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OPSIS

Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão


Curso de História

Dossiê
Teoria da História

ISSN: 1519-3276

A Opsis pode ser acessada pela URL:


http://www.catalao.ufg.br/historia no link publicações
OPSIS
Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão
Curso de História
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OPSIS - Curso de História. Dossiê Teoria da História. Universidade


Federal de Goiás - Campus Catalão. Catalão - GO, v. 7, n. 9, jul-dez.
2007. p. 380
ISSN: 1519-3276
História – Teoria da História – Periódicos
SUMÁRIO

Editorial.................................................................................................. 05

Dossiê Teoria da história


1 – Clio e seus artífices: repensando o fazer histórico.
Astor Antônio Diehl............................................................................... 09
2 – As dimensões do historicismo: um estudo dos casos
alemães.
Pedro Spinola Pereira Caldas................................................................. 47
3 – História e hermenêutica: a compreensão como um
fundamento do método histórico – percurso em Droysen,
Dilthey, Langlois e Seignobos.
Júlio Bentivoglio...................................................................................... 67
4 – História e memória: desafios de uma relação teórica.
Márcia Pereira dos Santos...................................................................... 81
5 – Em busca da especificidade: considerações sobre a
História.
Márcio Santos de Santana...................................................................... 99
6 - Verdade, sentido e presença: história e historiografia em
Heidegger e Gumbrecht.
Flávia Florentino Varella........................................................................ 113
7 – Mosaico divino: linguagem e interpretação da História na
obra do jovem Herder
Eduardo Ferraz Felippe.......................................................................... 127
8 – Os desafios da História (política) do tempo presente.
Roberto Mendes Ramos Pereira........................................................... 151
9 – Sobre a feitura da micro-História.
José D’Assunção Barros........................................................................ 167
10 – Os historiadores e os “fazedores de História”: lugares e
fazeres na produção da memória e do conhecimento histórico
contemporâneo a partir da influência midiática.
Sonia Maria de Meneses Silva............................................................... 187

Artigos
11 – Historiografia e identidade urbana no sul de Santa
Catarina (década de 1970)
Dorval do Nascimento........................................................................... 201
12 – Os diferentes 13 de maio: História, memória e festa da
Abolição.
Renata Figueiredo Moraes..................................................................... 215
13 – O endereço da cultura para o Carioca joanino.
Maria Renata da Cruz Duran................................................................ 229
14 – O jesuíta e o historiador: uma reflexão acerca do
conhecimento histórico produzido por Luis Palacín.
Rogério Chaves da Silva......................................................................... 251
15 – Formação de professores de História em um projeto
de articulação com a Escola de Aplicação: relato de uma
experiência.
Claudia Schemes & Inês Caroline Reichert......................................... 269
16 – Formação de professores e ensino privado noturno: uma
breve reflexão sobre cursos superiores de História.
Rejane Penna............................................................................................ 279
17 – Lembranças de mulher: literatura, história e sociedade em
Cora Coralina.
Clovis Carvalho Britto............................................................................ 297
18 – O discurso jesuíta a partir do Brasil.
Karem Fernanda da Silva Bortoloti...................................................... 315
19 – O fazer histórico e a invisibilidade da mulher.
Losandro Antônio Tedeschi.................................................................. 329
20 – Repensando o fazer histórico: a fotografia e o seu papel
didático na sala de aula.
Bárbara Maria Santos Caldeira.............................................................. 341
21 – Assuntos levantados e registrados: informações e imagens
em três jornais de Porto Alegre sobre o primeiro congresso
nacional do negro realizado em 1958.
Arilson dos Santos Gomes.................................................................... 357

Resenha
22 – Memória e mercado: o relato do outro
Emerson Dionísio Gomes de Oliveira................................................ 375
EDITORIAL

Dentro da proposta de tornar a revista Opsis semestral


apresentamos o segundo número de 2007, cujo Dossiê: Teoria da
História é fruto de uma preocupação cada vez mais atual em função
dos questionamentos feitos à História e ao seu estatuto científico. Tal
interesse tem resultado em profícuo debate presente em crescente
número de publicações tanto no mercado editorial brasileiro quanto
internacional. Isso demonstra que os historiadores, em que pesem as
acusações de empirismo e descaso com os aspectos teóricos da sua
prática, têm buscado responder aos questionamentos que tanto as
mudanças internas à disciplina quanto o movimento da história lhes
apresentam.
Esse movimento interno à disciplina tem seguido várias
tendências e os artigos que compõem o Dossiê espelham na medida
do possível algumas dessas abordagens, mantendo o espírito da Opsis
de estar aberta aos mais diferentes olhares. Os dois primeiros artigos
que abrem o Dossiê: Teoria da História, escritos por Astor Antônio
Dieh e Pedro Spinola Pereira Caldas, foram especialmente produzidos
para este número e são versões ampliadas das conferências proferidas
durante o VII Simpósio de História, promovido pelo Curso de
História do Campus Catalão/UFG. Os dois textos seguintes, “História
e Hermenêutica” e “História e Memória”, também nasceram naquele
Simpósio.
Dentro da mesma temática, mas não vinculados ao Simpósio,
completam o Dossiê os artigos de Márcio Santos de Santana, Flávia
Florentino Varella e Eduardo Ferraz Felippe que tratam de importantes
autores, com destacado papel na discussão; já os artigos de Roberto
Mendes Ramos Pereira, José D’Assunção Barros e Sonia Maria de
Meneses Silva, encerram o dossiê tratando de questões contemporâneas
como o retorno da História Política, a Micro-História e a influência da
mídia na produção histórica.
A segunda parte da revista traz artigos com temáticas livres, resultado
de pesquisas acadêmicas de várias regiões do Brasil. O texto de
Dorval do Nascimento, analisa a formação da identidade na região
carbonífera de Santa Catarina; Renata Figueiredo Moraes trata das
diferentes comemorações da Abolição; Maria Renata da Cruz Duran
enfoca a cultura no período Joanino; Rogério Chaves da Silva discute
a influência da formação jesuítica na produção do historiador Luis
Palacín; os artigos de Claudia Schemes & Inês Caroline Reichert e
Rejane Penna abordam a formação de professores de História; Clovis
Carvalho Britto, tem a escritora goiana Cora Coralina, como objeto;
Karem Fernanda da Silva Bortoloti analisa as mudanças do discurso
jesuítico diante de sua vivência da realidade brasileira do início da
colonização; Losandro Antônio Tedeschi aponta em seu texto para a
ausência da mulher e das questões de gênero na historiografia; Bárbara
Maria Santos Caldeira estuda o uso da fotografia como recurso
didático; por fim, o artigo de Arilson dos Santos Gomes é sobre o
I Congresso Nacional do Negro e sua repercussão na imprensa de
Porto Alegre.
Encerrando este número trazemos a resenha de Emerson
Dionísio Gomes de Oliveira sobre o livro Tempo Passado, de Beatriz
Sarlo.

Eliane Martins de Freitas


Getúlio Nascentes da Cunha
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Dossiê
Teoria da História
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

CLIO E SEUS ARTÍFICES: REPENSANDO O FAZER


HISTÓRICO

Astor Antônio Diehl1

Resumo: Objetiva-se compreender Abstract: The aim of the article is


os desdobramentos do momento de the understanding of the unfold-
superação (constituição e dissolução ments of the overcoming moment
do topus moderno) da fase de críticas (constitution and dissolution of
lineares aos princípios e à historiogra- the modern topus) of the phase of
fia moderna e contemporânea. O mo- the linear criticism to the principles
mento parece ser de posturas dialógi- and to the modern and contempo-
cas, percebidas a partir da constante rary historiography. It seems to be
busca de significados das representa- the time for dialogic postures, per-
ções historiográficas e, sobretudo, dos ceived from the constant search for
sentidos pedagógicos do conhecimen- meanings of the historiographic
to histórico no momento presente. representations and, most of all,
Esta postura implica necessariamente of the pedagogic meanings of the
em inventariarmos os limites e as pos- historical knowledge in the present
sibilidades do conhecimento a partir moment. This posture necessarily
de três perspectivas interligadas: a te- implies the recognition of the limits
órica, a metodológica e a historiográ- and possibilities of knowledge from
fica. three interconnected perspectives:
Palavras-chave: história, historiogra- the theoretical, the methodological
fia contemporânea, teorias da histó- and the historiographic.
ria; metodologia da história. Key-words: history, contemporary
historiography, theories of history,
methodology of history.

Apresentação do tema

Tenho muito medo de um movimento intelectual se


transformar num slogan, pois há sempre o perigo de
autocomplacência intelectual, ou seja, de se acreditar
que se está no único caminho correto, verdadeiro.
Carlo Ginzburg

Todos nós, de uma ou outra forma, já nos sentimos desafia-


dos e, porque não dizer, vacinados pelo enigma do momento histórico
em que vivemos. É um momento de profundas complexidades como
qualquer outro momento, porém com a diferença de que agora expe-

1
Professor do Curso de História e do Mestrado em Educação da Universidade de
Passo Fundo (RS). E-mail: cph@upf.br
9
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rimentados o tempo presente com todas as suas temporalidades, com


suas rupturas e permanências, com suas linguagens e representações.
É uma experiência multifacetada e coberta pelo nevoeiro da subjeti-
vidade. Tudo parece escorregar entre os dedos da mão como areia
seca do deserto ou a se desmanchar no ar, como diria Berman (1986)
em sua obra. A fluidez e a leveza são características circunstanciadas
de um momento de saturação cultural que poderíamos denominar de
Spätzeit – modernidade tardia.2
No momento em que vivemos a exaltação das experiências
culturais, em termos das disciplinas sociais, discutir sobre cultura e
conflitos sociais na historiografia contemporânea pode parecer mera
redundância acadêmica ou mesmo sinônimo de querer revisitar uma
constelação de elementos formadores que já estariam consolidados
no debate.
Por outro lado, o debate em torno dos fenômenos culturais
e os conflitos na disciplina histórica sempre me pareceram indiges-
tos, especialmente, neste momento em que a chamada história cultural
parece estar em alta. Não precisamos mais caracterizar os inúmeros
fatores e perspectivas que dariam à história cultural os seus devidos
subsídios de certa plausibilidade nos mais diversos níveis. Porém, o
avanço historiográfico destas tendências propiciou seguramente a fra-
gilidade de certezas dos conhecimentos que até então não figuravam
na pauta das discussões.3
Sem dúvida, os avanços e a receptividade entre os historia-
dores dos métodos hermenêuticos e fenomenológicos geraram, num
primeiro momento, certo mal estar, especialmente, naqueles que to-
mavam os quadros teóricos modernos, provenientes do iluminismo
civilizador, como aqueles nos quais seria possível depositar confiança
quanto as suas capacidades explicativas e de redenção do homem e da
sociedade no futuro.
Não podemos esquecer o fato que tais teorizações e postura
totalizadoras tiveram a função, entre tantas outras, de fazer morrer
em nós a natureza humana. Eram arcabouços analíticos de luta contra
o caos, contra a violência de um estado natural. Neste caso, a cultu-
ra tivera a função principal de organizar, de classificar, de definir e a
2
Este conceito foi discutido por Walter Moser (cf. MIRANDA, 1999, p. 33-54).
3
Vários destes conceitos podem ser relidos a partir da obra recente de REIS (2003).
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ciência, em seu turno, buscava exorcizar os temores da natureza, de


reconciliar o homem com o seu destino e, sobretudo, compensá-lo
pelo sofrimento e pelas privações.
Com certeza a crítica contemporânea à epistemologia racio-
nalista e a crítica às grandes narrativas legitimadoras,4 a crítica aos pro-
cessos de modernização e, especialmente, a crítica à idéia de progresso
que assistimos brotar em todos os recantos das ciências humanas e,
particularmente, na ciência histórica, não nos deve cegar frente ao fato
de que a idéia de progresso não estivesse profundamente ancorada
na mentalidade e nas estruturas coletivas do pensamento da cultura
histórico-historiográfica.
Em duzentos anos de cultura historiográfica da consciência,
a categoria progresso5 se incrustou profundamente nas estruturas da
psique ocidental e, por que não oriental, atuando na consciência his-
tórico-coletiva. Para verificarmos isso, na prática, basta perguntar para
uma criança ou até mesmo aos adultos, confirmando a idéia orienta-
dora de que o futuro irá superar sempre o presente e o passado, em
termos de chances de vida e de possibilidades de felicidade.
Ora, se a perspectiva do futuro não se operacionaliza no ho-
rizonte individual nem no coletivo, então vem à tona um obstáculo na
orientação do sentido temporal da própria história.6 Essa orientação
será percebida através do distanciamento de um processo de desen-
volvimento nas narrativas legitimadoras. O progresso como modelo de
pensar é um fator social, um conseqüente fator mental dos princípios
de conduta da vida, que precisa ser colocado na ‘ordem do dia’, caso
a história como ciência deseje ocupar o espaço da comunicação de
experiências e do conhecimento histórico.7
Por um lado, é indiscutível que no debate atual a categoria
progresso (como ela se tornou fragmentária na compreensão da cultu-

4
Ver especialmente CHAUVEAU, A.; TÉTARD, Ph. (1999) e BODEI (2001). Este ques-
tionamento já estava presente nas preocupações de Walter Benjamin em LÖWY (1990),
especialmente o cap. 9 e 10; para a questão historiográfica ver DIEHL(1993; 2004).
5
Ver NISBET (1985).
6
Ver especialmente capítulo 4 do livro de DOSSE (2003).
7
Este aspecto não é privilégio do pensamento histórico, mas abrange os mais diversos
debates nas mais diferentes áreas do conhecimento. A abrangência do debate pode ser
acompanhada em SCHNITMAN (1996). Fizemos uma tentativa em DIEHL (2006).
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ra) não consiga mais ser concebida sem profundas fissuras.8 Para isso,
as experiências históricas são poderosas demais. A tendência à crise,
as conseqüências catastróficas da concepção tradicional, concebida
como desenvolvimento histórico para o mundo moderno (especial-
mente nos setores sócio-econômicos a partir da industrialização) já se
tornou experiência coletiva comum.
Cada um de nós que possui sensibilidade suficiente para
perceber contradições estruturais entre o seu mundo e o da geração
passada, leva em consideração os resultados práticos desse desenvol-
vimento como fatos observáveis: na destruição ecológica durante a
exploração da natureza via industrialização; no desmedido e crescen-
te potencial dominador do poder de blocos nos estados modernos;
na profunda ruptura de possibilidades entre o mundo industrializado
com as regiões não industrializadas e, finalmente; na desertificação dos
impulsos inovadores dentro do racionalismo institucionalizado pela
ciência (GIDDENS, 1991).
A ciência histórica não poderá ser excluída da onda crítica ao
progresso, se para o historiador a cons/ciência histórica apreendida
através da experiência do passado significar alguma coisa. A crise da
noção de progresso se configura na confrontação entre intenção e reali-
zação especialmente a partir de três vetores básicos:
a) o progresso moderno foi subsidiado pela esperança de que,
através da unificação de razão filosófica e racionalidade cientí-
fica pudesse ser instituída a ‘paz’ interna das sociedades, bem
como o delineamento da ordem internacional. As pessoas do
século XX viveram desde grandes tensões até guerras mun-
diais, guerras locais, tendo como referencial um potente ar-
senal destruidor cientificamente produzido (WITTROCK,
1989, p. 497-507).
b) o progresso moderno constitui, na forma mais decisiva, a socie-
dade do trabalho, na qual vale o crescimento da produtividade
na base da constante automatização, gerando nas sociedades
industrializadas a crise da própria sociedade do trabalho;
c) a crença no progresso foi um fenômeno formador da identi-
dade no auto-entendimento das sociedades, de seus grupos e
indivíduos. A crise da noção de progresso leva à crise de iden-

8
Em termos de debates recentes sobre a noção cultura sugere-se SEMPRINI
(1999) e CUCHE (1999).
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tidade e de legitimidade do conhecimento, que se faz visível


em diferentes setores, como por exemplo: a crise de legitimi-
dade de sistemas políticos.9
Da crise de orientação do sentido que essa crítica representa
na cultura política e a cultura historiográfica atual resulta o sintoma
das crescentes revoluções frustradas, atingindo em contrapartida ao
progresso de maximização das revoluções otimistas crescentes onde
o ideal de progresso compôs o estímulo central para o iluminismo
através do tempo relacionado ao espaço.
Portanto, por um lado, discutir a temática da cultura e do
conflito no modo de produzir o conhecimento histórico é o mesmo
que mapear a patologia do tempo presente, provocada pela mordida
do enigma de compreendermos os conflitos da produção historio-
gráfica. Por outro lado, todos nós sabemos da dificuldade de se fazer
um mapeamento mais completo ante a quantidade e diversidade da
produção contemporânea. Então, é preciso fazer uma seleção, pois é
humanamente impossível ter domínio sobre a totalidade e é aqui que
enfrentamos o primeiro desafio. Quais são as obras paradigmáticas
para entender a complexa paisagem historiográfica? Com todo o risco
da imprecisão e da parcialidade da leitura, tomo como sistema de re-
ferência três pontos:
a) De onde se pode mapear os pontos do debate sobre cultura
e conflitos na historiografia contemporânea. Esta perspectiva
do olhar analítico deve cobrir pelo menos os seguintes aspec-
tos: as questões vinculadas às mudanças no pensamento his-
toriográfico; a questão da crise da razão histórica e do sentido
do conhecimento histórico.
b) Quais são os debates significativos internos e externos e
como estes repercutem na produção historiográfica contem-
porânea?
c) Quais são os pressupostos metodológicos da análise desta
paisagem tão dinâmica e pluriorientada?
Já podemos perceber de antemão que a questão é indigesta,
mas podemos tentar compreende-la mesmo assim se partimos, meto-
dologicamente, com a noção de cultura historiográfica. Que possibi-

9
TOURAINE (1989, p. 43-457) e a discussão realizada no mesmo número da revista
citada, entre referências de vários cientistas, p. 533-584.
13
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lidades a noção cultura historiográfica pode oferecer em detrimentos


de outras formas de estudo como, por exemplo, a dos paradigmas,
correntes teóricas e etc.

A noção de cultura historiográfica

A noção de cultura historiográfica é composta por uma cons-


telação de matrizes metodológicas que nos permitem construir estru-
turas de análise e compreensão da produção historiográfica. Esta no-
ção surgiu a partir de estudos mais sistemáticos sobre a historiografia
brasileira, feitos desde os anos de 1980 e gradativamente aperfeiçoa-
dos.
Nosso objeto aqui é discutir o processo de produção do co-
nhecimento histórico e as possíveis tarefas da análise historiográfica.
Nesse sentido, tomamos como base a noção de cultura historiográfica.
Entendemos por cultura historiográfica um conjunto de cinco matri-
zes e seus respectivos elementos interligados.
A primeira matriz tem sua origem no debate proposto por
Thomas Kuhn (1987), com a publicação do livro A estrutura das revo-
luções científicas em 1962 (DIEHL, 2001, p. 33-52). Kuhn apresenta um
debate sobre a noção de paradigma, as conseqüências para a ciência
quando ocorre a chamada mudança paradigmática e os fatores agentes
dessa mudança.
O debate desencadeado por Kuhn foi assimilado com dife-
rentes graus de recepção na história. Jörn Rüsen (2001) então pro-
pôs uma matriz disciplinar da história como um modelo para a discussão
teórico-epistemológica. A matriz de Rüsen é composta por cinco ele-
mentos: os interesses pelo conhecimento sobre o passado; as perspec-
tivas teóricas que orientam a pesquisa; as metodologias, as técnicas de
pesquisa e as diferentes fontes; as formas de representação do passado
por meio das narrativas e, finalmente, as funções didáticas do conheci-
mento histórico no contexto sociocultural.10
A segunda matriz tem seu foco centralizado nas formas de recep-
ção teórico-metodológicas e ideológicas dos debates teóricos na comunidade
científica na própria história e demais ciências humano-sociais. Essas

10
A matriz disciplinar de Rüsen está no livro Razão histórica (2001). Ver esta discussão
no texto de DIEHL (2001b).
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formas de recepção são constituídas de três vetores: a ortodoxa, a


adaptada e a crítica.11
A terceira matriz tem seu esforço concentrado sobre as expe-
riências historiográficas refletidas sobre a modernidade e ela é composta pelas
noções modernização, modernidade e modernismo.

PARA UMA PARA UMA


CULTURA HISTORIOGRÁFICA CULTURA DIDÁTICA
(complexidade da compreensão) (complexidade da media-
ção)

- matriz disciplinar da história


- matriz da recepção teórico-metodológica
e ideológica
- matriz das expectativas sobre a moderni-
dade - história como experiência
- matriz das experiências sobre a pós-
modernidade - história como ciência
- matriz estético-narrativa da história INTERME-
- matriz didático-pedagógica da história - história como didática
DIAÇÃO

O LOGOS O LOCUS

Relações
possíveis
CAMPOS DE RACIONALIZAÇÃO DO CAMPOS DE EXPERIÊNCIAS
CONHECIMENTO

A quarta matriz apresenta as experiências historiográficas sobre a pós-mo-


dernidade e ela é composta pelo debate sobre a tensão entre moderni-
dade – pós-modernidade e as repercussões dessa tensão na disciplina
história.
A quinta matriz representa o estético-narrativo da história e ela é
constituída a partir do debate em torno do texto histórico-historiográ-
fico e as respectivas representações de estruturas e de sujeitos. E, final-
mente, a sexta matriz representa as possibilidades do conhecimento
histórico em termos de sua validade e legitimidade social e cultural
numa sociedade em profundas mudanças estruturais.
Com esse primeiro entendimento, sobre a noção de cultura

11
Discutimos essa matriz em DIEHL (1993), especialmente p. 26-27.
15
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

historiográfica, podemos seguir adiante, dizendo que por processo de


produção do conhecimento histórico compreendemos um conjunto
de práticas desenvolvidas tanto em nível acadêmico como não acadê-
mico.
Observa-se, ultimamente, um amplo processo de produção
de dissertações e teses no contexto dos programas de pós-graduação
e com isso, a socialização da pesquisa dos membros da comunida-
de de historiadores. Com esse aspecto não queremos afirmar que a
socialização dos conhecimentos produzidos ocorra, necessariamente,
com igual intensidade no contexto mais amplo da sociedade através da
publicação de livros e artigos de acesso geral.
Nesse sentido, trata-se de verificar a hipótese segundo a qual,
apesar do anúncio da crescente burocratização, leia-se especialização
da história. Conseqüentemente, a socialização do conhecimento pelos
membros da comunidade científica na pesquisa está sendo ainda muito
mais definida pela performance individual e singular do historiador.
Observa-se, também, a crescente institucionalização e conso-
lidação de cursos de pós-graduação em um processo que poderíamos
denominar de interiorização do conhecimento.
Além das questões institucionais e quantitativas da produção
do conhecimento devemos considerar a ciência e a atividade científica
como eminentemente sociais. A história da ciência histórica se interes-
sa pelos próprios cientistas em suas condições de trabalho.
Nesse sentido, existem várias alternativas conceituais para o
estudo do processo de produção do conhecimento histórico. Entre
estas alternativas destacamos: o conceito de comunidade científica, intro-
duzido por Polany, presente em Merton e desenvolvido por Kuhn,
o conceito de ethos científico de Merton; o conceito de campo científico e
habitus de Bourdieu,12 bem como o de habitus na perspectiva de Nor-
bert Elias.
O processo de institucionalização e consolidação da história,
como disciplina, bem como de constituição das coletividades de his-
toriadores, compreende diferentes fases, no Brasil.
A primeira fase compreende aquela que podemos denominar
de vigilância comemorativa, a qual carrega consigo a herança histó-

12
BOURDIEU(1996a; 1996b; 1986).
16
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

rico-cultural da historiografia do século XIX (BOURDIEU, 1986 e


1996). A sua produção intelectual e historiográfica caracteriza-se por
ensaios de cunho erudito, tendo influência da literatura de origem eu-
ropéia. São pensadores do Brasil vinculados ao Estado ou próximos
dele. Os Institutos Históricos e Geográficos e as Academias são exemplos
dessa fase. Com posturas diferenciadas, suas características básicas são
a de ter a hegemonia de representar o Brasil. Essa perspectiva perdura
em grande parte até meados dos anos 1970 (DIEHL, 1999).
A partir dos anos 1970 e 1980, com a criação dos programas
de pós-graduação, entramos em uma fase da cultura historiográfica
que é caracterizada pela crise dos parâmetros científicos tradicionais e
pela diversidade de histórias, porém fortemente institucionalizada nas
universidades. Nessa fase assistimos, além da interiorização da pro-
dução do conhecimento e sua correspondente profissionalização, a
emergência de alternativas temáticas e teóricas.13
Com o fim do regime militar em 1985, a historiografia in-
gressou em um período sob condições de democracia no Brasil. Com
isso, as universidades passaram a gozar de uma relativa autonomia,
estimulando um novo incremento à institucionalização através da vi-
vência departamental, oriunda da reforma universitária no final dos
anos 1960.
Essa institucionalização gerou profundas descontinuidades
que, neste período, se apresentam fragmentadas sob a forma de várias
especializações e essas não regulam sua expansão por paradigmas for-
tes e dominantes. A departamentalização do conhecimento histórico
e dos próprios cursos de história pode, para fins de compreensão, ser
transposta geograficamente para as diferentes universidades.
O departamento torna-se o lugar, por excelência, da produ-
ção em história. Nesse momento podemos identificar pelo menos três
tendências.
A primeira tendência lembra uma orientação mertoniana, na
qual ocorre a dissociação entre ciência e vida pública. Desenvolve-
se uma historiografia sob a jurisdição de uma comunidade científica
orientada por um ethos específico. Através desse ethos específico e autô-
nomo, procurou-se atingir os fins próprios da lógica científica. Nessa

13
Fizemos isso em DIEHL (2004).
17
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tendência, a historiografia não deveria servir ao Estado, ao mercado,


nem a quaisquer outros sujeitos sociais.
A segunda tendência prevê o locus departamental, como sendo
uma espécie de autor para a construção de redes em torno de objetos
definidos pela vocação solving problems, estimulando-se, para tanto, a
criação de laboratórios, arquivos e implementando linhas de pesquisa
e áreas de concentração.
A terceira tendência consiste em uma forte influência france-
sa na cultura historiográfica pela qual ocorre a recepção maciça e uma
aproximação da nova história francesa com a história cultural, fazendo
da história uma forma medial de comunicação entre passado e presen-
te. Evidente está que a história nova gerou uma revolução na historio-
grafia, como muito bem menciona Peter Burke (1991). Mas sua forte
tendência ao mercado medial acentuou a sua patologia. Refiro-me à
patologia do esgotamento e da sua perda de sentido em termos de
busca dos parâmetros modernos de ciência.
Radicalizando essa tese, poder-se-ia falar de uma historiogra-
fia compensatória aos problemas contemporâneos e de uma falta de
perspectivas para uma possível mudança social.
Contudo, na versão atual, essa tendência está se apresentando
como uma historiografia especializada em objetos fragmentados (ne-
gros, mulheres, sem-terra, homossexuais, feiticeiras, imaginário, coti-
diano, etc.), com os quais ela se identifica, atuando como ator na sua
representação. Ainda na situação atual temos uma versão historiográ-
fica que ruma para o encontro com a literatura, enfatizando as prefi-
gurações e discursos contextualizados. Nessa perspectiva rompem-se
as fronteiras disciplinares da história.
De forma genérica, podemos afirmar que apesar de três ten-
dências identificadas isoladamente, elas ocorrem simultaneamente,
mostrando-nos, sobretudo, que não há mais um conhecimento estabe-
lecido de verdades absolutas e últimas. Por mais paradoxal que possa
parecer, a história está em franca popularização, e cada vez mais ela
vem ocupando espaços nos diferentes meios de comunicação. Cada
vez mais, a legitimidade da história centra-se na pluralidade e na mul-
tiplicidade, no imediato e no tempo presente, causando a sedução do
leitor através de uma narrativa aberta sem os dogmatismos de pensa-
mento do século XIX.
Por outro lado, assistimos um avanço numérico considerável
18
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

na produção de histórias municipais, locais, regionais e personalizadas.


