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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo & Flávia Florentino Varella (org.).

Caderno de resumos & Anais


do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do historicismo: tradições historiográficas
modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008. (ISBN: 978-85-288-0057-9)

Revolução de 1930: a operação historiográfica e o abandono da memória


Carolina Soares Sousa1

Resumo: A historiografia brasileira, a partir da década de 1960, fez a leitura da


revolução de 1930 instituindo-a como fato marco. A revolução passa a ser tema
consagrado entre os intelectuais que buscavam estudar a Revolução Brasileira. Ao
compararmos autores que pensaram a revolução “no calor dos acontecimentos”, caso de
Barbosa Lima Sobrinho e Virgínio Santa Rosa, com a operação historiográfica feita por
historiadores como Boris Fausto, entramos no campo da disputa entre memória e
história. Não pretendemos fazer um novo balanço historiográfico a cerca de 1930, mas
sim entender como alguns fatos são instituídos como momentos fundadores enquanto
que outros são relegados ao silêncio.

Palavras chave: história, memória, revolução.

A operação historiográfica pode ser aplicada ao fato ou acontecimento de forma que


o faça viver ou morrer. A escrita, através do mesmo texto, pode honrar e eliminar, fazer
mortos para que vivos existam.2 A pesquisa histórica se constitui a partir do
estabelecimento de premissas teóricas, hipóteses que dão condições para uma história
possível, não necessariamente para a história de fato, que dependerá das perguntas feitas
ao documento. Testemunhas vivas falam por uma iniciativa própria, quando se sentem
seguras de terem encontrado quem ouvi-las, o documento escrito necessita ser
questionado, mas as questões impostas podem também silenciá-lo. 3 O momento em que
a operação historiográfica se ingressa na escrita, é o momento do arquivo, nele a história
começa com o ato de separar, reunir, de transformar em documentos os objetos
estudados, antes distribuídos de outra maneira. O documento, ao ser separado, é
constituído como peça que preenche lacunas. Essa operação técnica consiste em dar voz
ao silêncio desses documentos, antes adormecidos. 4
Paul Ricoeur chama a atenção para a passagem do testemunho oral para o escrito,
passando assim a compor os arquivos. Esses documentos escritos deixados nos
arquivos, já não possuem mais quem fale por eles, não são somente mudos, mas
também órfãos por terem se desligado daqueles que os colocaram no mundo. A partir de

1
Universidade Federal de Goiás/ Bolsista IC
2
CERTAU, 2006, p. 108.
3
KOSELLECK, 2006, p. 187.
4
CERTAU, 2006, p. 81 e 83.

1
então, estarão submetidos aos cuidados de quem irá interrogá-los, e é nesse momento
que a operação técnica aplicada a esses documentos, pode ser um remédio ou veneno
para sua memória. 5 Para os homens que vivenciaram e relataram a Revolução de 1930,
garantindo um compromisso com a verdade, a operação historiográfica que transforma
Vargas em mito e 1930 como “fato marco”, foi mais veneno que remédio. Os
testemunhos desses homens chegam, senão como a voz de um fantasma, no momento
em que se rememoram as atuações políticas durante a década de 1930. Entramos agora
no campo da disputa entre memória e história. A memória do vencedor é sobreposta a
memória do derrotado, constituindo assim a história oficial. Para perceber a imposição
de uma história oficial sobre a memória, recorremos ao estudo de Carlos Alberto
Vesentini a cerca da Revolução de 1930, momento que ficou marcado como “fato”. Ao
pensar a instituição do acontecimento como fato marco, cabe aos historiadores
questionarem como outros instantes, agentes e personagens ficam de fora e não
conseguem integrar-se na memória do acontecimento analisado. Ainda mais, a memória
do vencedor segue impondo parâmetros para as interpretações dos acontecimentos
posteriores. Por isso, devemos retomar a analise do tempo instituído como fato, com
objetivo de ouvir essas vozes silenciadas e entender esse longo silêncio.6
Partimos da análise da obra de Boris Fausto a cerca da Revolução de 1930, onde ao
autor faz sua operação historiográfica em cima do acontecimento, no caso, 1930. Boris
Fausto afirma ter como intenção, ao pensar a revolução, repensar alguns modelos de
análises, considerados por ele como fruto de uma vertente marxista que via no modelo
de revolução da Europa Ocidental, a possibilidade de enquadrar a revolução do Brasil.
Para Fausto, 1930, como objeto de estudo, lhe pareceu estratégico para demonstrar a
inconsistência do modelo consagrado e para propor outro tipo de explicação. Isso,
segundo o autor, por duas razões: primeiro, 30, trata-se do episódio que põe fim a 1°
República, e a oposição fundamental latifúndio/Burguesia – se verdadeira – aí estaria
presente em toda sua extensão; segundo, o tenentismo desempenha nele um papel
importante, e as insurreições tenentistas, mais do que qualquer outro movimento militar,
tem sido reduzidos a ação política das classes médias. 7
A critica de Fausto consiste na tese dualista. Ao analisar a Revolução de 1930, o
autor partiu de duas linhas principais que, segundo ele, se cristalizaram na historiografia

