo de ampliação, aprofundamento e modernização.
Não cremos que esta caracterização aponte para o essencial, pois não se trata de uma ampliação, de um
aprofundamento ou de uma modernização qualquer. Em outros termos, é insuficiente brandir com as generalidades próprias
ao capitalismo. É preciso pôr o dedo sobre a chaga viva do processo específico, que não nega verdades universais, mas que
também não as repete com o monotonia formal de um silogismo.
É verdade que a economia brasileira cresceu; hoje o país é verdadeiramente um “gigante”, mas um “gigante” na
ordem dos países subordinados ao capital estrangeiro. E, como já disse alguém, a existência e o funcionamento deste último
possui um nome, e este tem de ser dito: chama-se imperialismo. Denotação que não é grata a uns tantos, que andaram a
“reinventar” o mundo, mas que não por isso deixou de ser verdadeira, existente e atuante.
E o crescimento da economia brasileira deu-se rigorosamente, ainda que “modernizadamente”, dentro de um quadro
dessa ordem.
Razão porque, quanto não única, dissemos que o historicamente velho inchou, reproduzindo-se de forma veloz e
ampliada. Outros dos traços velhos estão na fraqueza de sua burguesia local, na questão da propriedade de terra e nas formas
da produção agrária, bem como nas formas autocráticas e ditatoriais do exercício do poder de estado.
Mas, sejamos breves, dado ser o propósito central manter a reflexão sobre o historicamente novo: a retomada da
dinâmica de luta das massas operárias e trabalhadoras. Todavia, para falar do recente ressurgimento do novo é preciso
rapidamente pincelar a inchação ocorrida com o historicamente velho.
Importa suscitamente considerar dois aspectos: o esquema essencial do “milagre” e o seu fracasso, colapso ou
esgotamento.
A política econômica do sistema no poder consiste, grosso modo, numa forma de acumulação capitalista subordinada
ao capital estrangeiro, em que a produção é direcionada para dois pólos principais. De um lado, intensifica-se a produção dos
bens de consumo duráveis (automóveis, eletro-eletrônicos e correlatos); para seu consumo é estruturado, internamente, um
mercado privilegiado e reduzido. É o pacto com o segmento alto das camadas médias. Paralela e combinadamente, é
desencadeado um esforço exportador.
Para que tal mecânica funcione, nas condições de um país subordinado ao capital estrangeiro, são necessários o
concurso dos dinheiros internacionais e a aplicação do arrocho salarial sobre a grande massa dos trabalhadores. O primeiro
aparece sob a forma de investimentos diretos e muito especialmente de empréstimos. O arrocho preserva a existência da mão-
de-obra barata e faculta a produção de bens, ditos competitivos, para o mercado internacional.
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É da lógica do sistema remunerar especialmente o capital financeiro internacional, seus parceiros nacionais e reservar
uma parcela para um segmento privilegiado das camadas médias; bem como obrigatoriamente implica também na depressão
salarial da massa trabalhadora.
Numa palavra, a organização dada à produção nacional é que determina a avassalante desigualdade na distribuição de
riquezas.
Em outros termos, a forma atual da produção da riqueza é que causa diretamente a super-exploração do trabalho, isto
é, a miséria das massas trabalhadoras. Sendo a estrutura econômica vigente a responsável direta pelo arrocho, é impossível
melhorar a distribuição sem reorganizar a produção. Não se trata, portanto, de “acrescentar” à organização atual da produção
uma política de distribuição melhor e mais justa, esta só se torna possível com a modificação efetiva da própria estrutura
produtiva.
Assim como é, articulada em todas as suas partes, a engrenagem econômica em vigor funcionou e realizou um
período de acumulação capitalista. É propriamente a época do “milagre”. Os setores dominantes, nacionais e estrangeiros,
realizam seus lucros, matem-se politicamente unidos e consideram as formas ditatoriais da gestão do estado como uma
solução muito adequada, “naturalmente” ajustada às necessidades “gerais” do país. É a “euforia” do Brasil-Grande, ao longo
dos anos de 1969 e 1973. A grande massa não participa do “milagre”, nem, é claro, da euforia.
Reduzida ao silencio pela repressão, vai acumulando sua miséria.
Mas o “milagre” obedece a uma lógica perversa.
Os mesmos mecanismos que asseguram seus “êxitos” condicionam e conduzem à sua derrocada. Dito de outro
modo: a lógica do “milagre” acaba por fazer com que ele próprio morda sua cauda e termine por se autodevorar. No mesmo
passo em que seus objetivos parecem ir se realizando, vai se constituindo o quadro em que ele se vê convertido num
estrangulamento ostensivo. E, assim, põe-se a nu, explicitando seu raquitismo congênito. Seu colapso não é apenas um fim ou
esgotamento, mas uma reversão de conseqüências que devora ampliadamente seus “anos alegres”, além de ser a comprovação
daquilo que, desde o princípio, era evidente: sua total impossibilidade de ser uma real e legitima solução para a organização da
vida econômica nacional.
Basta dizer, muito reduzidamente, que, centrando a produção nos bens de consumo duráveis e nos produtos para
exportação, teve, por isso mesmo, que ir ampliando galopantemente o volume das importações de bens de produção e
insumos básicos, quando seu objetivo pretendido era, ao inverso, encontrar a solução nas exportações. Isto é, quanto mais
produzia para a privilegiada faixa do mercado interno e exportava subsidiadamente, tanto mais era obrigado a ampliar as
importações. De forma que a balança comercial, não considerando abstratamente momentos isolados, mostrou-se
cronicamente deficitária. Progressivamente, como conseqüência, foi se avolumando a dívida externa, passando esta a ser,
crescentemente, nova e decisiva fonte de renovados empréstimos, na medida que amortizações e serviços da dívida vão, ano
após ano, levando inexoravelmente ao sufocamento. Hoje, e já desde alguns anos, o único “milagre” é uma dívida externa
bruta que até o final de 78 esteve em torno dos 42 bilhões de dólares.
Dívida externa que, só durante o ano de 79, entre juros e amortizações exigirá do país cerca de 11 bilhões de dólares.
E o país, no mesmo período, não obterá mais do que aproximadamente 14 bilhões de dólares com suas exportações, e terá
que despender só com a compra de petróleo algo em torno de 5,5 bilhões de dólares, com a importação de alimentos quase 2
bilhões de dólares, outros 5 bilhões com máquinas, equipamentos e insumos, e mais de 2 bilhões com produtos químicos e
farmacêuticos.
Tais contradições estão inscritas na própria política econômica do sistema, de tal forma que fatalmente ela teria que
chegar ao impasse. Ela própria, como é mais do que transparente, conduz inexoravelmente ao estrangulamento. A crise do
petróleo, tantas vezes invocada, bode expiatório do governo, nada mais fez do que precipitar a inevitável implosão do
“milagre”; não foi, nem é, sua causa.
E tudo se deu como na antiga história do aprendiz de feiticeiro.
A política econômica do sistema, implantada depois de 64, foi proposta como de saneamento das finanças e da
retomada do desenvolvimento nacional. Sanear seria liquidar com a inflação e esta ultrapassou em 78, e de muito, os 40%. E
nestes primeiros meses de 79 os índices vão explodindo de mês a mês, registrando marco uma taxa de quase 6%. A retomada
do desenvolvimento implicava na busca de auto-suficiência a nível dos insumos básicos e no avanço da produção dos bens de
capital; uma palavra, na redução da dependência externa. Hoje vamos rapidamente acumulando uma dívida externa que em
breve ultrapassará os 45 bilhões de dólares (em 64 a dívida externa era de 3,1 bilhões), as importações de maquinaria só
fizeram crescer, o setor nacional respectivo não viveu anos tranqüilos e está na expectativa de um refluxo, e o país é
prisioneiro do mercado financeiro internacional, tendo sido convertido em arena da disputa monopolista.
Vitima de suas próprias engrenagens, o “milagre” vem se desintegrando visivelmente desde o segundo semestre de 73.
Efetivamente todo o governo Geisel foi transpassado pela crise do “milagre”.
A primeira reação do governo passado, para efeito público, foi sustentar a ficção da “ilha de paz e prosperidade num
mundo em caos”, enquanto procurava alcançar certos redirecionamentos com o II PND, no que não logrou êxito. Na
segunda metade do governo as evidencias do colapso são claras e impositivas; será então desdobrada a política do
“desaquecimento econômico”. O “milagre” já entrara francamente na etapa autofágica, e o “desaquecimento” nada mais é do
que a tentativa de estancar a hemorragia em que se transformara o “milagre”. Pois, agora, num aparente paradoxo, colhem-se
situações financeiras cada vez mais dramáticas, tanto mais funcione a engrenagem do “milagre”. O “ideal” passa a ser o
crescimento “moderado”; o governo quer o PNB elevando-se as taxas reduzidas, passa a ter pavor dos altos índices do
período anterior. Mas as forcas econômica desencadeadas mostram-se rebeldes. O “desaquecimento” não interessa, nem
agrada a ninguém. Os fantasmas da insolvência, da recessão, do desemprego e outros mais rondam e envolvem a tudo. Os
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beneficiários do “milagre” insistem na continuação dos privilégios. A insatisfação das diversas áreas econômicas vai
aparecendo. Ninguém quer pagar o ônus do desastre. A unanimidade dos setores articulados no pacto do poder desaparece.
As diversas frações da classe dominante estão inquietas. A situação de desencontro e inconformismo dos parceiros
que dividem o poder, sua necessidade de reencontrar uma fórmula para um novo período de acumulação, que atendesse e, na
medida do possível, reconciliasse seus interesses, vai gerando - e a obrigando o poder a aceitar e suportar - o surgimento de
um debate, crescentemente público, que, por fim, não teve como ser escondido aos olhos de toda a nação, particularmente das
vastas e temidas massas operárias trabalhadoras, às quais, obviamente, o sistema pretendia manter à máxima distância dos
grandes problemas em curso.
De sorte que, ao “milagre” dilacerar a si mesmo, geraram-se inevitavelmente pugnas e discussões intestinas aos setores
do capital, sofrendo o tecido social como que a dilatação de seu colo uterino. Pelos interstícios formados, as massas
trabalhadoras, especialmente os operários dos grandes centros industriais, não deixando escapar a oportunidade, fizeram
nascer a evidencia pública de sua fome. Fizeram o movimento operário voltar ao cenário brasileiro, buscando retomar seu
decisivo lugar específico.
Já a movimentação de fins de 77, pela reposição salarial, mostrava uma espessura distinta da fase anterior, que fora
marcada por lutas esparsas e isoladas mas empresas, verdadeiramente ensaios de resistência e de acumulação mínima de forcas.
Dava-se em 77 o ensaio geral para a grande estréia de maio de 78, espetáculo que viria a culminar nas grandes jornadas de
marco.
E se, por um momento, os líderes do ABCD foram alijados dos seus cargos, as massas trabalhadoras, através dos
braços cruzados e das assembléias multitudinárias, reintegraram o fluxo ascendente da história à vida brasileira.

DAS ASSEMBLÉIAS DE MASSAS AO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO DE MASSAS

Durante os dias da greve de marco, afixado à entrada do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, havia um
poema. A polícia, no dia da intervenção, o arrancou, tal como arrancado à entidade foi seu legítimo presidente. Permaneceu o
líder e permaneceram os versos, tal como a verdade básica que traduzem.

Anote senhor secretário


E peça pro escrivão
Remeta ao juiz de plantão
E diga ao encarregado
Da sindicância que investiga
Que a causa desta paragem
É a nossa barriga vazia.

E, aqui, fica registrada a confissão do poeta metalúrgico para que ilumine, ainda uma vez e sem sombra para dúvidas, a origem
de toda a retomada do fluxo histórico a que se assiste. Retomada que só poderia se dar, como de fato apenas se deu, através da
presença e da ação das massas operárias e trabalhadoras em geral.
Toda esta questão da retomada histórica obriga, hoje, a atentar e compreender dois aspectos fundamentais: o sentido
das jornadas de marco, o ponto do andamento histórico que alcançaram e representam, e a direção do desdobramento que
implicam. Numa palavra: o que são e para onde se dirigem. Talvez, mais precisamente: no que estão se constituindo e para
onde concretamente tendem.
Tal como os braços cruzados de maio, as greves declaradas de marco dão-se no bojo da crise do “milagre”, e tem por
raiz insofismável e explícita a objetiva e declarada miséria das massas trabalhadoras.
Se se insiste nesta determinação de fundo, quanto à gênese da reemergência do movimento operário, não é porque se
deseja ficar cego a outros “fatores”, secundários embora presentes na malha, mas porque qualquer outra explicação, que não
reconheça naquela a razão decisiva e de base, é simplesmente artificiosa, viciada ainda que por santas intenções, e que, por
nublar e desordenar o processo real, incapacita para a extração das efetivas e mais férteis e vigorosas conseqüências políticas
que o processo contém com riqueza singular.
Não haverá, então, diferença entre as ocorrências de maio e as paragens de marco? Basta assinalar que, de uma a
outra, assiste-se a um itinerário que vai da reemergência à afirmação do movimento operário. Do cauteloso tatear de maio de
78 - percurso exploratório, quase feito a medo a onde toda prudência é imperativa, e que sob modos especiais vazou a crosta
repressiva de quase década e meia - em menos de um ano, as massas trabalhadoras reencontram as formas próprias e
consagradas da atuação sindical. As greves são declaradas, explicitamente assumidas, e, em certa medida, preparadas; o
sindicato reassume seu papel, os piquetes voltam à existência, o enraizamento do movimento no interior das empresas se
aprofunda, e as assembléias sindicais, à luz do dia e das praças, transformam-se, como nunca dantes, em caudais de massas. A
luta dos trabalhadores vai para as ruas, domina os jornais e ocupa todas as consciências; faz renascer a esperança de milhões,
intimida e exaspera minorias raivosas, intranqüiliza e leva à perplexidade os acomodados de todos os tipos. E, numa
coincidência sintomática, é a única “saudação” de massas ao novo presidente. É a pujança do novo, na fragilidade daquilo que
apenas está reemergindo, face da senilidade retocada, que ainda ostenta a energia real, porém balofa dos inchaços. Diga-se de
passagem, no entanto, que apontar esta fragilidade essencial do historicamente velho, hoje abalado econômico-politicamente,
não representa desconhecer sua possibilidade contingencial e de fundo de tornar a crescer e a se expandir.
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Indicado que de maio a marco, da reemergência à afirmação, efetiva-se um processo alargador e de espessamento, e
preciso destacar, como determinação fundamental, que, tomado no seu conjunto, este período de cerca de um ano, em
contraste com toda fase anterior, consubstancia um salto qualitativo: - o da passagem da fase de resistência democrática, que
caracteriza todo o período anterior a maio de 78, para a do movimento DEMOCRÁTICO de massas propriamente dito.
Quando o ressurgimento das lutas operárias atingem a afirmação, nas jornadas dos últimos meses, temos a emergência, de
fato, de um movimento DEMOCRÁTICO de massas, diante do qual todas as ocorrências e manifestações oposicionistas
anteriores se vêem convenientemente dimensionadas, em seus caminhos e descaminhos, em seus momentos de maior ou
menor propriedade e acerto, ao serem entendidas como tendo pertencido a um longo e esgarçado período que não
transcendeu à pura resistência democrática. De modo que vem se explicitando no próprio real que o eixo sobre o qual se
desenvolverá e consolidará o movimento DEMOCRÁTICO de massas depende da ampliação e da consolidação do
movimento operário, para o direcionamento do qual irão progressivamente tendendo e afluindo os dos demais trabalhadores e
assalariados, como, ademais, já vem ocorrendo com notável expressão. Outra coisa não são as manifestações grevistas
verificadas em inúmeras categorias profissionais, até mesmo entre aquelas que, embebidas em fantasias e pundonores de
classe, tem sido costumeiramente avessas e arredias às ações dessa ordem. E tudo se passa como no dizer saboroso de uma
amiga, conhecida cientista social, em carta recente, que calca o dedo sobre a chaga com forca de precisa determinação: “Parece
que o pânico de status, tão característico de professores, é solúvel em fome”.
Novamente cabe a pergunta: como foi possível que um quadro dessa ordem se instaurasse, abrindo perspectivas tão
alargadas? Mesmo que ainda se trate de referir a crise do “milagre” como verdade fundante da nova situação (fato este, aliás,
que diluições analíticas, especialmente a distorção de querer “reinventar” o mundo, tem impedido de ser devidamente
reconhecido, ainda que isto seja, a esta altura, pasmoso e aberrante, é imprescindível não perder de vista que a própria falência
do “milagre” é uma processo, constituído, portanto, de momentos e densidades específicas que continuadamente vão
engendrando a peculiaridade de sua problemática. Assim, atualmente, já não basta reconhecer e apontar o esgotamento da
política econômica da ditadura, mas é preciso ainda compreender que o pacto no poder, até agora, não conseguiu encontrar
uma resolução para o problema dentro do ótica que há década e meia sustenta e pela qual continua a se empenhar de maneira
radical. Em outros termos, não só a crise do “milagre” prossegue e se agudiza, como é visível que o novo governo não trouxe
consigo, nem conseguiu equacionar nestes seus dois primeiros meses de poder, uma fórmula que abra, igualitariamente para os
parceiros que o compõem, um novo ciclo de acumulação.
Como ungido e candidato, J. B. Figueiredo sintetizou uma diretriz econômica sumária e puntiforme que barrou outras
pretensões. Isto é, aglutinou e prevaleceu, somando um conjunto de setores, deixando, desde logo, outros à margem. É
suficiente lembrar as decapitações militares que se processaram, e nenhuma ingenuidade analítica pode reduzi-las a simples
disputas e intrigas palacianas. De modo que, à época, a proposta, alinhada em torno de pouquíssimos itens (desenvolvimento
agrícola, desestatização, “irresolução” quanto ao setor nacional de máquinas e equipamentos, o que significa resolução pela via
externa) reuniu as “esperanças possíveis” de um contingente significativo dos setores do capital, que lhe entreabriu um crédito
de confiança.
Contudo, desde o princípio, parceiros outros dos idos do “milagre” se viram ameaçados, quando não alijados, pois
uma equação unitária que contemplasse a todos, na nova fase de desenvolvimento pretendida, se mostrou impossível de ser
encontrada nas novas condições.
Suficiente para permitir a unção e levar ao poder, em meio às ásperas disputas que prosseguiam, a plataforma
tracejada, no entanto, precisava (e precisa) ir sendo convertida num programa econômico completo e concreto de governo.
Isto, todavia, até hoje não foi alcançado. há mais de ano que os que depositaram confiança aguardam e buscam a materia-
lização dos projetos globais; esperam e pressionam pelas iniciativas implemantadoras e pelas esquematizações e opções
diretoras; permanecem na expectativa e reclamam pelos resultados do combate à inflação: pressupostos todos estes para o
desencadeamento de uma nova fase de crescimento que almeja e na qual reside seu interesse e empenho decisivos. A
irresolução da crise, no entanto, prossegue, e o equacionamento real da plataforma econômica não avança mais do que
fragmentária, lenta e debilmente.
Mais do que isso, diante da acentuação do quadro inflacionário, o novo governo, de promessa e instrumento de um
novo ciclo de acumulação, baixa à condição de bombeiro; posterga para além de 79 as passadas iniciais da prometida cavalgada
econômica e declara prioritário “apagar os incêndios”. Assim, em dois meses, o governo, descendendo por um plano
inclinado, passa rapidamente da promessa de retomada do crescimento para a mera prática da extinção de incêndios,
brandindo “baixas de charutos” e, em seguida, ameaçando com os esquifes da recessão, fazendo lembrar as “velhas proezas”
do ano de 1965. E vozes mais serenas e ponderadas já deixam indicado que um novo ciclo de desenvolvimento só é pensável
num prazo de dois a quatro anos.
E tudo sem ter sido dada a menor prova ou demonstração de que a plataforma sumária de unção e candidatura seja,
de fato, exeqüível. Aos primeiros passos da implementação desta afloram as dúvidas e contradições. A pretensão do governo
de que a agricultura moderna responda pela oferta de alimentos implica, de imediato, na lembrança de que em face dela o
pequeno produtor estará diante de um grande concorrente, e que, assim, só vão aumentar as disparidades de renda, de modo
que aquele só será atingido negativamente se o problema fundiário não for (como ninguém poderá pensar que será) a base da
política de projeto.
Ademais, como financiar o desenvolvimento agrícola pretendido? A equação delfiniana pelo PIS/PASEP levanta
enormes inquietações, o protesto da ABDIB e Eduardo Escorel, diretor do grupo Bardella, temendo o corte de verbas para a
indústria de bens de produção, que provem da mesma fonte, é mais do que explícito: “se cortarem os recursos do PIS/PASEP
é melhor vender a indústria nacional”.
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Alguém poderá garantir que tal “solução” repugne ao sistema no poder? E não vale a mesma pergunta para a questão
da propriedade da terra, quando é proposta a agricultura como pólo dinâmico da economia? Quem, neste governo, poderia ser
o avalista de que não estamos diante de uma investida desnacionalizadora? Não com certeza, por exemplo, César Cals,
ministro das Minas e Energia, principal fonte que é da sustentação da privatização, que assinala que “o capital estrangeiro
deverá participar só naqueles espaços que o capital nacional não se interessar em ocupar”, e isto sem lembrar, nem de
passagem, que certos espaços podem não “interessar” ao capital nacional, mas seus destinos, com certeza, interessarão sempre
às maiorias, mesmo porque a privatização é que não tem interesse nenhum para os vastos contingentes de massa.
De tudo isto resulta uma clara evidencia: permanecem, no seio dos setores do capital, e de modo agudo, as disputas e
os combates pelas posições e pelas vantagens, táticas e estratégicas, e que transparecem mesmo a nível ministerial. Assim, pois,
a dilatação uterina do tecido social, iniciada com o dilaceramento do “milagre”, prossegue, portanto, e ainda mais se amplia na
medida em que a plataforma econômica puntiforme não consegue ser convertida num corpo programático, articulado e
resolutivo. Tudo parece se passar como se já não houvesse mais solução de conjunto para os parceiros do capital.
Paulatinamente, como é natural num quadro de desencontros desta ordem, dá-se uma redução no teor e no índice
bonapartista do poder, caráter que o transpassou desde as origens e que foi sustentado, em outros tempos e condições, com a
máxima violência, e até mesmo com as formas mais abomináveis da repressão aniquiladora. Então, pelos poros do tecido
social esgarçado, os movimentos dos trabalhadores emergiram e, na proporção direta do crescente alargamento, se
avolumaram, passando o movimento de massas, assim formado, a ser, na seqüência, o próprio pólo dinâmico do
prosseguimento da dilatação. Este o momento em que se encontra o quadro brasileiro.
Duas são, pois, os componentes fundamentais que determinam a dilatação que o contexto nacional atualmente
apresenta.
Componentes não apenas diversas, mas opostas em sua natureza. A primeira, resultante da autofagia do “milagre”,
caracteriza-se pelo desencontro entre os setores do capital; a segunda, determinada na raiz pela fome, tem por caráter o
encontro de todos os setores do trabalho. A primeira, portanto, é centrífuga, tendendo ao fracionamento, enquanto a segunda
é centrípeta, induzindo à aglutinação unificadora.
É nos parâmetros dessa distinção que se captam, em profundidade, os significados das jornadas dos últimos meses,
bem como se perspectivam os desdobramentos possíveis.
Como já foi dito, tudo que antecede, no universo oposicionista, ao período de maio de 78 a marco de 79, - marcos da
reemergência e afirmação do movimento operário -, constitui a longa e dolorosa fase de tentativas, embates, encontros e
desencontros da resistência democrática; sendo com as greves que realmente vem a se instaurar um efetivo e verdadeiro
movimento democrático. Dado que vem à tona um caudal de massas - designadamente massas trabalhadoras, nucleadas pelo
movimento operário, que ferem centralmente a questão brasileira. Mudam, assim, pela sua presença, por aquilo que são e
representam, e pelas questões que de imediato põem vigorosamente na ordem do dia, a qualidade das lutas políticas em
marcha. só uma visão politicista, com sua concepção simplesmente cumulativa dos processos e sua incompreensão positivóide
das progressões, é que não será capaz de perceber que as fundamentais ocorrências do último ano ultrapassam, e de muito, a
esfera do puro, ainda que reconhecidamente relevante, crescimento do exército oposicionista.
O politicismo, cego para a raiz da especificidade do verdadeiramente político e, por isto, reduzido e embaraçado pelo
taticismo, desconhece o fenômeno das rupturas de superação e dos saltos de qualidade.
As jornadas de marco e seus desdobramentos sintetizam, pois explicitaram e ilustraram melhor do que nada,
significados e circunstâncias qualitativamente diversificados da atualidade brasileira.
Em marco a parcela mais combativa e avançada do movimento operário sentiu forcas e coragem para uma passada
ousada e de larga extensão. O governo reuniu, com certo custo e lentidão, as energias de que dispõe e ripostou com
intensidade. Do confronto, da medição de forcas das resultantes afinal verificadas emergiram elementos de vivências que estão
a credenciar, na guerra em curso, um dos lados para a vitória, enquanto simultaneamente vão descredenciando precisamente o
que tem sido o vencedor contumaz dos últimos quinze anos. Isto, é preciso frisar, ocorre pela primeira vez neste longo
período. E fala-se, que se note bem, da guerra em curso, e não das inúmeras batalhas de que ela será constituída. Além disso,
se tal coisa não é, nas tendências gerais da história nenhuma novidade, é preciso ressaltar que o juízo está sendo feito a partir e
sobre a concretude do momento. E, irrecusavelmente, esta é a primeira vez, em década e meia, que a análise de realidade pode
divisar, nas águas brasileiras, tal potencialidade objetiva para as massas trabalhadoras.
Mas, se houve coragem e forca, e nos veios do real é palpável a latência da vitória horizonte que se põe ao fim e ao
cabo do que há de ser um árduo processo de inúmeros passos, que apenas está iniciado, isto não significa que as lutas até aqui
travadas pelo proletariado forjado pelo arrocho não tenham apresentado debilidades. Sem dúvida, ao lado dos extraordinários
e dominantes aspectos positivos que evidenciaram, coexistiram negatividades e fraquezas que caracterizam um processo
emergente.
Ao lado da admirável sensibilidade, compreensão e capacidade de liderança demonstrada quanto às necessidades e
disposição de luta dos trabalhadores, manifestou-se, ao limite, certa dose de incompreensão do quadro político atual, bem
como o desconhecimento das exigências de preparação e constituição dos dispositivos sociais de atuação que permitem
avançar para embates de níveis mais amplos e agudos.
O movimento revelou, por parte da liderança, íntimo conhecimento das massas, sabendo, ademais, reconhecer, no
momento exato, que ainda não sabia tudo sobre os caudais que conduzia.
Descobriu, no processo, as debilidades atuais destas, retomando e retocando as formas de liderança.
Quanto à avaliação do momento em processo, viu-se surpreendido por resistências que não calculara, revelando
limitações de entendimento, que indicam que não possuía plena consciência de que já estava se movendo francamente num
plano político decisivo e delicado, quando supunha que mal feria a franja deste.
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É preciso também referir que o movimento, à partida, não teve a percepção de que o fazia já em condições
limitadoras, pois avançava sem contar com possibilidades maiores de ver, nem mesmo setorialmente, o processo se ampliar e
generalizar, precisamente o que mais demandava. O que indica que ainda é frágil, o que não estranha dada a falta de
experiência, a concepção e o domínio que o movimento possui dos processos e mecanismos de desdobramentos das lutas de
massas.
Em síntese, no que tange às negatividades e fraquezas da emergência, manifestou-se a temeridade de avançar quando
propriamente não havia condições imediatas de ganhar espaços, ficando exposto, assim, aos riscos do isolamento e de
eventuais decapitações e perdas de entidades, pondo, desse modo, em perigo o andamento da acumulação de forcas;
revelando, conseqüentemente, falta de domínio dos processos de encaminhamentos das lutas de massas, e nutrindo a ilusão de
que, mesmo sem a devida equipagem, poria no chão a política econômica vigente. Aliás, sua debilidade maior foi precisamente
não ter efetiva consciência de que já neste plano político que se punha, de imediato, a batalhar.
Diante disto, ainda maiores são os méritos e significados das vitórias alcançadas. De maio a maio, num balanço de
doze meses, é absolutamente insuficiente dizer que o resultado é franca, global e brilhantemente favorável às massas
trabalhadoras, pois se trata de assinalar, acima e para além de tudo, reiteradamente, que tais sucessos são a própria retomada
do fluxo histórico brasileiro, no que tem de essencial e ascendente, e que isto se dá pelo único modo através do qual, no caso
concreto, era possível: - pela natureza e dinâmica própria das massas operárias e trabalhadoras, fundamento decisivo para a
constituição de uma democracia real no país.
O panorama dos acontecimentos não diz outra coisa. Basta atentar para o montante crescente nas paragens, para a
progressão de suas formas de objetivação e para a riqueza de seus conteúdos, assumidos, a cada vez, mais energicamente.
Principiaram em maio do ano passado e prosseguiram vigorosamente durante os meses de junho e julho, tornando a
movimentar os meses finais de 78. De maio a agosto envolveram aproximadamente cerca de 300 mil operários, alcançando
três centenas de empresas pertencentes aos principais setores econômicos dos mais importantes centros industriais de São
Paulo.
Os aumentos reais obtidos, quebrando a rigidez da política salarial do regime, beneficiaram mais de um milhão de
trabalhadores em todo o Estado.
O proletariado forjado pelo arrocho, de porte aproximadamente três vezes maior do que em 1965, viu-se
movimentado especialmente pelos metalúrgicos, pelos químicos, gráficos, têxteis, pelos trabalhadores das indústrias de
alimentos e outros numerosos setores. As massas trabalhadoras puseram-se em ação também através de um imenso
contingente de funcionários e empregados, bem como intensamente por meio dos, assim chamados, setores médios, em vagas
sucessivas e persistentes que bem, indicam a caráter de suas novas condições de trabalho, francamente enquadradas, desde há
algum tempo, nos contornos de proletarização.
E para não ir adiante com esta dispensável ciranda de números e dados, visto que os acontecimentos estão em pleno
fluxo, diante dos olhos de todos, basta mencionar, por fim, que, apenas nos primeiros 53 dias do atual governo, 107 greves
estiveram em curso.
Comprovadamente, portanto, a movimentação paredista dos últimos doze meses derrubou os entraves legais que
impediam a prática das greves. A famigerada 4.330 de 1° de junho de 1964 sepultada pelos acontecimentos, reduzida a cinza
pela ação concreta das próprias greves. Estas, para se efetivarem, não esperaram pelo advento preliminar de um texto legal que
as autorizasse, como supunham, até mesmo alguns bem intencionados, que teria de ocorrer, esquecidos que é a forca dos fatos
que cria as leis, não o inverso. Ainda mais, foi justamente a eclosão das greves e sua reiterada prática afirmativa que
condicionaram as esferas oficiais e cofitarem num novo enquadramento legal da questão, pois o que está, na letra, em vigor
simplesmente não impede mais que as greves se façam e imponham. Foram precisamente as greves que conquistaram a
possibilidade, agora tornada imperativa, de um novo texto legal que reconheça sua legitimidade, bem como a premência de
reordenar toda a legislação sindical existente. E os futuros dispositivos jurídicos, no que possam trazer de bom e positivo,
dependem exatamente da forca, do prosseguimento e do desenvolvimento que a ação das massas trabalhadoras possa ir
objetivamente ao seu movimento e impondo no cenário das lutas.
Ademais, as greves não resultaram apenas na liquidação prática da lei anti-greve. Elas abriram fogo cerrado contra o
arrocho, já arrancaram vitórias ponderáveis e estimulantes neste campo, perspectivaram a inviabilização da política salarial do
sistema e puseram no horizonte a queda da política econômica vigente. Em outro termos, elas abriram o caminho para a
construção da democracia no Brasil.
O último trimestre no ABC é o objetivo privilegiado para a compreensão de tudo isto, pois constitui o momento mais
avançado de todo o processo, visto ter obrigado, em que pesem debilidades já referidas, que cada uma das partes mostrasse o
que é, o que pode e o que tende a vir a ser.
Um governo, “novinho em folha”, compareceu para o embate, e a fração mais avançada do movimento de massas se
apresentou em seu vigor estudante. Em menos de quinze dias, mesmo com os descompassos de sua imaturidade, o
movimento grevista obrigou o quinto presidente a desvestir o uniforme da “renovação conciliadora”, com que vem se
travestindo, e a envergar sua verdadeira natureza. Nos desdobramentos, ao longo de mais de dois meses formidáveis, os
trabalhadores foram edificando, a cada impasse e golpe recebido, os passos criadores da elevação de qualidade de seu
desempenho, enquanto minguavam o arsenal e a imaginação do poder. Quando o processo findou, crescera
extraordinariamente, em quantidade e qualidade, o movimento operário, afirmado e tornado exemplificador na vitória
construída e arrancada por ele próprio; e ele findou, afirmado e ascendentemente, pela lucidez de arrancar a vitória possível,
na eloqüência maior de reaver os sindicatos que lhe haviam tomado. O governo, ao contrário, chegou ao fim da jornada em
esvaziamento e na defensiva, mirando o interior empobrecido de seu embornal de recursos, onde até mesmo os instrumentos
de forca e violência principiam a dar claros sinais de ineficiência.
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Tal é, no quadro brasileiro, a verdade e a força que portam as massas operárias e trabalhadoras que estas, como um
marco no ABC, em plena fase de reemergência, mesmo partindo de condições limitadoras, são capazes de transfigurar as
debilidades em energias e de pôr em xeque, em poucos dias, o próprio âmago e a razão de ser de toda a ditadura.
Quando os metalúrgicos do ABC, na primeira quinzena de marco, não aceitaram o acordo geral da categoria e
apresentaram seus próprios índices de reajuste, não exigiram simplesmente o atendimento a uma reivindicação mais aguda,
mas proclamaram objetivamente, que o soubessem ou não, a necessidade de liquidar a política econômica vigente.
Foi em face disto que o sistema reagiu.
Desde logo, Figueiredo asseverou a incompatibilidade entre aumentos salariais acima das taxas oficiais e a luta contra
a inflação. A certa altura da primeira fase das negociações, Simonsen travou a concessão do índice de 65%, sobre o qual
chegara a haver convergência, ameaçando os empresários com o CIP. Delfim, com sua perene inclinação oracular sentenciou
que reajustes de 60% provocariam uma inflação de no mínimo 55%.
De todo modo, transparece o indicador de que qualquer coisa em torno do índice de 60% é a fronteira do abismo
para o quadro econômico atual; algo para além disto, a catástrofe: a inviabilização e dissolução da política do arrocho. Numa
frase de efeito, dir-se-ia que a política econômica vigente explode para além dos 60%.
Seja ou não precisamente este o índice de volatização do “modelo”, é evidente que ele possui uma linha de fronteira
para além da qual sucumbe. E é também notório que os índices que energicamente passaram a ser reivindicados foram sendo
mais do que validamente ampliados, tendendo a apontar para os limites deste marco decisivo e discriminador.
No caso dos metalúrgicos do ABC, além disso, a situação potencializava-se pelo significado, forca e sentido
exemplificador que possui esta concentração de trabalhadores. Se a greve do ABC saísse vitoriosa, racionou-se em Brasília, a
conseqüência direta mais provável seria o seu efeito contagiante sobre outros setores; e, se movimentos do tipo continuassem
a se repetir, o país entraria num túnel, sem que se soubesse quando, como e onde estaria a saída. Maneira eufemística de dizer
que o arrocho estava ameaçado e conseqüentemente a política econômica, em seu todo, posta em xeque, para além de
significar que o sistema não admite e não concebe qualquer saída fora do regime do arrocho.
De modo que a intransigência patronal e governamental revelada foi a expressão externa de defesa do acossado
mecanismo do arrocho a que estão atrelados visceralmente, face a reivindicações de índices crescentes e da provável ampliação
dos setores que, de qualquer modo, já iam alargando o espectro das greves, pondo na ordem do dia toda a questão econômica
e social.
A persistência e o fortalecimento do movimento de massas, xecando o regime de exceção nos seus fundamentos,
induziu à intervenção. E a análise desta, bem como da violência anteriormente desencadeada nas ruas, não pode se resumir,
sob pena de se renunciar ao essencial, à denúncia da maior ou menor dose de repressão praticada, particularmente como
contradição, segundo querem alguns, para um momento de promessas “liberalizantes”. Mas ou menos repressão, mais ou
menos contraditoriedade com a distensão, o que é preciso atentar é que a intervenção indica exatamente o objeto pelo qual, no
momento atual, o regime continua disposto a empregar a forca.
O cerne da questão, como já se mostrou, reside na defesa da política econômica. E isto é tanto mais importante de
apreender se se nota que, no embate da violência oficial contra a forca democrática das massas trabalhadoras, o saldo
positivamente não pertenceu à primeira. Face à coesão, expressão numérica, disciplina e forca, atuais e potenciais, do
movimento das massas trabalhadoras, a violência repressiva, em todas as suas formas, teve que reconhecer que sua eficácia
diminuiu e que tende mesmo à ineficiência, pois há um momento, de fato, que de motivo de terror ela pode se ver convertida
em fator de catalização da solidariedade e arregimentação de multidões.
De maneira que não há propriedade em se falar de contradição entre as promessas de “aperfeiçoamento democrático”
e a repressão concretamente exercida, pois são duas faces de um mesmo itinerário: correr muito para não sair do lugar -
distenção lenta, gradual, e segura, ou seja lá qual for a ordem original destas três palavras. itinerário que visa central e
fundamentalmente manter o espírito e o esquema essencial da política econômica em curso, buscando um rearranjo de fatores
setoriais que conduza a um novo ciclo de acumulação. O que implica, imprescindivelmente, na manutenção da política do
arrocho.
Mesmo porque, com ou sem arranjos, a supressão do arrocho é o próprio colapso dos mecanismos econômicos em
funcionamento.
conseqüentemente, o sistema tem por propósito global esconder e disfarçar a falência de sua política econômica,
sustentar e defender os dispositivos básicos desta, enquanto pelas “aberturas” busca socializar a perplexidade, o ônus e a
responsabilidade pelos desastres econômicos presentes que aquela gerou. O governo “abre” como que a distribuir aflições que
já não é capaz de digerir, como a pedir soluções que já não é capaz de encontrar, “abre” politicamente para dissimular seu
vácuo de soluções econômicas, como quem se vinga de patrões rabugentos que não para de reclamar. Lentamente, é claro,
para que nenhum parceiro, afinal, se machuque demais; gradualmente, é certo, para que não haja zangas ou atropelos
demasiados e simultâneos, de modo que os sócios possam ir encontrando comodamente maneiras de se safar do melhor
modo possível; seguramente, afinal de contas, para que tudo seja maximamente o mesmo, no minimamente diverso.
Como não entender assim, se para levar à frente seus propósitos só resta ao governo um duplo endurecimento: o do
combate à inflação e o do combate às greves? implicando o primeiro, se for para valer, no combate a aliados fundamentais,
como o são os setores financeiros e certas forcas econômicas aceleradas pelo “milagre”, que hoje (e não há razão para
espanto) se recusam a conter seus índices de atividades. Prisioneiro destes, prisioneiro do esgotamento do “milagre”,
prisioneiro da extrema dificuldade de viabilizar, no quadro atual, uma nova equação de crescimento que não renegue à
orfandade nenhum dos velhos parceiros, prisioneiro da dívida externa e da dívida interna, o poder joga com a concessão de
“folgas” no plano institucional, “lenta e gradualmente”, “seguro” de que o tempo conspira a seu favor, pois já se passou a
esgrimir com o advento de adversidades maiores que levariam gregos e troianos ao conformismo, enquanto o governo seria
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gloriosamente o próprio cavalo recheado de sadismo. Que outra coisa vem a ser a perspectiva do governo, expressa na
opinião de uma alta fonte militar, que estima que “até o final do ano estas greves diminuirão ou mesmo deixarão de existir. A
economia brasileira sofrerá um forte desaquecimento e a perspectiva de desemprego diminuirá os ânimos dos sindicatos”. E
arremata com sabedoria rancorosa: “S. Paulo precisa descobrir o que é conviver com um desemprego de 6 a 7%”.
Desaquecimento e desemprego, eis as promessas finais do “milagre”. As esperanças maiores da quinta edição de seus
condutores. O programa de “salvação nacional” de uma ínfima minoria de monopolistas.
Admitirão as massas operárias e trabalhadoras - a maioria brasileira - um quadro dessa ordem, agora que estão de
cabeça erguida, dando passadas vigorosas?
A resposta vem do bojo das jornadas de marco.
Se o plano político-institucional se presta como campo natural de manobras e transigências, o mesmo não ocorre com
a esfera econômica. Ah podem se verificar certas dilações, algumas recusas, determinadas acelerações ou uns poucos rodeios;
mas abrir é mudar, manter é fechar. E o governo Figueiredo, neste terreno, tanto quanto a totalidade de seus antecessores,
está hermeticamente fechado.
E por estar fechado interveio e cassou dirigentes sindicais em marco, e mais recentemente em Brasília. E cassou para
tentar o afastamento de um perigo fundamental, para pôr a distância um inimigo decisivo.
Se acima de certos índices de reajuste a política do arrocho não resiste e se esfacela, abaixo deles as massas
trabalhadoras não conseguem ter assegurado um mínimo de subsistência condigna, isto é, não escapam à fome.
É, portanto, o impasse, o antagonismo global e de base, pois, ao vir à tona, o movimento operário traz consigo o
questionamento de raiz da ditadura, - a impugnação de sua plataforma e de seus objetivos econômicos.
Assim, o movimento democrático das massas trabalhadoras traz consigo uma dimensão decisiva, historicamente nova:
atua diretamente sobre a organização material de toda a estrutura social. Sua reemergência não é apenas, conseqüentemente,
uma pura ampliação numérica das hostes alinhadas na oposição, mas eleva e muda acentuadamente a qualidade desta, na luta
contra o estado de exceção e pela construção da democracia. Queria ou não queria, saiba ou não saiba, o movimento de
massas dos trabalhadores põe em xeque toda a razão de ser da ditadura, abala a possibilidade de existência desta e aponta
imperativamente para a necessidade de um programa econômico alternativo.
Foi o que se pôs e viu nas praças públicas e esportivas de S. Bernardo do Campo, terra dos peões que ainda não
sabem, mas que já estão a cravar no solo as raízes da democracia. Diante deles, a intervenção executada consubstancia a forca
de resistência do historicamente velho, mas há que perceber que já se tratou de uma repressão na defensiva.
No confronto das jornadas de marco, como é próprio do real em seus andamentos, grandezas e debilidades
apareceram entrelaçadamente, sob vários aspectos. No sentido global e decisivo, o caráter ascendente das forcas das massas
trabalhadoras e o sentido descendente das energias ainda ponderáveis da ditadura. A fragilidade do poderio atualmente
circunscrito da forca nascente das massas, em contraste com a energia aparatosa e coagulada da vitalidade em declínio da
esfera do poder.
E o que é especialmente interessante e positivo: foi a própria fraqueza circunstancial que permitiu que aflorasse a
imensa pujança do movimento das massas trabalhadoras.
Quando eclodiu a greve dos metalúrgicos do ABC, já o dissemos, as condições eram limitadoras, pois o acordo, que já
fora estabelecido, com uma trintena de sindicatos de outras bases territoriais, desde logo, reduzia a expansão possível. Ainda
mais e fundamentalmente, como também já foi indicado, tal como se pôs, o movimento grevista se viu, de imediato, remetido
a um nível de luta que ultrapassava o plano das contendas delimitadas. O natural despreparo e inexperiência, a subestimação
do adversário, a debilidade na apreciação da realidade, a fraqueza, em síntese, de uma forca nascente impediu a percepção de
que a greve, depressa demais - e sem forca para isso - se punha na situação de um movimento diretamente desafiador da
política econômica vigente. O movimento parece não ter dado maior importância ao fato de que estava circunscrito, não
notou que já pelejava a nível de seu objetivo estratégico, prosseguindo a manejar como se estivesse atuando simplesmente
num plano bem mais estreito. Laborou, pois, naquela fase, na incompreensão política de seu próprio momento, confundindo
inadvertidamente o que há de ser seu ponto de chegada com a travessia concreta que estava vivendo, julgando que não se
afastara desta.
Mas, na medida que configurava, independentemente de intenções, o questionamento referido, ou pelo menos assim
podia ser interpretado, sofreu a perda dos sindicatos e a decapitação de seus dirigentes. ônus, evidentemente, demasiado
elevado num processo que, na fase que atravessa, tem na acumulação de forcas um de seus aspectos essências.
Em contraposição, foi precisamente dessa fraqueza e desse debilitamento sofrido que sobreveio o momento de
viragem. Viragem que só foi possível porque, grife-se com a máxima ênfase, a debilidade apontada vinha no bojo da fortaleza
imanente e essencial que vem caracterizando, acima de tudo, o movimento das massas operárias e trabalhadoras.
Ao sofrer o golpe profundo da intervenção, em contraste radical à expectativa do poder, que esperava num refluxo
imediato o colapso do movimento, deu-se uma inversão de expectativas, totalmente inesperada, mas que tem uma clara
explicação.
Quando Lula, na condição de presidente cassado, reassumiu a liderança do movimento, ele o fez em praça pública, e
pôde fazê-lo só porque na rua estava a vitalidade de um incontestável movimento de massas. Da existência deste nascera a
possibilidade da retomada da liderança da greve, bem como da condenação da intervenção ao insucesso.
Não fica com esta afirmação ocultado que, durante um ou dois dias, tudo parecera destinado ao fracasso, que a
multidão se contorcera desorientada e que se chegara a temer um verdadeiro desastre. Não, de nenhum modo se oculta tais
coisas, pois não se está a dizer que a massa dos trabalhadores liderou o processo, mas que foi ela, com sua forca imanente, que
criou as condições de ser liderada.
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Assim, nesta malha de reversões e cambiante direcionamento das forcas, se a greve dos metalúrgicos, quando se
lançou em meados de marco, não o fez na posse de uma perfeita avaliação da situação, o poder, quando interveio e decapitou,
não compreendeu verdadeiramente que estava de um movimento de massas, que a greve instaurara o exuberante fenômeno
das assembléias sindicais multitudinárias, e que, portanto, encontrava-se diante de acontecimentos de nova qualidade, em face
dos quais seu instrumental jurídico-repressivo era, em certa medida, impotente.
Aquela já não era uma situação em que bastava cassar um dirigente para chegar à aniquilação de um entidade ou à
castração de um movimento. Toda uma multidão, agora, teria que ser agrilhoada.
Reassumindo, Lula, enriquecido pelo aprendizado de um intenso processo, soube redimensionar o movimento; seja
pela trégua de 45 dias, que permitiu conservar a organização e o teor de luta, e estas a continuidade das negociações; seja pelo
desenvolvimento da mobilização e da ampliação, sob novas formas, do movimento e da solidariedade, esforço que culminou
no extraordinário 1° de Maio unitário de 200 mil trabalhadores.
E tudo, assim, permitiu findar, neste momento, pelas conquistas concretas do acordo de maio. Estas, sem dúvida,
custaram transigências, meneios, jogos de cintura, etc. Com certeza, mas é inadmissível desconsiderar que tudo isso pôde
ocorrer precisamente porque dezenas de milhares o tornaram possível através de assembléias gigantescas e da demonstração
de que sabem, com grande disposição, parar as máquinas com ampla maestria.
Conquistas concretas de maio porque vitória efetiva, no plano das lutas de caráter imediato, que se materializa a cada
por cento arrancado ao arrocho. Vitória porque, depois de violentamente golpeado pela intervenção, o movimento conseguiu
se recolocar e prosseguir, dimensionar apropriadamente a extensão da batalha e finalizar pela conquista de pontos
significativos, onde avulta naturalmente a reconquista dos sindicatos e a reintegração das diretorias cassadas. Aspectos de
máxima relevância, estes últimos, sem precedentes na história das lutas sindicais brasileiras, e que constituem produto direto
do emergente movimento democrático das massas trabalhadoras. Vitória, pois, pela elevação e fortalecimento da luta dos
trabalhadores que, inegavelmente, testemunham a lição aprendida de que, em toda essa guerra, a única coisa que tem a perder
é o arrocho. Razão porque a presença e a ação do movimento operário e de todos os trabalhadores são, hoje, ainda mais
decisivas do que já o foram em épocas passadas.

DO MOVIMENTO DE MASSAS À CONQUISTA DA DEMOCRACIA

Certos setores esvaziam o significado essencial do caudal grevista em curso ao banalizarem sua ocorrência sob a observação de
que as greves são acontecimentos corriqueiros numa democracia.
Ora, no Brasil, excetuadas iniciativas esparsas, que nem por isso foram, aqui, omitidas ou desprezadas, que se arrolam
como pertencentes à fase de resistência democrática, não houve, durante quase década e meia, nenhum caudal grevista, e
quanto à óbvia inexistência de vida democrática não é preciso, nesta passagem, insistir.
E se já houve, em outros tempos, greves maiores que as do ABC, e mais abrangentes, nunca dantes um processo
grevista significou tanto e tão profundamente a materialização do advento do historicamente novo.
Deixam, os que banalizam as greves como fenômenos corriqueiros, de captar precisamente o que mais importa: a
direção para a qual aponta e concretamente se dirige o movimento das massas trabalhadoras, - o derrube do arrocho, a
construção da democracia, entendida como configuração substantiva, verdadeiro alvo estratégico das maiorias brasileiras. Pois
o objetivo das massas trabalhadoras não está simplesmente forçar que o regime ultrapasse nesta ou naquela oportunidade, os
índices dos reajustes salariais do arrocho. O que lhes interessa é que todo o “modelo” caia; vale dizer que a presença e a luta
dos trabalhadores demanda à recomposição completa da equação do sistema produtivo brasileiro.
Longe, portanto, de serem uma manifestação corriqueira, as greves, - a ação das massas trabalhadoras brasileiras -, ao
longo do último ano, são o pôr-se em movimento da categoria social básica, do sujeito coletivo essencial da dinâmica histórica
brasileira em direção à construção da democracia.
Na progressão dos doze últimos meses tivemos a evidencia cabal disto. Dos braços cruzados às assembléias
multitudinárias, a retomada do fluxo histórico ascendente instaurou o movimento democrático de massas, que explicitando,
como não poderia deixar de ser, os interesses imediatos dos trabalhadores sacode pela base a razão de ser do sistema. Isto é,
no quadro atual, desde sua reemersão e, progressivamente, em sua rápida evolução, o movimento dos trabalhadores, em
qualquer de seus gestos e atos transcende e ultrapassa as fronteiras de seus interesses corporativos. A luta por melhores
salários, a guerra contra o arrocho, o empenho por uma nova ordenação jurídica dos sindicatos é, de imediato, a luta contra a
política econômica da ditadura, portanto, contra a existência desta. O que faz compreender que os vastos contingentes de
trabalhadores constituem o veio fundamental do andamento nacional, a fonte decisiva de toda mudança necessária e possível.
Configurada, pois, está a contraposição. De um lado, como núcleo estruturante, o movimento das massas
trabalhadoras perspectivam a supressão do arrocho, doutro, resistindo, pois constitui a pedra angular de seus interesses,
permanece a ditadura, corroída pela autofagia do “milagre”, na defesa intransigente de seu sistema de super-exploração do
trabalho.
Choque, pois, que tem por centro a definição do fundamento de base da vida econômica nacional.
Cada passo, hoje, está na dependência do que; em face disto, possa ser perspectivado. E é fundamental que se
compreenda e leve na devida consideração as energias que restam a uns, e as potencialidades que estão contidas em outros.
Na defesa de uma ordem econômica subordinada à dinâmica imperialista, articulada com grupos locais, o sistema no
poder, como está se explicitando, manobra com o advento de negatividades crescentes. Sua angulação passou a ser a de seu
próprio conformismo para com as adversidades econômicas, numa espécie de “perspectiva da catástrofe”, tanto para seus
parceiros mais rebeldes, como para as multidões de trabalhadores e assalariados.
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Enfim, trata-se do “desaquecimento”, do desemprego, numa palavra mínima, da estagnação “disciplinadora”, que sob
toda e qualquer forma só oferece uma certeza, - a da sustentação e aprofundamento do arrocho. Tudo isso em compasso de
contemporização, à espera de um novo dia de sol. Os grupos monopolistas, bem nutridos, tem reservas, sem dúvida para esta
travessia das sombras.
E as massas operárias e trabalhadoras? Estas, ao contrário, acabam de reemergir pela e para a explicitação de sua
fome. Sua dinâmica e perspectiva é precisamente a inversa da do sistema, demandando a elevação urgente de suas miseráveis
condições de vida. Tornaram patente, à luz de todos os seus atos, nas ações que hoje culminam, que inimigas de sempre do
arrocho, não estão mais dispostas a suportá-lo.
Diante da manifestação desse justo e eloqüente inconformismo, diante desta válida resolução transformada em ação
concreta, está posta a questão, e não por qualquer doutrinarismo, da formulação de um programa econômico alternativo. O
movimento democrático das massas trabalhadoras pôs, na ordem do dia, esta antiga necessidade que, até agora, o movimento
oposicionista não foi capaz de assumir e equacionar.
De modo que, se alguma polêmica ainda era possível, em passado recente, quanto à prioridade tática entre a dita
questão nacional e a democrática, hoje, com a emergência do movimento das massas trabalhadoras, a permanência de
qualquer dúvida, quanto à indissolubilidade das mesmas e à inigualável capacidade de sensibilização e mobilização que possui a
primeira sob a forma das reivindicações imediatas, qualquer hesitação passa à condição de despropósito, pois, no mínimo, se
converte em entrave para o desenvolvimento das próprias lutas. Ou haverá alguém disposto a pedir ao movimento operário e
de todos os trabalhadores que espere pelas reinstitucionalizações para, então e só na seqüência, prosseguir nas suas lutas? Seria
contraditoriamente afluir para muito próximo do que pretende o regime de exceção com sua lenta, gradual e segura caminhada
em torno do mesmo lugar. Seria exatamente bloquear o caminho fundamental para a conquista da democracia. Caminho que
vem se avolumando a olhos vistos, estando a ser reforçado pelos sucessos indiscutíveis que vem alcançando e que são de uma
concretude incomum, desconhecida até à emersão do movimento das massas trabalhadoras.
A formulação de um programa econômico alternativo e sua condução à vitória através da conjugação da mais ampla
frente possível das categorias sociais brasileiras, é o que tem por latência o âmago do movimento das massas trabalhadoras, na
sua rota imanente em direção à democracia.
Trata-se, pois, de compreender que os caudais grevistas em curso trazem em seu bojo o direcionamento histórico da
conquista e da construção democráticas, das quais o programa econômico alternativo é a vertebração.
Isto é compreender que, no Brasil, a democracia é o vir a ser, o historicamente novo, tendo, pois, de ser conquistada e
construída, e não simplesmente reconquistada, dando que, num sentido legítimo e concreto, nunca a tivemos em nosso país.
Basta pensar, sem com isso de nenhum modo desprezá-lo, que durante o único período, em toda nossa história, em que mais
próximos estivemos de uma existência democrática - 1945 a 1964 -, esta teve uma vigência eivada de limites palpáveis, e que
mesmo em toda sua acanhada realidade política, econômica e social foi, várias vezes, durante combatida e atacada, não
conseguindo, por fim, prevalecer.
Anos, estes, nem mesmo uma vintena, que viram o suicídio de um presidente, a renúncia de um outro e a derrubada
pela forca de um terceiro; e tudo isto já sem contar com um pequeno enxame de golpes e contra-golpes, e com o fato de que
exclusivamente um único presidente da República conseguiu exercer, até o fim, o mandato que recebera em eleições diretas.
Tudo isso decorre, é claro, de nosso processo de formação, da maneira pela qual, nas fronteiras do nosso espaço
nacional, as classes sociais ganharam existência, urdiram e foram urdidas por uma infinidade de vetores e situações, de ordem
interna e externa.
E posto que a democracia é o novo que forceja por advir, é preciso determinar a que possibilidade objetiva atende e
qual o seu suporte social.
Em suma, compete aqui reconhecer, na esteira de tudo que já foi exposto, que só da perspectiva do trabalho se põe,
em nossos dias, o historicamente novo, no Brasil. Que é apenas da perspectiva das massas trabalhadoras que é possível ser
posta uma propositura que se assuma com abrangência para a universalidade da sociedade brasileira, deixando de fora tão
somente aquelas minorias que consubstanciam precisamente o velho, que limita e nega o advento da democracia. Não que o
historicamente velho esteja completa e definitivamente exaurido, mas deste só se pode esperar, e ele não pode nada mais
oferecer, do que a sua própria repetição, a reprodução ampliada de seu próprio inchaço; ou em termos rigorosos, a
modernização “prussiana”. E esta é precisamente a negação da democracia.
Sim, é de grande importância acentuar o caráter “prussiano” do evolver histórico no Brasil, isto é, o itinerário que o
marca pelas transformações econômico-sociais realizadas pelo alto, e que põem as massas, tanto quanto partícipes como
beneficiárias, à margem dos processos de mudança.
Mas isto não basta, pois, é decisivo que se grife que não se trata de um “prussianismo” indeterminado. Em verdade, a
evolução do capitalismo no Brasil se dá no quadro do que, em outras partes, caracterizamos como “prussianismo” - colonial e
com mais propriedade ainda - via colonial do capitalismo (Veja-se, por exemplo, a Parte II de A “Politicização” da Totalidade:
Oposição e Discurso Econômico, in TEMAS de Ciências Humanas, Nº 2, de setembro de 1977, p.145).
A particularidade da via colonial, e aqui não cabe apontar mais do que isso, engendra uma burguesia que não é capaz
de perspectivar, efetivamente, sua autonomia econômica, ou o faz de um modo demasiado débil, conformando-se, assim, em
permanecer nas condições de independências neo-colonial ou de subordinação estrutural ao imperialismo. Em outros termos,
as burguesias que se objetivaram pela via colonial não realizaram sequer suas tarefas econômicas, ao contrário da verdadeira
burguesia prussiana, que deixa apenas, como indica Engels, de realizar suas tarefas políticas. De modo que, se para a
perspectiva de ambas, de fato, é completamente estranha a efetivação de um regime político democrático-liberal, por outro
lado a burguesia prussiana realiza um caminho econômico autônomo, centrado e dinamizado pelos seus próprios interesses,
enquanto a burguesia produzida pela via colonial tende a não romper sua subordinação, permanecendo atrelada aos pólos
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hegemônicos das economias centrais. Em síntese, a burguesia prussiana é anti-democrática, porém autônoma, enquanto a
burguesia colonial, além de anti-democrática é caudatária, sendo incapaz, por iniciativa e forca próprias, de romper com sua
subordinação ao imperialismo.
De modo que a democracia é uma questão altamente intrincada, tanto nos países de via prussiana, como de vida
colonial. Como, nestes casos, configura-se a possibilidade objetiva de seu advento? Qual o sujeito coletivo que lhe serve de
suporte e de cuja perspectiva pode, então, ser edificada? Em poucas e diretas palavras: quem está, ou pode estar, nestes países,
interessado na democracia? Quem é seu inimigo?
Consequentemente, dada a evidente universalidade de certos valores formais da democracia, a questão que
verdadeiramente importa não é, portanto, a de sua validade, mas de sua gênese possível em cada caso concreto.
Se se pensa, de fato, na democracia como um objetivo estratégico, de parco ou nenhum valor, teórico ou prático, é a
desnecessária insistência em sua universalidade abstrata, se não se descobre e indica a sua gênese concreta possível. Mesmo
porque, sem a rigorosa determinação da gênese possível em cada caso, corre-se o risco de reduzir a luta pela democracia, pelo
recurso sempre arbitrário da dilatação das “autonomias relativas”, a um pobre ato de vontade, e a resvalar do pretendido
caráter estratégico para uma estiolada taticidade politicista.
Enfim, é preciso angular a análise pela fonte real da democracia no Brasil, e não por aquilo que deverão ser, muito
mais adiante, a perder completamente de vista, as relações entre a democracia (futura) e a forma social superadora (ainda mais
futura) do modo de produção vigente. Mesmo porque, se Lenin tinha razão em afirmar que não existia “democracia pura”, em
cada lugar e momento determinados a democracia como valor concreto, real ou latente, jamais é um simples contorno de uma
universalidade abstrata.
Portanto, quando se fala no advento, mesmo que somente dos valores formais da democracia, é de todo insuficiente
proclamar apenas sua validade universal, pois é querer resolver um grave problema concreto pela simples alusão à verdade de
uma noção geral, sendo necessário determinar de que forma particular, em cada caso, sua objetivação pode efetivamente se
realizar, dado que mesmo o político-formal demanda, para nascer, a ação determinante de agentes, fatores e situações reais. O
que cabe, portanto, assinalar, diante do valor universal da democracia, é que os referidos agentes, fatores e situações reais
podem ser diversos daqueles que pela primeira vez, na história, lhe deram origem. E tudo leva a indicar que, nos países que
foram historicamente levados a atravessar a via colonial do capitalismo, até mesmo os mais formais dos valores da democracia
política são devidos fundamentalmente, quando em forma minimamente real e estável, à perspectiva e à ação do trabalho.
Dito de modo inverso, e sobre os ombros de toda nossa reflexão: são absolutamente incompatíveis o regime do
arrocho salarial e a democracia, mesmo tomada esta em seus limites os mais puramente formais. Razão porque, na luta pela
democracia, é imperativo a formulação e a condução à vitória de um programa econômico alternativo que liquide o arrocho e
oriente no sentido da destruição, pela raiz, das condições de seu ressurgimento, o que significa a demolição progressiva das
bases do “prussianismo”-colonial, que caracteriza estruturalmente a sociedade brasileira, e que se consubstanciam
principalmente na subordinação ao imperialismo, na conservação de uma estrutura fundiária latifundiada, prioritariamente
voltada à exportação ou à especulação da terra, e na “modernização” monopolista. Um programa econômico, portanto, da
perspectiva das maiorias que isole, pois, os antagonistas minoritários da democracia.
E, na medida exata, em que isto é trazido imperativamente à ordem do dia pelo ressurgimento de massas das lutas
operárias e de todos os trabalhadores, torna-se evidente que qualquer tolhimento ou procrastinação do movimento das massas
trabalhadoras é desarmar o processo de conquista da democracia. E uma dessas dilações, ainda que por perplexidade, é a
inexistência de um programa econômico alternativo, de tal modo que, numa fórmula sintética, há que compreender que -
quem não luta contra o arrocho não quer a democracia, e quem quer a democracia luta por um programa econômico
alternativo.
Um programa econômico evidentemente que tem por princípio a liquidação da super-exploração do trabalho.
Conseqüentemente uma plataforma da perspectiva das massas trabalhadoras, que, ao nortear, um reordenamento da
organização da produção, o faca no sentido de que sejam atendidas prioritariamente as demandas das maiorias, sendo assim
capaz de atrair para si o apoio dos setores econômicos engajados ou engajáveis no departamento de produção de bens
operários, o que compreende a pequena e média burguesia nacional. Mesmo porque, obviamente, o movimento das massas
trabalhadoras não está, atualmente, direcionado no sentido de pôr em causa o capitalismo no Brasil, mas propugnando uma
reorientação nos rumos das atividades produtivas. é no que importa o derrube do arrocho, e não em um impossível
aditamento distributivista mais “generoso” à atual política econômica, geradora intrínseca da super-exploração do trabalho.
Demanda-se, pois um programa econômico alternativo no sentido de um pacto social das maiorias, que tem por eixo
fundamental os trabalhadores da cidade e do campo, em torno do qual se alinham outras categorias sociais que tem interesse
na conquista e na construção da democracia. Uma plataforma alternativa que desenhe as vias de afluência e conquista da
solidariedade dos mais amplos setores da população, e assim permita e conduza a lutas de massas maiores e mais abrangentes,
sob as mais diversas formas, desde os pronunciamentos de entidades as mais distintas, até às manifestações coletivas de
grandes massas, de que o 1° de Maio no ABC é um excelente exemplo. Um programa econômico alternativo que faca nascer
um estreito compromisso da federação oposicionista com a luta das massas contra o arrocho.
Numa palavra, uma plataforma de vertebração geral da luta pela democracia, que, pela sua forca de representação
universalizadora da sociedade brasileira, articula e potencializa as exigências universalizantes da anistia, da convocação de uma
Assembléia Constituinte e das demais prerrogativas democráticas que tem, assim, explicitadas suas raízes no chão social,
quando deitadas sobre a ossatura da raiz que as nutre e impulsiona.
Tem sido dito, diante das alterações introduzidas ao nível do clima institucional, e especialmente das iniciativas, no
mesmo campo, do governo Figueiredo, numa supervalorização destas, que “tudo está acontecendo no país à revelia da
oposição. Sem sua participação e sem a sua crítica”. Exagero, sem dúvida, quanto ao “tudo que está acontecendo”, não deixa
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todavia de ser sintomático quanto ao mais, pois não é outro o significado da confusão feita por um deputado federal da
oposição que, revelando a atual perplexidade do MDB, declarou que o partido se encontra “agora com os espaços alargados
que não sabe aproveitar”. Demonstração cabal disto é ter a bancada federal emedebista hipotecado solidariedade aos
metalúrgicos do ABC somente 23 dias depois de iniciada a greve. Prova, entre outras, da incapacidade e do despreparo da
agremiação oposicionista, quase um ano depois de reiniciadas as lutas sindicais, para se oferecer como canal de apoio eficiente
aos trabalhadores em greve. Excetuadas iniciativas pessoais de alguns poucos parlamentares, foi o quadro triste que restou, em
meio à exuberante pugna dos trabalhadores.
Ao contrário do que se supõe, isto não é uma debilidade da agremiação, mas conseqüência natural da sua “virtude”
politicista, isto é, do fato do MDB nunca ter conseguido enfrentar programaticamente a questão econômica, seja em termos
de crítica partidária coletiva à política econômica da ditadura, seja em termos do encaminhamento de uma plataforma
econômica alternativa, exceção feita a uma tentativa única, realizada há cerca de dois anos e que lamentavelmente não
frutificou.
Contudo, este pode ser, talvez, o momento de sua redenção, e isto por um duplo condicionamento. Pelo fato de que
um programa econômico alternativo ter se tornando imperativo face ao movimento dos trabalhadores e do estrangulamento
do projeto situacionista, e em razão, também ao inverso do que superficialmente possa parecer, de que sem uma plataforma
global e bem articulada não terá como eficientemente combater pela preservação de sua unidade, exposto que está às ameaças
da “pilhagem” sistemática, ainda que epidérmica, de suas bandeiras, e de implosão arquitetadas pelo poder e alimentadas por
certas de suas próprias correntes.
Terá o MDB, em outros termos, que estritar e aprofundar sua identidade com as massas, isto é, terá que reconhecer,
em que pesem as distinções de forcas que mantém federadas, que é representante destas maiorias trabalhadoras e que lhe cabe
ir em direção ao movimento de massas destas, o que implica em contribuir na formulação, e em tornar-se porta-voz, de um
projeto alternativo global de governo, onde a peca - dramaticamente ausente, até hoje, é a de um programa econômico
efetivamente articulado e constantemente explicitado. terá o MDB energias para tanto?
Hoje o quadro oposicionista brasileiro vive um desencontro ou um paralelismo entre a oposição política parlamentar
e o movimento das massas trabalhadoras.
Por sua própria natureza e forca a ação dos trabalhadores induzirá à superação desta situação, de modo que a
oposição política parlamentar tem bons motivos para se desvencilhar de seus entraves politicistas e ir ao encontro do
conteúdo e da dinâmica das massas, na mesma proporção que estas buscarão fazer com que a oposição política parlamentar se
torne a sua oposição, pressionando-a para que assuma um programa econômico da sua perspectiva e conteúdo.
Ora, e na medida em que ao mover do eixo giram as rodas, a oposição emedebista, ou seja qual for a legenda (ou
legendas) sob a qual venha a se abrigar, a oposição, enquanto tal, será posta a serviço de um programa das massas, e não estas
a serviço de um programa da oposição, mesmo porque a oposição democrática só tem futuro da perspectiva dos
trabalhadores.
Compreendido que o ritmo e o grau da progressão democrática serão determinados pela luta dos trabalhadores, é
natural, portanto, que esta induza e propugne por um programa econômico alternativo, e que leve à articulação em torno dele
das demais categorias sociais que constituem as maiorias, vindo a arrastar, como pólo dinâmico, se preciso for, a oposição
político-parlamentar para a mesma direção, se esta, de modo-próprio, não for capaz de se movimentar neste sentido.
Assim, o roteiro político do movimento sindical não é o de se isolar eventualmente numa legenda própria, mas é o de
encontrar o sentido político de sua própria ação, condicionando e compelindo a própria oposição parlamentar, obrigando-a a
prestar a solidariedade que lhe é devida e levando-a a assumir uma plataforma democrática global e concreta onde um
programa econômico alternativo é a vertebração imprescindível para a floração, como a copa do tronco, do elenco
indispensável de todas as franquias democráticas.
Opera-se, assim, uma verdadeira fusão e interpretação de dimensões e significados, mutuamente potencializadores,
porque elementos específicos, mas não autônomos, convenientemente dispostos, de uma só e indissolúvel necessidade, a de
edificar uma concreta democracia de massas. Pois, não é a exigência de comer um claro direito democrático? Ou, não é a
anistia a liquidação do arrocho da liberdade? E não há que anistiar da fome? E gritar peca existência material não é luta pela
liberdade de expressão? Tudo isto constituinte da produção de uma nova forma de politicamente existir, na política de um
novo ordenamento constituinte da produção.
Tudo isso principiou, mas apenas principiou. é preciso ampliar e acumular forcas. Mediações há, insuprimíveis, a
desdobrar. Não é empreendimento suave, nem de curto prazo.
Trata-se de implantar o novo, e o historicamente velho, grife-se, apesar de abalado, não está, nem muito menos,
definitivamente impossibilitado de se recompor e de tornar multiplicar seu inchaço. só o adequado e maduro prosseguimento,
ampliação e fortalecimento das ações das massas trabalhadoras pode conjurar esse perigo. E o momento é propício neste
sentido, pois o regime de exceção se encontra em desequilíbrio e cabe às forcas do trabalho não lhe darem tréguas, acossando-
o de tal modo que se torne impossível qualquer outro ciclo de acumulação baseado no arrocho. é preciso ficar definitivamente
estabelecido que as maiorias se recusam a que isto aconteça, e a democracia só advirá na medida em que as massas
trabalhadoras consigam impor uma tal situação.
A velocidade com que se implantará o novo dependerá de inumeráveis fatores, onde avulta a compreensão de que a
democracia, no Brasil, será fundamentalmente conquistada pela base de massas, mobilizadas e organizadas pelos seus
interesses imediatos, que, no quadro atual, diretamente, abrem, se lançam e ferem, reafirmando fulcro histórico-básico, o cerne
político essencial da equação econômica pela qual, há quinze anos, foi erigido um sistema, em tudo e por tudo hostil aos
trabalhadores, à democracia e aos interesses nacionais, responsável, agora já de público, por não poucas atrocidades, dentre as
quais, e com certeza não a menor, está a fome das maiorias - e isto não é um recurso de linguagem.
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(/1979)

TRABALHO E DEMOCRACIA*

A construção democrática, em nosso país, tem por eixo fundamental a natureza e a dinâmica da classe operária, -
norte e núcleo das vastas massas trabalhadoras da cidade e do campo, de cuja perspectiva e ato depende, nos objetivos de
curto e de longo prazo, a efetivação das melhores e mais generosas aspirações populares e nacionais.
A rigor trata-se de reconhecer a centralidade operária na questão democrática, que, entendida a sério, jamais pode ser
tomada como meramente institucional.
Centralidade operária que é imperativa a três níveis do real: I) para efeito das pugnas correntes, que envidam a
construção democrática para o presente imediato, na contraposição ao bonapartismo vigente, hoje compelido, pela crise
econômica e suas conseqüências, a buscar sua recomposição sob a forma de autocracia burguesa institucionalizada; II) na
efetivação da democracia operária futura: o socialismo, posto necessariamente, desde logo, no horizonte, para que se tenha luz
e lógica sobre a direção histórica de todo o itinerário a percorrer; III) como base e perspectiva legítimas para a assimilação
crítica do chamado socialismo de acumulação, pois, em que pese o devido reconhecimento das positividades destes, seja como
momento efetivo de ruptura com o modo de produção capitalista, seja como fundamental combatente anti-imperialista, ou
ainda como ponderável efetuador da satisfação das necessidades materiais das massas, um verdadeiro pensamento
transformador, em nossos tempos, não pode emergir e orientar a intervenção prática se condenado a reproduzir formas
petrificadas que a história fez emergir e vingar, não por qualquer engodo deliberado, de modos distorcidos e mutilados,
incompletos e invertidos.
A assunção plena e o reconhecimento vigoroso da centralidade operária, nas questões históricas decisivas de nossos
tempos, é, com efeito, o próprio esforço de recuperar universalmente a autentica e concreta perspectiva histórica do
proletariado, que por infortúnio se encontra deprimida por toda parte, para além de ser, no caso brasileiro em sua
continuidade, a única via de acesso real para a resolução de nossa problemática essencial.
Tudo isso nos põe, é óbvio, no bojo de uma imensa polêmica, propriamente no interior do dissenso teórico, nacional
e internacional, do marxismo.
Dissenso muito bem abordado por Lukács, numa de suas mais extraordinárias entrevistas, ao fim de sua longa e
fertilíssima existência teórica e política. Falando, em 1969, a um jornal iugoslavo, explica: “Grandes batalhas ideológicas são
necessárias até que a ideologia de uma nova fase tome forma. A crítica do pensamento stalinista e a luta pela renovação do
marxismo que a ela subjaz está sendo levada com todo tipo de instrumento intelectual, da melhor maneira que é possível. É
evidente, no entanto, que ainda não há pontos de vista totalmente claros, nem uma única tendência dominante. Tenho certeza
de que não levarão a mal se eu disser que estou esperançoso, subjetivamente, de que a corrente que defendo será dominante,
embora saiba que cada um deseja que a História de sua aprovação final ao seu próprio ponto-de-vista. Em todo caso, tal
decisão histórica, sobre qual o caminho correto, deve ainda se dar objetivamente, e há pessoas, em países socialistas e
capitalistas, que se esforçam por uma renovação do marxismo. Cada um tenta seus próprios métodos, a sua maneira,
debatendo entre seus colegas, desejando que alguma tendência seja alcançada e que tire o marxismo fora da situação infeliz, na
qual caiu graças à influencia de Stalin”. E completa, mais adiante, comentando o que seu entrevistador iugoslavo apontara
como o “crescente caráter polifônico do marxismo”: “Nessa questão há algo que me leva a crer que este poliformismo da
filosofia marxista ainda pode vir a ser um fenômeno positivo.
Tenho minhas reservas sobre o assunto. Vejo, entretanto, como positivo o fato de ainda haver pessoas em todos os
países que dizem ‘agora vou analisar esta questão’ ou ‘tomarei uma posição em relação àquele problema’. Sem dúvida
nenhuma, trata-se de um fenômeno positivo que tem, ademais, a conseqüência de fazer com que o marxismo que se
desenvolve hoje em dia tenha um caráter polifônico e polimórfico ou até mesmo como dizem alguns, pluralístico. Contudo,
deixem-me colocar uma dúvida aqui. O marxismo, como tudo o mais, não escapa à regra de que há somente uma verdade. A
História é a História da luta de classes, ou então não é. Agora, pode-se, dentro da História da luta de classes, argumentar ter
ela ocorrido de uma maneira ou de outra. Isto é totalmente diferente. Mas devemos saber que em cada questão -
objetivamente - só pode haver uma verdade. No entanto, não condeno a existência deste poliformismo, mas creio estarmos
apenas no limiar da solução ideológica da presente crise. Muitas correntes se oporão entre si até chegarmos à verdade. Mas
novamente insisto em que há somente uma única verdade em cada caso. Esse poliformismo mostra que estamos no caminho
da verdade. Seria, entretanto, extremamente indesejável se aceitássemos uma concepção burguesa incorreta do marxismo, e
víssemos o pluralismo como algo próximo do ideal, se olhássemos para ele como sendo uma vantagem para o marxismo, no
sentido de que poderia ser tanto idealista quanto materialista, casual ou teleológico, assim ou assado. Creio que devemos
deixar este tipo de coisa para a capitalismo manipulatório - a ele cabe inventar suas próprias teorias para o marxismo.
Devemos, entretanto, deixar bem, claro que em cada questão só pode haver uma verdade e que nós marxistas lutamos pela sua
emergência. Enquanto isto não se der, estas correntes continuarão em conflito. Acrescento, entretanto, que sou contra
qualquer tentativa no sentido de apressar o processo por vias administrativas. S,o problemas ideológicos que devem ser
* Publicado originalmente como “Nota da Coordenação” (Excerto) da Revista Nova Escrita/Ensaio nº 8. Escrita, São Paulo, 1981.
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solucionados ideologicamente. Ao mesmo tempo, acho ser necessário dar espaço ao pluralismo ocidental desde que se adote o
princípio de que em cada questão só há uma verdade. Já disse e torno a repetir, que a simpatia de alguém não depende de um
acordo universal, mas do sentimento de que estamos todos servindo à mesma grande causa, e que mesmo que estejamos
envolvidos em polêmicas as mais acirradas, sabemos que essas polêmicas servem ao mesmo objetivo”.
Dissenso e polêmica para as quais seria absurdo, de fato criminoso, voltar as costas, como deseja e propugna a
dogmática staliniana, debaixo da alegação filistéia de que o importante, de todo modo, é sustentar e dar continuidade ao
primado da prática.
Não se incomodando, assim, por infringir palavras expressas de Lenin que, - em princípios do século, exatamente sob
as determinantes de uma “época de dissensões teóricas”, tal como ele próprio a denominou -, estigmatizaram com violento
sarcasmo a redação do Rebótcheie Dielo, que foi, não por acaso, o centro dos economistas russos no exterior, vindo a
representar no II Congresso a extrema-direita do POSDR. Redação que “deixava de lado as questões teóricas, embora elas
preocupassem os social-democratas do mundo inteiro”, e apelou, fora de senso e contexto, para a frase de Marx, contida em
sua carta a É. Bracke, sobre o Programa de Gotha, quando assegura que “Cada passo do movimento efetivo é mais importante
do que uma dúzia de programas”. Lenin não perdoou, nem deixou por menos: “Repetir estas palavras, numa época de
dissensões teóricas, é exatamente o mesmo que exclamar ao passar um cortejo fúnebre: ‘Oxalá tenhais sempre algo que levar’”
(Que Fazer, I, 4). será preciso aditar mais algum comentário, para sublinhar a propriedade e a atualidade desta primorosa
estocada?