São cada vez mais produções em micro escala, que buscam a afirma-
ção dos saberes locais, das identidades étnico-culturais e de posturas
político-administrativo-municipais. Uma parcela considerável desses
textos é produzida fora dos parâmetros universitários e, portanto, do
controle da comunidade científica.
Apesar da inovação metodológica e temática da história, não
podemos deixar de mencionar a fugacidade do texto histórico e sua
configuração teórica provocada pelo afronto à tradicional razão his-
tórica. Nos anos da década de 1980 e 1990, a cultura historiográfica
brasileira vem desenvolvendo-se em um intenso debate em torno dos
problemas apontados pela pós-modernidade. As clivagens desse deba-
te localizam-se em parte sobre a crítica da idéia de progresso, da razão
histórica e do próprio sentido do conhecimento histórico, as quais
foram as molas mestras das perspectivas de modernidade.
Por outro lado, as soluções micro e culturais são também uma
resposta ao processo de globalização em forma de resistência, de iden-
tidades e de culturas locais. Assim, os critérios de fundamentação mo-
derna e validade da história ciência estão hoje sob suspeita.14
Nessa constelação ampla existem dois parâmetros básicos
que devemos considerar em relação à cultura historiográfica: (a) a for-
mação da atividade científica na comunidade e (b) a estrutura e con-
cepções na produção do conhecimento histórico.15
Frente a essa tese, a hipótese plausível nesse contexto é a nos-
sa constante busca de parâmetros que possam configurar a perfor-
mance da ciência histórica. Um desses parâmetros é o estabelecimento
de elementos capazes de estimular premissas para um programa mí-
nimo, mesmo que precário para a disciplina. Tais premissas precisam
constituir-se em meta-discurso, que consiga abranger as mais diferen-
tes representações localizadas.
Tal meta-discurso deverá dar conta dos elementos discursivos
anárquicos, que querem romper com o personalismo historiográfico

14
Em termos epistemológicos procuramos discutir isso no confronto entre os para-
digmas modernos e pós-modernos em DIEHL e TEDESCO (2001).
15
Os dois aspectos apontados não serão discutidos aqui. Entretanto, seria interessan-
te vinculá-los na relação específica com os programas de pós-graduações e a questão
das regionalidades.
19
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

existente, e aqueles cujo objetivo é a configuração da disciplina histó-


rica. A dificuldade está exatamente nesse ponto, que é o xis nevrálgico
da questão. Por outro lado, a constituição dos elementos dessa meta-
discurso poderia estar historicizada, pois o diálogo irá apresentar expe-
riências disciplinadoras e impulsos de emancipação (DIEHL, 2002).
Portanto, um primeiro aspecto é a necessária (re)configuração
entre o discurso teórico e a razão prática, entre o pensar representa-
tivo do mundo e a vivência da experiência daqueles que objetivamos
reconstruir em um processo de atualização do passado.
A contemporaneidade do não-contemporâneo implica em
exercícios sócio-culturais de interesses pelo conhecimento histórico.
Tais interesses independentes do contexto revelam a capacidade do
sujeito cognitivo consciente, reconstruído através das práticas exis-
tenciais e do conjunto de tendências do paradigma dominante. Esse
aspecto por si só gera um conflito, estabelecido entre o existencial do
historiador e o paradigmático de sua ciência.
Nesse aspecto, não devemos confundir as práticas existenciais
não-discursivas como, por exemplo, comportamento cotidiano, com
discursos impressos sobre o cotidiano. Ou seja, a orientação de mistu-
rar experiências existenciais e textos de crítica historiográfica.
Aliás, essa orientação faz parte da patologia da história como
ciência. Portanto, o foco central desse primeiro elemento é o da histó-
ria como experiência ou espaço das experiências.
O segundo elemento da meta-discurso é o das perspectivas
orientadoras sobre o passado, ou seja, o conjunto de teorias, as quais
dão significado ao passado. É através das perspectivas orientadoras
que os interesses ajudam a compreender as transformações temporais
do homem, do seu mundo e a consciência de seu reconhecimento
como histórico.
O terceiro aspecto constitutivo da meta-discurso é as orienta-
ções e regras metodológicas, com as quais as experiências do passado
são inseridas nas perspectivas orientadoras através da pesquisa e de
todo arsenal técnico de manuseio documental na significação das in-
formações. A inserção das experiências do passado nas perspectivas
orientadoras é feita através das estratégias de pesquisa. O arsenal téc-
nico e as estratégias vão mudando conforme as orientações teóricas.
O quarto elemento é constituído pelas formas de representa-
ção historiográfica, através das quais são elaborados os textos e dis-
20
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

cursos sobre o passado. A dimensão textual-discursiva compreende


aspectos como memória, continuidade/ruptura, comunicação, identi-
dade e sentido do tempo, vinculados a quatro estruturas narrativas: a
exemplar, a tradicional, a crítica e a genética.16
E, finalmente, o quinto elemento constitutivo da meta-discur-
so envolve as funções do conhecimento histórico no contexto social
e individual. Em outras palavras, essas são as funções didáticas do
saber histórico, através das quais germinam novos interesses sobre
as práticas sócio-culturais. Exatamente nesse aspecto está presente a
profunda vinculação entre presente e o passado.
Portanto, entendemos que a performance da história com
plausibilidade científica passa necessariamente pelo estabelecimento
desses cinco elementos constitutivos da meta-discurso em um pro-
grama epistemológico mínimo. Independente da postura teórica, esse
meta-discurso possibilita, sobretudo, uma concepção da própria pos-
sibilidade histórica e do seu desenvolvimento.
Não seria exagerado afirmar aqui, para finalizar a parte de
contextualização, que a própria busca desse acordo é também repleto
de produtividade para a história, pois a relação dialógica é a manei-
ra pela qual se revela a consciência da produtividade. Sem dúvida, o
aparecimento da consciência histórica constitui o aspecto mais impor-
tante de constituição da história como disciplina moderna e este é o
parâmetro de compreensão fundamental da historicidade do passado,
bem como evidencia o reconhecimento intelectual contemporâneo.
Porém, não basta apenas a consciência de que algo esteja mu-
dando. É preciso compreender a cultura da mudança e não mais o
resultado final da mudança nas formas de produção e representação
do conhecimento histórico. Nessa cultura da mudança deve chamar
atenção para dois pontos da guinada. O primeiro ponto diz respeito
ao abuso da interdisciplinaridade, especialmente com a sociologia da
gente, a economia da negociação e na própria história com a proposta
de estudos da contemporaneidade do não-contemporâneo. O segun-
do ponto da guinada refere-se à consciência de que a verdade não está
nos arquivos e o documento por si já não pode mais dar a resposta
cabal da veracidade dos fatos.

16
Estas estruturas narrativas da história foram desenvolvidas por Jörn Rüsen. Procu-
ramos operacionalizá-las em DIEHL (2001, p. 17).
21
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Com esta guinada, a história passa a ser concebida como “in-


venção controlada” das experiências na suas temporalidades. Nesse
sentido, a linguagem passa a assumir uma relevância na busca da uni-
versalidade da experiência singular para a tomada de consciência da
contemporaneidade. É exatamente esta fusão de horizontes que mos-
tra a relação entre espaço de experiências (tradição) e horizonte de
expectativas (tempo) (KOSELLECK, 1989).
Esta perspectiva hermenêutica empresta o sentido último às
ciências humanas e nos coloca como seres finitos, inconclusos que
precisam da história para encontrar o sentido da compreensão em
relação à amplitude da idéia de tradição e a possibilidade de mudan-
ça no tempo presente. Parece-nos que estas concepções são as que
forjam o indivíduo e o cidadão modernos em identidades parciais e
nem sempre harmônicas a partir do teatro da memória. Tal aspecto
tornou-se ultimamente importante no debate pelo seu grau fragmen-
tário e subjetivo, o qual penetra na intimidade individual onde a noção
de sinceridade pode se tornar um aval da verdade. Esta proposição
poderia significar dentro dos parâmetros mais ortodoxos do pensa-
mento uma afronta aos critérios de cientificidade e de historicidade
do conhecimento histórico. Entretanto, o diálogo com as tradições
sempre irá supor valores e, fundamentalmente, os sentidos de valores
como critérios negociados individual e socialmente dentro de um sis-
tema de referências.
Se continuarmos nesta lógica de pensamento facilmente
poder-se-ia levantar a hipótese de que o passado não existe. Existe
isto sim a construção temporal de sistemas de referências, dos quais
brotam os sentidos e significados daquilo que denominamos passado
e passamos a referenciar como história. Mesmo com os sistemas de
referências estruturados heuristicamente ainda assim o passado nos
prega peças: para uns o passado poderia ter sido; outros gostariam que
ele tivesse sido; ou ainda aqueles que perguntam sobre como é possí-
vel reconstituí-lo. Aliás, a história é o espaço do tempo e o passado é o
campo no qual o ‘real’ brinca de esconder com o pesquisar. O passado
é uma espécie de sombra de cada um de nós e somente ela nos faz
perceber como, onde e quando nos influencia na vida. A compreensão
desta problemática coloca o passado como a possibilidade de futuro e
ele é um poderoso argumento para a cultura da mudança.
Então, o mapeamento e a compreensão dos debates e confli-
22
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tos na historiografia contemporânea estão divididos em dois grandes


leques. O primeiro busca cobrir o território dos debates temático-
teóricos e o segundo avança sobre a compreensão da paisagem dos
debates epistemológicos e metodológicos.

O território dos debates temático-teóricos

a) Debates em torno do marxismo: Althusser, Gramsci, Ag-


nes Heller, a influência da Escola de Frankfurt, Edward
Thompson, Perry Anderson.
b) Debates em torno do Movimento dos Annales: crise do
estruturalismo durkheimiano e a crise da história econô-
mica e a larga influência da antropologia e da hermenêuti-
ca. François Dosse, Peter Burke, Jacques Le Goff, Marcel
Gauchet.
c) Debates em torno das novas configurações do poder: Gra-
msci, Foucault e Bourdieu.
d) Debates em torno da memória: Walter Benjamin, Paul
Thompson, Henri Bergson.
e) Debates em torno da crise do Estado-nação: regionalida-
des, do local, do micro especialmente com Carlo Ginzburg
e Giovanni Levi, Jacques Revel.
f) Debates em torno das representações: Michel Vovelle, Ro-
ger Chartier, Georges Duby.
g) Debates em torno da história política ou da renovada his-
tória política: René Remond.
h) Debates em torno dos sujeitos históricos e biográficos:
camponeses, mulheres, operários, bruxas, feiticeiras, pros-
titutas, homossexuais, etc.
i) Debates em torno da crise da história das idéias e a con-
ceituação da história intelectual: Robert Darnton, François
Dosse, René Remond.
j) Debates em torno dos sentimentos, da subjetividade, dos
medos, da felicidade: Jean Delumeau.
k) Debates em torno da modernidade e pós-modernidade: J.
Rüsen, Remo Bodei, Josep Fontana, Perry Anderson, Eric
Hobsbawm, Boaventura de Souza Santos, Marchall Ber-
man.
23
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

l) Debates em torno da história cultural: as peculiaridades, a


compreensão - Lynn Hunt, Peter Burke, Jacques Revel.

A paisagem dos debates epistemológicos e metodológicos

a) Debates em torno da inserção da hermenêutica no pro-


cesso de compreensão do passado: aproximação com a
filosofia, o avanço da subjetividade e das experiências co-
tidianas - Paul Ricouer, Michel de Certeau, R. Koselleck,
Hans-Geog Gadamer, Dominique La Capra.
b) Debates em torno da pós-modernidade: Keith Jenkins,
Linda Hutcheon, Steven Connor, Richard Rorty em termos
de sistematização do pensamento pós-moderno.
c) Debates em torno do sentido da história: humanização das
ciências humanas – Josep Fontana, François Dosse, Remo
Bodei, Jörn Rüsen.
d) Debates em torno do tempo presente: pluralidade de sons
e tempos - Ph. Tétard.
e) Debates em torno da história e narrativa: a história como
ciência da palavra e do texto – Hayden White, J. Rüsen,
Claude Lefort, Eric Hobsbawm.
f) Debates em torno da historiografia e cultura historiográfi-
ca: Marie-Paule Caire-Jabinet.
g) Debates em torno da interdisciplinaridade, multi e transdis-
ciplinaridade: o objeto da história.
h) Debates em torno da história e psicanálise: Michel de Cer-
teau, Paul Ricoeur.
i) Debates em torno da didática da história: o sentido do co-
nhecimento histórico e as suas funções culturais.

Narratividade na história

O termo narratividade foi introduzido no debate histórico-
historiográfico através da filosofia analítica da história (WHITE, 1965;
DANTO, 1965),17 bem como, paralelamente, através das pesquisas sis-

17
Tradução parcial espanhola 1989.
24
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temáticas da teoria literária e da lingüística exegética de textos (STIER-


LE, 1975, especialmente p. 49-55).
A narratividade abarca a especificidade lógica do leque de re-
lações da linguagem através da qual as pessoas narram representações
do passado pela historiografia e literatura. Dependendo das relações
que são estabelecidas nas perspectivas de pesquisas serão também
vinculados os princípios narrativos, frases, textos como elementos da
narratividade, estruturas narrativas ou esquemas explicativos.
Na área do conhecimento histórico e sua respectiva teoriza-
ção, narratividade significa, em primeiro lugar, o fato que toda história
é apresentada como um contar sobre o passado. Isso significa repre-
sentar o passado como histórias. Se esse fato está estreitamente fa-
zendo a ligação entre história e narração, o que é posição indiscutível,
surgem problemas quanto à fundamentação mais exata em termos de
teorias da história.
A questão central, por onde surgem os problemas de fun-
damentação, pode ser formulada a partir da construção do próprio
conhecimento histórico. A narrativa, com sua seqüência, a qual culmi-
na na síntese, é estruturada através de aspectos externos do discurso
sobre o passado ou ela vem estipulada a partir da relação conceitual
interna da própria história? Em outras palavras, poder-se-ia afirmar
que a narrativa seria uma resposta para a questão do já discutido pro-
blema da filosofia da história, através do qual o passado é ou não
tornado história.
Essa questão traz à tona um problema subjacente, mas não
menos importante da narratividade histórica. Podemos ampliar o grau
de complexidade da questão, se tomarmos a constituição da consciên-
cia histórica, ou seja, a especificação de como a história – o passado
– é constituída em história no processo de análise de pesquisa. Nessa
perspectiva, podemos, então, observar que a narratividade se tornou
um dos problemas atuais do debate. A atualidade desse problema tam-
bém vem, por um lado, da maneira específica do desenvolvimento da
história cultural, vista pelo ângulo metodológico e, de outro lado, pela
crise paradigmática que a história vem enfrentando como ciência (DE
DECCA; LEMAIRE, 2000; CARDOSO; MALERA, 2000).
A tentativa de buscar estruturas narrativas específicas para a
história e a multiplicidade de perspectivas teóricas em jogo indica uma
revisão dos conceitos básicos do próprio conhecimento histórico.
25
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Dessa necessária revisão não se explica apenas o fato que o problema


é metodológico, mas de que precisamos redefinir as relações entre
narração e explicação e entre narração e teoria. Portanto, compreen-
de-se que a base clássica da narração fora reduzida a uma forma de re-
presentação do passado em termos de estruturas didáticas: as funções
do conhecimento histórico em um dado contexto.
Assim, uma reabilitação da narrativa histórica como algo es-
pecífico somente será possível se tomada como um dos critérios de
plausibilidade do conhecimento histórico. Isso significa incluir na sua
estrutura teórica os elementos do discurso histórico como fonte fun-
damental da explicação.
Arthur Danto (1989) procurou, através de sua análise, discutir
os esquemas narrativos da explicação histórica, mostrando que a opo-
sição narrativa x teoria é falsa, levando inclusive avaliações errôneas.
Os aspectos levantados por Danto de forma alguma foram
superados naquele momento, tanto que mereceram debates posterio-
res. Pelo contrário, suas considerações foram importantes por chama-
rem a atenção para o significado da narração, sua fundamental neces-
sidade no processo de constituição da pesquisa e do conhecimento
histórico, bem como na função de teorização na história social e da
história cultural.
Evidentemente, a caracterização acima apenas delimitou a
importância da narratividade. É certo que a narrativa sempre estará
presente em textos com conteúdos históricos; que o espaço da história
narrada está presente na interferência de ações, na heterogeneidade
dos fins e na contingência; que a história na sua prática de constituição
precisa ter presentes estruturas narrativas; que a narrativa e a teoria
precisam estar minimamente em situação de complementaridade; que
as teorias também precisam estar sujeitas ao conteúdo do debate da
narração.
Nesse sentido, a questão de fundo proposta aqui é de trazer
a discussão das formas narrativas para dentro do debate mais geral,
vinculando-as aos princípios das teorizações, das metodizações e di-
datizações na constituição do conhecimento histórico. Fora disso, a
discussão sobre a narratividade cairá no esgotamento das formas esté-
ticas de representação do passado e em debates meramente técnicos,
vinculados às estruturas frasais onde o conteúdo histórico como co-
nhecimento perderá seu significado na tarefa de produzir possibilida-
26
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

des de consciência.
As possibilidades de consciência colocam a narrativa no cen-
tro de questões fundamentais para a história, podendo elas ser apre-
sentadas como origem, como alegoria e como estética.

a) Narrativa como origem

Em essência toda narrativa é um discurso fundador e nesse


sentido pode designar uma constelação de ingredientes desse discur-
so.18
Narrativa como origem pode designar um lugar privilegiado
do passado e de uma recusa da modernidade, pois nesse locus con-
vergem simultaneamente os impulsos restauradores e utópicos. Ela
representa o retorno a uma harmonia anterior perdida pelos processos
de modernização objetivos da sociedade. Buscar fundar um passado
perdido é articulado como se o ideal estivesse no passado. Nesse sen-
tido, podemos constatar uma contradição entre nostalgia e vanguarda
ou entre conservação e revolução. O tempo é representado como res-
tauração e como dispersão, assumindo característica alegórica, onde a
restauração estabelece o termo e a dispersão o efêmero.
A narrativa como origem designa então um salto (Sprung)
para fora ou para além da sucessão cronológica que nivela os fatos em
uma linha de tempo linear. A origem quebra a linearidade do tempo,
passando a operar com cortes no discurso (CASSIRER, 1972).
É uma tentativa de fazer saltar do passado congelado para o
contemporâneo e do contemporâneo para o passado quase como algo
acidental e subjetivo. Assim, o passado congelado passaria a integrar
o contemporâneo agitado e esse, por sua vez, poderia fazer parte do
passado, formando a heterogeneidade no encontro de experiências di-
ferenciadoras naquilo que pode ser denominado de o contemporâneo
do não-contemporâneo ou a idéia de futuro que se tinha no passado
ou ainda a idéia de passado que se terá no futuro.
Mas, a narrativa como origem é representada como a vontade
de um regresso e, sobretudo, mostra também a precariedade desse re-

18
Em termos de um rastreamento de teorias e percursos das línguas e linguagens ver
ECO (2001). Não deveríamos esquecer a possibilidade de outras leituras, ver KUPER
(2002).
27
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

gresso. A precariedade aparece quando existe a consciência de que só


é restaurado aquilo que foi destruído. Nesse caso, o ato de querer res-
taurar indica o reconhecimento da perda, a lembrança de uma ordem
anterior e a fragilidade dessa ordem. Então, a restauração é sempre
incompleta (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1988).
Continuando o raciocínio, a narrativa sobre o passado via re-
memoração não implica apenas na tentativa de restauração do pas-
sado, mas alavanca também uma transformação do presente de tal
forma que, se o passado aí for reencontrado, ele não fique o mesmo,
mas seja também ele retomado e transformado. Nesse sentido, a rela-
ção estabelecida entre o passado e o presente implica no reencontro
transformador de ambos. Já não teremos mais um passado como ele
realmente foi e um presente incólume à interferência do passado.
Certamente nesse processo transformador existia um vínculo
essencial entre narrativa e história. A linguagem contida na narrativa
é uma espécie de reatualização da origem e, portanto, ela possui uma
vinculação com o futuro utópico no passado. É, em última análise,
restabelecer os vínculos com as idéias de futuro no presente e as idéias
de futuro que se tinha no passado. Então, a tarefa da narrativa não é
apenas a restauração do idêntico esquecido, mas a possibilidade do
diferente.
Nesse sentido, o discurso (logos) e onoma (que conhece), vincu-
lando linguagem e história, articulam-se em combinações diferentes,
resultando daí as várias tradições históricas que nada mais são do que
traduções do passado. Em outras palavras, as narrativas são traduções
e leituras diferentes do passado que, dependendo das combinações e
ênfases variadas, possibilitam as mais diferenciadas leituras interpre-
tativas do passado. Porém, todas as possíveis tradições possuem algo
em comum. Todas elas demonstram serem incompletas e transitórias,
mesmo que busquem a perfeição do passado.

b) Narrativa como alegoria

No sentido clássico, alegoria nasce da distância histórica que


separa o leitor do texto, cujo texto pode apresentar-se das mais diver-
sas formas. Com essa premissa básica, a alegoria torna-se: uma espécie
de intervalo entre ambos; um escândalo do leitor em relação ao texto;
e finalmente, como diz Schleimacher, a responsabilidade (o ponto cha-
28
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ve) caberá ao ato da leitura e não mais ao texto.


Com essas três perspectivas, alegoria é a possibilidade de re-
abilitação da história, da temporalidade, mas também a morte da lin-
guagem humana na relação leitor-texto. Pois, ao mesmo momento que
a narrativa possui historicidade, ela demonstra seu caráter arbitrário
na medida que traduz a precariedade dela mesma. Seu desejo de eter-
nidade corresponde a sua consciência da precariedade da descrição
do mundo. Parece ser essa a fonte da alegoria: a coexistência entre o
efêmero e o eterno. Ou como diria Baudelarie: a coexistência da har-
monia e da modernidade devoradora.
É exatamente dessa coexistência contraditória que a narrativa
experimenta sua viabilidade, a qual se encontra situada entre expres-
são e significação. Origina-se daí o fato da alegoria apontar para a
impossibilidade de um sentido eterno. Apesar dessa impossibilidade,
ela também aponta para a necessidade de preservar temporalidades
significativas recheando-as de historicidades, porém transitórias.
Através da alegoria aprofunda-se uma relação tríplice:

a) a do sujeito clássico que podia afirmar uma identidade


coerente entre si mesmo. A alegoria agora passa a sugerir
precariedade da identidade coerente e verdadeira e nisso o
sujeito construtor da totalidade coerente passa a vacilar;
b) a dos objetos que não são mais os depósitos da estabilidade
última, passando agora pela decomposição e fragmentação;
c) a do processo de significação, cujo sentido surge da corro-
são dos laços de experiências de sujeitos e objetos.
Do aprofundamento da tríplice relação acima exposta, ocorre a
morte do sujeito clássico e o surgimento da forma alegórica do texto,
passando a não existir mais a independência entre sujeito e objeto;
como tal tem-se a inexistência de sentido próprio. A relação de depen-
dência entre sujeito e objeto propicia com que a alegoria (ela própria)
seja a fragmentação do real e a renúncia da aparência falsa de totali-
dade. Assim, a alegoria possibilita a produção abundante de sentidos
sobre as ruínas (o passado) de um edifício do qual não sabemos se ele
existiu por inteiro ou se ele foi uma construção.19

19
Uma leitura interessante nesse aspecto é a de VERNANT e VIDAL-NAQUET
(1988). Também WARNIER (2000).
29
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Mesmo com a multiplicidade de significações que podem ser pro-


duzidas pela alegoria, ela revela uma consciência de momento da leitu-
ra. Ela ajuda a compreender a temporalidade, portanto, o transitório e
a fragilidade do presente.

c) Narrativa como estética

A ansiedade do mundo ocidental em perceber operaciona-


lizados os princípios da modernidade (na sociedade, no Estado, no
poder, nas artes...) levou-o a uma interpretação unilateral da própria
modernidade como sendo algo monolítico, perfeito e orientado para
o futuro. Longe disso, a origem da modernidade assenta-se exatamen-
te no contrário dessa interpretação. Ela sugere a multiplicidade nas
diferenças práticas discursivas que testemunham o conflito de experi-
ências sociais, científicas, políticas percebidas, sobretudo, nas formas
artísticas (FERRY, 1994).
Somente muito recentemente, com a crítica acirrada aos parâ-
metros da modernidade, percebeu-se com mais atenção que os funda-
dores da modernidade, século XVIII e XIX, buscam-se o pluralismo,
a transitoriedade e a negação da autoridade constituída. O desafio da
crítica aos modernos é, portanto, duplo: primeiramente reconhecer a
crise de identidade – não a extinção de seus princípios – e retornar à
crítica à razão instrumental dentro da atuação experiência do capitalis-
mo avançado. O segundo desafio, a nosso ver, deve tentar resgatar os
impulsos utópicos do esclarecimento e buscar a complementaridade
da modernidade.
Em outras palavras isso significa dizer que através do desafio
lançado, os discursos da ciência, da filosofia, da política e etc., na crise
da modernidade não expressam apenas desintegração e o sentimento
de dificuldade em poder conciliar a racionalidade com os valores do
passado. A interrogação irá bem mais além, pois a estética da moder-
nidade não pode prescindir da leitura de metáforas cifradas de vivên-
cias e do conflito que é a própria experiência de geração da condição
moderna.
Parece que são as metáforas e os conflitos as chaves de com-
preensão da estética na narrativa moderna. Não são apenas os mega
projetos políticos da modernidade que podem apontar para um novo
mundo. Também a narrativa de fragmentos pode garantir a represen-
30
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tação da capacidade de criação e de resignificação das experiências.


Portanto, a questão metodológica não está somente expressa nos tex-
tos, mas sim na possibilidade de leitura e releitura dos mesmos.
Estão aí alguns argumentos, entre tantos outros, sobre a atu-
alidade da estética no texto histórico. Sem dúvida, a possibilidade de
diálogo nesse ponto é tensa e conflituosa. Certamente, isso ocorre
por conta da mentalidade moderna moldada na cultura ocidental que
considerou apenas a experiência da uniformidade moderna quando
conjugou natureza, sociedade e narrativa.
Nessa conjugação, o espaço, o tempo e o movimento dos mo-
dernos ficaram restritos aos (sub)textos estranhos à razão moderna.
O redescobrimento do estranho na razão moderna motivou o alarga-
mento do repertório estético dos textos e de ampliação de mecanismos
metodológicos capazes de caracterizar e compreender o moderno.
Esses aspectos ajudam-nos a compreender a aproximação en-
tre história e literatura e a valorização crescente da narrativa como fa-
tor de sustentação do texto histórico. O reconhecimento desse ponto
de vista atraiu o discurso histórico contemporâneo para um repertório
lingüístico de ruptura da história naturalizada com as ciências positi-
vas.
Estabelecem-se novas relações entre sociedade e história, es-
pecialmente (a) pela busca da dinâmica multitemporal do tempo como
expressão do rompimento com a totalidade e com a unidade eterna,
diante da desintegração das promessas de modernidade; (b) pela busca
da transitoriedade, cujos aspectos centrais são a novidade e o efêmero,
a invenção e a subversão dos sentidos tradicionais; (c) pela negação da
modernidade e do otimismo, que são valores expressos na linearidade
no tempo, no progresso e na ciência como fatores de redenção da hu-
manidade e (d) pela negação da autoridade da tradição historiográfica
com seu ideal universal.
As formas de oposição à tradição da mentalidade moderna
buscam o erótico, a imaginação, o cotidiano, o mágico através da lin-
guagem primeira capaz de resgatar a experiência e o tempo anterior à
história ciência.20 Cria-se assim um texto inundado pelo estranho, pela
ironia, pelo transitório, pelo corpo etc., envolto pela linguagem des-

20
As teorizações sobre o pós-modernismo, vistas a partir de várias facetas do debate
podem ser acompanhadas em HUTCHEON (1991).
31
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

comprometida pelo regramento científico moderno que, entre outras


coisas, escondia a cotidianidade e a tragicidade no passado. Tais textos
exercem atualmente um fascínio mágico sobre o leitor. Conseguem
possibilitar, por vezes, uma capacidade de intermediação comunica-
tiva entre os processos civilizadores e a subjetividade imaginativa do
leitor.
Contudo, por um lado, é preciso notar que tais características
em textos históricos são por vezes criticadas como sendo pós-moder-
nos ou anti-modernos21 pelo seu déficit na produção de identidade.
Claro está que a produção de identidade sofreu modificações profun-
das ao longo da própria constituição da modernidade.
Assim, os defensores da modernidade jamais apostaram em
uma única identidade e uma verdade, mas, sobretudo, na multiplicida-
de de discursos concorrentes. Por outro lado, deixar fluir a inserção
estética não deve significar a sua autonomia completa, pois isso tam-
bém a afastaria do cotidiano das experiências, do social e do históri-
co. Se isso ocorrer teríamos a ornamentação do texto sobreposto ao
histórico e, consequentemente, nada mais do que um novo jogo de
hostilização ao passado, onde predominariam o gozo das formas do
esteticismo técnico e superficial. Em outras palavras, teríamos apenas
um paraíso estético de alienação e de escapismo.