5
RICOEUR, 2007, p. 178 – 179.
6
VESENTINI, 1997, p. 99.
7
FAUSTO, 1997, p. 8.

2
brasileira. Uma sintetiza o episódio revolucionário em termos de ascensão ao poder da
burguesia industrial, outra o define como revolução das classes médias. A primeira
integra todos os seus elementos e com ele se identifica; a segunda implica a associação
classes médias/tenentismo. Ao apresentar o novo prefácio à edição de 1997, Fausto se
posiciona perante críticas sobre sua obra, mas reafirma sua principal tese, ou seja, a
dualista. O principal pressuposto do ensaio encontra-se na afirmação de que
formulações reducionista-classita não dão conta do sentido do episódio revolucionário
de outubro de 1930. O que Boris diz pretender é mostrar, a partir, do pressuposto acima,
que a queda da primeira república não correspondeu ao ascenso ao poder, nem da
burguesia industrial, nem das classes médias, contradizendo outras versões. Assim,
Fausto faz crítica a Virgínio Santa Rosa.8 Boris, ao discutir essa vinculação, afirma que
reduzir movimentos militares a uma expressão de classe constitui uma tendência
empobrecedora que acaba resultando um equivoco interpretativo, afirma ser essa leitura
resultada de uma visão simplista da história do ocidente Europeu, transplantada para o
cenário brasileiro.
Para contradizer a tese dualista, a obra de Fausto seguirá em análise do papel da
burguesia industrial e das classes médias durante o período que precede 1930 e
terminará com o capítulo intitulado A “Derrubada” das Oligarquias, neste, o autor faz
sua análise do que foi a revolução de 1930. Justifica sua crítica a tese dualista,
mostrando a distancia entre os agentes revolucionários e essa burguesia industrial
paulista, não descartando algum grau de verdade existente nessa relação, mas apenas
não transferindo toda a responsabilidade da interpretação do acontecimento para o
ascenso ao poder da burguesia industrial, “sob o prisma da intervenção direta do setor,
ou da revolução promovida do alto”.9 O mesmo se dá ao pensar os tenentes no processo
revolucionário. Na conclusão de seu texto, Boris afirma ser o tenentismo na década de
1920 o centro mais importante de ataque ao predomínio burguesia cafeeira, revelando
traços específicos que não podem ser reduzidos simplesmente ao protesto das classes
médias.
Carlos Alberto Vesentini compara diversas análises do acontecimento, ou seja, 1930,
tornando possível perceber as diferenças de imagens do fato por historiadores como
Fausto e homens que dizem terem visto de perto o sucesso e conhecem de perto, quase
todos os atores de 1930, como Barbosa Lima Sobrinho, que, repetidas vezes, reafirma