DEZEMBRO/80
56

LULA VERSUS LUÍS INÁCIO DA SILVA*

Haverá, por ventura, nos dias em curso, algo mais importante e decisivo, na dinâmica de qualquer país - e do nosso de modo
especial -, do que as massas trabalhadoras e seus movimentos? E polêmica mais séria e apaixonante do que a gerada por estas
realidades e suas perspectivas, no esforço de apreensão e opção a que todos somos obrigados? Na certeza tranqüila de que
essas preliminares só possam ser respondidas de um único modo, a Nova Escrita/Ensaio, neste n. 9, segundo desta sua fase,
dá seqüência ao trabalho, na letra e no espírito de sua definição editorial, trazendo diretamente ao centro da arena a figura, rica
em matizes, de Lula - identidade de consagração sindicalista - enxoval político de Luís Inácio da Silva, nome do militante
partidário. E já nisto fica reconhecida uma extraordinária forca positiva, e vai insinuada uma imensa controvérsia.
Ao longo de seis horas de gravação, Lula (e) Luís Inácio da Silva refizeram - pela reflexão - um percurso que teve
início em meados da década passada; mas deixando, com toda propriedade, o empenho mais enérgico para o tratamento da
porção maior e fundamental, que se materializou a partir dos braços cruzados de 78, avançando espetacularmente pelas
jornadas memoráveis de 79.
Andamento que se embaraça e desorienta sofrendo, em meio a uma campanha que poderia ter sido colossal, as
perplexidades de 80; para em seguida se apagar ao longo de muitos meses, a ponto de chegar inerme à campanha de 81. Será
depois deste momento melancólico que tornarão a despontar as energias dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo,
precisamente com a reação (num primeiro instante tímida e hesitante) à proposta de redução da jornada de trabalho, tramada
pela Volks, o equacionamento da composição e nomeação da Junta e o processo, agora finalizado, de resgate do Sindicato, de
fato e de direito, através das eleições sindicais, que registraram a retumbante vitória de Lula, derrotando inclusive as
provocações e os disparates da violência fanática, travestida de ideologia e programa político.
Durante seis horas ele narrou, repensou, foi questionado e, por vezes, contestado; teve de admitir insucessos e
perplexidades (que não são apenas suas), reafirmou opiniões e nem sempre logrou persuadir; em suma, junto com a solidária e
fraterna equipe de entrevistadores da Nova Escrita/Ensaio ensaiou aprofundar uma análise, que é vital para todos nós.
Resultou, de um lado, um registro de peso para futuras retomadas analíticas; doutro, um importante esforço que visa empurrar
as coisas para frente, tomando consciência que ainda há muitas respostas a serem dadas, e que outras tantas, que andam sendo
oferecidas, não podem ser tomadas como válidas.
Lula e Luís Inácio da Silva - a extraordinária luta sindical e as preocupações com a política partidária. O sindicalismo
pujante que retomou e conduziu a nível bem mais alto os melhores sentidos e aspectos de toda uma antiga tradição dos
embates operários Pela outra face, a necessidade de equação partidária para efetivar a extensão da luta de uma categoria e de
uma classe para toda a sociedade e para os âmbitos do poder. Passo natural, imanente à lógica do movimento operário em
busca de representação e ferramenta política para si e para todos os trabalhadores. Sonho que se desenhou no horizonte
porque um vácuo absoluto gritava na realidade, com o abortamento final de todos os ramos de herança staliniana, distribuídos
num espectro lastimável, que vai pântano (no sentido de Lenin) ao primarismo ideológico banhado de violência sectária.
Sonho que medrou, estirou pernas e braços e se pôs a andar; agora é tempo de precisar no que vem-se convertendo e para
onde vai.
Não cabem nesta Nota considerações extensas, mas é imperioso assinalar alguns pontos para futuras discussões,
engravidando a polêmica necessária.
Não é a primeira vez que falo de Lula. Desde 78 já o fiz em outras oportunidades; e extensamente em maio de 79, no
calor mesmo da campanha salarial daquele ano (Escrita/Ensaio nº. 7). E sempre de modo francamente solidário e favorável ao
líder metalúrgico.
Quero repetir a dose e acrescentar reparos.
Não podem mais restar dúvidas de que Lula é o melhor produto do ressurgimento do movimento operário ocorrido a
partir de 78. É, precisamente, a expressão espontânea do historicamente novo.
Tome-se a narrativa que faz dos primeiros anos de sua atividade em São Bernardo e ter-se-s a comprovação disso. E
nada de significativo contrasta essa espontaneidade até 79. Depois, não que ela desapareça, mas é tisnada por influencias
políticas que, em parte, a desestruturam, confundindo e embaraçando. Do caráter intrinsecamente espontâneo da consciência
de Lula temos uma evidencia, nesta entrevista, quando ele erige, em critério de avaliação de sindicatos e sindicalistas, a
coragem e a honestidade; valores que visivelmente o parametram. A estes, de fato, não é possível recusar grande importância,
mas que, tomados como medida única e exclusiva, não são suficientes para o aceso às nossas realidades, altamente
complexificadas; traduzindo, isto sim, o que há de desamparado ou “inocente” na natureza de um produto social espontâneo,
ou seja, não criado, determinado ou transformado por uma orientação política cientificamente constituída. Expressão, pois, do
historicamente novo, mas de um novo com traços problemáticos: menos como dirigente sindical e mais como figura
partidária. Novo e problemático que expressam, de maneira direta, as próprias virtudes e debilidades dos movimentos dos
quais é produto e agente. Produto destes, objetiva o melhor que aqueles geram, incorporando, infelizmente, também, em certa
medida, seus lados débeis e equivocados.
A campanha de 80 é por todas as circunstâncias a que melhor se presta para referir as debilidades aludidas: foi de
todas a mais longamente preparada e aquela que teve a melhor organização; contudo, foi a menos bem sucedida, mais do que
isso, foi derrotada no confronto com o empresariado e o estado. Estes, por seu turno, neste ano, também apuraram sua
preparação como em nenhum dos anteriores. Por tudo isto é a que permite ver melhor os problemas.

* Publicado originalmente como “Nota da Coordenação” (Excerto) da Revista Nova Escrita/Ensaio nº 8. Escrita, São Paulo, 1981.
57
Refiro apenas os que a entrevista reflete com mais intensidade e que são os mais graves.
Antes, avanço um referencial analítico, já mencionado em outras ocasiões: no caso brasileiro, dentro das
circunstâncias atuais, a greve operária por razões salariais e condições de trabalho fere diretamente a política econômica
vigente, na medida que é, em si, a denúncia e o combate à superexploração do trabalho (arrocho), motivo pelo qual é
imediatamente política. Por isso é bastante que a greve, em cada caso, consiga efetivar-se, puramente como greve, para ser
vitoriosa enquanto tal, independentemente de mais nada; ou seja, por se objetivar a greve nasce vitoriosa, realiza um tento
político. Suas eventuais conquistas naturalmente ampliam esta vitória inicial, materializando-a para seus agentes que, deste
modo, são reforçados (estimulando e reforçando as outras categorias) em sua disposição de luta. Decorrentemente, ao ser,
desde logo, uma vitória ao nascer, sua condução é delicadíssima, pois trata-se, no mínimo, mas de um mínimo essencial, de
que não se desfaça e perca esta vitória política que é conquistada desde o primeiro instante. O que implica em deflagrações e
encerramentos de greve, em avanços e recuos ao longo de seus desdobramentos, sempre rigorosamente formulados e
controlados, lúcido domínio de todos os acontecimentos e completa ausência de qualquer aventureirismo, bem como no
exercício seguro de ampla maleabilidade nos encaminhamentos, combinada com a máxima energia na fixação dos objetivos e
nas suas reconfigurações, quando estas se impõem. Para aquém destas exigências é fácil cair em impasses, malograr diante de
confrontos desproporcionais, desgastando e abatendo o ânimo decisivo das massas, e desmoralizando e aniquilando setores de
lideranças. Lembre-se, de passagem, que é também dos insucessos, na parte ou no todo, de certos processos grevistas, que se
alimentam os adeptos das teses desmobilizadoras, que tem por orientação geral “não aguçar as tensões”, na suposição de que
da calmaria dos sepulcros nascerá fresca e orvalhada a donzela rósea e doce da democracia. Em suma, é óbvio que à falsidade
absoluta do lema abstrato de “não aguçar tensões”, não corresponde como verdade o, igualmente abstrato, “tensionar de
qualquer modo”, como numa convulsão permanente, tanto objetivamente impossível, quanto politicamente grosseria. O que
vale dizer que não se trata, de nenhum modo, do reducionismo simplista do “grevismo” versus “não-grevismo”. Tanto a
realidade, como as intervenções que ela reclama, são muito mais complexas e sutis. E a greve, arma maior dos trabalhadores,
exige discernimento e responsabilidade proporcionais à sua elevada importância implicando em amplo descortino político,
racionalmente constituído e sustentado.
Posta a preliminar, voltemos a Lula.
Seria tão impossível, quanto desnecessário, arrolar aqui todos os pontos de vista corretos e positivos do líder
metalúrgico. Creio que se sumariza o conjunto, dizendo que ele é um franco e conseqüente defensor da convicção
fundamental de que “só acontece alguma coisa neste país com a classe trabalhadora se movimentando”. E sua “garra”,
retomando, de fato, a direção do Sindicato, convertendo-o no único dirigente deposto que logrou tal proeza, testemunha seu
amparo de massas, sua autenticidade e seu valor. Este aspecto é tranqüilo.
Contudo, transpassando a isso, tem de ser apontado que ele paga um ônus, desnecessariamente elevado, a uma certa
forma de contar e ver a história do sindicalismo brasileiro, que parece acreditar que o último meio século é uma pura e simples
pletora de covardias, traições e infindáveis mesquinharias, derivadas do vínculo de dependência que aferra a estrutura sindical
brasileira ao estado. Que esta é uma porção significativa da verdade, é efetivo; que tal dependência é um dos instrumentos
mais eficazes e perversos de controle e sufocamento do movimento operário, também o é. Mas, que o combate ao
atrelamento e a reivindicação de liberdade e autonomia sindicais sejam uma postulação apenas recentemente configurada, isto
é mito. Mito que induz a avaliações errôneas, desencaminhando a condução prática dos movimentos, seja a nível
organizacional, seja a nível dos conteúdos e roteiros políticos, em cada caso concreto, e no todo em seu conjunto.
Quando Lula enfatiza a necessária vinculação, permanente consulta e manifestação das bases (aspectos, no passado,
vistos com grande imperícia e confusão), nada se tem ou pode objetar, ao contrário. Entretanto, quando afirma que a
“vanguarda é a massa” tem-se a dolorosa sensação que ele se espatifa num malabarismo infeliz, que contradiz até mesmo sua
própria experiência, abocanhando uma formulação basista que não provém de seus referenciais originários, e cujas implicações
estão muito pouco articuladas com seus procedimentos objetivos. Aqui se evidencia uma sintomática dissociação entre prática
e postulado.
Sem dúvida, as questões relativas à organização são um calcanhar de Aquiles, no quadro de idéias do autentico e
combativo líder metalúrgico. E se tem a nítida percepção de que se trata de uma fraqueza adquirida. Ele a incorpora, muito
menos em razão de suas magníficas vivências de dirigente sindical - das melhores e maiores que já foram dadas a viver a um
dirigente sindical brasileiro - e muito mais em razão das adjacências políticas que o cercam.
Neste diapasão, é certo, caminha, por exemplo, sua visão do pluralismo sindical, anacrônico e insustentável, tanto
prática quanto ideologicamente; com o qual, no entanto, ele estabelece um namoro ambíguo, onde não faz uma responsável
declaração de afeto que o legitime, mas a imediata admissão da possibilidade de mancebia.
Por outra parte, sobram razões a Lula, quando critica partidos, correntes ou tendências que alardeiam estar, por
princípio, voltadas às causas populares, mas que não respaldam, e concretamente se opõem, à movimentação sindical mais
avançada e conseqüente inibindo, em realidade, o movimento operário, nele mesmo introduzindo desvalores que o desossam
e o reduzem à impotência.
Todavia, como verá o leitor, apesar desta propriedade de vistas, Lula não revela a melhor compreensão política
quanto a alguns aspectos essenciais da campanha de 80, com repercussões inclusive sobre a análise dos anos anteriores.
Tome-se a afirmação: “podem ter certeza, quando saímos para a greve (80) o objetivo era desbancar a política salarial
do governo, e era necessário mostrar que a classe trabalhadora não estava iludida e queria conquistar alguma coisa, porque, na
verdade, de 78 a 80 ela não conquistou nada de substancial”, combinadamente com uma outra, síntese de várias colocações,
aqui estampada de forma sumária: em greve não há como evitar o isolamento político.
O que salta à vista é a fantástica desproporção entre o objetivo, pretendidamente fixado, e a base territorial
mobilizada.
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A suposição de que, circunscritos a São Bernardo ou no máximo ao ABC, seria possível abalar aspecto tão
fundamental para sistema econômico vigente. A terrível incompreensão de que, restritos à própria faixa de categoria dos
metalúrgicos em greve, jamais representariam uma forca suficiente para um objetivo tão amplo. O que desorienta, é óbvio,
toda a tramitação da greve e leva ao desperdício as forcas acumuladas, mobilizadas e postas em luta, como, de fato, veio a
ocorrer.
Quando se adiciona, à desproporção apontada, a afirmação de que o isolamento político é fatal num processo de
greve, enormidade esta tão grande quanto a primeira, temos a dolorosa comprovação de que a campanha de 80 estava
impedida de possuir uma formulação política de condução. Que foi rusticamente concebida como uma espécie de bizarro
concurso de resistência, que teria a propriedade de quebrar as forcas econômicas do capital e as energias políticas do estado
que engendra.
E o pior é que Lula, ao longo de toda a entrevista, não se mostrou capaz de compreender tais aspectos, revelando, em
síntese, bloqueamento para a questão fundamental das greves em geral: a necessidade, tanto maior quanto mais importante a
greve for, de preparar e desenvolver a ampliação de sua base social e política.
Sem o que é vitimada pelo isolamento. Tal desconhecimento,contudo, não é um “privilégio” de Lula. Pesarosamente
esta ignorância foi a coisa mais bem dividida entre os membros do comando em 80, engolfando também aqueles que, meses
depois, viriam a emprestar suas assinaturas a documentos que deram eco a certas linhas de interpretação da greve em seu
conjunto, quando então pretenderam uma clarividência que, de fato, não era deles. Em verdade, todos sem exceção,
lamentavelmente sem nenhuma exceção, eram jejunos quanto a este problema. Vale, à guisa de simples depoimento, referir
que tive oportunidade, precisamente a 30 de marco de 80, no Estádio de Vila Euclides, logo após a decretação da greve, de
travar contato com quase uma dezena daqueles que mais viriam a sobressair na movimentação daquele ano; a única coisa que
indaguei a todos, naquele primeiro contato, foi exatamente quanto às providencias tomadas em busca da ampliação da base
social e política de sustentação do movimento que se iniciava.
Lamentavelmente, não obtive nenhuma resposta com um mínimo de consistência. Em verdade, nada neste sentido
fora ideado e muito menos providenciado, a questão política central simplesmente não era compreendida. Havia apenas uma
mera fé tecnicista numa suposta organização esplendida, que teria sido montada.
Poderíamos, para finalizar, transitando de Lula para Luís Inácio da Silva, deixar assinalado que “ambos” se
confundem, na formulação das relações entre sindicato e partido político, em mais uma debilidade adquirida.
Mas, se queremos, ao lado de mais uma vez grifar o valor de nosso personagem - lembrando seu posicionamento
favorável, ainda que não nos moldes mais desejáveis e conseqüentes, em torno da necessidade de uma proposta econômica da
perspectiva do trabalho, única a poder ser base e norte para uma efetiva construção democrática no país; mas, repito, se junto
a isto se impõe sintetizar suas fraquezas, dir-se-á que ele compreende e desfralda as bandeiras das necessidades operárias de
independência sindical e política, mas desconhece por completo a terceira necessidade fundamental: a independência
ideológica da classe operária.
Sendo assim, Luís Inácio da Silva vive como que intermitentemente sob ameaça de afogamento, arrastando, muitas
vezes, pelo braço ao resistente Lula, tipo mais sólido.
E tudo isso não pode surpreender, pois na eclosão espontânea das forcas das massas, que teve início em 78, elas não
encontraram, infelizmente, um movimento de idéias calçadas com rigor, de cuja simbiose pudesse nascer uma movimentação
própria e consentânea às circunstâncias e à destinação dos trabalhadores.
Resta dizer que o futuro de Lula não importa apenas a ele, de modo que o dito aqui, suscitador de discussão, é uma
parcela de um esforço geral a que todos deveriam responsavelmente se filiar.
Se não bastasse a larga matéria referente à Luís Inácio da Silva, o Lula, neste nº 9 da Nova Escrita/Ensaio, ainda se
estampa uma entrevista com três componentes do Comando de Greve da Fiat.
Desnecessário ressaltar a enorme atualidade do assunto, basta dizer que se tratou da primeira greve contra o
desemprego, da primeira reação que tentou uma parcela da classe operária brasileira posta diante da expressão mais recente da
política econômica vigente há década e meia; diga-se do rosto mais monstruoso da política do arrocho salarial.
Verá o leitor que, tanto ou mais que a anterior, a matéria é todo um banquete para quem deseje a discussão. Registro
apenas que, também neste caso, a ausência, no país, de uma consciência política alicerçada em sólida teoria conduz a estranhos
produtos, fazendo com que ressoem, no aqui e no agora, vozes de outros lugares e tempos, que a história, de fato, já
reprovou. O que importa, concretamente, é perceber que as energias dos trabalhadores brasileiros estão à flor da pele, e que, à
falta de condução política real e racional, ficam dolorosamente inaproveitadas. O que, em realidade, se assiste é ao triste
espetáculo do desencontro entre a pulsação da base e os descaminhos das teses e propostas político-partidárias. Estas, de um
ou de outro modo, sempre qualitativamente inferiores ao valor e às possibilidades do movimento de massas.
O assunto é extremamente complexo. Quero acenar apenas apara o fato de que os partidos, ou de modo mais
genérico os organismos políticos de oposição, em nosso país, tem sido incapazes da captura científica do real e a partir desta
de uma válida equação programática. Ou seja, na medida em que não tem havido consistente apreensão e explicação dos
fenômenos econômico-político-sociais que nos marcam, os mitos ideológicos tem habitado o pensamento político,
funcionando como a sua verdadeira sabedoria. Mitos, só para exemplificar, que vão desde postulações, como a do feudalismo
enquanto diagnóstico para a história brasileira, até formulações mais recentes, como as “teorias” do populismo ou do
fascismo.
Convergindo, hoje, tais colocações, por mais distintas que sejam suas origens, aos mitos maiores do nosso momento:
a constituinte e a democracia formal salvacionista, incrivelmente esquecidas, numa paráfrase de Marx, que a democracia real é
a verdade da constituinte, e que a constituinte não é a verdade da democracia real.
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AGOSTO/81
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“HASTA CUANDO”?
A PROPÓSITO DAS ELEIÇÕES DE NOVEMBRO*

“No Brasil nada


se acumula. todos os dias se
começa tudo, novamente.”
Fernanda Montenegro
Folha de São Paulo, 15-8-82

Permita-me o leitor o espanholismo, pois a atmosfera brasileira só está para bolero, no máximo para tango...
Tango ou bolero, nas danças e contradanças do sistema e das oposições. Gestos largos, passadas longas, volteios
rápidos - tudo para causar efeito, impressionar as galerias, arrancar votos da multidão, que não baila... ou, se dança, o faz em
outro terreiro, fá voltas com salários arrochados, custo de vida em sustenido, saúde desprotegida a abandonada, educação
perdida na pancada monótona de um surdo solitário.
Tango ou bolero, nas máscaras lívidas, sob luz suspeita, que sorriem ou esgazeiam, buscando sempre o crédito do
leitor; este - por esta vez importante, mas sempre tratado com o desprezo feroz e dissimulado de quem o usa... De todo o lado
e de toda a parte, pois, como no tango ou no bolero estereotipados, não há mensagem ou conteúdo, murchados em simples
forma, que sempre se repete:
boneco mecânico, mal-azeitado, a afirmar, com gesto oco e sincopado, as glórias do sistema ou as virtudes do contra-
sistema.
Tango ou bolero: tango velho e encarquilhado; bolero de data mais que remota, esgotado pelo tempo. E lá vai o par
sem viço, em rodopios sempre os mesmos: ele, o cavalheiro do sistema, jaqueta longa, quase batendo nos joelhos, cabelo
englostorado, envernizando o crânio sestroso, rico e poderoso em manobras e recursos; ela, a dama das oposições, saiote de
cetim partido ao lado, exibindo a coxa magra e a liga rota de tantas cavalgadas, finge de mocinha, tem faniquitos, lança a
cabeça para trás em ânsia de entrega, e, quando vai ser tomada, bate o salto na passarela e proclama em voz anacrônica a sua
anacrônica virtude.
Nos olhos do par vicioso, uma mesma luz velada: sabem que enganam, com uma diferença - um sempre teve, o que a
outra sempre quis...
Ao fundo os olhos vivos e fortes dos que não dançam, que ainda não entendem e, quando entendem, não podem...
Tango ou bolero...
“Hasta Cuando”? Metáforas à parte, o panorama brasileiro, quase vinte anos após o desencadeamento do processo
contra-revolucionário de 64, É, para dizer o mínimo, melancólico.
O Número 10 da Nova Escrita/Ensaio vem à luz precisamente fá vésperas do tango (ou bolero?) eleitoral de 15 de
novembro.
Tango eleitoral com música e letra do sistema, por band leader - João, um brasileiro, não lhe faltando, Porém, a
orquestração das oposições.
Para o compositor, letrista e regente, tanto quanto para as orquestradoras, as bailarinas hão de ser as massas eleitorais.
E estas, a gosto ou a contragosto, já estão “dançando”... E com elas “dançam!” as melhores perspectivas, as possibilidades
mais generosas - “dança!” a alternativa única e verdadeira, que teria se firmado se não houvessem rasgado a letra que as massas
esboçaram de 78 a 80, se não tivessem queimando a vigorosa partitura que elas rascunharam na mesma época, se fá massas
tivesse sido possível encontrar uma vanguarda que lhes oferecesse uma orquestração e um regente ideologicamente
independente (não basta ser organizacional e politicamente autônomo), do ponto de vista proletário.
Muitos “ses”, dirão. Mas há ses e “ses”. há o “se” da conjectura trivial, do devaneio barato e escapista, mas há o se da
possibilidade objetiva, inscrita na lógica do real. É deste que falo, pois é deste que se tratou, naqueles anos tão recentes, e tão
enterrados. É um se de oportunidade objetiva, objetivamente perdida. Um se de possibilidade concreta, concretamente
malbaratada.
Em face da rica alternativa que se foi põe-se, hoje, a pobreza de um tango (ou bolero?) ruim. Um velho e
estereotipado “Tcharan!, tchan, tchan, tchan, TCHAN!” de tônica manjada e pirueta ridícula. Final de cena, explodem os
acordes estrepitosos, todas as luzes sobre o par: jaz a dama fenecida sobre o esgotado joelho lunfardo, enquanto de perna
estirada, com a ponteira aguda do sapatinho de verniz, dá um pontapé... na Lua. Surpreendida, de lado, exibe uma calçola
antiga, toda ressequida... É toda uma política sem tesão.
Disse que o panorama é melancólico. Sou, acaso, injusto ou, pelo menos, exagero? Qualquer processo eleitoral,
excluídas situações excepcionais e falsas teorias - é importante. Muitas vezes, não tanto pela escolha possível que se pratica,
mas por tudo aquilo que o processo enseja no plano do contato, esclarecimento e organização populares. De todo modo,
* Artigo publicado originalmente na Revista Nova Escrita Ensaio nº 10. Ensaio, São Paulo, 1982.
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importante. Mais ainda quando se trata de episódio que envolve pela primeira vez, depois de mais de quinze anos, relevantes
cargos executivos. Quando, em suma, o evento poderia transformar-se em algo decisivo na pugna pelo abatimento do sistema
imposto desde 1964. Poderia, friso, não pode mais; está perdido como instrumento para tal finalidade. E isto é uma vitória
antecipada da sistema, sejam quais forem os resultados numéricos que venham a se configurar.
Não se iludam (adianta recomendar?) as oposições constituídas - legais ou semiclandestinas -: sob este ângulo
essencial elas já perderam. E, lamentavelmente, junto com elas perdemos todos nós - as massas e todas as individualidades
sem-partido, que somam a esmagadora maioria dos eleitores e a quase totalidade da população brasileira. Perdemos
dramaticamente, sem alternativas por responsabilidade delas, da mesma forma que não temos opção partidária integral, que
seja legítima, válida, racionalmente sustentável e praticamente coerente.
E, se já perdemos, além de cumprir a 15 de novembro a ritualística do voto - o que sem dúvida faremos (pois
qualquer forma de abstenção é insustentável, absurda, erro grosseiro, diante da oportunidade mesmo essencialmente
desgastada, quase não mais que simbólica, de negar o sistema e seu valete - o PDS), trata-se, além da obrigatória consumação
do rito a que lamentavelmente estão reduzidas as eleições de novembro, de saber por que já estamos batidos. Por que
amargaremos a derrota, por mais que possa, eventualmente, se desenhar a “vitória” aritmética dos algarismos.
Princípio por uma afirmação sumária: estamos vencidos porque o processo político eleitoral foi politicizado por
interesse e iniciativa do sistema e pela hegemonia ideológica castradora a que estão submersas as oposições.
Politicizar é tomar e compreender a totalidade do real exclusivamente pela sua dimensão política e, ao limite mais
pobre, apenas de seu lado político-institucional.
Enquanto falsificação teórica e prática, o politicismo é um fenômeno simétrico ao economicismo.
O politicismo, entre outras coisas, fenômeno antípoda da politização, desmancha o complexo de especificidades, de
que se faz e refaz permanentemente o todo social, e dilui cada uma das “partes” (diversas do político) em pseudopolítica.
Considera, teórica e praticamente, o conjunto do complexo social pela natureza própria e peculiar de uma única das
especificidades (política) que o integram, descaracterizando com isto a própria dimensão do político, arbitrariamente
privilegiada.
Em suma, consiste na liquefação da rica carnação da realidade concreta em calda indiferenciada, que é suposta como a
política, enquanto não passa de uma hipertrofia do político, uma espécie de hiperpolítica que, nesta distorção, nega a si
mesma.
Em outros termos, convertendo a totalidade estruturada e ordenada do real - complexo repleto de mediações - num
bloco de matéria homogênea, além da falsificação intelectual praticada, o politicismo configura para a prática um objeto irreal,
pois este resulta de bárbara amputação do ente concreto, que sofre a perda de suas dimensões sociais, ideológicas e
especialmente de suas relações e fundamentos econômicos.
O politicismo arma uma política avessa, ou incapaz de levar em consideração os imperativos sociais e as
determinantes econômicas. Expulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo econômico meramente paralelo
ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais, e jamais
admitindo o caráter ontologicamente fundante e matrizador do econômico em relação ao político.
Trata-se, está claro, de um passo ideológico de raiz liberal.
É mesmo uma certa forma de acentuação do princípio liberal: a economia pertence à intangível esfera do privado
(hoje, arautos de diversas procedências se deleitam na invocação pagã, da sociedade civil), enquanto a política vai,
formalmente estufada, para o terreno da “coisa” pública.
A nossa burguesia, para quem o liberalismo econômico (a livre troca para sustentar e ampliar sua própria natureza
explorada, através da associação crescente com a exploração hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre
apropriado e conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia ter aspirado a ser democrática, tem no politicismo sua forma
natural de procedimento.
Politicista e politicizante, a burguesia brasileira, de extração pela via colonial, tem na forma da sua irrealização
econômica (ela não efetiva, de fato e por inteiro, nem mesmo suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu
politicismo. E este integra, pelo nível do político, sua incompletude geral de classe.
Incompletude histórica de classe que afasta, ao mesmo tempo, de uma solução orgânica e autônoma para a sua
acumulação capitalista, e das equações democrático-institucionais, que lhe são geneticamente estranhas e estruturalmente
insuportáveis, na forma de um regime minimamente coerente e estável. O politicismo atua neste contexto, enquanto produto
dele, como freio e protetor.
Protetor da estreiteza econômica e política da burguesia; estreiteza, contudo, que é toda a riqueza e todo o poder desta
burguesia estreita. Efetivamente subtrai o questionamento e a contestação à sua fórmula econômica, e aparentemente expõe o
político a debate e ao “aperfeiçoamento”. Portanto, atua como freio antecipado, que busca desarmar previamente qualquer
tentativa de rompimento deste espaço estrangulado e amesquinhado.
Veja-se, como iluminura mais nítida, de 64 para cá: tempo em que a burguesia brasileira atinge seu ponto mais alto de
desenvolvimento, e em que, decorrentemente, explicita com maior expressão seus caracteres essenciais. O regime político-
institucional, desde Castelo, sempre foi afirmado, pelos donos do poder, como passível de “aperfeiçoamento”. Em
contrapartida, a política econômica, em tudo que ela reúne de estrutural e decisivo, sempre foi e continua sendo dada como
intocável.
Politicista por essência de sua formação histórica, a burguesia, a partir de 64, já com ampla consciência para o
manuseio ativo desta sua característica intrínseca, e em progressivo aperfeiçoamento, converteu-a em recurso estratégico, que
se manifesta, desde o discurso de posse de Castelo, até o momento atual da auto-reforma do sistema, alcunhada de “abertura”,
engolfando, por inteiro, neste estratagema, o conjunto das oposições. Numa palavra, fez com que estas adotassem o princípio
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politicista, no que é, em grande medida, um arrastar das oposições ao campo ideológico do sistema. Se este pôde domar
ideologicamente as oposições, isto não é devido apenas aos seus “méritos”, à sua efetiva, ainda que odiosa e exasperante,
capacidade de operar os jogos do poder. A base sobre a qual atuou é a razão fundamental do sucesso que obteve, ou seja, tal
como o sistema, as oposições brasileiras estão sob hegemonia ideológica burguesa. A ambas - sistema e oposições - o
politicismo corresponde à faixa de segurança onde se movem em terreno próprio. Para além deste ficam as perspectivas das
massas trabalhadoras, as únicas que poderiam e estão interessadas em romper o politicismo. Mas estas, entregues a si próprias,
não tem como determinar os processos e conferir, ao conjunto do movimento, a direção implícita aos conteúdos que
desenvolvem espontaneamente em certas iniciativas. Tem-se estiolado em várias oportunidades e acabam sempre por ficar
como ponto de apoio tolhido, sobre o qual incide a prática da “oposição pelo alto”, tão própria ao politicismo, que tem
caracterizado a ação das legendas e dos partidos de oposição, mesmo daqueles que se pretendem vanguardas da classe
trabalhadora.
A engrenagem perversa, vista no conjunto de seu funcionamento, opera o desfibramento e a subordinação,
especialmente ideológica, mas com todas as derivações políticas, das oposições ao sistema e das massas às oposições. Resulta o
óbvio e o gritante: o sistema vê-se em condições de reproduzir, sem interrupção, sua capacidade de controlar os processos e
de manter a vantagem das iniciativas.
O quadro atual é a penúltima etapa da reconversão do sistema, sob controle e iniciativa do próprio sistema.
Encaminhamento -, cujas síndromes mais remotas e ambíguas, velhas de quase dez anos, encontram-se já nos preparativos,
com vistas ao exercício do poder, do “candidato” Ernesto Geisel -, itinerário que, sob formas dominantemente contraditórias,
vem atravessando fluxos e refluxos, persiste e vem objetivando a passagem de uma forma de poder para outra, conservando
intactas a natureza deste mesmo poder e a sustentação fundamental que o gera e anima: o complexo de um período de uma
particular acumulação capitalista, expresso numa política econômica que não é posta em causa. Aparato e linha econômica por
cuja sobrevivência estrutural, ao inverso, todas as “mudanças” são justificadas, e em benefício da qual todas as “alterações”
são toleradas e propostas. Ou seja, mudar aparentemente tudo para assegurar a inamovibilidade do centro fundante, nesta
plástica incruenta que apenas dessangra as energias dos adversários.
Quais os marcos, de partida e de chegada, do andamento em curso? O trânsito em efetuação vai do bonapartismo à
institucionalização da autocracia burguesa.
Deslocamento admitido, a nível hipotético e como nota genérica do ideário da contra-revolução, desde 64 (basta
lembrar dos desejos proclamados e das possibilidades sempre reiteradas, quanto aos propósitos de “aperfeiçoamento
institucional”, e, posteriormente, das sístoles e diástoles golberianas), converte-se em necessidade prática com a emergente
crise do “milagre”, a partir de meados de 1973.
A forma bonapartista, que então vigorava em sua plenitude, tem sua base social estremecida; sofre o lasseamento
decorrente da desconjunção entre as distintas frações monopolistas, nacionais e estrangeiras, até então satisfeitas com os
proventos do “milagre”, mas que naturalmente se recusam a pagar os ônus da crise, que se manifesta e se inclina, sem
reversão, para o agravamento. Tende a desaparecer, pois, a unanimidade que garantia o monolitismo (mais operacional que
essencial) de um governo incontrastável que, nos “bons tempos”, ainda oferecia um duplo serviço: representava,
“evanescente” - parecendo ser e não sendo, com suas estrelas e dragonas, uma posição “acima das classes”, portanto, “acima
das contradições”, ao mesmo tempo que fazia, sem quaisquer melindres, todo o trabalho sujo da suja repressão.
As frações da burguesia intranqüilizadas, tementes aos danos materiais, que dos morais elas não cogitam, esfregaram e
desentorpeceram as línguas, desejosas de manifestarem suas queixas e decididas, agora, a buscarem “novas soluções”. Era
preciso falar! E se a falar se passa, não mais apenas aos cochichos nas câmaras e antecâmaras do poder, mas nas ruas e pelos
jornais, como é possível calar os jornais e emudecer as ruas? - Abertura! Mas falar não é apenas informar; acima de tudo é
propor uma ação. Quando neste “dialogo”, entre 78 e 80, entraram as massas trabalhadoras, elas introduziram o argumento
concreto das greves.
Forçaram o tecido lasseado, esgaçaram-no, romperam-no em alguns pontos; em suma, dilataram as fissuras do
sistema. Mas foram impedidas de prosseguirem: pelo sistema e pelas oposições.
A fala das massas e a fala das frações monopolistas: desde logo, falas radicalmente distintas; propostas de ação
qualitativamente opostas.
As frações monopolistas (refiro apenas as componentes decisivas) ansiosas para remendar a plataforma benquista de
seus bons negócios, ardentes por lhe aplicar uma meia-sola redentora, carecida com urgência, mas só enquanto certificadas de
não lhe arranhar, nem de leve, o caráter e a direção,parolavam pelo “aperfeiçoamento das instituições”. Na velha linha e na
velha forma. Politicismo!
As massas, muito mais no ato que no verbo, exibiram a chaga alargada de antiga fome e com ela derrubaram, por um
momento, instituições depravadas (lei antigreve, por exemplo) e apontaram o caminho necessário: liquidar o alicerce
econômico da ditadura, despedaçar a política econômica da superexploração do trabalho, dizer não, definitivamente , ao
arrocho salarial e com isto puxar o tapete sob os pés do sistema. Romper, portanto o politicismo, fazendo prevalecer os
conteúdos de raiz, na forma de um movimento das bases. Pela ação das bases atingir a raiz do sistema. E, assim, no
desdobramento complexo de um complexo processo, chegar a abatê-lo. Dar-lhe fim pela combinação das exigências e
prioridades autenticas das especificidades efetivas do todo concreto, resgatando, desse modo, pela morte do politicismo, a
verdadeira prática da prática política verdadeira. Linha nova de novos conteúdos. Política!
Desfeitas, pela crise do “milagre”, as condições de sustentação da ditadura militar bonapartista, tratava-se de
encaminhar o desenho de outra forma de sustentar a mesma dominação. Perecidos estavam os fundamentos do
bonapartismo, até mesmo porque, para certas angulações dos setores dominantes, em dada medida e para aquela fase, estavam
cumpridas suas finalidades: economicamente, garantira a superexploração do trabalho, patrocinando curta, mas intensa
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acumulação - nada mais do que a “inchação modernizadora” do aparato da velha subordinação estrutural da economia
nacional, é certo, mas que fora suficiente, por alguns anos, para nutrir os cofres relativamente limitados e aplacar os temores
ilimitados de nossa estreita burguesia; politicamente, desorganizada e aterrorizara o movimento de massas, especialmente o
movimento operário, e desbaratara as oposições, especialmente do ponto de vista ideológico, mas também emasculara sua
programática e influíra poderosamente em sua orgânica.
Premida, pois, pela crise econômica e tendo, do outro lado, a imensa insatisfação das massas, entregues, porém, à
orfandade política, a travessia do sistema, em que pesem dissensões e dificuldades intestinas e complicadores emergentes de
seu lado externo, pôde ser empreitada, pois, sob condições que lhe deixavam razoável espaço de manobra e boa margem de
probabilidade de realização. O fundamental seria imobilizar as massas; estas, pelos seus fins e pelos seus meios, estratégica e
taticamente, eram o grande obstáculo eventual. No mais, seria continuar arrastando e confundindo as oposições partidárias,
além de controlar as resistências e as ambições internas ao sistema.
Na essência, portanto, a passagem do bonapartismo à autocracia burguesa institucionalizada é transpassada, de ponta
a ponta, pelo politicismo. Este se revela como via, mediação e objetivo; mostra-se na fisionomia de chave decisiva de todo o
encaminhamento.
O movimento espontâneo das massas trabalhadoras, que se verificou entre 78 e 80, ameaçou fletir o percurso,
negando o politicismo e abrindo caminho para a política, para o historicamente novo. Nisto se mostrou, como por vezes
ocorre nas lutas sociais, à frente dos partidos políticos, mas seus esforços foram baldados.
Entre a política e o politicismo prevaleceu, lastimavelmente, o segundo, o historicamente velho, por iniciativa do
sistema e pelo concurso das oposições partidárias.
Predominando o velho politicismo, a travessia, partindo do bonapartismo, desemboca, sem alternativa, na
institucionalização da autocracia burguesa.
Importa dizer que a institucionalização da autocracia burguesa é a expressão jurídica do politicismo, enquanto o
bonapartismo é sua expressão explicitamente armada, na exata medida em que ambos são formas (no plural) de poder político
de uma mesma forma de capital, de um mesmo modo de ser capitalista, que o politicismo sintetiza. No sentido de que o
politicismo é a essência, tanto de uma como do outro, exprimindo a estratégia e a tática da incompletude econômica da nossa
burguesia e da sua correspondente estreiteza política. Determinada, histórica e estruturalmente, a ficar muito aquém dos
limites mais ricos e amplos das entificações burguesas clássicas e até mesmo prussianas, desconhece a autonomia econômica e
lhe é completamente estranho o encargo de universalizante político - não pode se ver e assumir, na particularidade de seus
interesses, como representante de todas as categorias sociais, da sociedade em seu conjunto.
Vedados lhe são o “luxo” e o simulacro desta representação, mesmo na forma de pretensão clássica, dado que se
encontra sempre, pela sua atrofia estrutural e pela época em que surge e se manifesta em seus desdobramentos, em conflito
aberto com as categorias sociais que tem por baixo, enquanto mansamente se subordina ou concilia com aquelas que se
emparelham na sua própria altura ou estão acima dela. Resultam, pois, dois pólos para a genuína dominação capitalista no
Brasil: a truculência de classe manifesta a imposição de classe velada ou semivelada, que se efetivam através de um mero
gradiente, excluída a possibilidade da hegemonia burguesa, no caso, resultar de e no quadro integracionista e participativo de
todas as categorias sociais, que caracteriza, com todos seus limites conhecidos, a dominação de tipo democrático-liberal. Vale
repetir, esta é uma inviabilidade, no quadro nacional, enquanto um regime minimamente estável e coerente. Ou seja, do
mesmo modo que, aqui, a autocracia burguesa institucionalizada é a forma da dominação burguesa em “tempos de paz”, o
bonapartismo é sua forma “tempos de guerra”. E na proporção em que, na guerra de classes, a paz e a guerra sucedem-se
continuamente, no caso brasileiro, no caso da objetivação do capitalismo pela via colonial, as formas burguesas de dominação
política oscilam e se alternam entre diversos graus do bonapartismo e da autocracia burguesa institucionalizada, como toda a
nossa história republicana evidencia.
Fico apenas com um exemplo, para remeter à afinidade estrutural e indicar as diferenciações singularizadoras entre 37
e 64, dois momentos de vigência da forma bonapartista, e entre 45/6 e nossos dias, duas manifestações de passagem à
autocracia burguesa institucionalizada.
No plano econômico, 64 é muito mais amplo que 37, ao passo que, do ponto de vista político, 45/6 é muito mais
generoso que o quadro atual.
À saída do Estado Novo, o Brasil, dono então, no exterior, de significativos créditos em dólares, era um país a meio
de um trânsito hiper-tardio para o capitalismo verdadeiro (industrial), apresentando um perfil econômico extremamente
regionalizado, cuja interligação das partes era ainda frouxa, desenhando um mercado capitalista puntiforme; sua subordinação
ao capital estrangeiro continha ainda ambigüidades, lacunas ou latências próprias de um processo inconcluso, que ainda
permitiam, talvez, a suposição ou a projeção de possibilidades de um capitalismo autônomo.
Hoje, emergindo da forma bonapartista do sistema montado em 64, o pais, titular, negativamente privilegiado, de uma
imensa e inamortizável dívida externa, atestado e radiografia da natureza da acumulação praticada no período, é um território
econômico estruturado na figura de um capitalismo monopolista subordinado, sotoposto às engrenagens de um mundo
definido pelos monopólios imperialistas. País que conservou e inflou desníveis e contrastes regionais, mas que se apresenta
organicamente centralizado, com um mercado capitalista integralmente formado. A internacionalização da economia
completou e aprofundou sua subsunção econômica, conferindo-lhe os limites de sua acumulação industrial, que se
concretizou na distorção e na incompletude, determinando a total e definitiva impossibilidade de qualquer fantasia quanto à
autonomização do sistema capitalista nacional.
Na euforia peculiar do pós-guerra, que registrou acentuada elevação de prestígio do campo socialista, o PC, em
meados dos anos quarenta, ressurgindo do pouco que dele restara na década anterior, conheceu enorme crescimento
64
numérico, expandiu sua influencia com rapidez detendo (independentemente de méritos ou deméritos, que neste ponto não
discuto), praticamente sem emulo, a hegemonia da esquerda brasileira.
Naquele momento o próprio ethos liberal, também fortalecido na luta contra o fascismo, parecia recuperar, no plano
internacional, algum espaço, que estava inteiramente corroído desde a Primeira Guerra Mundial, reforçava, assim, a aparente
inclinação intrínseca ao quadro brasileiro, no sentido de uma resolução burguesa de ordem democrático-liberal.
País, à época, com um contingente proletário relativamente pequeno, veria, apesar disto, o desenvolvimento essencial
do dispositivo perverso, porém muito eficiente, através do qual, a hiper-retardatária burguesia brasileira, deu forma
institucional ao poder autocrático que lhe é próprio. A combinação de um aparato constitucional de feitio e ingredientes
liberais (Constituição de 46) com um amplo complexo legal destinado a “organizar”, controlar e reprimir o movimento
operário em especial e o sindicalismo em geral. Que os ramos, desta armação jurídica, neguem um ao outro é próprio da lógica
orgânica dessa burguesia incompleta e imperfeita; é o seu modo legal de exercer ao limite máximo o poder de sua dominação,
histórica e estruturalmente restrita.
Completa este perfil da segunda metade da década de quarenta, cujos lineamentos políticos essenciais perdurarão até
64, a lembrança de que o aparelho repressor do Estado Novo era, digamos assim, para fixar diferenças, feito em boa parte de
“improvisos” e tinha, em certa medida, todo um cunho “amador”.
Por derradeiro, mas não por último, não se há de esquecer que Vargas tentou empreender, mas não conseguiu chegar
à auto-reforma do bonapartismo do Estado Novo. Foi deposto. Com certeza não por aqueles que desejavam mudar as coisas.
Talvez porque tenha intentado algo para além da simples auto-reforma.
O sumário de nossos dias mostra-se bem diverso.
Em que pese sua ampliação e fortalecimento, o campo “socialista” (socialismo de acumulação) apresenta-se
radicalmente desgastado; desnudado em suas aberrações e dilemas, vive uma crise enorme e indisfarçável, contribuindo assim,
de modo decisivo, para a crise ideológica geral do mundo contemporâneo.
No interior do país, os diversos braços do stalinismo, em que se pulverizou o antigo PC, mostram-se como
organismos restritos e amesquinhados, definitivamente exauridos e embrutecidos. Sua tendência é prosseguir no plano
inclinado das sucessivas subdivisões e no aprofundamento da alienação teórica e ideológica em que estão submersos. A
esquerda em geral, do mesmo modo, apresenta-se estilhaçada, em ampla dispersão ideológica.
Neste quadro, mais do que penoso, não se esboça, nem pode-se esboçar, qualquer sombra, por mais remota que seja,
de hegemonia.
Por seu lado, o ideário liberal, internacionalmente reduzido à mera condição de sanção teórica do “reformismo” no
poder, é uma vaga ideológica anacrônica em refluxo. Sob certos aspectos tem ainda guarida entre alguns curiosos penitentes
do stalinismo, e em determinadas formas do “gauchismo” não marxista, cuja radicalidade se esgota na fronteira acanhada do
liberalismo radical. No que tange à realidade política concreta do país e das classes, hoje, já não desempenha qualquer função
ou influencia de importância. A não ser, e apenas como sucedâneo, na periferia do sistema, nas áreas e regimes (por ex.:
Norte/Nordeste) de maior expressão subcapitalista, onde a arrogância e a infertilidade oligárquicas das burguesias locais
expressam, em determinados espaços, a radicalidade de seu caráter parasitário (forma extrema da negatividade da burguesia
que se origina e reproduz pela via colonial), para as quais não só falta a capacidade, mas até mesmo o desejo e a coragem de
produzir, pois integrar e participar da teia produtiva seria a morte de seu parasitismo lucrativo, conseqüentemente a sua
própria morte.
Ainda diversamente do que ocorria nos anos posteriores à queda do Estado Novo, o país atual apresenta um amplo e
extenso proletariado, inclusive de milhões de trabalhadores do campo. Mas, na mesma trilha daquela época, permanece
armado e profundamente reforçado o dispositivo de “organização”, controle e repressão do movimento operário e das massas
trabalhadoras em geral, ao mesmo tempo que, no presente, ele está jungido a um mosaico constitucional e a disposições
jurídicas como a LSN, que bem testemunham a “largueza” democrática da auto-reforma do sistema.
De modo que, se o dispositivo montado na transição do Estado Novo já era perverso, e o era, a sua perversidade na
transição atual só fez crescer.
O que está em perfeita consonância com o gigantismo do aparelho repressor montado pelo bonapartismo de 64 e por
ele posto a funcionar, e a funcionar está, em moldes profissionais, apoiado em tecnologia avançada.
Resta dizer que, duplamente ao contrário de Vargas, o sistema atual busca apenas e tão-somente a auto-reforma, e já
se encontra em ponto muito adiantado de sua execução. E nada permite suspeitar, no momento, de que não completará
inteiramente seu objetivo.
Quanto a estes dois períodos singularizados, de um mesmo tipo de passagem - do bonapartismo para a autocracia
burguesa institucionalizada -, arroladas que foram certas diferenciações, há que notar e grifar uma ocorrência comum a ambos:
a desconsideração, por parte das oposições constituídas, especialmente das esquerdas, de que a edificação democrática, no
Brasil, é essencialmente função do movimento das massas trabalhadoras; em outros termos, o desconhecimento ou a
ignorância prática do caráter decisivo da centralidade operária na questão democrática.
Não se trata apenas do aspecto universal de que, a partir dos meados do século passado, a burguesia deixou de ser
uma categoria social interessada na criação e desenvolvimento da democracia.
Trata-se de algo mais e de mais específico. Diz respeito ao fato histórico de que apenas para algumas burguesias,
como a francesa, a inglesa, a democracia foi um objetivo real; de que outras, como a além, nunca estiveram predispostas para
tal edificação; e de que para outras ainda, como a brasileira, tal propósito jamais poderia ter ocorrido. Vale fazer aqui uma
transposição, recordando, no espírito de uma passagem de A Sagrada Família, que - não se trata do que este ou aquele
burguês, ou mesmo a burguesia inteira, conceba em dado momento como o seu alvo; e, sim, do que é a burguesia, e do que,
em conformidade com o seu ser, ela historicamente é compelida a fazer. Arremato: e, de conformidade com o seu ser,
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historicamente compelida, ela o faz, realizando sua universalidade nas formas particulares de sua gênese, objetivação e
reprodução.
Em decorrência, de um modo geral, a partir da época referida, e, de modo clivado em especial, nas particularidades
aludidas, a democracia passa a ser objetivável fundamentalmente como empreendimento proletário e da sua ótica. Assim, de
modos diversos e em graus crescentes, ou o proletariado arrasta a burguesia para uma equação democrática, ou é por ela
submergido na diluição dos formalismos liberais, quando não sufocado sob esta ou aquela forma de opressão despótica, tudo
na dimensão peculiar, sem linearidades ou mecanicismo, das formas particulares de objetivação do capitalismo.
Na particularidade da via colonial, alternando-se as formas genuinamente burguesas de dominação entre o
bonapartismo e a autocracia burguesa institucionalizada, que excluem a figura da democracia liberal, a emersão democrática
fica, sem remissão, a cargo das massas trabalhadoras, sob nucleação da perspectiva operária. Estas detém, no caso, com
primazia de classe, o interesse real e coerente pela efetivação democrática. Tendo, ademais, a possibilidade de atrair ou arrastar
para a mesma direção a outras categorias sociais. No que, ah, se refere à burguesia, pode ela ser arrastada ou compelida à
democracia, esta pode ser feita à sua revelia, mas ela própria não é nunca seu agente.
Mas, no quadro da especificidade referida, quando a construção democrática se evidencia como tarefa histórica dos
trabalhadores, simultaneamente se revela uma mudança qualitativa.
Na medida em que o agente democrático é por excelência a massa trabalhadora, tendo por centro aglutinador e
norteador o proletariado, a motivação e o direcionamento não permanecem voltados, pura e simplesmente, para a objetivação
de formas institucionais. Especialmente, quando, pela hegemonia burguesa de um processo, elas são as mesmas formas que
integram o desdobramento da auto-reforma e a concretização da autocracia burguesa institucionalizada. Não há desprezo dos
trabalhadores mesmo pelas franquias legais as mais elementares, ao contrário; mas à medida em que até mesmo estas só são
dispositivos integralizáveis na proporção de sua interferência, tem de estar articuladas a matrizes mais substantivas: em
primeiro lugar, às condições de salário e trabalho sob as quais, cada trabalhador e os trabalhadores em seu conjunto, na
imediaticidade, são compelidos a produzir e reproduzir suas existências materiais.
Em síntese e de modo direto, a objetivação democrática sob a égide dos trabalhadores, a única possível no capitalismo
explicitado pela via colonial, implica o rompimento do politicismo. Ou seja, imediatamente tem de ferir o molde econômico
do sistema. A intervenção do movimento das massas trabalhadoras recompõe a apreensão política e põe em jogo, de imediato,
a totalidade do social. Sua construção democrática não é, pois, nem ao primeiro momento, a mera perseguição às franquias do
liberalismo. O que lhe torna completamente estranha - com ela não se identificando, nem a ela se submetendo -, a tática
impossível do impossível objetivo de primeiro conquistar a “democracia” para depois “tratar da vida”. Que, aliás, só não é
estranha para a lógica adstringente do mais pobre liberalismo, e que, na essência, não difere da razão autocrática da auto-
reforma em curso, no sentido de que a “democracia” possível da hiper-retardatária burguesia brasileira se resume na
legalização, na institucionalização da sua insuperável negação da própria democracia.
A dinâmica da construção democrática pelas bases não é, simplesmente, ter as massas em movimento, mas dotar o
movimento das massas, ao mesmo tempo, da arma programática que reordena a sistemática da produção. Num primeiro, mas
talvez longo momento, reordenação na vigência ainda do modo de produção atual, posto que a demanda de rompimento e
superação imediatas deste, não seria mais do que um voto piedoso ou uma tirada demagógica. Mas, reordenação de tal ordem,
que implicasse um montante significativo de “desarrumação” e “desmontagem” de porções e aspectos de seu aparato, de
modo a impedi-lo a reproduzir a prática da superexploração do trabalho, que hoje agudamente o caracteriza.
Numa palavra: compreender que democracia, minimamente efetiva, e arrocho salarial não coexistem, nem podem
coexistir, a não ser na “democracia” da autocracia burguesa institucionalizada.
Foi precisamente isto, foi precisamente o desconhecimento da centralidade operária na questão democrática, que
implica o rompimento do politicismo, e que demanda um programa econômico de transição democrática, foi exatamente tudo
isto que a esquerda ignorou em meados dos anos quarenta, e, sob diversas modulações, até os fins do pré-64. E é tudo isto
que ela continua ignorando hoje.
Com uma diferença - para pior. O quadro da transição de 45/6 era menos favorável, do que o atual, para o sistema
econômico-político dominante, inversamente, o panorama daquela época era mais favorável às forças democráticas do que o é
hoje.
Em linha de resultantes: a autocracia burguesa institucionalizada, que foi implantada em 45/6 e que se desdobrou até
64, terá sido, provavelmente, aquela da maior liberalidade que pode estar contida em tal forma de dominação política; muito
menos “generosa” tende a ser a autocracia burguesa institucionalizada ora em fase adiantada de implantação.
Na medida em que as oposições, em especial as esquerdas - mantiveram e reproduziram a ignorância prática da
centralidade operária, desconheceram a necessidade de romper o politicismo, e não compreenderam o imperativo de um
programa econômico de transição democrática - é que elas sucumbiram ao ardil do politicismo e, hoje, depois de uma longa
trajetória, à qual não se nega valor de resistência e até momentos de pesado sacrifício, mas essencialmente tecida de equívocos,
desembocam na melancólica posição de colaboracionistas da politicização das eleições de novembro, levada a cabo pelos
interesses e a vocação do sistema.
Por isto as eleições de novembro já se perderam como arma, no processo de abatimento do regime vigente. Este logra
mais um passo bem sucedido, em seu encaminhamento da auto-reforma, pois as eleições politicizadas de novembro
materializam o penúltimo ato de reconversão do bonapartismo em autocracia burguesa institucionalizada, cuja cena
derradeira, projeta o sistema, será a apoteose da próxima sucessão presidencial.
As eleições politicistas estão para a sustentação da auto-reforma, como a auto-reforma está para a conservação do
poder. Meditações, portanto, de uma cadeia de mediações, que visa e possibilita, especialmente, a conservação da atual
fisionomia do solo econômico.
66
Mas conservar a política econômica vigente é negar, na essência e de todo o modo, qualquer postulação democrática
coerente. É, inclusive, na aparência, tornar incongruentes até mesmo suas contrafações mais débeis, como as produzidas pelo
sistema para gasto e consumo eleitorais. Incoerência do sistema ou amálgama politicista? Considerada a apreensão, que
determina a amálgama politicista como substância da fórmula jurídica da autocracia burguesa institucionalizada e, a esta,
enquanto a legalidade da negação da democracia, desaparece a Incoerência, para restar algo muito mais importante: a
contradição, a contradição de realidade, insuperável pela “síntese” politicista - sua equação econômica nega a legalização
democrática, a legalização democrática nega sua equação econômica. Portanto, a contradição, que resta, resta como cerne que
entifica a forma particular do capitalismo brasileiro. No que realiza, é evidente, de modo peculiar, o caráter contraditório
universal do capitalismo. Enquanto este, na sua particularização clássica e mais evoluída, recusa, é óbvio, de maneira implícita,
o questionamento teórico e prático do modo de produção capitalista, mas possui a forca e o espaço, e tem com isto como
admitir, debaixo de regras democrático-liberais, o questionamento econômico a nível reformista - e todo o segredo da social-
democracia reside, meramente, em dar corpo a esta elasticidade -, o capitalismo subordinado da periferia, como o brasileiro,
não possuindo a folga daquele, sempre roído pelo seu subordinante, e compelido a roer superlativamente seus subalternos,
não só preserva na generalidade o modo de produção, mas nega qualquer gênero de questionamento econômico, pois, não
pode lhe escapar que, dentro da realidade de sua estreiteza capitalista, toda alteração significativa só pode provir da angulação
das massas, implicando, mesmo quando não fere seu arcabouço fundamental, uma parcela de sua desmontagem, algo,
portanto, em seu detrimento, no prejuízo imediato e na abertura de uma perigosa perspectiva.
Portanto, descartar o questionamento econômico, que significa garantir seu molde atual, e garantir o
“aperfeiçoamento institucional”, que significa descartar a democracia, não é uma tática circunstancial, um “casuísmo” da
“improvisação desesperada”. É a tática consciente, mediadora de uma finalidade perfeitamente estabelecida.
É profundamente lastimável, porém, tática e estratégia, no campo oposicionista, não se mostram com o mesmo nível
de lucidez.
Enquanto o sistema faz as eleições politicizadas para afastar e garantir o quadro econômico, as oposições, enredadas,
por dentro e por fora, pelo ardil politicista, afastam a questão econômica para “garantir as eleições” e “conquistar a
democracia” O diabólico, neste pôr de lado a questão econômica, é que, para além de fazer o processo convergir na direção
dos interesses do sistema, as oposições confundem e desarmam, desorganizam e desmobilizam o movimento de massas.
Não foi outra coisa que se viu, salvo algumas exceções momentâneas, quando entre 78 e 80 as massas trabalhadoras
ressurgiram, no panorama político nacional, e, por um breve período, pondo-se à frente dos partidos, evidenciaram a que
vinham e o que podiam. Entreabriram a possibilidade de uma efetiva política oposicionista, com objetivo determinado e tática
segura: conquistar a democracia pela ação de base das massas, ferindo a base econômica do regime. Por um tempo, geraram
sensível intranqüilidade no seio do governo e maior perplexidade no bojo das oposições. Estas, inermes e atabalhoadas,
ideologicamente docilizadas, não foram capazes de se ligar e unir à perspectiva de totalidade aberta pelos trabalhadores;
mostraram-se incapazes de fundir e vincular sua expressão político-parlamentar à forca político-social das massas; não
souberam sintetizar os interesses sociais e econômicos das maiorias com os passos genéticos de emersão democrática.
Pior que isto. Alguns, de início, e progressivamente quase todos findaram por enxergar o movimento de massas como
emulo perigoso da “abertura”. “Não tensionar as contradições de classe” foi a palavra e a prática covarde e degenerada que,
sob diversos oportunismos, acabou prevalecendo. E quando o movimento de massas, sozinho, premido pelo desemprego e
fustigado pela repressão, refluiu, as tolas cabeças balançaram sua travestida complacência, na satisfação de sua pútrida
“acuidade”.
Abatido e domesticado o movimento de massas, as oposições trataram de pôr a mão nele, de canalizá-lo para a
eleições, num ato de conversão e desfibramento do movimento de massas em cândida pletora de eleitores da massa.
Monumental serviço prestado pelas oposições ao sistema. O que este só podia alcançar por mal, aquelas lhe
facilitaram por bem, sob a aura da batalha oposicionista e democrática. Em lugar de travarem uma campanha eleitoral fundada
na luta e política totalizante das massas, as oposições, inertes na parcialização das perspectivas, desmobilizaram as massas em
proveito das eleições. Inverteram radicalmente os termos da equação: em vez de partirem das massas e visarem as eleições,
visaram as eleições e foram às massas; levaram às massas a perspectiva das eleições, invés de levarem às eleições a perspectiva
das massas. Eleições, sim, enfim alcançadas, mas agora irremediavelmente eleições politicistas. Politicistas em razão dos
motivos conscientes do sistema, na sustentação prioritária de seu cerne econômico; politicistas pela oposição, porque,
desarmado o movimento de massas, extinguiu-se, para efeitos imediatos, a possibilidade, entreaberta pela prática das massas,
de dar início ao combate por um programa econômico de transição democrática, e até mesmo a consideração teórica deste, na
aparência, voltou a se distanciar do plano das premências políticas, reforçando o pressuposto não provado e a debilidade
comprovada das correntes de oposição.
Adiando a questão econômica, o que implica afastar as massas, e afastando as massas, o que implica adiar a questão
econômica, a oposição adiou e afastou, sine die, a democracia.
E ambas, sistema e oposições, se enlaçam, ideologicamente, no tango (ou bolero?) eleitoral, sob a rufar da charanga
que executa o tema do “aperfeiçoamento institucional” contratema da “democracia abstrata” das oposições. Tema e
contratema de uma mesma partitura, em que pesem as notas diferenciais de motivação, convicção e até mesmo das boas, mas
burras, intenções; compassos harmônicos do mesmo simulacro de democracia liberal que, no caso brasileiro, é sinônimo e faz
a melodia de fundo da autocracia burguesa institucionalizada.
Diante desta orquestração desoladora, sobra muito pouco para alguma dança, verdadeiramente proveitosa, do eleitor.
Mas, para além do imediato, é imperioso indagar...
Contudo, se ao velho Lenin, no caminho certo, foi possível perguntar, com o peso da seriedade e a energia da
determinação - Que Fazer?, a nós, melancolicamente, à garupa deste instante, resta apenas o saboroso, mas prosaico e
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arrefecido, ainda que gesticuloso: “E adesso che facciamo?” O pouco que resta a fazer, numa eleição duplamente politicizada,
é a sobra da escolha tópica, a opção reduzida entre o ruim e o péssimo, enxotado, evidentemente, o tenebroso, que é o valete
partidário do sistema, o PDS.
Sob que critérios? Nestas eleições de novembro, viciadas até à raiz pelo politicismo, através do qual, objetivamente, o
sistema se reproduz econômica e politicamente, e as oposições reproduzem, de forma ampliada, a alienação da “oposição pelo
alto”, é evidente não ser possível encontrar uma opção partidária satisfatória, una e integral. Mesmo, elementarmente, dado
que nenhuma das legendas de oposição apresenta uniformidade ou homogeneidade nacional, no que tange à definição
ideológica, expressão organizacional e significado programático. Diferenças de região para região, de Estado para Estado, e de
cidade para cidade, mais em alguns casos, menos em outros, marcam e clivam cada uma das agremiações.
Partidos nacionais de oposição não há, nem os legais e muitíssimo menos os semiclandestinos.
Uma escolha, razoavelmente praticada, em condições tão adversas, há de considerar pelo menos, para cada caso, o
que há de definição ideológica, significado programático, expressão organizacional, potencialidade eleitoral e também de
perspectiva de futuro para cada partido político, bem como a representatividade e a autenticidade das individualidades que,
encarnando a cada um deles, postulam os votos de oposição.
Numa pincelada descarta-se, penalizável por todos os critérios, ao PTB, súmula torpe do mero apetite político
acanalhado.
Do PDT também não há muito a dizer. Algo mais do que um partido de um homem só, nutre-se da idéia de um
socialismo reformista, distributivista. Disto e de um nacionalismo, que busca atualizar, deseja fazer a presentificação da
proposta getulista.
Ainda que um Vargas, paramentado de social-democrata, componha uma figura extravagante, o PDT, por suas
referencias às questões sociais e econômicas, não deixa de veicular, aqui e ali, algo de sério, que merece atenção. Um aqui e um
ali, que se resume ao Rio com Brizola e Saturnino Braga e ao Rio Grande do Sul com Colares, mas que, dado o deserto
penoso e pavoroso em que estão convertidas as oposições, ganha um significado que não alcançaria em outras circunstâncias.
Sobre o PMDB, que traz a herança da resistência democrática dos anos mais duros, cacife único de sua longa cruzada,
inside a dose maior de toda a crítica apresentada.
Enfant gate das oposições, cheio de melindres, como se os imensos equívocos de seu passado não lhe dissessem
respeito, é o monstrinho prodigioso do circo político nacional, praticamente fervoroso e beneficiário principal da “oposição
pelo alto”. Teima, oportunisticamente, em usar as calcas curtas da roupagem frentista, quando suas longas pernas ossudas,
cobertas de pelo, de há muito exigem o traje adulto da definição partidária. Travestido de infante,escamoteia a anatomia de seu
velho corpo “liberal”. Não é bem culpa deste, nem de sua hegemonia, que as correntes “mais avançadas”, nele afluentes,
aceitem sua regência, amem seu corpo flácido e nele se desmanchem, e na diluição arrastem, corroam e desfaçam as energias
das massas. Não, verdadeiramente não é bem culpa dos “liberais”, que outros ponham ao seu comando um enorme
contingente de votos dos trabalhadores, invés de arrastar os votos “liberais” para a órbita de um programa demarcado pelo
interesse dos trabalhadores. Não é bem culpa sua, mas, sem dúvida, resulta em seu proveito, e no desproveito das massas, o
que novamente o beneficia. Proveito e benefício que não despreza, muito ao contrário, nem lhe vão às mãos por ingenuidade
ou inocência. O mecanismo geral que patrocina tal fagocitose, o politicismo, é o mesmo do qual se aproveitou o sistema, no
seu brilhante golpe da fusão entre PMDB e PP. Incluída na “solução” frentista, de molde e caráter “liberais”, as esquerdas são
fletidas a uma posição mais à direita, do mesmo modo que, incorporando o PP, o PMDB foi empurrado ainda mais para a
mesma direção.
Não vai ah qualquer repúdio a uma autentica política de frente. Mas esta é algo muito diverso do que está
compreendido no PMDB, e do que vem sendo praticado tradicionalmente pela esquerda brasileira. Os supostos
imprescindíveis de uma verdadeira política de frente, concebida e praticada da perspectiva do trabalho, compreendem a
independência ideológica, a organização política autônoma e a definição precisa de um programa dos trabalhadores. É assim
apetrechados e assumidos enquanto classe que os trabalhadores podem, diante e com outras classes, estabelecer uma
plataforma comum, em atendimento a exigências políticas de uma realidade dada. E uma articulação, pois, de classes,
assumidas estas em sua completa independência. E não a somatória tópica de meras individualidades, muitas vezes
insomáveis, que é a via única a que induz o esquema frentista de inspiração liberal, que não é representativo das classes, nem é
por estas controlado.
Distanciando-se das bases materiais da vida social, o que as afasta das bases de massa dos trabalhadores, as esquerdas,
ao fim e ao cabo, despojadas de forca e representatividade, perdem até mesmo a condição de componentes válidos para a
constituição de uma válida política de frente, quando esta se impõe e viabiliza; e, assim, desqualificadas e degeneradas
compõem a solução frentista de talhe liberal, que acaba por as descredenciar, desacreditar e deglutir até aos ossos. Assim
ocorreu no passado, no PTB, PSP etc. e de forma ainda pior, no presente, vem ocorrendo dentro do PMDB.
É por tudo isto que não são as esquerdas que empurram o PMDB mais para a esquerda, mas é a hegemonia “liberal”
do PMDB que atira as esquerdas ainda mais para a direita. Resultado da “solução frentista” que tolera, absorve e condiciona
todas as venalidades “políticas”, praticadas no passado e no presente, onde o conchavo substitui a luta pela hegemonia, e a
“plataforma frentista” esvazia os conteúdos de classe. Assim, por exemplo, foi possível haver um Ademar de Barros e há um
Miro Teixeira. Isto, só para aludir a algo do pior, e não apenas de um ponto de vista ético...
O fato de a sustentação frentista residir sobre uma precária somatória de individualidades, não enraizada ou legitimada
pelas massas, é que lhe confere uma permanente instabilidade. Sua fraqueza política tem seu equivalente na sua debilidade
orgânica e no raquitismo de seus compromissos programáticos e ideológicos.
Está, assim, continuamente sujeita a reconversões de propósitos e a expansões e contrações agudas. A rapidez da
saída e da volta dos membros do PMDB, que integraram o PP, é bem uma ilustração disto.É, neste sentido, que o PMDB é,
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de todas as legendas existentes, a mais exposta a divisões e evasões. Após as eleições, e diretamente relacionado com os
resultados efetivos destas, a demanda de um novo esquema partidário, especialmente, mas não apenas, por parte do sistema,
tende a levar o PMDB a uma significativa retração. Basta refletir, com realismo, sobre o que sucederá se o sistema tornar a
entreabrir a possibilidade de redefinições partidárias. E vale pensar também a respeito do desejo confesso, de não poucos, de
ressuscitar o PP ou de um seu sucedâneo; o que, aliás, não está apenas no terreno dos sonhos, mas nas pontas dos cordéis que
vem sendo entretecidos, de norte a sul do país, e aos quais não são estranhos muitas das figuras de proa do PMDB.
Mesmo porque, este airado PMDB, que tem feito uma pobre guerrilha de salão pelo resto do banquete dos poderosos
- a que mais pretendem suas alas hegemônicas, se não apenas a uma mera reordenação “técnica” e de superfície da esfera
econômica, que lhes permita, ah, uma inserção mais cômoda e segura, com os correspondentes saldos no terreno do poder? -,
não teve nada de melhor para oferecer, a toda a presente campanha eleitoral, do que o arroubo atroz de uma fantástica
ideologia da grande vitória.
Hoje, exatamente a trinta dias do pleito, o plano de realidade, para quem não deseja iludir-se mostra-se bastante
diverso do apregoado por esta mísera e alienante ideologia: até mesmo certos rincões dos “votos úteis” e das “vitórias certas”,
através dos quais foi tentado o atropelamento da consciência eleitoral mais exigente, estão sensivelmente abalados. Quase
sempre, lamentavelmente, a favor do sistema, mas o PMDB torna, assim, a exibir o verdadeiro tamanho de seu corpo e o
mosaico efetivo de seu rosto. Fisionomia de escoteiro taludo, troncho na farda de menino, velho para ser coroinha, mas já não
tão moço que não possa ser bandido.
Escoteiro político capaz de juntar a sovinice ideológica de Franco Montoro - cuja única ferocidade é seu conhecido
anticomunismo, senador de aspiração a feitio e talhe carvalhista, por cuja herança briga com o fantasma caricatural de Jânio
Quadros -, com a imprudência desabrida e besuntada deste camelô chaguista que é Miro Teixeira, parido e nutrido, feito e
refeito, só e só e não mais do que só, de repelente oportunismo. E a isto, junta o escoteiro, a provectice “liberal-mineira” (ou
“mineiro-liberal”?) do manjadíssimo Tancredo Neves. Menos mal, conhecido em todos os seus limites, não há o que esperar.
Ao sul se agrega algo que até faz parte do menos ruim, o bom-burguês do Pedro Simon. Todavia, é na outra ponta do país que
o PMDB encontra seu melhor e mais reto candidato, o pernambucano Marcos Freire. Não mais que uma personalidade
integra e dedicada, de corte “liberal” (sempre esta palavra, que tão mal se ajusta ao Brasil) com forte sensibilidade e
ressonâncias populares. Sem desabono para este candidato, melhor seria que fosse Arraes, algo do melhor de pré-64, mas
parece que arribou um pouco desassossegado... e, enfim sempre há que respeitar esquemas... em tudo se mete o politicismo...
em tudo aparece, mesmo no lado bom, o lado bandido do PMDB... não fosse este o partido escoteiro, coroinha e malandro,
de uma das partes - sempre bandida -, da bandida burguesia brasileira...
Por fim, resta olhar para o PT.
A primeira tragédia do chamado Partido dos Trabalhadores é o suposto entre muitos de seus dirigentes e ideólogos,
de que ele seja uma idéia, e não uma necessidade. E, evidentemente, uma idéia deles. Uma idéia de ideólogos, não uma
necessidade dos trabalhadores.
Não compreenderam, ou não quiseram compreender, que, ao longo e depois dos eventos operários de 78/80 (para
não falar de antes), era gritante e manifesta a necessidade da criação de um organismo político da perspectiva dos
trabalhadores. Necessidade dos trabalhadores posta pela lógica de seu próprio movimento, pois tornara-se patente a falência
completa e definitiva de todos os braços do stalinismo, que até então se arvoravam da representação operária. Abrira-se, ou
melhor, alargara-se ostensivamente um espaço decisivo, porém vago, que exigia preenchimento.
Explicitara-se, de modo agudo, uma necessidade. Se ela seria bem ou mal resolvida, dependia, ah sim, de idéias e
condições, favoráveis ou desfavoráveis para a sua concretização.
A segunda tragédia do PT são precisamente as idéias de seus mais influentes ideólogos.
O que Marx pensou, em Crítica da Economia Nacional, Texto de 1845, dos ideólogos alemães, vale pensar para
alguns de seus confrades nacionais - não fazem mais do que repetir historicamente, sob forma de comédia e post festum, as
formas ultrapassadas e envelhecidas da história mundial.
A curta história do PT é a história de um desencontro, ou talvez seja melhor dizer de um encontro infeliz. O encontro
desafortunado entre o que de melhor e mais autentico emergiu do movimento operário no pós-64, e da figura mais brilhante
do sindicalismo brasileiro - Lula, com um produto ideológico de baixa qualidade, uma espécie de “resíduo calcinado” da crise
ideológica dos nossos tempos. Crise ideológica e “resíduo” que, embora parecendo mais questionar do que responder,
questionam mal e respondem errado. Tem de se reconhecer ah uma grande dose de perplexidade, mas também grande parcela
de temor por eventuais contaminações stalinistas. Este grande responsável reaparece, mas isto não explica, nem justifica
prevenções ou preconceitos, muito menos saltos ideológicos para trás. Da perplexidade, do temor, das prevenções e dos
preconceitos, bem como das acrobacias ideativas a ré, que recusam a razão e a história - em última análise ao próprio
proletariado, acaba por originar-se uma postura de liberal-radicalismo entrelaçado com as formas mais banais e descarnadas do
pensamento anarquista, tudo de permeio com uma lastimável atitude de quem está “descobrindo a América”: o anacronismo
da repetição histórica, sob forma de comédia e post festum.
Resulta de tudo uma obsessão pelas formas de organização e procedimento. Tudo passa a girar em torno disto:
importa mais como se faz, do que aquilo que se faz; ao limite, o conteúdo é a forma, mesmo porque o conteúdo é suposto
como parte no geneticamente secretado pelas massas. Confunde-se forca, ação, interesse e testemunho, que as massas podem
e, de fato, oferecem, com as carências que elas próprias sentem de orientação, esclarecimento e condução. Enfim, o basismo e
o espontaneísmo, sob todas as modalidades, se revelam e manifestam. Anda-se para trás, na ordem de um século, para
reencontrar insipiências martonianas ou pré-martovianas.
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Em suma, a riqueza substantiva do ressurgimento operário de 78/80, a matéria-prima estuante de vida, ávida por
orientação política, que só pode provir da análise científica rigorosa e completa, foi, desgraçadamente, encontrar o raquitismo
arrogante de um enxoval ideológico em crise.
Antes mesmo de formado, o próprio embrião deste PT, parasitado por semelhante enxoval ideológico, já influem
negativamente sobre o movimento operário do ABC, levando a greve de 80 ao impasse e à derrota, na busca de um “mártir
político”, que lhe servisse de ponta-de-lança e de carro-chefe.
Depois, foi um progressivo “ir tomando conta das coisas”, que faz, hoje, o PT uma pequena agremiação, vazia de
operários, arrastada às costas por um único homem: Lula, que “tecnicamente” muito aprendeu, no processo que o vem
transformando, de um grande líder sindical, num modesto e politicamente debilitado dirigente partidário; mas, até hoje, não
pôde aprender que não basta a independência sindical, nem a independência partidária; que sem independência ideológica o
movimento operário está exposto a sutis e terríveis servidões. Sem independência ideológica, o PT sucumbiu, não sendo, na
atualidade, mais do que uma legenda de magra parcela dos assalariados, vivendo um clima pequeno-burguês de subjetiva
radicalmente, através de uma espécie de “filosofia-mundana”, bem tolerada pelo sistema, nesta hora eleitoral. Para muitos não
passa de um exotismo. Mas o que pensar de um partido, que se quer dos trabalhadores, mas que apenas diz que tudo depende
de sua organização, que se recusa a orientá-los, que se nega a apontar-lhes o caminho, que não se assume como vanguarda e se
oferece meramente como canal de pressão? O PT está no pleito de novembro buscando sua viabilização, em atendimento a
dispostos legais. E isto é legítimo. Mas, já não se pode ser tão categórico, nem muito menos, quando, em razão do que
apresentou, até hoje, no plano ideológico, programático e organizativo, se indaga se merece sua viabilização, se esta
correspondente às necessidades atuais e futuras das massas trabalhadoras.
O PT, em vista da questão eleitoral, não escapou ao politicismo geral das oposições. Um politicismo forçado, pode-se
talvez dizer, mas o fato é que se distanciou do movimento sindical, não procurou fazer uma campanha apoiada sobre o
movimento de massas, e não atinou com as necessidades de um programa econômico de transição democrática. Suas
imperdoáveis vacilações, quanto à realização da Conclat, são disto grande e significativa evidencia. A realização da Conclat, às
vésperas das eleições, seria precisamente a última oportunidade para uma tentativa de modificação qualitativa do processo
eleitoral. Seria a chance de tentar arrancá-lo do absoluto domínio politicista sob o qual fenece. Sucumbiu especialmente o PT
quando, posto entre viabilizar-se pela rota do movimento de massas “ou” através da via eleitoral, não foi capaz de somar e
articular os dois caminhos e acabou por embaraçar-se, até à alma, apenas no jogo eleitoral, soçobrando às exigências deste. E
neste campo será fatalmente batido. Procurará, então, reencontrar a necessidade originária de seu advento, ou se contentará
em ser a micro-legenda de uma ideologia menor? De tudo isso resulta a clara evidencia de que, na débil torrente democrática
do processo brasileiro, fraca é também a corrente proletária que nele atua. Fraca pela incompletude de classe, que também
atinge o proletariado no Brasil, e superenfraquecida pela desorientação a que e submetida, sistematicamente, pelos partidos
que o querem representar e conduzir. Assim, a história do movimento de massas em geral e do proletariado em especial, no
país, tem sido e é até hoje, antes de mais nada, a história de seu arrastamento e subordinação à hegemonia burguesa.
Diante deste panorama, mais uma vez, é preciso cumprir a ritualística do voto. Obrigatoriamente, de norte a sul do
país! Não seria razoável, depois de extensa Crítica, ser inconcludente, ou seja, omitir a expressão concreta de um voto.
Assim, concluo, sem outra pretensão que não seja o registro de uma simples opinião. Opino. E o faço puramente na
primeira pessoa do singular. Quem dela vier a gostar e desejá-la para si, não precisa de licença, mas assume, como no amor,
toda a responsabilidade que houver.
Nas regiões Norte-Nordeste não há como escapar: é PMDB. Um de seus piores candidatos, a amazonense Gilberto
Mestrinho, provavelmente vencerá, e o melhor deles, Marcos Freire, dificilmente fará o mesmo. Mas a questão, contra a
própria ideologia da grande vitória do PMDB, é bem mais complexa. E no Norte-Nordeste, simplesmente complicar as coisas
para o sistema, tentar barrar o caminho de um “bandido maior” com as mãos de um “bandido menor”, e gerar o hábito e a
descontração políticas para um voto de oposição, bem como de um voto desvinculado de trocas clientelistas, é já alguma coisa
não desprezível, principalmente quando não há nenhuma outra opção, que tenha algum significado ou representatividade, seja
no plano ideológico, seja no plano da abertura de perspectivas futuras. No Norte-Nordeste, o PT simplesmente não existe, em
qualquer destes planos. Algumas pessoas, que lhe envergam o “fardão”, são respeitáveis como individualidade comprometidas
com boas causas e, às vezes, com maus roteiros, mas não alcançam qualquer nível de representatividade efetiva dos
trabalhadores, rurais e urbanos, ah compreendidos.
No Rio, há que se contentar com Brizola. Da velha guarda foi aquele que retornou mais inteiro. Nada mais, no
passado,do que uma espécie de “republicano radical”, que foi confundido como “perigoso incendiário”, é, hoje, um discípulo
avançado da social-democracia. Pena que fique por ah, mas tem a seu lado uma presença válida e estimulante, a quem a
vivência de PMDB prejudicou muito, mas que soube, ao limite, romper com ela, não transigindo com a deliqüescência final
sofrida pelo PMDB carioca: Saturnino Braga. Há uma razão a mais, Brizola pode e provavelmente derrotará o boneco
chaguista. Basta isto, nas circunstâncias, para credenciá-lo. A dignidade dos trabalhadores cariocas merece, ao menos, isto. E a
bofetada é mais para atingir a degenerescência dos que movem os cordões eleitorais do boneco, do que a este, ciosa de infinito
valor. Aqueles, sim, não podem ficar impunes.
Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul que tenham a honra proletária lavada pelos candidatos do PT. Lula e Olívio
Dutra por tudo que representaram, e espero que voltem a representar, no movimento operário. E em Minas, simplesmente
porque não resta outra alternativa. Valerá mais, como perspectiva de futuro, um voto de esgarçado sentido ideológico, do que
a reiteração do vício politicista, de que Tancredo Neves é campeão. Em outras circunstâncias, firmemente empurrado pelo
movimento de massas, e não empurrado, como hoje, poderia, ao limite de injunções, ser cogitado. Nunca hoje.
Em São Paulo, o voto em Lula é a manifestação de apoio e resgate do que os trabalhadores fizeram entre 78 e 80, na
esperança de que tornem a fazê-lo em breve. O voto em Lula é a reafirmação dos eventos memoráveis de São Bernardo, a
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certeza de que ah foi indicado o caminho que este terá de ser e será retomado e desenvolvido, caso se queira, de fato, chegar a
alguma democracia. É, portanto, infinitivamente mais um voto em Lula do que em Luís Inácio da Silva.
está visto, o critério que prevalece não é o da mera vitória eleitoral, que nenhum dos três, nem remotamente, detém
esta possibilidade, ainda que a votação de Lula será, com certeza, para dor e raiva de todos os politicistas, mais do que
expressiva - o que é bom e certo. Mas, numa eleição,não se joga apenas com a sorte e a cifra das urnas. há vitórias decisivas,
como fustigar impostores e sustentar padrões ideológicos, que são feitas mais de verdade e coragem do que de votos.
Principalmente quando se semeia futuro,sem impaciências, e se encara o presente de olhos abertos.
Por fim, vá lá que seja, em mais um capítulo da história do “bom bandido”, e no caso de “bandidos” vitoriosos: Hiris
Rezende em Goiss e José Richa no Paraná, ambos do PMDB.
No pré-64, chegou a ser moda política falar em “generais do povo”; como de lá para cá declinamos abruptamente,
quem sabe se a campanha eleitoral de 82 não acabe por consagrar o título de honra de “bandidos do povo”...
Findo por aqui. Encerro meu voto. Opinei o quanto basta.
E diante do cenário triste que se fecha, lembro que principiei com a irreverência de um espanholismo, gancho para a
ironia feroz do tango lunfardo. Concluo com o pesar de uma antiga indignação romana. Com as palavras de Cícero, a todos os
Catilinas, refaço a pergunta feita de partida: Quiosque tandem? “Até quando, afinal, abusareis da nossa paciência?”