Hermenêutica e representação

Hermenêutica significa, primeiramente, o processo metodo-


lógico da interpretação com o objetivo de compreender o significado
quando um texto não é entendido de imediato. Ela foi inicialmente
a arte da interpretação dos textos bíblicos e jurídicos de forma nor-
mativa e ocasional. Além dessa hermenêutica normativa, Gadamer22
examina, sobretudo, na filosofia da hermenêutica a possibilidade do
compreender o seu significado em uma espécie de teoria do conheci-
mento das ciências humanas, separando-as de explicações das ciências
naturais.

21
Fizemos essa crítica em DIEHL (1997). Conferir a posição de diversos autores em
LECHTE (2002).
22
Um bom exemplo para esse aspecto são as obras de VICO (1999) e DILTHEY
(1958).
32
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

De ambas as variantes da hermenêutica é possível diferenciar


o compreender histórico. A compreensão histórica ocorre não apenas
no texto ou nas fontes, mas em toda ação humana do passado capaz
de ser reconstruída dos documentos e das fontes orais. Nesse sentido,
os restos de expressão das ações humanas no passado, contidos nas
fontes recebem interpretações compreensíveis a partir de tradições,
representações de valor, significações e de perspectivas de futuro.
A compreensão histórica sempre terá então presente a experi-
ência atual de vida do historiador e, portanto, de uma pré-compreen-
são como ponto de partida. Entretanto, para que as ações do passado
não estejam submetidas somente ao presente, é preciso lançar mão de
uma série de regras e operações, com as quais o contexto das ações e
suas relações possam ser reconstruídos e objetivados e assim possam
ter um mínimo de universalidade, mesmo que precária (DOSSE, 1996,
p. 9-30; DOSSE, 2001, p. 71-100) e, diga-se de passagem, ela será
sempre precária.
Essas regras e operações possibilitam corrigir e, ao mesmo
tempo, ampliar o horizonte de compreensão original dos intérpretes
e separar deste compreender, aquilo que foi atribuído posteriormen-
te pelo historiador sobre as intenções da práxis humana no passado.
Requer-se assim uma interpretação crítica, tal como propõem as ciên-
cias humanas para que se chegue ao sentido mais próximo possível da
veracidade e não nos chegue mascarado ou deformado por ideologias
(GADAMER, 1998, p. 19).
Entretanto, é ilusão buscar o conhecimento histórico a partir
de um modelo objetivista. Isso ocorre basicamente por duas razões: a)
a compreensão é entendida como um projeto lançado, ou seja, é o his-
toriador que se lança para além do tempo, em uma espécie de busca do
significado antecipado, b) por que vivenciamos o tempo histórico, no
qual o passado nos interpela constantemente. Nas duas razões aponta-
das, o passado é, ao mesmo tempo, saber histórico e ser histórico.
Evidentemente, que a essa altura é importante entender o
quadro complexo em formação, especialmente no sentido do perten-
cimento a uma tradição e ao estabelecimento do círculo hermenêuti-
co, segundo Gadamer, cuja discussão vem de Schleiermacher. Trata-se
aqui de compreender o valor intrínseco dos argumentos de um autor,
cujo texto pertence, em primeiro lugar, ao conjunto de obras e, em
segundo, ao gênero historiográfico de onde provém. Sua compreen-
33
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

são só acontecerá se entendermos o texto no momento de criação,


inserido na totalidade experimentada pelo seu autor.
Portanto, o objetivo daquele que interpreta é se fazer media-
dor entre o texto e a totalidade nela implícita e, nesse sentido, a herme-
nêutica procura restituir e restabelecer o acordo (FRUCHON, 1998,
p. 19).
Não seria exagero afirmar aqui que a própria busca desse
acordo é a produtividade do processo histórico, pois estamos lidando
com a possibilidade da distância temporal quando nos remetemos ao
passado (recuo no tempo). Esse remeter ao passado implica na produ-
tividade de novas temporalidades a partir de um presente indefinido.
O acordo é facilmente rompido, pois recuamos no tempo com pre-
conceitos. Esses preconceitos são vistos aqui não como particulares,
mas como diretrizes da compreensão (SOUZA SANTOS, 1989).23
Novamente, para que a significação do passado não seja perspectivada
cegamente pelos preconceitos, é preciso uma crítica hermenêutica.
A tarefa crítica da hermenêutica deve distinguir os preconcei-
tos que cegam, dos preconceitos que esclarecem. Obviamente, o ob-
jetivismo reducionista não teria mais nada a dizer frente esse impasse.
Seria, portanto, necessário ir a radicalidade dos pontos em questão.
A crítica hermenêutica deve denunciar o preconceito, surpre-
endendo-o de sua possível validade. A reflexão de denúncias dos pre-
conceitos é formada pela interrogação provocativa. O resultado disso
é o retorno renovado com uma tradição que se encontra na origem
deles, podendo esse encontro ser a constatação da alteridade. Nes-
se sentido, toda possibilidade de compreensão começa com algo que
nos provoca. Estabelece-se então uma situação dialógica de mediação
entre o presente e passado. Evidentemente, a crise dos fundamentos
da história como disciplina com plausibilidade levou a discussão para
campos polarizados.
De um lado, estão aqueles que se mantêm definidos por uma
reconstituição estrutural do passado. Do outro lado, encontramo-nos
de frente com aqueles que encerram o debate no nível da racionalida-
de universal, deslocando-se para a reconstituição das representações
do passado. Essa bifurcação do debate caracteriza-se, por vezes, pela
estigmatização e em uma luta entre o bem e o mal. Nesse caso, ambos

23
Em nível das preocupações metodológicas ver CORCUFF (2001).
34
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

os lados fazem carecem e fecham-se para as possibilidades de diálogo,


apesar de fazerem parte da mesma moeda.
A relação dialógica é a maneira pela qual se revela a consci-
ência da produtividade histórica na compreensão hermenêutica. Sem
dúvida, o aparecimento da consciência histórica é talvez o aspecto
mais importante da constituição da história como disciplina moder-
na. A consciência histórica, além de ser o parâmetro de compreensão
fundamental da historicidade do passado, é também a possibilidade do
reconhecimento intelectual contemporâneo do poder suportar e do ter que
suportar o mundo nas suas mais diferenciadas significações.
A consciência histórica, com esse qualitativo, mostra-nos que
estar no mundo ainda não é o parâmetro da chave e muito menos da
fechadura, de que a partir da história teríamos o conhecimento sufi-
cientemente infalível e ideal para a revolução dos modos de ser, das
sensibilidades e, sobretudo, das sociabilidades.

História e representação

A rigor, todas as sociedades produzem suas representações,


com as quais reconstituem do passado, imagens, eventos, fatos, cro-
nologias como aquilo que deveriam ser preservados para as futuras
gerações. Evidenciamos nos itens anteriores que a história não cum-
pre apenas uma função cognitiva de construção dos conhecimentos.
A história, através da perspectiva pragmática, também adquire social-
mente formas de identificação coletiva, de explicação das origens e de
legitimação da hierarquia estabelecida.
Com esse aspecto não estamos negando a legitimidade da
história como disciplina, mas afirmando que ela ultrapassa o nível
do relato e daquilo que representa em termos de conteúdos explici-
tados (FERRO, 1981; LE GOFF, 1984, p. 423-483). Mas, por outra
instância, o conhecimento produzido constitui um capital simbólico
(BOURDIEU, 1989; CERTEAU, 1999; SARTORI, 2001) da socie-
dade que a produz, vinculado a um determinado tempo, espaço e
movimento.
A representação, enquanto objeto da história, tem sua exis-
tência em abordagens e posicionamentos plurais. Essa compreensão
permite pensar a história como uma forma de representação que se-
leciona elementos do passado, objetivando-os sob formas discursivas
35
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

e simbólicas, que, por vezes, passa a ser compreendido como forma


legítima de conhecimento da realidade social.
Por outro lado, esse conhecimento passa a ser um lugar an-
tropológico-existencial a partir do qual se estabelecem relações com o
mundo e com os outros, projetando-se sonhos e utopias.
Nesse sentido, o campo de atuação historiográfica insere-se
na constituição das representações memorativas que, fundadas na
concretude do real, na organização e na estrutura social, são percebi-
das como espaços de manifestação de lutas sociais e do poder. As me-
mórias historiográficas, então, podem ser tomadas como produtoras
de representação capazes, pela sua recorrência, de levar a fazer ver e
a fazer crer, reforçando os laços identitários e legitimando práticas de
exclusão e/ou de inclusão (BOURDIEU, 1989; CERTEAU, 1999).
Nessa perspectiva é possível lançar mão de uma série de no-
ções e conceitos relativos ao campo da memória. Le Goff (1990) dis-
cute a problemática dos usos da memória coletiva na luta das forças
sociais pelo poder, apontando, dessa forma, para os usos que se fazem
da memória.
Hobsbawm (1984) indicar que a invenção de tradições uti-
liza a história como a legitimadora das ações de determinados gru-
pos e como fundamento de coesão social. Halbwachs (1999) destaca
a importância da memória, a qual considera a partir de seus suportes
sociais, das formas como ela é socialmente construída e como se esta-
belecem os vínculos entre aqueles e o lugar social de quem os produz.
O autor formula a noção de pertencimento a um grupo social com o
mecanismo por meio do qual os indivíduos são capazes de adquirir,
localizar e evocar as suas memórias.24
Já Fentress (1994) trabalha sob a perspectiva de que a me-
mória é história e é simultaneamente em uma força da história; um
meio de unificação e legitimação, mas também um fator de divisão e
falsificação. Connerton analisa os rituais performáticos da transmissão
de memórias com atos de transferência que tornam possível recordar
em conjunto, como mecanismos constitutivos da perpetuação de lem-
branças por uma dada sociedade, entre os quais situa as cerimônias
comemorativas (CONNERTON, 1999).

24
Um dos fundamentos deste debate está na raiz do conceito de cultura, ver: CUCHE
(1999).
36
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Pierre Nora trabalha com a noção de lugares da memória, a


qual permite inferir que o conhecimento histórico é ainda memória,
porque sacraliza, comemora e celebra. Tal noção remete à questão da
identidade coletiva que se expressa por um sentimento de referência
grupal que define os grupos, na busca de reconhecimento e no movi-
mento de resgate de signos de pertencimento local.25
É claro ao descrever, registrar e narrar acontecimentos con-
siderados dignos de memorização, situando-os quanto ao tempo, atos
e sujeitos, constitui-se em uma cronologia referencial e atingindo-se
a fronteira onde a memória se torna história (LE GOFF, 1987. p. 18). É
exatamente com essa qualificação que trabalha o historiador das me-
mórias historiográficas, dando-lhe uma dimensão de representações
em textos históricos.

Limites e possibilidades do conhecimento histórico

Em tese, a tentativa de compreensão dos dilemas e noutra


instância os limites e possibilidades da cultura historiográfica contem-
porânea situa-se em um conjunto de aspectos que podemos reunir em
dois níveis diferentes, mas interligados.
O primeiro nível é o da situação da história como disciplina
com plausibilidade científica. Argumentávamos anteriormente que a
produção do conhecimento histórico se deslocou das ciências físico-
biológicas. Esta separação gerou para a história um clima de crise dos
seus critérios racionais e científicos e, como conseqüência, instaurou
na comunidade científica uma espécie de insegurança teórico-meto-
dológica. Próprio dessa insegurança teórica é o fantasma da intrans-
parência na operacionalização de conceitos, de categorias e teorias
através da pesquisa e na possibilidade de releitura das fontes. Também
nesse primeiro nível temos conjugado uma valorização cada vez maior
do tempo presente no condicionamento dos interesses pelo conheci-
mento histórico. O presentismo assume a função predominante sobre
o passado, ou melhor, sobre a construção dos sistemas de referência
que por sua vez permitem dar sentido ao passado.
Esta mudança nas perspectivas orientadoras sobre o passado

25
D’ ÁLESSIO (1992/1993). Uma discussão recente está em KELLNER (2001) e
em MATHEWS (2002).
37
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

resulta na passagem do paradigma analítico, totalizante, iluminista e


científico para as tendências fortemente influenciadas pela hermenêu-
tica. Nesse caso, a pesquisa se volta para a descrição densa de fragmentos,
do micro e das experiências cotidianas. Tal processo poder-se-ia deno-
minar por antropologização da história. Esse processo é passível de com-
preensão à medida que no paradigma analítico, a história é percebida
como coerção e a questão de fundo gira sobre a capacidade explicativa
de sistemas complexos e estruturais, sejam eles econômicos ou buro-
cráticos. Enquanto nas tendências hermenêuticas, a história é perce-
bida como resistência aos processos de modernização e a questão de
fundo gira sobre a capacidade de compreensão de especificidades, de
ações e de liberdades, inseridas em tradições culturais.
É nesse momento que a história perde dois dos seus pilares
mestres de sustentação: o tempo linear e a concepção do progresso
cumulativo. Agora, tornou-se mais importante do que dizer o quê mu-
dou, mas entender o por quê da mudança. O o quê mudou, a análise de
crítica historiográfica de obras em questão já deram conta. O por quê
da mudança vincula-se ao forte teor presentista das experiências re-
construídas do passado e ainda merecem atenção. Porém, destacamos
um conjunto de quatro aspectos sintomáticos agregados ao presen-
tismo:

1) a falência dos paradigmas tradicionais da história que se assen-


tavam quase exclusivamente na concepção de progresso e na
linearidade do tempo;
2) os paradigmas tradicionais pressupunham as revoluções otimis-
tas crescentes. Em outras palavras, tais concepções tinham
embutidas orientações de redenção das sociedades e da huma-
nidade, arrancando-a da servidão do passado. O sentido teleo-
lógico dessas teorias, a sua não realização e, sobretudo, o avan-
ço descomunal do vetor instrumental causou uma profunda
experiência de frustração em relação ao futuro. Na medida em
que o futuro frustra, o presente e o passado passam a ser o
núcleo de atenção. O vetor retrospectivo da razão iluminista
torna-se o aval de retorno idealizado ao passado. Em casos ra-
dicais, esse aspecto pode significar a fuga do presente/futuro
frustrado para o passado de forma ideal e mesmo romântica;
3) metodologicamente, os conceitos estruturais – pela ênfase atu-
38
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

al ao fragmento – não conseguem mais captar as microrela-


ções do cotidiano íntimo das pessoas. Podemos afirmar que
está havendo, portanto, a regraduação da rede metodológica
para poder capturar os ‘gestos significativos’ do passado na
reconstituição das histórias de vida. Aqueles e aquilo que fora
higienizado pelos modelos analíticos da razão iluminista são
agora catapultados como sombras para o centro do palco. O
pessimismo em relação ao futuro é sombreado ainda mais por
aquilo que poderíamos chamar de formas de resistência. O
ideal no futuro passa ao passado como posição cultural ante
ao avanço dos processos de modernização, instituídos a partir
do iluminismo;
4) tematicamente podemos observar certo pessimismo em rela-
ção ao papel social do historiador. Ou seja, já não se percebe
mais uma teoria subjacente da mudança social na produção
do conhecimento histórico. Percebe-se, isto sim, um retorno
às temáticas micro perspectivadas como formas de resistência
que, por vezes, estão traduzidas em cortes quase libertários e
anárquicos de indivíduos ou grupos frente à história estrutural
e modernizadora.

Essas temáticas, genericamente, estão presentes em três vín-


culos: a micro perspectiva dos temas de interesse, o cotidiano íntimo
e a relação público x privado. Esses três vínculos, por sua vez, podem
ser cruzados com aspectos antropológicos - a questão de gênero, por
exemplo -, aspectos institucionais – presídios, fábricas, etc -, ou ain-
da com aspectos culturais – religiosidades heterodoxas, as fraquezas
humanas, as representações simbólicas etc. Evidente está que é ainda
mais fácil perceber tais temáticas e seus cruzamentos nas tendências
da nova história, mas elas também aparecem correlatas ao marxismo,
na tradição Max Weber e, diga-se de passagem, muito bem institucio-
nalizadas nos programas de pós-graduação.
O segundo nível para a compreensão dos dilemas está rela-
cionado com o fato de que essa situação descrita gera três variáveis
novas: ao nível da história, ao nível do social e ao nível do historiador.
Vejamos como estas variáveis se apresentam:

39
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

1) ao nível da história temos uma profunda mudança nos pon-


tos de referência e de apoio da história como disciplina.
Até meados dos anos de 1970 tínhamos o debate canaliza-
do sobre a dependência, da autonomia estrutural e cultu-
ral. Predominava ainda uma visão rural-urbana da história
sob a perspectiva da história da sociedade brasileira. Nesse
debate estavam agregados fortes características de visão
otimista e coletiva de história, perpassada pelo critério do
progresso material e político da modernização. A mudança
consolida-se nos anos 1980 com as novas tendências per-
passadas, desta vez, pela visão cultural, pelo antropológico
e individual. Rompe-se a relação rural-urbana entrando em
ênfase a visão social urbana na perspectiva da crítica à mo-
dernização e, metodologicamente, nas posturas da história
social e transdisciplinar. Aliás, o cotejamento interdiscipli-
nar da modernidade cede lugar ao multi e ao pluri quando
são rompidas as fronteiras de identidade das diversas disci-
plinas sociais. Parece-nos através da análise dos temas pro-
postos, que neste processo de mudança houve um descuido
dos historiadores com as questões filosóficas da história, as
quais fundamentam as próprias orientações teóricas.
2) Ao nível social, o conhecimento produzido por essa nova
historiografia acentua a crise e a falta de perspectivas em
relação aos projetos magnos do século XIX. Na tônica do
quando o futuro frustra, o passado reconforta, a historio-
grafia, centrada no individual, no regional, no étnico etc,
possui um potencial que possibilita o ressurgimento de no-
vos mitos, tais como: os mitos étnicos mesclados com re-
lações econômicas nos separatismos; os mitos geográficos
com os novos espaços econômicos do consumo; os mitos
temporais com a determinação de épocas; os mitos políti-
cos com a idéia da nação cultural e os biográficos com o
novo individualismo.
Ainda ao nível social podemos perceber uma aproximação en-
tre a história e a literatura, tematizada a partir de experiên-
cias cotidianas. As janelas do cotidiano são lastreadas em
função da fuga do público ao privado, o fechamento do
indivíduo em si e os temas religiosos místicos em um evi-
40
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

dente interesse pela filosofia da vida em oposição ao pri-


mado de generalizações e das leis sociais. Adianta-se, desta
forma, a precariedade do universal e da racionalidade ins-
trumental. A multiplicidade representa um obstáculo para
as teorias uniformizantes e, dessa forma, a unificação de
especificidades culturais passa a ser problemática, pois o
conteúdo teórico da individualidade está circunscrito pelas
esferas da experiência social dotada de coerência e identi-
dade, situadas nos limites das esferas institucionais, rituais
e simbólicas.
3) Ao nível do historiador, a história e o social em crise, na
produção do conhecimento e, principalmente, nas funções
didáticas desse conhecimento se apresenta com três carac-
terísticas básicas: (a) o conhecimento histórico produzido
e sua intermediação didática conseguem apenas alcançar
uma postura crítica conformista da sociedade, pois, (b) o
simples retorno ao indivíduo e ao sujeito e seu fechamento
em si quebra qualquer possibilidade de crítica estrutural,
por exemplo, dos processos de dominação e exploração;
(c) academicamente, o conhecimento historiográfico, pela
perda da teoria subjacente de mudança social, tornar-se-ia
um discurso do politicamente correto.

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45
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AS DIMENSÕES DO HISTORICISMO: UM ESTUDO


DOS CASOS ALEMÃES
26
Pedro Spinola Pereira Caldas1

Resumo: Este estudo é um experi- Abstract: This study is an experi-


mento, e nosso objetivo consiste em ment, where our aim is to apply
aplicar o conceito do filósofo alemão Walter Schulz´s conceptualization
Walter Schulz de historicismo. Basea- of historicism. Based on Schulz´s
dos nos resultados de Schulz, lidare- scheme, we will deal with the con-
mos com o conceito de historicismo de cept of historicism in three ways:
três maneiras distintas: primeiramente, firstly, it is a philosophy of history,
é uma filosofia da história, ainda que yet a critical one towards the meta-
crítica em relação à tradição metafísi- physical tradition. In order to show
ca. Para tanto, a filosofia da história de this form of abstraction, Herder´s
Herder será nosso tema. Em segundo philosophy will be our theme; sec-
lugar, é uma metodologia que desven- ondly, it is a methodology that dis-
da o conhecimento histórico. Para esta closures the historical knowledge.
parte, a Historik de Droysen é mais do For this part, Droysen´s Historik is
que essencial.; e, finalmente, mas não more than important; and last but
menos importante, é a consciência de not least, it is the consciousness
uma parte essencial da vida humana, of an essential part of human life,
e este tipo de abstração pode ser en- and this sort of abstraction can be
contrada na obra Viagem à Itália, de found in Goethe´s Voyage to Italy.
Goethe. Key-words: historicism, philoso-
Palavras-chave: historicismo, filoso- phy of history, theory of history,
fia da história, teoria da história, sub- subjectivity, Walter Schulz.
jetividade, Walter Schulz.

Quem trabalha cotidianamente com teoria da história, sabe


perfeitamente que a área, ao menos no Brasil, ainda dá seus primeiros
passos. Mesmo no exterior, é menor o volume de estudos em teoria,
se comparados com as histórias nacionais, por mais que nos seja claro
que o papel do Estado nacional, hoje, é bem mais modesto do que
no século XIX, por exemplo. Mas, muitas vezes menos por hábito e
mais por constrangimento, ficamos circunscritos às histórias locais,
regionais e nacionais, pois precisamos de documentos e arquivos que
sejam acessíveis.
Qual o papel de uma teoria da história em nossos dias? Difícil
dizer, mas creio que ainda é possível, por exemplo, falar em filosofia

1
Professor Adjunto do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia.
E-mail: pedro.caldas@gmail.com
47
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

da história quando, a todo o instante, pensamos em sujeitos da história


(seja ele o império americano ou Wall Street, seja a União Européia ou
o Islã). De modo mais modesto, e, sobretudo, justamente porque pre-
ocupado com o nosso vocabulário diário, creio que a tarefa da teoria
da história consiste em demonstrar as dimensões reflexivas da história;
tal como em um exercício de abstração, a teoria da história não deve
se arrogar uma superioridade em relação à pesquisa, mas não pode
ser furtar a examinar pressupostos presentes na escrita historiográfica.
Não sei se serve a comparação, mas creio que a teoria da história, aqui
entendida de maneira ampla como a dimensão reflexiva do historia-
dor, deve perfazer um movimento semelhante às vanguardas artísticas
modernistas nas artes plásticas do início do século XX, ou seja: deve
expor os elementos componentes de toda e qualquer representação
e expressão possível, sendo esta mesma exposição a evidência dessa
estrutura.
Curiosamente, e aí reside um pequeno paradoxo, parte deste
desprezo descuidado pela teoria é atribuído ao século XIX, mais espe-
cificamente ao historicismo, que teria feito o esforço de se libertar de
qualquer resquício de sotaque filosófico e naturalista para, finalmente,
fazer sua historiografia de maneira independente. Ora, e aqui reside o
tema de minha conversa de hoje, é justamente no historicismo que se
encontra uma capacidade reflexiva que perfaz os níveis de abstração
existentes na prática historiográfica. Este movimento já se inicia no
final do século XVIII, e encontra seu ponto de maturação no XIX.
Isto posto, minha proposta consiste em compreender estas dimensões
reflexivas, das quais faz parte o que denominamos geralmente de te-
oria da história.

As dimensões reflexivas do historicismo

Proponho que o historicismo alemão sirva de eixo a partir


do qual possamos pensar as diferenças entre as dimensões reflexivas
da história; afinal, o historicismo é uma filosofia da história, uma te-
oria da história e uma cultura histórica. O que entendo por filosofia
da história, teoria da história e cultura histórica? Sem querer, nem de
longe, esgotar-lhes os sentidos possíveis, percebo que, se à filosofia da
história cabe a investigação do sentido da história através dos tempos,
e, muitas vezes, à própria possibilidade real deste sentido, a teoria da
48
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

história já parte da premissa de que a história é dotada de sentido, ain-


da que permaneça por esclarecer de que maneiras este sentido torna-
se legítimo como escrita e pesquisa. E, se tanto a filosofia da história
como a teoria da história, esta mais do que aquela, permanecem atadas
ao concerto das ciências, a cultura histórica haverá de mostrar como
a vida humana, em várias de suas facetas, é, em si, histórica: biogra-
fias, estados psicológicos (luto e culpa, por exemplo), filmes, memória,
arquivos, entre outros, são elementos componentes de uma cultura
histórica. Estou convencido de que estas três dimensões – as quais
poderia ser juntada uma quarta, que aqui não desenvolverei, a saber:
a história da historiografia – surgem de própria atividade, e não são
artificiais: qual o fim de todas as nossas atividades? Por que mesmo o
que nos parece nobre, acaba por passar, morrer, ser tão fugaz quanto
o que é vulgar? É a pergunta que dá origem à filosofia da história.
Como posso conhecer e transmitir fugacidades e imperfeições? É a
pergunta da teoria. E por que, ora, sou fugaz, como me relacionar com
o passado, ou como ela me lembra de minha própria historicidade,
assaltando-me? É a pergunta da cultura histórica.
A razão pela qual escolho o historicismo como tema deve-se
às formulações do filósofo Walter Schulz, que entende historicismo de
forma bastante ampla, nomeadamente como o momento do percurso
do pensamento ocidental em que a história torna-se um princípio que
se contrapõe ao tradicionalmente estabelecido pela metafísica, ou seja:
é crucial para o homem que este reconheça sua determinação histó-
rica, e este reconhecimento, diz Schulz, “é a precondição para que
não pairemos em generalidades, mas que conheçamos e realizemos
as possibilidades que nos são abertas, o isto quer dizer, que ajamos e
pensemos em consonância com o tempo” (SCHULZ, 1977, p. 470).
Para Schulz, o historicismo é um movimento de ampla abrangência,
que, segundo ele, possuiria três características:

a) representa um rompimento com a tradição metafísica, na qual Schulz


descarta a possibilidade de identificação do historicismo com
o relativismo niilista e irresponsável. Para Schulz, há verdade
na concepção historicista de mundo, ainda que esta verdade
esta não se assegure de forma imediata, absoluta e atemporal,
mas mediada e suscetível apenas através de uma perspecti-
va histórica e genética. O termo de Schulz não poderia ser
49
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

mais adequado, mesmo porque alguns estudos227 (feitos por


autores como Ernst Cassirer e Peter-Hans Reill), já provaram
que a relação do historicismo com o iluminismo, classicamen-
te apresentado como o antagonista do historicismo, não era
necessariamente de exclusão.
b) o historicismo se posiciona defensivamente contra as ciências
naturais, procurando estabelecer seu próprio método, e é justamente
aí que nos deteremos com a teoria da história, talvez a prin-
cipal contribuição do século XIX para o caráter reflexivo da
história; e
c) o historicismo representa uma remissão à interioridade, face à vi-
tória esmagadora das ciências naturais, que criam, através da
tecnologia, um mundo inteiramente novo. Portanto, a defi-
nição de historicismo proposta por Schulz enquadra-se no
que proponho: ele pode ser uma filosofia da história (não de-
vemos confundir filosofia da história com metafísica), uma
teoria científica, e, por fim, uma cultura baseada na história.
Estes três parâmetros, somados à recepção do conceito que o
situa na história do conhecimento, formam a estrutura do que
apresento a partir de agora.328

Sendo este apenas um caminho proposto, mas não impos-


to, considero pagas as faltas que o leitor sentirá ao não encontrar os
nomes de autores fundamentais para o historicismo, como Leopold
von Ranke, Wilhelm von Humboldt e Jacob Burckhardt. O percurso
será feito, então, de acordo com as três características apresentadas
por Schulz: historicismo como filosofia da história que rompe com
a metafísica (a ser feito a partir de Herder), historicismo como fun-
damentação teórica de uma ciência particular (a ser feito a partir de
Droysen), e, por fim, historicismo como lugar da interioridade (a ser

2
Ver CASSIRER (1992) e REILL (1975).
3
Creio que a tipologia de Schulz é abrangente e, ao mesmo tempo, um feixe capaz de
unir as matizes que fazem do historicismo um conceito tão complexo: penso que é
mais útil coordenar tais diferenças do que, como quer Francisco Falcon, ainda apostar
na diferença conceitual entre historicismo e historismo. Embora não a esteja partir de
um pressuposto nominalista, creio que a diferenciação é quase escolástica (claro, não
inventada por Falcon), uma vez que, ao menos no caso alemão, só há uma palavra para
o termo: Historismus. Ver: FALCON (2002).
50
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

feito a partir de Dilthey). Claro que o ouvinte atento já reparou que


trato de dois autores cujos textos são produzidos no século XVIII,
mas a estratégia é intencional: procuro destacar em Droysen o próprio
lugar assumido pela teoria, como dimensão reflexiva do saber históri-
co, no século XIX.

a) J.G. Herder e a filosofia historicista da História: rompimento


com a tradição metafísica.