8
FAUSTO, 1997, p. 15.
9
FAUSTO, 1997, p.10.

3
seu compromisso com a verdade.10 Sim, é possível ler essas duas obras, como se
estivéssemos lendo acontecimentos distintos. Enquanto Fausto se preocupa em derrubar
essa tese dualista, ao analisar, em seu último capítulo, o fato (1930), deixa de lado
questões políticas como a morte de João Pessoa, nem mesmo citando o personagem.
Barbosa Lima Sobrinho, em direção contrária, nos mostra a importância de tal
acontecimento com a seguinte fala: “o sacrifício do Presidente da Paraíba criara o
ambiente ótimo para a conclusão da conspiração, que sem isso teria se desfeito.”. 11
Mencionar essa comparação entre os dois autores não tem como objetivo estabelecer
quem diz a verdade ou não, mas sim pensar a construção do fato de diferentes formas.
No entanto, Fausto exclui acontecimentos mostrados por autores como Sobrinho, que
faz sua narrativa afirmando um esforço de verificação dos fatos. Fausto faz sua análise
descartando a memória. E, ao procurar fontes sobre a Revolução de 1930, nos
depararemos com testemunhos de homens que viveram a revolução, ela está ligada ao
desejo de memória, pensá-la sem fazer esse vinculo, como fez Fausto, nos dá a
impressão de não estar lendo 1930. No intuito de interpretar esses fatos a historiografia
feita por Fausto acaba agindo como filtro, a memória não passará por esse filtro, não
servirá mais para pensar 1930 no tempo presente.
Para Edgar de Decca, ao fazer a leitura de 30 por Boris Fausto, outra questão torna-
se importante. A obra mostra uma análise bibliográfica com o intuito de discutir a
ocorrência ou não de uma revolução burguesa no Brasil. 1930 trás a discussão sobre a
existência de uma revolução burguesa, mas ao mesmo tempo a relega ao silêncio. De
Decca concluí que “seja aceitando ou negando a viabilidade da revolução democrático-
burguesa, seja rejeitando este eixo de análise a partir da introdução de outras variantes
da revolução burguesa, o certo é que a bibliografia geral considera essa questão
implícita à Revolução de 30”.12 O que deve interessar para a historiografia é a análise
dessas lacunas, como elas se formam a partir do acontecimento (30) e como preenchê-
las. E, para preencher esses lugares vazios deixados pela construção de 30, é necessário
pensar e dar lugar a “crise das oligarquias”, ao “movimento tenentista” e, com isso,
tentar entender a dimensão histórica que 1930 ganha como marco.13
Vesentini nos mostra como 30 é, desde a escola, imposto e memorizado. Assim,
Revolução de 30 transparece como fato/marco e nele o tema revolução referencia outros

10
SOBRINHO, 1983, p. XVI.
11
SOBRINHO, 1983, p. 130.
12
DECCA, 2004, p. 48 – 49.
13
DECCA, 2004, p. 50.

4
temas, cruza-os, como oligarquia e tenentismo. O fato torna-se ponto estratégico como
marco, chama as interpretações de outros objetos para si, transformando-se em centro de
reflexão, como gancho e local para a discussão:

Apresenta-se vivo como ao que existe e como necessidade de interrogação,


pelo desejo de mudar. Num momento desses, quando a sociedade pode
caminhar para repropor-se, a volta pelo pensamento de seus próprios passos,
à procura de sua inteligibilidade, pode reencontrar 30. (VESENTINI, 1997,
p.97.)

Boris Fausto analisa irrupção da Revolução de 1930, rapidamente atribuindo como


causa o que ele denominou como um “lance desastrado”, ou seja, a insistência de
Washington Luís na questão da escolha do seu sucessor abrindo caminho para a
formação da Aliança Liberal. A irrupção da revolução, a queda do presidente, a
formação da Aliança, são analisados dessa maneira e, Fausto rompe com uma tradição
memorialística.
Termino retomando novamente as idéias de Vesentini que conclui o capítulo
Momento e Drama da Interpretação em que ele trabalha a análise da obra de Fausto e de
outros autores que fazem a leitura de 30, com a seguinte consideração:

A interpretação, baseada num corpo conceitual, reavaliado, parece achar-se


suficiente por si só. A objetividade como que flui de dentro, dela própria. Ela
possui uma seqüência, examinada então. Mas o fato tem sua própria vida, sua
astúcia. À interpretação parece crer que basta considerar a obra, no seu
conjunto, e verificar a realização. Ora, tal foi possível por características –
idiossincrasias? – específicas do momento, naquelas práticas, daqueles
agentes, ante um estado também situado. Espera-se ter alcance, no agora, do
conjunto e do a fazer, além da dominação e suas peculiaridades. Bem, o lugar
define sua significação e seus participantes, colocando limites – excluí outros
lugares e outros agentes, e pode-se simplesmente perdê-los, como a análise
de sua prática. Esquece-se a produção do fato, componente da memória,
forma de transmissão desta – a vencer novamente. (VESENTINI, 1997, p.
24.)

Referências:

CERTAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. MENEZES, Maria de Lourdes. 2 ed.,
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
DECCA, Edgar Salvadori De. 1930,O silêncio dos vencidos: Memória, história e
revolução. São Paulo: Brasiliense, 2004.

5
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: Historiografia e história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Constribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos_Memória,
CPDOC/ FGV, n. 3, 1989.
RICOEUR, Paul. A Memória, A História, O Esquecimento. Trad. FRANÇOIS, Alain.
Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2007.
ROSA, Virgínio Santa. O Sentido do Tenentismo. Ed. Alfa - Omega. São Paulo, 1976.
SOBRINHO, Barbosa Lima. A Verdade sobre a Revolução de Outubro – 1930. Ed. Alfa
- Omega. São Paulo, 1983.
VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do Fato. São Paulo: HUCITEC: USP, 1997.

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