(OUTUBRO/82)
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A SUCESSÃO TRANSADA*

O quadro sucessório está definido: Maluf - o situacionista “sistêmico” versus Tancredo - o oposicionista “assistêmico”.
Que o clarão, - por tantos jurado que viria a relampejar triunfante -, depressa empalideceu em cinzenta nebulosa, não
deveria ser motivo de surpresa, nem pode ser, agora, impedimento para uma opção categórica.
Que da virtualidade de um clarão tenha nascido o mero gris dos nevoeiros, ou que da nuvem de chumbo, em que
vivemos, não possa advir, hoje, mais do que o facho mórtico da híbrida lanterna udeno-pedessista, eis o que vale a pena
analisar.
Aqui, no entanto, o exame não pode ir além do simples registro.
As vésperas e a propósito das eleições de 82, anotei: “as eleições de novembro já se perderam como arma, no
processo de abatimento do regime vigente. Este logra mais um passo bem sucedido, em seu encaminhamento da auto-
reforma, pois as eleições politicizadas de novembro materializam o penúltimo ato de reconversão do bonapartismo em
autocracia burguesa institucionalizada, cuja cena derradeira, projetada pelo sistema, será a apoteose da próxima sucessão
presidencial. As eleições politicistas estão para a sustentação da auto-reforma, como a auto-reforma está para a conservação do
poder.
Mediações, portanto, de uma cadeia de mediações, que visa e possibilita, especificamente, a conservação da atual
fisionomia do solo econômico” (“Hasta Cuando”?, ENSAIO 10, outubro/82, p.16).
Muito antes, já em 77, apontava para a crise do “milagre” e para o caráter politicista de nossas oposições.
“O `milagre, pois, é um milagre sobretudo para o capital financeiro internacional, sob a condição de que veja
constantemente reassegurada a certeza de que os mecanismos econômicos montados produzam e reproduzam a captação dos
dólares necessários para `remunerá-lo’. E é precisamente o contrário disto que hoje se verifica, num processo que vem se
explicitando cada vez mais agudamente desde os primeiros momentos do governo Geisel. Numa palavra, o `milagre’
incompatibilizou-se consigo mesmo. Não é mais capaz de ir reproduzindo os passos do processo de acumulação,
contradizendo a si mesmo. Face a isto acabou por se impor, após um momento de inconformidade e relutância, a política do
desaquecimento econômico, o que equivale dizer que o `milagre’, incompatibilizado em seus próprios mecanismos, convertido
numa fera voraz, que quanto mais crescia com mais apetite devorava seus próprios fundamentos, teve de ser amordaçado e
manietado.
Os altos índices de crescimento do PNB deixaram de ser estimados e ostentados como demonstrativos e coroamento
dos sucessos da ditadura, convertidos, agora, em resultados ameaçadores que deveriam ser evitados a qualquer preço. Mas a
política de desaceleração econômica não tinha como satisfazer a nenhum dos setores econômico-sociais, pois condena a
todos, quando não ao retrocesso, pelo menos a níveis de estagnação, ou a ritmos reduzidos de crescimento. Contudo, mesmo
em face da inquietação política que assim se gerou, não havia, dentro do sistema, outra alternativa e o desaquecimento se pôs
como medida de urgência para tentar evitar a crise em seus aspectos mais dramáticos ou aprofundados, e como instrumento
de transição para uma nova fase de acumulação que exigia ser demarcada e desencadeada no prazo mais breve possível. Estes
são os problemas lógicos que estiveram e estão em jogo, num crescendo, ao longo dos últimos tempos” (Conquistar a
Democracia Pela Base, TEMAS, Nº 6, P. 166/7).
A denúncia do politicismo, no mesmo texto, também era explícita.
“Não é, portanto, difícil entender por que a disputa pelo poder se manifesta desta vez com particular intensidade,
sendo cada uma das candidaturas afloradas o produto ou a incorporação de tendências ou interesses que buscam impor suas
conveniências e soluções de vantagem. É isto que está em jogo, e não simplesmente futricas de caserna. É guerra brava,
envolvendo o país em suas estruturas fundamentais, onde o ventilar do aspecto institucional, além de se prestar a dilações e
mascaramentos, e até mesmo a instrumento do jogo cênico para os olhos do grande público, que esconde a batalha interna e
oculta para qual estão centradas todas as baterias, pode ser também, quando considerado isolado e prioritariamente, utensílio
para encaminhar soluções econômicas subjacentes que antagonizam os interesses das massas populares e ferem negativamente
o encaminhamento adequado da questão nacional. De modo que as forcas dominantes, em todas as suas componentes,
disputam o jogo da ‘sucessão presidencial’ preocupadas e ocupadas com o conjunto dos problemas nacionais sabendo, no
entanto, distinguir com precisão as questões de base das complementares, empenhando-se, a nível decisivo, quanto fá
questões relativas à política econômica; quanto ao mais é sempre possível passar por cima. No que seguem, aliás, a tática de
todos os governos da ditadura de 64.
Ventilar as questões institucionais para um eventual ‘aperfeiçoamento’, a ser decidido em horas indeterminadas pelos
senhores arquipoderosos, enquanto as questões econômicas são mantidas fora de discussão, - como um tabu, foi uma tática
que os governos ditatoriais sempre utilizaram, e que o governo Geisel levou à perfeição. E diante dela a oposição acabou por
perder a visão do todo, soçobrando ao diapasão institucional” (Idem, p.169/170).
Em suma, tanto neste artigo, quanto em outros que deram seguimento e tentaram desenvolver a análise do processo
brasileiro, foram acentuadas certas determinações, que abaixo vão sumariamente recapituladas:

* Publicada originalmente na Revista Ensaio nº 13. Ensaio, São Paulo, 1984.


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- O “aperfeiçoamento institucional” foi propósito e ardil do bonapartismo desde Castelo; - a crise da política
econômica, implantada a partir de 64, principiou em meados de 73; - as oposições politicamente organizadas, legais,
clandestinas ou semi-clandestinas, foram incapazes de entender o “milagre” e sua crise, dada sua subsunção à perspectiva
teórico-ideológica liberal; - dado que a objetivação do capitalismo no Brasil se efetivou pela via colonial, uma democracia de
talhe liberal, em termos de uma forma de domínio minimamente coerente e estável, é uma impossibilidade histórico-estrutural;
- no país, toda e qualquer expressão democrática real, ainda que suposta meramente ao limite das formas, só é edificável da
perspectiva do trabalho, - por consequência, em existindo estará matrizada por um decisivo caráter social; - no contexto do
quadro brasileiro, com acentuação para o momento da crise do bonapartismo, quando este busca, pela via da auto-reforma,
sua reconversão em autocracia burguesa institucionalizada, as lutas econômicas dos trabalhadores são imediatamente políticas,
donde a necessidade vital de um programa econômico de transição da perspectiva do trabalho.
Fazer a súmula disto é simples por demais: entre nós a construção democrática é possibilidade concreta apenas
enquanto resultante das lutas sociais nucleadas pela ótica do trabalho. A relação delas com a ação parlamentar tem de ser
pensada num fluxo que viria daquelas para esta. Ou seja, numa conexão de determinantes a determinada, de modo que
atualizassem sua potência de forçar a representação parlamentar (provavelmente pela mediação dos governadores), vindo
assim a conferir a ela conteúdo e direção. E não o inverso, como foi tentado, por exemplo, na recente campanha pelas eleições
diretas. Vale dizer, da sustancialidade social a formas institucionais. Não o inverso, como fazem, há vinte anos, as oposições
submersas ao mais completo e estiolado politicismo. Donde as oposições, feita uma exceção circunstancial, que adiante será
referida, virem facilitando a tão indesejável auto-reforma do sistema, posta em “perigo” antes pelo dissídio de suas próprias
forcas, carreado pelos golpes da crise econômica, do que pelos pretendidos atos “demolidores” da oposição.
Consideradas, portanto, a crise econômica e as dissensões políticas do sistema de um lado, e o politicismo liberação
das oposições por outro, o quadro atual, - como um momento exemplar de solução pelo alto, típica dos procedimentos
políticos “normais” no interior da processualidade congênita à via colonial -, não poderia redundar em nada mais do que num
cenário sem clarão e sem apoteose: sem o clarão profetizado pelo politicismo oposicionista, e sem a apoteose acarinhada pelo
sistema para a sua auto-reforma.
Tudo reduzido, pois, pelos próprios agentes em contraposição, fá dimensões mais estreitas, tudo por eles colado, sem
grandeza, à expressão mais elementar das possibilidades, nenhum advento poderia ocorrer para além do confronto Maluf-
Tancredo.
Em sua falta de brilho, contudo, o confronto Maluf-Tancredo é o resultado lógico do panorama nacional. lógico e
perigoso.
lógico, na exata medida em que, de uma parte - o sistema no poder, lasseando na sua base social de sustentação desde
há anos, por obra e graça da desgraça econômica por ele mesmo armada, chegou à incapacidade de evitar sua fragmentação
política, e terminou subjugado, neste campo, pela sua parcela mais radical, sectária e cruamente pragmática: valeria dizer, e por
algo mais do que uma simples tentação analógica, - bismarkiana; lógico, doutra parte - pelo lado de uma oposição confederada
que, ao longo de duas décadas, só fez atuar pelo front de menor resistência, foi engolfada pelo raquitismo ideológico liberal
dos setores dominantes contrariados, e jamais armou uma estratégia alternativa de poder. Disto não se subtraindo nem mesmo
as esquerdas organizadas que, por suas posições, da esquerda tradicional à esquerda não-marxista, oscilam respectivamente
entre o museu de horrores e o circo de cavalinhos.
Os perigos são muitos. Dos pequenos aos grandes, dos prováveis aos improváveis. Desde o grande perigo improvável
de um pronunciamento militar, que inassimile e descarte o sucesso pela via indireta, hoje ao que parece irreversível, da
chamada Aliança democrática, até o pequeno perigo provável da geração de alguma turbulência e dificuldade, no espaço e na
caminhada desta, pela ação ou omissão dos últimos e penúltimos irredutíveis das diretas-já.
O perigo maior, porque real e insuperável, é o que está embutido no próprio tecido íntimo de que são feitas as duas
candidaturas. Ambas perigosas por razões próximas, pois tanto a moderação tancrediana, como a imoderação malufista são
muito mais do que puros e simples estilos pessoais.
Do ponto de vista estrito das diferenças individuais a contraposição é gritante. A prudência e a mineirice do Sr.
Tancredo Neves é o mero lado adjetivo e até pitoresco de uma personalidade política competente e coerente, na
posição que assume e que o caracteriza. Ater-se a isto em demasia pode levar ao ônus de ficar apenas com uma caricatura
simpática, em detrimento do aspecto essencial de um profissional altamente experiente da república. Capacitação que não
deixa de merecer respeito e admiração, embora esteja centrada sobre o “vício politicista”, como já tive oportunidade de frisar
em outro contexto. vício politicista que constitui quase todo seu conteúdo.
Mas, este quase deixa entreaberta uma possibilidade, - decisiva no contraste e confronto com o candidato da facção
remanescente do PDS, de articulação com ressonâncias de caráter popular, e isto na trilha de uma composição política que
muitos julgavam morta há duas décadas. Em suma, à semelhança do que disse em outra ocasião, acima aludida, enquanto
individualidade e por suas características o Sr Tancredo Neves “firmemente empurrado pelo movimento de massas, e não
empurrando, como hoje, poderia, ao limite de injunções, ser cogitado” (“Hasta Cuando”, op. cit. p.24).
Por todo esse perfil, e ainda no plano das simples diferenciações individuais, seria de todo injusto assemelhar P. Maluf
a Tancredo Neves. Se deste, pelos contrastes, é laborioso fazer um retrato objetivo, fotografar àquele é tarefa simples. Se a
mesquinharia junker é o halo da mentalidade bismarkiana, Maluf é um junker do asfalto, na ambição e no gozo do arrivismo
político, cujo único “mérito” é estar disposto, sem qualquer hesitação, a abrir espaços a peitadas. Toda sua sutileza é simular
que não simula, sem se preocupar em ser convincente. Tem mesmo o gosto de fazer ver que sua máscara, que traz sempre um
pouco despregada do rosto.
Todavia, a ferocidade do momento está, como sempre, para além dos meros contornos individuais.
73
A moderação tancrediana, hoje, muito mais do que identidade pessoal, é a persona, o suporte da equação resolutiva da
fração civilizada do poder. É, nasceu e vem se firmando antes como candidatura da dissidência pedessista do que de um
marcante empuxo, na origem, dos peemedebistas moderados. Que as duas facções integralizam com tônus idêntico sua
viabilização político-eleitoral, não desfaz esta importante determinação de gênese político-social e de caráter ideológico-
programático.
Ademais, não há que fazer qualquer alarde das diferenças entre estes dois agrupamentos partidários, pois não se trata,
como é sabido, de outra coisa do que da consagrada fórmula do PP. E a consideração de que a lógica da gênese seja distinta da
lógica do gerado só faz acentuar o sentido que aqui se grifa e os justos temores que suscita. Pois, se no parto tivemos a ética
de Aureliano, já no batizado um dos padrinhos mais loquazes é Antônio Carlos Magalhães, senhor de céus e terras e de quanto
nelas se mova. Para já não falar do noivo da oposição, José Sarney em verso e prosa, sempre enfatizado, dos bigodes aos
borzeguins, para a subida ao altar do, poder.
Em síntese, o que se assinala é a linha tendencial de diluição (ou espessamento) à direita da candidatura oposicionista
de T. Neves. Nascida como sucedâneo à postulação de Aureliano Chaves, inviabilizada esta em seu habitat natural, e do sonho
gorado das diretas-já, está cifrada, hoje, para aquém das possibilidades políticas do próprio candidato, pois cavalga sobre estas
duas interdições.
Da interdição das diretas-já, última esperança de um vice já interditado, brotou a alternativa eleitoral “libero”- mineira
e também seu conteúdo. Nesse sentido, das diretas-já, sem plano e sem intenção, apenas como perfeito derivado ou residual,
proveio o único momento em que as oposições não levaram água ao moinho da auto-reforma do sistema. Mas com o racha
“liberal” só viram desarmada a solução apoteótica, que o sistema acarinhava para sua auto-reforma, e que só a unidade do
PDS garantiria. Em troca tiveram de absorver e dar passagem à versão civilizada da auto-reforma.
Eis tudo: sem clarão e sem apoteose, embora com talhe civilizado, as oposições politicizadas fundariam-se de uma
vez, a seu destino, armadas em rampa de acesso para a institucionalização da autocracia burguesa. Tudo estaria perfeito, se não
houvesse uma multidão olhando e esperando. E dado que, ao longo dos últimos vinte anos, as coisas foram como foram, nem
me pergunto o que ela virá a dizer, quando a festa acabar e o dia comum for o cotidiano de todos nós.
O trânsito em curso, o caráter do pontos de partida e chegada, o tipo e a natureza do candidato, tudo faz lembrar os
meados da década 40, suas vicissitudes e seu desfecho menos de duas décadas depois. Com uma diferença - fundamental, que
também já referi no passado: “O quadro da transição de 45/6 era menos favorável, do que o atual, para o sistema econômico-
político dominante; inversamente ao panorama daquela época era mais favorável fá forcas democráticas do que o é hoje. Em
linha de resultantes: a autocracia burguesa institucionalizada, que foi implantada em 45/6 e que se desdobrou até 64, terá sido,
provavelmente, aquela da maior liberalidade que pode estar contida em tal forma de dominação política; muito menos
`generosa’ tende a ser a autocracia burguesa institucionalizada ora em fase adiantada de implantação”. (“Hasta Cuando”?,
p.15).
Contudo, se o teor da moderação tancrediana, independentemente do valor do personagem, não é de molde a inspirar
fervorosas esperanças, nem mesmo uma boa dose de tranqüilidade,a imoderação malufista, em contrapartida, pela figura e
ainda mais pelo teor do esquema que personifica, só pode e deve gerar a fria e límpida decisão de repúdio e combate.
À semelhança da moderação tancrediana que transcende a Tancredo, a imoderação malufista ultrapassa, de muito,
simples “deselegância” de ato e espírito do indivíduo que a corporifica.
Exemplar impróprio, sem dúvida, como modelo de virtude, É, por desgraça, a adequação “feliz” para moldar o
cabide, a persona integral da resolução truculenta de um dado esquema de forcas.
Sem delongas: a imoderação malufiana é a paródia bárbara da auto-reforma, é a manipulação, a elevação desta ao
quadrado na forma de falsete; portanto, um puro engodo deliberado. Em suma, a imoderação malufista é a recusa dissimulada
de uma parcela do sistema em deixar o bonapartismo. Não é à toa que mentores seus alimentam apregoada esperança de
eternização no poder por trinta anos, caso sejam bem sucedidos no próximo cotejo do famigerado colégio eleitoral.
Nesta paródia feroz e mesquinha, - contraposta a qualquer mudança, decidida a constranger, por cobiça e temores
inconstrangidos, toda a lógica das possibilidades econômicas e políticas do momento -, está contida a única e grande certeza
que programa da candidatura Salim Maluf: - a certeza de que as coisas podem piorar.
Diante dela ganha sua verdadeira dimensão a certeza oposta, que procede de Tancredo: este será coagido à tentativa
de sustar a progressão da negatividade. Nada garante que possa ter sucesso, o contrário até é muito provável. Porém, o que
deve ficar iluminado, aqui, são as propensões imanentes fá duas linhas de forcas e sua diversidade.
Entre a certeza do pior e a coação pelo estancamento do negativo há uma clara distinção e uma sólida diferença.
Distinções e diferenças tem de ser respeitadas, especialmente em horas cruciais que, na imediaticidade, já não
comportam alternativa. Ainda mais quando o deserto de possibilidades é conseqüência também de vinte anos de
inconseqüências.
Que tudo isto de em ressonâncias getulianas (embora salgadas pelo modelo udenista), é bem a medida de quanto, até
há pouco, fomos forçados a regredir em relação ao pré-64. Isto só pode surpreender à tagarelice da pseudocrítica ao pretenso
fenômeno do populismo, que simplesmente decretou o colapso de algo que nunca existiu. E o que teve existência real, tanto
não morreu que ah está, reemerge, apesar de tingido de udenismos e “atenuado” nestes seus primeiros passos, como seria de
esperar. De todo modo - e de novo - como o canal que resta para trilhar.
Goethe asseverou que “É fácil parecer brilhante quando se desrespeita tudo”. O aforisma é precioso, mas não me
parece que queira alcançar também a prática política, pois nesta, como em qualquer outra, é banal ser o realejo do desrespeito
universal, mas não é nada brilhante, é simplesmente tolo.
Lógicas e perigosas, há que repetir, são as candidaturas Maluf e Tancredo, como resultantes naturais do quadro
brasileiro.
74
Mas o caráter geral, que as aproxima, também e nitidamente as contrapõe, na diversidade irrecusável que vai da
paródia feroz à auto-reforma civilizada.
Se o politicismo nos condenou a esta pobreza, não há que calar. E sua denúncia é a melhor forma de escorar a
candidatura Tancredo Neves contra o deslizamento à direita a que está ameaçada.
Se esta é a melhor palavra, nesta hora estreita, cabe entregá-la fá ruas, que só nestas pode ser alargada.
Ir fá ruas, contudo, não é uma mera opção multitudinária.
Número é um dos elementos de êxito que os trabalhadores possuem.
Contudo, como Marx já o disse, “os números só pesam na balança quando unidos pela associação e encabeçadas pelo
conhecimento”.
há, pois, que tornar a opção pelas massas e pelo irrecusável apoio à candidatura do Sr. Tancredo Neves, uma ação
iluminada pela perspectiva do trabalho.É o que pode garantir o respaldo essencial de que ela precisa, ao mesmo tempo que
possibilita fá massas a oportunidade de fincar na pauta suas concretas finalidades.
75

A ESQUERDA E A NOVA REPÚBLICA*

Os fatos, com muito exagero, superaram a imaginação. Nem por isso contrariariam a lógica íntima do caso brasileiro. O acaso
e o fantástico verteram pela artérias e capilares do necessário.
E o Brasil transitou - na corcova endoidecida do inesperado - do bonapartismo em crise para o território crítico da
autocracia burguesa institucionalizada. Cumpriu, mais uma vez, o movimento oscilatório entre estas duas formas de dominar,
que tem matrizado toda a história republicana.
A consternação nacional pela morte de Tancredo de Almeida Neves procedeu do imenso campo da sensibilização
humana e política, embaralhadas uma na outra, mutuamente reforçadas, resultando na pesada policromia da comoção e da
falácia: justa e pertinente a primeira, profunda e ilusória a segunda.
Retalhado em cirurgias sucessivas, mantido em sobrevida graças à parafernália das máquinas, tudo em prolongada
agonia de sofrimentos crescentes, que sucedeu e aprofundou o impacto estonteante de uma hospitalização de emergência à
beira da posse, a tragédia pessoal e humana do presidente eleito foi tocante e avassaladora. De fato, uma rara progressão de
cenas aflitivas: desde a primeira, quando a dez horas apenas de subir a rampa do Planalto, desceu à CTI do Hospital de Base;
até à última, quando tornou a descer, agora à tumba, depois de elevado a mártir pelo sentimento do povo.
Hoje, com o já sabido, tem-se o caráter e a dimensão exata da ambição e do sacrifício. Diante deste, fixa-se o
reconhecimento e rende-se a homenagem. Ambos devidos, não favores. Tanto quanto apreende-se seus limites e
determinantes de fundo.
Informações esparsas, mas suficientes, deixam saber que Tancredo Neves estava no mínimo adoentado, desde
meados do segundo semestre de 84. E, desde então, seu quadro clínico não fez mais do que evoluir negativamente. Padecendo
de uma sintomatologia que o levaria à automedicação, consciente e deliberadamente ocultou a moléstia e recusou exames e
atendimentos apropriados. Obstinou-se no propósito de adiar, para depois de 15 de marco, qualquer providência médica.
Temia deixar a cena pública antes da posse, mesmo por breves dias. Julgava que sua ausência, ainda que compulsória,
favoreceria a grupos inconformados, que disto tirariam proveitos para interromper o fluxo dos acontecimentos, que
marchavam com ele direcionados para uma solução civil, que só sua presença garantiria.
É o que pensou e é o que fez.
Imolou-se, portanto, na barragem ao golóismo.
Coerência notável, mesmo que a avaliação não seja correta, e em que pesem motivações estritas à sua personalidade
política, que atravessou décadas, tecendo, com paciência e obstinação de ourives, a própria ascensão ao poder.
Notável e patético. Em especial porque, ao limite, a ausência foi inevitável e definitiva. E adquire face sinistra, quando
o esquife sobe a rampa: Tancredo chega morto e sucedido.
É o resumo simbólico da problemática convicção motriz do presidente eleito. Julgamento de realidade que, ao menos,
tem a forca irrecusável de um testemunho, dado de uma posição privilegiada, e que encerra a extrema fragilidade da transição
efetuada.
Demonstra a fraqueza, sem ser necessariamente verdadeiro. E, debilidade, aqui, é antes um indicador de qualidade, do
que um índice quantificador de forca. Remete mais à frouxidão do que à carência. Em suma, significa ambíguo, enquanto
opção e definição de alvo e itinerário.
Posto como intuitivo brilhante, T. Neves atinava para isto melhor do que qualquer outro agente do processo, mesmo
porque, no processo, era, nada menos, do que o aval da ambigüidade presente e devinda. Ou seja, com a sua tutela substituía a
tutela armada, em benefício de um poder equívoco, ou seja, de uma democracia da ambigüidade. Foi o que, em outra parte,
chamei de “solução civilizada do sistema no poder” (ENSAIO 13), e que é uma forma de aproximação do que tenho
designado, com maior precisão, como “autocracia burguesa institucionalizada”.
Ambigüidade que é cerne da conciliação conservadora, e esta, por sua vez, nódulo central da chamada transição para a
democracia, articulada e conduzida pelo esquema aliancista. O que não vem à tona apenas com a arquitetura do ministério
Tancredo, ou com as primeiras medidas do governo Sarney. Tudo isto é apenas o aspecto atual de um processo antigo,
longamente vivido na oposição. Não importam mais os limites da intuição política do presidente morto, mesmo porque, um
pouco mais largos, um pouco mais estreitos, estariam sempre inscritos nas fronteiras do conservantismo civilizado, que muitos
preferem denominar de liberalismo-conservador, arcando com a contraditoriedade nos termos e o esmaecimento da tônica
conservadora. O que importa mesmo é o próprio conservantismo civilizado como prática e como padrão ideológico e
político. Dissocia radicalmente instituição política de estrutura econômica-social e confere à primeira poderes indeterminados,
ou quase isso, sobre a segunda. Mais ainda: sintetiza o conjunto da existência social a partir e através do político, dando à luz o
fenômeno do politicismo, que não está cingido ao campo ideológico, mas, ao contrário, é resultante primeira da obra prática
de sua dominação de classe.
Dir-se-ia que tal indentificação é muito próxima ao fazer e ao pensar do bonapartismo, da ditadura militar da qual se
está saindo. De fato o é. Não, porém, em razão de equívoco da determinação genérica oferecida, mas porque tanto o
bonapartismo como o conservantismo civilizado não são mais do que formas distintas do mesmo poder autocrático das
classes dominantes brasileiras, que desconhecem e estão impedidas de conceber e exercitar a forma menos perversa de sua
dominação, que é a democracia de classe dos proprietários.

* Publicado originalmente na Revista Ensaio nº 14. Ensaio, São Paulo, 1985.


76
Para não me alongar, cito palavras de um artigo anterior, no qual mais uma vez retomei a questão, que me ocupa e
preocupa há quase dez anos.
“O politicismo arma uma política avessa, ou incapaz de levar em consideração os imperativos sociais e as
determinantes econômicas. Expulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo econômico meramente paralelo
ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais... A
nossa burguesia, para quem o liberalismo econômico (a livre troca para sustentar e ampliar sua própria natureza exploradora,
através da associação crescente com a exploração hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre apropriado e
conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia ter aspirado a ser democrática, tem no politicismo sua forma natural de
procedimento. Politicista e politicizante, a burguesia brasileira, de extração pela via colonial, tem na forma da sua irrealização
econômica (ela não efetiva, de fato e por inteiro, nem mesmo suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu
politicismo. E este integra, pelo nível do político, sua incompletude geral de classe.
Incompletude histórica de classe que a afasta, ao mesmo tempo, de uma solução orgânica e autônoma para a sua
acumulação capitalista, e das equações democrático-institucionais, que lhe são geneticamente estranhas e estruturalmente
insuportáveis, na forma de um regime minimamente coerente e estável. O politicismo atua neste contexto, enquanto produto
dele, como freio e protetor. Protetor da estreiteza econômica e política da burguesia; estreiteza, contudo, que é toda a riqueza
e todo o poder desta burguesia estreita. Efetivamente subtrai o questionamento e a contestação à sua fórmula econômica, e
aparentemente expõe o político a debate e ao “aperfeiçoamento”. Portanto, atua como freio antecipado, que busca desarmar
previamente qualquer tentativa de rompimento deste espaço estrangulado e amesquinhado” (“Hasta Cuando”?, ENSAIO 10,
outubro/82, p. 7 e 8).
Tome-se por ilustração processos recentes.
A politização operada sobre o ressurgimento operário dos anos 78-80, que foi barrado e esvaziado inclusive pela
esquerda tradicional. O retorno, depois de muitos anos, dos trabalhadores à cena política brasileira, derivava de premências
econômico-sociais e continha a perspectiva real de mudanças estruturais. Barradas e levadas ao refluxo, as lutas operárias e
sociais tiveram seu curso desviado, pela intervenção politicista da ditadura e das oposições, para a campanha eleitoral de 82.
Na seqüência, foi a vez da gigantesca ansiedade popular pelas mudanças sofrer a canalização para o território institucional das
diretas-já, depressa recodificada em escalada ao colégio eleitoral, em benefício de uma transição indefinida, rumo a uma
suposta democracia só determinada pela falta de conteúdo.
Em suma, no âmago de todo este itinerário, os termos da equação tem sofrido uma inversão funesta: em vez de partir
da materialidade das lutas dos trabalhadores (da cidade e do campo) para atingir e moldar as instituições políticas, tem-se
partido do formalismo destas para atingir e moldar os trabalhadores. Ou seja, tem sido levado aos trabalhadores a perspectiva
formal das instituições, ao invés de levar fá instituições a perspectiva material dos trabalhadores.
Outro exemplo, sob véus patéticos, está embutido na transfiguração, da assunção popular de Tancredo a mito
mudancista, em estadista paradigmático da democracia do conservantismo civilizado.
Aqui não importa, que a versão conservadora seja a verdadeira, e que a popular não seja mais do que o resultado de
uma exulceração mistificada. Reação multitudinária da miséria real, que se expande pela miséria do sentimentalismo e da
religiosidade primitiva. O que importa, nesta expressão pré-política, é que se a fisionomia é de “responsabilidade” popular, o
conteúdo é de inculcação politicista. Tancredo “salvacionista” não é criatura do povo, tanto quanto a democracia institucional
do capital não é o totem e o tabu das massas dolorosamente fascinadas pela esperança.
Vai nisso tudo a ambigüidade de uma pregação institucionalizadora,que as massas só podiam e só queriam entender
como mudanças imediatas na sua forma de viver e sobreviver. Da mais vasta manipulação (voluntária e involuntária) de
consciência da história brasileira resultou um mito, de curta duração, para uso e abuso de fiéis e adventícios. Redundou
também, por lógica estrutural e sem mistérios, uma outra forma de governo do capital e de des-governo do trabalho. Eis, sem
mística, o ponto e o problema.

II

Ponto e problema que não se projetam como uma nova determinação, seja porque “faltou o chefe”, seja porque a dispersão
ameaça o exército aliancista. Ou ainda mais indeterminadamente, porque a “democracia é difícil”.
É preciso deixar a superfície.
No Brasil, democracia é impossível, enquanto governo do capital e des-governo do trabalho.
“Na particularidade da via colonial, alternando-se as formas genuinamente burguesas de dominação entre o
bonapartismo e a autocracia burguesa institucionalizada, que excluem a figura da democracia liberal, a emersão democrática
fica, sem remissão, a cargo das massas trabalhadoras, sob nucleação da perspectiva operária.
Estas detém, no caso, com primazia de classe, o interesse real e coerente pela efetivação democrática. Tendo, ademais,
a possibilidade de atrair ou arrastar para a mesma direção a outras categorias sociais. No que, aí, se refere à burguesia, pode ela,
talvez, ser arrastada ou compelida à democracia, esta pode ser feita à sua revelia, mas ela própria não é nunca seu agente. Mas,
no quadro da especificidade referida, quando a construção democrática se evidencia como tarefa histórica dos trabalhadores,
simultaneamente se revela uma mudança qualitativa. Na medida em que o agente democrático é por excelência a massa
trabalhadora, tendo por centro aglutinador e norteador o proletariado, a motivação e o direcionamento não permanecem
voltados, pura e simplesmente, para a objetivação de formas institucionais./.../ Não há desprezo dos trabalhadores mesmo
pelas franquias legais as mais elementares, ao contrário; mas, à medida em que até mesmo estas só são dispositivos
integralizáveis na proporção de sua interferência, tem de estar articuladas a matrizes mais substantivas: em primeiro lugar, fá
77
condições de salário e trabalho sob as quais, cada trabalhador e os trabalhadores em seu conjunto, na imediaticidade são
compelidos a produzir e reproduzir suas existências materiais. Em síntese e de modo direto, a objetivação democrática sob a
égide dos trabalhadores, a única possível no capitalismo explicitado pela via colonial, implica o rompimento do politicismo.
Ou seja, imediatamente tem de ferir o molde econômico do sistema. A intervenção do movimento das massas trabalhadoras
recompõe a apreensão política e põe em jogo, de imediato, a totalidade do social. Sua construção democrática não é, pois, nem
ao primeiro momento, a mera perseguição fá franquias formais do liberalismo. O que lhes torna completamente estranha, -
com ela não se identificando, nem a ela se submetendo -, a tática impossível do impossível objetivo de primeiro conquistar a
“democracia” para depois “tratar da vida”. Que, aliás, só não é estranha para a lógica adstringente do mais pobre liberalismo, e
que, na essência, não difere da razão autocrática da auto-reforma em curso, no sentido de que a “democracia” possível da
hiper-retardatária burguesia brasileira se resume na legalização, na institucionalização da sua insuperável negação da própria
democracia”. (Idem, p. 14-15).
A questão, portanto, é de fundo e vem de longe.
Notar, só hoje, fá primeiras encrespações do novo governo, que a democracia real permanece confinada a uma
solução longínqua, é chegar muito atrasado a um mínimo de crítica e perspicácia.
Mas o que arrepia é que nem isto foi alcançado, para além da fronteira retórica, pelas correntes políticas organizadas,
que tem representação e influencia, e que jamais se interrogaram pelas - condições de possibilidade da democracia no pais.
Nunca lhes ocorreu, no passado e no presente, formular e responder a esta pergunta decisiva. É incrível, mas nem mesmo as
esquerdas o fizeram. Tanto quanto é sintomático que os únicos a abordar enviezadamente o tema tenha sido os ideólogos
conservadores ou de direita, na linha que vai de Farias Brito a Oliveira Vianna, que sempre apresentaram fórmulas puramente
negativas, ou modulações em torno do “estado forte” ou da “democracia orgânica”. Dos quais o último período bonapartista,
que ora se encerra, explicitamente se alimentou. E o término deste não implica a liquidação daquelas fontes ideológicas, nem
de seus acólitos e atualizadores.
Todavia, nem isto foi bastante forte para empurrar os “liberais” e a esquerda (falo de partidos ou movimentos,
abstraindo sempre esforços teóricos individuais ou isolados) para a investigação do problema.
Dos “liberais” bastaria dizer que não existem para além do atavio das convicções pessoais. No poder dos partidos e
do estado são o que podem ser, conservadores civilizados, mais ou menos esclarecidos. E do que “não existe” não se pode
esperar inquietação ou formulação políticas dessas ordem. Ou seja, volta-se a encontrar a incompletude de classe de nossos
proprietários e sua inapetência congênita para a democracia liberal. Como poderiam coabitar com a soberania do povo, na
inintegralidade de sua soberania enquanto classe do capital? Ou seja, como dominariam materialmente, sob a soberania
política do povo, se sua própria dominação é vassala de sua própria estreiteza orgânica e de um outro capital soberano?
Portanto, se o limite de sua soberania é seu capital limitado, o segredo de seu monopólio do poder é a atrofia de sua potência
política. Isto é, a verdade do deslimite de seu mando autárquico é a limitação de sua soberania atrófica. Donde capital vassalo
e soberania popular não se integrarem, sendo incapazes de efetivar, de modo minimamente coerente e estável, “o círculo
mágico e vicioso do circuito institucional do capital, que consta da totalização recíproca entre sociedade civil e estado”,
quando se trata da democracia liberal, ou seja da democracia dos proprietários que é, vale repetir, a forma menos perversa de
sua dominação (JC, Democracia Política e Emancipação Humana, ENSAIO 13, p.49).
Posto que da mutilação proprietária dos “liberais” não poderia ressoar a inquirição pela democracia, resta sondar por
que as esquerdas tem reproduzido com doçura este “ruidoso” mutismo.
A primeira razão é precisamente por que reproduzem.
Reproduziram e reproduzem, sob crescente submissão nas duas últimas décadas, os diagnósticos de realidade e os
projetos de ação do conservantismo civilizado nacional e a parametração internacional dos ideários neo-liberais.
Esta mimese, produto e demonstração de fraqueza (obviamente involuntária), exibe uma renúncia à independência
teórica, que já não é tão indeliberada.
Ademais, a subordinação neste campo é uma inclinação antiga das organizações de esquerda no Brasil. Ressalvados
meia dúzia de anos da década de vinte (sem entrar no mérito do elaborado), já ao final desta, com a adoção das teses genéricas
sobre o mundo colonial do VI Congresso da III Internacional, engendra-se a postura deplorável da cópia intelectual bisonha.
Que o longo período stalinista levará fá fronteiras da tragédia e da comédia, fá quais o neo-stalinismo só agregará uma dose de
dissimulação e duas de cínico pragmatismo.
A natureza pós-capitalista e não socialista do leste europeu tornada evidente, e a decorrente crise internacional do
movimento comunista só fizeram acentuar, ao longo dos últimos vinte anos, a debilidade da esquerda organizada e a sua falta
de autonomia teórica.
Em suma, auréola extinta, a dogmática no Brasil, já subdividida em dois ramos, de um lado sucumbiu aos ideários de
circunstâncias, e de outro deslizou para a farsa. Assim, na contradança entre o euro-pantanismo e o escabroso referencial
(sino)-albanez, o salão ficou vazio para as instrumentalizações do conservantismo civilizado e o malabarismo arcaico da nova
esquerda.
Basta hoje, para medir o servilismo teórico da esquerda organizada, fazer o registro de que, na estreiteza, mais ou
menos acentuada em cada caso, de seus padrões de reflexão, avulta e predomina um reduzido arsenal de conceitos, originário
do universo epistêmico liberal, que se dá a conhecer pelas teorias da dependência e da marginalidade e pelas críticas ao
populismo e ao autoritarismo. Conjunto de fórmulas que já teve e, em certa medida, ainda desfruta do estatuto de “marxismo
atualizado ou legal”, sem que jamais tenha recebido a crítica e a refutação, que tanto merece, da esquerda organizada. Em
verdade deu-se o contrário: a esquerda tradicional, na falta absoluta de elaboração própria, assimilou-o aos retalhos e com
estes requadriculou suas teses e posições antigas; enquanto a nova esquerda tem nele sua autentica substância e, através dele,
paga comodamente seu tributo aos “aspectos válidos” do marxismo.
78
O silencio ensurdecedor da esquerda, quanto à investigação das condições de possibilidade da democracia em países
de extração colonial, tem muito a ver com a incompletude de classe do capital.
Quando, fá vésperas da metade do século passado,as revoluções por toda a Europa “proclamaram, de forma ruidosa e
ao mesmo tempo confusa, a emancipação do proletariado” (MARX, 1856), a emersão social e política, prática e teórica, desta
nova categoria social fez-se, lá onde alcançou seu significado mundial, contra a figura integralizada da burguesia, que fora,
anteriormente, a cabeça de sua própria criação, ou seja, da revolução de “tipo europeu” (inglesa e francesa) para usar a precisa
designação de Marx, e da qual brotara “o triunfo de um novo sistema social” e não apenas “a vitória de uma classe particular
da sociedade sobre o antigo sistema político” (MARX, A Burguesia e a Contra-Revolução, ENSAIO 10, p.71).
Com efeito, a crítica prática e teórica do trabalho, isto é, da esquerda, nos países capitalistas de “tipo europeu”, pode
principiar por onde findava a crítica e a prática revolucionária dos proprietários. Figuras do capital que haviam efetivado sua
dominação econômica e sua soberania política na identidade formal da soberania popular.
Não desimporta lembrar que até mesmo os prenúncios claudicantes de Meslier, Mablú e Morellú, e especialmente de
Leclerc e Roux até Babeuf e Buonarroti já estavam propostos à completude potencial, e logo adiante estrutural da classe do
capital. Cabe refletir com Marx que “a revolução francesa fez despontar idéias que conduzem para além das idéias da antiga
ordem do mundo. O movimento revolucionário que nasceu em 1789 no Círculo Social, /.../, fez eclodir a idéia comunista que
Buonarroti, amigo de Babeuf, reintroduziu na Franca depois da Revolução de 1830. Esta idéia, elaborada com conseqüência, é
a idéia da nova ordem do mundo” (A Sagrada Família, VI, III, C). Ou ainda: “O socialismo ou comunismo não partiu da
Alemanha, mas da Inglaterra, da Franca e da América do Norte. A primeira aparição de um partido comunista
verdadeiramente atuante se dá no seio da revolução burguesa, no momento em que a monarquia constitucional é descartada.
Os republicanos mais conseqüentes, os `niveladores’ na Inglaterra, Babeuf, Buonarroti etc., na Franca, são os primeiros a ter
proclamado essas `questões sociais’. A `conspiração de Babeuf’, escrita por seu amigo e companheiro de partido Buonarroti,
mostra como estes republicanos extraíram do `movimento’ histórico a convicção de que, eliminando a questão social:
monarquia ou república, nenhuma só `questão social’ no sentido do proletariado se encontrava resolvida” (A Crítica
Moralizante,III).
Mesmo porque “Em 1830, a burguesia liberal realiza, enfim, suas aspirações de 1789, com a diferença, todavia, que
suas luzes políticas estavam plenamente consumidas, que ela não mais acreditava encontrar no Estado representativo
constitucional o ideal do Estado, a salvação do mundo e os fins universais da humanidade, mas, ao contrário, havia
reconhecido neste Estado a expressão oficial de seu poder exclusivo e a consagração política de seu interesse particular” (A
Sagrada Família, idem).
Em síntese, nas formações sociais que objetivaram revoluções de “tipo europeu”, a revolução do trabalho nasce como
o melhor dos produtos da revolução do capital. Os trabalhadores retomam e elevam as bandeiras decaídas das m,os dos
proprietários. A figura integralizada da burguesia é a cidadela material e espiritual contra a qual principia a integralização do
proletariado. Este começa por onde aquela termina.
Muito distinta é a situação da esquerda, onde a objetivação capitalista foi processada pela via colonial.
Já deveria ser um truísmo a afirmação de que, em países desse tipo, jamais houve qualquer revolução burguesa.
Considerando a determinação de revolução de “tipo europeu”, Marx advertiu que era “necessário não confundir a
revolução de marco (Prússia/1848) nem com a revolução inglesa de 1648, nem com a revolução francesa de 1789”. Dizia que
“bem longe de ser uma revolução européia, ela não foi senão o eco debilitado de uma revolução européia num país
retardatário”. Que “era desde a origem uma revolução secundária”, cuja “ambição consistia em querer ser um anacronismo”
(A Burguesia e a Contra-Revolução).
Num país como o nosso, de constituição hiper-retardatária do capital verdadeiro, o que seria a ambição de vir a ser
um hiper-anacronismo? A história brasileira do capital e de suas personagem oferece a resposta. Aqui, basta assinalar, a
encarnação burguesa do anacronismo dispensou até mesmo revoluções terciárias.
Ou seja, jamais completou seu parto. Sua face é a de um embrião maldito condenado a uma gestação eterna. Cresce e
encorpa na reprodução de sua incompletude, engrossando sempre mais os cordões umbilicais que o atam fá fontes que o
tolhem e subordinam.
Nunca foi a cabeça de sua própria criação, e nunca aspirou a não ser não ter aspirações. Não consumou suas luzes
políticas, porque só abriu os olhos quando estas já estavam extintas. Nunca teve que desacreditar do ideal do estado
representativo constitucional, simplesmente porque este nunca foi seu ideal de estado. Também não abandonou a salvação do
mundo e os fins universais da humanidade, porque sempre só esteve absorvida na salvação amesquinhada de seu próprio ser
mesquinho, e seus únicos fins foram sempre seus próprios fins particulares.
A esquerda brasileira, portanto, não nasceu contra a cabeça e o corpo de um antigo revolucionário. Não se deparou
com uma entificação histórico-social integralizada. Viu-se em face da integralização histórico-social de um inacabamento.
A crítica prática e teórica dos trabalhadores, aqui, não principiou por onde os proprietários haviam concluído. Estes
não só não haviam terminado, como não podiam terminar nunca. E a esquerda bracejou no abismo do inacabamento do
capital, convertida em empreiteira de uma obra por finalizar. Obra que, sob a mesma planta, jamais poderia ser sua.
No mínimo e em outros termos, a esquerda principia, neste caso, aquém dos limites da crítica da burguesia clássica, e
toma os parâmetros abandonados desta, como se fossem os supostos de itinerário e de projeto da burguesia de extração
colonial, dos quais nem esta, nem ela própria poderiam pretensamente escapar.
A esquerda brasileira nasce, portanto, submersa no limbo, entre o inacabamento de classe do capital e o imperativo
meramente abstrato de dar início ao processo de integralização categorial dos trabalhadores. Alma morta sem batismo, não
atina para a natureza específica do solo em que pisa, nem para a peculiaridade de postura e encargo que este chão dela
demanda e a ela confere.
79
Posta entre a mera possibilidade genérica de uma revolução abstrata, e a realidade concreta de um capital incompleto
e incompletável, a esquerda sucumbe, naturalmente, à presença real e fá tensões e pressões efetivas da segunda. Entre a
idealidade esgarçada de uma revolução incogitável e o credo na finalização necessária do capital, é arrastada para o objetivismo
da empreitada que visa a última. É a subsunção aos nexos mortos do que fora a lógica do capital concluso. É a submissão à
lógica extinta do ideário liberal. No caso, duas vezes morta: a primeira vez, enquanto cadáver ideológico da própria burguesia
de “tipo europeu”; a segunda, enquanto fantasma de empréstimo do conservantismo civilizado, boneco “liberal” na
ventriloquia da autocrática burguesia brasileira. O devaneio de principiar a integralização de classe dos trabalhadores reduz-se
a miserável voto piedoso. Ao mesmo tempo, a empresa impossível de levar à completude o capital incompletável amesquinha-
se, progressivamente, em simples e melancólico ativismo caudatário.
Sem independência teórica, sem autonomia política, sem vitalidade ideológica, raquíticas em número e anacrônicas nas
formas de organização, e por isso mesmo débeis e cismáticas, as esquerdas organizadas vem-se arrastando por décadas, num
processo que atinge e desencanta, limita e desorienta o conjunto dos trabalhadores do pais. Trôpegas, desconhecidas e sem
fascínio para a esmagadora maioria destes, vem fazendo sua história, lamentavelmente para todos nós que estamos do outro
lado do capital, como a história de uma esquerda in partibus infidelium.
Esquerda só no nome. Que tem mártires e sacrificados, ofendidos e humilhados. Herpis no equívoco e vítimas de
todas as repressões. A mais digna homenagem a todos eles é a coragem de recomeçar.
É urgente recomeçar.
Mas, quando há urgência histórica, não é permitido ter pressa.

III
A conjunção entre o embrião maldito do capital incompletável - agora já de engorda monopólica - e a insubstancialidade
teórica e prática, até hoje, da esquerda organizada, é determinação da miséria brasileira.
Miséria brasileira é determinação particularizadora, para o âmbito do capital e do capitalismo de extração colonial, da
fórmula marxiana de “miséria além,”. Compreende processo e resultantes da objetivação do capital industrial e do verdadeiro
capitalismo, marcados pelo acentuado atraso histórico de seu arranque e idêntico retardo estrutural, cuja progressão está
conciliada a vetores sociais de caráter inferior e à subsunção ao capital hegemônico mundial. Alude, portanto, sinteticamente,
ao conjunto das mazelas típicas de uma entificação social capitalista, de extração colonial, que não é contemporânea de seu
tempo.
A miséria brasileira é o território precípuo de nossas categorias dominantes. O corpo e a alma possíveis de sua prática
capitalista. Não abstraídas suas equações modernizadoras, e nem mesmo seus eventuais e pretensos arroubos menos
acanhados.
O trânsito do bonapartismo à autocracia burguesa institucionalizada, a passagem não desprezível de Figueiredo a
Sarney é um movimento no interior da miséria brasileira e de sua reiteração.
A reprodução ampliada da miséria brasileira é todo o horizonte dos proprietários do capital inconcluso. É do que se
nutrem, é o que podem, é o que lhes basta. A conta fica sempre para os que não devem, paga à custa de forca de trabalho.
Rasgar a conta é o que importa. No mínimo, Por ora, recusá-la. Romper a reprodução da miséria brasileira é do que se
trata, donde a urgência de recomeçar pela esquerda.
Do contrário a miséria, que induz e conjuga a pequenez feroz da burguesia autocrática ao raquitismo da esquerda
nominal, perdurará na sucessão de momentos bonapartistas e de institucionalizações burguesas autocráticas. Tal como foi até
aqui e agora se repete, pois, neste instante, o que há de comum entre a Nova República e a esquerda organizada é que ambas
são apenas possibilidades remotas.
Desde o começo, a esquerda brasileira vacilou, dado o quadro de seu afloramento, entre a revolução abstrata - incapaz
de configurar o ponto de partida da integralização de classe dos trabalhadores - e o credo na finalização do capital. E nesse
movimento pendular consumiu quase toda sua capacidade téorica, reduzindo os problemas de realidade a simples questões de
tática.
E todos eles ao nível pedestre de uma querela entre reforma e revolução, entre luta armada e luta pacífica. Polemicar
ao qual, hoje mais do que ontem, por obra e graça da assim chamada nova-esquerda, não faltam as enfatizações e especulações
relativas ao papel da volição, tomada aí como fundante da luz e do ato políticos.
Parece que é especialmente pela volição que as esquerdas hoje se confundem entre si, na confluência pela democracia.
Não é casual por isso que nenhuma de suas vertentes ofereça uma alternativa à política econômica vigente desde 64.
Este desbragado politicismo é o índice de sua passividade teórica de sua inanidade política e até mesmo de sua
omissão social, desta escapando a nova esquerda por via confusa e ruidosa, ademais de politicamente inconseqüente.
Enquanto a esquerda tradicional ficou entravada entre o revolucionarismo abstrato e o ativismo caudatário, a nova
esquerda vem-se afogando no maniqueísmo entre democratismo e autoritarismo.
Ambas necrófilas do corpus liberal, dado que, entre o reboquismo da primeira e o participacionismo da segunda, a
diferença teórica e ideológica que as separa não é de natureza, e é muito menor do que supõem seus acólitos e leva a crer, à
primeira vista, a ferocidade de suas disputas.
Ao reboquismo corresponde a fé na conclusibilidade do capital inconclusível, do mesmo modo que ao
participacionismo corresponde a fé na totalização do poder liberal instaurado e ininstaurável.
80
Subsumidas, as duas, ao universo teórico do capital, distinguem-se, neste campo, apenas pela modalização de suas
ideologias: a esquerda tradicional efetiva esta encarnação como torcida liberal pela integralização do capital, e a nova esquerda
toma o corpo da teimosia liberal, conversão da hipóstase do liberalismo, numa formação de liberalismo impossível.
Ideologia da teimosa que está contida e expressa no participacionismo da nova esquerda.
Da mesma forma que economicismo e politicismo são degenerações, respectivamente, da luta econômica e da luta
política, o participacionismo é a participação degenerada.
Nas três a constante é a atrofia da consciência. Ao primeiro falta o sentido do poder; ao segundo, o sentido da
determinalidade da produção e reprodução da entificação social; ao terceiro, o sentido da própria consciência.
Do primeiro ao terceiro vai a linha descendente do espontâneo ao espontaneísmo, redundando na concepção
declinante da política como mera volição ou invenção.
O estiolamento corporativo, no primeiro, corresponde à dissolução das classes sociais no segundo, e à redução física e
numérica dos agentes no terceiro.
O participacionismo é a participação sem consciência participante ou a presença participante sem consciência, isto é, a
presença inativa da consciência desarmada, reduzida, quando muito, a puro testemunho, e exposta, sem saída, à
instrumentalização, seja por parte de deus, seja por parte do demônio.
Participar é atar-se, sob forma consciente, à política concreta pelas demandas finitas de uma momento histórico dado,
no processo verdadeiramente infinito da auto-edificação humana e de sua emancipação. Participacionar é servir como número
à manipulação politicista, destituído de classe, consciência e individuação, sem vínculo concreto com a construção do humano
e de sua liberdade.
Tanto quanto o participacionismo caracteriza a nova esquerda, o ativismo caudatário caracteriza a esquerda
tradicional. Tomados como absolutos são armas de recíprocas estigmatização. Enquanto atributos reais identificam com
objetividade, sem dúvida, linhas predominantes de postura e inclinação, porém não falta a nenhuma das duas o que sobra na
outra. Pois, dada a comunhão liberal de suas precariedades de consciência, o ativismo caudatário não pode deixar de ter uma
dimensão participacionista, tanto quanto o participacionismo não escapa de medidas do ativismo caudatário.
Visto que ambos são empenhos pela completude de instâncias distintas de um mesmo universo teórico e prático
incompletável, só podem redundar, eles mesmos, em incompletudes irredutíveis.
Assim, se a esquerda tradicional cevou sua nominalidade porque encarou o matrizamento econômico pela ponta
errada, a nova esquerda erra e desencarna porque desencara todas as pontas daquela matriz.
A Nova República, precisamente pelo que tem de mais débil - sua intrínseca e necessária instabilidade e incoerência -
traz inscrita a oportunidade para o resgate de uma esquerda real, pois o enigma daquela esfinge exige uma resposta ao seu
dilema econômico. Para o qual a incompletude de classe do capital, definitivamente, não tem resposta, e ao qual sô o arranque
da integralização de classe dos trabalhadores pode oferecer perspectiva.
Ao passo que a completude de classe do capital se dá ou não, em formas e graus distintos, na dependência de suas
formas particulares de objetivação (“tipo europeu, via prussiana, via colonial...), a incompletude de classe do trabalho é
universal, mas universalmente integralizável pela objetivação de sua potencialidade de consciência, organização, luta e poder.
(Não vem ao caso, aqui que a efetivação geral e concreta deste seja ou possa ser a consumação de todas as classes e do próprio
poder).
A resposta para o enigma da Nova República, que é simultaneamente o recomeço da esquerda, vem da perspectiva de
dar início à integralização de classe dos proletários (da cidade e do campo) e de todos os trabalhadores. Início de processo de
integralização que não pode ser pensado, nem praticado doutrinariamente. Mas colado à imediaticidade da vida e do drama
destas multidões. Bases multitudinárias que sofrem a tragédia econômica e social da reprodução da miséria brasileira,
diretamente sob a forma de superexploração do trabalho, ou seja, de arrocho salarial.
A busca da completude do capital, hoje uma falácia comprovada, pode ter sido uma ilusão inevitável. A ilusão
distributivista não é falácia menor, uma espécie de absurdo “ricardiano”, do qual já não pode ser perdoada a esquerda
organizada, como já anotei em 77 (Temas 2, p.148-9), citando Marx, pois: “A articulação da distribuição é inteiramente
determinada pela articulação da produção. A própria distribuição é uma produto da produção, não só no que diz respeito ao
objeto, podendo apenas ser distribuído o resultado da produção, mas também no que diz respeito à forma, pois o modo
preciso de participação na produção determina as formas particulares da distribuição, isto é, determina de que forma o
produtor participará na distribuição.
/.../ Na sua concepção mais banal, a distribuição aparece como distribuição dos produtos e assim como que afastada
da produção, e, por assim dizer, independente dela. Contudo, antes de ser distribuição de produtos, ela é: primeiro,
distribuição dos instrumentos de produção, e, segundo, distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes tipos de
produção, o que é uma determinação ampliada da relação anterior. (Subordinação dos indivíduos a relações de produção
determinadas.) A distribuição dos produtos é manifestamente o resultado desta distribuição que é incluída no próprio
processo de produção, cuja articulação determina. Considerar a produção sem ter em conta esta distribuição, nela incluída, é
manifestamente uma abstração vazia, visto que a distribuição dos produtos e implicada por esta distribuição que constitui, na
origem, um fator de produção” (Introdução à crítica da Economia Política, 2, b).
Ultrapassando e excluindo os itinerários impossíveis do distributivismo e da concludência do capital, a esquerda
poderá ultrapassar o espaço teórico do capital e compreender, então, que ao invés de tentar completar o incompletável ou de
tentar impelir a ferocidade do capital atrófico à brandura, trata-se, isto sim, de “recusar a conta”, ou seja, de principiar sua
desmontagem.
Desmontagem do capital que é “Num primeiro, mas talvez longo momento, reordenação na vigência ainda do modo
de produção atual, posto que a demanda de rompimento e superação imediatas deste não seria mais do que um voto piedoso
81
ou uma tirada demagógica. Mas, reordenação de tal ordem, que implicasse um montante significativo de “desarrumação” e
“desmontagem” de porções e aspectos de seu aparato, de modo a impedi-lo a reproduzir a prática da superexploração do
trabalho, que hoje agudamente o caracteriza”. (Hasta Quando, p.15).
Ou em termos mais recentes, que v,o na mesma direção: “O que implica em se pôr imediatamente no terreno do
próprio capital, ou seja, praticar desde logo um diapasão político negativo, vale dizer: fundir luta econômica com luta política.
A não ser que se queira acreditar que seja possível fazer conviver instituições de tipo democrático com superexploração do
trabalho, democracia com arrocho salarial. O que se perspectiva, pois, como passo fundante de uma programática para a
construção de uma democracia dos trabalhadores é o rompimento da atual política econômica. E sua necessária substituição
por uma política econômica da perspectiva do trabalho. O que redunda na fratura e desorganização de certos aspectos da
organização do capitalismo, sem que implique de imediato a superação do modo de produção do capital” (DP e EH, p.55).
Em suma, em vez dos equívocos funestos de dar acabamento ao capital ou ao politicismo liberal do capitalismo, dar
início a uma política de integralização de classe dos trabalhadores, que seria o começo da consumação da ferocidade do capital
atrófico, ou seja, o rompimento com a miséria brasileira, vale dizer com os cordões umbilicais que ligam a parte mais dinâmica
da formação brasileira ao atraso do subcapitalismo e à soberania do capital concluso.
Portanto, em lugar do pacto social, a propositura e a luta por uma política econômica da perspectiva do trabalho. Em
lugar do pacto político, o pacto do trabalho que, rompendo as fronteiras do politicismo, matriza a política pela anatomia do
social, que só se efetua em independência, mas sem vocação isolacionista.
No mais,que é muito, e do qual aqui não se fala, ter em conta “que a propositura de uma democracia do trabalho, para
hoje, só ultrapassa a esfera da pura idealidade, quando tem por fundação e virtualidade a soberania dos trabalhadores,
reconhecida para a linha de horizonte do amanhã” (Idem).
Será o recomeço.
Sine ira et studio. Tal como deve ser escrita a história.
Mas, primeiro, tem de ser feita.
82

A MISÉRIA DA REPÚBLICA DOS CRUZADOS*

“...nossa história até agora,


tal como um recruta inábil,
só teve como tarefa o exercício
de repetir histórias banais”.

Marx – Crítica à Filosofia do Direito de Hegel

INTRODUÇÃO

Decerto não foram só as lágrimas de Conceição, que levaram Funaro a proclamar o início da revolução francesa no Brasil.
Contudo, Funaro, Conceição e os círculos acadêmicos associados a eles não podem ser tratados apenas com ironia ou
azedume, já que se oferecem à identidade como a conjunção do capital e do trabalho, no seio desperto do reformismo latino-
americano. A seu modo são a revolução, - não a revolução traída, mas a idéia e o ato da revolução banida.
A lembrança da revolução será aos ouvidos majoritários da nossa pequena e cordata nação política um incômodo
anacronismo. Palavra e ilusão dos antigos, que a modernidade informatizada (ou será que foi o ethos da pós-modernidade?)
relegou ao ostracismo definitivo. Peca de arquivo ou de museu, que não traz boas lembranças, nem estimula o apetite
intelectual dos militantes.
Se falo dela é porque veio à tona na forma de revolução banida no Plano Cruzado.
Como a idade de seis meses, o pacotão redentor é um animalzinho combalido, que tropeça sobre os próprios pés, ele
que com inaudita precocidade andou e falou na hora mesmo em que nasceu.
Raros foram aqueles (e isto sim é de chorar) que não se deixaram impressionar pela aparente robustez do rebento e
pelo eco multiplicador do vozeirão com que veio à luz. No mínimo a quase totalidade soçobrou proudhonianamente,
acalentando reter “apenas o lado positivo da contradição”: o congelamento dos preços. Esquecida que salário também é
preço, e recusando-se a admitir, nem que fosse só em atenção a experiências recentes ou um pouco mais antigas, que o
contrário é que constituía a hipótese mais plausível, pois controlar salários, por bem ou por mal, é da compulsão do capital,
enquanto o preço das outras mercadorias, - todos sabemos -, é protegido pelo espírito absoluto do mercado...
A debilidade, portanto, das perspectivas do Plano de Estabilização não é uma constatação post festum. Nem o mais
importante é a forca aparente de seu perfil inicial, nem a fraqueza real de seu rosto atual ou final. Em sua realidade e em sua
verdade ele é o segredo desvendado da democracia de proprietários no Brasil.
O desafio da Nova República para Tancredo, Sarney e inclusive para Ulisses é o mesmo (ainda que o último possa ser
distinguido em grau pelo discurso), tendo sido caracterizado por eles sob diversas fórmulas em muitas oportunidades.
Da sua perspectiva política, a bem dizer - do capital, trava-se, como ainda se trata, de retomar o crescimento
econômico e de reduzir a pobreza, que avassala a maior parte da população. Ambas, freagem na produção da riqueza e
emergência social da miséria, haviam-se tornado politicamente insuportáveis, e tinham sido os aríetes decisivos na
ultrapassagem do modo ditatorial de dominação desse mesmo capital.
Já nas expressões - retomada do crescimento e combate à pobreza ou redução da miséria, ou ainda em outras do
mesmo tipo -, transparece a dimensão acanhada do programa, substitutivas que são de problemas reais e agudos muito mais
amplos e profundos. Do prisma do capital tratar-se-ia não apenas de reiniciar uma progressão econômica, mas de estabelecer
as bases de toda uma nova fase de acumulação. E do ponto de vista da multidão excluída trata-se, de fato, de romper com o
pauperismo estrutural que denota a sociedade civil brasileira, e não meramente de ter aliviados pela franja seus sofrimentos
permanentes.
Registro com isso a diferença, à primeira vista apenas de proporção ou intensidade, tópica de diagnósticos que se
acostam a uma escala de etapas qualquer, e, em verdade, distinção qualitativamente fundamental entre o porte essencial das
questões e o tamanho inferior e contingente do programa assumido pela Nova República.
A figura brasileira de capitalismo periférico e subordinado singulariza-se como a 8- economia do mundo e a 54-
enquanto poder de compra de sua população. Metade da renda distribuída fica com a parcela de 1% dos mais ricos, e mais da
metade da população (70 milhões) rateia o insuficiente para poder se safar da faixa da pobreza e da miséria absoluta.
Não é apenas um quadro de brutal falta de eqüidade, mas o retrato a flor dos dados de uma maneira de ser do capital,
que reitera de modo particularmente agigantado a lógica intrínseca de todo capital: a produção em paralelo de imensa riqueza e
de imensa miséria.
Com o dinamismo de 8ª colocada no ranking econômico planetário (o que antes de mais nada é índice da pobreza da
maioria das nações) conjugado à sua campeoníssima mesquinhez distributiva, a questão é: - a quem beneficia a riqueza
acumulada em parâmetros dessa ordem e qualidade?

* Publicado originalmente na Revista Ensaio nº 15/15. Ensaio, São Paulo, 1986.