Johann Gottfried Herder, que nasceu em Mohrungen em 1844


e morreu em Weimar no início do século XIX, precisamente em 1803,
é situado por autores como Isaiah Berlin e Friedrich Meinecke como
um dos fundadores do historicismo. Ainda que pertença cronologica-
mente ao século XVIII, sua influência no século XIX é considerável.
Trechos de Herder tornaram-se a verdadeira certidão de nascimento
do historicismo A seguinte frase é comumente citada: “cada nação
tem em si o seu centro de felicidade, como cada esfera o seu centro de
gravidade” (HERDER, 1990, p. 35).
Todavia, se lida em comparação com outra passagem, a ambi-
güidade só se ressalta. Leiamos:
Fossem os homens animais nacionais, em que cada um ti-
vesse inventado a sua língua de modo totalmente separado
e independente dos demais, então certamente mostrariam
os homens línguas uma diferenciação tal como as talvez
houvesse entre os habitantes da Terra e de Saturno. E con-
tudo entre nós tudo se origina a partir de um só funda-
mento (HERDER, 1993, p. 116).
Parece que temos dois autores inteiramente distintos, mas é
o mesmíssimo Herder, a escrever em um insignificante intervalo de
dois anos entre um trecho (o primeiro é de 1774) e outro (que data
de 1772). As passagens de Herder remetem à questão simples: como
comparar as épocas? Como conhecer outro período histórico? Há
uma visão total e filosófica, que tudo explica e que implicaria, ne-
cessariamente, em reconhecer uma natureza humana, uma essência
imutável explicável em leis?
No final do século XVIII, este problema se resolve somente
quando se percebe uma ambigüidade fundamental, qual seja: a nature-
za ora parece fundamentar a história, ora se mostra como seu oposto
51
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

mais radical. Na primeira acepção, a natureza é sinônimo de impulso,


de espontaneidade criadora, algo ainda não domesticado sob as regras
que devem ser aplicadas sobre a realidade. Ao contrário: Natureza é
criação, conforme deixa claro Goethe em um de seus fragmentos so-
bre a natureza: “Ela cria constantemente novas formas; o que é, nunca
havia sido; o que foi, jamais voltará – tudo é novo, e ainda assim sem-
pre o mesmo” (GOETHE, 1977, p. 29).
Por outro lado, na segunda acepção, a natureza é justamen-
te o ambiente formado por um conjunto de fenômenos cujas regras
podem ser apreendidas pelos homens. E assim, ao invés de parecer
que cria constantemente novas formas, ela na verdade parece estar
submetida a leis inalteráveis. Afinal, para que a história passasse a ter
sentido para si seria decisivo que adquirisse o caráter reflexivo adqui-
rido graças ao pensamento histórico no final do século XVIII – prin-
cipalmente na Alemanha – que, a partir de uma determinada idéia de
natureza humana, tentava justificar um sentido da história. Como bem
resume Georg G. Iggers, a natureza humana é inconstante, e, por esta
razão, o método a ser desenvolvido por uma ciência humana haverá
de considerar esta característica de seu objeto – que, claro, é também
o seu sujeito (IGGERS, 1988, p. 5).
Parece-nos acima de tudo que a natureza serve à história ao
afirmar a criação e a espontaneidade, sendo neste sentido, um modo
de ser dos agentes históricos. É isto, pois, que caracteriza uma filosofia
historicista da história: ver como, a partir da relação ambígua da idéia
de história com a idéia de natureza, a primeira ganha sentido em si, ou
por outra, um sentido reflexivo.
Sua crítica a toda e qualquer forma de comparação levou
Herder a ser considerado um dos fundadores do historicismo. Seu
ensaio sobre William Shakespeare confirma o que está dito em seu
texto de filosofia da história. E, para nós, não é acidental que o texto
mais historicista de Herder seja justamente sobre poesia. Para Her-
der, Shakespeare é absolutamente original, e por sê-lo é um equívoco
querer enquadrá-lo dentro dos padrões clássicos do teatro francês.
Mais do que nunca aparece a originalidade como dever. Na poesia de
Shakespeare não pode ser encontrado nenhum princípio mimético. A
poesia tem regras próprias. E isto porque ela é como a natureza é. Ao
falar da espontaneidade da natureza, acreditamos que Herder fala da
sensibilidade, daquilo que dificilmente se deixa articular verbalmente.
52
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Por isso, a poesia criará um mundo paralelo, sem que a ele estejam re-
feridos conceitos ou idéias abstratas. Enfim: uma tempestade (Sturm)
e um assalto (Drang), os quais podemos ver nas palavras “nunca vi um
Garrik”, “vejo paixões”, um mundo em si, que, para sê-lo, não encon-
tra semelhança nem respaldo no “outro” mundo. Diz Herder:
Como um colosso se põe o poeta sobre a superfície do
mundo. Arranca aqui uma história e de lá uma cena de
seus contextos. E assim se torna o historiador um poeta.
Shakespeare criou para os acontecimentos um novo tem-
po de acordo com seu novo mundo, e o quão poderoso
é o sentimento deste novo, se assim posso dizer, tempo
shakespeareano. Como na natureza, o acontecimento en-
tra em cena lenta e silenciosamente e como que penosa-
mente (HERDER, 1984, p. 570).
Esta dualidade do sentido de natureza no pensamento de
Herder nos remete ao que Hans-Georg Gadamer pensou com acui-
dade (GADAMER, 1990, p. 14-15): com Herder há a crítica a uma
idéia de perfeição na história, e, assim, apesar da importância de sua
formação teológica, o rompimento com a tradição metafísica, aqui en-
tendida nos termos de Schulz, a saber, aquela que pensa ser imediato e
certo o acesso à verdade. Nenhuma época pode pretender ter a visão
completa do processo histórico, e, isto, em Herder, fundamenta-se
antropologicamente. A mesma natureza espontânea e criadora com
a qual podemos identificar um Shakespeare é aquela que retirou dos
seres humanos algo que caracteriza os animais: a direção em torno
de um instinto, de um impulso. A própria estrutura da sensibilidade
humana é histórica. O exemplo de Herder é ilustrativo:
O ouvido é o órgão central da linguagem considerando-se
o tempo em que atua, e assim sentido para linguagem. O
tato nos joga tudo de uma vez só; movem intensamente as
nossas cordas, mas brevemente e aos pulos, a visão nos de-
fronta com tudo de uma vez só e intimida o aprendiz atra-
vés de sua desmedida tábua de contigüidades. Através do
ouvido, repara! Como nos poupou a mestra da linguagem.
Ela nos fornece à alma somente um som após o outro, dá e
não satura, dá e sempre tem mais a dar - ela exercita assim
toda a sua habilidade o método: ela ensina progressiva-
mente! (HERDER, 1993, p. 60).
Com Herder demonstra-se um elemento fundamental do his-
53
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

toricismo: o rompimento com a metafísica, expressa na valorização do


tempo como lugar de conhecimento da verdade.

b) A teoria historicista da história de J.G. Droysen: a história no


mundo das ciências.

Johann Gustav Droysen viveu ao longo do século XIX (1808-


1884), e este percurso faz dele uma figura singular, uma vez que ainda
carrega consigo traços do século XVIII, mas que, de certa maneira,
antecipam questões a serem vividas plenamente no século XX. Para
o helenista Droysen, autor de uma trilogia sobre o período helenístico
e tradutor de Ésquilo e Aristófanes, o fato da história ser uma ciência
que não dispense a pesquisa não implicava o elemento idealista e sub-
jetivo que nela estava presente; Droysen já sabia, em meados do século
XIX, ser impossível uma objetividade garantida metodologicamente,
e, tal como Nietzsche faria décadas depois, chamará de “eunuco” o
historiador que cultivar esta ilusão da objetividade. O mundo dos ob-
jetos históricos, se construído pela interpretação do historiador, tam-
pouco será uma mera reprodução de sua mente, mera folha em branco
na qual o historiador haverá de inscrever o que melhor lhe aprouver. A
história é ambígua, e, por esta razão, é a própria tematização da relação
entre o homem e a sua circunstância.
Antes de compreender o que era ciência histórica para Droy-
sen, deve-se entender o próprio ambiente intelectual alemão, no qual
era discutido o próprio conceito de ciência. No caso específico de
Droysen, parece-me indiscutível que, se não tivesse freqüentado os
cursos de Hegel na Universidade de Berlim, ele teria elaborado outro
conceito de ciência. As semelhanças são evidentes. Em determinado
momento, ainda bastante introdutório, de suas preleções sobre teoria
da história, Droysen afirma:
Movimento e unidade são ambos momentos, através dos
quais o espírito é espírito, através deles ele se polariza em
direção a uma vivacidade incansável que se consumiria a si
mesma sem a energia da unidade e que se afundaria morta
sem o movimento constantemente ativo e periférico.
Desta duplicidade desenvolvem-se os dois métodos […] o
físico e o especulativo (DROYSEN, 1977, p. 10).
Se, por um lado, lamenta a pobreza de consciência irmanada
54
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

à riqueza de experiência, Droysen em momento imediatamente pos-


terior dirá que a acusação feita ao conhecimento excessivo dos fatos
não deve adormecer a sensibilidade para as particularidades. Assim, o
método histórico procurará, segundo ele, estabelecer a identidade en-
tre os dois métodos, cujo maior problema consiste não exatamente em
sua parcialidade, mas na ilusão de, em sua parcialidade, acreditarem
estar dando conta da totalidade.
Isto posto, faço uma breve alusão ao que Hegel afirma em
sua Fenomenologia do Espírito, obra planetária que, está claro, não irei
sequer arranhar neste trabalho. A crítica à bipolaridade das ciências,
da qual Droysen parte para tentar justificar a existência da Historik,
também foi identificada por Hegel cinqüenta anos antes, no prefácio
da Fenomenologia do Espírito, e é uma das alavancas de seu imenso pro-
jeto filosófico.
Essa oposição parece ser o nó górdio que a cultura cientí-
fica de nosso tempo se esforça por desatar, sem ter ainda
chegado a um consenso nesse ponto. Uma corrente insiste
na riqueza dos materiais e na inteligibilidade; a outra des-
preza […] essa inteligibilidade e se arroga a racionalidade
imediata e a divindade (HEGEL, 2002, p. 32).
É importante compreender o que ele entende por contingên-
cia. Se à filosofia cabe a formação de uma totalidade de perspectivas,
não é porque estas tenham curto alcance. Para Hegel, a crítica à con-
tingência é a mesma que dará base à crítica ao empirismo ingênuo,
pois não será um momento imediato que, segundo a razão, poderá dar
sentido à história, mas sim será o espírito que assumirá a forma final:
O espírito só tem consciência, quando ele é consciência-
de-si; isto é, eu somente sei de um objeto na medida em
que, nele, eu saiba de mim mesmo, que minha determina-
ção saiba que aquilo, que eu sou, também é objeto para
mim […]. Eu sei de meu objeto, e eu sei de mim. Ambos
não são separáveis (HEGEL, 1994, p. 54).
E como sentimos estas passagens presentes quase trinta anos
depois no curso de Droysen sobre teoria da história, dado em 1857?
As lacunas deixadas por Droysen sobre os detalhes da filosofia de He-
gel, e principalmente sobre a sua filosofia da história, começam a ser
preenchidas – e a apresentar problemas interessantes.
Há dois momentos. Primeiramente, um que diz respeito à
55
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

própria noção de objeto. Ora, quando Hegel afirma que não se separa
o saber do objeto do saber-de-si como objeto, ainda que em Hegel em
última instância o si do objeto não seja jamais contingente, fica difícil
imaginar que Droysen não pudesse partir de semelhante pressuposto.
Afinal, toda a sua crítica aos historiadores “eunucos” (alerta aos teste-
munhos de Zaratustra: a expressão não foi inventada por Nietzsche!)
estaria baseada justamente em uma crítica à existência de objetos em
si, que poderiam ser descobertos por qualquer historiador que usasse
um método correto, universalmente válido. Para Droysen, a contin-
gência seria mais do que mero fato porque é um momento em que o
fato de conhecer altera o próprio objeto e o próprio sujeito.
O objetivo do curso teórico ministrado em Jena no ano de
1857 consistia em algo muito simples: despertar em seus alunos a ca-
pacidade de pensar historicamente.
A busca de fundamentação metodológica da história feita por
Droysen não se confunde com insulamento e delimitação de territó-
rio. Conforme se vê na passagem supracitada, para Droysen, a história
tem uma função integradora: será ao perceber a essência histórica da
vida humana que o pesquisador haverá de conciliar os dois métodos
predominantes e rivais durante o século XIX alemão.
Esta totalidade é possível pelo estabelecimento do método
compreensivo. Este é geralmente analisado sob o prisma da idéia de
empatia entre o historiador e o passado, que, na verdade, consistiria
em um movimento no qual o primeiro transpor-se-ia para o segundo,
anulando a distância temporal (e espacial, por vezes) que os separa. A
hermenêutica fenomenológica de Gadamer se constrói a partir (tam-
bém) desta suposta ingenuidade historicista-romântica (GADAMER,
1990, p. 174-175). Não consigo ver tal ingenuidade em Droysen.
Droysen delimita o terreno do método histórico ao dizer que
a ciência histórica não constrói leis que expressam a recorrência de
analogias, tampouco deve ser simplesmente um exercício analítico de
tentar compreender a totalidade histórica através da erudição, ou seja,
pela divisão constante do material em áreas, para que então, pelo do-
mínio cada vez mais rigoroso de pequenas áreas, possa se dominar o
todo. Se a soma das partes não configura plenitude, por outro lado,
não será procurando a origem de um fenômeno em um encadeamento
retrospectivo que poder-se-á compreender o que é história; assim, o
presente não poderá ser assoberbado por uma herança de materiais
56
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

como um museu que não tem galerias e salas suficientes para expor
seus quadros e esculturas, e também não é um lugar indiferente no
qual, de qualquer ponto, conhece-se a ação do mesmo princípio histó-
rico. A busca da “causa das causas” e do “fim dos fins” é justamente
o que o método histórico não deve fazer.
É aí que finda a força de nossa indução – e de qualquer
indução. Afinal, o entendimento do homem capta somen-
te o meio, não o início, não o fim. O nosso método não
descobrirá o último segredo, nem mesmo o seu caminho,
nem mesmo a entrada para o templo. Não entendemos a
totalidade absoluta, o fim dos fins, mas compreendemos
uma de suas expressões que já está compreendida em nós.
A partir da história aprendemos a compreender Deus,
e somente em Deus podemos compreender a história
(DROYSEN, 1977, p. 30).
Há dois elementos importantes nesta passagem: primeiramen-
te, a afirmação do “meio” como lugar de conhecimento da história,
ou, se quisermos, o campo por onde pode ser possível compreender
Deus. E este lugar do conhecimento da história, o ponto “central” da
criação (e não o final), dará o sentido de atividade desejado, ou seja,
a atividade não será utópica, a ser concretizada em um futuro que se
projeta.429O uso da expressão “compreender Deus”, ainda mais em
uma obra cuja importância dada ao termo “Compreensão” é decisiva,
não pode ser descartada. É bastante comum vermos identificadas a
teodicéia com a teleologia. Ao afirmar que através do “meio”, e não
do “fim”, podemos conhecer Deus, Droysen sofistica e complica uma
questão cuja resposta é geralmente dada por conhecida. Mas a palavra
“meio”, e a nossa insistência em falar de mediação encontra aqui sua
justificação mais literal, tem alguns significados possíveis.
Em segundo lugar, o “meio” seria o lugar ocupado pela Historik,

4
Não há espaço aqui para desenvolver os fundamentos teológicos, ou luteranos, da
teoria da história de Droysen. Contento-me, portanto, com a observação que o uso
da expressão “compreender Deus”, ainda mais em uma obra cuja importância dada
ao termo “Compreensão” é decisiva, não pode ser descartada. É bastante comum
vermos identificadas a teodicéia com a teleologia. Ao afirmar que através do “meio”,
e não do “fim”, podemos conhecer Deus, Droysen sofistica e complica uma questão
cuja resposta é geralmente dada por conhecida. Mas a palavra “meio”, e a nossa in-
sistência em falar de mediação encontra aqui sua justificação mais literal, tem alguns
significados possíveis.
57
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

que exerceria, segundo Droysen, o papel de mediador entre a bipo-


laridade existente em um mundo científico cindido entre ciências da
matéria e ciências do espírito, entre natureza e espírito: este meio é o
lugar do homem.
O conhecimento humano – não só do historiador – além de
tardio, ou seja, por ser sempre uma reflexão situada em um passado
tornado presente, é necessariamente também inútil, pois ele também
não desvendará “o fim dos fins”, e não mostrará o mapa que leva
o homem à entrada do templo. Logo, o entendimento histórico do
homem, se não vê no passado a fonte de autoridade absoluta, pois
não encontrará nele uma suposta origem autêntica, também não é um
simples desvendar de condutas racionais, ou seja, meios que servem a
fins determinados, e, assim, o conhecimento histórico é pouco afeito à
nostalgia quanto à utopia, e, assim, precisa se guardar de ser tanto um
canto restaurador como um instrumento.
E qual a relação entre tal posição “mediana” e o caráter interpre-
tativo? Explico: trata-se de uma salvaguarda da subjetividade do historia-
dor, que não se deixa instrumentalizar. Não é de se espantar que Droysen
fosse um liberal. De acordo com Estevão de Rezende Martins:

A teoria política do historicismo funciona também como


crítica da ideologia, e em duplo sentido: por um lado, criti-
ca toda a orientação do agir político por utopias. Ela exige
a experiência histórica como instância de teste das chances
de realização de expectativas políticas. Por outro lado, ela
critica também toda orientação do agir político pela ma-
nutenção do status quo, pois, ao transpor relações sociais
dadas para o processo de seu surgimento, ela requer tam-
bém a prova de serem aptas a efetivar-se de acordo com as
idéias da realização cultural do espírito humano que agiam
nela. O fato de que muitos dos primeiros defensores do
historicismo tenham participado da revolução de 1848 de-
põe em favor de que o historicismo deve ser contido, ao
menos na fase de fundação, no movimento histórico de
emancipação burguesa (MARTINS, 2002, p. 10).

Vemos esta posição confirmada na seguinte passagem de


Droysen:
não está nas coisas exteriores a verdade; tampouco está a
58
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

verdade na nossa percepção sensível […] Somente quando


o Eu se liberta desta mudança e destas peripécias secundá-
rias e reflexivamente se põe, reconhecendo-se como tal e
se pensando como tal, como um novo começo, inicia-se o
devir da verdade (DROYSEN, 1977, p. 325-326).
A subjetividade do historiador não se revela, portanto, atra-
vés de caprichos inspirados. Não é dada ao historiador a imputação
aleatória e arbitrária de significados; esta subjetividade é reflexiva.
Entenda-se: ela se constrói criticamente a partir da relação com o que
lhe é externo, e não é só por ele alterada, bem como tem consciência
deste movimento de modificação. A subjetividade forma-se, então,
como uma consciência de parte integrante e decisiva de construção
do conhecimento.
A relação entre ciência e subjetividade é crítica, e não psi-
cológica. Portanto, por mais que tenha elementos convergentes, não
deve ser necessariamente idêntica à dimensão introspectiva do histori-
cismo, parte final deste estudo.

c) A cultura historicista da História: Goethe e a remissão à in-


terioridade.

Na passagem sobre historicismo de seu luminoso livro, Wal-


ter Schulz não detalha o que viria a ser a remissão à interioridade. Diz,
claro, que ela é conseqüência da autonomia das ciências históricas e do
espírito em geral, como se fosse uma reação ao avassalador processo
de crescimento das ciências exatas, ocorrido em relação umbilical com
a industrialização na Europa. É curioso, para não dizer contraditório:
a mesma emancipação burguesa que permite a consolidação do prin-
cípio interpretativo e a ênfase do lugar do historiador no ato de co-
nhecimento também redunda em mudanças radicais e irreversíveis na
ciência, na economia e na sociedade que, por gerarem a massificação,
aniquilam um princípio essencial do historicismo e do pensamento
histórico: consciência de individualidade histórica e de pertencimento
a uma tradição.
É bem verdade que podem ser identificadas reações distin-
tas. Haverá uma reação marcadamente conservadora, como se encon-
tra, por exemplo, em Edmund Burke. Crítico da Revolução Francesa,
Burke alertava contra toda tentativa de fundação da história a partir do
59
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zero, que fatalmente aniquilaria o intercâmbio do presente com o pas-


sado para a modulação do futuro; no próprio Herder encontra-se uma
crítica a todo tipo de redução do processo histórico a fórmulas, crí-
tica acompanhada pelo elogio da espontaneidade (como se dá, como
vimos, em seu ensaio sobre William Shakespeare). Ou em um autor
como Friedrich Schiller que se manteve crítico perante os aconteci-
mentos na França, sem, todavia, cair em profundo conservadorismo.
Um século após Burke, Schiller e Herder, um autor como Wilhelm
Dilthey se esmera em estabelecer um método para as ciências do es-
pírito, no qual ganha especial destaque a vivência pessoal, a biografia
e a abordagem que permita a possibilidade, por parte do intérprete,
de compreender o outro em seus próprios termos e em sua própria
experiência. Possivelmente, é esta a dimensão mais obscura do histo-
ricismo. A este respeito, Friedrich Meinecke dirá:
O historicismo, em geral, não era somente uma maneira de
ver do historiador, sem de toda a vida humana, levou este
processo de individualização à consciência de si mesmo,
porque ensinou a compreender toda a vida histórica como
evolução do individual (MEINECKE, 1982, p. 492).
O individual, anunciado por Meinecke, é comumente confun-
dido com individualismo ególatra. Permanecer nesta acepção limitaria
profundamente a leitura possível deste sentido de individualismo. Ele
já se apresenta no final do século XVIII nas viagens de Goethe pela
Itália. Ali se configura o que Meinecke indica como a essência do pro-
cesso de individualização (MEINECKE, 1982, p. 404). Este não se
confunde com o romantismo vulgar, banhado em lágrimas solitárias.
É, na verdade, a recusa do pragmatismo, a postura que vê cada ação
em si mesma, e não a partir de sua intenção, ou de seu resultado final.
Como Goethe não viveu o processo de industrialização e massifica-
ção da Europa, devemos entender esta remissão à interioridade como
fuga, já necessária no final do século XVIII, de uma concepção mecâ-
nica dos agentes históricos e de toda ação.
Ainda jovem, Goethe parte para Itália, escapando sorrateira-
mente de Weimar, uma cidade cujo provincianismo sufocava aquele
que já era, a esta altura, um autor acossado por sua própria fama.
Quem é o Goethe que, com quase quarenta anos, escapa sorrateira-
mente para o sul da Europa? Não é o Goethe de Werther, obra que
60
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traz o selo do Sturm und Drang, que sofre com os limites e acusa como
ilusão qualquer forma de contentamento.
É um outro Goethe que rumará à Itália. Sentindo-se incom-
pleto, ele sai de seu ambiente próprio, dos ritos de Weimar e das gló-
rias literárias que já lhe caíam sobre a cabeça, e, dizendo-se arquiteto,
chega a Bolzano, de onde segue caminho para Trento. Em uma manhã
de setembro, ele vigia seu próprio entusiasmo, sem, todavia, deixar de
manifestá-lo. A espontaneidade e a naturalidade tão buscadas em si,
ele já as encontra nas ruas. Termina o dia anotando:
agora, ao anoitecer, com o vento suave e as montanhas
rodeadas de poucas nuvens, mais fixas do que atravessan-
do o céu, o zumbido agudo das cigarras começando a se
fazer ouvir logo após o pôr-do-sol, sentimo-nos afinal em
casa no mundo, e não qual estivéssemos escondidos ou
no exílio. Desfruto disso tudo como se tivesse nascido e
sido criado aqui, e retornasse agora de uma caça à baleia
na Groenlândia.
Se esse meu entusiasmo fosse ouvido por alguém que
mora ou nasceu no Sul, tal pessoa julgar-me-ia bastante
infantil. Ah, mas aquilo a que dou expressão, eu já o sabia
há tempos, há tanto tempo quanto o que venho suportan-
do viver sob um céu ruim, e me agrada bastante sentir essa
alegria excepcional, da qual deveríamos desfrutar sempre,
na condição de uma eterna necessidade natural (GOE-
THE, 1999, p. 31-32).
O nosso entusiasmado viajante não se ilude quanto ao fato de
estar quase simulando esta naturalidade – tanto que a escreve, a redige,
a registra, como se soubesse que ela haveria de se esvair – mas sempre
a liga com o desejo de comunhão com o mundo. Esta comunhão,
porém, em momento algum se confunde com certo sensualismo, pois,
na verdade, a viagem o tornará sereno e claro. Ao viajar pela Itália,
Goethe parece se perguntar se esta realidade é terrível. Esta alegria na-
tural significará que entre ele e o mundo não se interpõe mais qualquer
biombo que torne nebulosa sua visão. Em Roma, escreverá:
Vivo aqui uma clareza mental que havia muito não sentia.
Minha prática de buscar ver e ler todas as coisas como elas
são, minha fidelidade ao propósito de ter os olhos sempre
límpidos, meu completo despojamento de toda pretensão
mais uma vez são de grande valia para mim, fazendo-me,
em segredo, muito feliz. Todo dia, um novo objeto, digno
61
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

de atenção, pinturas novas, grandes, estranhas, e um todo


que pensamos e com o qual sonhamos longamente, mas
que jamais logramos alcançar com a força da imaginação.
(GOETHE, 1999, p. 159).
Portanto, o que Goethe busca não é o entusiasmo, não é o
arrebatamento, mas a pureza inerente a toda contemplação; postura,
aliás, que não esconde o seu traço protestante, mas que guarda con-
sigo certa altivez e uma recusa à arrogância. Disposto a ver, Goethe
difere o olhar atento e carinhoso do olhar vigilante e usurpador. Uma
vez interessado em recuperar uma origem oculta em camadas e cama-
das de hábitos cotidianos, glórias e formalidades, por outro lado, em
momento algum esta pureza do olhar será o egoísmo voluntarista do
turista do qual ele tanto caçoa em suas anotações, a saber: o turista
que muitas vezes nós mesmos somos, o turista que consome com o
olhar, que não vê mistérios e quer encontrar legendas para aquilo que
já sabe de antemão.
A naturalidade espontânea, para Goethe, é antes indômita, e,
neste sentido, ele não se identifica com os italianos. A mesma naturali-
dade espontânea que lhes serve de fruição poética, também lhes servi-
rá de impulso criminoso ou pouco civilizado. O que lhe agradará será
antes o cotidiano alegre, em que as necessidades básicas são atendidas
prodigamente (como ele percebe em Nápoles), mas jamais o impulso
superficial, por exemplo, do carnaval romano, que Goethe verdadei-
ramente desprezou. Barulho e alegria em nada se conciliam. E ainda
dirá, a respeito da agitação das ruas romanas:
Deste povo, eu nada mais saberia dizer senão que se com-
põe de filhos da natureza que, com toda pompa e circuns-
tância da religião e das artes, não são em nada diferentes
do que seriam se vivessem em cavernas e florestas. O que
salta aos olhos de todo estrangeiro e é hoje, mais uma vez,
o assunto de toda a cidade [...] são os assassinatos, bastante
corriqueiros (GOETHE, 1999, p. 170).
O assassinato, ou seja, a morte não-natural, a morte causada
pela vontade de outro homem, assusta o viajante Goethe. E isto não
pelo motivo mais evidente e justo, ou seja, a indignação moral causada
por todo e qualquer assassinato. Goethe parece sentir o transtorno
da morte como tal, ou seja, ela não é exclusivamente um fenôme-
no da natureza orgânica, uma lei que um dia abate-se sobre qualquer
62
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ser vivo. Há uma interrupção deste processo pacífico que, de alguma


maneira, é o que o próprio Goethe busca. Desejoso de encontrar a
planta primordial, Goethe parece estar interessado em, ao viajar para
um país que é a própria casa da história, para um país em que as ruí-
nas são testemunhos da temporalidade da própria civilização, tornar
possível o renascimento constante do passado. Para Goethe, não se
trata, como já faziam os iluministas naquela mesma época, de negar
o passado, mas torná-lo vivo, plasticamente vivo a partir de um olhar
para um mundo sem sombras. Ainda em Roma, perante suas ruínas
que confirmam a convivência necessária entre passado e presente, ele
confessa que “nenhum pensamento inteiramente novo me ocorreu,
mas os velhos tornaram-se tão definidos, tão vivos, tão coerentes, que
poderiam passar por novos” (GOETHE, 1999, p. 149). Ou seja, o
olhar há de estar despido e ser franco; há de se esquecer que estamos
olhando; do contrário torna-se reflexivo, uma marca que definirá o
idealismo alemão de Fichte, Schelling e Hegel. Somente assim, Goethe
poderá dizer que Nápoles é um paraíso (cf. GOETHE, 1999, p. 247),
pois ali a embriaguez é, antes de tudo, o esquecimento de si. A comunhão
com o mundo não se dá através do acordo racional e do contrato, e
muito menos pelo arrebatamento subjetivo que subjuga este mundo,
mas pela rendição estética e pela recuperação da ingenuidade, perante
a qual as formas estão dadas em sua diluição cotidiana. O próprio
confronto entre a beleza da cidade de Nápoles e o Vesúvio mostra
que esta perfeição formal é, sobretudo, uma experiência: “O terrível
e o belo, o belo e o terrível, ambos anulando-se para produzir uma
sensação de indiferença. Com certeza, o napolitano seria um outro
homem se não se sentisse encurralado entre Deus e Satanás” (GOE-
THE, 1999, p. 257).
Desta passagem decorrem dois problemas interessantes: pri-
meiramente, por que Goethe contempla a violência da natureza, acei-
tando-a em seu ímpeto, mas nega a violência do gesto humano, como,
ficou claro em passagem anterior, é o caso do assassinato? Neste pon-
to, de fato o homem não pode copiar mimeticamente a natureza, agir
conforme ela. Esta contemplação dá-se através de uma discrepância
que somente seria superada quando o homem fosse anulado na sua
ação espontânea e serena. Mas este drama encontra em Goethe uma
solução: a indiferença. Esta frieza indiferente parece ser a chave indi-
cada por Goethe para o sentido do historicismo como interioridade,
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uma vez que tal ação, serena e indiferente, não espera recompensas
futuras, tampouco se vê como redentora de uma culpa primordial.
Não quer restaurar, nem edificar, e traduz-se, sobretudo, como con-
templação estética do mundo, que pouco, ou nada tem a ver com a
frieza, o cálculo racional e o pragmatismo; na verdade, esta indiferença
é possível justamente por conta da ausência da racionalidade vigilante
e controladora.
Mas, aí talvez esteja o aspecto mais intrigante de Viagem à
Itália, o elogio da fluidez não esconde a busca pela planta primordial,
pelo elemento unificador que ele tanto anseia encontrar nos jardins
públicos de Palermo:
As muitas plantas que eu, em geral, só estava acostumado
a ver em cubas e vasos, por trás das vidraças a maior parte
do ano, encontram-se aqui felizes e viçosas ao ar livre e,
cumprindo seu destino em sua plenitude, fazem-se mais
compreensíveis a nós. À visão de tantas formas novas e
renovadas, voltou-me à mente a velha fantasia de poder,
talvez, descobrir aqui, em meio a toda essa variedade, a
planta primordial (GOETHE, 1999, p. 314).

O que resta, já se disse certa vez, é o silêncio, de maneira


que a interioridade historicista torna-se uma atitude reservada e atenta
às manifestações do mundo. Goethe não encontra a planta primor-
dial. Esta permanece como fantasia. Mas, em Goethe, esta é vivida na
embriaguez do próprio fluxo. Ainda em Roma, Goethe escreve algo
que antecipa sua admiração pelo “esquecimento-de-si” vivido por ele
e por cada napolitano:
durante uma viagem, aprende-se o que se pode pelo ca-
minho; cada dia nos traz algo de novo, e apressamo-nos
em refletir e opinar a respeito. Aqui, porém, está-se numa
escola muito grande [...] Na verdade, faríamos bem em,
mesmo passando anos aqui, observar um silêncio pitagóri-
co (GOETHE, 1999, p. 315).

A Itália que Goethe conhece incute-lhe a serenidade. Mas a


forma imaginada da planta primordial, de alguma maneira, é a própria
objetivação que testemunha esta serenidade, uma vez que, como diz
Meinecke, é a metamorfose de um princípio que se desenvolve ao
longo do tempo.
64
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Esboço de uma conclusão

Historicismo é um termo que dificilmente se presta a conclu-


sões. Não fugirei à regra, e deixarei de lado todo e qualquer tipo de de-
finição cabal. O que se encontrou nestas linhas foi uma proposta para
que as discussões sobre o tema sejam encaminhadas e apresentadas.
A união entre a possibilidade de sentido objetivo no percurso históri-
co (filosofia da história), método científico (o historiador descobre-se
como um narrador que produz conhecimento) e vida histórica (que
existiria mesmo sem as reflexões) faz-se necessária para que a teoria
da história possa se mostrar como tarefa inadiável da tarefa historio-
gráfica. Pretendi, dessa maneira, esboçar níveis de abstração. Este me
parece, por ora, o melhor caminho para que a teoria da história seja
demonstrada em sua necessidade intransferível e inadiável, ou seja:
demonstrar que, mesmo quando não estamos debruçados sobre um
árido texto de teoria, estamos refletindo historicamente.

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em dezem-


bro 2007.

66
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

HISTÓRIA E HERMENÊUTICA: A COMPREENSÃO


COMO UM FUNDAMENTO DO MÉTODO
HISTÓRICO – PERCURSOS EM DROYSEN,
DILTHEY, LANGLOIS E SEIGNOBOS
30
Julio Bentivoglio1

Resumo: Este artigo procura de- Abstract: This article looks for to
monstrar a importância que a herme- demonstrate the importance that
nêutica e a abordagem compreensiva the hermeneutics and the compre-
tiveram na constituição do método hensive boarding had in the con-
histórico, a partir do final do século stituition of the historical method,
XIX, de maneira decisiva, no histori- from the end of century XIX, as
cismo e na escola histórica alemã. decisive way in the historicism and
Palavras-chave: hermenêutica, teo- the german Historical School.
ria da história, metodologia da histó- Key-words: hermeneutics, theory
ria, compreensão. of history, methodology of his-
tory, understanding.
 
Este texto procura apontar como as teorias sobre a interpre-
tação de textos e a abordagem compreensiva desenvolvidas na Ale-
manha em meados do século XIX encontram-se na gênese da cons-
tituição de uma metodologia para a história.  No momento em que a
ciência histórica fundamentava-se epistemologicamente, ao realizar a
crítica das filosofias da história, do idealismo hegeliano e dos modelos
nomológicos aplicados ao estudo do passado, a hermenêutica surgiu
como a pedra angular na construção do método.
Compreendida como uma arte e técnica de interpretação
correta de textos, a hermenêutica remonta aos gregos, mas conheceu
grandes aperfeiçoamentos na tradição judaico-cristã, com a tradução e
a exegese dos textos bíblicos redigidos em aramaico, hebreu e grego. A
partir do Renascimento sofreu sensíveis transformações se dividindo
em três especialidades: hermenêutica filosófica-filológica, teológica e
jurídica. A meu ver, tanto a hermenêutica filosófica quanto a jurídica
tiveram forte impacto sobre o desenvolvimento da história no século
XIX, visto os documentos assumirem para os historiadores oitocen-
tistas tanto o valor de prova quanto o de evidência (da vida, do ser).

1
Professor Adjunto de Teoria da História e História do Brasil II na UFG – Campus
Catalão. E-mail: juliobentivoglio@gmail.com
67
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Ao mesmo tempo, esforços empreendidos na tradução, publicação e


interpretação de grandes séries documentais na Alemanha e na França
serviram para aperfeiçoar as técnicas existentes. Naquele momento,
não somente textos greco-latinos foram relidos e retraduzidos, mas
também grandes obras literárias redigidas em outras línguas. Assim,
inspirando-se em procedimentos largamente utilizados pelos herme-
neutas, pelos tradutores e pelos antigos filólogos, pode-se vislumbrar
o aperfeiçoamento do método histórico.
A hipótese aqui defendida é a de que na base do método his-
tórico verifica-se a presença decisiva de reflexões e técnicas herme-
nêuticas, algo patente na leitura da obra de Dilthey, no Grundirß der His-
torik de Johann Gustav Droysen, publicado em 1882 em Leipzig, cujo
manual ou versão sintética começou a circular restritamente como no-
tas para suas aulas desde 1858 e na Introduction aux études historiques de
Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos publicada em 1898 em
Paris. E esta herança encontra-se explicitada em diferentes manifesta-
ções destas escolas históricas e mesmo nos Annales. É indício seguro
que Marc Bloch e Lucien Febvre trouxeram para a historiografia fran-
cesa elementos consideráveis desta tradição germânica, depois de sua
passagem por Estrasburgo. A percepção da ponte entre a produção
epistemológica alemã com a francesa apareceu pela primeira vez na
obra de Raymond Aron, em 1938 e, depois, na Inglaterra com Collin-
gwood.
De fato, conforme consideram Iggers (1995) e Cassirer (apud
REIS, 2001, p. 216), foram frutos genuínos do historicismo alemão:
a invenção da história como objeto específico para o conhecimen-
to que define princípios e métodos de abordagem do passado, um
movimento intelectual que se expande às demais Ciências Humanas,
distinguindo-as das Ciências da Natureza, a necessidade da história
para a compreensão dos fenômenos humanos visto que tudo pode ser
inscrito na temporalidade e, por fim, a de que o passado persiste no
presente (REIS, 2001: 216-7).
Em fins do século XIX observava-se um duplo movimento:
de definição da ciência da história e de aperfeiçoamento das técni-
cas de pesquisa existentes. Contemplar a hermenêutica, retomando-
se alguns de seus pressupostos mais elementares em Schleiermacher,
Droysen e Dilthey, permite constatar a contribuição deste campo à
história, sua influência junto à escola histórica alemã, à metódica fran-
68
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cesa, e mesmo nos Annales onde a compreensão [Verstehen], nas pala-


vras de Marc Bloch, define a atividade do historiador (BLOCH, 2001,
p. 128). Naquele contexto, a hermenêutica também refinava técnicas
e reflexões ao problematizar o entendimento sobre a compreensão e
a interpretação, sobre a interferência da subjetividade na produção do
conhecimento e a respeito do impacto do tempo nas manifestações
da vida. Descortinava-se a questão da subjetividade na produção dos
saberes e na formação das ciências humanas. Em relação à história, a
hermenêutica entrava como um dos fundamentos do método, tanto
no cuidado com a análise documental, quanto nas questões referentes
ao sujeito cognoscente.
Poucos autores discutiram a relação entre história e herme-
nêutica, podendo-se indicar, em especial, as reflexões mais rigorosas
de Gadamer (2002) e Koselleck (1997)231 e, também, as contribuições
de Verena Alberti (1996) e de Edmárcio Testa (2004). Mas, longe de
querer esgotar tema tão complexo e amplo, o propósito aqui é o de
retomar algumas pistas para evidenciar a presença da hermenêutica no
aperfeiçoamento e definição de um método específico para a história.
Vale lembrar a dívida explícita com este campo manifestada por We-
ber, Heidegger, Foucault, Benjamin e Ricoeur. Para Maria Odila Dias,

2
Na conferência História e hermenêutica, proferida em 16 de fevereiro de 1985, em ho-
menagem ao aniversário de Hans-Georg Gadamer, Reinhart Koselleck se esforça para
demonstrar que a Teoria da História configuraria um terreno não hermenêutico, dis-
tinguindo Historik de Geschichte. Esta última abarcaria as narrativas e estudos sobre o
passado, enquanto a primeira configuraria um domínio das reflexões e descrições das
modalidades possíveis de história, enquanto uma ciência teórica. Semelhantemente a
esta posição, encontram-se as reflexões de Jörn Rüsen (2001), ou ainda a perspectiva
de Gumbrecht em valorizar a pragmática histórica, ou seja, o extra-textual, para se
reencontrar a emergência dos sentidos. Koselleck se empenha na tarefa de definir
um estatuto autônomo para a Historik, visto Gadamer reivindicar para a hermenêu-
tica tarefa que seria objeto da teoria da História, a saber: “tematizar as condições de
possibilidade de histórias (Bedingungen möglicher Geschichten) (KOSELLECK, 1997, p.
68). Para ele, Historik é um campo de estudos sobre as possibilidades de histórias,
inquirindo sobre suas pretensões, tornando inteligível sua concretização, apontando
para a bilateralidade própria de toda história. Ela seria uma doutrina transcendental
sobre as histórias. Nesse sentido, este autor propõe cinco pares antitéticos que po-
deriam expressar aquilo que denomina de estrutura temporal de possíveis histórias: a
ameaça da morte e os limites do uso efetivo da força e os pares: amigo e inimigo, pais
e filhos, público e privado e, por fim, senhor e escravo. Tais pares seriam responsáveis
pela formação, desenvolvimento e eficácia das histórias. Com essas categorias seria
possível vislumbrar um telos específico para o histórico.
69
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

a importância do historicismo e da hermenêutica está em redefinir o


tempo absoluto dos matemáticos e dos fenomenólogos, colocando em
seu lugar uma pluralidade de temporalidades assimétricas. Assim, “o
devassar dos meandros dos ritmos dessas diferentes temporalidades
aparece como um dos principais triunfos da hermenêutica contem-
porânea do cotidiano”, praticada por autores como Certeau, Deleuze,
Gadamer, Lefort ou Walter Benjamin (DIAS, 1998, p. 258).
Talvez fosse o caso de reputar o historicismo com um dos
grandes paradigmas da história, pois embora se possa afirmar, como
faz Verena Alberti (1996), que seus preceitos angulares soem como o
óbvio ululante para os historiadores – como o entendimento histórico
das manifestações humanas que se dão sempre historicamente, das
especificidades do passado que não se deve confundir com o presente
e ainda que o olhar do historiador está limitado pelos horizontes de
sua própria época –, ela se esquece que aspectos decisivos tanto da es-
cola histórica alemã, quanto da hermenêutica filosófica, inspirados no
historicismo, oferecem rico painel para o debate disciplinar e para se
entender a formação de uma ciência da história, marcando ainda todo
o pensamento social do século XX. Face ao avanço do relativismo, à
problematização da narrativa na história, à complexidade da noção de
documento, à redução de escala de análise do social ao individual, ou
ainda em relação ao sentido do passado, as contribuições de ambos –
historicismo e hermenêutica – foram decisivas.
Afinal, desde a gênese da história, enquanto campo autônomo
junto aos demais saberes, processo verificado a partir do final do sé-
culo XVIII, sua relação com a filologia e a hermenêutica era bastante
estreita. Foram os avanços verificados no campo da tradução e na in-
terpretação de textos antigos em que se verificaram sensíveis avanços
da crítica textual contemporânea. Meinecke afirma que depois da Re-
forma o historicismo teria sido a grande revolução intelectual alemã;
desconsiderando, como se vê, a importância do idealismo kantiano e
hegeliano. Reis, não sem exagero, afirma que,
metodologicamente, o historicismo foi fundador da her-
menêutica filosófica. Sua figura maior, seu representante
clássico foi Ranke, que fundou na prática a autonomia do
pensamento histórico. Ranke foi profundamente inovador.
Foi o novo Heródoto, o refundador da história nos tem-
pos modernos (REIS, 2000, p. 48).
70
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Esse alargamento da importância histórica corresponde a uma


verdadeira revolução cultural que afetou ainda a filosofia, a filologia,
o direito e a economia. Segundo Iggers (1995), suas formulações mais
decisivas foram realizadas por Humboldt e Droysen. Para Koselleck, a
definição do campo da história, na Alemanha, no século XVIII, ocor-
reu quando Historie lentamente foi substituído por Geschichte e, Historik
passou a ser usado com sentido específico. Historie passou a designar
relatos, não necessariamente uma narrativa dotada de reflexão, sendo
Geschichte usado nesta acepção, como uma narrativa específica sobre
algo. Para Droysen, história tornou-se o conhecimento de si própria.
Assim, acima das histórias estaria a história (KOSELLECK, 2006, p.
49).
Tudo está conectado: o estudo crítico das fontes autênti-
cas, a concepção imparcial, a exposição objetiva; – a meta
é que se faça presente a verdade plena, mesmo que não se
possa alcançar o todo. A auto-suspensão do ponto de vis-
ta partidista se dirigia sempre historicamente contra par-
tidos concretos, diversos cada vez. Epistemologicamente,
detrás do postulado de supraparcialidade, necessária para
reproduzir a realidade passada aproximando-se da verdade
plena, se praticava uma espécie de realismo ingênuo. Chla-
denius foi o primeiro a perceber isto ao dizer que a história
é uma coisa, mas a representação dela é diversa e múltipla.
(KOSELLECK, 2004, p. 114).
A escola histórica alemã problematizou a história universal
iluminista buscando apoio na hermenêutica romântica, na discussão
sobre a vida e a singularidade do passado. Coube a Dilthey tornar essa
hermenêutica uma preocupação histórica e a dimensão histórica do
conhecimento um fundamento das ciências do espírito. Ao lado de
Droysen e de Ranke, Dilthey se opunha à filosofia da história, pois
entendia que preceitos idealistas e metafísicos como os de idéia, es-
sência ou liberdade, não encontravam expressão perfeita na realidade
histórica. Droysen, por sua vez, afirma que a história é uma soma em
curso ao reconhecer a dinâmica e a variedade das expressões de vida.
Renegando o Iluminismo e o caminhar de uma história universal das
civilizações, certamente sob a influência do pensamento de Hume e
Herder, Dilthey, como Droysen, não pouparia críticas à Kant, ao rea-
lizar a crítica da razão histórica (REIS, 2004), e à Hegel, pois, era-lhe
inaceitável uma fundamentação histórica baseada no conceito idealista
71
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

e metafísico de espírito (GADAMER, 2002, v.1, p. 286). Heinrich Ri-


ckert, ao escrever Os limites da formação conceitual das ciências da natureza,
confirma essa crítica, ao definir o objeto da história e sua busca, não
pelo descobrimento de leis universais, mas, pelo reconhecimento da
importância do singular, do particular no passado. Ou seja, “a questão
da história afeta a humanidade não como um problema de conheci-
mento científico, mas como um problema da própria consciência da
vida” (RICKERT apud GADAMER, 2002, v.2, p. 39). Desprezando a
importância do conhecimento metafísico,
a escola histórica alemã, compreendendo-se como uma
ciência que tem por objeto o passado, logrou elevar a his-
tória [Geschichte] à categoria de uma ciência da reflexão,
fazendo uso pleno do duplo sentido da palavra Geschichte
(KOSELLECK, 2006, p. 59).
Ranke, Droysen e Dilthey também combateram o positivismo,
que, segundo este último mutilava a realidade histórica. Para Dilthey
a fundamentação do conhecimento histórico deveria ser encontrada
nos fatos da consciência. E desferiu um golpe mortal nos pensadores
que mais o influenciaram ao dizer que “nas veias do sujeito conhece-
dor construído por Locke, Hume e Kant não circula sangue de verda-
de, mas sim a seiva rarefeita da razão, na qualidade de mera atividade
intelectual” (DILTHEY apud AMARAL, 1994, p. 14). Para Dilthey o
que o historiador faz é compreender as objetivações de vida, pois
o conhecimento histórico seria o resultado do diálogo en-
tre o historiador em sua vivência (presente) e os outros
homens em seu tempo vivido (passado). O mundo his-
tórico é um mundo de expressões, de sinais, símbolos,
mensagens, gestos, ações, criações, artes, cores, formas,
posturas, produzidas por sujeitos vivos e agentes. Por se
expressarem de forma tão eloqüente, os homens se dão
a conhecer uns aos outros. Ao contrário da natureza, que
não é sujeito, mas coisa exterior, silenciosa e submetida a
leis (REIS, 2001, p. 117).
Daí a importância da hermenêutica, resultante da expressão e da com-
preensão das ações e expressões humanas. E foi na hermenêutica que
escola histórica alemã foi buscar critérios objetivos, racionais e com-
prováveis para a crítica das fontes. Como diz Dilthey,
a compreensão e a interpretação constituem o método
adequado para as ciências humanas. Todas as funções en-
72
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

contram-se integradas nesse método. Em si, ele contém


todas as verdades das ciências humanas. A interpretação
cria, em cada ponto, um mundo novo (DILTHEY apud
KOSELLECK, 2006, p. 162).
Mesmo na hermenêutica filosófica de Gadamer ou de Hei-
degger, a compreensão e as práticas hermenêuticas deixam de ser so-
mente uma doutrina ou método para se converterem numa teoria da
experiência humana (GADAMER, 2002, v. 2, p. 41). Dilthey nega,
portanto, a existência de um modelo idealizado de indivíduo, prefe-
rindo reconhecer indivíduos históricos. De acordo com Gadamer, a
escola histórica acabou induzindo a atividade hermenêutica a ler a his-
tória como se lê um livro, isto é, como algo que tem sentido até a sua
última letra.
A hermenêutica ajudou a evidenciar os condicionamentos
dos produtores de saber. Gervinus e Ranke pediam cuidados com os
sentidos, com as crenças e as hierarquias ou ainda a imersão na vida
política por parte dos historiadores. Dilthey, dialogando com Vico re-
petira que “a primeira condição de possibilidade da ciência da história
consiste em que eu mesmo sou um ser histórico, e que aquele que
investiga a história é o mesmo que a faz (DILTHEY apud GADA-
MER, 1998, v.1, p. 300). Ou seja, a razão só pode existir como real e
histórica, pois “não é a história que pertence a nós, mas nós que a ela
pertencemos” (TESTA, 2000, p. 55).
Quando o historiador vai em busca das manifestações his-
tóricas e pesquisa sobre o seu interior, ele pretende recons-
truir o particular a partir do todo, do qual ele emerge e,
inversamente, o todo a partir do particular, no qual ele se
expressa (GRONDIN, 2003, p. 143).
As vivências tomam consciência de si mesmas, ao reconhecer
o outro, de modo que o nexo histórico constitui um nexo de sentido
que supera o horizonte vivencial do indivíduo, exigindo a compreen-
são e a alteridade. O conceito de vivência representou para Dilthey a
base psicológica de sua hermenêutica, complementado pela distinção
entre a expressão e significado, afinal, não se conhece o passado por
meio de conceitos, mas através da consciência histórica, das vivências
históricas particulares. Citando Goethe, pondera:
uma pessoa que não pode ser apreendida claramente, por-
que a incongruência entre o seu anseio e as suas obras,
73
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

entre as suas exigências perante a vida e o seu poder para


realmente a determinar, se reflecte em tantos matizes que
o observador fica cego ( GOETHE apud DILTHEY,
2002, p. 129).
A discussão volta-se para o problema da consciência históri-
ca, tratado por Hegel e por Dilthey, como um processo de constante
crescimento da autoconsciência, como uma constante ampliação do
horizonte da vida (GADAMER, 2002, v.2, p. 43-44). Nesse sentido, a
consciência histórica representaria o fim da metafísica. Diz Gadamer:
escutar a tradição e situar-se nela é o caminho para a ver-
dade que se deve encontrar nas ciências do espírito. A pró-
pria crítica que fazemos à tradição, enquanto historiadores,
acaba servindo ao objetivo de localizar-nos na autêntica
tradição em que nos encontramos. O condicionamento
portanto, não prejudica o conhecimento histórico, sendo
um momento da própria verdade (GADAMER, 2002, v.
2, p. 53).
A consciência histórica torna-se evidente quando determina-
dos acontecimentos abalam a tradição, ou o fluir do tempo, como
disse Kant em relação à Revolução Francesa: “um acontecimento as-
sim não se esquece”, ou como algo “que permanece na consciência
do ser humano [...] subjaz ali a experiência de uma diferença e de uma
descontinuidade, de uma permanência em meio às mudanças inces-
santes” (GADAMER, 2002 v.2, p. 163). Assim, um pensamento ver-
dadeiramente histórico tem que ser capaz de pensar ao mesmo tempo
sua própria historicidade. Só então deixará de perseguir o fantasma de
um objeto histórico, pois, “o verdadeiro objeto histórico não é um ob-
jeto, mas é a unidade de um e de outro, uma relação na qual permane-
ce tanto a realidade da história como a realidade de um compreender
histórico” (apud TESTA, 2003, p. 67). Isso leva a desacreditar a crença
ingênua da objetividade do método histórico, ou ainda os limites do
historicismo, que procurava recuperar os conceitos e representação
de uma época, anulando-se os atuais, forçando uma passagem para a
objetividade histórica, quando importante seria estabelecer o diálogo
entre as tradições, tendo consciência da distância temporal e dos pré-
conceitos.
No que tange à consolidação de um método para a história,
passo decisivo foi dado por Droysen. Ele redigiu sua Historik entre
1858 e 1882, e intitulada Grundirß der Historik, cujos excertos circula-
74
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ram desde 1858. Nela apresenta uma original e inovadora reflexão em


torno das diferentes fases da operação historiográfica, divididas em
heurística, crítica, interpretação e exposição, operando uma verdadeira
inflexão em torno do método e do conhecimento histórico, propon-
do-se a “nada menos que combater a difusão de aporias e lacunas teó-
ricas da historiografia moderna” (DROYSEN, 2002, p. 17). Em nítida
cruzada contra o positivismo, distinguiu Methodik e Systematik, ou seja,
entre teoria da história e crítica documental, recusando-se a entender a
História somente como uma ciência de textos do passado e sua expo-
sição. A respeito da narrativa, tema hoje angular em muitas discussões
em torno da escrita da História, Droysen afirma que de acordo com
o material disponível e a qualidade das informações obtidas é possível
encontrar quatro tipos fundamentais: exposição investigativa, narrati-
va, didática e discursiva.
A contribuição de Droysen ao método histórico reside em
liberar o conceito de compreensão da indeterminação que havia ad-
quirido na obra de Ranke. A partir de Kant, mas, sobretudo, de Hum-
boldt, ele entende os indivíduos como unidades em relação constante,
cuja compreensão não deve ser buscada somente nos textos ou na
linguagem, mas, na realidade histórica. Os interesses individuais se
concatenariam em torno das forças que constituem em história os
poderes éticos, tendo em vista objetivos comuns. Ainda em torno do
método elaborou a fórmula para o conhecimento histórico que deve
“compreender investigando”.332 Naquela altura já percebia que o estu-
do do passado avança num movimento infinito. Ou seja,
Para poder conhecer, a investigação histórica somente
pode perguntar a outros, à tradição, a uma tradição sempre
nova, e perguntar-lhe sempre de novo. Sua resposta não
terá nunca, como o experimento, a univocidade do que é
visto por si mesmo (KOSELLECK; GADAMER, 1997,
p. 293).
Desse modo, a impossibilidade de leis em história justifica-se
pela mediação das tradições, em constante mudança. Em sua Historik,
Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas e Grondin
aponta que o problema metodológico do historicismo só se tornou
perceptível com esta obra (GRONDIN, 1999, p. 139). Para definir

3
DROYSEN ( p. 316 apud KOSELLECK; GADAMER, 1997, p.292.)
75
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

metodologicamente a história, Droysen recusou tanto o positivismo


quanto os métodos matemáticos das ciências naturais. Foi ainda o
primeiro a perceber que existe uma função orientadora da reflexão
teórica sobre a história na sua relação com a prática. De acordo com
Rüsen,
a teoria da história de Droysen parte da questão de saber
como se tem de estudar a história, como se deve começar,
o que se deve fazer, a fim de se tornar historiador. A res-
posta de Droysen é uma exposição sistemática do campo e
do método de nossa ciência. (RÜSEN, 2001, p. 24-25).
No manual de Langlois e Seignobos, Introdução aos estudos his-
tóricos, também torna-se patente a presença da hermenêutica. Logo
nas primeiras páginas eles tentam minimizar a influência de Droysen,
ao considerar que os únicos trabalhos publicados que “revelam um
esforço original para abordar os verdadeiros problemas” do método
histórico são os de Fresnoy e de Chladenius, dizendo que Droysen
seria apenas pesado e gongórico, (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946,
p. 09) e na seção II intitulada Crítica Interna, abordam o que denomi-
nam de crítica de interpretação ou hermenêutica. Afirmam que “analisar
um documento é discernir e isolar todas as idéias expressas pelo autor.
Reivindicam a supremacia do intérprete, pois para aqueles franceses, a
análise se reduz à crítica de interpretação [...] por dois graus: o sentido
literal e o sentido real” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 103). O
sentido literal deve ser buscado na filologia, pois segundo os autores
trata-se de uma operação lingüística; já o sentido real é uma operação
que envolve o compreender sobre o que denominam a língua do tempo,
em outras palavras, o sentido das expressões na época em que o tex-
to foi escrito, a língua do autor, ou seja, seu estilo e, por fim, o contexto
em que o texto foi produzido (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p.
109s). Ainda sobre a crítica interna, o procedimento utilizado por eles
fundamenta-se na dúvida cartesiana, que denominam de desconfiança
metódica. Ou seja, no questionamento da veracidade das informações
contidas na fonte. Evidentemente que tais proposições identificam-se
à hermenêutica psicologizante, ou romântica, algo bastante diferente
do que propõe Dilthey e mesmo Rickert.
Na Introdução Langlois e Seignobos, dizem que ao se junta-
rem inúmeros fatos incoerentes e pequeninos, o historiador precisa
classificá-los e que “para classificá-los a prática dos historiadores não
76
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

conseguiu estabelecer um método próprio; a história, nascida de um


gênero literário [o romance?], continua a ser a menos metódica das ci-
ências” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 150). E alertam que se
deveria evitar “à tentação de imitar o método das ciências biológicas”
(LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 152). Como se vê, a aproxi-
mação com as idéias de Dilthey, neste particular, são evidentes, muito
embora se distanciem das considerações de Droysen sobre a narrati-
va histórica, que para ele, é bastante distinta das narrativas ficcionais.
Afirmam que “em Resumo, até o ano de 1850, aproximadamente, a
história não passou, tanto para historiadores como para o público, de
um gênero literário” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 211). Em
seguida, corroborando tal constatação, eles consideram que uma obra
científica de história deveria ser constantemente refundida, revista e
atualizada.
Em suma, ao dirigirem seu olhar para o passado, os historia-
dores se deparam com documentos, retornando à questão dos senti-
dos e dos significados das palavras, da relação entre textos e contextos,
defrontando-se com a linguagem. Eis a importância e o espaço da
hermenêutica para a história, cujo marco foi a obra de Scheleierma-
cher, ao ampliar o horizonte hermenêutico, definindo seus pressupos-
tos fundamentais e concebendo a compreensão como uma possibili-
dade concreta de se conhecer todas dimensões da vida humana. Seu
principal discípulo, Dilthey, enfatizou a compreensão da historicidade
homem e da realidade:
Dilthey, seguindo o exemplo de Scheleiermacher, tornou o
problema da compreensão o ponto central de uma filosofia
das ciências do espírito e atribuiu à hermenêutica a tarefa
de indicar as condições de possibilidade de conhecimento
do nexo do mundo histórico e de encontrar os meios de
sua concretização (AMARAL, 1994, p. 10).