83
A resposta sabida, que identifica sobretudo a apropriação monopólica nacional e internacional, não tem extraído, no
entanto, a devida articulação fundamental entre o dinamismo da acumulação e a aguda estreiteza da distribuição, que configura
a prática fundante da superexploração do trabalho.
Complexo fenomênico essencial da acumulação e da sociabilidade periféricas, sem cuja percepção é perdido o fio da
meada na reprodução teórica efetiva dessa parcela subalterna do universo do capital, e que nas análises de Florestan Fernandes
ganha corpo pela articulação entre “a drenagem de recursos materiais e de riqueza da periferia por meio de mecanismos
complexos, implantados diretamente nas estruturas mais dinâmicas e produtivas das economias periféricas estratégicas, e a
institucionalização de uma taxa de exploração da mais-valia muito mais alta” (O que é revolução, p.92). Ou sob a forma
expressiva de que “todas as modalidades de exploração que se expandam na periferia sempre encontram limites naquilo que
chamei apropriação dual do excedente econômico” (Nova República?,p.34/5). E ainda mais amplamente em A Ditadura em
Questão, ao afirmar que “O parceiro forte não só sateliza o desenvolvimento capitalista; ele constitui o pólo hegemônico do
processo e converte a associação em um duro processo de exploração crescente da `economia’ e da `sociedade’ hospedeiras.
Estas se internacionalizam em vários níveis, em um caminho sem retorno, já descrito, com referência ao Canadá, como
`rendição silenciosa’. A apropriação dual do excedente econômico (ou seja, a apropriação do excedente econômico absorvido
pela burguesia interna e pela burguesia externa ou `estrangeira’) sofre uma intensificação considerável, embora a drenagem dos
recursos materiais e humanos da Nação pobre e dependente destitua a parceria de qualquer forma de equilíbrio ou de
eqüidade” (p.101). E mesmo num texto mais antigo, ao formular que “O fardo da acumulação de capital é carregado pelos
países latino-americanos; mas seus efeitos multiplicadores mais importantes são absorvidos pelas economias centrais, que
funcionam como centros dinâmicos de apropriação das maiores quotas do excedente econômico gerado” (Capitalismo
Dependente e Classes Sociais na América Latina, p.30).
Em suma, na particularidade a que pertence o caso brasileiro, acumulação moderna e dinâmica e pauperismo
estrutural ou superexploração do trabalho perfazem os membros contraditórios de uma mesma equação unitária do capital.
Amálgama que reproduz, com toda sorte de tensões e desequilíbrios, junto com a modernização e o pauperismo, a
subordinação estrutural do ‘hospedeiro’, e nesta a figura da incompletude de classe do capital que o caracteriza, a saber, sua
fraqueza econômica (e política) relativa e sua falta de autonomia, sem as quais a associação desigual seria impossível.
A Nova República assumiu como desaguadouro político de um longo período crítico desse complexo instável em si,
cavalgando a parelha desafiadora da recessão (em início de reversão) e da miséria agudizada pelo desemprego.
Durante dez anos (desde 74) o sistema buscou e não pode encontrar uma fórmula que, de algum modo, fizesse
prosseguir a linha da acumulação realizada durante o boom. Não encontrou, nem a poderia ter encontrado. Não havia
ocorrido apenas o esgotamento de um período de acumulação, mas, ao fatores que o haviam engendrado, agora se
combinavam contra as engrenagens do conjunto econômico. E, ao qüinqüênio do “milagre”, sucedeu uma década de
desarranjos, sobressaltos e pesadelos. Foi, como se viu, uma ciranda de marchas e contramarchas, de múltiplos sucedâneos,
sempre oferecidos em regime de atendimento de urgência. Mesmo quando alcançavam algum sucesso, não mais que
tamponavam os dilemas a curto prazo, tendo que ser sucedidos, de pronto, por novas curetagens. E o que mais importa
salientar é que as questões estruturais, tal como um irremovível cadáver de chumbo, jamais foram tocadas, e nelas, de fato, não
era mesmo para ser mexido, já que são o segredo de Polichinelo do nosso capital atrófico e de seus expoentes bárbaros ou
civilizados.
E a transição transada na ordem e pelo alto tomou por base e legítima herança o cadáver de chumbo. Restou como
imperativo a mudança na forma do culto, para reunificar os fiéis e fortalecer sua crença, bem como ampliar ao máximo o
número de figurantes no coro, reconfortando e reencorajando o pauperismo adulado.
Um genuíno crescimento econômico nacional, se pensado em termos resolutivos reais, implicaria na projeção
relativamente completa de uma possível e válida acumulação imediata, em seus vínculos com progressões ulteriores, e tudo
isso necessariamente no interior de um plano global de desenvolvimento auto-sustentado e contínuo de longo prazo.
Uma equação dessa natureza, é óbvio, compreenderia uma redefinição das relações com o imperialismo e a
reordenação do padrão monopólico interno de acumulação. Dito de forma especificante, à guisa de um hipotético itinerário
insurgente do capital periférico associado com vistas à sua autonomia: 1) estancamento da evasão de recursos motivada
principalmente pelo serviço da dívida externa; 2) reinvestimento maciço dos lucros monopólicos locais (nacionais e
estrangeiros); 3) reativação dos investimentos estatais em infra-estrutura e especialmente na organização de um novo perfil
rural, executando a reforma agrária sob um dúplice paradigma: a tradicional alocação e amparo geral de pequenas glebas e a
formação de grandes empresas agrícolas, exemplares pela produtividade e pela política salarial; 4) na cabeça do processo de
sua própria emancipação, tal como ocorreu nos casos clássicos, arrastaria nesta empreitada praticamente a todas as demais
categorias sociais, inclusive as subalternas, que poderia beneficiar em termos relativos, mantendo a exploração, mas
suprimindo e tendo que suprimir a superexploração do trabalho.
Ora, uma retomada do crescimento norteada por semelhante perspectiva é, em verdade, uma convulsão
transformadora, mesmo que não compreenda, como de fato não subentende a supressão da lógica universal do capital.
Implica apenas na eliminação de alguns dos aspectos mais gravosos de sua objetivação peculiar em países do tipo do Brasil.
Significa, em suma, uma modificação importante no padrão de produção, sem que seja alterada a natureza do modo de
produção.
Contudo, tratar-se-ia, sem dúvida, de uma autentica transformação, somando a independência do capital periférico à
superação do pauperismo estrutural. Todavia, sendo mesmo a garantia do fortalecimento do capital local e da continuidade da
exploração do trabalho, é inverossímil que seja operada, agora ou depois, sob a égide do capital atrófico. Este, filho temporão
da história planetária, não nasceu da luta, nem pela luta tem fascínio. De verdade, o que mais o intimida é a própria luta, posto
que está entre o temor pelo mais forte que lhe deu a vida, e o terror pelos de baixo que podem vir tomá-la. Toda revolução
84
para ele é temível, toda transformação uma ameaça, até mesmo aquelas que foram próprias de seu gênero. É de uma espécie
nova, covarde, para quem toda mudança tem de ser banida. E só admite corrigendas na ordem e pelo alto, aos cochichos em
surdina com seus pares. De si para si em rodeio autocrático. Não optou pela autocracia, nem a covardia foi de sua livre
escolha, meramente assumiu sua miséria. Ontem com o cenho armado dos brutos, hoje com o sorriso polido dos bem-
educados. Antes este do que aquele (é tolo irrealismo negar esta diferença), especialmente para não perder de vista que ambos
são as duas faces da mesma miséria.
Premiada entre um desafio reconhecido e a transformação impossível, a Nova República respondeu com o Plano de
Estabilização Econômica.
Curiosa revolução de Robespierre Funaro, que principia por estabilizar o que ainda não foi subvertido. Curioso e
sintomático procedimento, que se dispõe a consolidar sem buscar instituir, que tenta assentar sem ter instaurado. É como
botar Napoleão no governo, antes de derrubar a Bastilha. Todavia, não se trata de um paradoxo,nem mesmo de um contra-
senso. O jacobinismo do cruzado não derruba Bastilhas, faz a caiação de seus muros. Estabilizar, sem antes ter implantado um
quadro novo, é reequilibrar um quadro antigo. É ter os pés enterrados no cadáver de chumbo.
O plano de pés chumbados, em última análise, reedita o feitio espasmódico das mediadas econômicas da Ditadura em
sua última década: terapia sintomatológica de emergência para uso e abuso do capital a curto prazo. Deixa o perfil estrutural
intocado e lança estímulos de alcance circunscrito a favor da integridade imediata do capital, enquanto vai tocando com a
barriga os problemas de fundo.
Num âmbito desse tipo, ainda que se possa convir que na sua pretensão seja um caso estremo, o Plano Cruzado,
posto a funcionar na seqüencia da retomada do crescimento, esboçada desde fins de 84, e do aumento do volume de emprego
em 85, veio estender e aprofundar a inclinação para o consumo, emergente desde a segunda metade do mesmo ano, o que
naturalmente retroagiu com forca sobre o produção. Não por méritos intrínsecos a ele, mas porque potencializou os recursos
liberados pela menor retenção do Imposto de Renda na Fonte em 86 e os que vieram a decorrer da desativação da poupança,
já que o congelamento dos preços, por certo tempo (que já findou) e em certa escala manteve o poder de compra da massa de
salários. Seja, então, porque a demanda reprimida era alta, seja porque restou sempre a certeza de que os preços não se
manteriam estáveis por muito tempo, o consumo aqueceu os negócios, (já que o melhor negócio era o consumo), e ao longo
de meses contemplou o capital com uma gorda rodada acumuladora.
Esta, no entanto, por mais apreciada que tenha sido, não só se revelou insuficiente ou insatisfatória, basta pensar na
agiodização da economia e no desabastecimento, como nem de longe desenhou a forma de sua continuidade.
Do ponto de vista do capital, o nó górdio está no financiamento das inversões necessárias para infundir uma
expansão prolongada, ao menos no sentido de estender por um período modesto o surto recente.
Feliz, mas nem tanto, com o incremento dos lucros nos últimos meses (é projeção contida afirmar que mais da
metade das grandes empresas teve resultados (de marco a junho) superiores aos dos dois últimos trimestres de 85 - cf.,
Senhor, Nº 286, p.8), o empresariado todavia não revela inclinação efetiva para realizar os investimentos que dariam seqüencia
ao registrado aumento da produção que, segundo afirmações de variadas fontes, atingiu o limite da capacidade instalada, em
especial no setor de bens e serviços de consumo.
Seja porque ainda não se considere ressarcido dos “estreitamentos” vividos no período recessivo, seja porque
desacredite das possibilidades de prosseguimento do caudal de consumo, a verdade é que o capital atuante no pais repete com
essa indisposição uma característica de comportamento que, há vinte anos, Caio Prado Jr. identificou como sua essência
“parasitária” (cf. A Revolução Brasileira). Sempre disposto, é óbvio, a se apropriar dos lucros e a impor a socialização dos
prejuízos, ele é um aventureiro que abomina riscos e nunca os assume, e se acredita sempre no direito de ser financiado. Pelo
estado desde sempre, e cada vez mais ao longo do último meio século pelo “amparo” de seus irmãos mais velhos de outras
plagas. Que isto derive de uma justa avaliação de sua pequenez e fragilidade objetivas, ou simplesmente reflita a rigor a
estreiteza de sua subjetividade, vem a dar no mesmo na síntese de sua figura atrófica. De todo modo, ai o temos, mais uma
vez, confiante a espera de Godot. E para ele Godot sempre aparece, ainda que sob a forma dos demiurgos de sua
incompletude.
A questão dos recursos necessários para financiar um novo ciclo de acumulação é ainda mais complexa, pois implica
também na alocação de fundos para investimentos estatais em infra-estrutura, sem os quais todos os outros flutuariam no ar
como elos desconexos.
Não há interesse aqui em esmiuçar esta questão decisiva, mas apenas assinalar que ela consubstancia um impasse,
diante do parasitismo do capital interno e da sucção vertiginosa do serviço da dívida externa. Em suma, que a resposta
econômica da Nova República, que o cruzado e o cruzadinho, nem mesmo do ponto de vista do capital, é mais do que uma
compressa caseira de água morna.
Houve quem nos primeiros dias de propaganda utilizasse à saciedade a imagem futebolística de mandar sentar as
torcidas agitadas, que em pé não deixavam que o jogo fosse visto. Pois bem, dada a cacetada autocrática desferida, todo
mundo desabou sobre o assento. Mas nem todos sentaram do mesmo modo. Uma das torcidas vai-se acomodando sobre
macias almofadas de ágios, enquanto a outra, nas gerais, só pode esfregar os fundilhos na aspereza do cimento. Como sempre,
o busilis do Cruzado é essa fereza de índole.
Se para o capital o Plano de Estabilização é uma compressa reconfortante, para o trabalho é a configuração perversa
do esbulho de sempre.
Desde o início, idealizadores, executores e propagandistas do Plano Cruzado fizeram da suposta “elevação salarial”,
que ele proporcionaria, o ponto de honra e o arrimo ideológico de sua empreitada. Donde a transparência de que mais sutil e
refinada, do que a engenhoca econométrica da “Larida’s Theory”, foi uma finura do cálculo político empregado.
85
Paul Singer, dos raros a fazer a crítica do DL 2283 desde sua implantação, reitera, nos artigos que vem dedicando à
matéria, a denúncia que desde logo fizera da “média semestral de cinco meses” e confirma, baseado nos resultados da Pesquisa
Seade/Dieese, que “O Plano Cruzado aparentemente concedia aos assalariados um aumento real de 8% mas, na realidade,
retirava mais do que isso do reajuste ao `roubar’ um mês de inflação na fórmula de reconstituição do salário real”, e que o
Plano “tendia a congelar o arrocho imposto durante a crise particularmente em 1983” (Folha só, 31/7/86). É muito
importante ressaltar que Singer sustenta com razão que o Plano Cruzado tinha por “intento reter o ganho dos trabalhadores
no nível do semestre anterior à sua decretação”(idem). O que também é ratificado pela Pesquisa Seade/Dieese: “O que os
dados mostram é que simplesmente não houve qualquer aumento significativo nem do salário real<imp1> médio nem do
nível de ocupação nos primeiros dois meses de aplicação do Plano Cruzado” (Folha SP, 18/8/86).
Dito de outro modo, se a inflação ou a “regulação inflacionária” em “grande parte tem origem em conflitos
distributivos” (Singer, Folha SP, 13/6/86), ou também, como entendem outros, se a inflação é um modo de valorização do
capital que por outras formas não se daria, o que vem a ser uma conquista sem batalha, a pretendida eliminação da inflação
inercial, também chamada sintomaticamente de “inflação burra”, que seria gerada na disputa ininterrupta pela divisão da
renda, é, antes de mais nada, a pretensão de estancar a disputa. Ou seja, na generalidade o intento de congelar conflitos
inerentes à lógica da economia capitalista. E especificamente através da imposição ao trabalho do nível da partilha de renda
que se verificara em período anterior ao “choque”. Portanto, numa situação de desfavorabilidade historicamente acumulada
pelos assalariados, à qual se haviam somado os agravos do período recessivo. Quadro contra o qual, desde 85, os
trabalhadores haviam principiado a se bater, mas que essencialmente não se alterara, em que pesem conquistas setoriais
alcançadas.
Em suma, o alardeado congelamento da partilha de renda, efetuado sob desigualdade de critérios - a grande maioria
dos preços no pico e os salários na média semestral de cinco meses - obedece à lógica da exploração da forca de trabalho no
país.
Ferocidade de extorsão que se manifesta como matriz, aparecendo tanto nos declínios, como nos ascensos do sistema
cumulativo. Basta lembrar o ainda não dissipado pesadelo do milagre, a recente fase recessiva e a bruma dourada dos dias em
curso.
Tomando por base índices setoriais de produtividade da indústria em 85, em realidade muito mais elevados do que a
taxa de 6% de variação do PIB, e considerando que em 86 “o crescimento da produtividade é maior ainda”, Walter Barelli,
sintetizando os vários aspectos dos ganhos e vantagens apurados pelo capital no período, e dizendo que “Parte-se do princípio
que a expansão econômica deve significar melhorias distributiva”, conclui expressivamente pela afirmação de que parte do
“grande crescimento de lucros /.../ deve ser transferida para os salários, como forma de apressarmos o processo de
distribuição de renda do Brasil. Se isso não ocorrer, o próximo censo mostrará novo crescimento da concentração da renda”.
E mais, “os trabalhadores brasileiros tem todas as condições de /.../ não só elevar seus baixos padrões de remuneração, como
conseqüência do excelente crescimento de produtividade da economia, como também aproveitar uma conjuntura
extremamente favorável para o setor empresarial, para reduzir os gritantes diferenciais de renda, frutos de décadas de um
modelo de desenvolvimento, excludente e concentrador”(Folha SP, 6/9/86).
A favorabilidade corretamente presumida por Barelli, não encontra eco, todavia, junto à lógica do capital atrófico. É
lamentável, mas também historicamente comprovado (basta pensar de JK a esta parte), que para aquele, o princípio de que “a
expansão econômica deve significar melhoria distributiva”, não é mais do que um mero dever-ser inatendível. É suficiente que
se considere a igualdade de postura que informa, desde a teoria do “crescimento do bolo” até a doutrina da “inflação zero”, o
capital parasitário e seus representantes no poder, em tudo que diga respeito à movimentação dos trabalhadores e com
paroxismo insuperável quando estes convertem a greve em protagonista. Antes já assinalei o óbvio, não é indiferente que
ontem a persuasão vinha a cavalo e que hoje a repressão venha através das imagens de TV. É o que distingue o
conservantismo civilizado do selvagem, mas a essência super-exploradora da forca de trabalho é a mesma. E quanto a isso não
há dúvidas que possam subsistir. Muitos, por certo, as tinham. O plano cruzado as dissipou, - é um mérito seu, do qual não
pode se orgulhar, mas que é justo reconhecer.
Ainda que sucumbindo ao perigo da redundância, quero deixar explícito que, do prisma da crítica aqui reiterada, não
pode faltar o registro da significação totalizada do Plano Cruzado.
Por certo, é fundamental demonstrar que o Plano de Estabilização é desde a primeira hora uma medida que
desfavorece o trabalho, e também o é a indicação de que o Plano não lhe assegura qualquer vantagem estruturalmente
corretiva, nem mesmo sob o aquecimento geral da economia. Contudo, tais determinações adquirem seu significado pleno
quando articuladas à dissintonia entre a dinâmica da estabilização dos salários, que de fato os congela, e a dinâmica do
congelamento dos preços, que em verdade converte aumentos em ágios, maquiagens e, na impossibilidade circunstancial
destes, em desabastecimento. Em poucas palavras, em sua essência real e na sua processualidade efetiva o Plano Cruzado é a
consolidação institucional do arrocho, da superexploração da forca de trabalho. Por outras vias e com outros conceitos
R.Mangabeira Unger chega a uma conclusão parecida: “O plano de estabilização econômica do governo Sarney realizou um
dos confiscos salariais mais traumáticos de que se tem notícia no mundo contemporâneo. Acompanhou esse confisco por
medidas que agravam o efeito coercitivo da legislação autoritária de greve. Assim, procurou o governo desarmar aqueles que
ele esbulhou. E o fez com a cumplicidade de quase toda a imprensa e intelectualidade brasileiras. /.../ O que representa uma
mistificação é a idéia de que o choque praticado é neutro em relação à distribuição da riqueza e da renda no Brasil. Pois, no
mínimo, ele impõe, perpetua e consagra, como situação de direito, perdas salariais que de fato ocorriam mas que não eram
reconhecidas como legítimas: as perdas repetidas dos reajustes atrasados e as perdas cumulativas do período autoritário”
(Folha SP, 18/3/86).
Eis - vale repetir - o coração concreto da democracia de proprietários no Brasil.
86
Este paradoxo aparente tem sensibilizado em profundidade algumas das melhores cabeças. A propósito do plano,
Francisco de Oliveira afirmou: “o caráter geral do plano é conservador ou se se quiser `modernizante’... O trágico é que as
`formas’ de modernização do capitalismo no Brasil são arcaicas” (Folha SP, 16/3/86). J. A. Giannotti põe o dedo na mesma
ferida: “o mesmo voluntarismo insufla o projeto burgues-conservador de modernizar o capitalismo brasileiro, fazendo com
que os empresários imaginem um desenvolvimento moderno sem operários modernos, sindicalizados e dispondo de canais de
pressão reconhecidos” (Folha SP, 27/7/86). E Florestan Fernandes leva a argumentação às últimas conseqüências: “A massa
de pobreza e de desigualdade e tão grande e as exigências constrangedoras da acumulação capitalista tão imperiosas, que seria
uma loucura esperar do capitalismo a solução dos nossos problemas e dilemas humanos. A reforma capitalista do capitalismo
está fora de nosso alcance, digam o que disserem os donos da ordem e os seus mais fiéis servidores da `intelligentsia’ e da
tecnocracia” (Folha SP, 27/4/86).
Quero reter, do conjunto dessas citações em suas confluências e dissonâncias, o espírito que as atravessa - o espírito
do impasse ou da inviabilidade.
É a evidencia para mim da inviabilização tornada universal do capitalismo como agente transformador, que se reforça
e peculiariza na periferia pela incompletude de classe do capital subalterno. Assim, modernizar-se arcaicamente ou montar seu
desenvolvimento sobre a cabeça de operários atrasados não é para o capital atrófico uma tragédia, nem mesmo um
voluntarismo, mas a fiel atualização de sua verdadeira potência. Este o tamanho de sua pequenez ou a pequenez de seu
tamanho. A saber, a sua impotência congênita (oposta ao do capital clássico) para a transformação e autotransformação, na
medida mesmo em que é completamente estranho à perspectiva da auto-edificação. É o que faz com que descarte de si e
recuse aos subalternos qualquer autentica inclinação para a cidadania e a liberdade. Donde, incapaz de identidade
transformadora põe-se como figura transformista.
Gerada pelo transformismo, a Nova República confirma sua origem pelo transformismo do Plano Cruzado. É no que
consiste a miséria de fundo do capital incompleto e incompletável - converte transformação em manipulação.
Manipulação inclui ou implica, mas não é redutível a empulhação. Sem dúvida, subentende aguda redução de senso e
renúncia deliberada a qualquer critério objetivo de verdade. Esta, de fato, é substituída por finalidade prático-imediatas. Em
realidade visa e opera o livre rearranjo tópico eficiente dos fatores em presença, ou seja, limita a prática ao sentido da
imediaticidade. A atividade manipuladora resulta, portanto, numa mudança que sustenta e reafirma a natureza da estrutura e
dos fatores que a integram, reproduzindo os lugares sociais dos atores no complexo, sem variação de qualidade. Enganadora
sim, não por isso menos real e eficiente. Em síntese, subjetiva e objetivamente a prática manipuladora é antitética à prática da
transformação.
A inteligência da manipulação e a inteligência da burguesia contemporânea. Neste grau de generalização as burguesias
subordinadas da periferia não constituem exceção ou figura negativamente privilegiada. O predicado negativo que as especifica
está em que, da lógica universal de suas necessidades, carecem precisamente da inteligência de transformação que nunca
tiveram nem podem vir a ter. Dito de outro modo, a inteligência manipuladora é para as burguesias centrais, hoje, a forma
substitutiva da sua inteligência de transformação de ontem, enquanto para as burguesias periféricas é a expressão da sua única
inteligência. Enquanto para a burguesia universal a inteligência da manipulação é uma forma particular de inteligência, para a
burguesia particular ela é sua inteligência universal. De modo que ao capital subordinado é dado participar do senso restrito do
capital em geral de hoje, sem ter nunca participado, nem possa vir a participar, do senso irrestrito do capital em geral de
ontem. Ou seja, enquanto a inteligência manipuladora é a reprodução possível da completude da burguesia do centro, na
periferia é a produção da integralização impossível do capital subordinado.
É notório, mesmo a partir de uma tematização sumária como essa, que a manipulação não seja um fenômeno restrito.
Mas, ao contrário, que permeia o conjunto da formação em que se manifesta. O caso brasileiro e neste o da Nova República é
exemplar.
Tomado em seu ano e meio de existência o Governo Sarney, isto é, a expressão prática da propositura ideal da Nova
República, ilustra a miséria da manipulação no conjunto de seus procedimentos expressos.
Para oferecer o desenho rápido dessa evidencia bastam alguns exemplos e poucos comentários.
O exame do Plano Cruzado procurou mostrar com forca especialmente o contraste entre as necessidades objetivas de
transformação e a resposta real oferecida pela manipulação. Ficou delineado, em suma, a identidade entre o Plano e a
incompletude do capital que, depois de dez anos de graves vicissitudes econômicas e em condições políticas a ele favoráveis,
não conseguiu engendrar nada além de uma solução de caráter imediatista, que não alcançou fechar o esquema sequer no
interior de sua escandalosa estreiteza.
O mesmo se vê nos procedimentos com relação à dívida externa.
Os discursos de Robespierre Funaro e Sayad Quasímodo (não se perca de vista que este era uma bela alma) procuram
ter a aura da revolução burguesa. Mesmo que seja na forma da modernização capitalista, o “espírito revolucionário” teria que
compreender algum nível de ruptura com os entraves que enfrenta. Não é o que se vê nas concepções dos responsáveis pelo
setor econômico. Permanece intocado o esquema geral do complexo econômico montado à época da ditadura, mas é provável
que Francisco de Oliveira tenha razão, quando afirma que “O objeto da reforma Funaro é a realização da fusão entre capital
bancário e capital industrial, isto é, a emergência do capital financeiro, de cuja primazia depende que o capitalismo brasileiro
abandone sua fase `selvagem’’’ (op.cit.). Mas é óbvio que isto não é alcançável perseguindo bodegueiros, reiterando o
propósito do capital central em tornar o país uma plataforma de exportações e fazendo exortações humanitárias aos credores
internacionais. Esta política de arranhar de longe e afagar de perto já rendeu o discurso grosseiro de Reagan na cara
presidencial de Sarney. É a resposta do capital financeiro, que há setenta anos Lenin já caracterizara como “O amo típico do
mundo, particularmente móvel e flexível, particularmente entrelaçado dentro de um país e no campo internacional, impessoal
ao extremo e separado da produção direta, que se concentra com grande facilidade e que chegou tão longe nesta concentração,
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que literalmente algumas centenas de multimilionários e milionários tem em sua mãos os destinos do mundo inteiro” (Prólogo
a N. Bujarin, A Economia Mundial e o Imperialismo).
A um “irmão” desse caráter, que detém a primogenitura, não há de ser possível enfrentar com alma e maneirismos de
escoteiro. Donde a ilusão, talvez nutrida, de alcançar a completude de classe pelo alto, através de um acerto de bom pagador
com o imperialismo, não é outra coisa do que uma das mais pobres expressões da prática manipulatória do capital atrófico.
Ilusão e prática reiteradas quando, no plano interno, convive confortavelmente com o subcapitalismo que identifica
grande parte do sistema vigente no campo. É pura ingenuidade admitir que a procrastinação sistemática da reforma agrária
seja simples decorrência da timidez ou do conservantismo de um governo. Se de “timidez” e “conservantismo” se trata, é de
uma forma de capital, que por mais de uma razão (intocabilidade da propriedade e reserva de controle da mão-de-obra)
converte a transformação da reforma agrária na manipulação dos assentamentos, que não tem destinação econômica e
desempenham apenas uma função extrema no controle social.
Questão social, fique dito de passagem, hoje tanto referida, que passeia desde as bocas demagógicas mais abjetas até
os lábios cínicos mais cruéis, mas que não ultrapassa nunca o prisma da manipulação assistencialista, não importa a custa de
quantos milhões de cruzados. Não é critério de identidade da manipulação gastar pouco , mas desentender e recusar o que a
transformação exige.
A exigência institucional mais intensiva e extensivamente assumida foi a necessidade de um novo texto constitucional.
Não importa aqui refazer a história, muitas vezes ambígua e politicista, da construção desta aspiração. Interessa ressaltar que
esta líanamente compreendida o dever ser de um autentico ato instaurador de uma nova legalidade. Sem a pretensão de vir a
ser o matrizamento a priori da forma de sociabilidade, almejava legitimamente constituir os fundamentos valorativos e
jurídicos, ao menos em distinção contrastante com os vinte anos de ditadura, de uma maneira mais contemporânea de
convivência social.
No entanto, nem o verdadeiro mito da constitucionalização resistiu. Desde logo não foi o primeiro ato ou gesto
inaugural que constitui. E seu agente autentico, a Assembléia Nacional, foi desnaturado pela figura híbrida de um congresso
Constituinte, que ainda por cima será eleito de cambulhada com a escolha dos governadores, que absorve as atenções e
descentra a temática em jogo. Por fim, a nova carta começará a ser escrita no terceiro ano de exercício do novo poder, cujo
mandato não está politicamente definido.
Largo tempo ao longo do qual um novo quadro terá sido objetivamente constituído, como sucessor amaciado do
quadro anterior. Ou seja, o ato de constituir, de fato, foi absorvido e tem sido exercitado de forma autocrática, esvaziando as
atribuições do próprio Congresso constituinte, que estará em face de uma realidade efetiva, reconfigurada e ancorada numa
multiplicidade de interesses criados. Realidade que terá, no mínimo, um poder de reação que não poderia ostentar caso tivesse
sido posta, em sua fragilização anterior, imediatamente diante de um processo de transformação constitucional.
Em suma, para o Congresso constituinte restou a tarefa de envernizar um quadro já constituído, o que é recíproco
com o que vai de uma Assembléia Nacional Constituinte a um Congresso constituinte, ou seja, a manipulação que reduz o ato
transformador de constituir no mero transformismo de legalizar.
Ainda outros exemplos poderiam ser aditados. Basta enumerar: a manutenção da legislação autocrática, a imprudência
na conservação da legislação sindical em geral e da lei de greve em especial, e, last but not least, a transigência prazerosa em
dar guarida institucional ao poder moderador dos militares. A título de fecho e muito sinteticamente: a verdade da República
dos Cruzados é a razão do capital inconcluso, cujo circuito perverso perfaz a miséria brasileira, logos do feitiço que deprava
toda transformação necessária em manipulação efetiva.
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A SUCESSÃO NA CRISE E A CRISE NA ESQUERDA*

De hábito /.../ é exigido: entusiasmo pelo partido de cujos princípios se comparte, confiança
absoluta na sua força, disposição permanente seja para defender os princípios alegando força real, seja
para encobrir a debilidade efetiva com o brilho dos princípios. Não cumpriremos essas exigências. Não
douraremos com ilusões enganosas as derrotas sofridas. /.../ Importa-nos que o partido democrático
tome consciência da sua situação. Perguntar-nos-ão porque nos voltamos para um partido; porque, em
lugar disso, não encaramos o objetivo das aspirações democráticas, o bem estar do povo, a felicidade de
todos sem distinção. Tais são o direito e o costume da luta, e a felicidade da nova época só poderá
nascer da luta dos partidos. /.../ Nós exigimos do partido democrático que tome consciência de sua
situação.”

K. Marx/H. Burgers
O Partido Democrático
Nova Gazeta Renana, Junho/1848.

A conduta vigorosa e a exigência correta de Marx, nos eventos de meados do século passado - que ensaiavam uma nova era,
não alcançaram sucesso. Restou, em compensação, a grande lição prática, emanada de suas recente instauração teórica.
Naquele momento a tarefa de Marx, no interior da miséria alemã foi criticar o único partido democrático existente. Hoje, no
interior da miséria brasileira, o trabalho a executar é múltiplo e mais penoso: exige a crítica de vários organismos, alguns
nominalmente de esquerda, para com isso tentar abrir caminho à emergência de uma posição de esquerda real, ao menos para a
disputa de novembro pela chefia da república, cujo resultado ressoará com força por todo o fim do século.
As próximas eleições presidenciais não se darão apenas depois de um amargo jejum de quase trinta anos. As três
décadas transcorridas não intercalam somente dois pleitos, mas separam dois mundos distintos.
Quanto Jânio da Silva Quadros foi eleito presidente contra Henrique D. Teixeira Lott, e logo depois Kennedy
derrotava não sei mais quem, o Brasil vivia as últimas ilusões do capitalismo autônomo, recomeçava no “ocidente” a ilusão
mais perversa da perenidade do capital, e o “oriente” alimentava a ilusão contrária, ainda mais dramática, de que em poucos
anos o “socialismo” superaria materialmente o universo do capital.
Hoje, no Brasil, o capital atrófico repele a autonomia, o capitalismo avançado devora a si e aos outros, e a tragédia do
pseudo-socialismo é o desastre do século, que só a dolorida fé sangrada, ou então a má fé, ou ainda a cegueira absoluta não
reconhecem.
Tais são as figuras, específicas e interligadas, que dão forma à unidade da crise planetária deste nosso melancólico fim
de século. Milênio que finda no fulgor da extrema capacitação humana alcançada na apropriação da natureza, ao mesmo
tempo que brumas avolumadas pesam sobre a construção do construtor: o homem - indivíduo e sociedade - que vergam
debaixo das piores renúncias. O abandono mesquinho e acovardado da construção de si - no singular e no plural -, que
interrompe um caminho, que o século XIX infletiu e alargou de modo decisivo, mas que vem de muito mais longe. Itinerário
para cuja evocação é bastante referir o trinômio constituído pela infância do mundo grego, a generosidade do renascimento e
a tomada de posição do iluminismo. Herança e base do que a humanidade conseguiu lograr para si, e para as quais volta as
costas, no plano inclinado pelo qual despenca o padrão atual da prática e reflexão do humano. Estas contraposições são a
quinta-essência da crise que avassala objetiva e subjetivamente o fim de século, o mesmo que principiou mobilizando todos os
entusiasmos vitais pela emancipação do trabalho.
É nessa atmosfera de fim dos tempos, do tempo da crise de todas as crises, que os brasileiros vão escolher um presidente
depois de décadas. A questão, obviamente, é muito mais do que política, desde logo porque é social - no fundo e na essência.
Que seja encarada, acima de tudo, como política, já é uma tradução da crise.
Todavia, é na crise e em crise, transpassado pelas contradições universais e corroído pelas particulares, que o pleito
brasileiro será travado e decidido. Isso obriga a considerar as várias dimensões problemáticas que o envolvem, e torna
necessário que as tomadas de posição eleitorais, em sua natural e intrínseca vocação realista, não desconsiderem que, para além
de seu próprio nariz partidário, há um fluxo de dilemas fundamentais que nem mesmo a vitória eleitoral dirime.

I - A Crise Nos Dois Sub-Sistemas Do Capital


A dissociação entre fato e consciência é a marca geral e profunda do conjunto de todos os processos societários na atualidade.
Entre o que é e vai sendo e as formas manifestas de sua representação (filosofia, ciência, arte, ideologia etc) estão postas mais
do que simples diferenças ou graus naturais de aproximação, mas contraposições extremas que desresponsabilizam as relações

* Publicado originalmente na Revista Ensaio nº 17/18. Ensaio, São Paulo, 1989.


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entre ideação e realidade, de tal sorte que à desparametração da primeira corresponde a falsificação da segunda. Assim, o
mundo em curso se apresenta como uma vasta usina do falso socialmente necessário, et pou cause - não assumindo como tal,
que emerge a pretexto da opacidade do mundo, como também da incapacidade intrínseca ou, pelo menos, dos supostos
limites agudos da racionalidade.
Importa compreender que a produção da falsidade não se manifesta apenas como figurações da subjetividade (razão
manipuladora e irracionalismo), mas, em primeiro lugar, na determinabilidade objetiva que tem prolongado, de uma parte, a
utilidade histórica do capital e de sua forma capitalista de sociabilidade e, de outra, pela incapacidade - hoje indiscutível - de
superação do capital pelas formas pós-capitalistas conhecidas.
Em conjunto, prolongamento da utilidade histórica do capital, no “ocidente”, e inviabilidade da superação do capital
nos moldes da sociabilidade pós-capitalista experimentada, mutuamente potencializados, constituem a ardil do capital, sob
cuja lógica e regência move-se o universo humano-societário contemporâneo, bem sob seu espírito homólogo - manipulador e
irracionalistas, que desarma cognitiva e volitivamente a autêntica capacidade efetuadora da prática humana.

1 - A Crise Estrutural do Capitalismo

Hoje, a sociedade do capital aparece como um mundo rebrilhante, pletora luminosa de mercadorias, cujo universo alcançou a
cintilação perene das estrelas; mesmo porque, liberta de contradições, exorcizou o fantasma que rondava o planeta desde
meados do século passado.
Essa é, quando menos, sua auto-imagem e o perfil fenomênico de alguns poucos de seus recantos mais privilegiados,
bem como a súmula patrocinada pela cínica reflexão dominante, que faz a rima perversa de um mundo cujo brilho e ofuscante
está na capacidade de produzir e disseminar a imagem invertida de sua perversidade.
A dissociação entre realidade e pensamento, nesse universo, atinge nos dias em curso extremos sem precedentes, cuja
medida só pode ser sondada na própria radicalidade da contraposição entre a crise estrutural do capital e a asserção de sua
eternidade pela representação ideal.
Não se trata de contraste antigo, de há muito conhecido. Por duas razões dá-se uma dimensão de efetiva novidade:
em primeiro lugar, porque a crise, na abissalidade do concreto, nunca foi antes tão visceral quanto abrangente, pois é gerada
não apenas pelos traços mais débeis e problemáticos do capital mas, ao contrário, pelas suas qualidades mais positivas; em
segundo lugar, porque a “eternidade da capital” até há poucas décadas, nunca deixou de ser percebida cimo auto-ilusão ou
wishful thinking, um faz-de-conta de proprietários, apologetas ou pobres de espírito de toda ordem, ao inverso do que agora se
passa, quando muitos passaram a acreditar e proclamar ou, no mínimo, se conformar, até mesmo contra seus hábitos mentais
mais caros, com essa metafísica de quinta classe.
É inerente ao sistema do capital a subversão pela qual a produção material dos homens se afasta irreversivelmente dos
objetivos dos homens.
Para indicar a lógica propulsora desse distanciamento - a um tempo gerador e destruidor de substância e civilização
humanas -, além de progressivo e universalizante para a globalidade dos atos de efetivação, basta recordar com I. Mészáros
que “o capital não trata valor-de-uso (que corresponde diretamente à necessidade) e valor-de-troca meramente como dimensões
separadas, mas de uma maneira que subordina radicalmente o primeiro ao último” (Produção Destrutiva e Estado Capitalista,
Cadernos Ensaio V, P.22). Disto redunda que a regência e a tipificação dos movimentos do capital são exercidas pelas suas
necessidades intrínsecas de capital, isto é, por sua reprodução ampliada, e não pelas necessidades reais dos homens reais, no
andamento próprio e parene de satisfazer necessidades antigas e de criar necessidades novas.
No contraponto entre necessidade humana e necessidade do capital, no qual a primeira é subsumida à segunda, é que se
desenrola a sociabilidade do mercado, locus ideal da “liberdade de iniciativa”, ou seja, do capital entregue à libertinagem na
malha cega de sua causalidade.
Legalidade esta que conduz (é o que importa ressaltar aqui) - de figura em figura das metamorfoses do capital e de
estágio em estágio de seu desenvolvimento global - à sua forma atual de existência, para cuja manutenção leva ao extremo não
apenas a negação das necessidades humanas, mas promove a unificação direta de “vastas quantidades de riqueza acumulada e
de recursos elaborados - como meio dominante de ordenação do capital superproduzido”. Em outras palavras, a produção
capitalista tornou-se a produção da destruição, isto “porque consumo e destruição são equivalentes funcionais do ponto de vista perverso
do processo de `realização’ capitalista” (Idem, p. 60).
Em outros termos, e para centrar na decantada economia de escala, - no curso atual da superprodução do capital, este
devora parcelas crescentes de si mesmo: seja liquidação dos pequenos e médios capitais, tidos como ineficientes ou inúteis do
ponto de vista do capital (lucratividade, competitividade, produtividade etc), mesmo que fossem, sob outra forma de articulação
da produção global, perfeitamente úteis do ponto de vista social; seja, então, pela intensificação irrefreável dessa mesma
“racionalização” capitalista da produção, que deglute mais e mais capital, reconvertido em meios de produção degenerados,
isto é, contrapostos às necessidades humanas existentes e emergentes, e diretamente pospostos aos ditames da expansão do
capital. Processo no qual é multiplicado ao infinito, em grandeza e variedades, o desperdício e a dissipação próprias da
economia privada: esse novo estágio não se organiza apenas através do esbanjamento nas formas de apresentação,
propaganda, sub-utilização e obsolescência programada dos bens de consumo, - mas pela promoção capitalista da sub-utilização e
obsolescência dos próprios aparatos tecnológicos.
O que equivale a dizer, de modo muito simples, que, no imperativo de sua rota sempre ampliada de crescimento, a
lógica do capital desenvolvido obriga à destruição até mesmo de seus resultados mais notáveis. Com isto se põe em evidência
sua dimensão autofágica, expressão de superfície de sua essência antropofágica, muito bem conhecida sob a denominação de
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mais-valia. Com efeito, a novidade não está na verdade de que o capital literalmente se alimenta de homens, mas que
radicalizou essa devoração pela devoração de si mesmo. Essa verdade não muda em nada, quando se reconhece que ele agora
trucida pela mediação de recursos esplêndidos, que constituem, devidamente resgatados da mistificação e da ferocidade
capitalistas, autêntico patrimônio humano, mesmo porque, como na alusão feita à mais-valia em geral, também a mais-valia
relativa é uma questão muito bem conhecida.
Neste ponto, em suma, o que se está ressaltando, a partir desse complexo real de múltiplas contraditoriedades, é a
contradição do capital avançado consigo mesmo. Ou seja, a cerimônia fúnebre de seu círculo vicioso de expansão, onde
determinados passos vitais de monopólios ou oligopólios, econômica e extra0economicamente privilegiados, por fusão,
absorção ou aniquilamento de unidades produtivas “menores”, passos alavancados por um dado padrão de capacitação
técnica, redundam logo adiante em novo “desequilíbrio” entre a renovada produtividade operante e a potencialidade de uma
nova “racionalização” tecnológica, que reabre o processo da deglutição progressiva de aparatos produtivos, reduzidos à
condição de excedente obsoleto e rebeldes à “verdadeira racionalidade” da produção de mercadorias.
A puerilidade teórica ou a indução política tem simplificado rusticamente essa questão, com a tese de que o capital
crise, qual fênix robótica, só renasce fortalecido. identifica empiristicamente, sem mais, força com expansão e integralidade
orgânica, e eficiência com lucratividade, elidindo com isso que o novo patamar de proficiência não é mais do que a aguda
manifestação da imperial e unilateral legalidade do lucro com a qual guarda, em todas suas implicações, irremissível vínculo
orgânico; dá de ombros para a fragilização estrutural do capital universal promovida pelo gigantismo (a autofagia), como
também faz por ignorar com cinismo positivista que todo esse processo de “separação das crises” é feito à custa da queima de
quantidades imensas de capital. isto é, à custa do malbaratamento, pela enésima vez, de trabalho humano-societário.
Numa palavra, o discurso apologético do capital torna intercambiáveis determinações completamente diversas: a
indicação abstrata e verdadeira de que - as crises, em gral, são fontes virtuais do novo -, e a situação, completamente diversa em
gênero, número e grau, - de crise estrutural do capital - que hoje perfaz a globalidade da existência deste e de sua forma de
sociabilidade.
Crise estrutural, isto, é orgânica e permanente, para a qual não há possibilidade de superação no interior da lógica do
capital, de modo que ambas, crise e sistema, estão fundidas de modo definitivo, condenando a sobrevivência do capital ao
metabolismo crítico que na atualidade o caracteriza. Assim, viver e sobreviver para o capital tornou-se existir na e através da
crise. De cada crise do capital não tem brotado o novo, mas a reiteração de si próprio em figura agigantada, de igual ou maior
problematicidade. Em palavras diversas: a reprodução ampliada do capital, contemporaneamente, reproduz a si mesmo em
proporções inauditas, ao mesmo tempo que reproduz em tamanho correlato sua crise constitutiva. Trata-se da reconversão
administrada da crise em meio de existência. É do que consiste, em verdade, sua mágica: a faculdade adquirida de sustar, através
de meios econômicos e extra-econômicos (atividade estatal incidente no cerne dinâmico da sociedade civil), a virtualidade
explosiva da crise. Tamponamento, no entanto, que não elimina ou resolve a malha de contradições responsável pela continuada
reposição do quadro crítico. É o que obriga a admitir, na representação objetiva, portanto não pré-concebida da realidade
contemporânea do capital, a crise como componente ou nexo essencial constitutivo de sua estruturação imanente. É como
dizer que a luz e a glória da atualidade capitalista são feitas de crise, geradas por substancialidade crítica ou gestadas através de
latente inviabilidade intrínseca, o que põe em evidência sua instabilidade crônica ou contingência temporal como essência,
contraposta à fenomênica de sua perenidade ou perenização com que se exibe, hoje, na passarela do mundo factual imediato e
da ideação que o absolutiza e banaliza. Para efeito prospectivo, nem uma coisa nem outra autoriza suposições precipitadas:
nem que, na curva da próxima esquina, o capital exibirá as próprias vísceras, sob o impacto de um encontrão o seu ventre de
chumbo consigo mesmo; nem, muito menos, que com mais algum tempo, com o tempo que fosse necessário, elaborando
ainda mais seus procedimentos econômicos e tornando mais fina e eficiente a intervenção estatal, na esfera da produção e
reprodução material do mundo, o capital, por fim, depurado de suas contradições, alcançaria a perfectibilidade, quando então,
redimido de seu próprio mau caráter, proporcionaria a si e democraticamente a todos a participação no mercado - nirvana,
enfim, conquistado para todo o sempre.
Convém insistir, mediando para a conclusão: a normalidade do capital é hoje a sua cotidianeidade crítica, uma vez que
“o capitalismo contemporâneo atingiu o estágio em que a disfunção radical entre produção genuína e auto-reprodução do capital
não é mais uma remota possibilidade, mas uma realidade cruel com as mais desvastadores implicações para o futuro. Pois,
hoje, as barreiras à produção capitalistas são suplantadas pelo próprio capital na forma que assegura sua própria reprodução -
em tamanho sempre maior e em constante crescimento - inevitavelmente como auto-reprodução destrutiva, em oposição antagônica à
produção genuína” (Idem, p. 102).
Configurado o nervo da crise estrutural do capitalismo, e, seja frisado mais um vez, por meio do melhor de seus
dotes, pode ser deixada de lado a rememoração do conjunto de seus atributos negativos, das contradições, também insolúveis,
que acarretam suas mazelas e perversidades mais antigas e conhecidas. Todavia, não se pode dispensar, como arremate, uma
rápida incursão pelo campo da visibilidade da crise vigente.
A alma do capitalismo é palpável, tanto mais sólida e consistente quanto mais vai maturando pela vida. Sólida e
palpável, não por isso isenta de prodígios e sortilégios: tanto que em sua forma primitiva, na infância do corpo que anima e
pelo qual é animada, tem tão pouca dignidade quanto o nome que carrega - vil metal; sopro impuro de mercador e de usuário,
que a idade adulta decanta, sublima e transfigura - capital financeiro, deus onipotente, mais facetado do que a própria santíssima
trindade.
Tamanha é sua onipresença, que tem em cada coração um altar iluminado; tamanha é a evidência sensível de seus
milagres, que desta fé não há descrentes, nem mesmo um só agnóstico; em verdade, cada devoto é um sacerdote convicto de
seu culto. Por falso paradoxo, só os teólogos mais recentes deram para quebrar essa unanimidade: muitos deles duvidam do
altíssimo, reduzem seus poderes e predicados, e são mesmo incapazes de reconhecer toda sua magia. Mas, tratando-se de um
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deus tão humilde quanto forte, até prefere que seja desse modo, ele que lucra de todos os modos. Que faria de loas ou alardes?
Deus recatado, dispensa o verbo que testemunha sua divindade. Por isso mesmo, talvez, pelo santo dedo de sua providência,
os teólogos deixaram de saber o que se passa no universo de seu império.
Mas, onde há deuses, os demônios comparecem - sempre ruidosos em sua impertinência. Assim, na ciranda do
capital, a face demoníaca do capital financeiro acaba sendo a primeira a mostrar o vulto, a face que não pode ser escondida.
Mas, como é apenas a outra face, ela faz conhecer o rosto inteiro do deus oculto.
A crise estrutural do capitalismo tem a cara medonha da crise do sistema financeiro internacional. Ou melhor, o
complexo agudamente contraditório das finanças internacionais é a máscara que reveste a estrutura crítica, nos termos
referidos, do sistema produtivo global, “Pois o domínio aventureiro do capital financeiro em geral é muito mais a manifestação de
crises econômicas de raízes profundas, do que a sua causa, ainda que, por sua vez, também contribua fortemente para seu
subseqüente agravamento” (Cf. I. Mészáros. “A Crise Atual”, neste número da Ensaio).
Máscara que assombra antes o mundo periférico, do que a esfera central do sistema capitalista, - centro este que é, no
entanto e de fato, pela forma particular de sua acumulação, epicentro da turbulência que perpassa o conjunto em toda a sua
extensão. Turbulência que na superfície aparente separa os credores do centro dos devedores da periferia, a riqueza competente da
miséria incompetente, os fautores do autêntico capitalismo dos praticantes de suas modalidades arcaicas.
Mais uma vez o fenômeno vela e se contrapõe à essência: não há caloteiro maior do que o credor de todos os
credores, a república exemplar do extremo norte das Américas. A dívida interna e externa dos EUA alcançam cifras fantásticas,
do mesmo modo que seus déficits públicos e comerciais, atingindo sua adição a ordem de grandeza dos trilhões de dólares.
São números siderais, - diante dos mesmos a dívida latino-americana é poeira miúda, que some debaixo do tapete. O mais
extraordinário, todavia, é que, através desse endividamento que exorbita os limites da pobre imaginação terceiro-mundista, o
gigantesco cangancheiro do norte exercita sua modernização civilizadora de caráter imperialista. Não apenas sobre os países da
América Latina, mas também sobre as nações européias e asiáticas, incluídas a Alemanha e o Japão, dentre as quais, é caso
exemplar e gritante, a triste figura da Inglaterra de Madame Thatcher.
A natureza imperialista desse renitente devedor de novo tipo não se altera, quando se adverte que se está diante de um
imperialismo de cumplicidades.Desde logo, a cumplicidade para o capital nunca foi conduta estranha ou enjeitada. Para além disso e
concretamente, há que considerar, em seu peso decisivo, como o faz Mészáros no texto há pouco citado, que “Os países
europeus parceiros dessas práticas - não menos que o Japão - admitem que estão presos a um sistema de aguda dependência
dos mercados norte-americanos e à concomitante `liquidez’ gerada pela dívida. Assim, eles se acham em posição muito
precária quando se trata de delinear medidas efetivas para controlar o problema real da dívida. Na verdade, são sugados cada
vez mais profundamente no sorvedouro dessas determinações contraditórias, através das quais `voluntariamente’ aumentam
sua própria dependência com relação à escalada da dívida norte-americana, com todos os riscos para si próprios, enquanto
ajudam a promovê-la e a financiá-la”.
Esse imperialismo de cartão de crédito, na designação irônica e certeira do mesmo autor, que tanto embaraça os teólogos da
moda, não é mais racional ou menos contraditórios do que suas versões mais primitivas. Ao contrário, a sua incorporação de
manobras mais sutis, correspondeu a potencialização de contraste e a agregação de confrontos e contradições, precisamente
porque sua devoração ultrapassou as franjas do sistema e passou a devastar o próprio capitalismo avançado. A desindustrialização
inglesa, as dificuldades concernentes à efetiva realização da unidade européia, bem como contenciosos com o Japão e reações de
círculos desfavorecidos do capital ilustram o panorama.
Em verdade, trata-se de um panorama que, mais uma vez, põe em evidência que o desaparecimento do típico
mercado concorrencial, marca do século passado, não é algo idêntico à extinção do caráter competitivo do capital. Ao
contrário, a superação do mercado livre se transforma num combate de colossos, progressivamente travado com armas
colossais, para os quais a praça de guerra é o próprio conjunto do planeta, mesmo quando, por cumplicidade, especialmente em
certas épocas de “estabilidade”, se trata de uma guerra velada, “graças à conspiração do silêncio das partes interessadas”. De
modo que podem valer aqui, pela sua plasticidade, certas palavras de Marx, deixadas em Salário, um manuscrito pouco
conhecido de 847: “A barbárie ressurge, agora porém engendrada no próprio seio da civilização e fazendo parte dela. É a
barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”.
Em suma, são as articulações orgânicas entre a produção destrutiva e as aventuras do capital financeiro que respondem pela
fisionomia falimentar do hemisfério ocupado pela “economia de marcado”.
Falência, todavia, que os países capitalistas ocidentais continuarão sustentando, - “em parte devido às contradições
internas de suas próprias economias e em parte devido a sua forte dependência dos mercados financeiros e de bens norte-
americanos”; desse modo “continuarão a participar com seus recursos financeiros na salvaguarda da relativa estabilidade da
economia dos EUA e, portanto, do sistema global”. Mas esse sustentação não é outra coisa do que viver na e através da crise,
longe, muito longe, por conseguinte, de qualquer conquista da perfeição e da eternidade.
Em outros termos e arrematando: “só tolos e cegos apologistas poderiam negar que a prática norte-americana vigente
de administração da dívida é fundada em terreno muito movediço. Ele se tornará totalmente insustentável quando o resto do
mundo (incluindo o `terceiro mundo’, do qual transferências maciças ainda são extraídas com sucesso, de uma forma ou de
outra, todos os anos) não mais estiver em condições de produzir os recursos que a economia norte-americana requer, a fim de
manter sua própria existência como o `motor’ da economia capitalista mundial, perfil sob o qual ainda hoje é idealizada” (I.
Mészáros, op. cit.).
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2 - A Crise Total do Pós-Capitalismo
Da mesma forma que, diante do perfil para-falimentar da economia privada, a teoria da perenidade do capital não é mais do
que prática de sabujos ou conformismo onanista, a glasnost e a perestroika são o colapso do onanismo do “socialismo real”.
De fato, as formas atuais da saciabilidade do capital, em suas duas modalidades - privadas e estatal, estão
constrangidas à atividade bíblica de Onã. Todavia, com diferenças fundamentais: enquanto no ocidente o vício solitário é espiritual,
por influxo mesmo da extrema fertilidade material - a destrutividade do capital superproduzido; no oriente, a condenação é literalmente ao
coito interrompido do capital estagnado.
Em outro lugar - Da Razão do Mundo ao Mundo Sem Razão (in Marx Hoje, Volume Um) - tratei de entender o drama da
experiência soviética e sues correlatos de outros quadrantes geográficos, para além da insustentabilidade dos diagnósticos que
se movem pelos registros do capitalismo de estado, da revolução degenerada ou, o pior de todos, do totalitarismo burocrático. O
entendimento recaiu na determinação de um quadro regido pelo capital, mais cuja forma de sociabilidade descartara o capitalismo.
Dito de maneira um pouco menos breve: a tragédia dos países pós-capitalistas dá origem a uma figura histórica
imprevista, - uma formação social que desmanchou pela revolução política as formas capitalistas de estruturação e dominação
sociais (aliás, atípicas e incipientes), mas que foi incapaz, constrangida pelo seu baixo padrão de produção e reprodução
materiais da vida, de ascender à revolução social propriamente dita, e através desta efetivar a arquitetônica de uma sociedade
articulada para além da lógica do capital. A legalidade deste “paradoxo” concreto tem por núcleo, pois, a impossibilidade
imanente ou a barragem intrínseca do trânsito entre o estatuto organizador do capital e o estatuto organizador do trabalho. E
sobre o trabalho é que, precisamente, recai o ônus fundamental do impasse, Facultando a identificação da assinalada vigência
do capital. Não mais (deveria ser óbvio não o é, por exemplo, para os que fazem o diagnóstico do capitalismo de estado) na
forma de propriedade privada, mas também não de propriedade social - de propriedade virtual de todos os produtores. Sua
apropriação-gestionária, pela fração diretiva do complexo social, faz dele um capital coletivo/não-social (como o chamei por falta
de expressão mais sintética, no texto referido), o que repõe o problema crucial das relações entre trabalho morto (capital). É bem
sabido que é próprio da vigência do capital que o trabalho vivo seja regido pelo trabalho morto; para tanto o capitalismo dispõe de
toda a organização social (sociedade civil e sociedade política) feita a sua imagem e semelhança. O que caracteriza a transição
para além do capital é precisamente a invenção dos termos dessa equação: o trabalho vivo passa à condição de regente do
trabalho morto. Mudança estrutural decisiva que não veio a ocorrer nos processos sofridos pelos países pós-capitalistas. Donde a
permanência nestes, sob forma peculiar, do capital - canga da atividade humana sensível, praxis, trabalho vivo, canga atada aos
cordéis do estado, assim e por isso mesmo, hipertrofiado. Evidências, capital e estado, de uma revolução política auspiciosa
que não encontrou o caminho da revolução social, repetindo com isso o defeito maior das revoluções burguesas. Isto perfaz,
em paralelo, a verificação dolorosa de uma tese marxiana, tão essencial quanto esquecida, especialmente pelo turvo politicismo
contemporâneo: à revolução política cabem apenas as tarefas negativas, a limpeza do terreno, a demolição do que deve morrer;
enquanto que os encargos construtivos, a edificação da nova sociabilidade dependem exclusivamente da revolução social.
Mas, se no bloco pseudo-socialista o trabalho vivo é vítima da mais abjeta contrafação, nele também o capital não
conheceu seus dias mais brilhantes.
As formações pós-capitalistas, a par da subsunção do trabalho vivo ao trabalho morto, são politicamente constrangidas a
consagrar e a tentar exercitar (sem o que perderiam todo fundamento), em exacerbada contradição com a primeira
determinante, uma feição social solidária e não-competitiva, ordenada pelas necessidades do trabalhador, isto é, uma
sociabilidade que não seja (des)ordenada pelo valor de troca. Onde, portanto, estejam assegurados, em princípio, ao conjunto
dos trabalhadores, vale dizer de toda a população, os meios de subsistência em sua gama fundamental de componentes
(trabalho, moradia, saúde, educação etc). Contradição extrema, que resulta em algo extravagante - o reino do capital na
ausência do chão social do mercado.
Livre do mercado, o trabalhador poderá ser um indivíduo livre, entre individualidades livres, se e somente se tiver acesso
efetivo aos meios de subsistências e em escala crescente, que corresponda à ampliação e à renovação de seu gradiente de
necessidades humanas (materiais e espirituais), próprios à construção de sua pessoalidade, e, simultaneamente, - sine qua non -,
se exercer a responsabilidade social da auto-determinação do trabalho. É do que consiste, em seu fulcro, a “organização livre
dos trabalhadores livres”, ou seja: a sociabilidade ordenada pelo trabalho vivo, ou, como Marx a chamou, “a sociedade
humana ou a humanidade social” (X Tese Ad Feuerbach).
Já é um truísmo admitir que, nessa transição da ordem do capital para a ordem do trabalho, haja um roteiro de graus e
níveis a percorrer. E disso o pseudo-socialismo alimentou ilusões, montou justificativas e arquitetou farsas, algumas cômicas,
outras hediondas, numa escalada de falsificações tão brutais que o fizeram emparelhar, quando não suplantar, a fábrica de
alucinações do capitalismo.
O que importa, aqui, é que a geratriz desse auto-engano e dessa mentira é que não ocorria, nem poderia estar
ocorrendo, uma transição para o socialismo, mas um processo inusitado de acumulação de capital, mais especificamente, um
processo de formação de capital industrial, sob gestão político-estatal-partidária. Formação e acumulação que, vencidos
estágios primários, foram se revelando extremamente problemáticos e insuficientes.
O esclarecimento dessa precariedade conduz ao entendimento da glasnost e da perestroika, ao mesmo tempo que à
inexistência de qualquer razão para depositar sobre elas qualquer esperança de redenção do socialismo, mesmo festejando o
alívio da opressão que proporcionam.
Já foi configurado que superar a lógica do capital compreende a unidade de um movimento formado pelo
atendimento das necessidades fundamentais e da auto-determinação do trabalho. Os dois aspectos, totalmente convergentes e
inseparáveis, implicam a exist6encia (ou criação) de bases materiais que sustentam essa dupla prática cotidiana.
Bases inexistentes na revolução russa, que matrizou, para o nosso século, os processos de passagem, carecendo por inteiro
dos pressupostos materiais requeridos. Hoje, para alguns, isto pode soar como uma novidade, não o era para Lênin e outros
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personagens de importância, que tinham efetivo conhecimento do problema, tanto que cifravam a solução da revolução russa
pela eclosão da revolução alemã, ou seja, de um país industrial desenvolvido, diapasão que provinha da própria visualização
marxiana da questão. Dificuldade irremovível, que não leva à estapafúrdia ponderação de que, então, a revolução não deveria
ter sido feita; quando mais não seja porque não havia para a velha Rússia a perspectiva de uma “solução” pela via do
crescimento capitalista. A tragédia da revolução russa, tragédia autêntica de toda a humanidade, quer se queira ou não - e só os
muito tolos podem dar de ombros, está precisamente no imperativo de fazer uma revolução que não pode ser realizada.
Sem bases para sustentar a revelação social pretendida, e mesmo atado - inclusive voluntária e deliberadamente, ainda
que na maioria das vezes e em ampla extensão de forma bárbara, - aos fundamentos e compromissos da revolução política
realizada, o pós-capitalismo sucumbiu, num intrincado processo de vicissitudes, onde rolou e rola o mais fantástico emaranhado de contradições, à
precariedade de seu solo material.
De início o panorama é razoavelmente claro: garantir a subsistência é escopo, palavra de ordem, esperança e promessa, mas a
tarefa efetiva é promover a acumulação que, em outras partes, fora obra própria e natural do capitalismo. Realizar, portanto, o
pressuposto incontornável, sem o qual, de maneira ainda mais rude, também a auto-determinação do trabalho não é mais do que
fantasia grotesca.
Realização do pressuposto material, por conseqüência, na adversidade de uma tensão que dilacera e contrapõe a
garantia de subsistência, a sociabilidade isenta de competição, o trabalho não medido pelo valor, ao imperativo sem alternativa
de o reduzir ao valor mínimo, exatamente para destinar o máximo de excedente (sempre inferior ao necessário) à obra de
constituição do pressuposto, em benefício, por princípio, do próprio trabalho. Em verdade, uma coação do trabalho que é,
pelo lado mais nobre do problema, contraposição radical à auto-determinação do trabalho.
Não importa que o excedente não seja apropriado de forma privada pelas vias do mercado, mas que seja trabalho
morto que escapa por inteiro ao controle do trabalho vivo, e que funciona em relação a este com a força e a lógica do capital.
Precisamente porque não há uma pletora de apropriações privadas, o dispositivo apropriador-gestionário, formando pelos
segmentos superiores e privilegiados do partido, do planejamento central e da administração, numa palavra simplificadora - o
estado, cresce, se agiganta e complexifica em suas crescentes inter-relações. É, pois, a apropriação do trabalho morto, nas
condições descritas, que gera o monstro; não o inverso - uma “burocracia totalitária”, de gênese e reprodução meramente
“política”, o que é uma vazia indeterminação, que oprimiria, à custa de seu estatismo instrumental, e por pouco mais do que
um parto de lentilhas, visto que a nomemklatura não se apodera individualmente de bens de produção, não tem acesso a eles na
forma de propriedade privada, nem se verifica a acumulação pessoal de riquezas faraônicas, como acontece em simples
ditaduras das repúblicas bananeiras, nem ainda os cargos conquistados e exercidos, mesmo com despotismo, são convertidos
em bens hereditários. Considerações estas que não eliminam a presença de facilidades, vantagens e privilégios de monta,
progressivamente consolidados e ampliados; em suma, não elidem a formação de um estatuto de interesses criados, específicos e
orgânico, que distingue e destaca esse setor social, particularmente pelo desnível em relação às maiorias, cujo padrão é
medíocre ou sofrível. Precisar tais aspectos evita o paralelo fácil e impróprio com a locupletagem pura e simples, típica de
círculos governamentais no capitalismo, e principalmente descarta o reducionismo simplório, que faz dos prosaicos privilégios
materiais dos burocratas a malha de fundo e explicativa da opressão estatal pós-capitalista. Em verdade, explicações dessa
ordem subestimam a magnitude da opressão e a complexidade do problema que ela manifesta, integraliza e diversifica,
tornando ainda mais aguda a contrafação do conjunto dessa forma societária.
Depois, os momentos subseqüentes, - vencidos certos obstáculos e objetivos, sempre parcialmente e de maneira
comprometida com as raízes não superadas do processo originário (e o golpe de vista totalizador não pode descartar as
relações internacionais, que incluem competição e guerra), se menos claros porque mais complexos, não são por isso, como
estrutura problemática de fundo, uma entificação de qualidade essencialmente distinta.
Importa notar, em que pesem seus diferentes graus de intensidade, correlatos à diversidade à diversidade dos níveis
sucessivos de desenvolvimento, que se trata permanentemente de uma acumulação na ambigüidade de uma formação social
que politicamente suprimiu o ordenamento concorrencial da sociabilidade. Uma extração e acumulação de riqueza que exercita,
portanto, a desconexão entre mercado e força de trabalho. Ou seja, que postula a libertação da força de trabalho da
subordinação às carências, da opressão das necessidades fundamentais que, na lógica do mercado, a constrangem ao
comportamento de mercadoria que se vende pelo seu valor de produção. Produção e reprodução de força de trabalho deixam,
então, de ser determinadas e medidas pelo seu valor, ou ainda ponderadas pelo uso que dela faça o capital, o trabalho morto
apropriado coletiva mas não socialmente.
Sim. “quem não trabalha, não come”, mas este princípio, na regência do capital sem mercado, fica reduzido à
condição de slogan, vagamente repressivo e vagamente ético, dependendo de circunstância e entonação. E visto que não pode
haver império da auto-determinação do trabalho, em razão do baixo patamar do sistema produtivo, o que resulta e se
manifesta é a liberdade irresponsável da liberdade, que nenhuma coação extra-econômica, por mais virulenta que seja, é capaz
de vencer; coação, aliás, que mesmo vitoriosa, na essência está vencida de antemão. Livre do mercado, mas escrava do
trabalho morto, a força de trabalho é reduzida à irresponsabilidade, coisa fechada sobre si mesma, tanto menos responsável
quanto mais insatisfeita, isto é, quanto menos tenha a perder sem que, por outro lado, perca o embrutecimento em situação
mais favorável, uma vez que falecem aqui todas as bases para uma nova eticidade. Ponto de inflexão, em suma, dos
estranhamentos que vicejam no solo e sub-solo do pós-capitalismo. Liberdade irresponsável da iliberdade, cuja fisionomia,
determinação e reforço é completada pela supressão da pluridade dos apropriadores, pois, com o desaparecimento das personae
do capital (sem o que não teria havido sequer a revolução política), cessa o desperdício da concorrência, alma mater da prática do
capital privado, mas também, o que é o mesmo - a luta para devorar, mas ser devorado, o que constrange ao esforço de ser melhor
e mais forte, ser o mais igual, dentre os iguais. O capital no pseudo-socialismo não se bate, nem tem com quem se bater. Tanto
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quanto a força do trabalho, goza a iliberdade de sua irresponsabilidade; lerdo reitera os círculos viciosos da insuficiência numa
espiral de estagnação.
Decerto, trata-se de um mundo do capital - monstruoso e fantasmagórico: o inverso do capital sem mercado. Capital
estagnante, que não gerou o pressuposto material pretendido, mas a carapaça de granito que hoje entulha, pela força de seu
fracasso, os caminhos que podem ir para além do capital.
O capital único - ausência de capitais em concorrência, sem o que, vale repetir, não teria havido sequer a revolução
política, a eliminação da categoria social proprietários privados e sua forma de dominação estatal - e a iliberdade tutela da força
de trabalho, a sociabilidade institucionalmente liberada, mas não econômica e socialmente liberta, ou seja, livre de direito, mas
não de fato, sem o que, seja também repetido, pereceria o fundamento político do empreendimento revolucionário -, ambos,
vetores fundamentais que são da formação social pós-capitalista, proporcionam, em seu entrelaçamento e complexificação, um
sistema do capital sem medida capitalista. Isto é, sob regência do trabalho morto, mas sem a medida do valor, seja para a força
de trabalho, seja para o movimento do capital coletivo/não-social, a desmedida, a arbitrariedade se impõe, toma e cobre todo
o espaço. De modo que, no interior do quadro de agudas insuficiências materiais ou, posteriormente, de constantes
desencontros e desequilíbrios, onde tudo se passa, a exploração do trabalho tende a ser compelida para o ilimitado, da mesma
forma que na efetuação ela se inclina para o insuficiente, pólos de uma mesma incongruência, que tem a outra face no
comprometimento do desempenho de conjunto desse capital estatal global, por si só entregue à desparametração, já que não
se confronta com nenhum outro e é regido extra-economicamente.
A resultante de tudo é o descompasso, o elementarmente contraditório, a inorganicidade do capital coletivo/não-
social, sua inferioridade produtiva, seu caráter degenerado e degenerativo. Impessoal, sem ser social; coletivo, sem ser
universal; gerido sem posse e apropriado na forma evanescente de um espectro, desgarra de toda direção e escapa de toda
responsabilidade, a não ser da impostura sonâmbula da burocracia. Tropeça, então, sobre si próprio, vive aos trambolhões,
desconexo, trôpego, e por suas dobras e fissuras vão se depositando todas as ferrugens, inclusive a poeira corrosiva da
corrupção.
Mutilação, todavia, que não se restringe à dinâmica econômica do pseudo-socialismo, mas que alcança e desfigura o
conjunto de todas as dimensões humano-societárias que o integram. Desde logo porque desmente, nas condições reais de
existência, o suposto político de assegurar a resolução das carências humanas de base e, por conseqüência, a renovação e
ampliação do elenco de novas necessidades pelas quais o homem produz a si mesmo material e espiritualmente. Assim,
desatendido nos pressupostos de sua autoconstrução e inviabilizado o exercício da auto-determinação do trabalho, a
entificação da existência humana prossegue subsumida ao trabalho morto. Não se verifica, nem pode se verificar, o trânsito
para a reg6encia do trabalho vivo, ou seja, a sociabilidade vigente é incapaz de assumir o valor de uso - necessidade humana autêntica
- como padrão de intercâmbio, como lógica ordenadora da convivência. Razão pela qual reproduz, em graus distintos, a
miséria física espiritual, desnaturando, tal como no capitalismo, a atividade humana fundamental - a construção do próprio
homem.
Numa palavra, a tragédia do pseudo-socialismo é a encarnação real de uma verdade sabida há cento e cinqüenta anos.
Marx, na Ideologia Alemã, exatamente a propósito da superação da ordem do capital, faz ver que isto exige “um mundo efetivo
de riquezas e cultura”, ou seja, que `um alto grau de desenvolvimento /.../ é um pressuposto prático absolutamente
necessário, mesmo porque, sem ele, apenas a miséria se generalizaria e, portanto, com a carência recomeçaria também a luta
pelo necessário e, por força, toda a velha merda retornaria...”.

Que fazer diante do retorno da imundice?


Apesar de muitas lições antigas, - submersa na dupla imundície contemporânea, a humanidade, nos dois hemisférios
do capital, simplesmente vasculha o lixão da história.
Na exata medida em que a supressão política dos apropriadores e a instauração, igualmente política, da iliberdade da
força de trabalho deram origem ao capital sem mercado, a glasnost e a perestroika são, economicamente, a busca do mercado pelo
capital do leste.
A crise explícita e confessa do pseudo-socialismo é matrizada pela incapacidade do capital coletivo/não-social de
realizar a cumulação ampliada, na magnitude, velocidade e ritmo requeridos paulatinamente pela formação social a que está
integrado, seja do ponto de vista do atendimento ao consumo de suas populações, seja do prisma das exigências intrínsecas ao
desenvolvimento das forças produtivas, que se agudiza a partir de certos níveis, em particular quando estão em jogo
comparações e rivalidades entre blocos internacionais. O conjunto dos países pós-capitalistas perde, assim, ao mesmo tempo,
a batalha interna do desenvolvimento e a competição tecnológica a nível mundial.
Em adversidade intestina e de contexto, o crescimento econômico do sistema, desde sempre embaraçado e
inconsistente, frustrador de expectativas ao longo de muitas e sofridas décadas, vinha denunciando, de há muito, seus estreitos
limites estruturais e explicitando a incorrigibilidade de seu emperramento, e findou por se tornar tão inaceitável quanto a
contrafação sufocante do regime político e a mesquinhez da atmosfera espiritual, que envolvem e isolam a formação como
uma bolha alvar de mentiras.
Os acontecimentos dos últimos poucos anos, que portam inclusive a inesperada confissão voluntária da crise,
envoltos na aura e no alarde da glasnost e da perestroika, não são, todavia, mais do que a exibição do atestado de fracasso,
econômico e político, da experiência iniciada em 17 e que se repetiu em alguns lugares, bem como a tentativa de enfrentar o
colapso do “socialismo real” com subprodutos ou derivações econômicas do próprio fracasso e a velha maquiagem política
dos sucedâneos formais.
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Para uma breve descrição dos eventos, em nada redutora, basta constatar que ao binômio - desastre econômico,
falência política - tem correspondido reformas inestruturais que estão na lógica do capital e de sua conduta política. Em face
do monumental problema econômico, da China à Polônia, tendo por centro dilemático a URSS, o apelo uníssono é aos
famigerados mecanismos de mercado, e, sincronicamente, diante do colapso do paquidérmico aparato político, o remédio é
buscado na velha cesta de costuras institucionais do liberalismo.
Mecanismo de mercado e formalização da liberdade são, precisamente, o espírito e as armas do capitalismo, encaixam como a
mão e a luva. O direito de irrestrito deslocamento, por exemplo, na estarrecedora obviedade, hoje, do que assegura, é
grandioso, mas é também aquele que, na organização societária do mercado, dá cobertura igualmente, e pelas suas raízes, ao
passeio compulsório pela “praça das trocas”, onde a imensa maioria dos cidadãos é medida e comprada pelo valor de
produção de suas energias materiais e espirituais. Ou, como diz Marx, nos Grundrisse: “Na livre concorrência não são os
indivíduos que são postos como livres, mas o que é posto como livre é o capital. Quando a produção dundadad no capital é a
forma necessária e, portanto, a mais adequada ao desenvolvimento da força produtiva social, o movimento dos indivíduos, no
marco das condições puras do capital, se apresenta como a liberdade dos mesmos, liberdade que, todavia, também é afirmada
dogmaticamente, enquanto tal, por uma constante reflexão sobre as barreiras derrubadas pela livre concorrência” (Capítulo do
Capital, Siglo XXI, V 2, p. 167).
Essas considerações tocam nos pontos cruciais da questão e levam a identificar a essência real e virtual da glasnost e da
perestroika.
Do que consistem, em suma, os tão propalados mecanismos de mercado, cujos poderes e virtudes passaram a ser vistos
como capazes de operar milagres, a não ser da bolorenta lógica da concorrência, do estatuto da colisão determinada pelos
interesses? O que são tais “recursos” senão as próprias engrenagens letais de uma forma de sociabilidade que regula o
intercâmbio, as interconexões dos homens entre si, ou seja, a sociedade em seu conjunto, pela razão competitiva, pelo estatuto
feroz que toma por reles fundamento, em última análise, uma ameaça sombria - a virtude da inanição? Não se trata, numa
palavra, dos mecanismos da “barbárie como lepra da civilização”, tantas vezes aludida por Marx?
Não resta, nem poderia restar a menor dúvida, bastando algumas linhas de Marx para deixar inteiramente configurada
a espinha dorsal da questão, Lê-se, também nos Grundrisse: “A livre concorrência é a relação do capital consigo mesmo como
outro capital, vale dizer, o comportamento real do capital enquanto capital. As leis internas do capital - que nos pródromos
históricos de seu desenvolvimento aparecem somente como tendências - tão somente agora são postas como leis; a produção
fundada no capital somente se põe em sua forma adequada, na medida e enquanto se desenvolve a livre concorrência, posto
que esta é o desenvolvimento livre do modo de produção fundado no capital; o desenvolvimento livre de suas condições e de
si mesmo enquanto processo que continuamente reproduz essas condições” (p. 167). E pouco mais à frente, prossegue a
argumentação no mesmo rumo: “A livre concorrência é o desenvolvimento real do capital. Através dela se põe como
necessidade exterior para cada capital o que corresponde à natureza do capital, ao mesmo modo de produção fundado no
capital, o que corresponde ao conceito do capital. A coerção recíproca que nela exercem os capitais entre si, nobre o trabalho
etc (a concorrência dos trabalhadores entre si não é mais que outra forma da concorrência entre os capitais), é o
desenvolvimento livre, e ao mesmo tempo real, da riqueza enquanto capital” (p. 168). E, por fim, uma passagem explícita ao
extremo sobre a inequívoca fundamentabilidade da concorrência para a atuação e reatuação do capital enquanto tal: “O que
repousa na natureza do capital só será realmente externado, como necessidade exterior, através da concorrência, o que não é
senão que os diversos capitais impõem, entre si e a si mesmos, as determinações imanentes do capital” (Dietz Verlag, p. 545).
Dessa síntese analítica, cujo sedimento ontológico vale a pena deixar assinalado de passagem, o autor desdobra duas
especificações fundamentais, que são decisivas para o exame e a crítica do pós-capitalismo em débâcle.
A primeira diz respeito ao laço determinativo entre capital e livre concorrência. Esta é o meio próprio do capital, só
através dela é que o conteúdo de sua natureza se objetiva, contudo não é ela que faz germinar o capital, mas o contrário: “O
domínio do capital é o pressuposto da livre concorrência... Por conseguinte nenhuma categoria da economia burguesa, nem
mesmo a primeira, a saber, a determinação do valor, se realiza graças à livre concorrência, isto é, através do processo real do
capital, que se apresenta como interação recíproca dos capitais entre si e de todos as outras relações de produção e
intercâmbio determinadas pelo capital” (p. 169).
A segunda questão, vinculada à anterior, versa sobre a liberdade humana. Para Marx, é precisamente a inversão dos
termos na relação anterior que conduz à “inépcia de considerar a livre concorrência como o desenvolvimento último da
liberdade humana, e a negação da livre concorrência = negação da liberdade individual e da produção social fundada na
liberdade individual. Trata-se somente não mais do que do desenvolvimento livre sobre uma base limitada, a base da
dominação do capital. Esse tipo de liberdade individual é, enfim, a supressão de toda a liberdade individual e a sujeição total
da individualidade às condições sociais que assumem a forma de poderes objetivos, inclusive de coisas poderosíssimas, de
coisas independentes dos próprios indivíduos que se relacionam entre si. /.../ Pretender que a livre concorrência é a última
forma do desenvolvimento das forças produtivas, portanto, da liberdade humana, é afirmar que o reino da burguesia é o fim
da história mundial: eis por certo uma idéia agradável para os arrivistas de ontem e anteontem” (p. 169).
O capital do “leste”, - único, desprovido politicamente do leque de apropriadores privados, que traçam o perímetro
da arena da concorrência, e acumulando às custas da iliberdade do trabalho, estatuída também politicamente sobre o solo
infértil da miséria, - é o capital fora de seu meio, incapaz de se pôr em sua “forma adequada”, de “externar o que repousa em sua
natureza”, pois carece da “relação consigo mesmo como outro capital”, da livre concorrência, onde a pluralidade doa capitais
exercem coerção recíproca entre si e sobre o trabalho, quando exercitam os jogos do valor.
O capital coletivo/não-social é o capital fora de seu reino - a sociabilidade do capitalismo, algo como o capital em
seus pródromos, quando suas “leis internas aparecem somente como tendência”. Em seu estrangulamento atual, enquanto
capital e enquanto largo processo que objetivou o capital industrial, em que pesem todas as suas limitações e incongruências,
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não pode simplesmente ter sua acumulação realizada posta em igualdade com o colapso do pseudo-socialismo. Este faliu como
transição socialista, como itinerário para além do capital; falência não meramente política, porém econômica - da base material
de produção da vida, contudo, mesmo assim, isto não zera o acumulado industrial e do complexo econômico em seu todo. O
estrangulamento, assim, é a asfixia de um dado capital, na dinâmica de sua geração e desenvolvimento. Sua crise atual,
portanto, é também a expressão de suas agudas necessidades atuais, na lógica de seu crescimento. Em outros termos, sua crise
total exprime, de qualquer modo, as energias e tendências de seu estágio de evolução enquanto capital. Nesse sentido valem,
para o quadro em exame, com os devidos ajustamentos e precisões concretas, as palavras de Marx a respeito do
comportamento em geral do capital enquanto processo autoconstitutivo: “Enquanto o capital é débil, procura se apoiar nas
muletas de um modo de produção desaparecido ou em via de desaparecimento; tão logo se sinta forte, ele se desembaraça
dessas muletas e se põe em conformidade com suas próprias leis” (p. 168). Ou seja, que é próprio ao capital o empuxo para a
realização de usa identidade e, por conseguinte, o empenho para a ultrapassagem dos impedimentos que o tolham. Marx refere
a questão, por exemplo, tratando da supressão do corporativismo à época de sua gênese: “O aspecto histórico da negação do
regime corporativo etc, por parte do capital e através da livre concorrência, não significa outra coisa senão que o capital,
suficientemente fortalecido, derrubou, graças ao modo de intercâmbio que lhe é adequado, as barreiras históricas que
estorvavam e refreavam o movimento adequado à sua natureza” (p. 167).
Perfilando, então, a crise do pseudo-socialismo pelos traços do desenvolvimento de seu capital, aflora que a
introdução dos mecanismos de mercado na economia do pós-capitalismo corresponde, para muito além de qualquer artificialismo
ditado pelas circunstâncias, a premências do capital único pela derrubada dos obstáculos que o restringem, que impedem seu
verdadeiro desenvolvimento enquanto capital. Portanto, não se trata hoje, nem há qualquer possibilidade de que venha a se
tratar amanhã, de uma iniciativa que venha a aperfeiçoar o socialismo. Pelo contrário, em primeiro lugar porque não se pode
aperfeiçoar o que não existe - o processo de transição socialista; em segundo, porque quanto mais efetiva for a reforma
pretendida, tanto mais a iliberdade do trabalho simplesmente cederá lugar à escravidão do trabalho livre, medido pelo valor através da
concorrência processada no mercado; em terceiro, e em suma: aperfeiçoamento do capital - proporcionado pela ressurreição
da concorrência, no caso, exclusivamente como coerção sobre o trabalho, pois é desprezível, ao menos por um longo tempo,
a pluralização dos apropriadores, - é uma contrafação ignóbil como teoria e prática socialistas.
Ignomínia que oscila entre a tragédia e a comédia, quando se leva em conta formulações de Vadim Medvedev,
presidente da Comissão Ideológica do Comitê Central do PC da União Soviética, veiculadas muito recentemente pela
imprensa, mencionando a publicação de seu livro A Revolução Continua: Sociedade Soviética em Condições de Reestru-
turação.
Sua fórmula é primorosa e, em suma, está resumida na tese de que “O mercado, se se eliminam as distorções do lucro,
é uma das mais importantes conquistas da civilização humana”. Não há que se ater ao lado mais risível do enunciado, pois,
como verdadeira contradição nos termos encerra, com grande aproximação, o que poderia ser chamado de verdade consciente, de
finalidade precípua da operação que pretende socorrer a economia pós-capitalista com estímulos de mercado, ao menos no que
concerne à maioria dos países em causa, especialmente a URSS.
Vista em seu significado extremo, a propositura de Medvedev não visa, de fato, a criação de uma efetiva pluralidade
de capitais, dado o obvio de que o pressuposto da diversidade de apropriadores privados é precisamente a garantia de sua
movimentação lucrativa no mercado.
De modo que, neste caso, a livre concorrência de mercado, a “recíproca coerção dos capitais entre si e sobre o
trabalho”, se manifesta exclusivamente como coerção sobre o trabalho, coerção econômica do capital único sobre a pluralidade
universal dos trabalhadores. Ou seja a formação social que foi incapaz de gerar o pressuposto material necessário à transição
socialista, cancela o seu decreto político da sociedade solidária de setenta anos atrás, e reintroduz o princípio de que a força de
trabalho é paga pela sua eficiência, isto é, enquanto mercadoria ímpar capacitada a produzir mais valor do que o seu próprio.
Volteio, que consumiu três quartos de um século, para chegar ao “Segreso” conhecido e praticado pelo capitalismo desde
sempre, com a agravante de não abrir mão da forma coletiva/não-social de apropriação-gestionária do excedente, sobre a qual,
pedra angular da questão, não diz uma palavra, mantendo a funesta e perversa identidade, clamorosamente falsa e falsificante,
entre estatismo e socialismo.
Tomada a fórmula de Medvedev numa acepção mais branda, nada se altera quanto à coerção unilateral sobre o
trabalho, no que tange a ser medido pelo valor, entre as fronteiras da sociedade de carência, pressuposto e limite da sociabilidade
capitalista, fora da qual a coerção econômica perde seu fundamento, pois, na estrutura de seu funcionamento, a verdade de que a carência é a razão
de ser do trabalho é duplamente corrompida, pela redução das carências às carências elementares e pela desfiguração e
identificação do trabalho puramente a meio de subsistência. Ou em termos muito mais simples: não há trabalho, quando não
há carência, então, quem trabalha, não come. Trata-se, enfim, do “desenvolvimento livre sobre uma base limitada, a base da
dominação do capital” - “liberdade individual que é a supressão de toda a liberdade individual”, para empregar, mais uma vez,
os expressivos termos de Marx.
A diferença, tomada a fórmula de Medvedev em sentido abrandado, incide sobre a questão da pluralidade de
apropriadores, na medida em que “distorções do lucro” não signifique eliminação, mas tolerância de lucro moderado. Algo absurdo
como lucro justo, que identifica a negatividade deste não pela sua natureza, mas pela quantidade, por excessos ou índices de
exagero que tende a manifestar e que devem ser coibidos. Essa clivagem moralista entre o bom e o mau lucro admitiria, então,
em certo número e para determinadas áreas de atividade,, apropriadores modestos e obedientes, que aceitariam de bom grado
a coerção do grande capital estatal, que lhes ditaria o padrão de lucratividade, da mesma forma que dita o valor do trabalho.
Em resumo, um enclave do pequeno capitalismo civilizado, uma velha quimera pequeno-burguesa, no interior da marcha do
“socialismo reestruturado”. Dispositivo que suprimiria deficiências na produção de bens de consumo, seria instrumento
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auxiliar na regulagem do valor do trabalho, mas não ofereceria perigo algum para a estrutura dominante do capital
coletivo/não-social, mais uma vez inteiramente salvaguardado, ele que constitui o nó-górdio de toda a problemática concreta.
Que essa utopia mesquinha possa promover alívios imediatos, em face da evidente desagregação do sistema, é apenas
a dimensão circunstancial da questão. Nem é preciso recusar in limine essa eventual eficiência contingencial, para compreender
que todo o movimento de reestruturação vai em direção ao pólo oposto em que estão situadas as condições para uma
transição socialista.
O império imoderado do valor no mercado de trabalho e o império moderado do lucro no mercado de bens de consumo
aliam a tirania a um voto piedoso, no interior do desencadeamento de um processo, onde os parâmetros da privatização, ainda
que setorial e restrita, e os correlatos instrumentos de mercado no enquadramento do trabalho, cada um a seu modo,
acentuam e generalizam a regência do capital, conferindo teor e aura privatista à intervenção corretiva. Em suma, ela se define por
soluções próprias ao campo da propriedade privada, ao invés de buscar a superação do capital coletivo/não-social pela
constituição da propriedade social, condição de possibilidade da autodeterminação do trabalho, base, portanto, da liberdade
individual para além da liberdade do trabalho, assentada sobre o capital único, e também da supressão de toda a liberdade individual,
assentada sobre a plataforma da dominação do capital privado. Por fim, não deve faltar também o registro de que a glasnost e a
perestroika, - em suas diversas configurações pelos países do pseudo-socialismo, em alguns de forma mais aguda e aberta, como
exemplificam a Polônia e a Hungria, em outros apenas virtualmente -, abrem os caminhos, pela primeira vez na história, para a
reconversão ao capitalismo das formações sociais pós-capitalistas.
Em perfeita consonância com as reformas econômicas, e também no espírito das equações próprias às formas sociais
privatistas, é que a desagregação política do bloco pós-capitalista está sendo enfrentada.
Registrada e aplaudida a ruptura da carapaça tirânica do colosso estatal-partidário, que se fez acompanhar pela
implantação de dispositivos formais das liberdades públicas, importa agregar, não só a crítica destes limites, mas, em especial,
do caráter da direção tomada pelos corretivos nesse plano.
É decisivo constatar a homologia entre a opção pelos dispositivos de mercado, na organização da sociedade
econômica, e as garantias formais, na organização da sociedade política. O acoplamento, tanto positiva como negativamente,
revela sua congruência. Não pode haver forma societária competitiva, por mais restrita que seja, que não implique presença,
participação e negociação na praça das trocas, por mais estreito que seja seu formato, e, por extensão, o assentamento formal e
geral da praça livre, por mais acanhada, igualmente, que possa ser. Mesmo porque, no caso, a conquista ou concessão das
liberdades políticas substitui o decreto político, nunca materializado, do princípio da sociedade solidária. Aquele precisamente que
pretendeu, por simples vontade política, a exclusão da estrutura social competitiva, seja pela dissolução da pluralidade dos
apropriadores, seja desembaraçando o trabalho da aferição pelo valor. Agora a competição é readmitida, trabalho e
apropriadores terão, igualitariamente, que se autoproteger, em especial contra o grande apropriador, na arena livre da política, pelo
exercício dos seus estatutos formais. Inequivocamente, Marx tem razão: “Na livre concorrência não são os indivíduos que são
postos como livres, mas o que é posto como livre é o capital”. Sob regência do capital, quando a produção nele fundada é a
forma necessária, o movimento dos indivíduos se apresenta como a liberdade dos indivíduos, isto é, se apresenta como “o
desenvolvimento livre sobre uma base limitada”, as liberdades limitadas da forma livre da cidadania, que sucumbe ao poder
das coisas; enfim, trata-se de um tipo de liberdade individual que é a “supressão de toda liberdade individual e a sujeição total
da individualidade às condições sociais que assumem a forma de poderes objetivos”. Há décadas os impasses do pós-
capitalismo estão postos, e, desde princípios dos anos oitenta, com a Comuna de Gdansk ficou irrevogavelmente patente que
não havia qualquer transição socialista em curso.
A demora tão grande para a afloramento dessa evidência (cuja admissão generalizada está muito longe de já ter se
dado) prende-se a um complexo infinito de razões, proporcional à importância inexcedível, crucial para o desenvolvimento da
humanidade, posta pelo imperativo da superação do capital e de sua forma de sociabilidade. Impossível ensaiar aqui até
mesmo a mais elementar relação de motivos, entre autênticos e espúrios, que produziriam e reiteram esse retardo do
entendimento. No entanto, desde há um quarto de século, era visível que, nas tentativas eventuais de superar seus dilemas, o
pseudo-socialismo teria se pautar ao menos pelo parâmetro de que a solução buscada não se encontraria, nem na reafirmação
do “socialismo” como identidade do atraso sectário e dogmático, nem na capitulação sem reservas às formas econômicas e
políticas do capitalismo.
A força de realidade rompeu, pela crise explosiva, a possibilidade da simples reiteração do atraso sectário e dogmático,
mas o vigor da lógica do capital e a completa falta de vigor teórico, em meio à mais extraordinária confusão ideológica
mundial, conduziu, nos confrontos de todo tipo com o mundo da iniciativa privada, à capitulação integral aos referenciais do
capitalismo, tal como a glasnost e a perestroika e seus similares tornam palpável em suas especificações concretas de cada lugar.
Por escandaloso que seja, não faltam os que ainda conseguem alimentar esperanças socialistas através dos acontecimentos
do leste. Não se remete com isso apenas ao velho seguidismo de indivíduos e grêmios, mas a organismos tradicionalmente mais
críticos, que conseguem devisar, na esteira de teses antigas, desfocadas pelo tempo, prenúncios no leste de breves revoluções
políticas, que hão de redimir o “estado operário degenerado”. O mais grave, para além da quimera esdrúxula, é precisamente
essa fé antimarxiana na política, em particular a fé política no estado e na volúpia castradora de torná-lo perfeito.
Em verdade, entre os componentes de maior relevo do desastre do pós-capitalismo está precisamente o excesso de
política, a política excedendo seus limites e substituindo desastrosamente as tarefas da revolução social, estancada e inviabilizada pela
ausência de sustentação material, o que tornou impossível a construção de um novo universo societário, para além da lógica do capital e das formas e
arbitrariedades da política, enfim superada porque, então, reduzida à inutilidade.
É fundamental compreender, até pelas frustrações máximas desse século, que a transição socialista não tem por identidade um ato ou
processo político. Não se reduz ou resume a eventos dessa natureza, nem se expressa ou realiza pela essência destes. Ao longo dos
900, a história profunda dos países que enveredaram pela ruptura com o capitalismo, em razão mesmo de seu ponto de partida
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- quadros nacionais de baixo padrão de desenvolvimento material, que impediam a projeção e a consecução de um novo
patamar de sociabilidade -, foi uma história da prevalência do político, de uma aposta política no político, a princípio involuntária e
depois, pelo enredamento das situações criadas, irreversível e assumida, ao limite mesmo da bestialidade; por fim, hoje, a desa-
gregação de toda a experiência é a própria história do fracasso da política. Fieira interminável de eventos, que se distribuem
por toda a gama que vai do heróico ao abjeto, para cuja exemplificação basta referir sumariamente, tomadas de posição e
ocorrência recentes. Desde, talvez, a mais simples ou banal, representada pela reação cubana às mudanças soviéticas,
consubstanciada em nítida manifestação de dogmatismo defensivo, na rejeição meramente política que ofereceu à “nova linha”,
sem que pudesse almejar com isso qualquer efeito internacional, e nem mesmo a intangibilidade de seus procedimentos
internos. Posição política igualmente estéril, enquanto afirmação socialista, ademais de fantástica, tendo em vista o êxodo de
seus cidadãos, é a da Alemanha Oriental, na reafirmação inflexível e insensível de seus postulados sectários. Exatamente por se
tratar da menos mal sucedida economia do leste, ressalta a vacuidade, ao limite, da própria política da truculência. Todavia, o
exemplo mais completo do que se quer ilustrar fica por conta da China, que tem exercido ao longo dos quarenta anos de sua
revolução a própria exacerbação da vontade política, da fé na política: basta pensar na insanidade da assim chamada revolução
cultural. Quando há poucos anos, antecipando-se à perestroika, lançou-se à “modernização econômica através dos mecanismos
de mercado, mas não adotou a liberdade formalizada dos direitos públicos, o que corresponde, em grande medida, ao fato de
que o desenvolvimento de seu capital coletivo/não-social seja inferior ao soviético, traduziu com isso a arraigada convicção,
tomada como pressuposto, à semelhança de tantos outros momentos de sua história, de que a transição socialista seja uma
sucessão arbitrária de atos políticos, decisões de poder que reinventam o mundo. Tian An Men, celestial praça das trocas e infernal
praça de guerra é apenas uma ilustração abominável de reinvenção. Mas, o exemplo mais nefando e odioso dessa fé política
continua nas mãos dos bandidos do Khmer Vermelho, pela trucidação de dois milhões de citadinos, no propósito de
transformá-los em camponeses, o mesmo que foi feito por Stálin, muito antes, quando decidiu transformar camponeses em
comunistas.
Na exata medida em que a construção da sociedade socialista não é uma reinvenção do mundo, a política não é a
argamassa com que são moldáveis seus fundamentos.
Por isso o “socialismo real” é a falsificação política do socialismo, o velamento politicista da inviabilidade material da
revolução social. Hoje, reduzido objetivamente a frangalhos, mas politicamente reafirmado em sua “reestruturação”, bloqueia as
aspirações socialistas pela monstruosidade de suas façanhas políticas.
Por decorrência, na atualidade, o traçado de um projeto socialista passa necessariamente pelo reconhecimento de que
a abertura de aqui, não conheceu qualquer transição socialista, e que a abertura de novos caminhos principia pela ruptura com
toda forma de crítica complacente ao pós-capitalismo, pois, em sua transigência, acomoda ambigüidades e uma espessa
nostalgia conformista, o culto sofrido de uma derrota inconfessa e o desengano recalcado de esperanças e devoções; ou seja, a
crítica complacente do pseudo-socialismo é uma ideologia voltada para o passado.