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TESTA, Edmárcio. Hermenêutica filosófica e história. Passo Fundo: EdiU-
PF, 2004.

Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em dezembro


2007.

79
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

HISTÓRIA E MEMÓRIA: DESAFIOS DE UMA


RELAÇÃO TEÓRICA
33
Márcia Pereira dos Santos1

Resumo: Partindo de algumas discus- Abstract: Starting from some spe-


sões pontuais sobre memória, o artigo cific discussions about memory
postula a necessidade de que a histó- this paper claims a necessity that
ria, em sua relação com a memória, the history, in its relationship with
seja discutida a partir de um viés polí- memory, be discussed from a politic
tico de gestão do passado e considere bias of past management and con-
os diferentes modos que determina- sider about the differents ways de-
dos sujeitos, ou grupos sociais, con- termined citizens, or social groups,
cebem, expressam e reivindicam suas conceive, express and reclaim their
memórias. Para o desenvolvimento de memories. For the development of
tal discussão, optou-se pela reflexão such discussion, it was opted to fol-
sobre a memória tal como aparece em low the reflection about the memo-
diferentes pensamentos e formas nar- ry as it apears in different thoughts
rativas. e narrative forms.
Palavras-chave: história, memória, Key-words: history, memory, lit-
literatura, dever de memória, Carmo erature, memory duty, Carmo Ber-
Bernardes. nardes.
Do alto da Macambira despejo minha alma pelos te-
lhados de Goiânia e quanta angústia me abafa quan-
do admito as tragédias ocultas que há por aí. Tanta
coisa boa que os homens fizeram e tanta miséria que
uns tantos maus fazem.
Carmo Bernardes

A relação entre história e memória no ofício do historiador


como desafio teórico torna-se menos uma preocupação intelectual
que uma necessidade dentro da escrita da história, especialmente no
que concerne às gestões políticas da memória e do passado (ANSART,
2001). São muitas as tentativas de historiadores, em diversos campos
do saber histórico, de delimitar fronteiras, aproximações e entrecruza-
mentos entre as concepções de história e memória que na atualidade
têm definido essas formas de interpelação e usos do passado.
No Brasil, o lançamento de coletâneas de artigos como Memó-

1
Doutora em História pela UNESP/Franca. É professora do Curso de História do
Campus de Catalão – UFG, desde 1998. Tem desenvolvido e orientado pesquisas nas
áreas de história da cultura, história e memória e história política. E-mail: marciasan-
toss@gmail.com
81
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ria e ressentimento: indagações sobre uma questão sensível (BRESCIA-


NI; NAXARA, 2001); Razão e paixão na política (SEIXAS et al, 2002);
História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes
(SELIGMAN-SILVA, 2004); Sobre a humilhação: sentimentos, gestos,
palavras (MARSON; NAXARA, 2005), entre outros, marcam os ali-
cerces em que historiadores e outros pensadores que se ocupam do
passado têm assentado suas pesquisas sobre as múltiplas memórias
que compõem a sociedade e os grupos sociais. Essas buscas suscitam
ainda investidas de pesquisa que retomam os mais variados pensamen-
tos de sociólogos (SEIXAS, 2001a), filósofos, (GAGNEBIN, 2005),
e sobre a literatura – como se mostrará com o caso do literato goiano
Carmo Bernardes – (SANTOS, 2003),234 que recolocam no âmbito da
historiografia a necessidade de se questionar os usos do passado e da
memória e as conceituações que até então têm sido tomadas como
pressupostos essenciais nas discussões da história que têm a memória
como mote. Inspirados em autores como Jacques Le Goff (1994), ou
mesmo Paul Ricoeur (2000), diversas são as tentativas de formular e
reformular problemas que possam ajudar a pensar as implicações do
passado no presente, mas também nas disposições de futuros que os
grupos sociais elegem suporte de suas concepções de mundo e ações.
Em um caminho oposto às teses que postulam um fim da
memória (NORA, 1993), tal como a mesma seria em termos de uma
verdadeira memória, e advogando a defesa das teses que retomam a
memória como grande motivadora de exercícios políticos atuais (SEI-
XAS, 2001b), este artigo problematizará as noções de memória, tal
como a mesmas se apresentam na historiografia.
Para isso é preciso discutir o papel político que tais noções as-
sumem na prática historiográfica, especialmente, na prática cotidiana
de grupos que se colocam como necessitados de memória, postulando
direitos e deveres de memória. Uma memória que, especialmente nes-
te início de século XXI, se apresenta social, política e culturalmente
efervescente e se torna um desafio a mais para uma historiografia que
já há tempo reconheceu seu trabalho para com o passado como sendo,
também, essa reflexão sobre o presente e suas demandas que clamam

2
No momento em que esse artigo foi escrito a pesquisa sobre a obra de Carmo
Bernardes estava em desenvolvimento. No momento de sua publicação, a pesquisa já
havia sido finalizada e resultou na tese de doutoramento SANTOS (2007).
82
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

respostas e, impondo permanências de memórias, questiona gestões e


tentativas de cristalizações do passado.
A história, tal como se defende atualmente por um número
significativo de historiadores, se define menos por um estudo do pas-
sado que por uma reflexão cada vez mais dinâmica sobre as relações
entre passado e presente. A veracidade buscada não se vale mais de
uma busca de um passado imutável, mas sim aquela que se forja na
relação dinâmica entre o que se escreve/descreve/narra e o presente
de quem o faz. Não se busca mais uma veracidade inquestionável,
mas antes uma compreensão de como o passado, aquele vivido e so-
brevivido em documentos e monumentos (LE GOFF, 1994), rastros
(RICOEUR, 1997), sinais (GINZBURG, 1989) e mesmo lugares de
memória (NORA, 1993) se mostram ainda como espaços privilegia-
dos de uma compreensão do presente. Nesse caso, o presente pode
ser lido como tempo que se coloca ao historiador como processo,
como dinâmica que a todo o momento sente, dentro de si, o defla-
grar de um passado que convida à pesquisa porque exige respostas
ao presente. Um passado que deixa emergir ressurgências de si, que
impõem o repensar sobre memórias constituídas e vividas com uma
intensidade política provocadora de ações e reações de grupos étnicos,
religiosos, sexuais e acadêmicos nas suas defesas de direitos e deveres
de memória.
Nesse contexto, as reflexões do sociólogo Maurice Halbwa-
chs, cujo livro Memória coletiva foi recentemente relançado no Brasil
(HALBWACHS, 2006), e que durante muito tempo foi o grande esteio
das discussões que a historiografia travou sobre o tema da memória,
passa por uma revisitação teórica que visa menos uma refutação das
teses do autor que uma reatualização de conceitos, como memória
coletiva e memória individual, que ainda hoje permanecem como mo-
dalidades de compreensão dos processos de memória.
Em um curto e incisivo artigo, Jacy A. Seixas (2001a, p. 97)
reflete sobre a sociologia da memória proposta por Halbwachs cha-
mando a atenção para a “legitimidade de sua tese central, a de que a
memória significa fundamentalmente reconstruir o passado a partir
dos quadros sociais do presente”. Ao identificar essa perspectiva hal-
bwachiana de memória, a autora se propõe a retomar esse pensamento
à luz de outros saberes como a literatura de Proust e a filosofia de
Bergson, para se situar em um
83
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

pólo oposto à noção de memória tal como elaborada por


Halbwachs a memória se articula como possibilidade de
fazer ‘reviver’ o passado, fazê-lo ressurgir de uma aparente
‘não lugar’ para assombrar ou fecundar o presente, de uma
memória coletiva que possa de alguma forma, resgatar o
que não é mais imediato e socialmente articulado e repre-
sentado (SEIXAS, 2001a, p. 95).
Ou seja, nessa interpretação, para Halbwachs, a memória co-
letiva e a memória individual se elaboram em um exercício racionali-
zante e voluntário de reconstrução do passado. Esse autor, como disse
Seixas, acredita que são os quadros sociais que permitem a lembrança
à medida que o grupo social sobrevive e se articula como mantenedor
de uma dada memória. Para a autora, muito mais que reconstruir o
passado esses grupos deixam-no emergir, tornando-os esteios de lu-
tas políticas referendadas por memórias que, reatualizadas, pautam as
defesas de identidade e de cidadania. Isso porque mais que mantene-
dores de memória, como o queria Halbwachs, esses variados grupos
sejam de que lutas se formem – étnicas, religiosas, culturais, por in-
dependência política, defesas de gênero – têm na memória um ponto
de apoio e justificativa de suas ações. Lidam afetivamente com uma
memória que irrompe trazendo consigo o passado pleno de sentimen-
tos e afetos:
São, em larga medida, esses grupos sociais, tão heterogê-
neos quanto nos é possível pensar, os sujeitos do boom de
memória que hoje presenciamos, os sujeitos dos direitos e
deveres de memória contemporâneos. Fenômeno desco-
nhecido de Halbwachs e, entretanto, admiravelmente intu-
ído por ele quando nos fala da tendência à pluralidade das
memórias coletivas, da diversidade das memórias sociais
(SEIXAS, 2001a, p. 96).
Questão que nos impõe justamente pensar a memória se ar-
ticulando fora dos quadros da história escrita. O que para Seixas se
apresenta como “os deveres e direitos de memória dos grupos socais”.
A autora diz que a permanente expressividade da memória nos meios
sociais tem uma feição política que mostra as formas com que os su-
jeitos se posicionam em relação à realidade, interpretando-a e agindo
sobre a mesma. É nesse ponto que a memória assume uma “função
política de ser entendida como defesa de si e dos outros nos quais o
sujeito se reconhece” (SEIXAS, 2002, p. 61-62). Questão que pode
84
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ser problematizada nessa autora a partir de uma filosofia do sujeito,


proposta por autores como Paul Ricoeur, especialmente no livro O si
mesmo como um outro (1991), quando este defende para o ato de narrar
a capacidade de permitir ao sujeito a elaboração de uma identidade
de si mesmo, sendo possível dizer que é a memória narrada a medida
dessa identidade que se torna, por seu lado, defende Ricoeur, uma
identidade narrativa na qual compreender-se a si mesmo é também um
fazer-se compreender pelo outro através do ato narrativo.
Nesse sentido, o passado emerge quando o hoje o permite.
E isso se dando de diversas formas, segundo diferentes necessidades
de quem recorre a esse passado. O ato de memória reveste-se assim
de uma intencionalidade que transcende a perspectiva de “conhecer o
passado”, reconstruí-lo, propondo-se, nesse caso, a revivê-lo, na sua
passionalidade, na capacidade de deixar vir à tona as memórias, com
toda a carga afetiva que elas possuem e que irá, também, delimitar
ações e reações necessárias ao exercício político, seja ele individual ou
coletivo, marcando identidades e lutas.
Enquanto re-atualizar do passado (SEIXAS, 2001b, p. 42) essa
memória vale-se de uma sensibilidade que conduz a uma questão per-
tinente ao diálogo entre história e memória: o alcance das problemáti-
cas do historiador em relação ao caráter afetivo e sensível da memória,
presente no meio social, e que como se disse, começa a ser questão
presente nas atuais discussões históricas. Há, assim, uma implicação
metodológica nessa relação que precisa ser assumida, pois que vem
ao encontro da própria forma com que se lida com o conhecimento
histórico e a produção do mesmo.
A historiografia gravitou, nas últimas quatro décadas, em tor-
no de discussões que se pautaram na percepção do político e do cul-
tural como instâncias fluidas, dinâmicas que intervêm na história e nas
ações do homem no seu tempo e espaço. Assim, a preocupação com
a relação história e memória, aqui apresentada sustenta-se dentro das
discussões que referendam a memória como potencializadora de ações
humanas, que pode ser alcançada como fonte para a história, mas que
em seus mecanismos de existência e expressão exigem do historiador
um olhar sensível que a perceba como passado (re) atualizado, mas
também como (ativa) ação que se dá no presente, com feições de par-
ticipação social e política múltiplas. O que envolve pensar a memória
85
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

como exercício político, na medida em que se concebe a política como


concernente a tudo que se refere à vida individual (REMOND, 1999)
e, mesmo coletiva, de uma sociedade.
Sendo assim, algumas reflexões têm chamado a atenção ao
apresentar, para os historiadores, exercícios de análise da questão da
memória em sua relação com a história.
Em texto inicial da coletânea Memória e (res)sentimento (BRES-
CIANI; NAXARA, 2001), Pierre Ansart (2001, p. 15) alinhava história,
memória e ressentimento, convidando os historiadores a discutirem a
história, especialmente a política, levando em consideração os vários
aspectos “das relações entre os afetos e o político, entre os sujeitos
individuais em suas afetividades e as práticas sociais e políticas”.
Expressam-se, pois, nos exercícios de memórias, as afetivida-
des e subjetivações dos sujeitos nas suas mais diferentes ações. Porque
se se lêem as memórias como propostas e respostas políticas coloca-
das ao presente, a investida de pesquisa histórica necessita perceber
que o encontro do passado não é meramente um exercício de “recupe-
ração” do mesmo. O passado ganha uma efervescência que responde
a desafios não dele em si, mas do tempo presente, pontuado por dis-
putas colocadas ao sujeito pelo meio social. Daí que nessa abordagem
da memória seu caráter político-afetivo não pode ser descartado, mas
sim apreciado como possibilidade de expressão de subjetividades e
sensibilidades que têm importância nas ações dos sujeitos e, claro, na
história passível de ser construída a partir da vivência dos mesmos.
Assim, compartilha-se a proposição de Jeanne Marie Gagnebin quan-
do esta diz que,
a rememoração também significa uma atenção precisa ao
presente, particularmente a estas estranhas ressurgências
do passado no presente, pois não se trata somente de não
se esquecer do passado, mas também de agir sobre o pre-
sente. A fidelidade ao passado não sendo um fim em si
mesmo, visa à transformação do presente (GAGNEBIN,
2001, p. 91).
Nesse caso, a temporalidade a ser considerada pelo historia-
dor no seu trabalho com a memória ganha um novo sentido, pois o
presente não é apenas o tempo que da lembrança, dotando-a de um
sentido, é também o tempo a ser alterado. O ato de lembrar é um pro-
cesso de fazer-se aparecer em cena, ou mesmo, fazer-se agir em cena.
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Nessa ação a re-elaboração de si mesmo e do passado torna-se essen-


cialmente o substrato da narrativa de quem se propõe a contar o pas-
sado, seja como ficção, rememoração ou como autobiografia. Nesse
caso estabelecesse-se um vínculo especial entre lembrar, contar e agir,
nascendo daí não apenas uma narrativa ordenadora do passado, mas
que, dotando-o de sentido, se torna uma força que o coloca também
nas disputas de memória do presente, que chamam os sujeitos à ação.
Jacques Le Goff (1994) reclama para a memória esse po-
der de ação em busca de mudança. Um poder que, podemos dizer,
é politicamente consciente de seu fazer social, de seu papel. Assim,
essa interpretação de memória dota-a de uma expressividade política
convergente para a cultura do sujeito colocado em discussão e, ainda,
para a defesa de si e de seu grupo, sem, no entanto, abrir mão do que
de bom essa transformação permitiu.
As implicações de deveres e direitos de memória recolocam,
pois, a necessidade de problematizar as noções de memória coletiva
e memória individual à luz daquilo que grupos sociais e sujeitos têm
reivindicado como sendo suas experiências passadas que constituem
suas memórias.
É nesse ponto que a importância de um filósofo marxista da
envergadura de Benjamin se faz essencial na tentativa de repensar a ar-
ticulação entre memória e história. Partindo de ensaios benjaminianos
como “O Narrador” e “Experiência e Pobreza” e, mesmo, de suas “Te-
ses Sobre o Conceito de História” (1994), é possível, nesse momento,
pensarmos como quem lembra se situa em um certo mundo de cultura
que se transforma e que lhe dá outras demandas políticas para sua vi-
vência e mesmo para quem ali se coloca como historiador. Nesse caso, e
partindo da atualíssima reflexão de Jeanne Marie Gagnebin, sobre Ben-
jamin (2004), que se propõe a questionar o que é a experiência vivida
e como a mesma ao ser rememorada e reelaborada em uma narração,
pode ser compreendida como um ato que é ético por que impõe refletir
sobre identidades e ações, mas que é também, na acepção benjaminia-
na de narrativa tradicional, moral, pois permite-se ser a expressão de
um aconselhamento, que nasce de um pedido de conselho e se realiza
valendo-se da experiência de vida de quem o dá. Há nesse sentido um
entrelaçamento entre memória narrada / ação presente necessária. O
narrador tem noção, nesse caso, de sua dependência da memória para
exercício de sua função de conselheiro de determinado grupo.
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Para Gagnebin, Benjamin interligou a história e a narração, e


a partir daí a memória e o esquecimento – esse ‘outro’ da memória,
tão necessário às reflexões da historiografia quanto ela mesma – como
partes de um jogo no qual, homens e mulheres, se colocam, no mun-
do, dentro dos quadros de enfrentamento político. Se o “inimigo não
tem cessado de vencer”, para Benjamin, é nesse processo de relação
entre passado e presente, e nas suas formas de expressão, sejam nas
velhas narrativas orais, seja em literatura, como as obras de Proust e
Kafka, que é possível combatê-lo.
Gagnebin lança-se ao desafio de percorrer a obra de Benja-
min como uma construção filosófica e, ao mesmo tempo, como mani-
festo de uma visão de mundo que propõe a transformação radical da
sociedade capitalista. Diante disso a autora faz a tentativa de decifrar
conceitualmente a obra de Benjamin de forma a permitir a compre-
ensão dos caminhos percorridos pelo filósofo para uma proposta de
história que, rompendo com a perspectiva da história como sendo
aquela da classe dominante, admite que o próprio passado também
seja recontado segundo as demandas dos diferenciados grupos sociais
e do próprio historiador. O que permite ainda que as noções de histó-
ria e, o que nos interessa, de memória, sejam retomadas como partes
desses embates, pois “se o inimigo vencer, nem os mortos estarão a
salvo”. Isso porque segundo a autora:
Hoje ainda, literatura e história enraízam-se no cuidado
com o lembrar, seja para tentar construir um passado que
nos escapa seja para “resguardar alguma coisa da morte”
(Gide) dentro da nossa frágil existência humana. Se pode-
mos ler as histórias que a humanidade conta a si mesma
como o fluxo constitutivo da memória e, portanto, de sua
identidade, nem por isso o próprio movimento da narra-
ção deixa de ser atravessado, de maneira geralmente mais
subterrânea, pelo fluxo do esquecimento; esquecimento
que seria não só uma falha, um “branco” de memória, mas
também uma atividade que apaga, renuncia, recorta, opõe
ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a
inscreve no âmago da narração. (GAGNEBIN, 2004, p.
03).
Ou seja, o contar o passado é um processo no qual a me-
mória que emerge não pode prescindir do seu par, o esquecimento,
e a ligação entre um e outro é ditada pela necessidade que o presente
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estabelece de reviver/ reatualizar o passado e, dessa forma, lidar com


um presente conflituoso. Essa perspectiva conduz a autora a refletir
sobre Benjamin e seus conceitos sobre narração e memória.
Para Gagnebin, sobressai à própria noção de historiografia
de Benjamin, que propõe uma escrita da história que rompa com a
forma tradicional de interpelação do passado. Para Benjamin, segundo
Gagnebin, a história visa não apenas à construção, mas também à des-
truição: destruição da história dominante que aniquila as classes não
dominantes em seu passado e em sua memória. Isso implicando em
que o retorno ao passado na obra benjaminiana se dá principalmente
em função do presente; um presente que clama pelo passado não só
como elucidação, mas como salvação e redenção de si mesmo.
O presente – presente da modernidade – é, portanto, aquele no
qual nem a morte está a salvo e aquele que exige uma firmeza diante do
sofrimento e da perda. Ao interpretar a modernidade como a eterna bus-
ca do novo, Benjamin lança mão das imagens de Baudelaire para mostrar
que esse mundo moderno na sua busca de destruir o mundo anterior
se constrói com novos signos e novas alegorias de si mesmo. É, nesse
sentido, que Gagnebin descobre em Benjamin não uma pura melancolia
diante da morte ou da perda, mas sim uma esperança de redenção, politi-
camente defendida como medida de interpretação do passado e, portan-
to, mediadora da memória e, mesmo do esquecimento. Porque, segundo
a autora, para Benjamin, em uma clara alusão à influência de Nietzsche
sobre o pensamento do filósofo, também o esquecimento é essencial
ao homem individualmente ou em sociedade. Ou seja, para Benjamin o
passado tem uma função na vida que é política, mas que é também de
sobrevivência. E aqui entra fundamentalmente o papel da experiência de
vida de quem lembra para aquele que reflete sobre o passado.
Benjamin ocupa-se não somente de lamentar a perda da expe-
riência, mas preocupa-se em vê-la como parte do que podia ser narra-
do e convertido em sabedoria / conselho, que guiasse a vida de quem
o recebia como uma dádiva. Nesse caso, para Gagnebin a maximiza-
ção da violência que eventos como a Shoah mostram – que Benjamin
já vislumbrava os significados finais antes de seu suicídio – implicam
em sofrimentos inenarráveis, ou que, se narrados, deflagram uma dor
quase insuportável sendo, nesse caso, o esquecimento tão fundamen-
tal quanto o lembrar, o primeiro para a sobrevivência, o segundo para
não descuidar da luta contra o sofrimento.
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A autora expõe, portanto, o pensamento de Benjamin à luz de


uma percepção política da história, da memória e da narração. Pers-
pectiva essa que visa menos dar ao passado um sentido, que perceber
que esse mesmo passado adquire sentidos diversos à medida que é
tomado como experiência e como ponto de partida do próprio pre-
sente. Há um alerta em Walter Benjamin não só em relação ao perigo
do totalitarismo, como em relação ao perigo que a gestão do passado
– enquanto história, mas enquanto, também, memória e esquecimento
– podem significar no meio da sociedade.
Essa proposta interpretativa da obra benjaminiana ao mesmo
tempo em que é uma defesa da narrativa, histórica ou não, como me-
canismo de desconstrução / construção de poderes e mundos dados
é, também, uma obra política de percepção do homem como ser cons-
trutor de seu passado e de seu presente.
Nesse caso, a memória não se exime da sua dimensão políti-
ca de luta, enquanto dever de lembrar para evitar a dor (MARSON;
NAXARA, 2006), mas, principalmente, do direito que grupos alijados
das chamadas memórias coletivas nas diversas sociedades possuem.
É claro, nesse caso, que há uma dimensão negativa do esquecimento,
pois a conclamação do lembrar é impedir que o esquecimento se torne
também instrumento de poder.
Isso muitas vezes se expressa nas iniciativas de indivíduos e
grupos em efetivarem ações que visam fazer permanecer no meio so-
cial suas memórias. Sem alongar a discussão sobre as múltiplas for-
mas de as memórias se mostrarem tomar-se-á aqui o caso da literatura
como uma dessas possibilidades de a memória emergir na sociedade.
Uma obra como a de Carmo Bernardes (1915 – 1996) pode ajudar
a refletir como a relação literatura / memória auxilia a compreender
como historicamente um sujeito e, claro, sua sociedade, estabeleceram
relações entre seu presente e seu passado.
Mineiro de nascimento e goiano de coração, como dizia, haja
vista ter se mudado para Goiás com apenas cinco anos de idade em
1920, Bernardes inicia sua produção literária nos anos 1960. Sua vida
em Goiás foi marcada por diversas atividades ligadas ao trabalho em
fazenda, assim que chega a Formosa - GO. Ajudante do pai carpintei-
ro, cuja principal atividade é fazer carros de boi, Bernardes vai simul-
taneamente aprendendo a escrever, primeiramente com a mãe e, em
seguida, em uma escolinha do lugar. Muda-se mais tarde para Anápo-
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lis, onde experimentará o exercício de inúmeras outras atividades de


trabalho até que entra nos anos de 1940 para o jornalismo. No fim dos
anos 1950 transfere-se para Goiânia e torna-se um apaixonado pela
cidade sem, no entanto, desvincular-se do universo rural, a seu ver,
espaço que lhe permitia o encontro consigo mesmo ao encontrar-se
com a natureza.
Quando começa a publicar seus primeiros escritos literários
Bernardes respira a atmosfera urbana de Goiânia. O autor vivencia um
momento especialmente caro à sua própria maneira de auto-definir-se
como um caipira. Acostumado a uma vida rural, de trabalhos ligados
à natureza e, ou, mais especificamente ao mundo dos homens que
têm o campo como espaço de vida, ele experimenta uma sensação
de estranhamento quando se vê na cidade, desempenhando trabalhos
inusitados dentro do serviço público e da imprensa goiana, longe da
mata, dos bichos e da sua gente. É essa nova maneira de viver que dá
ao autor o espaço material e afetivo necessário para a estruturação de
sua obra. Vê um mundo no qual o homem rural não resiste à sedução
da modernidade, a mistura entre valores, considerados antigos, e a for-
ça de uma “novidade”, que materialmente assume a forma de novos
códigos de comunicação, novas técnicas e máquinas e, afetivamente,
novas relações sociais, novas formas de valoração de si e dos outros,
novas formas de usufruir e aproveitar dos recursos naturais.
O matuto que se encontrava com os vizinhos em festas de
santos, pagodes e mutirões, empreitadas de trabalho nas roças, em ca-
çadas, em passeios pelas matas, viu-se, na cidade, imerso no mundo de
novas relações. Postando-se como observador nas rodas de conversas
das esquinas ou bares de sua Macambira, entre uma pinga e outra,
Bernardes foi criando formas de comparação entre o velho e o novo,
entre o ambiente rural do qual saíra e o novo contexto urbano no
qual mergulhara. E, nesse caso, sua maneira de discutir seu presente é,
também, o encontro do passado, elaborando, com isso, formas de ex-
pressar uma avaliação do presente por suas memórias, especialmente
através da escrita de crônicas, (BERNARDES, 1968 e 1969). O que
permite a Bernardes observar o mundo e contá-lo. É de sua memória,
desse espaço múltiplo de experiências e afetos, que toma de emprésti-
mo modos de ver o mundo que lhe dão, por seu lado, a possibilidade
de crítica e de posicionamento político em relação ao presente e, claro,
ao passado.
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Problematizar a obra de Bernardes conduz a questões bastan-


te instigantes no intuito de compreender o universo criativo do autor.
Nesse caso, sua obra marca o que se pode dizer uma defesa do mundo
rural e, principalmente, defesa daqueles excluídos da sociedade, seja
o próprio homem seja o mundo natural destruído continuamente. O
autor vê a si mesmo como uma agente social, cuja missão em defesa
do passado, exposta em sua luta pelo meio ambiente, é um exercício
contínuo de defesa do homem. Ao contar dos bichos, dos rios, das
matas e da gente do Cerrado, não apenas em suas crônicas, mas em
contos, romances e em sua autobiografia Bernardes respira o passado
para contrapor-se a um presente destruidor de suas referências rurais,
buscando, assim, legar esse passado como um tesouro aos homens do
futuro.
Um tesouro que justifica, também, sua fidelidade ao mundo
que o formou e sua linguagem é uma das expressões desse engaja-
mento político a favor dos seus. É, assim, que é preciso entender que
noção de memória rege a literatura bernardeana:
Aprendi também uma nova linguagem, que mais tarde soube
ser a oficial, uma algaravia vulgaríssima que todo o mundo
letrado fala. Embirrei e não renunciei, nem mesmo a poder
de palmatórias, o repertório oral que dona Sinhana me ensi-
nou. [...] Quando é preciso, tempero a língua no falar oficial,
mas, particularmente, só falo e conto meus casos conforme
a velha me ensinou. Sou filho da brabeza, é bobagem eu
querer negar minha raça: e demais a mais, se os meus casos
fossem contados com as palavras que andam por aí girando
nos jornais e noutros papéis adotados pelo mundo oficial,
seriam uma lavagem muito enxabida do que é.

Bem: dedico VIDA MUNDO à dona Ana Carolina da Cos-


ta _ dona Sinhana, minha mãe, porque foi ela que me ensi-
nou a falar como falo (BERNADES, 1966, Dedicatória).
A obra de Bernardes pode ser compreendida como um exer-
cício de memória que tem como dever fazer o passado sempre presen-
te, impedindo-o de ser esquecido em função do futuro. Esse dever de
memória assumido por Carmo Bernardes implicará na sua tentativa de
falar ao povo a partir da fala desse povo e de tudo aquilo que considera
fundamental na vida do mesmo. Dever esse que deve ser entendido
também como o que direciona as escolhas literárias de Bernardes – em
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OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

seu modo de escrita elaborado a partir de uma escrita oralizada; temas;


tramas; e personagens – conduzindo-o, por esse lado, a certa ortodoxia
quanto a seu modo de interpretar o mundo e dá-lo a ler. Mais que indí-
cio de um “regionalismo” ou “localismo”, tomamos os temas, a forma
de escrita, os personagens bernardeanos, também como expressões de
sua fidelidade ao passado e, ele mesmo se justifica dizendo:
Abro o relato deixando que só tenho a dar satisfação a mim
e a mais ninguém. Enquanto eu for me divertindo e tornan-
do a viver aqueles dias, irei espichando a história. Faço de
conta que o mundo é todo meu, posso criar e seguir as mi-
nhas próprias regras. Não tomo conhecimento da existência
de críticos nem dos gramáticos nem dos políticos. Sendo
necessário ir e voltar muitas vezes no mesmo assunto, faço.
Quando tiver vontade de usar um termo dos que minha
mãe me ensinou usarei. Sendo do meu agrado encher dez
páginas a respeito de miudezas que só a mim interessam,
encho. É como eu digo: a não ser com liberdade não paga a
pena escrever, porque a paga de quem escreve é a diversão, e
que graça tem diversão com um mundo de fiscais vigiando?
(BERNARDES, 1969, p. 233).
Dessa forma, Bernardes torna-se um escritor do mundo que
percebe em esfacelamento, tornando sua obra um lugar de memória,
cuja existência implica fazer permanecer sempre vivo o mundo que
lhe parecia fadado ao desaparecimento. No entanto, é preciso ter cla-
ro, que esse lugar de memória que se torna a obra de Bernardes quer
reavivar o passado e não apenas fixá-lo em um lugar. Isso significa que
para o autor é necessário difundir sua visão de mundo, concebendo,
dessa forma, a memória expressa em suas obras como um modo de
ação social.
Para Bernardes, o lembrar é “menos um conhecer o passa-
do que agir no presente” (SEIXAS, 2001, p. 53). Nesse caso, há um
engajamento social e político que a obra de Bernardes expõe e que,
muitas vezes, não é considerado por comentadores da obra, mas que,
aqui se defende, pode explicar as escolhas feitas por esse autor no seu
universo criativo. Em uma crônica do livro “Quadra da Cheia: textos
de Goiás”, o autor, criticando as “lorotas” que se escrevia sobre os
homens do campo, disse:
Lia muito e ficava danado da vida quando pegava uma des-
sas escritas contando causos de nós das roças. Diziam de
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cachorro “acuando veado”; [...] E o palavreado? Tudo es-


tropeado, fazendo questão de ficar longe, com escrúpulo de
misturar, como se nós, os caipiras, fôssemos uma corte de
macutenas ou uns bichos que não falam. [...] Vim com o
ideal de combater isso. Mostrar que nós somos os nacionais
legítimos e não nos conformamos em sermos tratados de
resto (BERNARDES, 1995, p. 60).
Esse literato-memória que se tornou Bernardes permite a vi-
sualização da dimensão política que muitos literatos dão a suas obras e
que referenda percepções de mundo nem sempre afeitas somente a ex-
perimentos estético-literários. Consciente de suas escolhas Bernardes
se justificava dizendo que seu trabalho era, antes de tudo, impedir que
o mundo que fora o de seus pais fosse menosprezado e desaparecesse.
Nesse caso, assumia uma postura de narrador, na qual contar o passa-
do, narrá-lo, era também um momento de, no presente, defender seu
mundo e aconselhar. Conselho este que não derivava de um pedido de
outrem, mas tão somente da forma de o autor dotar sua literatura de
uma ação social. Isso mostra o posicionamento político assumido pelo
literato dentro da cultura e de mundo, nos quais se colocara ao mesmo
tempo como sábio e como observador. Sua literatura assume, assim,
essa feição de memória-ação: de um lado defesa de uma memória que
vê em desaparecimento; de outro, defesa do presente no sentido da
denúncia da degradação do homem e do meio ambiente.
Há de se tomar a literatura bernardeana como espaço perti-
nente em que as discussões sobre memória e história, aliadas à discus-
são sobre literatura, podem ser desenvolvidas e se tornam meios de
pensar a prática historiográfica. O debate atual sobre as relações entre
história, memória e literatura já não busca mais responder se é ou não
lícito e coerente tomar essas três formas de lidar com o passado como
possibilidades de se fazer história. O passado, essa pedra de toque
do historiador, subsiste, mas não é em momento algum acessado de
forma completa. Ele estará condicionado a ser encontrado por partes,
por resquícios que muitas vezes são de uma ordem estética e criativa
bem diversa daquela que se propõe a história, mas nem por isso me-
nos instigante.
Portanto, retomar as relações entre história e memória no
contexto de uma historiografia atual é também, como se viu, a oportu-
nidade de pensar memórias e histórias nas suas dimensões políticas e
94
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afetivas. Memórias individuais e coletivas são em grande medida espa-


ços de homens e grupos se encontrarem e se portarem como sujeitos
da história. Suas ações definindo o lugar que ocupam no mundo no
qual estão e que, a todo o momento, lhes cria demandas políticas. Ao
historiador cabe também assumir seu posicionamento social e políti-
co, pois à medida que a historiografia é do mesmo modo criadora de
memórias, seu papel na sociedade não é inócuo, porque como disse
Benjamin: “O dom de despertar no passado a centelha de esperança
é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os
mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo
não tem cessado de vencer”. (BENJAMIN, 1994, p. 225).

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em dezem-


bro 207.

97
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

EM BUSCA DA ESPECIFICIDADE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA
35
Márcio Santos de Santana1

Resumo: Este artigo analisa as con- Abstract: This article analyzes the
cepções de história, bem como a es- conceptions of history, as well as
pecificidade atribuída à disciplina, por the specificity attributed to disci-
três autores em particular: Robin G. pline, for three authors in particu-
Collingwood, Oswald Spengler e Ar- lar: Robin G. Collingwood, Oswald
nold Toynbee. Uma preocupação é Spengler and Arnold Toynbee. Both
comum a eles: delimitar o campo da have in common the concern of
história e, por extensão, do historia- delimiting the realm of history and
dor, frente às ciências da natureza. of the historian, within sciences of
Palavras-chave: teoria da história, the nature.
história, filosofia, ciências humanas. Key-words: theory of History, his-
tory, philosophy, human sciences.

A evolução da pesquisa histórica e a consolidação de um


campo profissionalizado de atuação tornaram necessários a análise e
a reflexão do trabalho dos historiadores, do produto dele derivado e,
em última análise, da existência ou não de legitimidade científica no
mesmo. Essa tríade justifica a existência da metodologia, da história da
historiografia e da teoria da história.
A teoria da história é uma das áreas de maior dificuldade de
definição, estando associada à epistemologia. Nesse sentido, a teoria
da história implica em “analisar o que sempre foi a base do pensa-
mento histórico em sua versão científica e que, sem a explicitação e
a explicação por ela oferecidas, nunca passaria de pressupostos e de
fundamentos implícitos” (RÜSEN, 2001, p. 14). Isso conduz à análise
de aspectos tão variados quanto a validade ou não dos procedimentos
explicativos usados pelo historiador ou mesmo ao exame minucioso
de uma teoria de história complexa como o positivismo ou o marxis-
mo.
A história, desde que se tornou autônoma frente à filosofia e

1
Doutorando em História Econômica na USP, onde prepara tese sobre o confronto
entre o liberalismo, o comunismo e o conservadorismo pela elaboração e consolida-
ção de um projeto para a juventude brasileira, sendo orientado pela profª Drª Esme-
ralda Blanco Bolsonaro Moura. E-mail: marcio-sant@hotmail.com
99
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

à literatura em meados do século XIX, tem encontrado dificuldades


em se relacionar com as teorias, verdadeiro “calcanhar-de-aquiles” du-
rante muito tempo. Aliás, quando a sociologia surgiu no meio acadê-
mico europeu, buscando conquistar o seu espaço, atacou exatamente
esse aspecto. Durkheim, principal representante da sociologia, bradou
que “a história só pode ser considerada uma ciência desde que se eleve
acima do individual — e é verdade que, então, deixa de ser ela mesma
para tornar-se um ramo da sociologia” (SILVA, 2005, p. 128). Os his-
toriadores têm adotado uma postura pró-ativa frente às críticas cor-
rosivas como essa. Sempre que a história esteve na berlinda, sob ata-
ques variados, um mecanismo defensivo se repetiu: as críticas foram
processadas e o instrumental teórico e metodológico dos adversários
incorporados após estudo sistemático.
O objetivo deste trabalho é contar uma pequena parte dessa
história. Para tanto, analisaremos três diferentes concepções de his-
tória relacionadas ao processo de estabelecimento de um estatuto de
cientificidade para a disciplina, desvinculado das ciências naturais. A
construção dos argumentos usados para estabelecimento de um cam-
po de atuação específico do historiador terá ênfase no decorrer da
análise. Os autores e as obras elencadas são: A decadência do Ocidente, de
Oswald Spengler; Um estudo da história, de Arnold Toynbee e A idéia de
história de R. G. Collingwood.
Esses autores pertencem a três diferentes concepções de filo-
sofia da História, conforme explica Jaguaribe (2001, p. 39). Em uma
primeira vertente encontra-se Spengler, por buscar estudar as “condi-
ções a que está sujeito o processo histórico”. Toynbee representa uma
segunda vertente, na medida em que busca encontrar um “sentido e
propósito no processo histórico”. Collingwood, por sua vez, procura
investigar as “condições em que a indagação histórica é possível [ou
seja, tentaria responder] de que forma os historiadores adquirem co-
nhecimento sobre o passado”. A pluralidade de concepções filosófi-
cas permite um exame menos limitado sobre as reflexões relativas às
concepções de história. Apesar das diferenças entre si, esses autores
compartilham de uma preocupação em comum: singularizar a história
no campo humanístico, em oposição às ciências exatas, para usar ter-
minologia contemporânea.
A trajetória biográfica e o enquadramento institucional dos
autores são variados. Oswald Spengler estudou matemática e ciências
100
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

naturais nas universidades de Munique, Berlim e Halle. Exerceu ativi-


dades docentes até 1911. A partir desse ano dedicou-se à redação de
A decadência do Ocidente. Em 1914 já havia preparado um rascunho do
livro, publicando o primeiro volume em 1917 e o segundo em 1922.
A partir daí dedicou-se às atividades políticas, atuando especialmente
na redação de material propagandístico onde “advogava uma forma
um tanto deprimente de fascismo burocrático” (GARDINER, 1995,
p. 228). Arnold Toynbee, por sua vez, estudou no Balliol College de
Oxford, onde exerceu atividades profissionais como Fellow e Tutor
entre 1912 e 1915. Foi membro da delegação britânica do Oriente
Médio em 1919 até 1924. De 1925 até a sua aposentadoria dirigiu o
Instituto Real de Negócios Internacionais e foi Professor de Pesquisas
de História Internacional em Londres. Seu Um estudo da história foi
publicado entre 1934 e 1954, num total de 10 volumes. Por fim R. G.
Collingwood. Este viveu quase toda a sua trajetória profissional em
Oxford. Foi Fellow do Pembroke College e em 1935 Wayflete Profes-
sor em Filosofia Metafísica. Segundo consta, não se identificava com o
clima filosófico dominante naquele momento. A oposição básica entre
Collingwood e esses intelectuais era a ênfase dada por ele na necessi-
dade de se investigar filosoficamente os princípios e conceitos usados
pelos historiadores, na medida em que os estudos históricos haviam-se
desenvolvido muito. Esse é um dos objetivos almejados na obra ora
analisada, que foi publicada postumamente em 1946 (GARDINER,
1995, p. 244; p. 302-303).

Spengler: a história como análise indiciária

O livro do pensador alemão Oswald Spengler é profunda-


mente marcado pela Primeira Guerra Mundial. A visão pessimista tra-
zida a público era fruto das marcas deixadas pelos conflitos bélicos
geradores de grande massacre humano. A tese da obra é a de que as
civilizações e culturas estavam fadadas ao desaparecimento, haja vista
o inexorável ciclo natural cumprido pelas mesmas: ascensão, apogeu
e declínio.
A decadência do Ocidente seria uma obra seminal, conforme en-
quadramento dado por seu autor, pois se dedica “pela primeira vez
a tarefa de predizer a História [...]. Trata-se de visionar o destino de
uma cultura”. A teorização é alicerçada nas idéias de Goethe, definido
101
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

como autor do “único método histórico”, caracterizado pela utiliza-


ção da sensibilidade e da observação de indícios variados, por mais
inexpressivos que possam parecer. Portanto, nessa perspectiva, as
“simpatias, intuições, confrontos, imediatas certezas íntimas, precisas
imaginações sensuais”, entre outros aspectos, devem ser observados
(SPENGLER, 1964, p. 23 e 43).
A elaboração de uma nova filosofia com preocupações refe-
rentes ao futuro era uma necessidade premente. Tal empreendimento
se configura como “uma morfologia da História Universal”. Morfoló-
gica na medida em que o analista é obrigado a “reconhecer na lingua-
gem das formas históricas e na análise das mesmas a sua incumbência
mais difícil e mais direta”. Para realizar tal desafio é necessário um
reagrupamento das formas simbólicas, deslocando o eixo analítico, de
modo a enfatizar o processo de produção das formas e não somente
as formas em si. História Universal, por sua vez, nomeia “uma con-
cepção ordenada do passado, um postulado íntimo, uma expressão
de um senso formal”, mas que não recebia uma abordagem correta.
Todas as concepções de mundo podem ser consideradas um tipo de
morfologia (SPENGLER, 1964, p. 25 e. 35).
A investigação e a determinação de uma lógica na história, de
caráter metafísico e, por conseguinte autônomo das “manifestações de
superfície”, é um dos objetivos da obra. A busca, nesse sentido, é por
um paradigma que explique o desenvolvimento da história humana.
São considerados símbolos da história visível, passíveis de interpreta-
ção, “povos, idiomas e épocas, batalhas e idéias, Estados e deuses, ar-
tes e obras, ciências, direito, organismos econômicos e concepções de
mundo, grandes homens e grandes acontecimentos” (SPENGLER,
1964, p. 24).
O conhecimento histórico possui uma especificidade inegável
frente às ciências naturais, o que particulariza seu empreendimento,
de modo que a “tarefa assume então a forma de uma morfologia da
História Universal, do Universo como História, em oposição à morfo-
logia da Natureza”. O estudioso da história, ao contrário do cientista,
não pode se ater somente à demonstração dos nexos de causa e efeito,
pois corre o risco de não atingir níveis de análise mais sofisticados.
Portanto, a particularidade de cada campo é explicitada através de um
aparato conceitual próprio. Assim sendo,
102
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

a morfologia do mecânico e do extenso, a ciência que des-


cobre e ordena as leis naturais e os nexos causais, chama-se
sistema. A morfologia do orgânico, da história e da vida,
de tudo quanto estiver dotado de direção e destino chama-
se fisionomia (SPENGLER, 1964, p. 25 e 94).
O tradicional esquema de periodizar a história em Antigui-
dade, Idade Média e Época Moderna é um absurdo reducionista, na
medida em que toma a Europa Ocidental como o centro dinâmico do
mundo, produtor das prerrogativas usadas para a análise das demais
partes do globo. A proposta de História Universal é condicionada à
necessidade de substituição desse paradigma. O termo Europa, nesse
modelo, deve ser eliminado em razão de sua incapacidade de defi-
nição, evitando o enquadramento de realidades tão distintas sob um
mesmo epíteto. Dessa maneira, as reflexões relativas à regionalização
devem ser feitas em termos de Oriente e Ocidente.
Tanto a Natureza quanto a História são, em última análise,
dois tipos extremos de concepções do Universo. Portanto, há o co-
nhecimento referente à natureza e o conhecimento referente ao ho-
mem, objeto da história. O Universo possui como elementos básicos,
a lei e a forma. A Natureza é conceituada como sendo tudo aquilo
que é intemporal e disponível para o homem no Universo. Assim sen-
do, a Natureza é conceituada como o conjunto de objetos físicos. As
ciências naturais estão alicerçadas nos conceitos de mensurabilidade
e uniformidade causais, que devem ser aplicados pelos cientistas da
natureza única e exclusivamente no mundo natural, que possui uma
estrutura física estabilizada. Esta, aliás, é o principal diferenciador da
história com relação a outros campos de conhecimento.

Toynbee: a história como análise do todo social

Um estudo da história tem como objeto de estudo as civiliza-


ções, seguindo os caminhos abertos por Spengler. A análise histórica
observa o conjunto – as civilizações – e, posteriormente, verifica as
partes do mesmo – as nações. Toynbee (1986) não aceita a tese do
pensador alemão na íntegra, pois entende que um ciclo de renovação
incide sobre as civilizações, não havendo determinismo com relação
ao seu término. Tal superação dependia das respostas apresentadas
para os desafios da natureza.
103
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O balanço sobre a atividade do historiador enfatiza as forças


atuantes sobre a análise do profissional. A primeira seria o “sistema in-
dustrial”, para usar o termo do autor, referência à cultura monográfica
especializada que se tornou hegemônica ao longo do século XX. Esta
possui dois aspectos constitutivos, sendo, de um lado, a divisão do
trabalho e, de outro, a aplicação do moderno pensamento científico.
O sistema de trabalho acadêmico visa manter a capacidade
produtiva ao máximo, por meio da administração sistemática e coor-
denada do trabalho humano, obtendo a maior produtividade possível
de material bibliográfico. Em meados do século XX a previsão era
que esse modelo fosse disseminado pelo mundo Ocidental. O grande
questionamento era se o estudioso poderia se concentrar no estudo
sistemático ou se perderia em atividades de caráter burocrático des-
vinculadas da investigação científica.
As diferenças entre ciências humanas e físicas (naturais, como
se dizia na época) são bem marcadas. Para tanto, um exemplo é invo-
cado. Toynbee relata a trajetória de um professor de Ciência, que cos-
tumava visitar quando criança. Inicialmente a biblioteca do professor
era tomada por uma boa variedade de livros de literatura, ciências em
geral, além daqueles inerentes à sua área de atuação. Com o passar dos
anos, porém, esses livros foram sendo substituídos por diversos peri-
ódicos especializados. Destarte, se para os cientistas essa configuração
do campo de trabalho poderia até ser tolerada, devido a uma afinidade
natural entre as partes, para os membros das ciências humanas não
seria a ideal, mesmo porque
o pensamento histórico situa-se entre esses campos forâ-
neos, em que o prestígio de nosso sistema industrial se
afirmou; e dessa forma – num campo mental que teve uma
história muito mais longa do que a nossa sociedade oci-
dental, e que não se preocupa não com coisa, mas com
pessoas – não existe nenhuma garantia de que o moderno
sistema industrial do Ocidente seja o melhor regime sob o
qual se possa viver e trabalhar (TOYNBEE, 1986, p. 30).
A configuração exposta tem origem antiga, agravando o qua-
dro. Desde os tempos de Mommsen e de Ranke - célebres membros
da “escola metódica” - os historiadores empregar-se-iam mais em re-
colher “matérias-primas” e reuni-las em compêndios coletivos do que
propriamente em dedicar-se a estudos sistemáticos.
104
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Quais as outras forças que interferem na análise dos histo-


riadores? O espírito de nacionalidade, definido como “o espírito que
faz com que as pessoas sintam, ajam e pensem sobre determinada
parte de uma sociedade como se esta fosse o todo social”, é um deles
(TOYNBEE, 1986, p. 35). Em outras palavras, trata-se da força polí-
tica exercida por governos, partidos e/ou movimentos políticos, insti-
tuições, ideologias e/ou doutrinas na consciência do pesquisador. Ou-
tro fator relevante para compreensão das amarras que podem prender
os historiadores são os arquivos públicos dos governos, nos quais o
profissional da História encontra suas fontes. Esses locais foram con-
cebidos para garantir algum controle do Estado sobre a memória e,
por extensão, sobre a história.
O pensamento histórico de Toynbee (1986) é condicionado
pelo pressuposto de que todo estudo, independentemente do tipo, é
determinado pelas limitações do pensamento humano,236 na medida
em que é impossível a não realização de violências contra o real ao
se tentar captá-lo. Esse entendimento sobre a capacidade da men-
te humana de analisar a realidade conduz a uma linha de raciocínio
concernente à especificidade da história diante das outras “escolas de
estudiosos dos assuntos humanos” e, consequentemente, ao modo
como isso aparece no trabalho do historiador. Independentemente da
definição de história, sempre é preciso “ter a meta de preservar a com-
plexidade dos eventos individuais ‘desde que também os reúna num
quadro em que haja uma certa coerência de significado’”. É preciso
ainda que “nenhuma descrição de qualquer objeto ou evento isola-
do possa dispensar predicados ou traços abstratos que se repitam”
(TOYNBEE, 1986, p. 508). Além da sensibilidade para captar todas
as recomendações ditas é preciso que o historiador esteja dotado de
instrumentos de reflexões capazes de captar ao mesmo tempo a mu-
dança, a novidade e a criação e empreender uma análise e classificação
dos pontos que apresentem semelhança.
2
A realidade é a unidade não diferenciada da experiência mística. A mente cria ou
copia uma imagem que a realidade faz de si própria, trabalhando por fragmentação
e classificação dos fragmentos em grupos específicos, ordenados segundo um deter-
minado critério. Assim, podemos categorizar, por exemplo, tal ou qual ação humana
como boa ou má. Porém, no decorrer do processo, a mente humana capta apenas
“facetas de fenômenos”, sendo por isso possível reclassificar um objeto inúmeras
vezes. Dessa maneira sempre restará um ponto sobre o qual a mente não será capaz
de atuar.
105
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

A interpretação histórica somente é possível se tivermos


como pressuposto que toda a realidade possui um signifi-
cado e que é possível ao historiador alcançá-lo pelo proces-
so de explicação. Assim é, por exemplo, a crença na relação
de causalidade, pois, nesse caso, a explicação pressupõe a
conexão entre elementos numa ordem encadeada que seja
inteligível à mente humana. O historiador lança mão de
conceitos e de hipóteses exatamente por acreditar na capa-
cidade e na possibilidade de se explicar algo. As hipóteses
são formuladas e, através delas, os fatos, entendidos como
construtos, são selecionados. Dessa maneira, o que se en-
tende por objetividade histórica está limitado pelo padrão
de significado adotado pelo historiador. Nesse sentido, a
objetividade, sob o impacto relativista, deve ser observada
“na relação entre o fato e a interpretação, entre o passado,
presente e futuro” (TOYNBEE, 1986, p. 509).