3 - A Morte da Esquerda e o Neoliberalismo


Observados em adjacência, os dois sub-sistemas do capital configuram crises distintas e simultâneas, que parecem desaguar
em “soluções” convergentes. Tanto a produção destrutiva no ocidente, como a produção estagnada no leste, pela inclinação dos
“meios resolutivos” que propões e adotam, sugerem encontrar nos mesmos princípios as vias de remoção de seus impasses.
denominadores comuns que se resumem a uma dupla fé: crença nas virtudes do mercado e da formalização da liberdade.
De fato, neste mergulho para trás, o que há 150 anos foi descartado pela afirmação de uma nova crítica prática e
teórica - facultada pelo advento no cenário público de uma nova categoria social -, hoje se representa como expressão do
resgate de uma resolução definitiva. Ora, se na história as repetições resvalam para a comédia, neste caso a comédia não é
apenas uma comédia de idéias, já que por detrás correm tragédias reais não resolvidas, o que obriga a reconhecer o caráter
tragicômico da cena em curso.
A vaga neoliberal, na diversidade de tons que assume, desde a ponta mais áspera do liberalismo econômico puro e simples,
até o extremo amaciado do liberal-democrático, não decorre de mera retomada doutrina. Tem tudo a ver, isto sim, com as
vicissitudes do capital destrutivo e do capital estagnado. No concernente ao primeiro, porque impulsionado, enquanto capital
superproduzido, a invadir sem limites todos os espaços, inclusive os da própria esfera estatal, sem a qual por outro lado, em
aparente contradição, é incapaz de realizar suas façanhas e nem mesmo, por certo, teria chegado a ser o feiticeiro que é. Aqui,
a equação é muito simples; estado mínimo na economia é simetria de capital máximo no estado. Todavia, é a falência expedientes
de mercado e se limita às liberdades públicas formais, ao invés de enveredar pela sociabilidade do trabalho através da
socialização da propriedade -, que destrava todas as comportas para a arremetida neoliberal em todos os planos.
De um modo ou de outro, o movimento de restauração do mercado no leste e a desmobilização econômica do estado
no ocidente (mais pretendida do que executada) são convergentes. E, na confluência, salientam a “superioridade” da economia
do mercado, face à evidência da reprovação histórica do “socialismo” reduzido a sinônimo de economia estatizada.
Por fim, um terceiro componente reforça o alçamento do neoliberalismo: o quadro atual do setor público e dos estados
privados dos países periféricos, aparatos aos quais é imputada a responsabilidade pelo “arcaísmo” e estrangulamento dessas
áreas econômicas, numa orquestrada transfiguração radical da falência do estado privatizado pelo capital enquanto promotor do
desenvolvimento social, e da incapacidade estrutural, mais vez tornada evidente, do capital atrófico, em associação
subordinada coma finança internacional, em conduzir e efetivar uma acumulação capitalista minimamente coerente e estável,
que se difunda pelo conjunto da trama social e a beneficie, ainda que nos termos puramente contraditórios do crescimento
capitalista.
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É preciso notar que a ressurreição liberal é ponto culminante de uma reorganização planetária do capital, movida
dinâmica imanente do próprio capital, mas em confluência e conexão com o ponto culminante também da desagregação
igualmente planetária do movimento crítico (prático e teórico) que tinha por alvo o liberalismo e sua base material, ou seja, o
capital, sua forma de sociabilidade e seu modo de ideação e sensibilidade.
Processo de combate iniciado em 1848, que evoluiu na definição de contornos em 1871 e veio alcançar em 1917 o
grau máximo de ascensão jamais ultrapassado para logo a seguir enveredar, em que pesem o evento chinês de 49 e o episódio
cubano de 59, pela trilha de graves embaraços e contrafações, que termina por conduzi-lo ao colapso neste final dos anos
oitenta.
Década, aliás, que reúne traços que compõem um perfil de fim de época. Anos que principiaram com a erupção
majestosa da comuna de Gdansk, que acabou convertida na sacristia de Gdansk, pela qual a posse do premiê Tadeuz Mazowiecki é
consubstanciação e símbolo, pois não se trata simplesmente de uma figura de proa da vasta militância do Solidariedade, mas
de um intelectual cujo esforço sempre incidiu no combate teórico e ideológico ao marxismo.
Viso de encerramento de um tempo centrado sobre o complexo das iniciativas soviéticas, às quais se agrega com
grande relevo o conjunto dos acontecimentos de todos os países do gênero, onde desabam poderes, desaparecem partidos e
até mesmo as repressões mais bárbaras, ainda possíveis, atestam o findar de todo um longo período.
Término histórico só engloba o plano teórico-ideológico - a morte do marxismo vulgar -, mas também a radicalização
do desprestígio intelectual que há décadas vem sofrendo o próprio vulto de Marx, desde sempre atacado por inimigos de todo
o quilate, em especial pela brutal ignorância do século, que capricha na ignorância de sua obra.
Em suma, colapso prático e teórico, que se constitui em fecho de toda a experiência revolucionária do século, o que
torna obrigatória a verificação dolorosa de que - o século e meio de lutas compreendido entre 1848 e 1989 foi um século e
meio de insucessos e fracassos, onde o “socialismo” real é a derrota culminante dessa dura história de derrotas.
É urgente compreender que as derrotas de hoje são de natureza totalmente diversa daquelas sofridas no século
passado e em princípio deste. Enquanto nas mais antigas, mesmo episodicamente vencida, a lógica onímoda do trabalho se
afirmou e rasgou perspectivas, nas mais recentes é o esgotamento de todo um itinerário que se manifesta, envolvendo
caminhos e instrumentos. Muito em especial, rotas e ferramentas políticas mitificadas, que não só não correspondem às
concepções clássicas, mas que, na forma aberrante em que se impuseram e difundiram, acabaram por se converter, em sua
espúria identidade, em motivos fundamentais da própria liquidação da esquerda, enquanto posição e organização política
matrizada pela perspectiva da sociabilidade virtual do trabalho.
Sim, há que reconhecer a morte da esquerda, que o surgimento da assim chamada esquerda não-marxista só faz
confirmar. Ao mesmo tempo, há que admitir que, em toda a sua contrafação, a vaga neoliberal não é uma mera fantasia.
Ergue-se através de energias próprias, mas ficando os pés sobre a vasta sepultura da esquerda. Em suas modulações e
irradiações torna-se a atmosfera ideológica alternativa deste fim de século, penetrando inclusive as carcaças remanescentes da
esquerda-nominal, para não falar da esquerda não-marxista que para além de vontade ou consciência, não pode viver sem o
seu sopro.
Vencida até aqui, o que derrota a humanidade para muito além do estrito universo da política, no entanto, a potência
onímoda da lógica do trabalho não foi nem pode ser extinta, de modo que um futuro renascimento da esquerda, reassentada
sobre a autêntica legalidade humano-societária do trabalho, compreenderá uma diversidade cabal na ordem da organização e
efetuação políticas, bem como na prática das lutas sociais e sindicais, redefinidas em contraste com as “matrizes” do século
XX, o que não implica a ruptura com heranças e princípios legítimos, que as revoluções do século foram incapazes de
respeitar e sustentar.
Reconhecer, em toda a extensão de sua gravidade prática imediata, a morte da esquerda real e a ressurreição do
liberalismo não é, portanto, manifestação de pessimismo, nem muito menos uma declaração do fim da história. pelo contrário,
é cumprir a exigência revolucionária elementar de aferição do quadro histórico vigente, facultada exatamente pela manutenção
de perspectivas, que suscita senso crítico e de realidade, inclusive em circunstâncias de extrema adversidade, como a
desenhada neste finais de século.
Quanto mais concreta for a representação do atual momento desfavorável, tanto mais solidamente poderão ser
fundadas as esperanças, pois a morte da esquerda não é a extinção da perspectiva histórica da esquerda.
Desde logo e de um só fôlego, porque eliminar em definitivo a prospectiva da lógica humano-societária do trabalho,
isto é, o trabalho enquanto trabalho, o que é uma impossibilidade para o homem enquanto homem. É da ignorância teimosa
disto que é feita toda a sabedoria dominante dos anos 900, desde o pragmatismo mais rombudo até ao irracionalismo mais
empavonado. Assim, de joelhos para o presente e de costas para o futuro, os filosofantes e cientificistas da vigésima centúria
perfazem aquilo que alguém já designou como “a cegueira específica dos profissionais da lucidez”.
É nesse quadro de referências que deve ser feito com todas as letras o registro de que o capital celebra na atualidade a
morte de Marx e o enterro da esquerda, e interrogado também por que o faz incansável e reiteradamente.
Se não restam senão cadáveres, por que da intranqüilidade do capital e de seus vozeiros? Por que têm eles que praticar
diariamente o assassinato do velho filósofo alemão e proclamar sem descanso a extinção da perspectiva de esquerda?
Desconfiam, decerto, que tudo não passa de mais uma de suas muitas ilusões voluntárias. De fato, a morte de Marx é
uma missa cotidiana no altar do medo, Mesmo porque as mortes festejadas não são uma pura ilusão; em verdade, o marxismo e
a esquerda vulgares estão sepultados, o que torna latente a possibilidade do ressurgimento, por mais complexo e distante que seja,
de suas expressões autênticas.
É mais ou menos sabido que o destino histórico do pensamento de Marx foi perverso. Nem bem ele desaparecera, já
se impunha e prevalecia a paródia da II Internacional; e dadas as condições e urgências políticas, em que se desenvolveu a
tentativa de recuperação de sua obra pela social-democracia russa (até princípios da década de vinte), esse resgate ficou sempre
100
confinado a limites muito estreitos, não obstante certas realizações de brilho, vindo a desaparecer por completo com o
predomínio da caricatura teórica da “era stalinista”, que se irradiou pelo mundo, e pela qual, ainda hoje, salvo em restritos
bolsões de especialistas, o ideário marxismo é em geral tomado e combatido. O mesmo ocorre, ou quase isso, inclusive com a
grande maioria dos inimigos “sérios” de Marx, que prefere se contrapor à máscara desfigurante, quanto não constrói o
monstro por conta própria, do que lidar com a sua legítima figura intelectual.
Seja dito, de passagem, que não deixou de haver, alem do caso russo, certa reação às falsificações implantadas na
virada do século, como, por exemplo, os esforços também circunscritos e nada resolutivos de Korsch, Gramsci e Lukács nos
anos vinte, erigidos depois - e pelos seus lados mais errôneos à época - como “clássicos da heresia”. Basta lembrar que o
último, só no decênio posterior infletiu em direção às instaurações filosóficas de Marx, trilhando a partir de então e pelo resto
da vida um itinerário de recuperação e desenvolvimento da herança marxiana, que culminou na velhice, cujos resultados,
todavia, não exerceram até agora a devida influência.
Resulta que o quadro efetivo se reduz, na primeira metade do século, enquanto teoria largamente praticada, ao
marxismo vulgar. Aparato de fórmulas, nascido da adversidade soviética para a transição socialista, é amálgama do voluntarismo
político, entoado pela impotência revolucionária em face das transformações sociais não realizadas, e da exacerbação
racionalista do cientificismo recolhido da II Internacional, que assegura a mecanicidade da sucessão dos modos de produção. O
primeiro sustenta e reitera a fidelidade ao objetivo não cumprido, o segundo a validade da rota arbitrária, assumida como
sucedâneo. Em suma, mera idealidade política, para cobertura e reforço do exercício político real, substitutivo da revolução
social impossível.
E. meados do século, diante da contrafação reducionista do pensamento de Marx a discurso político de justificação, e
movida também por vetores teóricos extramarxistas, que moldaram sua fisionomia, teve início a movimentação
epistemologista em torno da obra marxiana, cujo esgotamento é recente, mas em cujo prolongamento atmosférico, em certa
medida, ainda se vive. Porém, a dada altura de seu curso, a sofisticação dessa inclinação reflexiva foi insuficiente para impedir
a contradita de uma nova reação de caráter político que, à unilateralidade deformante do epistemologismo, pretendeu responder
com a unilateralidade igualmente deformante do politicismo - identificação da reflexão marxiana como centrada e fundada na
política.
Em síntese, ao longo deste século, a decadência do marxismo, desencadeada pela II Internacional e levada ao
paroxismo pela vulgata “stalinista”, é alimentada também, em que pesem diferenças agudas de níveis e meios, pela especulação
epistemologista e politicista, formas da descaracterização e perda da revolução teórica realizada por Marx, através das quais é
processado o empobrecimento da inteligência e da sensibilidade de todo o período, assim adubado à perfeição para o vicejar
dos consolos irracionalistas e o readvento triunfante do neoliberalismo.
O que fica perdido, quando a obra marxiana é tomada de modo cientificista, seja reduzida a uma disciplina qualquer
(economia, história, política), ou à mera reflexão gnoseológica (lógica, epistemologia, teoria do conhecimento). ou ainda à
simples ideação da prática política, - é justamente o centro nervoso e estruturador da reflexão marxiana: o complexo de
complexos constituído pela problemática da autoconstrução do homem, ou, sumariamente, o devir homem do homem; a
questão ontológico-prática que funda, transpassa e configura o objetivo último e permanente de toda a sua elaboração teórica
e de toda a sua preocupação prática, na ampla variedade em que esta se manifesta. Ou seja, o ser e o destino do homem, que
abstrata e muitas vezes mesquinhamente atravessa a história recente da filosofia, não é para Marx meramente aquilo que a
pobreza de uso acabou por conferir ao termo humanismo; não é um glacê sobre o ôco, mas a questão prátic0-teórica por
excelência, o problema permanente e constante, que não desaparece nem pode ser suprimido. Desafio prático-teórico que não
perece, nem mesmo quando (e, por certo, nesta hora menos do que nunca) a morte do homem, a estagnação e/ou a regressão do
padrão de humanidade, correspondente a uma falsidade socialmente necessária, tal como se verifica no universo do capital
superproduzido e também no âmbito do pseudo-socialismo e de sua crise.
Numa paráfrase à formulação de Marx, a de que o homem é aquilo que produz e como o produz, vale dizer da
imortalidade de Marx que ela é o resumo da produção e do modo ele produziu a sua teoria sobre a problemática imperecível
da autoconstrução do homem. Razão pela qual é um autor, e não somente porque a ele são devidas as mais preciosas
determinações sobre o sistema do capital, que integram em definitivo o patrimônio universal da cultura, ou ainda porque, a
partir delas, pode nascer a inspiração lúcida para o ato político que as cancela.
A obra marxiana é imortal, a não ser que as possibilidades do homem já estejam definitivamente extintas. Do
contrário, se resta alguma esperança - e resta - há que compreender que a guerra marxiana ao capital é a luta irrenunciável pelo
homem.
O resto - todas as perfídias cogitadas sobre os graus da pretensa morte de Marx - é enfermidade espiritual: necrofilia
filosófica ou ferocidade assassina, não importa o índice de sofisticação ou o nível de rusticidade com que a mortalha seja
tecida. Fúria homicida que redunda, é óbvio, em suicídio estúpido, que traz à lembrança antigo mote leniniano, aquele que
adverte para a alma viciosa da burguesia, que a levaria a vender a própria corda com que seria enforcada. Na atual subsunção
explícita da produção de idéias à forma geral da mercadoria, é imperioso denunciar - com ânimo bom e generoso - que a
intelectualidade vem intensificando a fabricação de idéias com que ela própria se trucida sem glória (o que não significa sem
alguma fama certa pecúnia e pequena mordomia). Em suma, discussões infames como as da morte total ou parcial de Marx
são evidências da inutilidade humnana da atividade intelectual como ferramenta da moda, especialmente quando moda
competente, usina produtora de vezos para uso e abuso dos poderosos.
O neoliberalismo, em toda gama possível de tons e nuances, de variantes e estilos, tem a força da última moda. É
enquanto espírito geral, que perpassa o elenco de todas as posturas, que tem de ser tomado e entendido, pois é como estado
anímico que se afirma com mais força e verdade, do que enquanto simples receituário econômico, que o próprio
desenvolvimento monopólico da acumulação capitalista deixou para trás e converteu em alegoria.
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Alegoria da liberdade - econômica e política, alusão abstrata à “sociabilidade perfeita”, baseada na clausura das
individualidades e nas suas recíprocas contraposições, entendidas estas como artífices naturais do ardil da razão pela afirmação
do egoísmo.
Por mais que não se queira ou possa identificar linearmente, liberalismo com democracia, por mais que se procure
reservar o primeiro para o âmbito da vida privada e o segundo para o da vida pública, é impossível dissolver o nexo
fundamental entre ambos, que se revela precisamente pela clivagem entre o público eo privado, em conseqüência da qual
liberalismo e democracia são formas particulares de liberdade - a primeira a vigir no interior da vida privada e a segunda nas
fronteiras da vida pública. Formas organicamente articuladas e complementares de liberdades diversas, ou seja, o liberalismo
democrático é uma unidade do diverso, e só enquanto tal se afirma como existência efetiva, não importando que na gênese
histórica que a concretiza os vetores que a integram tenham seguido a tendência do desenvolvimento desigual e combinado. E
enquanto diversidade unificada admite, em suas atualização, em suas sínteses reais, composições muito distintas, na integração
de seus dois componentes em tensão contraditória. Feixe de unidade, diversidade e contradição, no entanto, que não pode ser
simplesmente dissolvido de modo proudhoniano - retenção da positividade das liberdades públicas e eliminação também sumária
das negatividades da liberdade privada. Em outros termos, carece de sentido real - prático e teórico - a não ser para efeito de
exercícios similares ao sub-hegelianismo proudhoniano, ou de cirandas manipulatórias ainda mais baratas, reter e exaltar a
democracia ao mesmo tempo que se recusa e execra o liberalismo. Ambos expressam um certa universalidade, ou seja, uma
dada forma de ser-precisamente-assim da liberdade e da concepção que a ela corresponde: a liberdade como exercitação do
egoísmo racional, o que significa ter por estabelecido que - o homem é objeto para o próprio homem.
A expressão mais alta e radical dessa liberdade, que tem por suposto o egoísmo racional como essência da
sociabilidade, foi a Constituição francesa de 1793, que data a assim chamada democracia burguesa. Seu fio condutor, o
princípio que a norteia é a divisão do homem em duas partes: o cidadão da vida pública e o burguês da vida privada; ao primeiro
é conferida a graça dos direitos públicos universais, ao segundo o direito à consubstanciação de interesses econômicos
particulares e desiguais. Sob a designação expressa de direitos do cidadão e direitos do homem, o conteúdo dos primeiros é a
participação na comunidade, especialmente a participação na sociedade política, no estado; enquanto que os últimos são os direitos do
membro da sociedade civil, isto é, do homem circunscrito ao egoísmo, do homem separado do homem, atalhado da
comunidade dos homens. No primeiro caso, abstratamente iguais, os indivíduos são abstratamente incluídos na comunidade
abstrata; no segundo, concretamente desiguais, são concretamente excluídos da comunidade concreta. Ademais, as duas
ordens de diretos não são paralelas entre si; ao contrário, são postas em rigorosa interseção; cruzamento fundamental que, tal
como Marx escreve em A Questão Judaica, rebaixa “a cidadania, a comunidades política a simples meio para a preservação dos
chamados direitos humanos”, ou seja, “o citoyen é declarado servo do homem egoísta”. pois, “nenhum dos supostos direitos
humanos vai além do homem egoísta, do homem como membro da sociedade civil, quer dizer, enquanto indivíduo separado
da comunidade, confinado a si próprio, a seu interesse privado e ao seu capricho pessoal”. Razão pela qual a liberdade é
negativamente determinada, tal como a consagra a Art. 6 da Constituição de 1793: “A liberdade é o poder que o homem tem
de fazer tudo o que não prejudique os direitos dos outros”. Ou seja, a liberdade é meramente um limite, ou a configuração das
estacas de uma linha divisória: “Trata-se da liberdade do homem enquanto mônada isolada, retirado para o interior de si mesmo”. Mônada cuja
substancialidade é a pobreza de seu egoísmo. Liberdade para a qual o outro homem é fronteira ou interdição, cuja presença meramente
retraça, sob forma diáfana ou jurídica, a silhueta anêmica da razão de mercado. Praça das trocas que é o altar axiológico de toda
a religiosidade neoliberal, diante do qual fazem genuflexão os homúnculos limitados às próprias escamas.
Religião, além do mais, simplesmente reenvernizada, reposição informatizada de uma culto arcaico e eletronicamente
difundido, pois, “Os membros do Estado político são religiosos pelo dualismo entre a vida individual e a vida genérica, entre a
vida da sociedade civil e a vida política. São religiosos no sentido de que o homem trata a vida política, que é estranha a sua
individualidade real, como se fosse a sua verdadeira vida; religiosos na medida em que a religião, aqui, é o espírito da sociedade
civil, a expressão do abismo que separa e distancia o homem do homem. A democracia política é cristã, uma vez que nela o
homem, cada homem, e não só um homem, se afirma como um ser soberano, um ser supremo; mas é o homem sob seu aspecto
inculto e insocial, o homem na sua existência contingente, o homem tal qual é, ser corrompido por toda a organização de
nossa sociedade, perdido para si mesmo, alienado, sujeito à tirania das condições e elementos inumanos, numa palavra - o
homem que não é ainda um ser genérico real. A quimera, o sonho, o postulado do cristianismo: a soberania do homem, mas
do homem como ser estranho, como ser diferente do homem real, tudo isso é, na democracia, realidade sensível, presença
máxima profana”.
Isto porque, e não é preciso ir além de A Questão Judaica para o saber, “O Estado político acabado é, por essência, a
vida genérica do homem em oposição a sua vida material. Todos os pressupostos da vida da egoísta continuam a existir na sociedade
civil, fora da esfera política, como atributos da sociedade civil. Onde o Estado político alcançou pleno desenvolvimento, o
homem leva, não só no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla vida - celeste e terrestre. Vive na
comunidade política onde se afirma como um ser comunitário, e na sociedade civil onde age como homem privado, considerando os
outros homens como meios, degrada a si mesmo ao nível de meio e se torna o joguete de poderes estranhos. O Estado
político comporta-se em relação à sociedade civil de maneira tão espiritual como o céu em relação à terra. Encontra-se face a
ela na mesma oposição, vence-a da mesma maneira que a religião supera a estreiteza do mundo profano; ou seja, é
constrangido sempre a reconhecê-la de novo, de a recuperar e de se deixar dominar por ela. Na sua realidade mais imediata, na
sociedade civil, o homem é um ser profano. É justamente aqui, onde a si mesmo e aos outros como indivíduo real,surge como
figura carente de verdade. Em contrapartida, no Estado, onde é considerado como um ser genérico, o homem é o membro
imaginário de uma soberania imaginária, despojado de sua vida real de indivíduo e dotado de uma universalidade irreal”.
Só através de uma analítica desse caráter, isto é, do tratamento ontológico da política e de seu resultado - a determinação
negativa da politicidade - é que se torna possível, então, e na mesma ordem de procedimento, reconhecer a importância da
102
política em sua efetiva especificidade e limites, ou nas palavras ainda de Marx: “Por certo, a emancipação política constitui um
grande progresso; não é todavia a forma final da emancipação humana em geral, mas é a forma final alcançada pela
emancipação humana no interior do mundo tal como existe até agora. Entenda-se bem, falamos aqui da emancipação real
prática”.
De fato, é preciso bem compreender, o que não aconteceu até hoje, a liberdade política, em sua importância própria, é
apenas uma forma do processo geral de libertação humana, não a forma final desta, mas somente a última forma de liberdade
alcançada, a forma própria de liberdade de um dado mundo, o universo do capital. Trata-se da liberdade limitada de base limitada.
A construção da liberdade prossegue, portanto, só e somente só para além do capital e sob forma não política. A emancipação
do homem, a construção humana do homem exige, pois, a ultrapassagem do capital e da política. A humanidade social ou a
sociedade humana é a sociabilidade livre do capital e da política. A emancipação humana é a regência humana do homem, ou seja,
o homem desvencilhado da sociedade civil - pletora das mônadas vergadas sobre si mesmas, o espaço da exclusão da
comunidade, e desvencilhado também necessariamente da sociedade política - perímetro da comunidade abstrata. A
emancipação humana tem por lugar de edificação infinita - a comunidade concreta dos homens concretos, ou seja, dos
homens efetiva e universalmente sociais, dos homens que se tornam homens através da única maneira de que são capazes -
pela interatividade que os instaura e faz com que individualidade e sociedade sejam pólos de um mesmo ser.
Nesta parametração - e só nela - é que se põe a questão e o norte da liberdade na transição socialista. O que
transfigura por completo a mal chamada e pior entendida questão democrática.
A democracia, não por constituir a forma de liberdade originária da sociabilidade do capital, mas por ser a forma
acabada da liberdade limitada, tem de ficar para trás, quando se trata de ampliar ou expandir, de dar prosseguimento à edificação
da própria liberdade. Tem de ser ultrapassada como desobstrução da rota que conduz a níveis mais elevados e elaborados de
liberdade ou emancipação. Caminho que não é, nem pode ser, a dilatação da liberdade política, uma vez que esta - a
democracia - é a sua forma final; ou seja, não há politicamente, um para além da democracia, ao mesmo tempo que ela é uma
figura que estaciona no aquém da forma “final” da liberdade. Ou seja, é uma forma particular de liberdade, homóloga à
particularidade do modo de produção do capital, e, enquanto tais, formas transitórias de produção e liberdade. A questão, por
conseguinte, não se delucida pelo aumento impossível da quantidade de liberdade política, mas somente se resolve no terreno
de uma nova qualidade de liberdade, em um salto de padrão em matéria de liberdade.
Determinado que liberdade política restrita em âmbito abstrato, o desafio que se estabelece, em realidade, é o da
progressão no sentido da liberdade irrestrita (o que não significa indeterminada ou absoluta) em âmbito concreto. Isto é, não
mais a simples liberdade política, mas a complexa liberdade social. Em outros termos, se a democracia propicia a liberdade
cifrada no direito genérico irreal de participação na comunidade ilusória, trata-se de passar para o universo da livre
participação efetiva na comunidade real dos homens concretos. O que não quer dizer o mero deslocamento da liberdade da
sociedade política para a liberdade da sociedade civil, pois a liberdade nesta já está plenamente assegurada na forma de
iliberdade da comunidade da não-comunidade, onde “o direito humano à liberdade não é fundado na união do homem com o
homem, mas pelo contrário, na separação do homem em relação ao homem. A liberdade é o direito a esta dissociação, o direito
do indivíduo limitado, fechado em si mesmo”, ou seja, trata-se da “sociedade civil que faz com que cada homem encontre nos
outros homens não a realização, mas o limite de sua própria liberdade”. A elevação do patamar qualitativo de liberdade implica,
portanto, o movimento de superação da própria sociedade civil pelo estabelecimento da efetiva comunidade dos homens, o
universo real da interatividade dos homens ativos, porque “Somente quando o homem individual, real recupera em si mesmo
o cidadão abstrato e se converte como homem individual em ser genérico na sua vida empírica, no seu trabalho individual e nas
suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas próprias forças como forças sociais e
quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então a emancipação humana se
realiza”.
Essas configurações, estampadas em A Questão Judaica, bem como outras anteriormente citadas dos Grundrisse, são
eixos fundamentais da reflexão política marxiana e aparecem, sem descanso ou contraste, ao longo de muitos de seus escritos,
da juventude à maturidade, como entre outros, para ilustrar com dois textos bem afastados entre si no tempo, As Glosas
Críticas de 1844, escritas contra A. Ruge e os trabalhos Preparatórios para A Guerra Civil na França de 1871.
Aqui, particularmente neste segmento, com o auxílio dessas determinações foram sinalizados os contornos do
objetivo central de uma efetiva transição socialista, para a qual a posse e o exercício do poder de estado, em sua importância
real, tem caráter apenas mediador, razão pela qual não afetam o âmago do tema em exame e dispensam qualquer atenção. Até
porque a essência do problema é a própria superação da política.
O que é decisivo, isto sim, ao inverso do que tradicional e sistematicamente tem sido feito com alguma sutileza ou
com toda impropriedade, é delinear, fora e para além do terreno político, a verdadeira questão em jogo: a liberdade para além
do capital como emancipação humana real, prática.
A crítica, tanto de adeptos como de inimigos do socialismo, e também a dos céticos e desiludidos que renunciaram à
luta pela emancipação do homem, incide e coincide nos estreitos limites das fórmulas que versam sobre a falta inerente,
pretenso vício originário, ou a necessidade admitida, após os descalabros históricos, de injetar democracia no socialismo. Em
última análise, reduzindo a questão da liberdade - complexa e multiforme, com a qual se confunde a própria história da
autoconstrução do homem, - à democracia, simples conjunto das franquias públicas, momento apenas de um percurso muito
mais rico e decisivo, seja por fé antimarxista na política, seja por descrença também antimarxista no homem, ambas, diga-se de
passagem, medidas muito precisas da mesquinhez de vistas que caracteriza a redução, tal crítica, em suma, se esgota na
propositura do aperfeiçoamento do estado e da vida política em geral.
Em verdade, encarna o abandono da questão crucial da liberdade, pois, do prisma politicista em que é posta, toda a
teoria e toda a prática se resumem em melhorar e multiplicar formas de organização, representação e procedimento, de modo
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que os laços da cidadania, isto é, da individualidade desencarnada com a comunidade ilusória sejam o mais perfeitamente
estabelecidos. Não entra em consideração e é mesmo escamoteada a abstratividade de toda essa “perfeição”, nem muito
menos é ponderado, o que é ainda mais grave, que, por mais perfeita e preciável que seja, enquanto forma restrita de liberdade,
a malha das liberdades públicas e seu correto funcionamento, o indivíduo humano, no interior dela e no gozo dos direitos por
ela facultados, permanece subsumido ao redutor des eu isolamento real, vergado sobre si próprio ou derrubado sobre as
próprias vísceras (o que propicia a base para toda a especulação funesta sobre o homem em derrelição), e subsumido
igualmente ao redutor de sua comunidade irreal (que reforça a concepção de que a politicidade seja uma categoria inerente ao
ser social). Dito de outra maneira: a “solução” política da liberdade, fazendo recair a ênfase sobre a relação do indivíduo com
o estado, isto é, coma comunidade abstrata, e não sobre as relações reais dos indivíduos concretos entre si, apenas se restringe
à reafirmação da insatisfatória liberdade individual que não permite aos indivíduos nem a recuperação de si, nem de sua
comunidade real. Liberdade parcial e unilateral do homem, e por isso mesmo a plena liberdade do capital - da propriedade
privada, categoria inerente à mônada que se verga sobre si mesma, e que se obriga a morrer sobre si própria em idêntico
isolamento. De modo que o estado “perfeito”, aliás impossível sob a forma de estado racional, não pode corrigir os defeitos do
capital, precisamente porque o estado é a sociedade política perfeita do capital, ou seja, a guardiã insuperável da vida e da
morte de todos as mônadas enquanto mônadas fechadas em si. Em suma, o estado e o exercício político são a prática da
comunidade ilusória em garantia e benefício da não-comunidade.
O contraste é radical e os problemas são diametralmente outros, quando se considera a emancipação humana para
além da liberdade política.
A crítica ontológica simultânea da sociedade política e da sociedade civil faz reconhecer, como fundamento concreto
de todas as formas de sociabilidade e, portanto, de todas as formas do devir homem do homem, a interatividade dos próprios
homens, ponto de partida sem pressupostos, a não ser a evidência incontornável dos próprios homens ativos.
Pelo clarão dessa decisiva determinação de ordem ontológica, a questão da liberdade não admite mais ter por centro
analítico o círculo estreito e unilateral da relação do indivíduo com o estado, ponto de partida que se desqualifica pela sua
arbitrariedade (seja estabelecido por via empirista ou especulativa), e obriga a ascender para o território concreto das relações
do homem com os outros homens, ou seja, do indivíduo com os indivíduos de seu gênero, o que simultaneamente reconhece
a natureza social da atividade humana e de seus agentes.
A interatividade social revela-se, assim, o locus real da constituição da liberdade e de todas as suas vissitudes. Universo
intensiva e extensivamente infinito, cuja produção por excelência é o próprio homem. Vale dizer, é da ação dos homens entre
si que nasce o humano e a humanidade (por mais contraditoriamente que isto se faça), e a liberdade é a possibilidade e o ato dessa
efetuação, ou seja, a atualização do ser autoconstituinte, a perpétua auto-elaboração do homem humanamente em expansão.
Portanto, processo infinito na infinitude das interações, onde cada ação só é pela ação dos outros, de modo que para
cada indivíduo os outros homens não são o limite, mas a realização de sua própria liberdade. Em outros termos, a realização da
liberdade não se dá fora ou contra a comunidade real dos homens concretos, não se efetiva na mônada auto-enclausurada,
mas, isto, sim, tem por fundamento a relação do indivíduo com seu gênero.
Relação de indivíduo a gênero que não fica restringida a um tempo e a um círculo unilateralizantes da interatividade,
como determina a comunidade abstrata da sociedade política, mas relação na plenitude de todas as atividades materiais e
espirituais do homem e na globalidade do tempo em que elas são exercitadas. Numa palavra, relação de indivíduo a gênero na
vida real, no fluir da cotidianeidade.
A recomposição da questão da liberdade, a expansão da liberdade para além das liberdades públicas, a superação da
mera liberdade política pela liberdade social, isto é, humana - põe exatamente a questão da liberdade concreta da vida
cotidiana.
Liberdade da vida cotidiana que passa a compreender a relação ativa e consciente do homem com a forma societária
que o engendra e que por ele é engendrada. Liberdade da vida cotidiana que requer muito mais do que a universalidade
abstrata da cidadania, pois exige a possibilidade da autoconstrução cotidiana do homem e de sua mundaneidade. O que
significa que pela potência onímoda da lógica do trabalho, difundia por toda a enervação da consciência, o indivíduo recupera
em si mesmo o cidadão abstrato, não mais separa de si força social sob a forma de força política, reconhece e organiza suas
próprias forças como forças sociais, de modo que se converte, por tudo isso, na vida cotidiana, no trabalho individual e nas
relações individuais, em ser genérico, em individuação atual pela potência de seu gênero. Ou seja, viver cotidianamente em
liberdade é viver em autoconstrução, em conhecimento, porque é efetivar a existência na e através da comunidade interativa
dos homens. Numa palavra, ser livre é ser socialmente humano ou, o que é o mesmo, humanamente social, como o indica a X
Tese Ad Feuerbach.
A construção da liberdade cotidiana é pedra angular da transição socialista. As experiências que intentaram a travessia
não dispunham de base material nem mesmo para fazer dela uma figura da imaginação. Agora, depois do naufrágio, ela
adquiriu a clareza de um imperativo, a não ser para aqueles que, em regressão, satisfazem sua falta de apetite emancipador com
prato feito da democracia.
Que seja bem entendido, fala-se aqui da liberdade na sociedade do capital. Mesmo porque, numa transição socialista
real, diante do processo de construção da liberdade cotidiana, a ausência de democracia estaria correspondendo à reabsorção
social das forças sociais alienadas sob a forma de força política.
A tragédia da irrealização das transições intentadas é que gerou o poder político oceânico e odioso do pós-capitalismo,
e com ele um falso problema, pois, tanto quanto é absurdo supor a existência de socialismo sem liberdade, é uma simples
contradição nos termos falar em socialismo democrático, ou seja, de um socialismo que conforma apenas com a liberdade
política, ou pior ainda que possa se regenerar através dela.
104
O estado calitoso em que se encontra a reflexão sobre o socialismo, movido pela miséria revolucionária do século XX,
articula-se às mil maravilhas com o estado anímico do neoliberalismo.
Isso porque o pensamento hoje dominante se reduz, em última análise, a uma demolição incessante, por meio de
diversas transgressões intelectuais, da fonte de todo o pensamento: o homem ativo que pela sua atividade cria e modifica as
suas categorias (é no que consiste, afinal de contas, a história). Em termos mais breves, conhecidos e desgastados: é a negação
da natureza histórica da razão. Que isto seja feito pelo reducionismo irracionalista, que recusa toda racionalidade, refluindo
para biologismos ou imaginários fantasmagóricos, ou pela redução mais higiênica da razão aos jogos anêmicos das formas e da
mera logicidade, apesar de suas diferenças nada desprezíveis, não é, todavia, fundamental, pois que em sua complementaridade
operam a destituição do homem ativo e reimplantam de modo mais torpe a hipótese central da velha cultura, qual seja a de
que o isolamento do indivíduo da sociedade é o fulcro da liberdade, não atinando sequer, depois de tudo, que do recíproco
isolamento de todos é que pode nascer o despotismo de alguns.
Ora, o isolamento deliberado do homem regido pelo capital privado, e o isolamento compulsório do homem regido
pelo capital coletivo/não-social são naturalmente postos emissores e receptores da superficialmente religiosa da teoria do
homem isolado, do mesmo modo e nos mesmos universos em que a eternidade do capital e o pseudo-socialismo são
complexos fenomênicos imediatos e, enquanto tais, aparentes, cuja propriedade mais notável é, em ambos os casos a
capacidade de velar sua essência.
O pensamento, a arte, a política, em suma, a s formas ideológicas da eternidade do capital e do pseudo-socialismo são
as reflexões de toda essa aparência, que se unificam sob o escândalo universal das filosofias da aparência, hoje engalanadas
pelo espírito neoliberal.

II - Os Impasses da via Colonial do Capitalismo


A América latina - parcela do terceiro mundo em geral - integra a periferia do sistema capitalista, hoje dominado e
desgovernado pela produção destrutiva.
América Latina, África e parte da Ásia, - na generalidade e sob muitas singularizações, das quais não podem ser
abstraídas uma infinidade de distinções qualitativas e quantitativas no traçado concreto de cada caso -, constituem o espaço
induzido da efetivação capitalista: a objetivação pela via colonial do capitalismo, que particulariza formações sociais
economicamente subordinadas, socialmente inconsistentes e desastrosas, politicamente instáveis em sua natureza autocrática e
culturalmente incapacitadas de olhar para si com os próprios olhos e traçar um horizonte para seus dilemas específicos na
universalidade dos impasses mundiais. Sob os influxos do capital metropolitano, produzem e reproduzem a miséria de sua
incontemporaneidade, armada sobre a incompletude de seu capital incompletável e, por isto, sobre a natureza invertebrada de suas
categorias sociais dominantes e, por decorrências, sobre a inorganicidade de suas categorias sociais subalternas.
Neste final de século, sobre o conjunto dos países latino-americanos, incidem as irradiações de todas as crises. A crise
interna de cada país exibe estruturalmente, enquanto componentes material, a determinante de fundo da crise estrutural do
capitalismo, e sobre cada uma dessas nações paira, como espírito maligno, demolidor de consciências, a crise total do pós-
capitalismo, que cancela, através de seus próprios malogros alternativas práticas (variantes para o intercâmbio comercial e
tecnológico) e teóricas (referenciais para a transição socialista).
O continente, depois de cerca de vinte anos de ditaduras intermitentes e ferozes, recompôs sua forma de dominação
política e ensaia mais um turno de jogo democráticos. Implante ou retomada das liberdades públicas de modo frágil, enviesado
e por vezes caricato, como quase sempre ocorreu em seus países, ao lado de uma completa irresolução de seus problemas
sociais e econômicos de fundo. De fato, do México à Argentina o território está recoberto pela atmosfera do impasse e da
falta de horizonte. Toda a região foi atirada às ditaduras pelos mesmos dilemas que agora a avassalam de maneira ainda mais
aguda e generalizada. Mudou o tamanho de economia e o tamanho dos problemas, mas a natureza das questões é a mesma. E
a pergunta fundamental continua armada pelo mesmo desafio, - como resgatar a parcela da humanidade que habita suas
fronteiras. Em sua expressão mais elementar, todavia vital e incontornável, o resgate se resume simplesmente a safar do
barbarismo da fome. NO mundo reluzente do capital, o emprego da palavra fome tornou-se manifestação de mau gosto e o
generalizado conservantismo bem pensante prefere tratar de mistérios e angústias metafísicas, ou se entregar à lapidação da
perversidade do pragmatismo de ponta. Em sua expressão mais elevada, o resgate compreende a contribuição a dar, deste lugar
mal parido, à batalha universal pela desobstrução dos caminhos que permitem ideal e praticamente retornar a construção da
liberdade, ou seja, de nós mesmos.
Os países latino-americanos mais importantes exibem perfis estruturais muito semelhantes em suas crises, Basta
pensar em dívida externa, ou seja, desequilíbrio radical das relações internacionais; índices inflacionários explosivos, isto é,
valorização improdutiva do capital levada ao paroxismo; privatização do estado, vale dizer, instrumentalização estrutural do
poder político pelo capital atrófico em seu benefício exclusivo; superexploração da força de trabalho, numa palavra,
determinação de seu valor muito abaixo do limite histórico ou social configurado nos países centrais, e mantido, em grande escala,
abaixo de seu próprio limite mínimo ou físico; incapacidade privada e pública de projetar e dar consecução a um itinerário de
desenvolvimento auto-sustentado; e outras tantas características que não carece enumerar. Importa, sim, deixar bem grifado
que, na origem e na resultante e envolvendo todo esse quadro desalentador, estão as estruturas de conexão e subordinação ao
capital metropolitano superproduzido que, em sua própria crise estrutural, expressa na forma de produção destrutiva, não
pode dispensar o espaço latino-americano para as aventuras compulsórias do capital financeiro internacional que, recordado
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seja de passagem, se apresenta em unidade solidária, mas não isenta de tensões e disputas intestinais, tendo por centro a crise
do dólar, desde meados da década de sessenta, e o aparecimento de capitais não acomodados, ainda que cúmplices das
tropelias da atuação econômica norte-americana. Em suma, a malha complexa e atual do que com toda a propriedade e
correção os antigos chamavam de imperialismo.
Complexão latino-americana, tantas vezes denunciada em sua miserabilidade material e espiritual, que especialmente
sob o influxo do neoliberalismo, expressão ideológica em particular das arremetidas do capital financeiro em acumulação
galopante, passou a ser tematizada, em clara regressão teórica e ideológica, pelo vetusto diapasão que patrocina a pobreza
analítica resumida à contraposição entre o arcaico e o moderno.
Em torno desse contraste abstrato e rombudo, verdadeira abstração irrazoável na acepção marxiana, é que se verifica
atualmente, no terceiro mundo, a dissociação entre realidade e pensamento.
É sabido que a mundialização do capital subsume formações sociais distintas e engendra desenvolvimentos desiguais e
combinados. A universalização capitalista, não sendo uma expansão uniforme de lava homogênea, mas a irradiação da lógica
substantiva de um modo de produzir, compreende um bom número de variações e índices de efetivação. Com ela não se
processa, a não ser formalmente, é óbvio, uma igualização internacional, mas a constituição de uma cadeia de leos muito
desiguais, cuja dinâmica constitutiva, grau de configuração, capacidade de auto-sustentação e potência reprodutiva são
profundamente distintos. Diversidade necessária pela própria legalidade do capital, uma vez que a expansão em tela é uma
forma de reprodução ampliada de certos capitais circunscritos, que ultrapassam seus limites à procura de circunscrições mais
alargadas, para efeito de suas exercitações. Movimento, pois, que requer campos receptivos ou que sejam configuráveis como
tais, portanto, diversos dos primeiros, embora com estes obrigatoriamente articuláveis. Em síntese, espaços característicos da
universalidade do capital, porém diferentes e hierarquicamente dispostos, sem o que a conexão entre eles não atenderia a
finalidade que os combina.
O que importa ressaltar, nesta sumária colocação do processo, é que pela via colonial da objetivação do capitalismo o
receptor tem de ser reproduzido sempre enquanto receptor, ou seja, em nível hierárquico inferior da escala global de
desenvolvimento. Em outras palavras, pelo estatuto de seu arcabouço e pelos imperativos imanentes de sua subordinação, tais
formações do capital nunca integralizam a figura própria do capital, isto é, são capitais estruturalmente incompletos e
incompletáveis. Pelo que são e vão sendo, em todo fluxo de sua ascensão, ponto a ponto, reiteram a condição de subalternidade
do “arcaico”, para a qual todo estágio de “modernização” alcançada é imediatamente reafirmação de sua
incontemporaneidade. O receptor é assim a desatualidade permanente, o “arcaico” é a condição de existência do receptor. Por
consequência, a passagem deste ao moderno só pode ser dada pela ruptura da subordinação; se esta é impossível, a modernização
efetiva é igualmente impossível. Donde, tal como hoje é formulada, a contraposição abstrata entre o arcaico e o moderno e a
pregação da modernização sem ruptura é meramente a reciclagem do arcaico, o reajustamento da desatualidade, sem o qual a formação
receptora fica imprópria para a exercitação do capital dominante, é até mesmo a simples sustentação do espaço capitalista
subalterno fica comprometida em sua estagnação.
A fórmula, que polariza entre o arcaico e o moderno e tem por chave resolutiva a modernização, é versão abrandada e
desfigurante do equivoco teórico e político mais cleho que oferecia a propositura do capitalismo nacional autônomo. Ambos
têm por centro propulsor o objetivo de patrocinar o acabamento do capital atrófico; o que os distingue é a figura pretendida do
capital concluso.
O projeto do Capitalismo nacional supunha, em última análise, a reprodução do padrão integral do capital
desenvolvido, autonomizado pela ruptura com o capital metropolitano, de modo que seria alcançado o traçado clássico do
sistema do capital, abstraídas distinções quantitativas, o que sugere um inverossímil sistema capitalista internacional formado
pela justaposição de parcelas similares. A teoria da modernização, por sua vez, tem como impossível a autonomização do
capital local, porém, omitindo por inteiro a problemática das diferenças essenciais entre a completude do capital subordinante
e a incompletude do capital subordinado, projeta o acabamento do capital atrófico em termos de vontade política e competência
tecnológica e administrativa, em sua plena integração ao sistema internacional. Em outras palavras, as duas posições
perseguem a completude do capital, a primeira contra, a segunda através do capital metropolitano. A primeira sucumbe à utopia
da automatização, a segunda ignora acriticamente o caráter desigual e combinado do desenvolvimento, que leva cada processo
de integralização do capital atrófico a reproduzir, em novo grau, sua incompletude. De sorte que, ao sonho arcaico do
capitalismo autônomo, consciente ao menos do lugar da batalha, corresponde a moderna quimera desgraciosa de civilizar o
imperialismo, de humanizar o capital em meio à produção destrutiva, isto é, no estágio em que definitivamente se desvencilhou
dos constrangimentos do consumo genuinamente humano.
Ademais, convém agregar, por arcaico é tomado generalizadamente tudo que, de algum modo, é restritivo ao universo
contemporâneo da acumulação do capital; por moderno, tudo que dá consecução e engalana a referida acumulação. Já que para
a pequenina inteligência neoricardiana, que costura a plataforma da modernização, basta repetir com o mestre que é da
essência do capital a superação das barreiras que se levantam à sua produção, palavras que são erigidas em base de apoio para
as formulações arquiconservadoras relativas à perenização do capital.
É quanto basta para medir o valor e as possibilidades da teoria e da plataforma política da modernização, de sorte que
a dissociação entre realidade e pensamento que nela se verifica é ainda mais aguda e desorientadora do que aquela outra que
nutria o engano do capitalismo nacional autônomo.
Redunda desse panorama que mais uma vez a teorização latinoamericana se entregou à fabricação de mitos; - é nisso
que se tem resumido o pensamento dominante do continente, seja este de origem conservadora ou de procedência dita
progressista. Em verdade, o fazer teórico dessa parte do mundo é marcado por uma profunda descontinuidade - todos a
propósito de tudo são compelidos a estar sempre recomeçando - e nele, com raras exceções, há sempre um certo sabor
epifenomênico, pois a reflexão não é edificada sobre a malha peculiar da vida societária real. Motivo pelo qual malogra ou
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como cosmopolitismo abstrato, envolvido na pseudo-universalidade das tendências da moda, ou como provicianismo estreito,
submergido no sub-solo dos regionalismos particularistas.
Perfil de consciência tanto mais lastimável uma vez considerado que a ideação em toda parte despencou, como já foi
indicado, para esferas inauditas da produção do falso. Lástima potencializada porque, de imediato, não dispõe de recursos para
compensar o vazio cavado pelo retrocesso da ideologia e da cientificidade que vai pelo mundo. Caso contrário, não só ela se
beneficiaria de maior lucidez, como poderia, talvez, escorar o deslizamento, reduzir ao menos a velocidade com que declina o
pensamento em todos os quadrantes civilizados. Mas, é sob a condição desse duplo desfavorecimento, - influxo dos vetores
internos e externos da ideação -, que o continente terá que reagir aos desafios irremovíveis que brotam de sua realidade. A
premência, a necessidade vital de vir a conhecer a si mesma e de se projetar para além dos estrangulamentos, gera a
possibilidade, nunca anteriormente tão efetiva, da reflexão latino-americana vir a reconhecer a orfandade intelectual em que se
encontra e através dela enveredar pelo caminho da dissipação de seus próprios mitos doutrinários.
É tão somente uma possibilidade, todavia, uma Europa capitalista socialmente paralisada, o que não desconsidera a
riqueza de seu desenvolvimento, nem de seu padrão de existência material, e intelectualmente regressiva, - tanto quanto o conjunto
dos demais países do primeiro mundo, onde pontificam os USA com os mesmos contraste - oferecem, em cada um de seus
exemplos, os motivos pelos quais os países restantes - que constituem a imensa maioria - têm de buscar por conta própria a
solução ideal e prática de seus dramas reais. Rota a partir de si na retomada imediata da universalidade posta pelos países
centrais, mas que hoje estes não são mais capazes de sustentar e desenvolver.
É mais do que apropriado lembrar aqui, por diversos motivos, as formulações de Marx que relacionam e distinguem a
história alemã da história inglesa e francesa. Para ser breve: enquanto estas realizam concretamente um novo mundo, aquela só
foi contemporânea de seu tempo no pensamento. Mas, se ingleses e franceses antes fizeram o mundo do que o pensaram e os
alemães antes o pensaram, do que o fizeram, todos eles, em âmbitos distintos e em tempos diversos, foram encarnações da
vanguarda da humanidade, os tecelões da universalidade há pouco referida, enquanto que hoje o primeiro mundo só tem por
prática de futuro a repetição inchada de presente, e por pensamento a razão da manipulação universal e a universal negação
irracionalista da universalidade, ambas renúncias perfeitamente coerentes para quem perdeu o sentido da universalidade e
desocupou de há muito o espaço da vanguarda, ou seja, que não é mais o corpo e a cabeça dos processos de ponta.
Isso põe a questão de onde estejam ou possam estar virtualmente - o corpo e a cabeça - da vanguarda da humanidade,
dos processos societários de ponta que retomem a arquitetônica da autoconstrução do homem.
O longo percurso expositivo procurou, até aqui, tornar evidente que nem o universo do capital superproduzido, nem
a esfera do pseudo-socialismo encerram tal virtualidade no presente. Em outros termos, na atualidade é inverossímil qualquer
ruptura da inamovibilidade dos países ricos e é igualmente fantasiosa, além de funesta, qualquer estimativa ou crença relativa à
gestação de socialismo a partir da miséria. De modo que o quadro dilemático que se apresenta faz transparecer que não
coincidem os lugares das rupturas possíveis com os lugares das transições socialistas viáveis. No entanto, concluir pela
inviabilização absoluta da conjugação de tais processos não seria apenas bisonhamente formal, mas preguiçosamente pueril,
uma vez que a miséria material e seus dramas explosivos existem de fato e cobrem a maior parte do planeta, e a miséria
espiritual, por outro lado, e só o cinismo pode tergiversar a respeito, cobre o planeta inteiro.
Para avançar é preciso não se deixar embair nem mesmo pelos melhores conceitos. Riquezas e miséria, termos
indicativos genéricos, quando absolutizados na universalidade abstrata, são convertidos em coágulos metafísicos excludentes,
imprestáveis para a reflexão concreta. Basta arejar quantitativamente esses termos para alcançar o perfil de uma graduação
muito mais próxima da realidade. Não se trata aqui de construir a medida da riqueza ou da miséria, mas de reconhecer que elas
têm objetivamente medida. Basta isso para compreender que o lugar da ruptura e o lugar da transição não podem coincidir
quando são lugares extremos: a miséria extremada de um lugar pode, em princípio,levar à ruptura, mas não levará jamais ao
socialismo; a riqueza extrema será, também por princípio, virtualidade socialista, mas, no quadro histórico de referência, exclui
a possibilidade de ruptura.
Combinando a exclusão de extremos com a avaliação de realidade dos países contemporâneos e ainda presente a
experiência proporcionada pelas tentativas revolucionárias do último século, é possível identificar com fundamento razoável a
existência de um número bem reduzido de países para os quais ruptura e transição socialista podem virtualmente coincidir.
A Europa, pela inamovibilidade de seus países ricos e por sua irradiação nos países circunvizinhos e também pelas
reversões em curso na área pós-capitalista. fica desde logo excluída. Na Ásia, em tese, a única possibilidade seria a Índia.
Todavia, em que pese sua industrialização e significado tecnológico em termos de recursos humanos, a grande parcela de
pobreza existente e o quadro geopolítico em que se insere não permitem manter a hipótese. Os países africanos, quase sem
exceção, configuram casos extremos, pela incipiência econômica, pela “solução” neocolonialista das lutas de libertação
nacional e por questões peculiares, muito intrincadas no plano político-cultural e étnico-religioso.
É na América Latina que, longe dos extremos, há alguns poucos países com razoável industrialização e produção
agrária consistente, índices de experiência sindical e política apreciáveis e atividade intelectual demarcada, que conjugam,
portanto, graus de riqueza e miséria que armam a tensão para a ruptura e exibem base potencial (mínima, ao menos) para dar
início a uma transição árdua e difícil, especialmente pelas implicações no terreno político internacional, mas que não estaria
compelida a repetir a trajetória aberrante do caso soviético, chinês ou cubano. E ordem alfabética e com diversidades em
vantagens e desvantagens, em prós e contras: Argentina, Brasil e México.
Há para os três a perspectiva de um itinerário não comprometido, desde logo porque partiriam de um universo real
totalmente distinto daqueles que estiveram presentes nas tentativas passadas; não seria, nem poderia ser uma retomada do
mesmo figurino, pois há entre os dois momentos a derrocada do mesmo; nem mesmo uma mera retomada ou repetição das
experiências em geral dos últimos cento e cinqüenta anos. Tudo porque é inimaginável uma revolução futura, que possa ser
concebida, preparada e efetivada, que não subentenda mudanças radicais no complexo da ideação e da prática,
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comparativamente às fórmulas vencidas. De sorte que, à guisa de alusão geral e sumária, há que pensar em: caráter ofensivo da
organização e da prática sindical e política, substitutivo da natureza defensiva que marcou tais movimentos até aqui, ou seja,
luta sindical e política centrada na perspectiva do trabalho, desenvolvimento a contradição estrutural entre capital e trabalho; o
que significa ter por arrimo ênfase teórica decisiva, de modo que a atividade prática seja decorrência rigorosa da diagnose de
realidade e das postulações formuláveis a partir dela; atividade política tomada como meio, ferramental de objetivos e atividades de caráter
social, isto é, atividade política que supera a política; ou que decorre da recuperação do valor universal da autoconstrução humana, ou seja, da
liberdade, decifrada esta e aquela em sua identidade como revolução permanente.
É evidente por tudo isso - peso adverso do momento histórico objetivo e extrema complexidade dos atos que possam
vir a refundar a revolução - que o mundo dos nossos dias não dispõe de uma vanguarda encarnada. Razão pela qual ele se
mostra como uma humanidade sem bandeiras, gênero estagnado e poluído, onde a individuação soçobra na inautenticidade.
Este o motivo superior e radical que obriga a não desprezar qualquer virtualidade de reencarnação, por mais débil
aparentemente que seja, dos processos societários de transformação.
Desse prisma, a delimitação dos espaços potenciais, alcançada em relação à América Latina, não pode mais ser perdida
de vista; ao contrário, passa necessariamente à condição de centro de interesse de primeira linha, que reorienta a esperança, a
inteligência e a atividade.
É preciso deixar muito bem ressaltado que a virtualidade dos três países só foi afirmada enquanto potência objetiva,
tanto no que tange à ruptura, quando à transição para além do capital, ao mesmo tempo que foi estabelecida a inexistência de
paralelo no campo ideativo. Ou no jargão consagrado: a possibilidade existente é relativa às condições objetivas, ao passo que
são infirmadas as condições subjetivas.
O grande desafio se põe precisamente aí e sob a dupla feição já consignada: a debilidade intrínseca da formação
subjetiva do continente e as novas demandas postas nessa esfera pela exigência de transfiguração cabal das fórmulas antigas de
procedimento.
Contudo, a criação da nova subjetividade revolucionária, ou seja, a recomposição ideal da vanguarda humana pelo
reencontro de sua universalidade própria a partir de condições que a negam com radicalidade, não é uma contradição
desconhecida. Ao inverso, constitui marxianamente a própria condição de possibilidade de sua efetuação: é precisamente a
exclusão da comunidade dos homens, a perda do homem enquanto homem que se faz por si mesmo, que constitui o motor da
revolução universal.
Que seja uma empresa árdua e longa ao extremo é o chamado óbvio ululante, tanto mais que hoje e no futuro
próximo essa dificuldade monumental compreende a literalidade incontornável do recomeço. Todavia, o esforço ingente
requerido é proporcional à grandeza do próprio objetivo, além de ser, o que exclui qualquer outra consideração, o único meio
possível e conhecido para dar início à construção da liberdade.
A constituição da nova subjetividade revolucionária, desenhada como exigência de alguns lugares latino-americanos,
não é abertura de perspectivas somente para esse reduzido número de países, mas se irradia para o conjunto do continente. E,
dada a importância deste e em particular dos países identificados pela sua virtualidade especial, há de ser compreendido que,
em verdade, não se trata de modo nenhum projeto restrito, nem muito menos particularista, mas de algo repercute e envolve a
esfera internacional. Ou seja, é uma propositura que localiza o território de uma possibilidade e faz a indicação de sua carência
fundamental; por conseqüência, pode estabelecer a elaboração da consciência adequada como mediação fundamental e
imediatamente imperiosa, o que de pronto a remete à universalidade dos problemas e das perspectivas do conjunto da
humanidade. Em outros termos, faz a síntese entre resgate da fome e contribuir para a questão vital e insuperável, na falta da qual
nenhuma outra faz sentido, - da emancipação humana -, grosseira e cinicamente abandonada pelo conjunto dominante da
reflexão desmoralizada de nossos tempos.
O potencial localizado em alguns poucos países da América Latina não implica privilégios históricos, mas
responsabilidades ideais e reais, como também não subentende a adoção para efeito imediato da plataforma política da
transição socialista. Esta, posta necessariamente na linha do horizonte, orienta, isto sim, os rumos difíceis da superação da via
colonial da objetivação do capitalismo. É disto que se trata na imediaticidade, do processo de rompimento do capitalismo
estruturalmente induzido e subordinado. o que significa compreender a ruptura como processo complexo, que objetiva
necessariamente reorganizar o sistema de produção, sem perseguir a superação do modo de produção, mas promovendo a
desestruturação dos aspectos mais gravosos da efetivação do capital atrófico e de sua (des)ordem societária. Ruptura coma a
via colonial de desenvolvimento que, em outros textos, denominei de primeira transição, para deixar evidenciado o perfil global do
processo e a conexão de seus objetivos imediatos e remotos: a primeira transição, designação aqui reafirmada, está vinculada em
sua distinção à transição socialista, consubstancia as transformações imediatamente possíveis e abre estruturalmente para a
transição última, que projeta para além do capital. Compreender esse todo processual, como o conjunto de uma dupla transição,
supera radicalmente qualquer dos equívocos relativos à promoção da completude do capital e evita, pela raiz, toda sorte de
politicismos e as esdrúxulas justaposições do etapismo explícito ou camuflado. Em suma, a dupla transição reafirma o
socialismo ao mesmo tempo que reconhece a impossibilidade de sua realização imediata, sem conduzir ao imobilismo e sem
permitir que a afirmação socialista seja transformada em discurso melancólico da mais nobre volição ou da mais tacanha
teimosia.
Afirmação do socialismo ancorada, pois, aos dois pólos a que se obriga toda análise que não se restringe, nem aos
vagos enunciados de princípios, nem à mera defesa de passos táticos imediatistas. Sustentação, portanto, que articula as razões
de longo curso, os motivos fundamentais que sintetizam e impulsionam o - de onde para onde - do homem em construção, com
as demandas prementes, à flor da cotidianeidade, que exigem, não que se faça simplesmente alguma coisa, mas a coisa certa, a um
tempo resolutiva para o momento vivido e abertura ou passo real o andamento do processo globalizante.
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Em poucas palavras conclusivas: tanto o capitalismo quanto o pseudo-socialismo são a demonstração historicamente
realizada de que o capital, sob qualquer de suas formas, é incapaz de solucionar - para o conjunto dos homens existentes - os
problemas de subsistência material, e constitui, de outra parte, o inimigo mortal a ser eliminado,, se não se abandona ou
renuncia à empresa humana e com ela a todo e qualquer sentido de vida autêntica.
Em suma, trata-se de não tergiversar: já é sabido onde se chega com o capital no habitat do mercado, e também com o capital
desprovido de mercado; o que permanece desconhecida é a experiência de uma vida societária sem capital e sem mercado. E dessa
descoberta não se pode abrir mão.

III - O Caso Brasileiro na Encruzilhada da Sucessão


A via colonial do capitalismo, em uma de suas determinações mais gerais, significa o estabelecimento da existência societária do
capital sem interveniência de processo revolucionário constituinte. Por si só esta característica da história brasileira é
responsável por traços fundamentais do modo de ser e de se mover da formação nacional.Para efeito de contraste, basta recordar
que só a revolução burguesa configurou a fisionomia definitiva e consumada tanto da França como da Inglaterra. Que certa
historiografia recente esteja se contorcendo para dizer o contrário, não muda em nada o curso do passado e só confirma a
acentuada involução da maior parte do trabalho intelectual contemporâneo.
Sem revolução burguesa, o Brasil vem a ser a herança de uma unidade territorial e lingüística constituída na subsunção
formal ao capital, através de uma sociedade escravista. Herança, por conseqüência, de uma forma desagregada, sem dimensão
de sociabilidade nacional, identidade econômica ou cultural, a não ser a ficção da autonomia política.
O que possa ser chamado de identidade econômica vem sendo configurado pela dinâmica de fôlego restrito dos agentes
internos - privados e públicos - combinada com a impulsão externa, sempre retora, através dos processos de universalização
do capital, o que confere ao país papel subalterno, periodicamente modernizado em sua subordinação estrutural. Assim, a
nação é intermitentemente cosmopolita, sem nunca ter deixado de ser provinciana, e os brasileiros internacionais, sem nunca
sido nacionais.
O decisivo é que a falta de identidade, sob seus distintos aspectos, não é uma questão superficial de personalidade ou
cultura, mas de forma de vida e, raiz, um problema que avassala o nível elementar da própria subsistência física dos indivíduos
que integram o país.
Não há como escapar da questão de que a identidade nacional é muito mais do que uma espécie de conjunto de traços e
características peculiares, e que, apesar do índice atual de internacionalização ou mundialização do capital, continua sendo uma
demarcação incontrolável, pois, no que importa e é decisivo, é no seu perímetro que se põe a equação relativa à produção e
reprodução das categorias sociais que a integram. A nação continua sendo, no planeta real, uma sorte de “município
soberano”, onde, de fato, se vive e come, ou mais precisamente - onde na imediaticidade é decidido quem vive e come, material
e espiritualmente, e de que maneira.
Interessa destacar que essa decisão estruturalmente diz respeito, em suma, à relação entre evolução nacional e progresso social e
que ela é muito diversificada no interior da universalidade do capital. Retomando os exemplos da história da França e da
Inglaterra, contata-se que ambos se apóiam e estimulam mutuamente, em contraste com o que se passou na Alemanha, onde a
evolução nacional se afirmava contra o progresso social. A contraposição, sob as condições de existências geradas pela via
colonial, é ainda mais perversa, porque a evolução nacional é reflexa, desprovida verdadeiramente de um centro organizador
próprio, dada a incompletude de classe do capital, do qual não emana nem pode emanar um projeto de integração nacional de
suas categorias sociais, a não ser sob a forma direta da própria excludência do progresso social, até mesmo pela nulificação
social de vastos contingentes populacionais.
Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a malha societária que aglutine
organicamente seus habitantes, pela mediação articulada das classes e segmentos, o quadro brasileiro da dominação
proprietária é completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder político. Pelo caráter, dinâmica e
perspectiva do capital atrófico e de sua (des)ordem social e política, a reiteração da excludência entre evolução nacional e
progresso social é sua única lógica, bem como, em verdade, há muito de eufemismo no que concerne à assim designada
evolução nacional.
Em síntese, à via colonial de efetivação do capitalismo é inerente o estrangulamento da potência auto-reprodutiva do
capital, a limitação acentuada da sua capacidade de reordenação social, e a redução drástica da sua força civilizatória. Desse
modo, ao mesmo tempo que encobrem por inacabismo, seus processos empuxam, pela via da irresolução crônica das questões mais
elementares, a contradição estrutural entre o capital e o trabalho. Ou seja, na mazela do capital atrófico, a sua falta de
perspectivas corresponde a abertura de possibilidades da perspectiva do trabalho. Enquanto a lógica do capital subordinado
simplesmente reitera a atrofia renovada, a lógica do trabalho perfila a virtualidade da superação do impasse. Conclusivamente,
a ruptura da via colonial não é uma empresa do capital, mas do trabalho, mesmo quando não se trata ainda da inflexão que
supera o universo do capital, como é o momento do caso brasileiro. A desconsideração desse complexo determinativo tem
condenado ao fracasso teórico e prático o conjunto das tentativas políticas que de algum modo pretendem representar uma
posição de esquerda.
A poucas semanas da eleição, a campanha sucessória em marcha repete, lamentavelmente, essa verdade.
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1 - Sucessão: O Curso Político da Autocracia Burguesa

Com o pleito de 15 de novembro, a chamada transição democrática estará realizada. Dali até a posse, no curso de poucos meses,
abstração feita dos preparativos do novo esquema de poder, rigorosamente do ponto de vista formal, será apenas um tempo
convencional de espera. não vem ao caso que muita coisa fluirá, sempre que compatível com o início aguardado do novo
governo. Qualquer coisa de outra natureza, que não leve à cerimônia da posse, ou a efetive com traços distintos dos
constitucionalmente prescritos, é a deflagração de um golpe, a violação da ordem estabelecida pela Constituição proclamada
em outubro de 88, por via de cujos dispositivos o próprio pleito se dará. Portanto, como nada mais, é óbvio, pode impedir
que ele seja celebrado, a transição praticamente chegou ao fim.
O crucial, todavia, não está nessa simples constatação, mas na determinação precisa da caminhada - de onde se veio e
a que ponto se chegou.
Nesse sentido e de forma sumária, vale recordar que o golpe de 64 foi, ao menos como clima ou pretexto, isto é,
enquanto justificativa ideológica de seus agentes e aproveitadores, um golpe na esquerda, ou mais precisamente no processo de
mudanças que forcejava por se impor à época. No pólo de chegada, o mais notável é que a ultrapassagem da ditadura e de seu
apêndice, a assim alcunhada Nova República, que compreende a dita transição, não fez retornar a um cenário de mudanças.
De um extremo ao outro muita coisa foi alterada, a mais extraordinária das quais é o desaparecimento em geral da reflexão e
do empenho pelas transformações, enquanto centro estruturador da atividade social e política. Tanto mais significativo isso se
mostra, sempre que a justo título se considera que a transição deixou intacta a estrutura econômica montada pela ditadura e
suas pavorosas conseqüências sociais. Quadro geral que não precisa ser descrito, pois não é outro senão o da própria crise de
mil pontas que assoberba o país de cima a baixo, que todos dizem reconhecer, apesar dos diagnósticos falaciosos através dos
quais o fazem e das receitas ainda piores que predominantemente oferecem.
Em verdade, não só a estrutura econômico-societária foi preservada, como também a essência da sua correlata
dominação política proprietária que caracteriza o país: o autocratismo burguês. É suficiente ilustrar o fenômeno com os
estupros perpetrados contra a novíssima Constituição tanto pelo executivo federal como pelo Congresso. O primeiro na
forma ativa das medidas provisórias, reinstituindo informalmente o decreto-lei, e o segundo na forma passiva como as acolhia, até
mesmo sob a versão aviltante de suas reedições. Será preciso, por acaso, detalhar os procedimentos relativos ao famigerado
Plano Verão - versão farsista dos aleijões dos Planos Cruzado e Bresser, ou então à provocadora Lei de Greve, ou ainda à
disciplina intencional dos congressistas, que até hoje não regulamentaram a maioria dos dispositivos fundamentais do texto
constitucional que dependem dessa medida para ter eficiência, reeditando, assim, de modo radical, o velho macete nacional de
negar ou embaraçar, através de lei ordinária ou pela sua falta, o que as constituições brasileiras contenham de mais generoso?
Sem mais delongas, mesmo porque tratei deste como de muitos outros aspectos aqui aludidos em diversos textos
anteriores, - a transição lerda, longa e limitada, foi o movimento pelo qual, assegurada a estrutura econômica vigente, a
dominação política do capital atrófico transitou des eu perfil bonapartista para a sua forma de autocracia burguesa institucionalizada,
figuras ambas do mesmo domínio antidemocrático que a tipifica. Em outras palavras, a transição consistiu na auto-reforma da
dominação política discricionária, em razão e beneficio de seu fundamento - a perversa sociedade civil do capital inconcluso e
subordinado, arremetida ao sufoco de uma grave crise de acumulação.
Crise de acumulação que já perdura há década e meia, sucessora que é do “milagre econômico” esgotado em 1973.
Desde então e sem sucesso, a sociedade civil e política dos proprietários tem vivido de expedientes e aventuras, à procura da
porta de acesso para um novo ciclo de acumulação econômica e a orgia da especulação financeira, ambos em sua desfaçatez,
bem como a trivialidade velhaca do governo Sarney, reduzido a manobras pedestres, das quais a mais bizonha foi o golpete
Sílvio Santos, constituem os elos harmônicos, no quadro atual, da impotência inerente à incompletude de classe do capital
atrófico.
Todavia, paralisada por si e pelas suas circunstâncias, a dominação proprietária guarda as reservas necessárias para
processar a sustentação do arcabouço essencial de seu poder - econômico e político. A longa e penosa transição é a evidência
mais eloqüente dessa verdade, que se conjuga com uma outra, tão importante quanto a primeira, que perfaz a determinação
global desse quadro: a reprodução das vigas fundamentais do sistema vigente se deu e vem se dando, ao longo de todo esse
extenso período, na ausência de qualquer contraposição programaticamente articulada das forças latentes que estruturalmente
a ele se opõem, uma vez que permanentemente desmobilizadas pelo politicismo dos partidos de oposição, tal qual antes já
ocorrera melancolicamente durante a assim chamada resistência democrática à ditadura.
Na folga desse enquadramento de vetores,a transição chegou a uma Constituição que, - ainda quando não sejam dela
abstraídas certas luzes -, não afeta ou altera os objetivos e os modos de afirmação do autocratismo burguês, e alcançou
também a reafirmação da fisionomia econômica plantada há um quarto de século, mesmo que hoje sob as condições de sua
máxima ineficiência, que os altos índices de inflação e miséria denunciavam com veemência. A transição não superou também
a componente militar nas equações do poder, a não ser nos limites consentidos pela auto-reforma da ditadura, mesmo porque
é intrínseco, às formações do tipo da brasileira, a incapacidade do capital de organizar por si só estatuto de seu ordenamento;
e, por fim mas não por último, não alterou em nada, apesar de algumas escaramuças, as relações desiguais que associam o país
ao sistema financeiro internacional. Ao inverso, quanto mais a crise foi se aprofundando e generalizando, por efeito da própria
lógica da associação tanto mais a transição foi generado o “entendimento” de que a saída para os impasses está no alargamento
da própria associação subordinante. Sob este aspecto, a transição completa o movimento circular pelo qual a fração da
burguesia monopólica interna e outras que ela arrasta vem mordendo a própria cauda.
É no que se resume a herança da transição e o objetivo dos que a conduziram, infelizmente com sucesso, apesar de
todos os percalços e da mediocridade governamental com que o fizeram. Aliás, a mediocridade neste caso é o meio próprio e
eficiente para a natureza do fim perseguido.
110
Assim, ao cabo de sua formação, o capital incompleto e incompletável abandona definitivamente qualquer ilusão de
autonomia se é que a teve concretamente alguma vez, e identifica modernidade com integração subordinada. De modo que seu
sonho passa a ser o estabelecimento da boa parceira, da vivência e gozo da boa cumplicidade com o titã que vem, de fora, a um
tempo mestre e senhor, o que ensina e eleva, orienta e dirige. O capital inconcluso, sôfrego em sua alma prostituta, se
transveste em noiva obsequiosa, disposta aos sacrifícios da purificação, para que o impossível himeneu seja celebrado,
inclusive com uma gota de sangue sintético.
Porém, a materialização dessa quimera perversa pela mágica do voto universal, em meio à crise aguda e À angústia
ressentida da miséria, depende rigorosamente do advento de um demiurgo.
Trata-se, desde logo, num cultural e politicamente depredado e analfabeto, de massas física e espiritualmente
exauridas, de uma tarefa para um aprendiz de feiticeiro, pois os velhos bruxos já esgotaram seus truques. Estes, a seu tempo,
retiveram a fascínio das multidões, receberam aplausos retumbantes e foram os depositários das esperanças coletivas, mas suas
largas mangas de prestidigitadores escondiam pouca coisa, apesar das muitas promessas e da vasta propaganda que fazem de
suas raras habilidades.
Para ilustrar essas miragens, é bastante atentar para a campanha eleitoral que Ulysses Guimarães vem desenvolvendo.
É o filme que já foi visto, o espetáculo aplaudido de outrora. De fato, mais do que a sua indiscutível, frustrante e inaceitável
imbricação coma mesquinhez do governo Sarney, o que sufoca a candidatura Ulysses é sua plataforma eleitoral, pois é a
bandeira vazia do já realizado - as instituições formais da democracia - e a garantia desacreditada, intrinsecamente
incompreensível porque imanentemente falsa, de que agora, por decorrência da efetivação daquela, chegou a vez de tratar da
vida. Mais uma vez, agora em seu rápido declínio e desagregação, confirma-se o que assinalei inúmeras vezes, durante os
longos anos de ascensão e apogeu do MDB/PMDB: este nunca empunhou a bandeira real de que carecem as maiorias
brasileiras, nem mesmo quando foi a voz elevada da resistência parlamentar ao bonapartismo, uma vez que sempre se tratou
de uma resistência circunscrita aos limites estreitos das formas institucionais, do estado, resistência intrinsecamente incapaz de
tratar da vida, concebida sempre, conseqüentemente, como uma mera fábula pós-democracia. Ou em termos menos prosaicos:
as lutas do MDB/PMDB sempre tiveram por base e horizonte a convicção fetichista de que as instituições, isto é, o conteúdo
e a forma do direito e do estado, constituem as forças soberanas da humanidade. Por isso Ulysses está sendo punido e
humilhado; como indivíduo de extrema dedicação à causa sofre uma enorme injustiça, como político de visão muito restrita é
tudo que merece, a reprovação irremediável, enquanto síntese que era de sua falida agremiação política, protótipo nas idéias e
na prática do politicismo militante.
Sim, o feitiço da boa cumplicidade demanda uma aprendiz de feiticeiro, mesmo porque e espetáculo tem de ser
obrigatoriamente afastado do terreno próprio da política e encenado na assim denominada esfera das condutas psico-sociais.
A performance tem de convencer a aliciar os miseráveis e os poderosos, satisfazer a fantasia dos primeiros e
conquistar a confiança dos últimos, garantir a salvação daqueles e assegurar o império da vontade destes. A tarefa contraditória
é menos complicada do que parece. A crença dos de cima tem por condição a adesão dos de abaixo, e esta pode ser
promovida, no desamparo material e espiritual da imensa maioria do eleitorado brasileiro, através das operações do marketing
político, ou seja, da prática da razão manipulatória, expressa em termos de técnicas apuradas no emprego sistemático daquilo
quem com propriedade os antigos designavam como demagogia, que eles próprios empregavam apenas intuitiva e
rusticamente.
O exercício científico da demagogia requer, no entanto, muito dinheiro e um protagonista. Da presença simultânea
desses fatores, quando capazes de se fundir, pode resultar um desfecho (in)feliz. No caso da sucessão brasileira, isto está se
dando pela convergência de uma das mais fantásticas usinas mundiais de produção de fantasias, recursos financeiros ilimitados
e de um protagonista que, por equidade, tendo em vista que no mundo contemporâneo a eficiência é o valor supremo, tem de
ser reconhecido como competente, enquanto reedição revista e ampliada de seu antecessor de trinta anos atrás, Jânio da Silva
Quadros. Mas a diferença entre ambos é um verdadeiro sortilégio da modernidade e da tecnologia, se forem comparados as
pobres caspas, caretas e capotes do primeiro com os recursos de super herói de Fernando Collor de Mello. Diferenciação,
aliás, que já provém de suas respectivos berços desiguais: enquanto o mato-grossense, ao que parece, numa conseguiu se livrar
de um certo raquitismo, o carioca residente nas Alagoas é um consumado praticamente de lutas orientais do mesmo modo que
o mais velho nunca deixou de tropeçar sobre os próprios pés, o mais moço salta muros cinematograficamente e faz desafios
em longas caminhadas debaixo de sol ardente. Em suma, enquanto Jânio só foi dar um jeito no seu estrabismo entrado em
anos, Collor é a própria encarnação da beleza e elegância cultivadas. Todavia, como já foi dito, eles têm algo em comum - a
essência, a política horrenda que praticam.
Mas esse horror político não é outra coisa do que o autêntico movimento da dominação do capital atrófico.
Compelido pela sua lógica à integração subordinada, na malha econômica do capital superproduzido, tem literalmente que embair
os excluídos. Por força estrutural age desse modo cotidianamente; de forma explícita, para escândalo de ingênuos e
equivocados, nos momentos ímpares dos embates eleitorais. Então, há que encantar a platéia desesperada, fazer-se
instrumento de sua revolta, propiciar ao eleitorado massacrado pela miséria o doce sabor da vingança: os que estão no poder
serão escorraçados, em nome dos vingadores o demiurgo será entronado, e assim renascem as esperanças. Tão simples como
isto. Tudo se passa fora do solo político, território da sordidez execrada, no exterior do qual, é óbvio, estão os sofridos, que
não assentam os pés sobre ele, nem muito menos o cultivam. Eis a renovação promovida na esfera psico-social, ou seja. a
mudança realizada no universo da imaginação. E o capital não se incomoda de consumir e trucidar seus líderes, de deglutir
seus serviçais, é para isso mesmo que eles prestam, é por isso que vestem manto e ganham coroa transitórios.
Collor, o renovador, usa mistérios da computação e músculos exercitados, Jânio dispunha apenas de uma vassoura de
piaçaba e Enéas tem somente o próprio nome de sua ingenuidade extravagante. Para efeito político eleitoral, não vem ao caso
se acreditam ou desacreditam no que fazem, interessa apenas que são renovadores impolutos a serviço da moralidade pública.
111
Os três, em seus distintos graus de honestidades, simplesmente falsificam pela raiz a esfera política, quando a reduzem a uma
questão de probidade, não importa que os dois primeiros por malícia e o último por ignorância.
Mas não basta a denúncia e o entendimento da falcatrua embrutecedora, nem mesmo a identificação de seus agentes
principais. É preciso admitir também e com a devida ênfase que operações dessa ordem transcorrem em lugares e tempos
determinados, não se dão no vácuo mas no solo concreto de realidades onde, por suposto, estão presentes atores políticos de
natureza diversa. Em verdade, como é o caso personificado por Collor de Mello, se a figura de um semi-desconhecido vem
sendo o desaguadouro da insatisfação popular, é porque o aparato partidário existente - seus programas e candidatos, suas
atuações passadas e presentes - não tem correspondido consistentemente à sensibilidade e às inclinações das maiorias. Estas,
na precariedade de existência e formação que as jugula, buscam encontrar de alguma forma, a cada oportunidade, a encarnação
de seus próprios anseios. Propósitos que não são mais do que reações imediatas a partir do sofrimento cotidiano, que não têm
como ultrapassar o nível do depoimento sincero e pungente, mas desarticulado, incapaz de projetar ou até de distinguir
soluções globais e reais. Assim, ficam as grandes populações à mercê dos cantos de sereia, submetidas à mais bárbara
exploração espiritual, tanto mais se as organizações partidárias que pretendem atuar a partir delas deixam o campo livre ou se
mostram incapazes de as sensibilizar e esclarecer, por efeito de suas próprias falácias e debilidades. Os equívocos das massas
desvalidas subentendem, pois, fraquezas e erros políticos maiores e mais graves - reais e ideais - das agremiações partidárias,
muito em especial daqueles que se auto-intitulam de esquerda.
Com efeito, este é o caso de fenômeno Fernando Collor de Mello. Desde há um quarto de século é o que se passa no
cenário político brasileiro, cuja responsabilidade maior não pode ser meramente atribuída à repressão dos anos duros, mas
condividida aos menos com os descalabros teóricos e práticos do arco partidário que vai dos democratas aos socialistas.
É nesta condição de extrema fragilidade que as oposições (o plural agrava o problema) perplexas faceiam a renovação
moralizadora collorista, que não é outra coisa senão a reatualização da substância econômico-social implantada à força em 64.
Foi em torno principalmente da problemática do capital estrangeiro que as clivagens brotaram e produziram o golpe
militar de vinte e cinco anos atrás. Na seqüência foi o boom econômico, articulado sobre a “poupança internacional” e a
superexploração do trabalho nacional (a mão-de-obra barata); depois de poucos anos a “ilha de prosperidade” feneceu, as
dívidas não foram pagas, novos empréstimos foram feitos para pagar as dívidas passadas, até que ao longo de toda a década de
oitenta tudo se resumiu em “saldar os compromissos internacionais”, em pagar uma dívida - várias vezes paga - e impagável. A
dívida foi estatizada, no estilo consagrado da privatização do estado que caracteriza as relações brasileiras de poder, e o estado
arruinado, que então foi contraindo uma dívida interna que o humor nacional vem chamado de cassino financeiro, para uso e
abuso do capital atrófico, que passou a crescer de noite e rigorosamente descansar de dia, à espera de novos aportes
internacionais para então se decidir a voltar ao trabalho. A solução, portanto, como em 64, é esperada de fora. Mas, antes,
consta que tem de ser feita uma faxina, senão o anjo bom não abrirá as asas sobre nós.
Collor de Mello é, assim, candidato a demiurgo e faxineiro. Sempre robusto na dupla roupagem, consubstanciará a
continuidade civil do golpe de 64, legitimado pelo voto universal, ou seja, efetivará o projeto econômico de 64 sob a aura do
neoliberalismo, ao mesmo tempo que será a finalização da distensão anunciada por Geisel, encaminhada em alguns passos por
Figueiredo e transada depois por Sarney, em suma, será a carne democrática da própria transição. De tal modo que o vazio de
Collor é, em verdade, o conteúdo da auto-reforma da ditadura, a alma de 64 que encontrou sua forma charmosa. Não vem ao
caso, ao menos é extremamente secundário, que ele não seja o eleito do antigo sistema ou dos poderosos palacianos, mesmo
porque o vigor de sua postulação deriva exatamente da aparência do contrário. Mais do que isso, o sistema na berlinda e o
palácio caído em desgraça, bem como os partidos, que serviam a ambos, reduzidos à impotência, não poderiam ungir o
escolhido. O demiurgo tem que ser um estranho no poder, um fenômeno de rejeição ao sistema político dominante,
polarizador de descontentamentos, exterior aos partidos atuais. Basta pensar em Maluf e Afif, faces distintas do mesmo
pesadelo político, para compreender que está sendo como tinha de ser. Collor brotou da essência a que pertence, da aventura
bem calculada de uma ponta da sociedade civil e, posto a cavalgar sobre a cabeça do povo, disseminado por toda a sua
superfície; hoje, a partir dessa força, já tem conquistada boa parte do “establishment” econômico e político que o reconhece
como seu candidato. Que a aventura integre também sedimentos oligárquicos regionais, só confirma o exposto quanto à
natureza e estrutura da dominação proprietária brasileira, tanto quanto a própria dimensão de aventureirismo pessoal, que a
candidatura exibiu em seus empuxos iniciais, sublimado no processo da campanha em ousadia e coragem, oferecidas como
traços inerentes à figura do Príncipe Valente em seu galope redentor, atlético e eletrônico. Tudo perfaz, às mil maravilhas, o
amálgama irrepreensível que constitui resolutivamente o desaguadouro aguardado pelos anseios e ansiedades que
genericamente perfilam a direita brasileira.
A faxina do Príncipe Valente não é apenas, decreto, sua tarefa menos nobre e mais desagradável, mas também
provavelmente a mais áspera e perigosa, porque imprevisível em termos de viabilidade, ritmo e alcance. Faxina que visa acima
de tudo preparar o terreno para o escancaramento dos portos aos dinheiros do mundo, desconhecido o lado sério da questão da
moralidade pública, que escapa do barateamento de consciência ou da pura demagogia. problema que é decifrado pela
compreensão de que a corrupção da administração pública é tão somente a forma particular do aviltamento geral do
trabalhador sob o império do capital, e desde que a corrupção é uma relação que inclui não somente o corrompido, mas
também o corruptor - cuja infâmia ainda é maior - o próprio capital recai sob a categoria da corrupção, muito mais
agudamente ainda nas condições do estado privatizado e do capital atrófico e subordinado.
É evidente que, sob esse prisma, Collor não tem, nem pode ter, uma palavra sequer a respeito, tudo se resumido a
uma extensão da “caça aos marajás”, na invocação pomposa, ainda que muito batida, do saneamento ou reforma da administração,
cujo ponto de inflexão é uma pretendida revisão do papel do estado, que se restringiria à prestação de serviços públicos e ao
planejamento da economia. O que compreende a adoção do roteiro da privatização, cujo processo concreto estaria aberto à
participação do capital privado nacional e externo, envolvendo áreas até agora adstritas ao monopólio estatal. No mais, o
112
discurso de campanha é uma manifestação de fé no “choque de credibilidade’, a ser deflagrado pela excelência do postulante,
única dimensão radicalizada, em contraste com certa moderação no que se refere aos demais pontos arrolados, particu-
larmente se comparados com a ênfase que ganham, por exemplo, os temas da privatização e da desregulamentação nas falas
de outros candidatos da mesma esfera político-ideológica. Em suma, Collor de Mello quer ser apreendido como o radical de
uma única radicalidade - a intransigência moral, núcleo aparente de sua modernidade, que reatualiza com espírito neoliberal
um projeto antigo e falido. Postura de conjunto que, no segundo turno, deverá aparecer ainda mais mitigada, numa tentativa
de se aproximar do halo social-democrata.

2 - Sucessão: A Ausência Da Esquerda e o Curso Político Na Esquerda

Afirmar a indistinção entre esquerda e direita está se convertendo em um turismo para o “espírito da modernidade”. E a
débâcle da experi6encia soviética e do conjunto do leste europeu passou a usinar diariamente toneladas de poeira, que dão lastro
a essa enormidade, expressão antes de tudo do júbilo de profetas e apregoadores de esquina do mais reles conservantismo.
Há, no entanto, por desubstanciação da própria esquerda, acordes verdadeiros nesse canto da falsidade. De modo
que, por constrangedor e doloroso que seja, em pleno fim de milênio, ter que repor o sentido de palavras consagradas pelo
uso de gerações, não há como escapar dessa sintomática imposição das circunstâncias.
A designação, no que concerne à esquerda, surgiu como indicativo de polaridade ou consequência, determinação de
radicalidade ou máxima expansão da lógica imanente à forma de sociabilidade do capital, ao tempo da instauração des eu
domínio político. Posição ou lugar extremo, portanto, na escala dos patamares de realização do mundo burguês. Enquanto tal
move-se no espaço do capital e, por mais aguda que seja a transfiguração societária que promova ou preconize, não ultrapassa
o estatuto e as fronteiras do matrizamento daquele. Desse circuito, onde capital e trabalho são tomados somente enquanto
vetores complementares, cujo ajustamento esgota a problemática, onde também por afinidade - esquerda e direita - são índices
de um mesmo gradiente político-societário, os designativos transpassam para o universo da contradição estrutural entre capital
e trabalho, quando então, de graus de coerência ou homologia de um mesmo universo, passam à condição de campos distintos,
antagonicamente contrapostos. A partir daí, genericamente, direita compreende o conjunto das proposituras práticas políticas
subsumidas à lógica do capital, e esquerda aquelas outras que são próprias à lógicas do trabalho.
Em suma, esquerda e direita designaram originariamente e ainda designam graus no interior do universo político do
capital, e, por outro lado, o que é sua acepção plena, historicamente desenvolvida, campos políticos de natureza diversa,
compreendidos pela dinâmica excludente entre as lógicas do capital e do trabalho e suas respectivas formas societárias. O que
distingue, por conseqüência, o campo da esquerda, figura organizada pela lógica humano-societária do trabalho, de posições na
esquerda do leque político do capital.
A questão envolve um complicador específico, quando se trata de formações sociais cuja objetivação capitalista foi
processada e continua se processando pela via colonial.
Com efeito qual deixei configurado em textos anteriores, a crítica prática e teórica irradiada a partir da lógica do
trabalho, isto é, da esquerda, nos países capitalistas de “tipo europeu” - denominação marxiana para os casos (inglês e francês)
em que a revolução do capital fez brotar “o triunfo de um novo sistema social” e não apenas “a vitória de uma classe
particular da sociedade sobre o antigo sistema político (Cadernos Ensaio I) - principiou por onde findava a crítica e a prática
revolucionária dos proprietários. Convém lembrar precisamente que, segundo Marx, só em 1830 a burguesia liberal realizou
suas aspirações de 1789 e com uma diferença fundamental: “suas luzes políticas estavam plenamente consumidas, e ela não
mais acreditava encontrar no Estado representativo constitucional o ideal do Estado, a salvação do mundo e os fins universais
da humanidade, mas, ao contrário, havia reconhecido neste estado a expressão oficial de seu poder exclusivo e a consagração
política de seu interesse particular” (A Sagrada Família). De maneira que, nas formações sociais que objetivaram revoluções do
“tipo europeu”, a revolução do trabalho nasce como o melhor dos produtos da revolução do capital. Os trabalhadores
retomaram e elevam as bandeiras decaídas das mãos dos proprietários. A figura integralizada da burguesia e de seu mundo é a
cidadela material e espiritual contra a qual principia a configuração do universo humano-societário do trabalho, o combate da
esquerda. Esta começa por onde aquela termina.
Muito distinta é a situação da esquerda onde a encarnação burguesa, pela lógica da via colonial, jamais completou seu
parto. Na história brasileira das personae do capital, a dominação proprietária “nunca foi a cabeça de sua própria criação, e
nunca aspirou a não ser não ter aspirações. Não consumou suas luzes políticas, porque só abriu os olhos quando aquelas já
estavam extintas. Nunca teve que desacreditar do ideal do estado representativo constitucional, simplesmente porque este
nunca foi seu ideal de estado. Também não abandonou a salvação do mundo e os fins universais da humanidade, porque
sempre só esteve entregue à salvação amesquinhada de seu próprio ser mesquinho, e seus únicos fins foram sempre seus
próprios fins particulares. A esquerda brasileira, portanto, não nasceu contra a cabeça e o corpo de um antigo revolucionário.
Não se deparou com uma entificação histórico-social integralizada. Viu-se em face de integralização histórico-social de um
inacabamento. Aqui, a crítica prática e teórica dos trabalhadores não principiou por onde os proprietários haviam concluído.
estes não só não haviam terminado, como não podiam terminar nunca. Assim, a esquerda bracejou no abismo do
inacabamento do capital, convertida em empreiteira de uma obra por finalizar. Obra que, a mesma planta, jamais poderia ser
sua. A esquerda brasileira nasceu, portanto, submersa no limbo, entre a inacabamento de classe do capital e o imperativo
meramente abstrato de dar início ao processo de integralização categorial dos trabalhadores. Alma morta sem batismo, não atina
para a natureza específica do solo em que pisa, nem para a peculiaridade de postura e encargo que este chão dela demanda e a
ela confere. Posta entre a mera possibilidade genérica de uma revolução abstrata e a realidade concreta de um capital
incompleto e incompletável, a esquerda sucumbe, naturalmente, à presença real e às tensões e pressões efetivas da segunda.
113
Entre a idealidade esgarçada de uma revolução incogitável e o credo na finalização necessária do capital, é arrastada para o
objetivismo da empreitada que visa a última, e o devaneio de principiar a integralização de classe dos trabalhadores é reduzido a
voto piedoso, quando não a disparate grosseiro. Por fim, com o tempo e os enganos multiplicados, a empresa impossível de
levar à completude o capital incompletável se amesquinha progressivamente em simples e melancólico ativismo caudatário que
agride e desencanta, limita e desorienta o conjunto dos trabalhadores” (J. Chasin, A Esquerda e a Nova República, ENSAIO
14).
Na última década, com o espaço aberto pelo colapso nacional e internacional da esquerda tradicional, é a hora e a vez
da nova esquerda mergulhar no limbo, com duas agravantes: pretende, com toda razão, porém sem atinar com os meios, evitar a
reiteração de erros passados, mas destes não chega sequer a formular uma intelecção consistente, contendo-se com uma
recusa impressionista da prática vencida, o que não esclarece, nem protege contra o perigo da repetição de equívocos; planta-
se, desde logo, independentemente de pretensões ocultas ou confessas, nas extremidades do gradiente político do capital, pois
na sua revisão epidérmica do passado local e mundial, cede antes aos temores e fantasmas, não distinguindo entre os campos
políticos do capital e do trabalho, mesmo porque se constitui - por sua própria gênese, em suas vertentes e componentes
predominantes, no espaço militante do antimarxismo e do politicismo mais rústico.
De sorte que uma visão de conjunto, especialmente de 64 para cá - o que não é ir longe demais, não propicia, para
dizer o mínimo, uma cena brilhante, nem muito menos do que razoável, do que é e vem sendo a esquerda brasileira. Em
verdade, nesse longo período, em que viveu sua fase mais atribulada de dissensões e dissidências, em paralelo com seu mais
agudo empobrecimento teórico, o campo da esquerda organizada se restringiu a ponto de ter desaparecido, se é que alguma vez
foi realmente efetivo enquanto figura política fundada e norteada pela lógica humano-societária do trabalho. Restam ou
sugiram alguns organismo partidários, de portes distintos, que, perdidos em suas pobres diferenças, desvalidos para tudo que
não sejam disputas irrelevantes de caráter bizantino, se igualizam como organizações políticas que ocupam posições na
esquerda do arco político do capital.
É nesta condição objetivamente fantasmagórica de - campo ausente - que a esquerda comparece ao processo sucessório
em curso, oferecendo seus sucedâneos no pólo da radicalidade burguesa. Ou seja, ocupando o espaço que a incompletude de
classe do capital está impedida de preencher. Pelas suas limitações intrínsecas, a perspectivas do capital atrófico não se estende
sequer aos limites de sua inerência enquanto capital, ficando muito aquém de sua própria universalidade genérica, ou melhor,
particularmente de interesses que há século e meio já destituiu o estado proprietário dos fins universais da humanidade. Assim,
abantesma embrechado no ôco do capital a esquerda se limita e esgota na esquerda de uma legalidade que lhe é estranha e que a
desfigura. Todavia, é enquanto tal que ela comparece ao pleito presidencial e enquanto tal tem de ser considerada em seus
diversos braços ou representações.
Posta na inautenticidade que a fragiliza de modo cabal, que pode almejar a esquerda, no desafio global constituído
pela disputa eleitoral do poder, num país paralisado pela crise e embrutecido pela miséria? A questão só é planamente
adequada na abordagem simultânea com a indagação relativa ao potencial de transformação atual do perfil da realidade do
próprio país. E ambas, em pacífica evidência, não oferecem no presente um horizonte largo ou generoso: a esquerda
organizadora por tudo que deixou de ser e fazer, por tudo que nunca foi, nem sonhou que deveria ter sido; o processo
nacional, em que pese a objetidade de suas agudas crises econômicas e social,não trouxe à superfície, pela natureza peculiar da
formação social, os componentes contraditórios que entretecem e perfazem sua inamovibilidade, as quais, ao invés, mais e
mais vão integrando o amálgama de sua indiferenciação aparente. Ademais, os dois aspectos se potencializam reciprocamente:
tanto mais o campo da esquerda se autodestitui e descaracteriza, tanto menos suscetível a alterações se mostra a arcabouço da
dominação dos proprietários e, vice-versa, quando mais pesada e rígida se apresenta a arquitetura do capitalismo subalterno
brasileiro, tanto menos o campo da esquerda revela capacidade para atinar com sua identidade. Inamovibilidade de chumbo do
capital atrófico e identidade de fumaça da esquerda hoje reforçadas, em suas negatividades, pelo complexo regressivo das
tendências mundiais.
Basta a explicação sumária desses traços marcantes do quadro atual para advertir, com facilidade, que nem o país está
próximo de transfigurações de vulto histórico, nem a esquerda organizada de façanhas memoráveis. O que, todavia, não
impede que perspective e desenvolva ação lúcida, própria e eficiente. Escapa às suas possibilidades reais a efetuação de um
empenho, na ordem da lógica onímoda do trabalho, que assegure modificação positiva substancial das engrenagens de fundo
da vida nacional. Nem tem como alimentar, por si, a esperança de passos concretos que conduzam na imediaticidade a um
quadro de melhorias, mesmo porque não construiu tal esperança, nem sabe dizer, a rigor, do que ela consiste. Isto é, a esquerda
até aqui não gerou uma alternativa da perspectiva do trabalho, nem para o curto, nem, menos ainda, para os prazos mais
dilatados.
Nestas condições e em consonância com o pesadume do edifício nacional, já seria de grande monta valer-se da
disputa sucessória para desmistificar amplamente a estrutura vigente, revelar as engrenagens perversas que a articulam, ou seja,
sacudir o país com seus problemas, de modo a promover a explicitação de suas contradições, visando lançar as bases para a
constituição de uma autêntica oposição, não meramente ao governo de plantão, mas rigorosamente ao sistema de dominação econômica e política
implantado em 64. Se ao cabo da campanha sucessória uma oposição orgânica dessa ordem viesse a emergir, o sucesso alcançado seria da mesma
grandeza de uma vitórias eleitoral, para todos os efeitos das ações futuras, imediatas e remotas.
Sob tal prisma, assiste-se a uma disputa que deixa quase tudo a desejar, sucumbindo partidos e candidatos, salvo raras
exceções e em dados momentos, aos ditames da perseguição ao efeito imediato, o que os nivela por baixo e despolitiza, e
assim os lança à vala comum das performances regidas por supostos psico-sociais.
Essa, porém, é apenas a fenomênica da morbidez política de fundo, que envolve a presente sucessão presidencial, do ponto de vista do campo
da esquerda e da faixa partidária na esquerda. Em verdade, no fluxo atual dos acontecimentos, o campo da esquerda é notável
somente, como já foi dito antes, pela sua ausência, intervindo na exposição, enquanto universo possível, como parâmetro
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político e referência analítica. estes em concreto têm de considerar que, nas eleições presidenciais de 89, a esquerda se resume
a posições de partidos e candidatos situados no pólo da radicalidade burguesa, espaço que o capital subordinado nunca
preencheu, dado o caráter autocrático de sua dominação, que implica a exclusão dos de baixo, isto é, do povo e do princípio
de sua soberania.
Pelo povo e sua soberana apresentam-se à disputa o PDT, centrado sobre a figura de Leonel Brizola, o PT, que se
expressa através de Luís Inácio da Silva, o PSDB com Mário Covas e o PCB, traduzido por Roberto Freire.
Não fosse a circunstância de uma eleição em dois turnos e dada, a esta altura, a certeza de que Collor de Mello será,
mantido o conjunto das candidaturas principais, o dianteiro com larga margem de vantagem, o quadro dos postulantes na
esquerda já seria totalmente diverso. Ou seja, a preservação dos quatro candidatos (e até mesmo de outros, como por exemplo
Ulysses Guimarães) é uma injunção exterior ao próprio significado político que encerram. Vale dizer, se tudo fosse ser decidido
no próximo dia 15 de novembro, de um ou outro modo, não mais existiriam efetivamente, nesses poucos dias que faltam para
a votação, tantos candidatos na faixa da radicalidade burguesa. A não ser por estúpida vocação suicida, que tem de ser
obrigatoriamente descartada, composições já teriam se dado, se não voluntárias ou consentidas, por imposto de múltiplos
entendimentos e transferências de apoios pela pior das vias - a subterrânea.
Essa situação esdrúxula, sobre a qual observadores e analistas não têm dito uma única palavra, o que dá bem o
formato do trabalho que estão realizando, implica a constatação de que a legislação em vigor, independentemente de qual seja
seu espírito, propiciou até aqui e, por certo, o fará até o fim, a despolitização do pleito na esquerda, uma vez que facultou, a
quase todos os partidos situados nesse segmento a subversão do sentido das eleições ao permitir que invertessem a relação
entre meios e fins, ou seja, a relação entre poder e partido.
Disputa eleitorais em plano federal, isto é, no âmbito da sociedade global - universo próprio da política, especialmente
as que concernem à presidência da república, configuram o momento raro (não só porque a atual é realizada depois de quase
trinta anos), o instante central e efetivo da luta pelo poder, que constitui por qualquer aspecto a finalidade de todo p processo,
para o qual os partidos são também sob qualquer prisma, meios - importantes, sim, mas enquanto meios.
está rigorosamente prevalecendo sobre a finalidade da busca do poder, ou seja, posta acima do propósito de se fazer
presente na moldagem de sua figura. Essa subsunção ao inverso, além de errônea, é perversa, porque dessubstancia, ao
contrário do pretendido, o partido em sua natureza de meio, ao convertê-lo em pseudo-finalidade em si, ao mesmo tempo que
o corrompe através dessa mistificação.
A “acumulação de forças”, sempre alegada como justificativa do procedimento, é várias vezes falsa: primeiro porque a
responsabilidade política de pleitear o centro do poder subentende obrigatoriamente força acumulada, não o contrário; segundo,
a acumulação de forças partidárias não se resume à acumulação de sufrágios; terceiro, porque nem mesmo votações muito
expressivas, porém insuficientes para a vitória, se convertem necessariamente em lastro para ações ulteriores; em suma, a
própria justificativa expressa o desnaturamento da ordem efetiva da relação entre poder e partido.
Ademais, essa transgressão atinge em cheio a boa fé do próprio eleitorado eventualmente conquistado, que sufraga
por intenção manifesta de intervir na configuração do poder, não de promover algum lance estritamente partidário porque
questões dessa ordem não são postas a sua consideração, de modo que a respeito delas, de fato, está impossibilitado de
decidir. Numa palavra, política eleitoral, especialmente na esquerda, quando em jogo o centro nevrálgico do poder, só se
legitima quando voltada, não para o meio partidário, mas para o país e nucleada sobre a nação dos excluídos.
A profunda gravidade da transgressão é tão mais gritante quando não esquecida a óbvia excepcionalidade da presente
eleição. seja pelo conjunto da história republicana dos últimos sessenta anos, seja pelo contorno das graves crises que
atravessam o país; tudo sintetizado no fato de se tratar de oportunidade especial para a tentativa de ruptura com a herança
massacrante de 64. Mais do que oportunidade, ocasião obrigatória para concentrar todos os esforços nessa direção.
Por lástima, não é assim que a quase totalidade dos partidos na esquerda compreendem o momento, ao privilegiarem a
si próprios em detrimento do propósito de assegurar um novo perfil do poder.
É o PCB, não surpreendentemente, que agride da forma mais melancólica o reto procedimento político, em razão
mesmo da sua absoluta impossibilidade de alcançar a presidência. Assim, explora com a máxima leviandade o dispositivo legal
dos dois turnos, motivado apenas em deixar insepulto, por mais algum tempo, seu cadáver orgânico. Da tagarelice caudatária
(como sempre) a respeito da perestroika partirá, no primeiro momento, para a simples adesão (também como sempre) sem
reservas e sem dote a qualquer dos outros que chegar ao turno decisivo. Em suma, fez do pleito um miserável joguinho
especulativo, aguando ainda mais o ideário socialista, e perfazendo aquilo que, por certo, é sua cerimônia da adeus e, quando
muito preparação da candidatura de Roberto Freire à prefeitura de Jaboatão.
O PT e o PSDB configuram os casos sérios e graves da transgressão, ambos porque sustentam candidaturas de certo
peso eleitoral, desenhando com isso, em dada medida, identidades representativas com relação a determinadas categorias
sociais. Nestas condições, é irresponsabilidade redobrada o comportamento que manifestam, dobrando-se sobre si próprios e
medindo suas atuações por si mesmos e não pelos imperativos da reconfiguração do poder político da república. Como
agentes reais, nos limites das parcelas eleitorais que lhes dão sustentação, estão desconsiderando a evidência que per si não
alcançam a credencial para o exercício do mando político, reiterando seu jogo apenas pelo lado mais vazio das regras formais
do jogo, seja pela mera manifestação de fé irredutível em si mesmo como o PT, seja pela sofística sonolenta que José Serra
exibe em nome do PSDB, apregoando as excelências de Covas para o derradeiro round. Posições, as duas que priorizaram
desse modo a lógica de partido, em detrimento da finalidade da luta política pelo poder.
No que tange a comprometimentos na ordem crucial dessa transgressão, entre os partidos que ocupam a faixa da
radicalidade burguesa, a única exceção é o PDT. Talvez, enquanto partido, até mais por suas debilidades do que por méritos
eventuais, mas o fato é que seu candidato, desde o princípio da campanha e com ênfase crescente desde então, vem
assinalando o sentido fundamental do embate, a natureza da luta travada, acentuando a imperiosa necessidade de impedir a
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reprodução do poder político da estrutura de dominação gerada em 64. Em nenhum momento, até aqui, Leonel Brizola
tropeçou na correta relação entre poder e partido, explicitando inclusive com todas as letras que o acesso e o exercício do
mando público só se viabiliza, para o conjunto e para uma das legendas que integram as chamadas forças progressistas, pela
capacidade que tenham pronto para se articular e compor.
A inobservância das exigências imanentes da ordem verdadeira entre fins e meios está descaracterizando e
enfraquecendo politicamente o conjunto partidário na esquerda, ressaltando com toda evidência, mais uma vez, a impropriedade
com que a esquerda brasileira em geral conduz seus passos, mesmo quando o desafio é muito claro e extremamente nítido o
rumo que deveria ser tomado, tal como se dá na sucessão presidencial em curso.
Diante do parâmetro indiscutível de visar a desmontagem do sistema de dominação implantado desde o golpe de 64,
em vias de reprodução pela candidatura extremamente forte de Collor de Mello, e dada a fraqueza e parca organicidade da
faixa partidária à esquerda, a confluência eleitoral sobre uma única candidatura dessa natureza, resultante de entendimento político
compenetrado, é o desaguadouro lógico e responsável para o quadro dilemático que há meses está configurado, a equação à
altura das demandas de realidade que, no entanto, não sensibilizaram, nem mais sensibilizarão, para vergonha dela e
infelicidade de todos, a maioria dos partidos na esquerda, sejam quais vierem a ser os resultados que em poucos dias de todos
serão conhecidos.
A confluência eleitoral na esquerda teria proporcionado não apenas a garantia de um candidato desse círculo no turno final,
o que há dias esteve seriamente exposto a perigo, quando do lançamento debochado de Sílvio Santos, o que ressalta a grande
fragilidade dessas candidaturas em separado, mas também estimulado o fortalecimento qualitativo da candidatura sustentada pela
conjunção dessas forças, dado que potencializaria os melhores atributos de cada uma delas, ao mesmo tempo que neutralizaria, ao menos em parte,
seus aspectos mais débeis. Só a arrogância partidária mais pretensiosa pode dizer o contrário, manipulando abstratamente com o princípio da
coerência e utilizando a aritmética escandalosa, em curso livre por alguns setores, que assegura que a soma só subtrai e que a subtração é que
multiplica.
Em concreto, a somatória não foi realizada, vale porém tomar consciência do que foi perdido e também porque a
perda foi inevitável.
Cada um dos três candidatos, que de fato preenchem com seus partidos a extremidade do arco político do capital,
expressa e representa conteúdos distintos e convergentes. Na distinção, são objetivamente parcelas de uma mesma lógica que,
na confluência das partes, se integraliza, explicitando em concreto a figura real da radicalidade sociopolítica atualmente
existente e operante, uma vez que no cenário brasileiro prima pela ausência qualquer proposta e atuação política centrada na
perspectiva da lógica humano-societária do trabalho.
O panorama da luta atual pelo poder de estado desconhece, portanto, posições contrapostas pela afirmação e negação do capital e de sua
forma de sociabilidade, de modo que PDT, PT e PSDB consubstanciam expressões na esquerda, e não de esquerda, cujos conteúdos
marcantes interessa enumerar.
O PDT traz à cena política as dimensões do popular e do nacional, o PT a parte mais dinâmica do movimento sindical e o
PSDB principalmente os setores médicos e algo do círculo empresarial. É a partir dessa representatividade particular que cada um
deles se auto-projeta como representante universal do conjunto dos interesses da sociedade brasileira. Lançam-se enquanto
tais, conflitam entre si, mas não alcançam a identificação pretendida, sejam quais forem as extensões de seus méritos reais,
tolhidos pelo tamanho ainda maior de suas insuficiências igualmente verdadeiras.
O que importa, nesta passagem, não é tanto o detalhe das mazelas respectivas, mas a indicação da compatibilidade
intrínseca dos melhores conteúdos das três organizações partidárias e da expressão potencializada que assumiram, caso
tivessem sido cuidadosamente combinados em um programa único dos partidos na esquerda.
Já foi remetido, nos parágrafos iniciais desta Parte III, à problemática das relações entre evolução nacional e progresso
social, quando ficou dito que, nas condições de existência geradas pela via colonial, manifesta-se uma contraposição perversa
entre esses dois processos, através da qual a primeira se afirma pela excludência do segundo, ao limite mesmo da nulificação
social de vastos contingentes da população. esta remissão é suficiente para evidenciar a importância estrutural, na cena e no
discurso políticos, dos problemas relativos ao popular e ao nacional. A simples presença conjunta a articulada de ambos, numa
plataforma partidária e eleitoral, constitui tomada de posição crítica e combativa em face de um dos eixos fundamentais que
sintetizam a crueldade da estruturação da sociabilidade brasileira. Relacional programaticamente o nacional ao popular, é se
contrapor à fereza do processo histórico brasileiro, que vem gestando a identidade nacional exclusivamente pela dinâmica
induzida do capital atrófico, no feitio de sua lógica autocrática. É contrariar e negar essa linha da evolução nacional, afirmando
em seu lugar uma identificação nacional centrada no estatuto popular, isto é, no progresso social. Trata-se, em síntese, de uma
propositura de inversão das polaridades sobre as quais podem ser organizados os atos constitutivos da malha social do país.
Inversão de pólos no universo do capital, bem certo, que, todavia, fere seu ordenamento atrófico, na medida em que legitima a
transferência automática de sua carga de insuficiências para os ombros populares, ao promover a inclusão do parâmetro popular. Ou
seja rompe com a exclusão social do universo popular de necessidades, que tipifica os procedimentos do capital inconcluso e,,
ao contrário, inclui o progresso social como princípio legítimo e imperativo de ordenação nacional.
Que a estreiteza intelectual reinante só tenha sido capaz de enxergar unilateralmente, no princípio popular de
ordenação nacional, economicismo nacionalista, pretensão a capitalismo nacional autônomo ou artimanha burguesa, não faz a
menor diferença, a não ser para medir e efetivo interesse desse tipo a menor estrangulado de elaboração teórica pelo progresso
social, especialmente quando desenvolvida em um país e num continente onde a exclusão do progresso social é o modo pelo qual
se põe e repõe a civilização do capital atrófico.
O que importa, no entanto, para efeito da análise das eleições em curso, é que a propositura política que relaciona o
popular ao nacional, centrando a identificação nacional pelo progresso social, independentemente de suas viabilidades e vicissitudes,
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pela amplitude de seu contorno e pelo seu ponto de inflexão, combina e se ajusta sem qualquer dificuldades com outras
dimensões positivas, presentes no círculo dos partidos situados na esquerda do arco político do capital.
Progresso social e combatividade sindical não são apenas confluentes, mas se articulam como universabilidade e
particularidade. Enquanto o primeiro compreende uma infinidade de dimensões ou positividades virtuais, decorrentes da
transformação e do desenvolvimento do país, irradiadas para o conjunto da sociedade, a segunda especifica beneficio e
beneficiário, concentrando esforços em favor das categorias sociais mais expostas à dominação e, no caso concreto, em grande
medida excluídas. Ou ainda, a luta sindical, a luta cotidiana dos trabalhadores como auto-defesa e combate de sobrevivência, no
interior da estruturação societária que tem por lógica sua redução ao aviltamento material e espiritual, é uma forma aguda e
peculiar, básica, embora delimitada, de dar início ao levantamento dos andaimes com vistas à construção do progresso social
em sua multilateralidade genérica.
Sendo assim, o encontro desses dois conteúdos ou dimensões programáticas favoreceria a ambos, pois, como princípio
de ordenação, o que o progresso social exibe em amplitude e diversidade, possui também, por sua generalidade, em indeterminação,
ao inverso da natureza do movimento sindical, muito menos largo ou multifacético enquanto plataforma das progressões
societárias, mas por isso mesmo muito nítido em seu caráter bem determinado. No caso, a afirmação do progresso social, como
centro organizador da identidade nacional, francamente positiva em si, uma vez que contraria o eixo sobre o qual tem se
processado até aqui o andamento do capital atrófico, ganharia em contorno e determinação, seria fortalecida e especificada,
teria estaqueado seu núcleo estruturante pelas energias e urgências do movimento sindical. Por outro lado, igualmente
benéfico, o vetor sindical pela sua ponta mais evoluída ganharia politicamente os lineamentos de um projeto nacional, do qual
até aqui é órfão.
Em outros termos, PT e PDT possuem em separado porções de força política e programática que não se equilibram por
si, que só em conjunto perfazem uma figura sócio-politicamente estruturada, capaz de se impor como representante universal
da sociedade brasileira. Isoladas uma da outra ficam expostas à impotência quando não à caricatura. O que vem a ser
extremamente grave, em face de uma colocação, anteriormente feita, segundo a qual a ruptura com a via colonial de objetivação
e reprodução do capitalismo não é uma empresa para o capital, mas uma tarefa para o trabalho.
É completamente imprópria qualquer contra-argumentação que venha no sentido de que toda essa consideração é
desenvolvida no interior dos limites do capital, uma vez que se as duas candidaturas em causa estão programaticamente
inseridas justamente nessas fronteiras, e é delas - pelos seus aspectos mais positivos - que aqui se fala.
Ademais, por se tratar de ação político-eleitoral no universo do capital, é preciso admitir que, por enquanto, o
desenho está incompleto, que falta um protagonista do jogo sucessório situado na esquerda do arco partidário - o delicado
protagonista que é o PSDB.
Esse terceiro componente da confluência eleitoral na esquerda, aqui em delineamento, é dos mais problemáticos, uma vez
levado em conta sua gênese, composição e representatividade. Todavia, em sua fragilidade, é portador de clara significação,
que não pode ser desconsiderada, quando se trata de armar um dispositivo eleitoral para vencer, tendo por propósito impedir
a reprodução modernizada da herança de 64.
Grifar as origens peemedebistas dos tucanos é obrigatório, pois assinala com a força necessária a matriz politicista que
os articula, sobre a qual eles vêm se dedicando a tecer sem fim um manto unissex, mais para tecnocrático do que para social-democrata,
independentemente de suas mais acarinhadas intenções. Aliás, sua auto0imagem é reveladora: tomam-se por cenáculo da inteligência e mais parecem
uma dispendiosa equipe de assessores, pretendem-se o paradigma das instituições partidárias e mais se assemelham a uma coligação parlamentar
transitória.
Contudo, mais pelas debilidades do que por suas virtudes, atraem um segmento populacional numeroso, que se identifica com suas
indefinições e ambigüidades e também com seu ar pretensiosa e arrogante. Mas, no faz-de-conta da existência dos setores médicos, onde
prudência e serenidade são cada vez mais as máscaras da tibieza e da hipocrisia, ponderação e racionalidade os disfarces da
mesquinhez e do arrivismo, há algumas verdades. A primeira é que as máscaras e os disfarces são antes papéis societários do
que opções pessoais voluntárias, figurações necessárias no legitimo teatro de absurdos do capital. A segunda e decisiva é que a
multidão assalariada das classes médicas é o suporte da criação, emprego e difusão dos saberes tecno-científicos e dos valores
culturais, que perfazem as engrenagens da produção e reprodução materiais e da desprodução espiritual do mundo
contemporâneo. A terceira, em suma, é que por seu número e peso, até mesmo por suas ambigüidades reais e ideais, dão
corpo a um significado sócio-político, cujas afinidades com uma identificação nacional regida pelo progresso social são nítidas,
por mais que estilos e procedimentos possam afastá-las da rispidez do embate sindical e mais ainda do clamor inorgânico dos
excluídos.
Desse perfil potencial de uma confluência eleitoral na esquerda, traçado pelos melhores e mais significativos conteúdos
do PDT, PT e PSDB, emerge um contorno programático consistente e, sem dúvida, passível de plena exercitação prática, que
lamentavelmente não veio a emergir no processo sucessório real, apesar da evidência de sua propriedade e factibilidade. Pior
ainda, nada semelhante a isso pode se afirmar plenamente, desde logo porque o confronto interpartidário atirou em grande
medida os três partidos para a ribanceira dos procedimentos psico-sociais, cada qual procurando envergar um estereótipo que
o demarcasse na preferência do eleitor.
Convém ponderar que o esboço programático traçado não poderia ser o resultado somente de entendimentos de
gabinete. É preciso ultrapassar a mesquinhez com que a idéia de negociação é alardeada. Em qualquer forma de conveniência,
a prática da negociação tem seu lugar garantido, uma vez que não seja desnaturada em panacéia universal ou fonte exclusiva de
decisões. No caso, delineada a plataforma através de iniciativa interpartidária, sua exercitação pública a conduziria a níveis
mais ricos e desenvolvidos de significados, em todos os âmbitos temáticos de que fosse integrada. Ou seja, a própria
campanha seria, em última análise, o processo de usinagem dos objetivos comuns, pelos quais os esforços igualmente
conjugados travariam a guerra pelo poder.
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Muito do que se está assistindo de gravemente defeituoso teria sido evitado, pois a campanha não descambaria, como
praticamente descambou, para a simples catação de votos, propiciando, ao contrário, a oportunidade rara para tentar elevar os
padrões de reflexão política de amplos contingentes populares. Ao mesmo tempo, os partidos não teriam se amesquinhado
pela redução a simples legendas eleitorais, mais ou menos sofisticadas, a dispositivos de arrecadação de votos quase a qualquer
custo, que vão mudando suas vozes de acordo com as flutuações mais primitivas do eleitorado, em vez de o impulsionar pelo
esclarecimento e pela mobilização razoavelmente fundamentada.
Mas, não apenas sob o aspecto de entidades obrigadas a informar e orientar, a exercer, em suma, um papel político-
pedagógico, que os partidos em questão se expuseram, em graus distintos, à merecida censura durante os embates do primeiro
turno que estão chegando ao fim. Em verdade, ao não terem perfilado uma confluência eleitoral na esquerda, deixaram de
exercer o papel fundamental dos partidos políticos, qual seja o de formular a equação eficiente de poder para as demandas
objetivas dos setores sociais que pretendem representar. Em outros termos, um partido político se afirma autenticamente
enquanto tal na medida em que pela realização da melhor das análises de realidade, seja capaz de dirigir suas ações como meios
de efetivação, a mais próxima possível, dos conteúdos projetados pelas necessidades imediatas e virtualidades gerais das
categorias societárias que assume, em tese, por parâmetro e base de apoio. É o que credencia o partido como instrumento
legítimo de atuação política, na relação sempre complexa, mas fundamental, entre o plano social e o político, pois a completa
dissolução deste laço, ao limite impossível no movimento real, é o rebaixamento da política aos piores aspectos de um mero
jogo, na esfera ideal.
A gravidade do abandono dessa função essencial, indiretamente examinado mais atrás, quando foi apontada a forma
subversora como, especialmente o PT e o PSDB, vem desatendendo a relação entre poder e partido, torna-se extremamente
visível ao se tomar em conta que, dentro de poucas semanas, na abertura do segundo turno, haverá uma corrida desesperada e
frenética por adesões e apoios. Seja quem venha a ser o segundo colocado, ele terá se classificado com algo em torno de 15%
dos sufrágios, um cacife incontornavelmente irrisório para enfrentar o desafio collorista, que estará com alguma coisa próxima
do dobro e ostentando a aura do primeiro colocado.
Será a vez da ansiedade agônica por composições, cuja propriedade e validez terão sido negadas até às vésperas, a
ocasião da tentativa mágica de converter hostilidades grosseira e estúpida em fraternidade entusiástica. Onde só havia
diferenças pretensamente antagônicas serão descobertas afinidades substanciais. Não será, por certo, o mais belo dos
espetáculos, nem o melhor dos exemplos de conduta política, mesmo contando que haverá algum bom senso e inclusive
alguma generosidade, uma vez que restará o fato irremovível de que, em um dos dois momentos, alguém terá simplesmente
mentido ou abusado do uso taticista da linguagem, senão todos.
Que a estreiteza intelectual reinante só tenha sido capaz de enxergar unilateralmente, no princípio popular de
ordenação nacional, economicismo nacionalista, pretensão a capitalismo nacional autônomo ou artimanha burguesa, não faz a
menor diferença, a não ser para medir e efetivo interesse desse tipo a menor estrangulado de elaboração teórica pelo progresso
social, especialmente quando desenvolvida em um país e num continente onde a exclusão do progresso social é o modo pelo qual
se põe e repõe a civilização do capital atrófico.
O que importa, no entanto, para efeito da análise das eleições em curso, é que a propositura política que relaciona o
popular ao nacional, centrando a identificação nacional pelo progresso social, independentemente de suas viabilidades e vicissitudes,
pela amplitude de seu contorno e pelo seu ponto de inflexão, combina e se ajusta sem qualquer dificuldades com outras
dimensões positivas, presentes no círculo dos partidos situados na esquerda do arco político do capital.
Progresso social e combatividade sindical não são apenas confluentes, mas se articulam como universabilidade e
particularidade. Enquanto o primeiro compreende uma infinidade de dimensões ou positividades virtuais, decorrentes da
transformação e do desenvolvimento do país, irradiadas para o conjunto da sociedade, a segunda especifica beneficio e
beneficiário, concentrando esforços em favor das categorias sociais mais expostas à dominação e, no caso concreto, em grande
medida excluídas. Ou ainda, a luta sindical, a luta cotidiana dos trabalhadores como auto-defesa e combate de sobrevivência, no
interior da estruturação societária que tem por lógica sua redução ao aviltamento material e espiritual, é uma forma aguda e
peculiar, básica, embora delimitada, de dar início ao levantamento dos andaimes com vistas à construção do progresso social
em sua multilateralidade genérica.
Sendo assim, o encontro desses dois conteúdos ou dimensões programáticas favoreceria a ambos, pois, como princípio
de ordenação, o que o progresso social exibe em amplitude e diversidade, possui também, por sua generalidade, em indeterminação,
ao inverso da natureza do movimento sindical, muito menos largo ou multifacético enquanto plataforma das progressões
societárias, mas por isso mesmo muito nítido em seu caráter bem determinado. No caso, a afirmação do progresso social, como
centro organizador da identidade nacional, francamente positiva em si, uma vez que contraria o eixo sobre o qual tem se
processado até aqui o andamento do capital atrófico, ganharia em contorno e determinação, seria fortalecida e especificada,
teria estaqueado seu núcleo estruturante pelas energias e urgências do movimento sindical. Por outro lado, igualmente
benéfico, o vetor sindical pela sua ponta mais evoluída ganharia politicamente os lineamentos de um projeto nacional, do qual
até aqui é órfão.
Em outros termos, PT e PDT possuem em separado porções de força política e programática que não se equilibram por
si, que só em conjunto perfazem uma figura sócio-politicamente estruturada, capaz de se impor como representante universal
da sociedade brasileira. Isoladas uma da outra ficam expostas à impotência quando não à caricatura. O que vem a ser
extremamente grave, em face de uma colocação, anteriormente feita, segundo a qual a ruptura com a via colonial de objetivação
e reprodução do capitalismo não é uma empresa para o capital, mas uma tarefa para o trabalho.
É completamente imprópria qualquer contra-argumentação que venha no sentido de que toda essa consideração é
desenvolvida no interior dos limites do capital, uma vez que se as duas candidaturas em causa estão programaticamente
inseridas justamente nessas fronteiras, e é delas - pelos seus aspectos mais positivos - que aqui se fala.
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Ademais, por se tratar de ação político-eleitoral no universo do capital, é preciso admitir que, por enquanto, o
desenho está incompleto, que falta um protagonista do jogo sucessório situado na esquerda do arco partidário - o delicado
protagonista que é o PSDB.
Esse terceiro componente da confluência eleitoral na esquerda, aqui em delineamento, é dos mais problemáticos, uma vez
levado em conta sua gênese, composição e representatividade. Todavia, em sua fragilidade, é portador de clara significação,
que não pode ser desconsiderada, quando se trata de armar um dispositivo eleitoral para vencer, tendo por propósito impedir
a reprodução modernizada da herança de 64.
Grifar as origens peemedebistas dos tucanos é obrigatório, pois assinala com a força necessária a matriz politicista que
os articula, sobre a qual eles vêm se dedicando a tecer sem fim um manto unissex, mais para tecnocrático do que para social-democrata,
independentemente de suas mais acarinhadas intenções. Aliás, sua auto0imagem é reveladora: tomam-se por cenáculo da inteligência e mais parecem
uma dispendiosa equipe de assessores, pretendem-se o paradigma das instituições partidárias e mais se assemelham a uma coligação parlamentar
transitória.
Contudo, mais pelas debilidades do que por suas virtudes, atraem um segmento populacional numeroso, que se identifica com suas
indefinições e ambigüidades e também com seu ar pretensioso e arrogante. Mas, no faz-de-conta da existência dos setores médicos, onde
prudência e serenidade são cada vez mais as máscaras da tibieza e da hipocrisia, ponderação e racionalidade os disfarces da
mesquinhez e do arrivismo, há algumas verdades. A primeira é que as máscaras e os disfarces são antes papéis societários do
que opções pessoais voluntárias, figurações necessárias no legitimo teatro de absurdos do capital. A segunda e decisiva é que a
multidão assalariada das classes médicas é o suporte da criação, emprego e difusão dos saberes tecno-científicos e dos valores
culturais, que perfazem as engrenagens da produção e reprodução materiais e da desprodução espiritual do mundo
contemporâneo. A terceira, em suma, é que por seu número e peso, até mesmo por suas ambigüidades reais e ideais, dão
corpo a um significado sócio-político, cujas afinidades com uma identificação nacional regida pelo progresso social são nítidas,
por mais que estilos e procedimentos possam afastá-las da rispidez do embate sindical e mais ainda do clamor inorgânico dos
excluídos.
Desse perfil potencial de uma confluência eleitoral na esquerda, traçado pelos melhores e mais significativos conteúdos
do PDT, PT e PSDB, emerge um contorno programático consistente e, sem dúvida, passível de plena exercitação prática, que
lamentavelmente não veio a emergir no processo sucessório real, apesar da evidência de sua propriedade e factibilidade. Pior
ainda, nada semelhante a isso pode se afirmar plenamente, desde logo porque o confronto interpartidário atirou em grande
medida os três partidos para a ribanceira dos procedimentos psico-sociais, cada qual procurando envergar um estereótipo que
o demarcasse na preferência do eleitor.
Convém ponderar que o esboço programático traçado não poderia ser o resultado somente de entendimentos de
gabinete. É preciso ultrapassar a mesquinhez com que a idéia de negociação é alardeada. Em qualquer forma de conveniência,
a prática da negociação tem seu lugar garantido, uma vez que não seja desnaturada em panacéia universal ou fonte exclusiva de
decisões. No caso, delineada a plataforma através de iniciativa interpartidária, sua exercitação pública a conduziria a níveis
mais ricos e desenvolvidos de significados, em todos os âmbitos temáticos de que fosse integrada. Ou seja, a própria
campanha seria, em última análise, o processo de usinagem dos objetivos comuns, pelos quais os esforços igualmente
conjugados travariam a guerra pelo poder.
Muito do que se está assistindo de gravemente defeituoso teria sido evitado, pois a campanha não descambaria, como
praticamente descambou, para a simples catação de votos, propiciando, ao contrário, a oportunidade rara para tentar elevar os
padrões de reflexão política de amplos contingentes populares. Ao mesmo tempo, os partidos não teriam se amesquinhado
pela redução a simples legendas eleitorais, mais ou menos sofisticadas, a dispositivos de arrecadação de votos quase a qualquer
custo, que vão mudando suas vozes de acordo com as flutuações mais primitivas do eleitorado, em vez de o impulsionar pelo
esclarecimento e pela mobilização razoavelmente fundamentada.
Mas, não apenas sob o aspecto de entidades obrigadas a informar e orientar, a exercer, em suma, um papel político-
pedagógico, que os partidos em questão se expuseram, em graus distintos, à merecida censura durante os embates do primeiro
turno que estão chegando ao fim. Em verdade, ao não terem perfilado uma confluência eleitoral na esquerda, deixaram de
exercer o papel fundamental dos partidos políticos, qual seja o de formular a equação eficiente de poder para as demandas
objetivas dos setores sociais que pretendem representar. Em outros termos, um partido político se afirma autenticamente
enquanto tal na medida em que pela realização da melhor das análises de realidade, seja capaz de dirigir suas ações como meios
de efetivação, a mais próxima possível, dos conteúdos projetados pelas necessidades imediatas e virtualidades gerais das
categorias societárias que assume, em tese, por parâmetro e base de apoio. É o que credencia o partido como instrumento
legítimo de atuação política, na relação sempre complexa, mas fundamental, entre o plano social e o político, pois a completa
dissolução deste laço, ao limite impossível no movimento real, é o rebaixamento da política aos piores aspectos de um mero
jogo, na esfera ideal.
A gravidade do abandono dessa função essencial, indiretamente examinado mais atrás, quando foi apontada a forma
subversora como, especialmente o PT e o PSDB, vem desatendendo a relação entre poder e partido, torna-se extremamente
visível ao se tomar em conta que, dentro de poucas semanas, na abertura do segundo turno, haverá uma corrida desesperada e
frenética por adesões e apoios. Seja quem venha a ser o segundo colocado, ele terá se classificado com algo em torno de 15%
dos sufrágios, um cacife incontornavelmente irrisório para enfrentar o desafio collorista, que estará com alguma coisa próxima
do dobro e ostentando a aura do primeiro colocado.
Será a vez da ansiedade agônica por composições, cuja propriedade e validez terão sido negadas até às vésperas, a
ocasião da tentativa mágica de converter hostilidades grosseira e estúpida em fraternidade entusiástica. Onde só havia
diferenças pretensamente antagônicas serão descobertas afinidades substanciais. Não será, por certo, o mais belo dos
espetáculos, nem o melhor dos exemplos de conduta política, mesmo contando que haverá algum bom senso e inclusive
119
alguma generosidade, uma vez que restará o fato irremovível de que, em um dos dois momentos, alguém terá simplesmente
mentido ou abusado do uso taticista da linguagem, senão todos.
De qualquer modo será uma tentativa de composição feita às pressas, no afogadilho do escoamento célere dos poucos
dias disponíveis, sem estruturação e maturação adequadas. Será o improviso na balbúrdia de lances cuja sedimentação
permanecerá uma incógnita; frágeis sob todos os aspectos, especialmente porque não depurados e enriquecidos pelo exercício
público de os submeter democraticamente aos verdadeiros interessados - os eleitores.
Mais ainda, será uma aglutinação, maior ou menor, de força em torno de uma figura escolhida mais pelo acaso do que
pelo exame consciencioso, que permitiria a indicação do politicamente mais apropriado (por ele próprio, pela correlação de
forças e pelas condicionantes em geral do momento), uma vez que as sondagens de opinião vêm facultando a certeza de que
as diferenças, entre o que passará ao turno final e os outros dois que ficarão de fora, serão de pequena monta ou até mesmo
politicamente insignificantes. O que acentua a irresponsabilidade partidária salienta, fazendo, perceber que tudo, ou quase isso,
se transformou numa queda de braços completamente fora de lugar, numa aposta rude e deliqüescente.
Acima de tudo, constituindo o critério decisivo, a gravidade da renúncia à função precípua das entidades partidárias
vem à tona brutalmente com a evidência de que não existe nem a mais remota possibilidade de um governo estritamente
petista, pedetista ou pessedebista. Qualquer um dos três candidatos da radicalidade política do capital, se eleito presidente, só
poderá sustentar o mandato através de uma coligação e jamais se apoiado exclusivamente em seu próprio partido. Em
conclusão, a postura partidária dominante durante a campanha eleitoral é exterior e inversa às exigências do objetivo que, por
princípio, está perseguindo. Basta isso para terminar dizendo que a postura partidária se resolveu em impostura política, tanto
maior mais alardeada é sua intransigência.
Impostura ou impropriedade política extrema que convém trabalhar um pouco mais, no sentido de precisar um tanto
a determinação dos fatores que tornaram impossível adotar a solução política mais adequada, posta objetivamente pela
alternativa racional da confluência eleitoral na esquerda.

Um emaranhado de motivos históricos e razões teóricas impediram o reto procedimento político do círculo partidário na
esquerda. Com isso foi perdida, antes de tudo, a possibilidade do empenho pela vitória através do dispositivo mais vigoroso e,
portanto, que detinha a maior probabilidade de sucesso. Fora dele, qualquer resultado positivo conterá sempre uma parcela de
casualidade propícia, de acaso favorável ou de imponderabilidade afluente que traduzirá, na vitória surpreendente ou inesperada, os
graves riscos corridos e a inaceitável irresponsabilidade política praticada. Razão pela qual compreender o encaminhamento
falacioso que prevaleceu é essencial, até mesmo se não vier a ocorrer o pior, o desastre completo da reprodução civil da
herança funesta de 64. Ou ainda, na vertente positiva, se algum representante da radicalidade burguesa assumir o poder, é vital
que todos se compenetrem que o caminho, apesar de tudo inconsistente que o alçou, não poderá ser nunca a protoforma do
exercício e da manutenção do poder conquistado.
De há muito o problema das coligações, frentes ou composições partidárias fixou-se como ponto central da história
política brasileira. Prática e teoricamente é em torno dessa questão que têm girado as equações de poder, bem ou mal
sucedidas. Que as alianças políticas sejam um fenômeno universal, não é obviamente o que se está ressaltando, mas a
experiência vivida de que, no quadro nacional, elas sejam praticamente a forma compulsória para o exercício do mando estatal.
Abstraia a Velha República do Partido Republicano, que se articulava, aliás, por meio das alianças entre os governadores,
nunca mais o país conheceu um partido político capaz de dispensar o respaldo de outras agremiações para galgar o poder e
exercê-lo.
A decifração completa dessa esfinge está por fazer e compreenderia a elaboração essencial de mais de cinqüenta anos
de história, mas não é fora de medida nem desprovido de fortes indicadores afirmar que essa impotência partidária está
estreitamente vinculada à própria impotência imanente ao capital atrófico, incapaz de projetar a si mesmo como representante
universal das categorias societárias brasileiras. É o que o leva a ser e a se mover sempre como uma particularidade, no próprio
interior do universo que se põe pela sua lógica, e nele se afirmar como parte autocrática.
Ademais, particularidade fragmentada, cuja unificação, árdua desde o início, é cada vez mais difícil e penosa, na
medida em que a malha econômica nacional vai se complexificando, acolhendo e diferenciando vetores e seus interesses
correspondentes, como por exemplo o tripé formado pelo capital privado nacional e estrangeiro e pelo capital estatal. além
disso, há que agregar também a diferenciação promovida, em decorrência, no âmbito das classes subalternas, desde o
assalariado de alta estirpe até o rebanho de párias.
Não tem cabido nessa moldura grandes partidos, fortes e estáveis, aptos a projetar uma identificação nacional
efetivamente integradora dos diversos personagens societários brasileiros. Em seu lugar, nos momentos incisivos, têm se
formado os conglomerados de múltiplos interesses, tendências e extrações, que se esgotam tão logo são atingidos ou
ultrapassados os objetivos que os moldam.
De toda forma, seja debaixo de uma única sigla, seja pela via mais densa e coerente da articulação de legendas, o fato é
que as alianças políticas vêm se constituindo na chave mestra do acesso e ocupação do poder político. Talvez por isso mesmo a
aliança política acumulada sobre si virtudes e pecados que embaraçam a não poucos, especialmente aos produtores de idéias
políticas, em particular muitos dos que se situam na esquerda e tanto outros que se afirmam de esquerda.
Em tempos recentes, os embaraçados por obra e graça dos demônios nacionais, se viram reforçados em suas instituições por
eventos como a Campanha das Diretas, a Aliança Democrática e a desagregação em curso do PMDB. Reforçados é o termo,
pois suas convicções são muito mais antigas e arraigadas, dado que velhas pelo menos de quase trinta anos, já que se
esboçaram nos limites do golpe de 64.
120
Às vésperas da intervenção militar, espraiando-se depois grande desenvoltura, brotou restritamente uma atitude de
inconformismo e repulsa à prática política da esquerda tradicional, cuja fórmula de atuação estava centrada sobre a celebérrima
aliança de classes que, apesar de clivagens importantes quanto a concepções e objetivos, redundava sempre pela condução do
PCB numa política conciliadora e caudatária.
A reação de caráter eminentemente prático, ainda que nem sempre vinculada aos pequenos agrupamentos que então
afloravam, tinha por referência principal a carência de radicalidade do movimento operário, entendia como embotamento
derivado da subserviência dos comunistas à burguesia e a seus governos. Desse modo e num movimento crítico pouco
matizado, o direitismo do PCB é identificado à política de frente e, curto-circuito as mediações, o combate aos então chamados
desvios de direita se reduz praticamente à excomunhão das alianças políticas em geral. Tudo parece se dar por um anseio legítimo, ainda
que confuso e teoricamente desamparado, de maior e adequada radicalidade, e sempre por invocação genérica à dinâmica
própria da classe trabalhadora. Nos primeiros passos desse itinerário, tudo está cifrado em suplantar a irremediável atuação
pecebista, recuperando com isso supostamente os verdadeiros caminhos revolucionários, dados como sabidos e evidentes e que não são postos em
dúvida. Em suma, naqueles primeiros momentos, tudo é muito prático e pouco refletido; a teoria não ocupa, como sempre no Brasil, muito espaço
nem exerce muita atração, mesmo porque lineamentos genéricos do marxismo, na pobreza em geral com que são compreendidos, continuam a ser a
parametração da conduta ideológica.
Os primeiros textos teóricos, diretamente moldados a partir de um desenvolvimento dessa temática, serão publicados
pouco depois da estabilização do primeiro governo militar, já a braços portanto com uma dupla problemática, que pode ser
resumida numa frase bem curta: a questão da esquerda no interior da diversidade da ditadura.
Daí para frente, no intervalo de alguns anos, com plena expressão na década de 70, será a incorporação e a
multiplicação de um conjunto de temas e facetas que pretenderão constituir o desenho teórico do caso brasileiro, numa
transfiguração cabal, portanto, das características do processo em suas origens mais remotas.
Resultou, ao cabo de todo esse tempo, uma produção numerosa e complexa, com muitas ramificações e não poucas
modulações ou até mesmo vertentes, que compõem, decerto, no panorama intelectual brasileiro, uma de suas fases influentes
e volumosas, a ponto de ser hoje praticamente o arcabouço dominante da reflexão nacional.
Seria impossível, se não absurdo, pretender enfrentar aqui com alguns poucos par’;agrafos esse conjunto de idéias, que
hoje molda o pensamento do país, da imprensa à academia, do teatro aos partidos políticos, numa irradiação tão generalizada
que chega a ser divertido observar muitas das polêmicas que são traçadas, pois seus contendores, nesses casos, são
transparentemente frutos da mesma horta de idéias. Em verdade, está mais do que na hora de estimular o surgimento de um
movimento crítico, que enfrente sistematicamente a necessidade de levantar a devida contraposição a esse caudal quase que
incontrastado. Há que advertir que será uma batalha árdua em condições muito adversas, pois até mesmo os espaços mínimos
para tentar a empreitada terão quer ser conquistados através de luta obstinada, tal a impregnação hoje de todos os recintos
pelo espírito daquela vaga.
Contudo, para satisfazer as exigências relativas à análise da sucessão presidencial, é preciso adiantar alguns críticos,
poucos e diretamente relacionados àquele andamento. Para esse efeito, interessa assinalar que o edifício teórico em causa,
quando mais eminentemente teórico foi se tornando, numa completa reconfiguração das características que possuía em suas
procedências prático-políticas mais remotas, tanto menos proximidade foi mantendo com o universo marxista de idéias que,
em suas origens, constituía bem ou mal sua linha de referência. De tal sorte que, no quarto de século compreendido pelo
processo, uma questão prático-política - que só tem sentido real na esfera das indagações marxistas, paulatinamente ganhou
por resposta uma equação teórica divorciada do pensamento marxiano. Todavia, esse divórcio não significou uma separação
da política, uma vez que o caráter eminentemente teórico do percurso nunca assumiu a forma de uma recusa da prática, nem
renunciou durante muito tempo à aura marxista (o que criou enormes confusões), só o fazendo muito mais recentemente, já
sob o influxo das vagas internacionais da “morte de Marx”.
É nesse quadro, tão sumariamente pincelado, que interessa aludir a certas teorias que pretendem ser o retrato de corpo inteiro da
problemática brasileira. Ou melhor, àquilo que resultam ser suas expressões concentradas, enquanto sedimentos vetorias norteadores da prática
política. Dito de outro modo, interessa compreender a resultante prática da larga teorização efetuada, que deslocou uma questão da esquerda para
uma solução na esquerda, e de uma forma radicalmente insatisfatória e problemática.
Deixo enfatizado ao máximo que não me refiro aqui a autores (mesmo porque alguns são amigos), mas pretendo
sacudir algumas idéias e teorias que enquanto tais, uma vez postas, ficam expostas à crítica pública. Com essa ressalva, que
pretende evitar melindres e a réplica escapista que converte questões teóricas e políticas em problemas pessoais, permitindo-
me a ironia áspera de afirmar que o resumo da elaboração intelectual referida e o quadrúpede teórico formado pelas teorias da
dependência, populismo, autoritarismo e marginalidade.

Torno a repetir que não é este o lugar para fazer o exame urgente dessas teorias, processando assim sua desconstrução, mas é
imprescindível identificar seus coágulos práticos, indigitando com isso seus efeitos políticos.
A teoria da dependência nasceu de uma lacuna ou insuficiência teórica real e muito grave, mas acabou por escavar um
fosso teórico ainda maior. A reflexão que a antecedeu, concernente às relações econômicas internacionais do país, tinha por
contorno o complexo fenomênico do imperialismo, porém mentalizado predominantemente sob forma linear e unilateral. Em
poucas palavras, as intrincadas relações do capitalismo mundial, - vazadas pela trama desigual entre elos ou segmentos
econômicos subordinados e elos ou segmentos econômicos subordinados, que por suas interconexões perfazem a
universalidade da lógica do capital, mas que por isso mesmo compreendem circuitos lógicos particulares, os quais, pelas suas
determinações inerentes, geram figurações distintas e sucessivas no tempo de seu desenvolvimento e concomitante
121
complexificação -, eram reduzidas a um vínculo abstrato e uniforme, verdadeiramente unidimensional e de mão-única, através
do qual a irradiação do pólo subordinante era responsabilizada sozinha por toda a determinação dissolvendo assim a
legalidade específica do pólo subordinado, que caía desse modo na penumbra e na irresponsabilidade econômico-societária e
política. Isto é, o pólo subordinado acabava por ser desenhado como um epifenômeno evanescente. Em suma, o imperialismo
era concebido como um princípio genérico e como tal aplicado na confecção analítica, ou seja, a “dialética” consistia em
subsumir àquele princípio dados empíricos da invasão do capital externo, na crença de que com esse procedimento se
realizava a sempre alardeada análise científica de realidade.
A rejeição crítica dessa exercitação teórica rudimentar, nos momentos germinais da teoria da dependência, pretendeu
corretamente, ao menos na aparência, recuperar e entender a concreta existência do pólo subordinado em sua estruturação e
dinâmica, para desvendar com isso sua natureza e as implicações dela decorrentes. Curiosa e sintomaticamente, à medida em
que foi crescendo a elaboração intelectual projetada, ocorria uma inversão nos pesos conferidos aos pólos do problema
originário. Quanto mais corpo ganhava a ornação econômica subalterna, com menos perfil ia ficando o outro extremo. De
maneira que se repôs um movimento reflexivo abstrato e unilateral, somente que com os sinais trocados. Enquanto a reflexão
sobre o imperialismo no pré-64 fazia desaparecer da análise a formação subordinada, a nova perspectiva teórica operava a
mágica de dar sumiço à irradiação das formação subordinantes e ao próprio nexo problemático da relação desigual entre as
formações, esvaziando o caráter dessa vinculação fundamental nas generalidades dos temas referentes à internacionalização do
capital. Que isso tenha ocorrido através de medições como, por exemplo, levar o fenômeno da dependência a trafegar para o
fenômeno da interdepend6encia, e também por meio do paulatino afastamento dos parâmetros analíticos marxianos e da
adoção simultânea de outras vertentes, são inflexões muito importantes que exigem, sem dúvida, exame detalhado, mas que,
vale repetir, aqui não é proposto nem o poderia ser. O que não impede, todavia, a constatação dessas ocorrências, bem como
o registro grifado de que a teoria da dependência terminou por ser uma pirueta conceitual, que dissolveu a possibilidade de
traduzir teoricamente o laço real que ata o país ao capitalismo mundial. As conseqüências daí geradas, para além da esfera
representativa, são enormes e danosas, especialmente na perspectivação dos rumos econômicos, sociais e políticos que urge
empreender.
Não há dúvida, a teoria vulgar do imperialismo era solidária com a fantasia do capitalismo nacional autônomo,
entretanto, a aparentemente erudita teorias da dependência não ultrapassa também as fronteiras da ilusão, pois, em sua
ingenuidade real, retorna a velha quimera do superimperialismo com suas expectativas de felicidade planetária, através da
civilização racional do capital em dueto com a perfectibilização dos processos representativos e operacionais do estado.
Porém, nesse rumo, não apenas a imperialização, ou seja, a relação desigual entre as entificações nacionais dos
circuitos do capital, é suprimida, mas também, como acaba de ser aludido, a própria identidade do capitalismo enquanto forma
societária erguida sobre a contradição estrutural entre capital e trabalho. Recuando léguas da melhor compreensão do modo
de produção capitalista, este passa a ser entendido, em sua forma atual, simplesmente como a interatividade dos homens
moldada pelo engenho tecnológico, cuja feição social passa a ser uma questão política.
Para bem compreender esse reducionismo regressivo, é preciso levar em conta que é constitutivo da teoria da
dependência o olhar representativo que desintegra a unidade humano-societária concretamente existente; golpe de vista que
desfaz o sensível para “refazê-lo” a partir de tipos-ideais, oferecendo em lugar do ser-precisamente-assim das coisas, o rearranjo
subjetivo dos fenômenos pulverizados.
Desse modo a dependência resulta apenas de uma construção mental, da qual não faz parte, por “deliberação científica”,
a enervação condutora das desigualdades internacionais das nações. Do mesmo modo que é excluído o eixo de contraposição
entre o trabalho vivo e o trabalho morto, isto é, a clivagem entre classes sociais, que são substituídas, nominalmente ou não,
pela noção de agentes, não mais submetidos a contradições, mas apenas a conflitos, ou seja, figuras isoladas que por seus interesses
particulares entram em choque, embora passíveis de ajustamento e coordenação pela via das regras públicas de conveniência,
vale dizer, da ação política na comunidade do estado.
É de notar que nessa constelação teórica intervém uma característica operação dos procedimentos intelectuais
assentados e prismados pelo estatuto do capital, - a eliminação da categoria da particularidade, pela violência de seu
confinamento à mera existência fantasmática enquanto mediação formal. É através dessa amputação dos seres reais e de seus
processos germinativos e reprodutivos que todas as exclusões referidas são postas em prática. Desde logo a eliminação das
formas particulares do capitalismo, no caso em suas objetivações subordinante e subordinada, que por essas identificações
expressam diferenças de qualidades no substrato universal do capitalismo, em claro contraste com os delineamentos da teoria
da dependência que, retendo somente a universalidade do capitalismo como tipo-ideal, reduz as diferenças entrenacionais
apenas a graus de propriedade ou impropriedade no desenvolvimento do capital, assemelhando-se com isso às antigas teses do
desenvolvimento. Assim também a exclusão das classes, categorias particulares da universalidade societária do capital; ou para
exprimir o mesmo, lançando mão de um ponto de partida incomum - a universalidade do trabalho, quando então o capital e o
conjunto de suas máscaras individuais se materializam como uma particularização do trabalho morto. E do mesmo modo
ainda, quando o espaço público, a comunidade abstrata, é tomada como realidade não clivada, a não ser na infinitude das
clivagens individuais, que remetem cada uma, enquanto pólo singular ao pólo da universalidade de todos os homens, o que
fica de fora é justamente a particularidade da classe social, porção menor é diferenciada do conjunto inclusivo de todos os
indivíduos, pela determinação da qual e só por ela cada individualidade é concretamente incluída na universalidade, cada um é
posto na tensão dinâmica da relação fundamental entre indivíduo e gênero. Ou seja, nas sociedades clivadas, a classe é a
mediação efetiva entre cada indivíduo e o gênero a que está formalmente subsumido, meio substantivo que decide a respeito
desse pertencimento e resolve a forma de sua efetivação. Em última análise, é o meio seletor que, de fato, inclui ou exclui, dá
ou veda o acesso de cada um à comunidade humana.
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A supressão intelectual dessa forma de existência, forma incontornável na sociedade de classes, é paradigmática para
os processos em geral de liquidação da categoria da particularidade, e enquanto tal é o meio que permite o estabelecimento da
fórmula convencional que remete direta e linearmente, um ao outro, indivíduo e sociedade, concebidos como extremidades
autônomas e extrínsecas, quando não excludentes. Plataforma ideal para sustentar a independência entre o plano econômico-
societário da produção da vida, reduzido aos limites tacanhos do egoísmo racional, e o plano político, reafirmando em sua
simplicidade de vontade ativa, cuja ordenação não pode ser oferecida senão pelo antigo coágulo metafísico encerrado na
idealidade do “homem justo e racional”.
É sobre esse mesmo fundamento que se ergue logicamente a aspiração e a luta pela democracia, o que significa que esta
é projetada sobre a diluição de sua rigorosa determinação enquanto efetiva liberdade limitada. É mais uma vez a amputação da
particularidade, agora em pleno terreno político, fazendo coincidir a emancipação pública específica de uma dada forma de
sociabilidade com a noção de liberdade propulsionada para a atmosfera de sua universabilidade indeterminada, ou seja,
promovendo uma expansão puramente de uma entificação histórica.
Trata-se, em verdade, do cancelamento da natureza política da democracia, tornando a democracia a identidade da
liberdade; ou, por outro lado, do cancelamento da democracia como plenitude da forma do poder de estado, tornando a
política a identidade da liberdade; do que resulta uma tríplice identificação: democracia = política = liberdade. Apenas sob este
silogismo é que a democracia é uma universalidade, mas então ela é somente a universalidade de um logo, porque restringida a
um conjunto de regras formais. O que, de fato, ela não é enquanto emancipação pública particular e real, uma vez que como
tal é muito mais do que uma forma, por ser substantivamente a liberdade da propriedade privada, razão porque democracia e
mercado (livre concorrência) são momentos de uma unidade social concreta.
Porém, o que importa aqui é a tríplice identidade entre liberdade, política e democracia, isto é, a democracia
desembaraçada de seu ser-precisamente-assim particular e por esse meio erigida em padrão, a um tempo genérico e insuperável de
política igualada à liberdade, o que lhe confere a condição de arquétipo.
É justamente o arquétipo democrático ou a democracia como critério de verdade que faculta a edificação da teoria do
autoritarismo, esse segundo tipo-ideal que integra o quadrilátero teórico aqui submetido a uma rápida descrição crítica.
A atividade conceitual, que erige a categoria puramente representativa do autoritarismo, combina no fundamental duas
operações mentais. A primeira secciona e autonomiza o círculo político do entrelaçado de todos os outros circuitos que
amalgamam a existência societária concreta, em especial e radicalmente da malha fundante do produção e reprodução da vida.
Não é um procedimento original ou inovador nem por isso menos eficiente ou supérfluo. Por seu efeito homogeneizador é
momento imprescindível para tornar inspecíficas as formas de dominação política, ou seja, é a maneira de transitar para
coagulações abstrativantes que possam deslizar, sem impedimentos formais, sobre o leque das peculiaridades distintas de
formações sociais diversamente objetivadas em suas características. Que isso impeça a efetiva apropriação intelectual de cada
caso concreto não é nenhuma dificuldade para esse tipo de postura teórica, uma vez que não pretende que as abstrações
configuradas correspondam a alguma realidade enquanto tal, mas apenas que sejam instrumentos subjetivos de aproximação
cognitiva, sendo que nisto mesmo se esgota para ela todo o conhecimento possível.
A segunda operação realiza um enquadramento classificatório, partindo do paradigma da democracia. Por definição
negativa, no pólo simétrico à democracia, aparece o totalitarismo como expressão pronta e acabada de sua negação absoluta, e o
autoritarismo como uma figura intermediária, desprovida enquanto tal de partes e, procedimentos básicos do perfil democrático,
sem que atinja o cancelamento integral das liberdades que é do formato totalitário. Assim, o autoritarismo é a voz abstrata que
denomina os quadros em geral de carência democrática, a falta decisiva, ainda que parcial, de franquias públicas. Ou seja,
enquanto o autoritarismo é a atrofia ou a ausência, em graus diversos, de liberdade política, o totalitarismo é o regime do terror
contra o indivíduo, movido pelo estado policial, que concentra em si todos os poderes e através deles exerce todos os
controles sociais.
Que o totalitarismo seja, logicamente, o produto conceitual de uma definição pela negação, bem como o autoritarismo
uma modulação reduzida e suavizada do mesmo, e ambos, portanto, não mais do que os feitos de uma contraposição ao
paradigma da democracia, é tão transparente que basta lembrar a determinação do estado democrático ou liberal: a sociedade
política de direito, cujo poder difuso se manifesta por controles sociais pluralistas.
Tão claros quanto seus passos teóricos constitutivos são as conseqüências político-práticas da teoria do autoritarismo;
em verdade, elas são resultantes tautológicas de seus pressupostos. E não é surpreendente que assim seja,, uma vez que o
critério de verdade - o paradigma democrático - é simultaneamente e a priori a finalidade da consecução prática pretendida.
Assim, o propósito político rege os meios analíticos (o valor como critério de construção do tipo-ideal), que não precisam,
desse modo, ultrapassar o nível das redundâncias, no jogo de suas abstrações que só reiteram a si mesmas, elaborando não
mais do que um mero discurso justificativo.
Jogo e discurso, todavia, perversos, uma vez que impedidos, pelo seu próprio estatuto, de se alçarem sequer à
interrogação efetiva pelas condições de possibilidades da objetivação da democracia, não só porque seu arquétipo repousa
sobre o “homem justo e racional”, o que torna a questão pretensamente sem sentido, como também porque seus apetrechos
de análise são impotentes para uma empreitada dessa ordem, já que obrigatoriamente ignoram por completo as exigências da
lógica da concreção (o caminho de volta”, a rota da verdadeira cientificidade - que vai do abstrato ao concreto, ao qual Marx
se refere em plena maturidade). Isto expõe a pior das conseqüências da teoria do autoritarismo, a velatura com que encobre a
natureza das formas de dominação política que pretende identificar, pois só diz o que elas não são, sendo incapaz de oferecer a
determinação do que sejam. Em conseqüência, por suas generalidades é igualmente incompetente para assinalar a direção e os
meios de ultrapassagem, em cada caso concreto, das configurações em que é aguda a restrição à liberdade política.
123
Todavia, é preciso ressaltar que, para além das ilações práticas das teorias da dependência e do autoritarismo, os
descaminhos do processo sucessório atual contam ainda com o respaldo de uma tese mais antiga e de efeito ainda mais
funesto, por todos conhecida como a teoria do populismo.
Velha de uma quarto de século, a teoria do populismo, mais do que qualquer outra das que integram o quarteto teórico
dominante, é diretamente responsável pelo desatino da maioria dos posicionamentos daqueles que - pessoas ou organizações
políticas - pensam e querem firmar opções e atitudes de ou na esquerda. O peso que recai sobre ela não é uma casualidade.
Primeira a brotar do clima de repúdio à atuação desfigurante da esquerda tradicional no pré-64, a teoria do populismo nasceu
como a própria encarnação do espírito que operou rusticamente a identificação entre os atrelamentos caudatários do PCB e as
equações táticas do frentismo ou das coalizões partidárias. Para a crítica do populismo, apesar de uma certa sublimação conceitual, a
diversidade dessas questões desapareceu e restou quase que somente uma espécie de sinonímia, que expressava por qualquer dos lados o diapasão da
política dolosa. crime contra a independência e as perspectivas dos trabalhadores, embaídos que eram no seu absorvimento às rotas de afirmação do
capital industrial.
De fato, em suas origens e antes do cabamento de seu formato por contornos de natureza politicista, a teoria do populismo teve pretensões
históricas, tanto no plano analítico como em seu aroma doutrinário. Abstraídas influências e confluências com a sociologia
hispano-americana (Gino Germani, Torcuato Di Tella Etc.), que reforçaram seu tempero formalista, a crítica do populismo
pretendeu nada menos do que se alçar à condição de teoria do desenvolvimento brasileiro entre 1930 e 1964. Interpretação,
ademais, que se apresentava como forjada pelo prisma da radicalidade proletária, cujo teor político supunha resgatar assim da
diluição de classes, cuja promoção era feita, segundo a análise, pela política de massas da burguesia industrial ascendente. Em
verdade, a teoria do populismo tentava explicar o trânsito do país agrário-exportador à sua fisionomia urbano-industrial,
munida de um traçado conceitual bastante próximo ao que era empregado no período anterior, isto é, de um punhado de
noções marxistas tomadas em sua pura expressão abstrata, que a influência weberiana tornou definitivamente genéricas na sua
eclética e incriteriosa conversão a tipos-ideais.
Seja como for, o período compreendido - entre a ascensão armada ao poder pela Aliança Liberal (1930), que abriu as
comportas para uma reconversão pelo alto da rígida estrutura econômico-política do país, e a queda de J. Goulart por via
militar - é determinado como a fase de configuração e desenvolvimento do capitalismo industrial. Todavia, na expansão desse
mundo urbano-fabril não impera a hegemonia da burguesia industrial, mas esta condivide a dominação com outros setores
proprietários, inclusive com seus “adversários derrotados” de ontem, e tudo se entrelaça ainda e fundamentalmente com o
advento da chamada política de massas, em que estas passam a exercer funções políticas reais, embora subalternas. E com isso é
dado por configurada o que com certa pompa recebe a denominação de democracia populista.
Não cabem aqui maiores considerações sobre a fragilidade dessa armação teórica, que se restringe a um descritivismo
empirista por cima do qual é derramado um vago glacê de significados através de conceitos muito problemáticos. Mas importa
registrar, sempre em razão dos alvos centrais desse texto, e mais pela insuficiência do que pela curiosidade de certas
elaborações da teoria do populismo, que esta, na trilha de seus embaraços, chega inclusive a determinar a especificidade do
populismo como uma forma de dominação no contexto de um vazio de poder, circunstância em que, como é sabido, nenhuma das
classes em presença é capaz de efetivar sua hegemonia, associando-o desse modo, em sua gênese, à crise da hegemonia
oligárquica e da correspondente fachada liberal do pré-30, ao mesmo tempo em que sustenta que o populismo é a época do
fortalecimento do poder executivo e na qual o estado passa a exercer funções econômicas de grande vulto.
Essa mera agregação “factual”, epidermicamente incoerente na forma em que é enlaçada, entretanto, é muito mais do
que uma eventual contradição nos termos. Além de exemplar quanto à forma de seus procedimentos metodológicos, é através
desse pano de fundo mal cosido que a teoria do populismo assenta a base e os contornos de suas teses mais caras, operando
simplesmente com universais, que supõe de extração marxista, e querendo ser, de início, a consciência teórica da imanente
radicalidade operária, a teoria do populismo fica às voltas com a “anomalia” do quadro brasileiro. Se a burguesia industrial,
por sua fraqueza, tem de admitir o condomínio do poder, um poder afinal que é um vácuo político, e assim mesmo a radicalidade
proletária não se manifesta, há de ser porque está em curso uma grande artimanha. De fato, para a teoria do populismo, a democracia,
partido e o líder populista são em conjunto ou cada um de per si o feiticeiro nefasto, que executa a mágica insuperável de atar as massas
aos setores dominantes. isto é, no quadro das hegemonias impossíveis, acabam por ser as massas, uma vez que reconhecem a
dominação constituída, as responsáveis pela sustentação do status quo dominante, ou, para usar uma pérola de um dos
formuladores da teoria, a atitude das massas acaba por ser “uma forma substantiva da hegemonia inexistente”. Seja lá o que
possa ser uma forma substantiva de algo inexistente, em suma, o afirmado é que o reino do populismo promove o
obscurecimento da divisão real da sociedade em classe, no lugar das quais é entronada a entidade de povo ou nação,
significando comunhão de interesses ou a solidariedade própria das comunidades. Essa notável constatação só não é mais
brilhante porque deixou de esclarecer em que sob tal acepção o populismo, em última análise, se diferencia da forma em geral da
dominação capitalista. Esta nasceu, é bom recordar, com a necessária pretensão à representatividade universal e tem
proclamado - com requintes espirituais ou perversidades físicas - a inquebrantável solidariedade entre o capital e o trabalho.
De outro lado, a pátria, o povo e a nação também têm sido invocadas nas mais distintas configurações ou circunstâncias, não
bastando enquanto tais, em suas simples enunciações, para determinar alguma forma específica de dominação capitalista.
Porém, se a grande artimanha insubsiste à crítica enquanto explicação histórica, é para a teoria do populismo o andaime
suficiente para lidar com seu grande propósito: a falta de compostura da esquerda tradicional e na necessidade de resgatar a
radicalidade espontânea dos trabalhadores.
Seu diagnóstico é, desde logo,, claro e taxativo: não apenas as massas, despreparadas em sua inexperiência, mas a
própria esquerda foi aprisionada pelo ardil do populismo, tornando-se incapaz de converter a política de massas em política de
classe. Ou seja, não ofereceu uma formulação alternativa ao populismo, em consonância com o potencial revolucionário, que
supostamente estava contido no quadro histórico-estrutural. Numa palavra, o que é reclamado, não sem razão, é o caminho
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próprio da esquerda, mas na desrazão do mero pressuposto genérico de que a revolução é possível. Tanto que até hoje, passados trinta anos, a teoria
do populismo não arriscou se estender por uma teoria da revolução brasileira, nem há a menor possibilidade de que o faça de futuro, pois hoje é peça
naturalmente integrada à atmosfera “pós-revolucionária” em vigor. Dito de outro modo, a análise histórica da teoria do populismo não desvendou, à
semelhança das fórmulas e procedimentos de esquerda que ela tem por cerne criticar, o veio das transformações que conduzam a formação brasileira
para além do quadro humano-societário do capital. Tudo que fez e alardeou, em últimas análise, não foi além da reafirmação de um princípio mais
do que centenário - a máxima da independência política do movimento operário.
Mas o alarde foi feito de maneira genérica e formal, quando não meramente em estilo confuso e ruidoso. Insistiu-se
até aqui na afirmação de que o objetivo primordial da crítica do populismo foi a esquerda tradicional, ou seja, a linha
caudatária do PCB. Mas, sem que isso seja afirmado, a teoria do populismo estende a sua denúncia e reprovação a toda a
esquerda do pré-64, garantindo, sem que sob este aspecto lhe faltem razões, que até mesmo os setores mais radicais da
esquerda de então sempre estiveram de algum modo vinculados ao populismo, fazendo da tática de infiltração nos
movimentos de massa e das alianças com partidos, campanhas e lideranças ditas populistas os meios de atuação política para a
conquista das massas, quando então, ao menos na maioria das vezes, sucumbiam eles próprios ao ardil populista.
É esse precisamente o ponto nevrálgico da teoria do populismo. Ela concentra todos os males na política de aliança de classes, que à guisa
de erudição e grande teoria ela cerimoniosamente “desvenda” como política de aliança de contrários. Eis que ardil populista é
decifrado como o pecado capital da aliança de contrários. O que nada mais significa que o pecado da aliança é o inverso da
virtude da independência de classe. Redundando, na generalidade em que a fórmula é estabelecida e sustentada, que a política
virtuosa é a arte e a vontade do isolamento. Na verdade, a implicação é apenas a conseqüência da conversão gravoisa de um
princípio em lema, ambos abstratos, com a diferença de que o último é bem menos genérico do que o primeiro. Um princípio é
uma universalidade, portanto válido para todos por definição, enquanto um lema é sempre um lema de alguém, ao qual
ninguém mais está obrigado. Por conseqüência, se o princípio da independência política é um bom princípio e nessa condição
um impedimento intransponível para as alianças - o que não é verdadeiro -, então nenhuma aliança é legitima e não pode ser
tolerada, nem mesmo sob forma unilateral. Convertido em lema, no entanto, é apenas bandeira ou marca ostentada, que se
jacta de não admitir alianças, mas que não impede de receber sem qualquer reciprocidade todas as adesões. Em suma, é um
truque político como qualquer outro, independentemente da boa fé com que os mais ingênuos o assumam, ou da competência
com que os mais cínicos o manipulem.
Em realidade, a independência política é a condição de possibilidade de uma aliança real, figura constituída
precisamente pela conjunção de entidades distintas que resguardam suas identidades, num empenho conjunto, e que só pela
manutenção da diversidade (inclusive no caso de contraditórios) dão lugar à sua entificação. Na junção de frações do mesmo
gênero (por exemplo, partidos da mesma extração social ou representativos de um mesmo universo teórico-ideológico),
melhor seria pensar em unificação temporária do que em aliança. Sem a independência dos aliados, desaparece a diversidade e
com esta a própria aliança, seja pela incorporação deliberada de um das partes à outra, seja negativamente pela reles
deliqüescência caudatária de uma delas, que provoca não só o desaparecimento do elo que articula os aliados, como também
desmancha o integrante despersonalizado e decaído.
É desta última forma que se tratou no pré-64, não de sutil e ardiloso envenenamento pelos fluídos irresistíveis da
desgraciosa burguesia brasileira. Independência política de classe não é um mero lema, nem mesmo a vácua reafirmação
abstrata de um princípio, mas a construção complexa da própria independência, que é encarnação de autonomia teórica,
ideológica e orgânica, bem como de talento e capacidades práticas de múltiplas qualidades e dimensões, sustentadas por
militância lúcida e numerosa, irradiada por todos os poros da sociedade. A esquerda pré-64 obviamente não detinha tudo isso,
nem muito menos. Por que a esquerda não se materializa dessa forma e continua a não se materializar é a verdadeira questão,
sobre a qual a teoria do populismo não teve nem tem uma palavra a dizer.
Aliás, com o passar do tempo a teoria do populismo foi dizendo cada vez menos. Quanto mais se difundiu e
dominou, tanto menos significação real foi capaz de guardar, a ponto de hoje animar sem ressalvas desde os editorias da
grande imprensa até os mais modestos folhetins dos mais bisonhos remanescentes da esquerda extra-legal. Como tantas vezes
ocorre, sua vitória coincide com sua derrota. Reduzida a cadáver formal impera como um parasita da inteligência e da
sensibilidade políticas, e enquanto tal vem exercendo na sucessão presidencial um papel de enorme importância.
Não será demasiado precisar um pouco essa destino esclerosante da teoria do populismo, mesmo porque foi sob essa
forma que obteve sua máxima efici6encia. Como análise histórica foi reiterada com fervor por uns e mecânica e
protocolarmente por outros, convertendo-se em tese oficial, mas nunca perdeu sua frugalidade e sintomaticamente estancou
sobre si mesma, ou seja, foi incapaz de auxiliar na compreensão do processo brasileiro posterior ao golpe de 64.
Todavia, com relação ao novo período passou a funcionar como uma alegoria, lembrando sempre que o demônio existe;
o que é extraordinariamente curioso e revelador, pois é de suas teses fundamentais a determinação de que a ruptura de 1964 é
precisamente o encerramento do colapso do populismo, derrocada que principiara logo após o governo de Juscelino Kubitscheck.
Ou seja, o esgotamento de uma fase de acumulação capitalista, sustentada pelo processo de substituição de importação, e o
fim correspondente de sua forma de dominação política - a democracia populista. Diagnóstico de um período rigorosamente
datado - 1930/1964 -, que assegura extinto, a teoria do populismo, abstraída sua qualidade historiográfica, tem portanto sua
extensão de validade fixada por ela mesma. tanto que, na explicação política da ditadura militar, cede lugar à teoria do
autoritarismo. Cede o papel de teoria explicativa, mas não desaparece de cena, rufa os tambores ao fundo, não deixa que seus
próprios mortos sejam enterrados, ou não acredita na certidão de óbito que ela própria emitiu e firmou. Em verdade, acredita,
quer acreditar ou quer fazer acreditar que os fantasmas existem, e para isso reajusta ou reafina suas finalidades ideológicas. De
qualquer modo, Combina-se com a teoria do autoritarismo, não o faz porém como duas parcelas numa adição, ou o engate de
dois elos em que ambos guardam sua integridade. A teoria do populismo perde substância para a teoria do autoritarismo; decai
sua preocupação relativa à análise histórica e também progressivamente sua pretensão ao resgate da radicalidade operária. Ou
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seja acompanhada a teoria do autoritarismo no seccionamento e autonomização do circuito político, torna-se, por assim dizer,
mais política, porque menos histórica, isto é, indiferente à malha societária em suas múltiplas determinações. Numa palavra,
adota o padrão formal da teoria do autoritarismo, converte-se num politicismo, ou desenvolve os germens politicistas que
continha desde o início, cujo critério de verdade deixa de ser a radicalidade imanente dos trabalhadores, passando a se mover
pelo arquétipo da democracia. A artimanha populista passa a valer pelos estereótipos do que pela sua “verdade histórica”. São
acentuadas mais e com ênfase maior suas “descobertas” secundárias: os traços, cacoetes e venenos dos líderes e partidos ditos
populistas síntese alusiva, poder-se-ia dizer que os adeptos da crítica do populismo, no acasalamento com a teoria do
autoritarismo, deixam de pensar na democracia populista, para passar a refletir em termos de autoritarismo populista.
Por essa via, mas comprometida pelas raízes, a teoria do populismo, não menos do que as outras fórmulas do seu quadro de articulação
conceitual, não ultrapassa a mera condição de operador na abstratividade, algo como uma herança muito curiosa e tardia da conduta própria às
ciências do espírito que reinaram no começo do século. Construções intelectuais que primavam por tomar impulso em referências empíricas
insuficientes, para muito além das quais era estabelecida uma abstração todo-poderosa e a partir da qual a realidade era arbitrariamente deduzida.
É por rumos desse tipo que tudo acabe no conceito deformador de populismo, desde a figura de Getúlio Vargas até lapsos de João Figueiredo,
passando por todo um elenco de governantes pretendentes ao poder do continente latino-americano e até mesmo de outras paragens. Tão extenso
quanto vago, tão impróprio quanto dúctil e indutor de múltiplas absurdidades analíticas, o conceito de populismo não é mais, enquanto conceito, do
que um nome. Em verdade, não mais do que um rótulo ou apelido, um frouxismo tipo-ideal, que para se enformar no Âmbito mais geral partiu de
uma atrocidade, perpetrando o embaralhamento de eventos históricos específicos como o movimento dos granjeiros norte-americanos, o norodnichestvo
russo e fenômenos urbanos-industriais diversos da periferia do sistema do capital.
O que resta de fato, no processo formalizante do autoritarismo populista, é um ajuntado de notas reificadas e fetichizadas
- desde a “independência política” até os “caracteres do populismo” - convertidos em meios para a identificação e exorcismo
do inimigo, sobre o qual é lançado o decretum horribili.
É enquanto tal - como expediente ideológico menor, no pavoroso deserto ideológico da “esquerda” contemporânea, e
para uso e abuso da prática política cotidiana, que a teoria do populismo comparece e atua, em sua larga difusão, no processo
eleitoral em andamento.

Findo o volteio através da atmosfera teórico-ideológico, que permeia a quase totalidade dos agentes partidários na esquerda,
motivo pelo qual se impôs à consideração, a análise do pleito sucessório pode ser retomada e seu exame levado até o fim.
A questão analítica central continua a mesma - delinear as condicionantes da irrealização da confluência eleitoral na
esquerda. Ou seja, sumariando de passagem o evidenciado até aqui: o conjunto das teorias examinadas excomungou a
inclinação pela política de alianças, típicas da postura do pré-64, da mesma forma que desamparou de qualquer projeção a
problemática da identificação nacional. É só para proporcionar uma ilustração concreta, vale acentuar que demoliu a última
expressão das propostas daquele período, as sempre aludidas - reformas de base, porém, foi incapaz de pôr em seu lugar uma
alternativa. Com isso não vai insinuada a recuperação de uma plataforma antiga e perdida no tempo, ainda que vários de seus
alvos fundamentais (como a reforma agrária) continuem na ordem do dia, mas fica assinalado que a cobrança por uma
alternativa, feita à esquerda pré-64, continua válida hoje, mais do que ontem, para a esquerda pós-64.
É esta, a assim chamada nova esquerda, em suas expressões partidárias e perfis de campanha, a responsável, a
responsável integral, pela ausência inaceitável de uma candidatura unificada das correntes progressistas, pela falta até mesmo
de esforços e cogitações relativamente consistentes em torno dessa necessidade política vital. Nova esquerda que é,
independentemente de diferenças que vão de partido a partido, de gênese e composição, bem como de outros muitos fatores
entificadores, a incorporação prática do espírito teórico que se acaba de traçar em algumas de suas inflexões mais
características.
Sem dúvida, o PT e o PSDB, para só mencionar os partidos que na secessão jogam papéis relevantes, são impensáveis
sem a alma do quadrúpede teórico criticamente descrito. Dela extraem suas leituras de realidade, o inventário dos problemas
nacionais e o rol de suas proposituras. Seja pelo funcionamento de seus aparatos orgânicos, linhas de conduta e posturas de
campanha traduzem direta e indiretamente, ortodoxa e heterodoxamente o conjunto daqueles referencias e suas derivações
prático-políticas. Por cima dos quais erigem os mitos de suas significações luminosas, a grandeza e a generosidade de seus
propósitos, ou seja, a face incontrastável da virtude política, posta a serviço dos melhores ideais em sua mais depurada e
moderna encarnação.
Que a auto-engano, enquanto afirmação de vontade, seja inerente à figura do partido político, parcela que desde logo se
propõe pelo todo e contra todas as outras partes que se expressam a sua semelhança, não significa que qualquer ilusão de partido seja
absolutamente necessária, nem que sejam indistintas, portanto, a fantasia política obrigatória e a falácia enquanto pura falácia
de avaliação, cálculo, pretensão ou procedimento. No caso, os enganos necessários e os equívocos “desnecessários” se associam e
potencializam, redundando nas inaceitáveis condutas eleitorais que perfazem o desfile neste momento.
É mais do que oportuno recordar, justamente porque impera na atualidade a convicção inversa, que o jovem Marx já
sabia que “Onde houver partidos políticos, cada um deles vê o fundamento de todo o mal no fato de que não esteja ele no
governo do estado, mas seu adversário. Os próprios políticos radicais e revolucionários procuram o fundamento do mal não
no ser do estado, mas numa determinada forma de estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de estado”.
Posto que, vale relembrar também, remetendo ao plano mais geral, que “O entendimento político é justamente entendimento
da política enquanto pensa no interior dos limites da política. Quanto mais vivo e penetrante for, tanto mais incompetente é para
compreender os males sociais. O período clássico do entendimento político é a Revolução francesa. Muito longe de perceber no
princípio do estado (a sociedade civil) a fonte dos defeitos sociais, os heróis da Revolução francesa percebiam muito mais nos
defeitos sociais a fonte dos males políticos. Assim Robespierre não vê na grande miséria e na grande riqueza a não ser um
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obstáculo para a pura democracia. /.../ O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, quer dizer, pleno é o
entendimento político, tanto mais ele acredita na onipotência da vontade, e tanto mais cego é em face dos limites naturais e
espirituais da vontade, e assim incompetente também para descobrir a fonte dos males sociais”.
Pelo já dito ao longo das diversas partes desse trabalho, a evocação dessas passagens das Glosas Críticas Marginais,
escritas em 1844 contra Arnold Ruge, além de vir muito a propósito da atrofia espiritual dos nossos tempos, tem
particularmente tudo a ver com o politicismo, sobre cuja chaga foi posto explicitamente o dedo, quando há pouco foi oferecido
o desenho do universo mental em que se movimentam o PT e o PSDB. As palavras de Marx, portanto, não aparecem
meramente como Âncora ou respaldo, mas enquanto breve elucidação da natureza do populismo, isto é, determinado como
fenômeno teórico e prático, inclusive em sua face radical, instaurado e nutrido pelo universo da lógica do capital. o
diagnóstico é até supérfluo no que tange ao PSDB, dado que esse caráter é correta e explicitamente assumido pela agremiação
e seus mentores. Basta, então, apenas especificar, dizendo que esse partido exprime a feição mais racionalística e tecnocrática
do politicismo, o modo elitista e higiênico de calcular e prover a distribuição da justiça social. É no que se resume seu hino à
modernização. Elevar o país, como escreve F. H. Cardoso, à condição de “nação moderna e competitiva à escala mundial”
(FSP - 1/6/89). Em outros termos, tornar o país contemporâneo de seu tempo, mas o sociólogo, expoente do quadrilátero
teórico examinado, não precisa indagar porque a nação não compartilha da contemporaneidade. Basta ao senador e ideólogo do
PSDB querer um Brasil “racionalmente eficiente”, o que o leva a desdobrar a empreitada em diversas modernizações -
“econômica, cultural, social e tecnológica” -. É o país projetado à imagem e semelhança de um centro de excelência, próprio aos
meios acadêmicos. O barbarismo sociológico tem equiparado muitas vezes a universidade à sociedade, agora o aristocratismo
sociológico equipara a sociedade à universidade.
Nessa moldura o zelo do PSDB pela “independência política” é apenas o lema da versão encolhida da autonomia do
“homem justo e racional”, tanto quanto sua repulsa nauseada pelo “populismo” é a alma efetiva da mistificação que alardeia
com sua megavalorização do partido como ação política organizada; ambas, “independência” e “antipopulismo”, não mais do que
o culto dominical no altar dos deuses ardilosos do egoísmo racional. Desse modo, sua vontade social-democrata é antes de
tudo anseio de modernização capitalista e por isso mesmo vergonha intelectual do arcaico e da miséria. Vontade que julga
assentar no melhor da racionalidade prática, razão que acredita, fechando o círculo, estar fincada na volição mais justa e
universal.
Corporificação da vontade racional ou de racionalidade volitiva, ninguém mais do que o PSDB se credita,
exibicionista em retidão de caráter e preparo instrumental, no direito reconhecido de ascender ao poder. A postura de Mário
Covas ao longo da campanha, superpondo as imagens - do prodígio informático ao do colosso de serenidade - seria o
monumento dessa crença, se não fosse a expressão risível da perplexidade dessa mesma fé factualmente desmentida. Vai nisso
uma certa porção de semelhança não casual entre PSDB e PMDB, tanto quanto entre Covas e Ulysses. Por muitas razões e
certezas o PSDB é o quase homônimo e o simples presente do PMDB, quando não há mais nome nem presente para o que o
PMDB foi no passado, da mesma forma que a dignidade pessoal e a herança de lutas, inclusive as da Constituinte, já não
significam, se é que alguma vez significaram, garantias de futuro. Assim, a Ulysses, patriarca bissexto da democracia,
corresponde Covas, candidato a profeta impessoal e burocrático de uma velha ideologia.
Covas e suas dúzias de ministeriáveis não chegarão à praia, vão morrer na caravela longe da costa, persistindo em sua
soporífera aritmética do impossível só porque os dois turnos fazem soprar os ventos da irresponsabilidade. E o PSDB com
isso desmente sua propalada racionalidade, demonstrando ainda que a vontade política, com que tanto enche a boca, não é mais
do que aposta unilateral, o eterno procedimento da política que cega a si mesma através de suas próprias viseiras.
No desatendimento ao imperativo atual da luta pelo poder, como bloqueio à consecução de um confluência eleitoral
na esquerda, tendo por clima inspirador e arrimo intelectual o quadrilátero teórico debatido, o PT é um caso mais complexo, apesar
de muito menos sofisticado em suas postulações e pretensões ideais, do que o PSDB.
Mais complicado ou, a rigor, simplesmente mais prolixo porque, dada a inexistência nos dias correntes de um campo da
esquerda, o PT, cujo perfil prático e ideológico está inscrito na esfera da radicalidade política do capital, condivide com essa sua
realidade autêntica a condição hipotética e fantasiosa de santuário possível ou germinal da radicalidade do trabalho. Não só deixa
fluir como alimenta essa dubiedade, que se arma a seu redor e através de algumas de suas dobras e fissuras internas. Deixa-se parasitar, eis o ponto,
por um espírito que não emana de seu corpo, nem o impulsiona, mas cuja impostação corresponde a aspirações difusas que, sem suporte ou nicho
próprios, desaguam em seu leito. O PT - como partido dos trabalhadores - é por essa via o fantasma idolatrado da esquerda ausente. A
quimera palpável de esperanças e perspectivas sem sustentação orgânica, o altar visível de um deus oculto, com cuja galeria de
santos e profetas parece ser possível coabitar, uma vez que a simples proximidade física dos trabalhadores, por suposto, faria
do PT a trincheira de todos os sonhos revolucionários.
Todavia, esse ledo engano não é uma projeção totalmente arbitrária, mas propiciada pelo fato de que, no PT ou para o
PT, tudo se passa como se - movimento sindical fosse diretamente movimento operário, para usar umas expressão que se consagrou
justamente por efetuar, ao contrário, a precisa distinção entre ambos. Pela indistinção entre a legítima ação corporativa de
setores e frações profissionais e a atuação societária de classe que visa a reconfiguração cabal do universo humano de convi-
vência, é que se esvai a possibilidade do PT se objetivar como uma organização política de esquerda, e ganha corpo, em
contrapartida, sua configuração qualitativamente diversa de partido representativo dos trabalhadores situado na esquerda,
extremo do arco político compreendido pela equação social da lógica do capital. Identificação entre movimento sindical e
movimento operário apoiada sobre a noção reducionista de agente - profissional (sindical) e/ou político, que comparece em
detrimento da categoria de classe social. Posto de outro ângulo, para o PT - movimento operário é o movimento sindical
operando politicamente, mas sem a mediação das determinações sociais, ou seja, é a transpiração do agente sindical para o
universo político, desconsideradas, portanto, as clivagens sociais determinadas pela antítese estrutural entre capital e trabalho
que ordena a sociabilidade capitalista. O que é perdido nessa passagem, e com isto o teor e a direção peculiares de uma política
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da perspectiva do trabalho, é a própria entificação de classe que medeia entre o movimento sindical e o movimento operário.
Trata-se, em resumo, de um transporte para uma política meramente assentada sobre si mesma, isto é, uma transferência
politicista para a política, que a própria origem do PT condiciona e explica.
Basta dizer que o PT é o encontro da combatividade sindical dos últimos anos da década de 70, que preencheu de
maneira notável o vácuo escandaloso a que fora reduzido até mesmo o movimento corporativo dos assalariados, pela conduta
omissa, quando não diretamente desmobilizadora da esquerda tradicional, com os representantes e o clima teórico-ideológico
do conjunto de teses elenco mais atrás. De maneira que o renascimento firme e pujante da movimentação dos trabalhadores
veio, assim, a submergir na atmosfera politicista, quando buscou os caminhos da organização e das definições políticas. Por
conseqüência, ao inverso do que se daria num rumo de esquerda, com seu desenvolvimento o PT simplesmente politicizou a
prática sindical, não extraiu da lógica do trabalho a política que supera a política, isto é, ficou nos limites do entendimento político,
não se alçou à política norteada pela razão-social.
Em síntese, o formidável movimento sindical que originou o PT resgatou as lutas corporativas, mas o PT não
resgatou, pela submersão politicista, o campo da esquerda, cuja ausência continua sendo sua única notabilidade. No interior
dessa brecha o PT é recoberto por uma espuma fantasiosa de esquerda, sem ter ideologia ou prática de esquerda. E suas lutas
reais, no pólo da radicalidade burguesa, são transfiguradas, pelo olhar ansioso de todos que assim as miram, na batalha
encantada pela república ou pela democracia imaginária do proletariado. Tudo isso tem por suposto uma antiga aposta,
historicamente desmentida, - no brotar espontâneo do propósito de transformação radical entre os trabalhadores. O que
facilita não poucas coisas, desde as tomadas de posição militante até a conquista da confortável sensação de partilhar da
verdade, sempre e quando - e isto basta - houver perfilamento com a movimentação dos obreiros; estar com ou ao lado do
proletariado, independentemente do que este seja ou faça num dado lugar e momento ,é o título de garantia da almejada
sagração revolucionária. Pois, ao sonho do espontaneísmo é intrínseca a visão mágica do trabalhador, para a qual este só pode
ser o repositório indubitável de todos os saberes e virtudes.
Já dizia um renomado poeta francês que “nada é mais cansativo do que ter que explicar o que todo mundo deveria
saber”. Mas, dada a contrafação das experiências do leste europeu e de sua irradiação planetária no que tange ao modo de
idear e fazer o partido político da revolução do trabalho, não há como escapar à necessidade de repor essa questão e, de
passagem, recordar algumas notas que caracterizam o instrumento operativo que abre caminho à revolução social.
A organização política independente dos trabalhadores é, em seu cerne, não mais simplesmente a orgânica da
afirmação de uma vontade, como é do feitio das equações partidárias que a antecedem, regidas pela lógica societária do capital,
mas a subsunção da vontade ativa à afirmação de uma possibilidade objetiva, racionalmente descoberta e sustentada. não se
trata mais da manifestação enfática de uma volição particular, expressão de uma parcialidade social determinada, que se pensa
e projeta como representante do interesse coletivo, porém da afirmação universal do homem expressa na potência de uma
nova ordenação da vida societária. Por isso o chamado partido de vanguarda é de vanguarda e da revolução universal. De
vanguarda porque sinaliza o devir dos passos exigidos pela autoconstrução do homem; da revolução universal porque diz
respeito ao todo do gênero humano, na totalidade de seu complexo material e espiritual. Pela mesma ordem de motivos, o
também denominado partido de novo tipo é novo; não simplesmente porque é construído sob o atendimento deste ou daquele
princípio político ou técnica organizacional (estes poderão ser tantos quantos forem as demandas variáveis da multiplicidade
das situações reais), mas porque ultrapassa a mera vontade política e a mera intersubjetividade particular ou grupal. A
superação destas é a projeção para além da liberdade restrita e abstrata e a elevação do simples desejo consensual ao nível
humano efetivo dos atos teleológicos, que compreende a plena intervenção da subjetividade em seus momentos fundamentais:
enquanto faculdade receptora que elabora a identificação da malha causal, que opera na plataforma sobre a qual a atividade é
desenvolvida; e enquanto aparato que escolhe e decide, projetando a configuração do objetivo a ser efetivado.
Por essas determinações o partido do trabalho, o instrumento de mediação política da atividade social conscientemente
transformadora, que assume a potência regencial da lógica do trabalho e a este como protoforma de toda prática social, não é
o partido dos trabalhadores tomados estes no complexo imediato e negativo de sua “condição operária”, ou seja, de homens
negados e despojados de sua humanidade, de seres expulsos da comunidade dos homens. O partido do trabalho não é a volição
afirmadora dessa máxima negatividade, mas precisamente o oposto - sua máxima negação. Ou seja, o partido do trabalho não
se molda, nem prefigura seus objetivos pela miséria material e espiritual dos trabalhadores em sua existência concreta de
humanidade aviltada. Não é a afirmação da particularidade de classe dos trabalhadores, nem prougna pela sua universalização,
o que só confirmaria para a generalidade a perversão do trabalho a meio de subsistência, redundando por sua vez na
reafirmação de toda a gama de mazelas oriundas da subsunção do trabalho vivo ao trabalho morto. Nestes termos, o partido
do trabalho se perspectiva pela negação radical do trabalhador enquanto farrapo humano, enquanto contrafação involuntária
do gênero dos homens; não subverte abusivamente os desvalores da “condição operária”, no dever-ser absurdo da
sociabilidade futura, ou seja, sua parametração não é a extensão universal dos valores supostos da miséria material e espiritual,
a mistificação destes como futuro antecipado na forma de pobreza edificante.
Em realidade, o partido do trabalho é a ferramenta para a auto-negação da “condição operária ou proletária”, pois
essa condição importa não por aquilo que é, mas porque encerra a possibilidade de deixar de ser, pelo fato de que pode se auto-
suprimir e nessa supressão eliminar em conjunto a esfera de sua produção e reprodução societárias. Portanto, o partido do
trabalho não é a organização política dos trabalhadores enquanto suportes do trabalho decaído, que produz a riqueza e
desproduz o produtor, mas a orgânica armada pelo estatuto do trabalho desestranhado (ou desalienado, para empregar o termo
errôneo, porém mais conhecido), ou seja, do homem que tem na forma autêntica do trabalho sua primeira necessidade, o
modo inerente de realização enquanto homem na processualidade infinita do devir homem do homem. Ou, como arremate, o
partido do trabalho, o órgão da atividade política de esquerda é aquele que anuncia a emancipação do trabalho e o fim do poder
político.
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Basta isso para assinalar com toda ênfase, em que pesem a rapidez e a abstratividade conferidas ao tratamento do
tema, a diferença qualitativa fundamental entre a politização ou, a rigor, a politização do movimento sindical, que consubstancia
uma nítida atuação política na esquerda, e o desenvolvimento de uma ação partidária que, mesmo sob as vicissitudes das
equações táticas a que é obrigada, dá consecução à lógica revolucionária do trabalho, compondo assim a entidade e o
movimento de esquerda. Este sim, o modo único de realização efetiva e não apenas nominal da independ6encia política dos
trabalhadores, pois a autonomia destes não é seu isolamento empírico no tablado dos jogos do poder, mas a sustentação
prática, através de todas as mediações necessárias, da possibilidade do encontro universal de todos os trabalhadores livres na
“sociedade humana ou humanidade social” de que fala a X tese Ad Feuerbach.
É pelo abismo dessa diferença que o voluntarismo transpassa a urdidura dos partidos na esquerda pode conter e
exercitar.
Não há no PT qualquer dimensão dessa ordem de radicalidade, qualquer traço - ideal ou prático - de identificação
consistente com o diapasão teórico e analítico e, por coerência, com os timbres de uma prática perspectiva pelo estatuto da
lógica humano-societária do trabalho. Nesse sentido as evidências são muitas. Desde logo pela forma totalmente oca e
irresponsável com que lida com sua pretensa “vocação socialista”. Questão grave e decisiva, obviamente hoje mais do que
nunca, pelo socialismo o PT simplesmente se define pela indefinição, não mais do que pela vaga e grosseira alegoria de que
um dia “o povo dirá o socialismo que quer”. É muito pior do que não dizer nada, uma vez considerado o voluntarismo
escapista da expressão, seu caráter de ofensa à inteligência e, o que é ainda pior, sua forma leviana de confundir os de baixo,
no próprio plano de suas maiores debilidades. Em sua perplexidade, sem ser capaz de imitir uma nota significativa, a voz do
PT sobre o socialismo é um sopro acanhado, que alude sem eira nem beira à mais batida e raquítica das promessas, um futuro
bom, remoto e sem fisionomia, o equivalente às mais esgarçadas e ritualistas remissões aos céus, muito menos até do que o
mais simplório doutrinarismo de cartilha.
A impropriedade aguda com que o PT encara dominante e oficialmente sua “vocação socialista” não é remedida, nem
mesmo em escala mínima, pelas tendências - ditas radicais - abrigadas em seu interior. Apesar de constituírem para alguns o
ancoradouro fantasmático de suas mal cozidas esperanças, não ultrapassam a condição de simples e importunos
complicadores, que se debatem, antes de mais nada, no naufrágio de suas próprias orientação. Como remanescentes de falácias
antigas, carecem de verdadeira perspectiva de futuro, reiterando meramente de forma ruidosa seu esgotamento. Sua
impotência absoluta para mudar as coisas petistas é puro reflexo de sua total incapacidade para mudar a si mesmas. Ancilosadas,
só têm energias para multiplicar dissidências e, de uns tempos para cá, já enveredam pelo caminhos da autodissolução. No
mais, desservem e agridem a causa socialista, pela rusticidade pavorosa de suas concepções e práticas, que reproduzem, às
vezes ao limite di fanatismo e sempre com pobreza de inspiração, todos os velhos cacoetes mitificadores da política, da
idolatria partidária e da devoção pela “luta por dentro”. Enquanto tais, as tendências não constituem o melhor do petismo, mas
uma parte do pior petelhismo, na medida em que são a desfiguração, teórica e prática, a face inaceitável e a contrafação da
revolução do trabalho, ressalvadas, é evidente, individualidades de valor e caráter e as energias malbaratadas de tantos que se
perdem no labirinto de seus descaminhos.
Convém agregar ainda que, em face das tendências e independentemente de predicados, a Articulação é o corpo real do
PT; que seu domínio, enquanto tal, é a legítima realidade de uma postulação político-ideológica, que nasceu sob a égide da
reinvenção do mundo como ilusão de partido, e desse modo amparada no direito perversor de ser o espaço cativo do antimarxismo
militante.
Em sintonia com os ecos de sua mais do que vaga profissão de fé “socialista”, embora em contraste aparente com ela
pela ênfase que empresta às formas da atividade política, o PT é o próprio extremismo da “revolução dos procedimentos”.
Alicerça sua novidade na participação, enfatiza ao máximo a mudança de procedimentos, professa a idolatria dos empuxos pela base,
faz-se suporte de traços da democracia popular ou direta; reverberações, por assim dizer, da radicalidade rousseauniana que,
todavia, em seu apreciável porte plebeu, só podem confirmar a natureza dessas práticas e de seus correspondentes momentos
ideais como expressões de polaridade no arco político do capital, uma vez que essas modalidade de conduta não reconvertem,
nem poderiam reconverter tais atos à substância política centrada sobre a lógica do trabalho. Tanto mais iconoclasta e radical
ressoa esse extremismo plebeu, quanto menor for a presença da radicalidade burguesa propriamente dita. Ora, em solo
brasileiro, o radicalismo burguês jamais se manifestou, nem houve nunca um partido radical da burguesia, de modo que, até
mesmo por inadvertência, a “revolução dos procedimentos” pode se embrechar nesse ôco político do capital atrófico com as
vestes da esquerda, sem no entanto abandonar seu efetivo assento na esquerda.
Entretanto, no caso do PT, não há nada de predominantemente inadvertido. Deliberadamente longe do melhor
entendimento da sociabilidade do capital e de suas formas de dominação, e politicizando o movimento sindical à guisa de dar
provimento político às necessidades dos trabalhadores, todo seu discurso empenho pela democracia participista é perfeitamente
coerente, enquanto partido estacionado em moldes plebeus na esquerda do arco político do capital. Expressa inclusive a própria
concepção de democracia, que aí está em jogo - e que se decifra, em última análise, como possibilidade de participação, de presença
nos circuitos das tomadas de decisão, e também já de consenso negociado, ou seja, de conciliação de interesses. O PT tem
feito, em certa medida, especialmente em suas instâncias mais elevadas, é justo reconhecer, o aprendizado da negociação - até
mesmo como extensão de sua experiência sindical, e não há que estranhar que queira guardar o estilo plebeu de negociar: rude,
áspero, desconfiado e com ar de vítima arrogante, buscando ser breve quando é preciso multiplicar os elos e intercalando
dificuldades quando é preciso ser breve; postura, todavia, que até recentemente se reduzia à simples ser breve; postura,
todavia, que até recentemente se reduzia à simples teimosia e intransigência, confundidas então com a própria radicalidade.
De fato, o que há para lamentar está situado em outro ponto mais decisivo, desse complexo: democracia e
participação, pela via da “revolução dos procedimentos”, tornam-se idênticas, as formas prevalecendo sobre os conteúdos, de
modo que a participação se torna participatismo e a democracia o universo de sua realização. Em outros termos, a democracia se
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revela como participacionismo negociador, o plano único ou supremo da política, a forma de encarnação da liberdade. Portanto, seja como for, algo
diametralmente distinto da determinação da democracia como o regime que não estrangula administrativamente pela força as contradições sociais,
mas, ao contrário, que lhes dá curso livre, de forma que elas se agudizam e explicitam, permitindo assim que sejam resolvidas, não pela simples
participação política, mas pela devida intervenção social. Democracia que vale, desse modo, enquanto campo de batalha aberto para as soluções que
ultrapassam, e não meramente como a instância das “participações resolutivas” que a reiteram.
A diferença entre as duas concepções é total: a última tem por centro crítico a radicalidade do trabalho, ao passo que a
primeira é regida pela lógica do capital, ainda que em sua radicalidade plebéia. O PT tem o direito inconteste de opção pela
mais restrita, mas não o de fazer supor que sua escolha recaiu sobre a mais profunda. Em realidade, o que importa não é se a
confusão é proposital ou involuntária, mas o entendimento de que a “revolução dos procedimentos”, a petista democracia
participativa está em verdadeira consonância com seu laconismo socialista.
Esses dois aspectos característicos do PT, aos quais se associa intrinsecamente o já mencionado espontaneísmo, obrigam a concluir que seu
pretendido extremismo se equaciona apenas e simplesmente como radicalidade subjetiva, enquanto vontade suposta de máxima conse-
qüência, em suma como voluntarismo, que ignora o sentido e as condições de adoção e realização da postura efetivamente
radical em seu momentos ideais e reais, ou seja, da radicalidade objetiva, que só se processa pelo cumprimento integral de atos
teleológicos propriamente ditos.
Não só no atacado, nas linhas gerais de definição, mas também no varejo programático o PT é uma organização
plantada na esquerda. Certas ênfases marcantes de sua plataforma, na campanha presidencial, traduzem esse fato com toda a
evidência.
A grandiloqüência, por exemplo, com que é prometida e proclamada a suspensão do pagamento da dívida externa,
quando o pagamento já está suspenso e sem proclamação alguma, dá bem o contraste entre a fé na vontade, inclusa a pura
crença no som das palavras, e o desdém pela fisionomia até mesmo mais imediata das coisas. Ainda que outro fosse o quadro
e a moratória ou a suspensão unilateral pudessem vir a ser um verdadeiro ato, seriam sempre um ato insuficiente e sem
conseqüência bastante, toda vez que não considerassem que por si sós não são resolutivos. Ou seja, de duas uma ou se trataria
de algo desencadeado em plano inferior, significando apenas manobra protelatória ou tentativa de gerar negociações a partir
de posição aparentemente menos desfavorável, ou então seria atitude de força em nível mais elevado, o que descartaria a
possibilidade de recuo. Nesse caso, implicaria a necessidade de uma política econômica alternativa, esquematizada sobre
modificações estruturais do sistema produtivo como um todo. O PT até aqui (e decerto assim será por toda a campanha) não
expressou a mínima inclinação pela segunda hipótese, em momento aludiu, em conexão com a suspensão imediata do
pagamento da dívida, a um programa econômico alternativo. Sua proclamação tem sido um mero alarde de coragem e
pretenso extremismo, isto é, fica encerrada e contente no interior do invólucro plebeu de sua polaridade na esquerda.
Há, de fato, um gosto acentuado pela declamação no conjunto da campanha presidencial petista. O que nela vem se destacando - é a
vontade de dizer, e de um modo tal que a entonação sugira mais do que os termos significam. É o caso da reforma agrária, cuja
fórmula proposta não ultrapassa os delineamentos tradicionais da matéria; mais do que isso, desinserida de um programa
econômico alternativo, isolada em seu formato convencional, não tem as feições do tempo a que se dirige, nem o rosto de um
dispositivo de transformação econômica, e por isso mesmo quase que tão somente o perfil de um “remédio social” de eficácia
duvidosa. Mas é sustentada como se fosse a quinta-essência do radicalismo, a marca indelével da honra esquerdista.
Algo do mesmo tipo envolve a posição da plataforma petista no que tange ao sistema bancário nacional.
Diagnosticando o óbvio com grande surpresa, manifesta escândalo diante do poderio e da capacidade mágica do capital
financeiro em multiplicar lucros. E reage indignado sintomaticamente, fazendo a ameaça da estatização. Não importa que seja
uma ameaça flutuante, que avança, retrocede e torna a avançar, mas que seja simultaneamente agressiva e impraticável. Fora de
um projeto de reordenação global da economia nacional, que o PT não possui, nem pode entender que seja preciso formular,
a estatização do sistema bancário é uma simples palavra de ordem alegórica, na qual ninguém pode acreditar, mas que faz
bastante barulho e confere uma auréola de ousadia. É uma espécie de invasão do templo, vale por mostrar aos senhores, detrás
de barricadas imaginárias, a língua do povo.
Há em tudo isso uma grande dose de moralismo, esse misto impalatável de ideal menor e incompreensão maior, feito
de antigas e corriqueiras medianias: a “desaprovação da ganância”, a “reprovação das ambição desenfreadas” e também de
revolta diante das “injustiças da riqueza”. O pior de tudo, no entanto, está na equação resolutiva, oferecida no ápice da
plataforma eleitoral petista.
Trata-se do desejo e da proposta de um capitalismo mais justo, isto é, de um capitalismo honesto que não prime pela
desconsideração dos humildes; para quem, em última análise, a pobreza também seja mácula. A seu modo e em grau mais
fundo, o PT, com seu capitalismo mais justo e humano, supostamente realizável por atos certeiros da vontade política,
sucumbe ao velho mal da esquerda, feito prisioneiro no ardil da completação do sistema do capital. Finalização, porém, sob a
peculiaridade de aromas ricardianos, pois visceralmente comprometida com o distributivismo. Mais do que isso, que tem no
distributivismo sua espinha dorsal, a essência mesmo de sua impostação moralista. Em realidade, distributivismo e moralismo
aparecem fundidos em monobloco, de tal sorte que um é o substrato do outro e vice-versa; ambos, para a efetivação,
pensados como filhotes políticos, ou seja, dispositivos institucionais que perfazem o corretivo das tendências cegas e perversas
do capital em fluxo desabrido. Dito de outro modo, a boa política emenda os males naturais da mecânica produtiva do capital.
Há mesmo a dizer que, para o sentimento ideológico petista, o distributivismo e o moralismo, por mais escandaloso
que isso seja, funcionam como uma verdadeira aproximação do socialismo, ultrapassando de muito os limites do pensado
como o imediatamente possível das mediações táticas que arrancam para vir a dar passagem a algo para muito além de si. Não
há exagero em afirmar que, para o PT real o socialismo é simplesmente a universalização das virtudes do moralismo e do
distributivismo, tornadas políticas dominantes.
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E, na medida em que o socialismo é convertido em sinônimo de capitalismo justo e humano, o moralismo é sua
filosofia geral e o distributivismo a plataforma estruturante da emancipação do homem descenderam ao lugar do moralismo, a
moralidade de senso comum reduzida ao preconceito, a transformação social ao distributivismo, confirmam-se pelos seus
fundamentos não só o âmbito de atuação do PT - sua militância na esquerda da esfera circunscrita pelo capital, como também o
falecimento de qualquer perspectiva de esquerda como projeção petista de futuro.
Interessa grifar, exatamente porque o PT insiste em se afirmar como povo, que o malfadado distributivismo de
extração neoricardiana é coisa muito antiga, cuja crítica e repúdio também são muito mais do que centenários.
A utopia distributiva tem por suposto a falácia da desidentidade de caráter entre o processo produtivo e o processo
distributivo. Enquanto a produção participaria do estatuto dos objetos naturais, a distribuição seria uma questão institucional. Nos
Grundrisse, Marx qualifica tal separação de “cúmulo do absurdo”, ao comentar uma frase de J. St. Mill, que em seus Princípios de
Economia Política sustenta precisamente e da forma mais transparente essa tese: “As leis e as condições da produção da riqueza
participam do caráter das verdade físicas... Isso não se dá com a distribuição da riqueza. Esta é somente um assunto das
instituição humanas”. Em contraposição e na mesma passagem, Marx esclarece que “a falta de propriedade do operário” e “a
apropriação do trabalho alheio por parte do capital” são duas coisas que “não exprimem senão dois pólos opostos da mesma
relação - são condições fundamentais do modo de produção burguês, não seus acidentes indiferentes. Estes modos de
distribuição são as próprias relações de produção, só que `sub specie distributionis’”. E arremata: “As `leis e condições’ da
produção da riqueza e as leis da `distribuição da riqueza’ são as mesmas leis sob forma diversa, e ambas mudam e estão
submetidas ao mesmo processo histórico; não são mais do que momentos de um processo histórico” (op. cit., III, Riuniti, p.
228).
Na Introdução de 1857 (2b e c) com que os Grundrisse têm início, a questão aparece com desenvolvimentos muito
maiores, ao fim dos quais é evidenciado que “O resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição, o intercâmbio,
o consumo, são idênticos, mas que todos eles são momentos de um totalidade, diferenças dentro de uma unidade”. Mais
ainda, que “Uma forma determinada da produção determinada, pois, formas determinadas do consumo, da distribuição, da
troca, assim como relações determinadas destes momentos entre si”. Ou seja, a produção é o “movimento predominante” dessa unidade de
diversos. Repetindo de outro modo, no complexo estruturado e estruturante de uma determinada forma da produção, a
produção é o processo ordenador da totalidade.
E especificamente sobre a distribuição, lê-se: “Na sua concepção mais banal, a distribuição aparece como distribuição dos produtos e
assim como que afastada da produção, e, por assim dizer, independente dela. Contudo, antes de ser distribuição de produtos, ela é:primeiro,
distribuição dos instrumentos de produção e, segundo, distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes tipos de produção, o que é uma
determinação ampliada da relação anterior. (Subordinação dos indivíduos a relações de produção determinadas). A distribuição dos produtos é
manifestamente o resultado desta distribuição que é incluída no próprio processo de produção, cuja articulação determinada. Considerar a produção
sem ter em conta esta distribuição, nela incluída, é manifestamente uma abstração vazia, visto que a distribuição dos produtos é implicada por esta
distribuição que constitui, na origem, um fator da produção”. De modo que “A articulação da distribuição é inteiramente determinada pela
articulação da produção. A própria distribuição é um produto da produção, não só no que diz respeito ao objeto, podendo apenas ser distribuído o
resultado da produção, mas também no que diz respeito à forma, pois o modo preciso de participação na produção determina as formas particulares
da distribuição, isto é, determina de que forma o produtor participará na distribuição”.
Bastam essas determinações para tornar definitivamente compreensível que a reposição da utopia distributiva, nos
dias correntes, tem por arcabouço alguns dos equívocos mais graúdos do pensamento matrizado pela lógica do capital. Com a
agravante de que se trata de um passo regressivo, um convite a fazer música do futuro com uma partitura vencida do passado,
algo como executar uma sinfonia com instrumentos de brinquedo.
É impossível constituir o distributivismo como tese ou proposta sem quebrar a unidade da relação entre produção e
distribuição, e sem assumir a distribuição como matéria político-institucional, isto é, sem desintegrar esta última do plano
econômico, ao qual pertence como momento. Em suma, sem transgredir absurdamente na ideação e pelo sonho a malha real
das articulações que efetivam o sistema de produção capitalista. Por isso, quando Luís Inácio da Silva enche a boca com a
garantia de que um governo do PT tomará dos ricos para dar à sofrida classe trabalhadora, sem jamais tentar dizer através de
que mudanças substâncias no aparato da produção, sua ênfase nas palavras e nos gestos - feitos do convicção íntima e plena
sinceridade - tem o valor objetivo de um bolha de ar lançada ao turbilhão dos ventos. É apenas e enunciado do distributivismo
na versão plebéia da radicalidade.
Que o alardeado “extremismo” do PT, quanto à distribuição de renda, seja um extremismo aparente e inócuo, isto é, que não imbrica com
suas raízes deitadas na produção e que, por conseqüência, não se expande pelo momento predominante do processo global, tem sua evidência exterior
na posição anunciada quanto à política salarial relativa à esfera da administração pública, bem como naquela atinente à gestão dos fundos sociais.
Em ambas tudo é alicerçado na magia da participação; esta é a perspectiva única de resolução das dificuldades, sem que seja feito
sequer o esboço econômico sumário da própria dificuldade. Tudo é cifrado em garantir presença na arena das decisões, no
círculo “político”“ dos embates, onde supostamente vingam ou fornecem todos e quaisquer interesses, de modo que a
probidade no desempenho passa à condição de feitiço pueril, que imaginariamente suplanta a exigência de redefinir o sistema do
quadro produtivo.
O exemplo mais extravagante e aterrador desse descompromisso com a realidade, em que a fé distributivista
desemboca inadvertidamente no desmascaramento de si mesma, está na promessa enfática, inúmeras vezes reiterada por Luís
Inácio da Silva, de exibir ao funcionalismo reivindicante as “gavetas vazias”. É o tipo mais inusitado e vexatório de
exibicionismo de que se possa ter notícia, especialmente provindo de quem já foi Lula na vida, ou seja, a mais feliz e vigorosa
liderança sindical que a história brasileira registra. Lula sabia por experiência própria, mas o PT fez Luís Inácio da Silva
esquecer, que reivindicação salarial é luta pela vida cotidiana - guerra premente pela existência real no dia a dia, que milhões de
trabalhadores têm de assegurar numa batalha contínua igualmente a cada dia, e que por isso mesmo envolve o próprio sentido
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de dignidade do trabalhador. Talvez, melhor seja dizer, que envolve a recuperação de dignidade através da luta aberta, no caso
de todos aqueles que tenham por existência a simples luta elementar por ela. Nesse plano a melhor transparência é dada pela
própria necessidade de ser atendido. Nada é mais translúcido do que a carência - material - no fluxo dos embates para ser
resolvida. É inerente a ela o imperativo da resolução, é só pode desconhecer e desprezar tudo aquilo que a mantém - por bem
ou por mal - em sua própria condição de necessidade insatisfeita.
Os ecos de Vila Euclides não diziam outra coisa, e naquele tempo Lula tinha acuidade auditiva para tanto. Hoje, o
deputado e candidato a presidente Luís Inácio da Silva só sabe garantir ao funcionalismo a transparência burocrática das
“gavetas vazias”, na expectativa de deslumbrar as massas com tanta moralidade, que embasbacadas então se conformariam
com a própria miséria. Desaprendeu o candidato, pela racionalidade às avessas do politicismo, que liderar ou dirigir é fazer o
esforço de propor a melhor solução possível, no interior de uma situação dada, ou seja, que a contemplação do ôco dos cofres
é a negação de qualquer tipo de empenho, um ritual abstruso diante de um altar vazio, além de ser uma paródia de um filme
antigo e desapreciado - o mal afamado “apertar os cintos”, protagonizado pelo PCB ao tempo da democratização dos anos
quarenta.
Ao inverso de serem constrangidos a mirar o tolo espetáculo de uma pletora de “gavetas vazias”, os que dependem de
seus fundos esperam ter acesso obviamente a cofres recheados. Não podem ter bons ouvidos, a não ser para medidas que
formulem os modos pelos quais os recursos possam ser gerados. querem que se lhes diga o que pode ser feito e, acima de
tudo, o que há de ser realizado na direção de seus interesses concretos, aliás extremamente modestos, que não podem, nem
devem tolerar as incongruências do distributivismo participacionista.
Em verdade, o escândalo dessa “solução” não é privilégio absoluto do PT. mas é condividido com outros vertentes
partidárias e distintos setores da opinião. Na esquerda, o PT, no entanto, guarda para si seu enunciado plebeu, enquanto sua
expressão erudita aparece, por exemplo, num artigo de J. A. Giannotti (Folha de S. Paulo, 10/08/89), onde o autor sustenta a
via da negociação do arrocho. Exibir “gavetas vazias” ou “negociar o arrocho”, não por acaso, são apenas distinções de estilo de
um mesmo e único conteúdo - a propositura ideal de mudanças que não se pronuncia pela mudança dos lineamentos materiais
do sistema de produção. Constituem a recusa ou a incapacidade de reconhecer a necessidade e a possibilidade de um
programa econômico alternativo que sustente, por suas consequências, um novo perfil da distribuição. Por isso, seja em sua
versão plebéia, seja em sua vertente tecno-elitista, a tese se desnuda como um mero pragmatismo politicista de alma
comprometida.
Enfeixando e resumindo, o PT, em seu alicerçamento no quadrilátero teórico, que excomunga a política de alianças,
desampara qualquer projeção da problemática da identificação nacional, além de reduzir a história brasileira dos últimos
sessenta anos às vicissitudes unilaterais de dois ou três estereótipos fantasmáticos, constitui a figura mais prolixa dessa
subsunção, uma vez que, pela índole plebéia de sua radicalidade, conduz os lemas da independência política, do populismo e do auto-
ritarismo aos extremos da caricatura. Máscara apropriada em sua rispidez a um corpo real e ideal que se ordena e é limitado pela
política centrada na lógica do capital, ao mesmo tempo que se deixa enganar e aceita a idolatria pelo seu laconismo socialista,
que se esgota na sua “revolução dos procedimentos” e nas inconseqüências de seu distributivismo moralista.
É enquanto tal que o PT, sem condições atuais para governar mas tendo fé na metafísica do estado e em outras
crenças menos profanas, assumindo ares emblemáticos e querendo ser a síntese do novo mas, tal como Marx disse de
Proudhon, não passando de um “erro composto”, se converte de negação de um projeto de esquerda em obstáculo principal até
mesmo de uma solução eleitoral na esquerda.

Em nítido contraste com o PT e o PSDB, Leonel Brizola e sua legenda, desde os momentos mais recuados da campanha
presidencial e até mesmo antes de seu início, tem sido a voz difusora da necessidade de aglutinação das chamadas “forças
progressistas”. Em entonação ascendente, o chamamento se transformou em convocação desafiadora, a poucos dias do pleito,
em apelo dramático. Foi - e será até bradar no deserto. Todavia, sob todos os primas, sobressai a virtude política do grito,
restando todo o demérito para os que vêm se negando obstinadamente a ouvir. Vale dizer, fica co todos aqueles que, levando
ao extremo a irresponsabilidade política reforçada pela regra dos dois turnos, renunciaram ao papel norteador que caracteriza
as verdadeiras instituições partidárias, deixando de realizar a imperiosa articulação eleitoral à esquerda que o quadro brasileiro
objetivamente requer e pode propiciar.
Essa surdez envolve sessenta anos de história e vinte e cinco de formação e predomínio do pernicioso quadrilátero teórico já analisado.
Uma história ainda por ser escrita, que o quadrilátero muito ajudou a obscurecer, e cujos passos reais no presente,
provavelmente derradeiros, auxilia ativa e desastrosamente a serem levados a cabo. Consumação histórica que não encerra, em
toda lógica de seu escoamento, tal qual o golpe de 64, qualquer fatalidade, mas um complexo determinativo material e ideal, onde o
estatuto do capital atrófico pôde prevalecer e se impor, graças em primeiro lugar a seus próprios expedientes, mas para cuja desenvoltura não foi
desprezível a tranqüilidades espiritual que lhe foi proporcionada pelo clima teórico-ideológico das últimas duas décadas, no qual pontifica o quarteto
conceitual cuja indigitação nunca é demais renovar.
A súmula do afirmado, restringida ao nódulo imediato dessa larga questão, é que o agora já inbitável sucesso de Collor de Mello, enquanto
vitória da “internacionalização” sem peias da economia brasileira, em que pese venha a ser o resultado lógico do andamento
capitalista no país, o produto natural hoje também estimulado pelos novos rumos internacionais em geral, não será de modo
nenhum a atualização de um fadário, a conseqüência de um desenvolvimento casual inamovível; mas apenas o prevalecimento
da tendência objetiva mais óbvia e forte, que não terá tido que defrontar um dispositivo capaz de promover, ainda que com
grandes dificuldades, uma variação de rota. Vale acentuar nessa direção que a “internacionalização” sem mais não e a única
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possibilidade do quadro nacional ela própria é uma figura de uma só face, nem sua efetivação desconhece ponderáveis
diversificações.
Na mesma via reflexiva, o desatendimento ao lúcido apelo de Leonel Brizola não é a conseqüência fatal de uma
casualidade férrea, que se cumpre de modo inexorável. O que vem sendo acolhido como uma fenomênica do impossível é na
essência erro e vício da subjetividade - intelectual e política -, decaída ao nível mais baixo do reles preconceito. não é difícil pôr
em evidência essa dura afirmação.
A articulação das “forças progressistas”, como diz o candidato do PDT, ou a confluência eleitoral na esquerda, como é
sustentada no curso desse texto, no fundo não se realizou porque Leonel Brizola, pela sua consistência histórica e talento
político, seria e é o vértice natural lógico e evidente da convergência político-eleitoral demandada e condicionada pelo quadro
brasileiro em suas possibilidades atuais. É que o significado e os méritos do candidato, não por acaso ou mera coincidência,
fazem parte substancial justamente da matéria-prima que, desfigura a malbaratada, em especial pelas tropelias da teoria do
populismo, rende o decretum horribili com que o pavoroso reducionismo intelectual dominante atrofia e condena à escuridão as
décadas mais intrincadas da história brasileira.
Leonel Brizola, nos seus erros e acertos e até mesmo por seus limites e inconcludências, acabou por se constituir na
expressão mais radical oriunda das projeções representativas e das batalhas reais que teceram a malha dos embates públicos ao
longo do pré-64. É o herdeiro refundido de um complicado e controvertido empenho econômico-político, gerado no curso de
mais de meio século, que traduziu e, em cada medida e a seu modo, auxiliou a compor e a reforçar as próprias
contraditoriedades da peculiar objetivação do capitalismo no Brasil. Postura política - a um tempo, reflexo limitado e
consciência ativa - das tensões e energias efetivas, que percorriam os veios da parcela mais adiantada da formação social, em
busca da contemporaneidade e, no interior desta, da equação difícil de sua indentificação nacional.
Roteiro de lutas que, na incompletude de classe de suas categorias sociais e na desigualdades aguda de suas relações
externas, que assentaram o país enquanto pólo subordinado dos centros hegemônicos do capital, foi matrizado por dois
desafios simultâneos: a) entificar o verdadeiro capitalismo (capital industrial); b) assimilar à ordem nascente multidões cada vez
maiores que, parte inerente da população nacional, não logravam integrar verdadeira e positivamente a sociabilidade existente
e em transformação. Em suma, problemas candentes, que têm prevalecido por décadas, nas formas contraditórias,
inconseqüentes, quando não “pecaminosas”, que são balizadas pelos caminhos e descaminhos da via colonial.
Essa, por elementar decoro intelectual, é a descrição mínima que tem de ser admitida em representação ao complexo
mais do que intrincado do perfil da realidade nacional, aqui apenas aludido e cujo detalhamento está a exigir o esforço de
investiga’;cão de muitos; e não a balela da teoria do engano da burguesia, âmago das gratuidades sustentadas pela teoria do
populismo, cuja fé no sortilégio redutor da história a uma palavra é a medida de sua irreversível inferioridade de pensamento.
Politicismo pedestre que não se interroga nem mesmo pelas razões da necessidade do pretenso engano. Se desde 30 o
movimento proprietário se resume ou limita a tecer um engodo societário, ou seja, não arrasta em sua ascenção o conjunto das
categorias sociais, não transfigura positivamente - ainda que nos parâmetros contraditórios próprios ao capital - a sociedade
em seu todo, mas reduz ou conserva milhões em níveis intoleráveis de miséria física e espiritual, ao mesmo tempo que não
logra alcançar nunca os patamares da contemporaneidade, então o problema fundamental consistiria obrigatoriamente em
delucidar o engano, isto é, na exposição do que seja a burguesia enganosa e do porquê de seu ser-precisamente-assim, e não no
mero registro abstrato des eu “pecado”, a partir do qual a história é deduzida. Porém, exigir algo desse tipo à teoria do
populismo é de uma inutilidade brutal, pois é de sua lógica apresentar como resposta justamente o que deveria ser explicado.
Desde logo, se a política populista é basicamente entendida como projeto e a prática da assimilação subordinada das
massas pela burguesia afluente, então a insuficiência da abstração formulada é mais do que ostensiva, pois inexiste assimilação
de massas promovida pelo capital que não seja subordinada, de maneira que, por consequência, resultaria que toda burguesia
seria populista, ou que o populismo seria sinônimo de burguesia, o que redunda em absurdo.
Ora, a teoria do engano da burguesia ou teoria do populismo tomba, de saída, em face da questão central, cujo teor é incapaz
de sondar mínima consistência; em verdade, não atina sequer com sua existência e, portanto, coma relevância que tem para o
complexo problemático em tela. A teoria do populismo pretende ser a denúncia crítica de um procedimento, de uma vontade
política, mas não interroga o capital enquanto seu suporte efetuante. Pelo viés politicista, detém-se na pretendida constatação
do “engano da burguesia”; este, quando muito, não mais do que aparência político-fenomênica de uma dada essência, para a
qual essa teoria não tem como ser advertida, que assim lhe escapa por completo: a debilidade estrutural do capital enganador.
Não pode compreender que a aparência do “engano” tem por verdade a peculiaridade do capital atrófico; ou seja, que a política do
“engano” é apenas a face exposta da incapacidade real do capital enquanto capital na forma dessa sua entificação específica.
Em suma, que o assim e impropriamente chamado populismo é a expressão tópica da miséria da via colonial de objetivação do
verdadeiro capitalismo. Itinerário pelo qual a incompletude de classe da burguesia não pode ir além de uma hegemonia
incompleta - impossibilitada que está de ser econômica e politicamente apenas por si mesma. O reverso da medalha desse
capitalismo organicamente impotente e subordinado, incapaz de convulsionar o conjunto da sociedade e que só com lentidão,
estreiteza e agudas contradições vai penosamente erguendo a sociabilidade que lhe é inerente, e mesmo assim sempre muito
aquém da contemporaneidade, é a sua reduzida capacidade de induzir a estratificação categorial da formação social. Por assim
dizer, suas energias bastam antes para excluir multidões, do que para entificar plena e generalizadamente a malha das classes subalternas.
estas em sua constituição são permanentemente assoreadas pela miserabilidade que prende à indistinção social e embaraça o desenvolvimento da
capacidade de mobilização e luta. Trata-se, em síntese, da configuração de uma sociedade de classes onde a contraposição de classes fica entre
parênteses. Por outras palavras, materializa-se uma formação social cuja legalidade é regida pela antítese estrutural entre capital
e trabalho, todavia, sob uma forma específica tal que sua efetivação mantém e reproduz aquele estatuto em graus apenas
delimitados e ainda abstratos, não universalizados concretamente para a formação, de modo que a entificação dos membros
contraditórios da equação social, no inacabamento reiterado deles, não tende a aproximar (ou tende a obstacular a
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aproximação), a não ser também abstratamente, de confrontos antitéticos. No que tange designadamente ao trabalho, este
enquanto categoria global não é propriamente impulsionado pelos nexos de raiz de sua lógica própria, não tem como aflorar
ou tender a se pôr como potência antagônica ao sistema do capital.
De fato, os excluídos ou marginalizados, que antes de tudo são os excluídos - parcial ou totalmente - da categoria dos
trabalhadores, ou seja, que em primeiro lugar são a dimensão mais sensível e brutal da inconcludência objetiva da classe do
trabalho no país, constituem o limite material da radicalidade possível do movimento e das lutas do trabalho, o subsolo da
debilidade destas em sua edificação real, e não somente o ponto fraco da mobilização popular, que permitiria sempre o engodo
ou a manobra burguesa no interior das fronteiras do conflito.
Numa breve evocação, a suposta inclinação nacional pela brandura ou moderação políticas não é mais do que a
velatura mistificada de uma impotência global: nenhuma das categorias sociais básicas tem habilitação para resolver as
contradições que concomitantemente as une e separa, no perfil atual das marchas e contramarchas do processo brasileiro.
Cumpre reforçar que os excluídos ou marginalizados, ou melhor, que a expressão mais aviltante da miséria brasileira é
um dos produtos mais característicos da regência do capital atrófico, a evidência da sua incapacidade de incluir e, portanto, de
sua morbidez congênita enquanto forma particular de capital; por isso mesmo inabilitado para conduzir a evolução nacional em
recíproca estimulação com o progresso social.
Sem dúvida, a história brasileira desde a década de 30 é a história da incapacidade da versão atrófica do capital
verdadeiro para integrar, de seu prisma, a maior parte da população à sociedade nacional. Enquanto tal uma história fantástica
de desperdícios, sobretudo de energias ou recursos humanos. Nesse contexto, a marginalização é a própria marca registrada
dos feitos do capital atrófico, que a teoria da marginalidade, no entanto, só logrou registrar como um oceano desconcertante de
sacrificados e enbaídos, que pretendeu transformar, em momentos utópico-especulativos, no esteio social de supostamente
novas figurações das marchas transformadoras, para além da potência e da lógica das classes. Não conseguiu apreender o
fenômeno da exclusão massiva, ou antes, nem mesmo vislumbrou a necessidade de associar visceralmente a marginalidade à
impotência de uma forma de capital, mas a tomou apenas, politicamente, nos seus efeitos sociais como o fracasso de uma
política econômica. Ou ainda, não alcançou entender o universo dos condenados à escuridão como um descomunal exército
industrial de reserva e, assim, enquanto figura própria de uma sociedade industrializada na subordinação. Não atinou, tal como
se deu também com seus parceiros conceituais do quadrilátero teórico dominante, que estava às voltas com um modo de
objetivação capitalista que des-integra (ao contrário das entificações clássicas) e que, portanto, fracassa como princípio de
identificação nacional, gerando, ao inverso, uma expressão polar de dissintonia social - a marginalidade enquanto (des)ordem
societária do capital atrófico.
Ao cabo, portanto, de sessenta anos de vicissitudes, o resultado é deplorável: em seu brilho artificioso de oitava
economia mundial, a formação brasileira é uma sociedade urbano-industrial incontemporânea e excludente. Todavia, a
miserável resultante, bem como o longo e diferenciado processo que a engendrou não perdem por isso sua complexidade,
nem são nulificadas as mutações de rumos e projetos que se verificaram nos desdobramentos do período, envolvendo a
sociedade econômica e a sociedade política, governos, partidos e lideranças.
Importa aqui - e para mais não haveria espaço, nesse segmento voltado à candidatura do PDT, ressaltar a
descontinuidade efetiva - real e ideal - que atravessa o conjunto dessas seis décadas, para muito além da óbvia clivagem
perpetrada pelo golpe de 64. Diferenciações que não se dissolvem, mas, ao contrário, que ganham relevo precisamente porque
orbitam o propósito da entificação do verdadeiro capital, da sociedade industrial contemporânea; distinções que se tornam ainda
mais nítidas e verdadeiramente agudas, quando se trata do outro ponto do desafio originário - a integração social, aspecto sob o
qual o gradiente vai, desde o abandono e desprezo furioso pela questão, até a sua elevação e critério político básico. Bastam
algumas indicações para ilustrar o que é preciso, a grosso modo, deixar assinalado: não só é uma grande impropriedade
racionar em termos de um ideário varguista único, como é um simples absurdo admitir a identidade dos dois períodos em que
exerceu o poder; do mesmo modo, e até acentuando afiliação e herança, os governos JK e Jango, muito distintos entre si, são
diversificados também em relação aos de Vargas, sem falar da distinção entre a primeira e a segunda metade da própria
administração juscelinista. Por motivos transparentes não é preciso argumentar com a magistratura de Dutra e o aborto janista. E
assim por diante.
Em suma, o que é preciso resgatar - contra o embrutecimento dos vícios abstrativantes que predominam - é o peso da
realidade na malha de seus atributos específicos, por mais nauseante que possa ser a mesquinhez de seu quadro geral.
Compreender, portanto, que o duplo desafio, que a partir de 30 matrizou por décadas projetos e atos, não foi respondido de
forma monocórdica, nem monossilábica, e principalmente que em sua dinâmica mal-sucedida não deixou de decantar uma
escala de posições e re-posições, muitas das quais se viram esgotadas, vencidas ou inviabilizadas e que transfigurações se
operaram nessa espécie de depuração.
Interessa no momento, acima de tudo, frisar a tensão entre os dois pontos do desafio originário: a ultrapassagem da
sociedade agrário-exportadora pelo capital industrial, e a pretendida resposta integradora para a questão social, que a velha
república considerava quase que oficialmente uma questão de política. Contraste que não pode ser menosprezado, nem liquefeito
pelas acrobacias bisonhas da teoria do engano da burguesia. Mas, isto sim, reconhecido em suas reais proporções, para melhor
aferir a tensão apontada, no sentido de que a disjunção entre evolução nacional e progresso social não seja erroneamente apanhada
como um fenômeno originado no processo de materialização da sociedade industrial, mas como um componente estrutural da
formação, que a emergência daquela não alterou para melhor, apesar das esperanças que suscitou nessa direção quando
encetada e ao longo de um bom número de suas evoluções.
Pode ser dito que é principalmente em torno do complexo dessa tensão que os processos desencadeados em 30
tecerem a malha dos acontecimentos políticos, tanto em suas predominantes “soluções” negativas, quanto sob a forma de
empuxos que estimularam a depuração de idéias e posições, particularmente depois de 64, mas cujo processamento é anterior e,
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nessa condições, responsável pela diferenciação de atitudes e inflexões políticas de setores partidários e lideranças que,
formalmente, integravam as mesmas legendas e, na generalidade, atuavam, como não poderia ter deixado de acontecer, no
interior do movimento comum. É decisivo reaver a trama de continuidade e descontinuidade - real e ideal - compreendida
pelo período, e nessa direção apreender a depuração como um movimento entre os dois pólos do desafio originário,
decantamento que atingiu as cabeças diversificadamente. Um fluxo que, no vetor que aqui importa, foi tomando distância
(modificação ou abandono) do projeto inicial do capitalismo nacional autônomo e veio depositar sua ênfase sobre o outro
extremo problemático - a integração social.
Cabe demarcar, então, para efeito dos propósitos estritos desse texto, que o tronco político gerado em 30, em seus
desdobramentos e diferenciações, para além dos estigmas e estereótipos baratos em circulação, teve registros diversos e que,
através do que foi designado como depuração, acabou por gerar um ramo articulado, em seu perfil e significativo políticos,
sobre a perspectiva da integração social do país, ou seja, sobre o progresso social tomado como princípio ordenador do
desenvolvimento, ou ainda como critério de identificação nacional.
Pode-se, talvez, principalmente com grande dose de má fé, negar tudo a Leonel Brizola, menos que seja a expressão
mais acabada e radical dessa vertente. Em verdade, é sua própria encarnação, e sob essa face, resultante ou depuração é que sua
candidatura se apresenta ou quer ser a retomada do andamento histórico atalhado pelo golpe de 64. Retomada, portanto, de um
fio condutor, gestado e legitimado por décadas de lutas; não a continuidade de uma fórmula político-econômica vencida.
Continuidade, aliás, impossível, dada a enorme diferença entre os estágios de complexificação dos quadros de realidade do
país de ontem e o país de hoje, e das imensas modificações acarretadas pelas inflexões internacionais (sobrevivência renovada
da utilidade histórica do capital e ruína do leste europeu e países afins), além de todas as convulsões do universo subjetivo
ocorridas nos últimos trinta anos.
Falar em continuidade no caso é meramente buscar o desmerecimento do comprovado senso político do candidato, sem
que deixe de ser, antes de tudo, uma demonstração de pobreza de espírito. Até porque a própria conduta de Leonel Brizola no
passado trazia um cunho que a afastava da simples continuidade. Quanto mais não seja pelo estilo e meios políticos que
empregava. Bons ou maus, corretos ou equivocados, não é no momento o que vem ao caso, mas distintos - pela audácia e
conseqüência - dos padrões da época, amplamente disseminados pelo conjunto das lideranças a que esteve associado. É justo
ressaltar, sob esse aspecto, o que foi sua inclinação pela ruptura, numa atmosfera política que cultuava a conciliação. Basta
pensar nas duas maiores intervenções de envergaduras nacional que teve oportunidade de levar a cabo, justamente
coincidentes com os dois eventos históricos de maior relevo nos últimos trinta anos. O primeiro em 1961, quando exerceu
liderança decisiva, garantindo, contra a subversão tramada pelos ministros militares, a posse de J. Goulart e a continuidade do
regime democrático. Atuação, convém recordar, que desencadeou um notável movimento de resistência, combinando a
mobilização popular com a articulação de setores político-partidários e também de todo o dispositivo militar compreendido
pelo então 3º Exército (Paraná, Sta. Catarina e R Gde. do Sul). Para bem clarear o destaque, não pode ficar sem menção que o
desfecho parlamentarista conduzido por Tancredo Neves teve em L. Brizola seu opositor mais intransigente, a ponto de ter
fraturado sua relação com Goulart, quando este acabou por admitir a fórmula. No segundo caso, a intervenção, ou melhor, o
propósito de intervenção e o ato pessoal desencadeado tem poder de ilustração, ao inverso do anterior, somente pela grandeza
de certos gestos políticos que fracassam na solidão. Foi sua tentativa isolada de buscar se contrapor ativamente ao golpe de 64,
na imediaticidade de sua deflação. Nesse episódio sua combatividade não teve ressonância ou consequência, mas por isso
mesmo, pela sua inocuidade - inclusive admitindo o total equívoco da forma dada à tentativa - expressa, talvez melhor do que
qualquer outro evento, o sentido de ruptura ou caráter de radicalidade de que estava imbuído caracteristicamente seu modo de
fazer política.
É com esse talhe e conteúdo de herdeiro refundido de caminhadas “que vêm de longe”, de remanescente remudado que
se ergue na polaridade da articulação entre o popular e o nacional, vale dizer, que se orienta pela plataforma política da
identificação nacional centrada no estatuto popular, ou seja, ordenada pelo progresso social, é que se deu o retorno político de L.
Brizola depois de quinze anos de exílio, apenas que revestidos, sem necessidades intrínseca, por alguns enunciados exóticos do
“socialismo moreno” e logo depois por asserções de fé social-democratas. Exterioridades os dois, não mais do que um esforço
de “atualização” ou “modernização”, com vista a estampar uma face de reapresentação - não postiça, mas pura cédula de
identidade política, que fosse inteligível para o país dito politicamente alfabetizado, através da qual a comunidade com este
pudesse ser tentada, pois de outra parte, o diálogo com as multidões foi reposto e desdobrado com naturalidade, pela via
expressa do alfabeto encarnado na tradição de lutas e consistência de conduta e liderança do atual candidato à presidência, cuja
fala e prática traduzem para elas a prioridade de resolução ao menos de suas carências mais elementares.
É evidente que, em toda sua conseqüência e polaridade, a versão pedetista ou brizoliana da plataforma popular-nacional
não é uma projeção para além das fronteiras do universo do capital. Tal como as demais instituições partidárias de que já se
tratou, o PDT é uma legenda na esquerda e não de esquerda. Mas, nesse caso, trata-se de uma definição pacífica e assumida.
Leonel Brizola e o PDT jamais projetaram de si mesmos imagem diversa, nunca reivindicaram qualquer outra condição
política, em tempo algum pretenderam exibir fisionomia distinta ou deter outro significado.
Por isso mesmo, com saudável coerência, das suas fantasias políticas obrigatórias, de seu necessário auto-engano
como afirmação de vontade partidária, não participa a idealidade ou pretensão de assumir e representar a lógica humano-
societária do trabalho, nem de assentar sobre a mesma as diretrizes de sua ação pública dos trabalhadores, não tomam essa
missão para si, nem pertinente e inteligente. Há que reparar que o mesmo se dá quanto à organização sindical, por mais
estranho que isso possa parecer, principalmente a quem observe o fato através das lupas estereotipantes da teoria do
populismo. Em suma, como seria dito no passado, Brizola não é uma opção pelo proletariado. isso pode ser uma lástima, mas
não um pecado destinado à expiação, especialmente num país e numa moldura internacional onde assunções partidárias
daquela ordem simplesmente inexistem.
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Vale, portanto, a nitidez e o recorte da posição assumida. cabe no perímetro desta, a argüição de seu sentido e
validade, de sua potência e efetividade de atuação, contanto que reconhecido, desde logo, que não promove ambigüidade na
fronteira delicada entre estar na esquerda e ser de esquerda. Antes a superioridade política orientadora - por clareza dos limites
estabelecidos, do que vagas indefinições ilusórias que entorpecem.
É interessante constatar que essa equação não mistificada de perspectiva política seja acompanhada, em pontos
incisivos do aparato de convicção partidário, por traços igualmente não fetichizados, a propósito exatamente de aspectos que
constituem hoje a própria fetichização da organização política.
De fato, no curso do século XX a instituição partidária conheceu independentemente de vetores ideológicos, sua
máxima mitificação, em outros termos, transideologicamente o partido é, ao longo dos novecentos, o altar do culto político. É
suficiente, como evidência, a idolatria stalinista e a ritualística fascista, às quais é devido acrescentar, agora, a nova fé prosaica
dos que em conjunto podem ser designados sumariamente como os crentes do social-democratismo-liberal ou liberalismo-
social-democrata.
Em realidade, a instituição partidária sob a forma atual do mito do partido é uma verdadeira santíssima trindade, síntese
de partido, programa e formas de procedimento. Uma religião envelhecida, sob novos parâmetros, que pretende estar
debutando na passarela. Extrai sua mística de heranças comprometidas - a santidade do organização do fanatismo stalinista, o
fundamento da volição do arcaísmo liberal. O mito do partido enquanto organização volitiva sagrada ou sagrada volição
organizada, sempre uma fé cega na vontade, que também sempre redunda na forma jurídica do contratualismo, se desvenda
no coágulo de fé do liberalismo - que compreende as instituições sócio-políticas como puro e simples resultado da vontade
dos homens. Nesse retrocesso fetichizado ao partidarismo mais arcaico, seja em sua forma racionalística-burocratizante, ainda
que repleto de delicadezas e mesuras, seja em sua expressão plebéia, que acaba reduzida ao prosaísmo acovardado - terrorismo
e as formas de procedimento compartilham da aura sacrossanta como índices privilegiados da deificação.
Da hipertrofia das formas de procedimento, em sua versão extrema de “revolução dos procedimentos”, já se falou o
suficiente, e quanto à mitificação do programa bastam umas tantas palavras. Na medida em que a ênfase nas formas de
procedimento não é mais do que a reafirmação da vontade no andamento de seus passos por seus próprios trilhos, o programa
é a vontade na forma de meta ou objetivo - télos, a vontade em seu fim. Também aqui é secundário se a mitificação é vendida
na fina embalagem do pragmatismo racionalístico, ou se é atirada às cabeças com os salamaleques desajeitados do plebeísmo
vacilante. O que prevalece é que a fetichização do programa, enquanto manifestação de mito do partido, é a simples reafirmação do
fetiche da vontade.
De outra parte, há que anotar em distinção sumária que, em sua forma efetiva e legítima, programa é próprio ou precípuo de partido,
instrumento de sua afirmação orgânica, representação societária e perspectiva global, e não o mero utensílio eleitoral de
candidaturas. Distintamente, a candidato compete a apresentação de plataforma, sinopse de mensagens nítidas, pontos fulcrais
para um itinerário no poder, ou seja, a sinalização de rumos e sua firme sustentação. Ponto característico de inflexão racional e
democrática é que, da apresentação de plataforma e de sua discussão pública, seja decantada a súmula de uma atuação gover-
namental. Convém explicitar, portanto, que um autêntico programa de partido pré-existe e subsiste às campanhas eleitorais,
não estando exposto, por natureza, a modificações durante a exercitação delas, ao contrário da plataforma, cujo caráter só se
atualiza por sua capacidade de flexibilização e ajustamento nas lutas e diálogos de curto prazo. Dito de forma mais abstrata,
enquanto um programa partidário é uma peça estratégica, isto é, a expressão teórica da globalidade de sua propositura, a plataforma
é tática, ou seja, um ato restrito de efetuação-prática. De modo que o que caracteriza uma proposta eleitoral não é uma
brochura mais ou menos alentada, escrita na última ou na penúltima hora, ou ainda em meio à campanha e que seja, em sua
pobreza racionalista, o elencamento de circunstância, tecnicista ou academóide, de problemas e “soluções”, destintas apenas a
pressão sedimentada de uma identidade prática refletida, a mensagem visível que opere a triangulação real entre candidato,
eleitor e projeção resolutiva do grupo realmente fundamental de problemas que assoberbam e desafiam circunstancialmente e
estruturalmente.
Em face do mito de partido e dos atributos que o integram, os procedimentos de L. Brizola são fortemente
contrastantes. À semelhança de sua equação não mistificada de perspectiva política, tranquilamente assumida como
exercitação na esquerda, também não faz parte do seu aparato de convicções a fetichização da instituição partidária, do
programa e das formas de procedimento. É, numa palavra, pode ser dito que a “critica” injuriosa com que é dominantemente
exorcizado não é outra coisa senão a voz ruidosa da própria mitificação perdida em seu desentendimento.
Todavia, isso não isenta Leonel Brizola e o PDT de quaisquer críticas, no que tange à problemática partidária. Mesmo
porque, como já foi aludido anteriormente, certos méritos de posicionamento e conduta do PDT podem estar derivando de
sua própria debilidade. Porém, há muito mais do que isso a observar, principiando pela própria debilidade. Esta é um traço
real e notório do PDT, desde logo pela sua restrita implantação territorial. É em verdade uma agremiação regionalizada, que se
destaca pela ausência gritante em grande parte do país. Ao mesmo tempo padece de imensa inorganicidade, vivendo em
grande medida de sístoles e diástoles eleitorais, o que se vincula, entre outras razões, à incapacidade até aqui demonstrada de
formular consistentemente seu perfil estratégico. Essas e outras características negativas, como a excessiva improvisação,
inclusive com relação a articulações e alianças, fragilizam não apenas a legenda, mas até mesmo a liderança de Brizola, o que é
o dano maior, como a presente campanha presidencial já tornou evidente. Ademais, se tantas fraquezas coabitam com a
virtude da não subsunção ao mito do partido, é porque enorme é o vigor político de L. Brizola, mas tais desproporções e
contradições não garantem para sempre o equilíbrio existente, e até podem expor a uma outra ordem de fetichização, qual seja
a de sucumbir à inversão da ordem real dos valores, que a converte ilusoriamente os graves traços de debilidade em
propriedades partidárias positivas.
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Todavia, diante da situação partidária em geral e considerando que Leonel Brizola é maior do que o PDT, prevalece a
alta positividade dele não ter sido contaminado pelo complexo de idéias e práticas que caracterizam o mito do partido, valendo
aflorar a propósito duas questões de detalhe.
Entre as mais repetidas objeções feitas a Brizola, figuram a impugnação do tipo de sua conduta em relação às massas
e, aspecto afim, a sua caracterização como caudilho. Sem dúvida, uma das capacidades mais extraordinárias de Leonel de
Moura Brizola é o seu inegável talento de líder popular. Na atmosfera societária do ter, não é estranho que possa se manifestar
a vontade selvagem de “aniquilar tudo que não seja suscetível de ser possuído por todos, de abstrair de modo violento o
talento”. Essa reflexão de juventude de um antigo pensador alemão serve de pano de fundo para a questão, embora o que
importe mais seja ressaltar aquilo que pretende ser posto no lugar do talento, por aqueles que temem e condenam a chamada
relação direta entre o líder e as massas. Trata-se, como é sabido, da função mediadora do partido, ou seja, do talento coletivo dos
que não têm talento. Para além do sarcasmo, compete acentuar que tal regulagem, na forma da contraposição em que é sustentada, não é
senão mais uma emanação do espírito que promove a fetichização da instituição partidária, com sua estreita solução burocrática e jurisdicista. Ou
seja, a aniquilação mesmo do que pode ser autenticamente um partido, em sua legítima condição de instrumento político, para o qual, mediação, não
é estranha a dinâmica entre a ação responsável dos indivíduos, inclusive e particularmente dos talentos, e a responsabilidade da ação coletiva.
Por fim e em estreita conexão com o que acabou de ser dito, qualificar Leonel Brizola de caudilho é simplesmente a
forma pejorativa e ressentida de afirmar que ele jamais aceitou a supressão administrativa de seu talento específico e que nunca
foi sensibilizado pela idealização do “homem justo e racional”, que jamais sonhou em tomar como fundamento da política,
mesmo porque a multidão de excluídos, parâmetro real de suas próprias idealidades, torna impossível tal sensibilização e até
mesmo absurda, uma vez que o poria fora do campo político efetivo.
Campo e ideação políticos brizolianos cujos traços mais nítidos e explícitos, tal como a campanha eleitoral vem pondo em evidência, residem
nos momentos econômicos de sua plataforma presidencial. Trata-se não só de clareza, mas de força estruturante, tanto pela
importância conferida à necessidade de redefinir as relações econômicas externas do país, como também pelo imperativo de
reordenar o aparato capitalista interno. Dito conjugadamente, Leonel Brizola ou sua plataforma presidencial concentram suas
orientações, perspectivas ou princípios - na propositura da mudança da política econômica vigente, que, além de responsabilizada
enquanto produtora da miserabilidade nacional, é denunciada em termos de crise terminal.
Como tudo nesta campanha do candidato pedetista, o discurso sobre os problemas econômicos não é longo, mas
incisivo e reiterado. Fragmentário, sem dúvida, tecnicamente incompleto também; insuficiente, talvez, em especial se
considerado extrinsecamente à unidade significativa do próprio orador (como é feito generalizadamente pelos seus inimigos e
adversários) ou, pior ainda, se enfocado tola ou capciosamente como paper e não como definição e mensagem voltadas para a
mobilização de dezenas de milhões de eleitores. Se como texto deixa bastante a desejar, como vigor é contundência de
propósitos suplanta os enunciados de todos os outros competidores. Trata diretamente dos pontos de fundo da problemática
brasileira, sem dispersão tecnicista pelas nuvens de poeira das questões derivadas ou secundárias. Em unidade simples, junta as
duas pontas do quadro global - as formas atuais das relações econômicas externas mutilam as energias e a potencialidade do
país, ao mesmo tempo que a equação excludente do sistema interno reitera incessantemente sua perversidade. Ambas têm de
mudar.
Essa afirmação sem véus, categórica e límpida, distingue L. Brizola de todas as outras candidaturas na esquerda, além de
ser a única a dividir o campo de batalha em duas partes reais. De um lado, os antigos e novos epígonos do desenvolvimento
econômico subordinado, tendo por expoente Collor de Mello, produtos e herdeiros enquanto tais do espírito de 64, no que este
contém de essencial - a perspectiva da associação deliberada e orgânica com as engrenagens do capital metropolitano na
dinâmica de sua mundialização. De outra parte, a posição que é desenhada por uma consciência mais larga e profunda do
complexo problemático brasileiro, cética com razão, em graus diversos, no que tange à panacéia ingênua, mas sempre
perversa, do associacionismo subordinado. No círculo dessa postura, hoje muito estreitado, Leonel Brizola ;e a feição mais completa e integral, por
isso mesmo politicamente a mais conseqüente e radical, tendo por limite extremo somente o próprio perímetro da esfera lógica do capital, para além do
qual não se desloca. Porém, nessas fronteiras, onde estanca em companhia dos demais partidos e candidatos situados na esquerda, supra a todos,
sem sombra para dúvidas, na sinalização resolutiva dos desafios da urdidura econômica.
É útil uma pincelada comparativa em geral: enquanto Collor e Brizola configuram a contraposição polar, - o primeiro
propugnando a boa parceria com o capital estrangeiro, tomada como associação desnuda de qualquer reserva ou reticência, a
própria razão de ser de todos os demais ingredientes de sua plataforma, como por exemplo a privatização e o saneamento do
estado e das finanças; e sendo de longa data o segundo a própria corporificação da descrença crítica e ativa da boa parceria, por
ele identifica, ao inverso, corretamente como relação desigual, e por isso mesmo levado a estabelecer o imperativo da
reformulação dos vínculos econômicos externos, em consonância com a reordenação simultânea do sistema de produção
interno -, enquanto o desenho das extremidades é nítido e cortante a excludência entre elas, totalmente diverso é o panorama
gris das ambigüidades que atravessam a questão nas definições e indefinições do PSDB e do PT. Destes, os mais definidos são
os tucanos, por isso mesmo também os mais francamente negativos. Para eles a boa parceira não ;e uma tese estranha, que o
digam os autores e adeptos da teoria da dependência que pululam em suas fileiras, ou então este monumento de sinceridade e
imperícia políticas a que foi arrastado Mário Covas com a energética oração do “choque de capitalismo”.
O neoconservantismo paulista vibrou, mas foi a primeira vez que o eletrocutado foi o próprio e possivelmente
involuntário executor. O ponto é que tudo é uma questão de molho para o abominável gosto tucano, de modo que para ele a
boa parceira é um bom prato, contanto que seja levemente banhada em sauce social-democrata, ou seja, o PSDB quer a boa
parceira com o certificado de garantia de que a exploração que ela virá a promover será cuidadosa, uma exploração justa para o país
e para todos os trabalhadores, tanto quanto está tecnicamente seguro de que a abolição do capitalismo cartorial brasileiro
proporcionará a mesma coisa. Nesse assunto - para o PT essa grave questão não passou até agora de um assunto, se é que
chegou a tanto, o que por si só é largamente sintomático - apesar de certo embaraço e perplexidade para tratar dele ao longo
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da campanha, o assumido é quase que simplesmente a versão plebéia do certificado de garantia dos tucanos. É até menos do
que isso, se forem considerados apenas os discursos patéticos de Luís Inácio da Silva ao fazer comparações entre a venda de
força de trabalho às multinacionais e a venda da mesma mercadoria a empresas de estirpe inferior, ou então quando, abrindo
os braços no vídeo, acolhe a chegada dos capitais, mas adverte que bons meninos, no seu futuro governo, terão que obedecer
a um punhado de regras. Em suma, a falta de consistência e seriedade ou a consistência e a seriedade desgovernadas, com que
o PT e o PSDB tratam da delicada e complexa questão das relações internacionais do capital, é tanta que um dos nomes mais
influentes da intelectualidade nacional, que mescla o PT e o PSDB em suas simpatias partidárias, o que o torna especialíssimo
como exemplo, acaba de afirmar, em plena antevéspera do pleito, que no segundo turno votará em qualquer um contra Collor,
menos em Brizola.
Tanta lucidez e disposição de luta hão de ter emocionado Collor de Mello, um motivo a mais para explicitar todo o
relevo da verdadeira dimensão de lutas que a plataforma brizoliana contém e implica.
O enunciado simples e direto dos grandes objetivos, acompanhado apenas do contorno sumário de algumas políticas
setoriais, não é somente a equação de uma fórmula comunicativa, mas também o modo de acentuar a suficiência dos mesmos,
bem como de sinalizar para a malha de tensões, confrontos e contradições que o conjunto traz embutido. Cada ponto
fundamental da proposta é, assim, por sua própria extensão - meta e processo de luta.
Desde logo porque a plataforma de Leonel Brizola encerra uma dupla ruptura, que compreende obviamente o caminho
mais do que intrincado e difícil de sua realização. A afirmação categórica e reiterada da mesma é simultaneamente a
sustentação de sua necessidade e possibilidade, inclusive, porém, da indeterminação de seu itinerário de consecução, já que
este último dependerá sempre, em todas as suas inflexões importantes, do quadro correlativo das forças favoráveis e hostis,
em cuja armação e dinâmica pesará um infinidade de vetores ligados a todos as gomos e enervações da sociabilidade.
Indeterminação de caminhos, portanto, que não é passível de preenchimento ou superação por via do detalhamento técnico,
ou seja, pelo estabelecimento a priori de um fluxograma, como algumas vezes com ingenuidade e outras com má fé é cobrado
do pleiteante, a pretexto de melhor definição “programática”.
Não exige sensibilidade política extraordinária a percepção de que as linhas mestras da propositura do candidato do
PDT são mesmo em sua expressão mais moderada, projeções deflagradoras de contradições, e que por isso subentendem
resoluções efetivadoras mediadas por largos e fortes embates. De sorte que nessa plataforma a mobilização pelo voto é
imediatamente uma mobilização para a luta.
Em verdade, urdir uma política global que rompa com a subordinação econômica externa e com o sistema interno da
produção socialmente excludente, o que significa a reordenação societária do capital pelo princípio do progresso social, é operar
uma aproximação do que foi referido como primeira transição, na Parte II desse artigo. Aproximação objetiva,
independentemente das intenções ou limites, até mesmo declarados, do proponente. Limites, aliás, cuja medida real só poderá
ser dada no eventual processo de lutas, mesmo porque seria meramente especulativo supor que sejam absolutamente rígidos,
impassíveis de qualquer flexibilização e alargamento. Ao contrário, quem empunha e oferece uma plataforma política, que se
decifra por uma perspectiva de lutas, admite ao menos em princípio sua própria mutabilidade, ou melhor, conta com o fato
incontornável da fixação processual dos limites, na própria marcha dos acontecimentos e embates.
De toda maneira, o que importa é precisamente essa perspectiva de lutas, cujo projeto, repetindo, perfaz uma aproximação
dos alvos da primeira transição, que nestas condições pode funcionar como critério de avaliação, medindo projeto e perspectiva,
justamente porque os ultrapassa como horizonte, além de provir de raiz distinta.
A primeira transição, largo e complexo momento inicial de um processo muito mais amplo que remete para além do
capital, compreende o rompimento com a ordem do capital estruturalmente induzido, subordinado e excludente; ou seja, é o
movimento de ruptura das condições de reprodução dos efeitos da via colonial, implicando a reestruturação do sistema produtivo,
sem que haja ultrapassagem do modo de produção, reconhecida em sua inviabilidade imediata, mas através da desativação ou
cancelamento dos aspectos mais gravosos do sistema do capital em sua objetivação atrófica. Ao contrário das propostas que
visam econômica e/ou politicamente completar o capital incompletável,a primeira transição parte dessa incompletude como face
irremovível, diante da qual a perspectiva do trabalho desencadeia sua lógica, nos contornos de sua afirmação defensiva. Vale dizer,
nas fronteiras da recusa do trabalho em continuar pagando, sob a forma de sua superexploração, a conta da acumulação
ampliada do capital subalterno. Nessa aparente restrição, trata-se, de fato, de uma alternativa não apenas realista pela sua
delimitação, mas condutora de uma reconfiguração econômico-societária pautada num processo em que, ao ordenamento
social pela lógica do trabalho, vai correspondendo em sentido contrário o desordenamento do capital. Pode ser dito, em
outros termos, que é uma rota pela qual se transita da (des)ordem social controlada pelo capital para uma arrumação societária
do capital socialmente controlado. O que já significa algo para além da generalidade e exterioridade da mediação do simples e mero
controle político, uma vez que o norma jurídica não teria mais por base exclusivamente a igualdade exterior da troca, mas seria
levada a incorporar a substantividade do estudo interno do trabalho, ou seja, a liberdade do trabalhador entraria ao menos em
tensão com a liberdade da propriedade privada, que não seria extinta, porém enformada pela emergente legalidade social do
trabalho.
Vai de si, enquanto processo transitório, que tal quadro seja instável. Todavia, é inegável que suplanta em qualidade a
inerente, mórbida e redundante instabilidade econômica e política do capital atrófico, incapaz de transitar para qualquer lugar,
a não ser de um nível a outro de seu insuperável atrofismo. Seja grifado também, nesse rápido esboço, que a primeira transição
não é concebida como um passo histórico inelutável, nem enquanto sine qua non do trânsito para além do capital, menos ainda
como “etapa necessária”, mas designadamente enquanto alternativa real da perspectiva do trabalho, inscrita no campo dos
possíveis da atualidade brasileira. Alternativa, em primeiro lugar, aos interesses do capital atrófico; em segundo, ao equívoco
dos projetos da esquerda de completação do capital; por fim, em terceiro, ao prisma falacioso do etapismo e à forma abstrata e
bizantina da querela entre reformismo e revolucionarismo.
138
Nessa direção, vale resumir, para efeito de ilustração concreta, o elenco dos propósitos fundamentais que
configurariam o programa da primeira transição.
O primeiro e mais geral diz respeito à universalização das relações internacionais do capital, com acento sobre a sua
particularização objetivadora de vínculos desiguais, causa e efeito de supremacias e subordinações econômicas, na trama
mundializada em que os países são e estão interconectados. Em verdade, urdidura de formas de existências e não apenas de laços
exteriores, cuja reflexão tem sido dominantemente banalizada; numa palavra, reduzida ao maniqueísmo entre a figura da
subsunção a relações subordinadas e o estereótipo da reclusão autárquica da economia. Como esta última é, de fato, uma franca
impossibilidade, funciona apenas como um recurso numa demonstração por absurdo, que sustenta por exclusão, no caso, o
determinismo inexorável da primeira. Com isso é deixado de fora o verdadeiro complexo problemático; a transformação da
modalidade das relações. Isto é a alternativa não é ter ou deixar de ter relações econômicas internacionais no seio cósmico do
capital, mas entre relações subordinantes, que inferiorizam na desigualdade, e relações soberanas, compatibilizadas com a progressão
sócioeconômica do país e das populações.
Tem de ser compreendido como historicamente comprovado que da perspectiva da lógica do capital atrófico é
impossível a articulação de relações saudáveis e apropriadas, na exata medida de sua subalternidade estrutural e da tara
manifesta com que opera a excludência social. A redefinição positiva das relações econômicas externas do país, por
conseqüência, só é pensável na moldura do capital socialmente controlado, ou seja, da perspectiva do trabalho em sua afirmação
defensiva. O que conduz ao entendimento de que a reordenação dos laços entre o país e a economia mundial não tem solução
através de um ato banal de vontade política, seja excluindo imaginariamente o país da economia planetária, seja simplesmente
sucumbindo à vaga neoliberal. Ela tem seu travejamento efetivo pelo plano de resolução do desafio econômico interno -a
redefinição do aparato produtivo.
A mudança do sistema de produção, na impossibilidade da superação do modo de produção, é o aspecto central do
momento transitório primário, constitui propriamente seu objeto concentrado, uma vez que é o meio e a forma de combater e
eliminar a exclusão social pela sua raiz - a superexploração do trabalho. Subentende um programa econômico de
recomposição da malha dos setores produtivos, do redirecionamento de prioridades e da alocação de recursos (privados e
públicos), de maneira que o aparato de produção e reprodução material da vida posto a serviço da sociedade global, deixando
assim de funcionar exclusivamente em benefício da acumulação do capital atrófico e metropolitano. Não se trata de optar
acanhadamente entre uma economia exportadora e uma economia de mercado interno, mas da estruturação de um conjunto que não seja
exportador às custas da força de trabalho (pela exploração da perversamente chamada mão-de-obra barata), nem concentrado
sobre o mercado interno através do amesquinhamento das necessidades e da forma de satisfazê-las. O que remete à questão
do desenvolvimento das forças produtivas: nem a queima de aparatos tecnológicos em simples beneficio da competitividade
do capital, nem a equação precisa de manutenção, crescimento e renovação tecnológica de acordo com as exigências do novo
sistema de produção, cuja medida não é mais dada exclusivamente pelas necessidades cegas do capital, mas também pelas
necessidades humano-societárias da sociedade arrumada em torno do capital socialmente controlado.
Que tudo isso signifique restrições ao capital interno é o mínimo que se pode perspectivar (afirmação defensiva), e é exatamente
disso que se fala como eixo programático. Restrições ou desatualização das dimensões mais gravosas ou pervertoras do capital
atrófico e associado são exatamente os parâmetros da primeira transição; aspectos perniciosos entre os quais figuram, no topo
da negatividade, as relações desiguais e subordinantes com a economia mundial e a superexploração do trabalho.
De fato, trata-se da dessacralização da propriedade privada, hoje mais do que nunca um imperativo. Tanto que a
reflexão em geral sobre a propriedade não consegue ultrapassar a disjuntiva entre privatismo e estatismo. E tão estrangulado é o
pensamento dominante que, diante do desmantelamento do leste europeu, todo o refrigério que restou às “cabeças
progressistas” está no refúgio sob as saias da propriedade privada. Decerto, nunca é demais repetir que socialismo não é
estatismo, contanto que seja compreendido que sua base material é a propriedade social, cuja constituição é o objetivo primordial
da transição. Compreender, portanto, que ela é posta numa processualidade mais ou menos longa, convivendo assim com
outras formas de propriedade até sua universalização, cuja forma concentra não é preciso hoje se pôr a adivinhar. Acima de
tudo, importa aqui que ela pode conviver com outras formas de apropriação.
A figura da propriedade social vem muito a propósito da questão agrária brasileira. A posse e o uso da terra é um antigo
problema estrutural, cuja solução tem sido alardeada sob a forma primária e restrita da reforma agrária, resumida ao
parcelamento de glebas deste ou daquele tamanho. Que em parte, muito em parte, o problema deva ser enfrentado por essa
via, pode ser considerado pacífico. Porém, quando entras em consideração a questão global do uso e posse da terra, ou seja,
no momento em que o setor agropecuário é ponderado no âmbito da mudança do sistema de produção, avulta a estreiteza da
reforma agrária parcelária. Em outras e poucas palavras, consistindo neste o terceiro ponto de inflexão da primeira transição,
quando se trata de desmontar o sistema de produção socialmente excludente - e a estrutura no campo é a matriz histórica
dessa excludência, torna-se transparente a impropriedade de projetar a equação em termos de uma pletora de pequenas
propriedade (nesse ponto a plataforma de L. Brizola exibe seu traço mais fraco, mesmo que não se diferencie muito de seus
concorrentes, a não ser sob o aspecto técnico).
O porte da questão impulsiona para espaços resolutivos mais arrojados, na medida em que é extravagante supor que a
economia de subsistência seja o limite de suas possibilidades, ou o estatismo a chave de ouro de sua solução. Em verdade uma
reforma agrária da perspectiva do trabalho compreenderá um conjunto de medidas e fórmulas diversas, correspondentes à
diversidade das situações, desde o parcelamento, passado pelo ajustamento rigoroso das disposições relativas a salários e
condições de trabalho no campo, até o equacionamento de casos em que somente passos mais avançados podem conduzir a
bom termo. É onde se abre o espaço para a introdução germinal da propriedade social. Casos em que, por exemplo, o
parcelamento conduziria à inviabilização econômica ou a retrocessos de produtividade, ou ainda em propriedade onde o
desmonte dos mecanismos da superexploração do trabalho revelasse impossibilidade de sustentação privada. Importa mais
139
nesta projeção, no entanto, o perfil da construção do que o contorno da negatividade que a suscita. Exatamente para fixar que
a figura jurídica que lhe daria suporte a distinguiria da propriedade estatal, mesmo porque o estado não teria nem a posse nem
a gestão da mesma, mas apenas a obrigação do investimento, de acordo com um plano específico, cujo ressarcimento seria
efetuado após um determinado prazo de carência. Propriedade social de contorno comunal; por exemplo, propriedade do
município, mas não da Prefeitura ou da Câmara dos Vereadores, gerida (e não apropriada) qualificadamente em toda a gama de
suas necessidades técnicas pela sua força de trabalho. Seria distinguida pela excelência de seu padrão tecnológico e pelo nível
de suas condições de trabalho e assalariamento. Constituiria, de fato, não apenas um exemplo, mas um êmulo no interior de
sua faixa de atuação. Essa descrição sumaríssima, que não pretende passar uma receita. mas reconhecer uma possibilidade, só
pode ser apreciada sob os parâmetros da primeira transição, ou seja, do capital socialmente controlado, vale dizer, sob os critérios da lógica
do trabalho em sua afirmação defensiva, e só neste enquadramento comparece no delineamento programático da mesma.
Por fim, o quarto e último ponto, que comparece seja porque complementa o primeiro, seja porque a exploração
ideológica, relativa à formação dos denominados blocos econômicos internacionais, chegou à saturação e favorece
pesadamente a restauração conservadora neoliberal.
Desde logo, a globalização do capital é uma verdade e a formação dos blocos um fato. Entretanto, abertura de fronteiras não é abolição de
fronteiras, nem a mundialização do capital deixa de ser por isso uma objetivação de vínculos desiguais, inclusive no próprio interior dos blocos. Em
outros termos, a internacionalização não assegura nem tem por escopo a igualdade nas relações econômicas das nações. É muito diverso entrar para o
circuito mundializado da economia como país produtor e exportador de capitais e artefatos tecnológicos de ponta, ou como receptor carente, coberto de
dívidas. Mesmo na integração dos blocos, quanta diferença em comparecer ao grande mundo das trocas com vinho, azeite e força de trabalho in
natura portugueses ou de outra parte, com moeda rutilante e poderosos sortilégios industriais tedescos. Outro exemplo, com o
mesmo significado: o atrapalhado gigante do norte, para o qual afluem as maiores torrentes de recursos mundiais, engatou o
modesto Canadá num trato de livre comércio, mas a generosidade de ambos só foi capaz de conceder ao México atarantado
“tratamento preferencial” no plano econômico de longo prazo. E quando se chega à jaula dos “tigres asiáticos”, os rugidos são
nipônicos, mas o sotaque é americano.
Sim, é bem verdade, nos assim chamados “blocos” as coisas e os valores fluem e um país para outro, é destes para
tantos outros de outras partes, mas não sem “regras”, medidas e proporções. Não é preciso negar que todos tiram vantagem,
mas a diferença está na qualidade e grandeza das próprias vantagens. Também pode ser concebido que seja melhor do que
nada. Mas o que é nada economicamente na universalização do capital? Nada é simplesmente não ser reciclado para uma nova
fase de acumulação ampliada global, que redispõe sua pletora de vínculos assimétricos.
Que a mundialização e a reciclagem que lhe corresponde irradiem as implicações de largo alcance da revolução
tecnológica, é mais uma verdade, mas a mistificação está em inferir que por isso o capital deixou de ser o problemático capital,
e que sua universalização seja, sem mais, já e agora, a extinção das unidades nacionais, através da qual dissemina suas benesses
redentoras para além de quaisquer limites.
De há muito o capital atravessa fronteiras geográficas e nacionais; se no passado precisou de armas, hoje o míssil
econômico é bastante para qualquer segura e limpa travessia. Todavia, fronteiras cruzadas não desmoronam, contanto que
sejam abertas. Em verdade, o “internacionalismo capitalista” não é a abolição das fronteiras, nem a supressão das nações. Isso
eliminaria as relações desiguais, igualizaria a riqueza dos povos. O capital em sua globalização precisa de fronteiras dúteis,
sanfonantes. Despidos de fantasia neoconservadora, os blocos, na competição intestina à globalização, são a criação de uma
espécie de “nações” maiores e mais fortes, igualmente desiguais entre si. A globalização é a livre concorrência travada em
dimensões siderais por nações galácticas. Enquanto os países restantes, feito poeira cósmica, assistem embasbacados o grande
espetáculo, temendo ficar sem qualquer figuração.
Nesse Show nas estrelas os países latino-americanos correm o mundo pedindo para ser claque. É o que lhes reserva,
no momento, a perspectiva do capital atrófico. Mas a qualquer tempo, da mesma lógica, só podem almejar papéis
coadjuvantes, na escala dos vínculos assimétricos a que estão condicionados. Qualquer mudança para além disso teria por
passo mediador a formação do mercado latino-americano; os países mais fortes articulando em torno de si os demais, na
constituição de um bloco de pressão no cenário global. O que é uma impossibilidade lógica, a partir de suas subalternidades
estruturais aos capitais metropolitanos, que a história só tem confirmado.
Diverso é o quadro pela intervenção da lógica do trabalho em sua afirmação defensiva, ou seja, a integração
econômica latino-americana é convertida em possibilidade, desde logo e fundamentalmente porque a primeira transição
compreende a desmontagem das relações subordinantes com as economias centrais. Não é preciso acentuar o feito que teria sobre
o sistema mundial o surgimento, mesmo em seus primeiros passos, de uma integração latino-americana desencadeada e
ordenada pela arrumação societária do capital socialmente controlado. E basta essa sinalização.
O conjunto desses quatro pontos: rupturas das relações subordinantes com o capital mundializado, reordenação do
sistema de produção interno, aprofundamento orgânico da reforma agrária e integração econômica latino-americana,
constitutivos da primeira transição, é o parâmetro da perspectiva societária do trabalho para a avaliação da plataforma brizoliana.
Esta - cujas raízes e legalidades são diversas, estritamente circunscritas à radicalidade política do capital - pelo seu binômio
decisivo, que faz a articulação entre o imperativo do rompimento co a subordinação econômica externa e a reordenação
societária do capital pelo princípio do progresso social, configura uma aproximação real do perfil programático da primeira
transição. Não se confunde com esta, nem partilha longinqüamente de seus fundamentos, todavia, é no quadro sucessório em
curso, e não por acaso, a expressão que, nos limites de sua própria figura, melhor atende a perspectivação daquela, ou seja, o
rumo objetivo das transfigurações, ainda possíveis, do quadro brasileiro na encruzilhada atual.
Por sua plataforma, que sua perspectiva de lutas reforça, pela densidade eleitoral e liderança popular que o respaldam.
Leonel Brizola é a candidatura positiva e evidente para o imperativo da confluência eleitoral na esquerda, e, na falta
politicamente imperdoável desta, o candidato a ser apoiado e sufragado a 15 de novembro - sem restrições.
140
Sua derrota possível no primeiro turno será a vitória inapelável de Collor de Mello no turno final, ou seja, a realização
do espírito profundo de 64 por via eleitoral. Será, então, uma nova história, uma vez que suas possibilidades no poder se
resumem predominantemente à alternativa - desastre retumbante ou sucesso ponderável. NO segundo caso, a
internacionalização econômica subordinada do país estará definitivamente imposta, de modo que todo seu perfil estrutural
será basicamente outro, muito diverso daquele sobre o qual hoje está armada a disputa presidencial, a argumentação dos
analistas, inclusive as razões desse longo discurso que vai findando.
A presente sucessão presidencial, celebrada eleitoralmente depois de trinta anos, pode estar gerando o encerramento
de um patamar histórico. Se assim for, ter-se-á perdido a última oportunidade de em quadro de realidade e de seu potencial de
lutas. Os novos e futuros serão muito distintos, para os quais as armas atuais já não terão nenhuma serventia, e não só porque
hão de ter mostrado que não prestam.
É sempre uma lástima, humanamente penosa, perder oportunidades históricas. Mas, do que tem sido feita a crônica
da esquerda no Brasil? Ou é mais justo perguntar no mundo?
Quando a esquerda não rasga horizontes, nem infunde esperanças, a direita ocupa o espaço e draga as perspectivas: é
então que a barbárie se transforma em tragédia cotidiana.

Comecei e quero terminar invocando Marx. Ao finalizar sua famosa Carta a Annenkov (28/12/1846), refere-se a “todas as
tendências que eu ataco” e arremata, aludindo ao que seria a esquerda da época: “Quanto ao nosso próprio Partido, ele não é
apenas pobre: uma grande parte dele irrita-se com o minha oposição as suas utopias e declamações”.
141

A RESISTÊNCIA AO NEOLIBERALISMO*

Às vésperas de 93, o Brasil dejetou a mais sórdida aventura governamental de sua história. O voto conclusivo do Senado
Federal, em fins de dezembro, encerrou o impeachment contra Fernando Affonso Collor de Mello, punindo com o
impedimento definitivo o presidente, cujos crimes pessoais serão ainda julgados pelo Supremo Tribunal Federal, e que nos 30
meses em que detivera o poder fora totalmente incapaz de proceder “com a dignidade, a honra e o decoro do cargo de chefe
de estado” (Relatório da CPI), e cuja simples presença pública fora crescentemente ofendendo o conjunto do país, até à plena
convicção de sua culpa, denunciada nas ruas como verdade nacional.

UMA AVENTURA DAS ELITES

Mas a remoção constitucional do aventureiro não foi apenas o desenlace de uma impostura de natureza pessoal - o
desmascaramento e a liquidação de um embuste individual que contara, de qualquer modo, com o arrimo de não poucos,
sempre a título singular - mas também a reprovação da igualmente aventureira equação política do establishment brasileiro na
sucessão presidencial de 89, a primeira que se dava através de eleições diretas após um quarto de século de ditadura militar. A
ascensão e queda do despudor individual estiveram, de fato, lastreadas nas condições criadas pela irresponsabilidade e
perplexidade das elites econômicas, que só a posteriori, já no curso prático dos acontecimentos, verificaram como ilusória a
pretensão de eleger e vir a manter sob controle, em pleno exercício do poder, a figura desde logo inconfiável do candidato
artificioso e visivelmente destituído de escrúpulos.
O cerne do drama vivido nunca esteve, portanto, na desfaçatez sem limites de uma individualidade especialmente
viciosa e de seu círculo íntimo de aproveitadores banais e acólitos grotescos: para a evidência da nulidade destes, basta
recordar a galeria de monstrengos formada pelo seu primeiro ministério. Pútrida, a esfera das individualidades resumiu apenas
uma adequação de circunstância: encarnar em atores de baixíssimo nível, destituídos de qualquer valor próprio - os únicos,
aliás, que consentiriam em envergar os míseros papéis que lhes eram destinados - o desvalor histórico que ferreteia desde as
origens o círculo social dominante no Brasil, especialmente agudizado pela sua redobrada impotência atual, que já perdura por
vinte anos.
Com o esgotamento do “milagre econômico” (68-73) e a outra face da mesma moeda - a crise da dívida externa, que
induziu a crise do setor público e do estado em seu conjunto - foram talhados os impasses do quadro nacional, para o qual os
agentes econômicos determinantes não conseguiram formular uma nova etapa de acumulação de capital, ou seja,
simplificando os termos, um padrão alternativo de desenvolvimento.
Nessa quadra, fracionadas num gradiente de interesses díspares, os setores dominantes (banqueiros, empreiteiros,
industriais, agricultores, comerciantes etc., sem falar em suas clivagens regionais) têm sido incapazes de se aglutinar
economicamente, e por conseqüência incapazes também de se unificar no plano político. Em 89, sem projeto nacional e
carentes de qualquer programa político, acovardados diante das candidaturas de Leonel Brizola e Luís Inácio da Silva,
enveredaram pela calha de suas piores inclinações, arrematando um pacto conservador temerário em redor de Collor de Mello,
na presunção de que retinham seus cordéis e os moveriam a seu bel prazer.
Supunham estar diante de um hábil demagogo, e se viram em face de um monarquete ridículo, que orgasmava com a
exibição de sua própria mediocridade. Collor de Mello não apenas reduzia a política à fria e permanente exposição pública de
sua figura, mas sucumbiu calorosamente ao seu exibicionismo compulsivo. Sua arma era sua doença. Morbidez de etiologia
social, sem dúvida, bem de acordo com a determinação societária de nossa época, nem por isso isenta de responsabilidade
individual em suas encarnações pessoais. Nesse plano, Collor de Mello não é um tipo, mas um caso extremo, que o aventu-
reirismo burguês levou à aberração. Só o politicismo teórico radical pode fazer do ex-presidente um simples paradigma da
malversação política, engastado no interior, hipoteticamente normal, de uma individualidade guiada no todo pela razão
manipulatória. Tal diagnóstico tem por fim sustentar a nobreza da “verdadeira” política, deixando na obscuridade que as
criaturas do poder são passíveis de ser ou vir a ser patológicas, bem como que, por natureza, a política, sendo a administração
do domínio de uns sobre outros, jamais pode ser a sagração da santidade.
O establishment nacional e seu correlativo externo no país quiseram acreditar também que o pacto de emergência
proporcionaria, na falta de alternativa e a alto custo, uma ferramenta ao menos razoável para reajustar e levar à frente seus
negócios, e se viram em face de um chefe de quadrilha, cuja voracidade e a de seus comparsas ultrapassava os limites da cobiça
desvairada, de tal modo que o engenho e o “profissionalismo” com que o assalto ao país foi concebido e executado também
se perderam pela “grandiosidade” pretendida e pela volúpia urgente de usufruir e ostentar parcelas do botim. Assim, o
monarca e seus cortesãos passaram, mais uma vez, ao exibicionismo barato, escandalizando, não apenas pela riqueza posta em
evidência, num país de 36 milhões de indigentes, mas pelo mau gosto esparramado na passarela.
Todavia, não foi a corrupção, nem muito menos os esgares de déspota principesco que derrubaram Collor de Mello.
Decerto, tais fatores, com grande destaque para a primeira, integraram a malha determinativa do processo de deposição legal e
democrático, tendo a corrupção constituído o próprio corpo de delito que facultou e apressou as ações institucionais e extra-
institucionais resolutivas. Reais enquanto fenômenos, atuaram em seu plano, mas a essência movente do impeachment foi de
outro estofo e abrangência.

* Artigo publicado originalmente em O Mundo Hoje 93. Ensaio, São Paulo, 1994.
142

A MODERNIDADE PERVERSA

A campanha eleitoral de Collor de Mello foi uma peça maciça de contradição insidiosa, respaldada pela conivência das elites e
absorvida pela angústia das multidões, material e espiritualmente carentes.
Pretendia tornar palatável e congruente a defesa dos “descamisados” combinada com o que vem sendo referido como
a modernização da economia brasileira, tudo pretensamente compatibilizado no slogan pueril de elevar o país ao primeiro
mundo. Em suma, dupla demagogia: promessa de luta contra a corrupção e a miséria, capciosamente vinculadas, e pretensão
de alavancar a retomada do crescimento, deixando para trás a “década perdida dos 80”.
Em verdade, manipulação barata da boa fé dos desesperados, e radicalização da diretriz econômica do golpe de 64,
reatualizada sob as vestimentas do neoliberalismo. Se bem que antes cobertura de um assalto organizado, do que programa de
ação, a retórica neoliberal - tardiamente inserida nas cogitações econômico-políticas brasileiras, quando já censurada no
cenário internacional, progressivamente assumida e reacentuada por Collor, até mesmo porque não dispunha de outra face
para exibir “seriedade” - não pôde ser mais, desde o início (basta pensar no seqüestro financeiro do pretenso primeiro plano
de estabilização), do que mera e bizonha ferramenta de demolição, exasperadora da própria alma perversa do neoliberalismo
central. Que tenha deprimido com a sua recessão descabelada os padrões de subsistência a níveis anteriormente
desconhecidos, é o chamado óbvio ululante. O que importa ressaltar é que, crescentemente, foi abalroando e confundindo a
produção em geral, atingindo no fluxo do processo a quase totalidade dos setores, de sorte que gerou, não a escalada ao
primeiro mundo, mas expectativas de anomia econômica. De tal modo que, em fins de 1992, o brasileiro estava quase 6%
mais pobre do que em 1980, o desemprego alcançava milhões, o produto nacional decrescera em vários pontos percentuais e
o estado, estruturalmente privatizado e falido porque privatizado, estava despedaçado em confusões. À antiga questão social,
gerada desde sempre pela super-exploração do trabalho, e agudizada nos trinta meses colloristas, foi acrescida, no
alongamento de quase vinte anos de impotência e perplexidade econômicas, a crise pela expectativa de ameaças intoleráveis à
integridade do patrimônio produtivo em geral.
O desgoverno Collor não gerou, é claro, os dilemas estruturais do país, mas os tangeu pelo seu medíocre
aventureirismo neoliberal a explicitações sem precedentes. Foi, decerto, o único serviço, involuntário, que prestou ao país.

DA RESISTÊNCIA AO IMPEACHMENT

A aposta eleitoral do establishment em Collor foi aventureira, mas não ingênua: armou o monitoramento do vitorioso desde seus
primeiros passos. Ao mesmo tempo, difusamente, à medida em que as ilusões se foram dissipando, pelo interior de diversos
segmentos foi nascendo uma inclinação inconfessa à resistência, que só muito aos poucos, informalmente, se articulou e
organizou, não tendo jamais se anunciado de público. Por motivações diversas, até contraditórias, mas confluentes, frações do
setor estatal da economia, áreas militares reconvertidas a orientações nacionais, timidamente setores do empresariado privado
local e, por fim, inclusive a esfera monopólica (brasileira e multinacional) - que amargava resultados no vermelho, numa
reatualização de idéias e energias remanescentes do pré-64, ainda que, aparentemente, de forma difusa e pouco estruturada,
foram sendo crescentemente responsáveis pela resistência à paralisia e ao desmantelamento econômico patrocinados ou, ao
menos, perspectivados pelos rumos e lineamentos neoliberais que, já impróprios e mal sucedidos nos países centrais, só
podiam conduzir à aberração na periferia do sistema.
A resistência ao neoliberalismo e a conseqüente eliminação legal e democrática de Collor de Mello, facilitada pela
centralização e magnificação da corrupção promovidas pelo seu desgoverno, foi uma espécie da autocrítica prática da
burguesia brasileira em face de seu próprio e desastrado aventureirismo. O impeachment, abrindo precedente mundial, foi seu
desaguadouro, para o qual a atividade parlamentar foi a calha institucional, reforçada pelas denúncias de imprensa, e a ação
extra-institucional ou extra-parlamentar, configurada pelos movimentos de rua, a caixa de ressonância e pressão que dirimiu
vacilações, e cujo mérito maior foi ter feito retornar à praça pública o segmento estudantil, de há muito submerso enquanto
personagem político, e cujo regresso alegre e cromático, mas ainda muito pouco consistente, em plena consonância com o
vazio teórico-ideológico dos partidos contemporâneos, corre o risco, por isso mesmo, de uma fácil pasteurização por meio da
promoção televisiva e de sua instrumentalização açodada pelas disputas faccionistas das legendas.
É decisivo ressaltar que a resistência subterrânea, conduzida à vitória, não se resume à abertura do precedente político
do impeachment. A esse feito subjaz a única barragem ao neoliberalismo bem sucedida no conjunto dos países periféricos.
Bloqueio que não é devido a dotes especiais ou invulgares da nacionalidade, mas à densidade alcançada, apesar dos pesares, pelo
desenvolvimento econômico, tecno-científico e mesmo cultural do país. Patrimônio construído ao longo do último meio
século - com perversidade social inequívoca e intolerável - mas que acumulou a energia necessária para reagir à ameaça de
desmantelamento que o envolveu. Em verdade, o establishment econômico soube apenas se defender, o que nas circunstâncias
não é desprezível, mas não gerou soluções, nem removeu os impasses reais que transpassam o país, pelos quais ele é originária
e intrinsecamente responsável.

O NOVO GOVERNO
143
De modo que, removido o pesadelo, restou, é evidente, o drama explícito da crise brasileira. Foram suas mil faces a presença
mais notável na posse de Itamar Franco. E, tão logo este assumiu, reemergiram a impotência e a perplexidade do círculo
dominante da economia brasileira, perfilada de novo em suas frações divergentes. A equação política da coalizão para a
governabilidade, certeira enquanto política, mostrou com extrema rapidez, melancolicamente, que era política em estado puro,
como tal impotente, uma vez que destituída de alma social. Estéril como o establishment, quando se trata de ultrapassar a
inteligência defensiva e auto-referida e abrir caminhos pela racionalidade exsudante do conjunto da sociabilidade.
O contraste, surpreendentemente, tem sido a voz do próprio presidente da república. O governo Itamar Franco já
muito teria feito se restringisse seus propósitos aos limites de um simples período de transição, que devolvesse a compostura
ao cargo, tranqüilizasse o país e presidisse como magistrado a sucessão de 94. De fato, aparentemente, não se poderia esperar
muito mais do que isso diante dos efeitos devastadores do aventureirismo de Collor e da natureza e circunstância das
prioridades externas, que comprimem e unilateralizam as possibilidades na periferia do capital.
Todavia, Itamar Franco vem reiterando pretensões muito maiores, mesmo porque é impossível imaginar a
tranqüilização de um país sob a canga da abulia econômica e da degeneração social. Sensibilizado pela miserabilidade estrutural
das grandes populações - fenômeno que, ademais, se encontra em largo período de agudização - vem armando com
simplicidade tática uma visão que enfoca o desenvolvimento nacional sob o princípio do progresso social, o que configura uma tentativa
de repor, na ordem do dia, a discussão sobre o país real, abandonada e contrariada desde o golpe de 64. Esvazia com isso, ao
menos em parte, o debate viciado que havia se imposto e promove o questionamento do dogmatismo neoliberal e mesmo de
seus derivados “sublimes”. Por outro lado, no horizonte maior e positivo, pela sinalização à produção de bens populares,
inflete para uma proposta de reordenação do sistema produtivo, ainda que sem forma programática elaborada. Desloca, assim,
a tônica política, na medida em que o combate à miséria se torna o critério de governabilidade. O ponto de toque deixa de ser
a necessidade do capital - no caso, sua modernização, para incidir sobre a necessidade humano-societária do combate à fome,
exigência elementar do princípio do progresso social. Este passa à condição de regulador das premências da modernização do
capital, ou seja, a modernidade é identificada à erradicação ou, pelo menos, à redução sistemática da miséria física, que implica
o resgate também de dimensões espirituais.
A superioridade dessa postura, independentemente de outras considerações, é mais do que palpável. Prioriza soluções
para as demandas humano-societárias inadiáveis, em vez de as deprimir para o mero plano dos efeitos e conseqüências da
modernização do capital, aliás vagos e incertos, como faz a retórica sectária e perversa do neoliberalismo.
Assim, Itamar Franco tenta instilar alma social na coalizão da governabilidade, o que é sua virtude maior, mas isso vem lhe
rendendo críticas ferozes e desgastes profundos. Reposto em suas frações, o establishment reitera suas contraposições intestinas
e gera instabilidades, enquanto a maior parte dos vetores partidários situados à esquerda do gradiente político, teoricamente
bloqueados para a compreensão da lógica real em curso, se recolhe ao imobilismo da ambigüidade, quando não se confunde e
absorve a argumentação do pior conservantismo.
Itamar Franco, pelo que tem de socialmente melhor, corre o risco de ficar ilhado, contraditoriamente, no interior da
mais vasta coalizão política já articulada no cenário brasileiro. Os dilemas fundamentais do quadro nacional, que aí se refletem,
provavelmente não serão resolvidos antes da campanha pela sucessão presidencial de 94, mas esta, definitivamente, será
marcada pelo debate que Itamar Franco vem provocando. Isto ninguém mais poderá tirar dele, mesmo que o alcance desse
mérito, a curto prazo, não venha a ser reconhecido, pois, no Brasil - as melhores forças têm primado em perder
oportunidades.
Porém, diante do panorama desenhado após seis meses de exercício do cargo, o mais provável é que até mesmo o
relevo daquele significado venha a exceder o fôlego de Itamar Franco na fixação definitiva de sua imagem presidencial,
fragilizado pelo ônus de ter sido o vice de Collor e, muito em especial, porque duplamente atropelado: de uma parte, pela
perplexidade dos círculos dominantes, que continuam incapazes de formular um projeto nacional que rompa com o pasmo
econômico que os imobiliza há vinte anos, e que ao mesmo tempo promova a integração dos vastos contingentes
populacionais estruturalmente excluídos; de outra, em conseqüência, pela precipitação da campanha sucessória de 94, que
tenderá a reduzir Itamar Franco a simples administrador de plantão.
Eleições gerais de 94 que - exponenciais pela simultaneidade dos pleitos que integram e, por isso mesmo, pelas
perspectivas de fundo que podem abrir - demandarão acuidade e cacifes políticos muita acima dos envolvidos em 89 e no
comum dos processos eletivos. Desde logo, o puro aventureirismo tenderá a ser excluído, pois as candidaturas nos diversos
níveis terão de ser estreitamente articuladas, abrangendo lideranças, regiões e partidos, na estruturação de suas amarras
viabilizadoras. Mal comparando, será um confronto de exércitos, cujo vencedor poderá vir a se eleger em companhia de
maioria parlamentar, o que geraria equação política inusitada e poderosa, capaz de dirimir impasses e de suscitar a afirmação
categórica de um projeto e de uma linha integrada de atuação sócio-econômico-política. O que é uma grande oportunidade e
um desafio ainda maior, em face do qual qualquer leviandade será inadmissível, visto que poderá estar em jogo a definição dos
lineamentos do país por décadas.
144

BRASIL - O PODER DO REAL*


Os episódios que marcam e destacam o panorama brasileiro do biênio 94-95 são muito mais do que simples elos emperrados
do curso econômico-político de um país desafiado por impasses e dilemas. Com efeito, a sucessão dos mesmos envolve o
trânsito entre dois quadros ou perfis históricos da vida nacional, cujo impulso é condicionado tanto por influxos internos,
quanto por novas determinações do sistema global a que sempre pertenceu a formação brasileira.
O período compreende a parcela mais consistente e significativa do governo Itamar Franco e tem por protagonista o
atual presidente da República, desde o momento em que este assumiu, em contexto crítico, a pasta da Fazenda da
administração anterior, por cujo desempenho se converteu no candidato imbatível das últimas eleições, curso político que tem
continuidade agora centrado nas reformas constitucionais, tidas e proclamadas como a chave resolutiva da crise brasileira.

A DISPUTA ELEITORAL

O próprio quadro sucessório de outubro de 94 - a fisionomia das candidaturas e o teor das forças políticas que entraram em
confronto - foi delineado, no essencial, pelas marcas e tensões próprias às mudanças de fundo que vêm pressionando para
chegar à superfície e se imporem como a nova lógica da existência nacional. As quatro candidaturas principais sintetizaram o
cenário básico, cada uma portando significados que por suas contraposições desenharam à perfeição o que de mais relevante
estava e continua estando em jogo.
Leonel Brizola e Orestes Quércia, não só pela extrema precariedade de seus cacifes eleitorais, mas em especial na
pobreza de suas mensagens, deram corpo aos lados mais inertes dos vetores políticos em luta. O ex-governador paulista,
também sob a condição de ex-presidente nacional do PMDB, desacreditado e reduzido à própria sombra, bem compôs a
caricatura do desenvolvimentismo tecno-burocrático arrimado nas entranhas de um estado exaurido. O anacronismo de seu
discurso, postiço e marqueteiro, só rimou com o ar de boneco de ventríloquo que o candidato exibiu a título de factótum
moderno e diligente. Imagem reversa do ardiloso dirigente partidário que fez carreira às custas do clientelismo de província.
Variante muito mais dolorosa foi o epílogo da carreira de Leonel Brizola, desde logo pela envergadura histórica do
personagem, protagonista que foi ao longo de décadas do que de mais generoso a cena política brasileira foi capaz de produzir
desde os anos cinqüenta. Com suas contradições e largas insuficiências, representara o prisma do desenvolvimento nacional
sob o crivo do desenvolvimento social, debaixo de equações práticas que foram de ousadas a bizarras, mas sempre, excetuado
o pleito de 94, com senso realista e em grande sintonia com as aspirações populares. Foi o que lhe faltou, radicalmente, no
último processo sucessório, quando a ótica nacional-desenvolvimentista já não correspondia, objetivamente e de há muito, ao
campo de possíveis do quadro brasileiro e dos países periféricos em geral.
Sem o arrimo da atmosfera que o produziu e sublimou, Leonel Brizola foi então a figura sofrida e lastimável da
perplexidade desesperada. Deu mostras à saturação de que estava simplesmente em atonia, chegando a confessar sua
incapacidade radical para compreender as viragens em curso. Mas nem dessa fraqueza declarada conseguiu extrair um grânulo
de orientação política, e persistiu somente com slogans esvaziados pelo tempo e com a denúncia suicida do Plano Real.
Finalizou melancolicamente a campanha, impondo um epílogo injusto à grandeza de sua carreira.
A campanha só existiu, em realidade, para a contenda desequilibrada entre a potência multiforme da candidatura de
Fernando Henrique Cardoso e a inferioridade polimorfa da postulação de Luís Inácio da Silva. Esse embate resumiu a essência
da metamorfose pela qual o país se voltou e foi compelido a se voltar à renovação de suas formas de existência, no interior do
evolver da acumulação ampliada do capital, infletida por novos parâmetros históricos de produção e circulação.
No pólo mais acanhado e redundante, reprodutor exasperado de um discurso duplamente vencido, tanto como
projeto nacional quanto de classe, situaram-se o PT, os grêmios a ele coligados e seu candidato presidencial - não mais que o
dispositivo remanente da derrota de 89. É extraordinário, mas não surpreendente, como esse aglutinado político foi capaz de
fazer de si a súmula obscura de vários despropósitos. Porém, os erros espessos de campanha apenas desbordaram o âmago
infundado da típica postura petista e de suas proposituras. O mais apropriado, talvez, seja conceber que se esteve diante de
uma fantasmagoria, produzida pela mescla da morte da esquerda - depois de uma longa e comprometedora agonia de décadas
- com a extensão da utilidade história do sistema do capital, reativado com os brilhos dos novos padrões de produtividade e o
gigantismo de seu comércio planetário. Fantasma, em suma, do qual é impossível dizer que tenha ou terá alguma coisa a ver
com o futuro, mas que decerto reporta duramente ao passado, e de modo abstruso e esterilizante.
Somando anacronismos e desconchavos, o aparato petista não só facilitou a vitória do adversário, mas intensificou a
desqualificação até mesmo das virtualidades mais remotas de uma propositura alternativa à esquerda. Demonstrando, mais
uma vez, falta de acuidade política - e agora em orfandade teórica, pois antes vivera acostado à analítica paulista, da qual seu
oponente sempre fora um dos maiores expoentes - fez-se herdeiro improvisado de um amálgama antigo entre um certo
desenvolvimento capitalista nacional autogovernado e de pretensa inflexão à esquerda por conta de seu vínculo ao movimento
sindical. A seu modo, em suma, reclamou pela idealidade das obrigações sociais da economia de estado, sem distinguir entre
patrimônio público e mazelas corporativistas, e remeteu ao oco do oco com as ilusões e promessas de um estado limpo e
correto sob a magia redentora do poder, se posto debaixo da tutela de Luís Inácio, sem nunca se interrogar - o que seria de lei
numa posição efetivamente de esquerda, e hoje mais do que sempre, dadas as lições do século - pela natureza do poder
político e de suas patentes limitações e perversões universais. Não entendendo a marcha dos acontecimentos, tanto os mais

* Artigo publicado originalmente em O Mundo Hoje 95/96. Ensaio, São Paulo, 1996.
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tópicos quanto as latências operantes em profundidade, levou ao paroxismo seu feitio subjetivista de atuação, que se resumiu a
verberar, contra a vivência e as expectativas otimistas dos setores mais desfavorecidos da população, o Plano Real e o seu
criador político. E a partir desse lastro de espuma, sob antigas ressonâncias nacionalistas, confundiu, mais do que nunca,
esquerda e estatismo redentor, pela emissão de mensagens abstratas de regeneração da miséria, mas cuidando que o discurso
não afligisse os setores médios, nem tornasse impossível seu pretendido namoro com o empresariado. Um perfeito cafarnaum,
que traduz de modo agudo a crescente inconsistência ideológica da agremiação, que sempre se envergonhou de sua autêntica
vocação natural, mas se orgulha das próprias aporias; ou seja, obstinada em não se reconhecer como uma vertente popular do
social-democratismo, feição na qual seria legítima e politicamente útil, rateia no sonho informe e pretensioso de ser o cadinho
e o paradigma de uma nova esquerda, enquanto reproduz algumas das piores mazelas da falecida esquerda tradicional: o
politicismo voluntarista e seu correlato, o emprego tático do discurso teórico, com todo o desdém pelos critérios objetivos de
verdade.
Postulação eleitoral estruturada e coerente só foi apresentada pela candidatura de Fernando Henrique Cardoso, seja
enquanto campanha política seja como diagnóstico de realidade; ambas organicamente vinculadas, o que é mérito especial e
chave do sucesso alcançado. Unidade para a qual as características públicas e intelectuais do próprio candidato foram
decisivas, pois não é preciso ter FHC por guru político e menos ainda como guia teórico para admitir sua estatura e
consistência nos dois planos. Em verdade, seu pleito à presidência da República foi a resultante natural e coerente de sua
própria vida, naquilo que esta realça de mais profundo e bem elaborado, tendo sido capaz de buscar e tirar proveito do
conjunto de oportunidades que a trajetória brasileira pôs à disposição de suas inclinações e propósitos. Também sob esse
aspecto foi uma candidatura excepcional em face dos moldes políticos nacionais, pelos quais o espírito rústico e a esperteza
têm substituído a inteligência, e o discurso de ocasião tem ocupado o lugar das convicções bem articuladas.
Todavia, importante e influente, não há pouco a criticar na obra científica de F. H. Cardoso, mas esta não só não foi
contraditada por sua candidatura como o pleito eleitoral do autor, no talhe em que se efetivou e foi vitorioso, é impensável
sem a pedra angular de sua interpretação da vida nacional. Há entre o acadêmico e o político antes harmonia fundamental do
que dissonâncias de relevo. O conjunto de seus textos mais significativos - desde a tese de doutoramento, Capitalismo e
Escravismo no Brasil Meridional (1962), e de forma mais específica Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico, bem como
Dependência e Desenvolvimento na América Latina - firma uma síntese categorial que, a propósito de esclarecer as especificidades do
capitalismo no Brasil, rende um diagnóstico centrado na perversidade da modernização conservadora. Constante histórica pela qual
os processos brasileiros de mudança reproduziriam sempre as mazelas sociais preexistentes, e por efeito do mesmo padrão, a
cada turno sucessivo, outras mais se agregariam, sem que, no entanto, a tematização do sociólogo abra espaço à interrogação
pelas eventuais alternativas que poderiam emergir das virtualidades humano-societárias do trabalho. A derrota da esquerda e
do nacionalismo em 64 consolidou esse feitio unilateralizante de sua reflexão, e o evolver do plano internacional nas últimas
décadas acabou por excluir inteiramente essa problemática de suas cogitações, sob a ressalva de que a mesma deixou de estar
presente no horizonte prático da humanidade. Tal preeminência do político sobre o cientista é corriqueira, habitualmente
legitimada sob a pressão e o critério da prática imediata e de seu leque restrito de possibilidades. De sorte que FHC não burlou
ninguém, seja na esfera teórica seja no terreno político. Aqueles que se equivocaram, na avaliação de seu pensamento, e depois
ficaram perplexos, diante da natureza e desenvoltura de sua prática, estavam enganados de há muito e por conta própria,
tornando a errar nos embates da campanha, agora do modo mais incongruente e inaceitável: ao arrepio dos atributos reais do
atual presidente da República e pela desqualificação de sua inegável compostura política.

MUNDIALIZAÇÃO E CRISE SOCIAL

Competência teórica e prática desde logo posta em evidência pela formulação da aliança PSDB-PFL, concebida e armada na
qualidade de condição de possibilidade da própria candidatura e da viabilização ulterior de seu programa de governo. O
sucesso de FHC, candidato e governante, principiou nessa equação estratégica, fundada na compreensão de que, no quadro
sócio-político brasileiro, vitórias eleitorais e exercício regular de poder só têm sido possíveis na forma da conciliação de
propósitos, da aliança de vetores políticos que se reconheçam como agentes complementares na consecução, sob tensões
internas, de um montante dado de objetivos comuns, assumidos e anunciados como demandas nacionais.
Tendo por arrimo o sucesso do plano de estabilização monetária, a plataforma da coligação articulou os dois
complexos problemáticos mais abrangentes e de máxima urgência no cenário brasileiro: a inserção da economia nacional nos
marcos da mundialização e o combate sustentado à miséria social, que mina e contradita a envergadura econômica do país, a
ponto de ter passado a constranger, ao que parece, até mesmo suas elites, tradicionalmente beneficiárias da mesma e
insensíveis ao problema. Nessa armação programática, as tendências do momento histórico efetivo, nacional e mundial,
vieram ao encontro das convicções mais atuantes de FHC, de modo que a solvência da questão societária é derivada do
encaminhamento resolutivo da problemática da globalização, ambos remetidos à temperança da ação mediadora e corretiva do
estado. Nisto residiu a força e a ilusão necessária da campanha, bem como sobre as mesmas bases descansa agora a vitalidade
do governo que ela produziu: força composta pela correta apreensão do momento real em seus limites, casada à propensão
intrínseca das disponibilidades políticas mobilizadas; e por catalisador a ilusão necessária, sustentando a idealidade do aparato
eleito como representação incorporadora da universalidade dos brasileiros no melhor de suas perspectivas presentes e futuras.
Dada a esterilidade analítica e prática das vozes partidárias que teimam em se arrogar como esquerda, e considerada a
efetividade inamovível da maré montante dos mercados mundiais de produção e circulação, bem como dos inauditos padrões
da atividade produtiva em universalização, é mais do que difícil recusar ao programa de FHC senso de realidade e pertinência
prática, da mesma forma que é impossível deixar de por em xeque sua evanescente ilusão necessária. Sem ter à disposição,
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literalmente, outra referência de fundo, o centro lógico da programática governamental é regulado pela lógica sem precedentes
da nova fase de acumulação ampliada do capital, ou seja, pelos nexos operantes do novo patamar tecnológico e da
mundialização do mercado, os quais, por sua extensão e complexidade, não se confundem com as meras e restritas
postulações da receita ideológica neoliberal. A identificação forçada de níveis tão diversos - a atuação material de lógicas de
realidade e a propositura maquiada de interesses - por simples malícia política, como por vezes tem ocorrido, não opera mais
do que a mágica adversa de ocultar, dos que se alinham por semelhante extravio, os contornos marcantes da face atual do
capitalismo, o que leva ao estupor do aprendiz de feiticeiro.
Hoje, confinada ao mínimo, a diferença entre governo e oposição está na disponibilidade mental para admitir as
viragens deste fim de século e, por conseguinte, o acanhado panorama sócio-político daí emergente. Já esta distinção,
favorável ao governo, sinaliza o potencial das atitudes: enquanto as frações oposicionistas nada mais fazem do que dar as
costas aos nexos do presente, só arrimando olhares de desforra na próxima sucessão presidencial (1998), sob a mesma
perspectiva irredenta que as levou às derrotas recentes, a administração de FHC não perde de vista a lógica específica dos
movimentos atuais do capital e de seus influxos na saga interna, isto é, mantém bem aberto ao menos um olho para a realidade
encrespada na qual é obrigada a navegar, águas pelas quais manifesta afinidade natural, dado o quadro de suas atribuições e
circunstâncias. É - e se assume - como aparelho de estado na ordem mutante do capital, longe do semblante de qualquer
dispositivo político de transgressão da mesma, perfil que o levaria a tombar no vazio ou a patinar no perigoso plano inclinado
do ridículo, lombada pela qual andam tropicando seus oponentes menos articulados.
É esse olhar cativo, mas desperto, que propugna o complexo das reformas constitucionais como síntese de ação
governamental e vasta empreitada política. Enquanto poder constituído, sabe que está em face de um caminho irreversível, e
obrigado a lidar com um emaranhado de inúmeros problemas e interesses conflitantes. Rota de ajustamento ao mercado
mundial que não é um simples ato de vontade, tanto quanto a figura deste não é a resultante de um mero complô, mas um
complexo objetivo por efeito de antigas determinações, precípuas ao sistema, cujo entendimento e crítica já datam de mais de
um século, assim como seu indefectível amoralismo. Paradoxalmente, isso é melhor sabido e considerado pelos governantes
do que por seus oponentes, donde a força dos primeiros e a debilidade nervosa dos outros.

PERSPECTIVAS DE INTEGRAÇÃO E EXCLUSÃO

Já ficou para trás a visão idílica do processo de globalização econômica que predominou, com a implosão do leste europeu, na
virada dos anos oitenta para a década atual. A suposta linearidade e rapidez da propagação do fenômeno, então apregoada,
bem como a irradiação planetária de seus benefícios, cederam lugar à admissão de um rumo inelutável, porém, entrecortado
por desenvolvimentos desiguais, marchas e contra-marchas: uma via geradora, em suma, também de contraditoriedades sem
precedentes, tanto por seus conteúdos quanto pelo gigantismo de seus efeitos. Foi sob esse prisma bem mais realista que a
incontornável travessia acabou se impondo, aos trancos, junto à opinião nacional e a seus agentes políticos; e a partir desses
mesmos referenciais é que as possibilidades brasileiras nessa marcha batida podem e devem ser avaliadas.
O sistema produtivo nacional, desde sempre, encarnou seus perfis e o teor de suas modernizações subordinado aos
empuxos dos pólos hegemônicos mundiais. Não é diverso o que se passa agora, diante da mais radical das revoluções
tecnológicas, combinada ao quadro da globalização econômica. Todavia, dada a qualidade e a envergadura destas e o próprio
grau de desenvolvimento material alcançado no país, as margens de manobra nos ajustes e seus efeitos possíveis também se
diferenciaram, ao mudarem de natureza. Para o bem e para o mal, aqui se fecha e fica para trás um longo ciclo, cujas
características dominaram a maior parte do cenário brasileiro neste século. Traços que, reduzidos ao essencial, conferiam ao
país o semblante de uma entificação nacional que pelejava para completar sua formação capitalista, mas que reproduzia
sempre, apesar da multiplicação das formas de crescimento e diversificação econômicas, a incompletude de seu capital e, por
conseqüência, suas peculiares mazelas sociais e políticas. Toda essa problemática perdeu suas âncoras e se transfigurou, no
bojo dos novos parâmetros internacionais do sistema de produção e circulação de mercadorias.
Dado o porte e a complexidade da produção material brasileira - por menos que pese ser uma das dez maiores
economias do planeta, ou por mais que tal escore aponte antes de tudo para o índice de concentração da riqueza global em
poucos países, vale dizer, para o grau da miséria física da humanidade no presente - é impensável o Brasil dissociado das novas
tecnologias e do mercado globalizado. Até porque, independentemente de todas as inconsistências peculiares com que as
tenha percorrido até aqui, as trilhas do país sempre estiveram imbricadas nos avanços mundiais dos meios de produção e à
dinâmica das trocas internacionais. Com efeito, no caso brasileiro, a transição demandada é antes uma regulagem de caráter
jurídico, por certo de largo alcance, do que uma reviravolta na essência das coisas. Em outros termos, considerado o processo
formativo do capitalismo no Brasil, todo subsumido a regências metropolitanas, o momento atual é o desfecho imanente que
perfaz seu pleno acabamento.
Durante largo período, em conformidade com o espírito que reinou junto aos países periféricos mais expressivos, a
perspectivação do desenvolvimento brasileiro era dada por uma linha de para-autonomização nacional, à qual acriticamente a
esquerda se atrelou. Rumo esgotado há décadas, chegam agora também ao fim os próprios vestígios da lógica do capital global
que o suscitava ou, melhor, que o nutria como ilusão. Aflorava à época como possibilidade, entre real e aparente, nos
contornos de uma produção de mercadorias internacional ainda delimitada ou de escala relativamente modesta, cuja circulação
era efetivada, em regra, no âmbito bilateral de mercados mais ou menos restritos e cativos, sob a regência das potências
centrais. E desaparecem até mesmo suas ilações mais remotas com a produção ampliada a grandezas sem limites e o
intercâmbio comercial elevado ao primado das trocas infinitas e superpostas, sem embaraços de fronteira. De modo que crescer
passou a supor a capacidade de ocupar nichos na infinitude da malha de produção atualizada, universo no qual os mercados
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interno e externo não mais se distinguem: ao capital social global corresponde agora o mercado único das trocas levadas ao
paroxismo. Que tudo isso esteja repleno de contradições em todos os planos societários - muitas das quais ainda insondáveis,
mas de cujo potencial negativo não há que duvidar - não altera a realidade e vigência dessa entificação no presente, e tanto
menos sua irreversível força de determinação na prospectiva do futuro imediato.
Sem dúvida, a nova (des)ordem internacional do capital, produzido e reproduzido com alta tecnologia no mercado
globalizado, não é a materialização de um sopro divino de bonança, plasmada em opulência e justiça. É, porém, e será cada
vez mais, até onde possam os horizontes ser hoje vislumbrados, o mundo real a ser vivido por todos, embora sob a
diversidade com que os países estejam habilitados a participar dele por efeito do desenvolvimento desigual que os enforma. Se
o feitiço reside nas trocas infinitas e superpostas de mercadorias, produzidas sob o padrão da alta tecnologia, só poderá existir e
padecer, civilizadamente, quem produzir e trocar sob as determinações desse complexo lógico de princípio. É deste que passou a
descender o futuro, incluída a própria ultrapassagem subseqüente de seus feitos, pela maturação da pletora de suas
contradições virtuais e a emergência de novos agentes e mandatos societários, na história sem fim do homem e de sua
efetivação.
O Brasil, no futuro imediato e palpável, é do grupo restrito de nacionalidades periféricas que maior proveito pode
tirar da nova forma de acumulação ampliada do capital. Em verdade, não tem alternativa: ou participa dessa civilização ou
envereda pela estagnação degenerativa. Pelo seu porte econômico, cultura e modernização tecnológica e a recém adquirida
estabilidade política, tem inserção produtiva assegurada nos planos regionais e internacionais, inclusive pela experiência
acumulada no comércio exterior. As reformas constitucionais no plano econômico buscam homologia e coerência, em relação
à nova lógica do sistema, dos movimentos financeiros e do fluxo dos investimentos, abrindo espaços às inversões nacionais e
estrangeiras na alavancagem do crescimento. Pelo seu potencial, em uma década ou duas, o país poderá estar alçado em alguns
graus no quadro dos mais abastados.
Não será ainda a glória, tanto menos no curto prazo, inclusive porque, no âmbito das reformas do estado e correlatas,
a ação governamental não tem revelado a mesma inteligência e vivacidade que exibe nas reformas econômicas. Ao término do
mandato presidencial em curso, os bolsões de pobreza poderão ter encolhido um pouco, mas a miséria social continuará um
problema estrutural. O saldo final do governo será, então, a derrota honrosa de FHC, base suficiente, é provável, para a sua
reeleição.

J. CHASIN

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