Collingwood: a história como reconstituição no espírito

A história possui métodos singulares que são ideais para a


investigação de fenômenos referentes ao “espírito humano”. Tal é a
tese defendida por Collingwood (1986). Os filósofos materialistas do
século XVII inviabilizaram seu projeto de uma “ciência da natureza
humana” em virtude da analogia, por eles feita, com as ciências da
natureza, negando a especificidade da disciplina.
O primeiro passo a ser dado é a delimitação de fronteiras do
conhecimento histórico frente ao conhecimento científico, pois cada
área é dotada de problemas, métodos e finalidades específicos. De ou-
tra maneira, tentar inserir todo e qualquer problema do conhecimento
em um único campo, implica em excluir a possibilidade de identidade
para qualquer um deles. Além disso, a ausência de delimitações relati-
vas às atribuições de cada campo de trabalho pode conduzir a resulta-
dos pífios ou estéreis.
A história é um “conhecimento do espírito”, haja vista o his-
toriador somente se preocupar com um determinado episódio quando
o mesmo possibilitar o acesso a algo mais complexo. Um exemplo:
não tem sentido o historiador elaborar um estudo a respeito da gripe
contraída pelo rei em um dia qualquer do passado, sendo tal tipo de
ocorrência irrelevante para a pesquisa histórica por não possuir qual-
quer relevância social.
106
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Um aparato operacional foi elaborado por Collingwood para


lidar com essa questão. O estudioso difere duas dimensões na análise
do acontecimento histórico, sendo uma exterior e a outra interior. A
narrativa exclusivamente factual dos episódios é a dimensão exterior
do acontecimento, ao passo que a dimensão interior é revelada quando
o estudioso alcança a significação mais íntima do acontecimento que
seja indicativo do pensamento existente naquele momento. Episódios
que só apresentem parte externa são chamados eventos e, portanto, não
devem ser alvo de pesquisa histórica. O trabalho do historiador pode-
rá começar pela percepção do acontecimento – o indício –, mas não
poderá ficar apenas nisso, pois
o seu objeto, portanto, não é um mero objeto, algo que
está fora do espírito que o conhece é uma ação do pen-
samento, que só pode ser conhecido na medida em que o
espírito conhecedor a reconstitua e a conheça simultanea-
mente (COLLINGWOOD, 1986, p. 333).
Dizer que o rei ficou gripado no dia 25 de janeiro de 1850
é apenas demonstração da externalidade de um acontecimento, não
servindo como tema de pesquisa para o historiador, a não ser que se
consiga provar que, na ocasião, o rei se viu forçado a aprovar uma lei
contrária aos seus interesses e, através da desculpa de estar doente,
tenha conseguido ganhar tempo para fazer alguma manobra política
para tentar reverter o quadro. Assim, o acontecimento foi apresentado
com a sua parte externa e a sua parte interna, ou seja, foi apresentado
um fato e foi exposta a sua relevância, na medida em que se expressou
o pensamento que estava por trás dele, que no caso, é a discordância
do rei quanto à aprovação da lei.
O estudo da história demanda um conhecimento do espíri-
to em um duplo sentido. Significa, de um lado, o entendimento do
espírito de todos os atores sociais objetos da pesquisa. De outro, do
espírito do próprio investigador. Digamos que o historiador queira
entender o pensamento político de Adolf Hitler e, para isso, além de
outras obras, obrigatoriamente terá que ler Minha Luta (Mein Kam-
pf). No decorrer da análise deverá processar no seu espírito as idéias
ali contidas, enfrentando o duplo trabalho de entender os pontos de
vistas que expliquem as decisões do Führer, ao mesmo tempo em
que enfrentará o impacto daquelas idéias em seu espírito, seja de re-
107
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

pugnância ou admiração. Para sintetizar a reflexão, vejamos um caso


concreto: o historiador que classifica a Idade Média como “época de
trevas”, assim o faz por incapacidade de apreender e reprocessar, no
próprio espírito, os pensamentos fundamentais da época. Em suma,
“é o próprio historiador que comparece no tribunal, revelando aí o seu
espírito, na sua força e na sua fraqueza, nas suas virtudes e nos seus
vícios” (COLLINGWOOD, 1986, p. 334).
A singularidade da história frente às ciências naturais é de-
terminada pela dupla dimensão do acontecimento histórico. É impra-
ticável para os cientistas a realização de tal separação, uma vez que
a natureza não apresenta pensamentos passíveis de captação. Nesse
sentido, as ciências naturais estudam eventos, ou seja, fenômenos do-
tados apenas daquilo que a teoria collingwoodiana designa por parte
externa. Assim sendo, o cientista está liberado do trabalho de análise
que é exclusivo do historiador, ou seja, sendo sua incumbência rela-
cionar os eventos visando o estabelecimento de alguma lei natural ou
fórmula geral.
O cientista tem a natureza como seu objeto de estudo, do
qual recortará o(s) fenômeno(s) a ser(em) analisado(s), com vistas
à sistematização de informação. Os fenômenos, no pensamento de
Collingwood, são definidos como ocorrências perceptíveis pela obser-
vação humana guiada por um método.
As singularidades de cada campo de atuação são incontes-
táveis diante da exposição precedente. Nesse sentido, é improdutivo
pensar em termos de hierarquização de complexidades. Senão veja-
mos. Se for correto dizer que o cientista é isento da procura pelos
pensamentos acoplados aos fenômenos estudados, não será menos
correto afirmar que o historiador é isento da determinação de leis ex-
plicativas. Em termos simples, cada segmento possui os seus cânones
que lhes fornecem especificidade. Sendo assim, ao se referir à causa,
o cientista quer dizer em qual condição tal evento ocorreu, ao passo
que quando um historiador pergunta “porque motivo é que Bruto
apunhalou César?”, quer diz com isso “o que é que Bruto pensou,
para se decidir a apunhalar César?” A causa do acontecimento, para
ele, representa o pensamento desenrolado no espírito da pessoa que
praticou a ação (COLLINGWOOD, 1986, p. 328).
Resta a Collingwood explicitar a sua diferenciação das ações
humanas históricas com as não-históricas, uma vez concluída a dife-
renciação dos assuntos que são de competência da história daqueles
108
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

que não o são. Destarte, se a conduta do indivíduo foi guiada tão e


somente por instintos, não será objeto da história, mas se a conduta
praticada pelo indivíduo tiver sofrido influência de alguma convenção
social, religiosa ou moral em vigor na época, esta conduta será objeto
da história.

Um inventário das diferenças

Uma crise no paradigma clássico de legitimidade científica


teve início nas primeiras décadas do século XX. As teorias que funda-
mentavam as diversas ciências foram contestadas e sofreram profun-
das reformulações. O ponto nevrálgico residia na formulação de leis,
tal como buscadas pelas ciências até então. Em síntese, na explicação
de Wehling (1992, p. 147), a crise “consistiu fundamentalmente no
questionamento mais ou menos extenso das categorias e extrapola-
ções elaboradas a partir da física newtoniana e da arquitetura filosó-
fica do idealismo”. Os autores analisados neste trabalho, malgrado a
diversidade de posições teórico-metodológicas, são representantes das
reações à crise anteriormente referenciada. Senão vejamos.
A concepção collingwoodiana contrapõe-se à dos positivis-
tas, sobretudo em razão da premissa relativa à determinação de leis
explicativas dos fenômenos da natureza. A missão da história deveria
ser a captação dos pensamentos. Segundo essa visão, Um estudo da his-
tória “representa uma nova exposição da concepção positivista” e A
decadência do Ocidente seria uma “reincidência de Oswald Spengler no
naturalismo positivista”. O positivismo é entendido “não só [como]
um erro endêmico do pensamento filosófico moderno acerca da his-
tória, mas também um perigo constante para o próprio pensamento
histórico” (1986, p. 250; p. 280; p. 346-347).
O positivismo subordinava a filosofia às ciências da natureza,
por meio de dois expedientes: (a) o estabelecimento dos fatos e (b) a
demonstração das leis que os determinam. Teria ocorrido, no entanto,
uma euforia entre os historiadores positivistas na execução da primei-
ra etapa da proposta. A conseqüência prática de tal concentração foi
que “o ideal de história universal foi posto de lado como um sonho
vão e o ideal de literatura histórica transformou-se em monografia”
(COLLINGWOOD, 1986, p. 204).
O projeto comteano pretendia fazer da sociologia uma ciên-
109
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

cia corretora dos rumos trilhados pela história, trabalhando “cientifi-


camente” os mesmos fatos que a história abordava apenas empirica-
mente. O principal ponto de discordância de Collingwood (1986, p.
205) para com os positivistas é que para estes “o processo histórico
era idêntico – na espécie – ao processo natural. Por tal motivo, os
métodos das ciências da natureza eram aplicáveis à interpretação da
história”. Assim sendo, Collingwood entende que a história é uma ci-
ência de um tipo muito específico, na medida em que não busca a
determinação de leis para conectar os acontecimentos estudados.
A concepção spengleriana elabora uma divisão na história.
De um lado a configura como uma “ciência preliminar da investigação
histórica”, ocupada da coordenação e do exame do material com vis-
tas à elaboração de compilações. De outro, em uma configuração inte-
lectualmente mais elaborada, a história é entendida como uma “visão
autenticamente histórica” e, nesse caso, se preocuparia em determinar
os critérios de superficialidade e profundidade da reflexão.
A conclusão é que não existe ciência histórica, ao contrário
do que pretendia a historiografia racionalista e a sociologia, cabendo à
história a interpretação filosófica dos fatos analisados em seu conjunto.
A negativa é fruto da incapacidade do autor de superar uma definição
limitada de ciência, por ele ainda concebida nos moldes das ciências
naturais. Em decorrência, o autor alerta que não se deve “imaginar que
ela [a história] se pode interpretar em termos de fórmulas quantitati-
vas, ou arquitetar como um sistema quase mecânico”, no sentido de
elaboração de leis ou padrões repetitivos de fenômenos ou tendências
de desenvolvimento social (SPENGLER, 1964, p. 229).
Toynbee, por seu turno, concebe a História como “a estru-
turação de questões por um determinado ser humano, num contexto
específico de espaço-tempo”. Para tanto, o historiador formula per-
guntas e hipóteses mediante provas documentais. Em tal concepção,
o fato histórico é determinado pela análise do historiador, sendo, por-
tanto, um construto (1986, p. 509). Quanto ao conhecimento histó-
rico, entende ser de tipo específico, mas que sofre determinações e
influências dos demais campos. Aliás, é necessário ter em mente que a
concepção de história apresentada por Toynbee sofreu influência das
transformações ocorridas no Pós-Segunda Guerra Mundial no meio
intelectual e, por isso, aparece a noção de campo de trabalho, deno-
minação típica desse período. Nesse sentido, a argumentação sobre as
110
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

diferenças entre a história e as ciências naturais, apesar da brevidade,


revela, muito bem, as paragens de cada segmento: a história trabalha
com pessoas, enquanto que os cientistas naturais trabalham com fenô-
menos físicos ou objetos inanimados.

Referências Bibliográficas

COLLINGWOOD, Robin G.. A idéia de história. Lisboa: Presença,


1986.
GARDINER, Patrick (Org.). Teorias da história. Lisboa: Gulbenkian,
1984.
JAGUARIBE, Hélio. Um estudo crítico da história. São Paulo: Paz e Terra,
2001.
RUSSEN, Jorn. Razão histórica: teoria da história. Brasília: EdUnB,
2001.
SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1964.
SILVA, Fernando Teixeira da. História e ciências sociais: zonas de
fronteira. História, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 127-166, 2005.
TOYNBEE, Arnold. Um Estudo da história. São Paulo: Martins
Fontes, Brasília: EdUnB, 1986.
WEHLING, Arno. Fundamentos e virtualidades da epistemologia da
história: algumas questões. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10,
p. 147-169, 1992.

Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em dezem-


bro 2007.

111
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

VERDADE, SENTIDO E PRESENÇA: HISTÓRIA


E HISTORIOGRAFIA EM HEIDEGGER E
GUMBRECHT
37
Flávia Florentino Varella1

Resumo: Este artigo discute as simili- Abstract: This paper discuss the
tudes entre a proposta de uma cultura similitudes between the proposal
de presença exposta por Hans Ulrich of a presence culture exposed for
Gumbrecht e a filosofia de Martin Hans Ulrich Gumbrecht and Martin
Heidegger. Gumbrecht sugere que na Heidegger philosophy. Gumbrecht
cultura ocidental existem duas formas suggest that inside the occidental
de lidar com o mundo: a cultura de culture exist two forms of rela-
sentido e a cultura de presença. Nosso tionship with the world: meaning
argumento é que a reflexão de Gum- culture and presence culture. We
brecht pode ser associada a elementos argues that Gumbrecht reflection
de fundamental importância dentro can be associated with elements
da filosofia heideggeriana. of fundamental importance inside
Palavras-chave: Hans Ulrich Gum- Heidegger philosophy.
brecht, cultura de presença, Martin Key-words: Hans Ulrich Gum-
Heidegger. brecht, presence culture, Martin
Heidegger.

Introdução

A tradição fenomenológica ainda não encontrou uma recep-


ção adequada por parte da historiografia brasileira.238 A obra de Hans
Ulrich Gumbrecht e, em especial, sua reflexão em torno da valoriza-
ção de termos como substância e essência, que foram correntemente
utilizados de forma pejorativa dentro da tradição ocidental, é um dos
pontos que queremos abordar neste artigo.339 Apesar de possuir bi-
bliografia vastíssima, poucos de seus livros foram traduzidos para o

1
Licenciada pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: flavia_varella@hotmail.
com
2
Recentemente foi publicado um dossiê na revista History and theory: studies in philosophy
of history sobre questões que envolvem a cultura de presença.
3
Hans Ulrich Gumbrecht nasceu em 1948, na cidade de Wuerzburg, oeste da Alema-
nha. Foi professor assistente em Konstanz onde fez PhD. Entre 1983 e 1985 foi vice-
presidente da Associação Germana de Filologia Românica. Foi professor visitante no
Rio de Janeiro, Buenos Aires, Berkeley, Princeton, Montreal, Barcelona, Budapeste,
Lisboa, Capetown e Paris (Ecole des Hautes Etudes). Atualmente é professor de Li-
teratura no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford,
Califórnia.
113
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

português. Dentre eles se destacam: Em 1926: vivendo no limite do


tempo, A função da retórica parlamentar na Revolução Francesa e moderniza-
ção dos sentidos. O principal objetivo deste artigo é delinear as aproxima-
ções entre as propostas de Gumbrecht e do filósofo Martin Heidegger
quando se trata de um desejo por práticas de presença.
Apesar da grande afinidade das duas propostas devemos res-
saltar que, para Heidegger, o contato com o mundo se dá em uma
decisão440 pelo modo de vida autêntico. Heidegger enfatizou em sua
filosofia a importância da antecipação da morte na tomada de decisão
do Dasein.541 Através da antecipação da morte, no reconhecimento da
finitude de sua existência, é que o Dasein “se compreende quanto a
seu poder-ser, de tal maneira que ele se acha sob os olhares da morte
para, assim, poder assumir totalmente, em seu estar-lançado, o ente
que ele mesmo é” (HEIDEGGER, 1996, p. 188-189). A antecipação
da morte, o ser-para-a-morte, “constitui a condição de possibilidade
da ação e do sentimento de aceleração do tempo que caracteriza a
modernidade” (ARAÚJO, 2006, p. 326).
Gumbrecht chega à conclusão de que a dupla limitação tem-
poral da vida humana ocasionada pelo nascimento e pela morte produz
o desejo de cruzar essas duas fronteiras. Enquanto Heidegger optou
pela morte como transcendência do mundo, Gumbrecht concentra-se
na experiência de transcender o nascimento em direção ao passado
(GUMBRECHT, 2007, p. 123). Ou seja, viver em épocas que não se
poderia ter vivido a não ser por meio dos efeitos de presença.
Production of presence: what meaning cannot convey, um dos seus
mais recentes livros, trata, entre outras coisas, de como podemos ma-
pear dois tipos de cultura no Ocidente: uma de sentido e outra de
presença. O objetivo principal deste artigo é, a partir do enfoque na
cultura de presença, mostrar as similitudes entre este tipo de percep-
ção de mundo e a filosofia de Martin Heidegger. Para melhor alcançar
esse objetivo o texto foi dividido em quatro partes. A primeira consis-

4
Evitamos a grafia de-cisão utilizada na edição brasileira de Ser e tempo para contornar
a obscuridade que esses recursos podem assumir para o leitor não especializado na
filosofia heideggeriana.
5
A palavra alemã Dasein possui inúmeras traduções para língua portuguesa. Tendo em
vista essa dificuldade, optou-se por modificar em todos os textos citados a tradução
da palavra pelo original Dasein, mudando também, quando necessário, a concordância
frasal.
114
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te em uma tentativa de definição dos tipos cultura de sentido e cultura


de presença. Na segunda parte, trataremos da virada epistemológica
quanto ao conceito de verdade que ocorre na passagem de uma cul-
tura de sentido para uma de presença. Verdade agora significa revela-
ção, desvelamento, descobrimento. Na terceira parte será apresentado
um pequeno esboço da fenomenologia em sua visão heideggeriana e
como ser, ser-no-mundo e desvelamento, categorias empregadas por
Heidegger, são de fundamental importância para a compreensão da
cultura de presença. Na última parte apresentaremos o que liga Gum-
brecht a Heidegger: a crítica à hegemonia na consciência moderna das
práticas de sentido. Esperamos, ao final, deixar claro como as propos-
tas de Gumbrecht estão relacionadas à filosofia heideggeriana e como
elas fazem parte de uma mesma vontade de presença.

Cultura de presença e cultura de sentido

Dois tipos de percepção de mundo que caminham juntas e


que se mostram em diferentes oportunidades são diagnosticados por
Gumbrecht em Production of presence. Seus nomes são: cultura de pre-
sença e cultura de sentido. A cultura de sentido é apresentada como
a que preponderou na Modernidade devido a sua constante procura
pelo significado do mundo. A hermenêutica enquanto método cog-
nitivo que busca, através da interpretação de textos, descobrir o sen-
tido das coisas, é entendida como uma das formas epistemológicas
pelas quais a modernidade respondeu a essa demanda por sentido.
A verdade na Modernidade foi considerada, principalmente, como a
concordância entre o significante e o significado. A relação direta com
o mundo não era suficiente “para expressar toda a verdade presente
na sua profundidade espiritual, e, portanto, estabelece uma constante
demanda de interpretação como um ato que compensa as deficiên-
cias da expressão”(GUMBRECHT, 1998, p. 13) Dentro do paradig-
ma sujeito-objeto, outra criação moderna, o mundo é visto somente
como uma esfera material, que leva o homem ao estado de alienação.
Existe uma divergência entre o mundo e a existência humana baseada
no contraste entre o espiritual e o material (GUMBRECHT, 2004, p.
66).
O grande objetivo, por exemplo, do romance europeu no sé-
culo XIX foi a representação da realidade histórica e quanto melhor
115
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

fosse essa representação maior seu valor epistemológico. Os roman-


ces de Gustav Flaubert, históricos ou não, são vastamente conhecidos
pela sua pesquisa incessante objetivando representar de forma com-
pleta o mundo que descrevia. Essa representação não buscava produ-
zir um sentimento de reviver o mundo no qual o romance se passava,
mas de comunicar, por meio da linguagem, algo que só pode ser per-
cebido por ela.
Tanto a crise da representação quanto o relativismo surgem
de uma cultura na qual a interpretação é pré-requisito para se alcançar
um conhecimento válido (GUMBRECHT, 2004, p. 07; 1998, p. 14). A
crise da representação apontou principalmente para a insuficiência da
linguagem em comunicar um mundo estável. Essa insuficiência episte-
mológica foi gerada pela percepção de que nenhuma representação é
melhor que do que a outra e, conseqüentemente, não haveria nenhuma
representação em especial capaz de expressar a concretude do real.
Para conseguir dialogar com essa multiplicidade de represen-
tações, que devem ser entendidas como tendo o mesmo valor episte-
mológico, a Modernidade usou da narrativa em forma evolutiva, cui-
dando sempre da linearidade e do desenvolvimento progressivo dos
fenômenos tratados. Todas as perspectivas alcançadas são válidas na
medida em que cada uma revela um pedaço do grande complexo que
é a realidade. As filosofias da história foram as grandes narrativas mo-
dernas na medida em que buscavam narrar evolutivamente um pro-
cesso linear de desenvolvimento do espírito humano.
A cultura de presença surge em um movimento de saturação
epistemológica. Enquanto na cultura de sentido busca-se uma repre-
sentação capaz de nos permitir manipular sem tocar as coisas, na cul-
tura de presença valoriza-se o retorno às coisas em si mesmas. Os mo-
mentos de presença não têm nenhuma mensagem, nada se tem para
aprender com eles em matéria de utilidade para a vida. São momentos
de intensidade (GUMBRECHT, 2004, p. 98) na medida em que por
um breve momento ocorre a suspensão da realidade presente e outra
realidade presentifica-se. A historiografia, desta forma, abandonaria
tanto as orientações éticas e políticas quanto a interpretação como
suas funções e deveres.
O desejo por presença que se apresenta contemporaneamen-
te, segundo Gumbrecht, é uma reação à saturação da visão de mundo
cartesiana preocupada com a produção de sentido (GUMBRECHT,
116
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

2004, p. 110). A pós-modernidade, para Gumbrecht, foi o espaço que,


em grande medida, colocou em segundo plano ou mesmo abandonou
as questões relativas à representação da realidade, a busca de sentido
e a interpretação como componentes fundamentais das humanidades.
O esgotamento do cronótopo, “tempo histórico”, que tinha no tempo
a forma de explicar e organizar as narrativas evolutivas marca profun-
damente a cultura de presença. O tempo é uma dimensão primor-
dial para as culturas de sentido na medida em que é com o passar do
tempo que as transformações históricas se realizam (GUMBRECHT,
2004, p. 83). A relação com o mundo na cultura de presença não é
temporal, mas espacial; as coisas no mundo têm um impacto sobre
o corpo humano e é na descoberta do objeto fora de seu uso prático
que ele adquire um sentido próprio. Para conseguir o efeito de pre-
sença devemos suspender as atribuições de sentido (GUMBRECHT,
2004, p. 123-126). O contato com o mundo (estar no mundo, ser-no-
mundo) é fundamental, pois é por meio da materialidade do real que
o conhecemos e sentimos:
Em contraste com a interpretação e a hermenêutica, o de-
sejo pela experiência direta de mundos passados se dirige
às características sensuais das superfícies, e não à profundi-
dade espiritual. [....] aquilo que nos orienta especificamente
em direção ao passado é o desejo de atravessar o limite que
separa as nossas vidas do tempo anterior ao nosso nasci-
mento. Queremos conhecer os mundos que existiam antes
que estivéssemos nascidos, e ter deles uma experiência di-
reta. Esta “experiência direta do passado” deveria incluir
a possibilidade de tocar, cheirar e provar estes mundos
através dos objetos que os constituíram (GUMBRECHT,
1999, p. 467-70).
Este desejo pela experiência imediata do passado surge com
a dilatação do presente. O presente não é mais entendido como um
espaço comprimido por um passado categoricamente diferente e um
futuro aberto:
This desire for presentification can be associated with the
structure of a broad present where we don’t fell like “le-
aving behind” the past anymore and where the future is
blocked. Such broad present would end up accumulating
different past worlds and their artifacts in a sphere of si-
multaneity (GUMBRECHT, 2004, p. 121-122).

117
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O desejo pela presentificação do passado, ou seja, a possibili-


dade de falar com os mortos, de tocar os objetos de seus mundos é o
efeito de presença que se dá no campo da relação com o passado. Na
estética o efeito de presença é a epifania, entendida, por Gumbrecht,
como um evento na medida em que nunca sabemos quando e onde
ele acontecerá, a forma e a intensidade que terá e porquê ele se auto-
anula quando acontece, ou seja, não é possível manter essa experiência
por muito tempo. A epifania refere-se à efemeridade do efeito de pre-
sença. É importante ressaltar que ambas as culturas sempre andaram
juntas em uma relação tensa (GUMBRECHT, 2004, p. 105). Existem
momentos que uma delas prepondera, o que não causa necessaria-
mente a extinção da outra.
Gumbrecht considera que presença, substância, realidade e ser
são palavras com o mesmo valor ontológico. A filosofia de Martin Hei-
degger é importante na reflexão de Gumbrecht na medida em que o
filósofo caracteriza a existência humana como “ser-no-mundo”, com
as coisas do mundo. Ser-no-mundo é o conceito que tenta recuperar os
componentes da presença na nossa relação com as coisas no mundo,
tornando a existência humana um contato permanentemente substan-
cial e espacial com as coisas do mundo (GUMBRECHT, 2004, p. 66).

A verdade como algo que acontece

Um dos pontos principais de Ser e tempo é a reavaliação feita


por Heidegger do conceito de verdade. Na modernidade a verdade foi
correntemente entendida enquanto concordância entre a enunciação e o
que previamente se presume da coisa ou a conformidade entre o que é
significado pela enunciação e a coisa (HEIDEGGER, 1979, p. 133).
Três teses estariam na base dessa reflexão:
1. O ‘lugar’ da verdade é a proposição (o juízo). 2. A es-
sência da verdade reside na ‘concordância’ entre o juízo e
seu objeto. 3. Aristóteles, o pai da lógica, não só indicou o
juízo como o lugar originário da verdade, como também
colocou em voga a definição da verdade como ‘concor-
dância’ (HEIDEGGER, 1993, p. 282).
A verdade, na perspectiva tradicional e, digamos, moderna,
seria um problema de conformidade entre as partes. Grande parce-
la do pensamento ocidental, principalmente depois de Kant, utilizou
118
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desse tipo de proposição para entender a verdade. Kant afirmava que


a verdade não se encontrava no objeto, mas no juízo a seu respeito. A
verdade não se dá pelo objeto ou no objeto, é uma coisa formulada
subjetivamente. Um dos sintomas da verdade enquanto concordância
é a empreitada moderna pela representação na qual se busca a concor-
dância entre o significante e o significado por meio da linguagem.
A verdade, segundo Heidegger, desde Heráclito foi pensada
como aquilo que se mostra (HEIDEGGER, 1993, p. 287-288). O que
houve foi um soterramento do significado dessa palavra e, por isso,
não a entendemos mais assim. A busca de Heidegger é por um resgate
e por uma re-apropriação da tradição. Para Heidegger:
A proposição é verdadeira significa: ela descobre o ente em
si mesmo. Ela propõe, indica, “deixa-ver” (apophandis) o
ente em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (ver-
dade) da proposição deve ser entendido no seu sentido
de ser-descobridor. A verdade não possui, portanto, a estru-
tura de uma concordância entre conhecimento e objeto,
no sentido de uma adequação entre um ente (sujeito) e
um outro ente (objeto). Enquanto ser-descobridor, o ser-
verdadeiro só é, pois, ontologicamente possível com base
no ser-no-mundo. Esse fenômeno, em que reconhecemos
uma constituição fundamental do Dasein, constitui o funda-
mento do fenômeno originário da verdade (HEIDEGGER,
1993, p. 286-287).
A verdade se dá quando o ente deixa-se ver, quando é desco-
berto, desvelado; a verdade é a verdade do ser-no-mundo. O questio-
namento do sentido do ser é o que, para Heidegger, precisa ser colo-
cado urgentemente. É justamente a proposição da impossibilidade de
se definir o ser que a faz necessária (HEIDEGGER, 1993, p. 28-289).
A questão posta é qual o sentido do ser e não o que é o ser:
o “ser verdadeiro” do lógos enquanto aletheien diz: retirar de
seu velamento o ente sobre que se discorre no logein como
aphophainesthai e deixar e fazer ver o ente como algo des-
velado (alehes), em suma descobrir. Do mesmo modo, o “ser
falso” pseudesthai diz enganar no sentido de en-cobrir colocar
uma coisa na frente de outras (deixar e fazer ver) e assim
propô-la como algo que ela não é. Justamente porque “verda-
de” tem este sentido e o logos é um modo determinado de
deixar e fazer ver, o logos não pode ser apontado como o “lu-
gar” primário da verdade (HEIDEGGER, 1993, p. 63-64).

119
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O logos, o discurso, é apenas um caminho para se chegar à


verdade. E como todo re-apresentador de algo encobre e descobre a
coisa a ser comunicada. Heidegger divide a vida em existência inautên-
tica e autêntica. A primeira é vista como a cotidianidade e se mostra
no falatório, curiosidade e ambigüidade. Neste tipo de vivência o ser
se encontra velado, mas é somente a partir dele que é possível chegar
ao desvelamento. A existência inautêntica é momento fundamental
para o desvelamento do ser. Ser é o que ao mesmo tempo se mostra e
esconde no acontecimento da verdade. Desta forma, não existe men-
tira, o ser nunca mente sobre si mesmo, ele se mostra velado. A exis-
tência nunca é uma vivência estática, ela está sempre em movimento.
Quando ocorre um desvelamento do ser ele nunca pode ser mantido
eternamente desta forma, existe sempre o retorno, o velamento. Só é
possível chegar a uma existência autêntica vivendo, ou seja, no mundo.
O mundo é o lugar onde o Dasein se realiza enquanto desvelamento. A ver-
dade é vista por Heidegger, como o desvelamento do ser, ou seja, o ser-no-
mundo. A manifestação do Dasein é a abertura, o descobrir, abrir, explorar o
mundo enquanto constituído de entes (INWOOD, 2002, p. 40).
Ser é um conceito que está estritamente ligado ao de presen-
ça, ambos implicam substância, estão ligados à dimensão espacial e
são associados a movimento (GUMBRECHT, 2004, p. 77). Em uma
cultura de presença o conhecimento é revelado no contato com as coi-
sas no mundo. É uma substância que aparece, que se presentifica sem
requerer interpretação e transformação em sentido (GUMBRECHT,
2004, p. 81). O conceito de ser em Heidegger recupera os aspectos de
substancialidade e de revelação longamente abandonados pela filoso-
fia moderna. A presentificação da coisa se dá por meio de técnicas que
produzem a impressão/ilusão que os mundos passados podem ser
tocados novamente (GUMBRECHT, 2004, p. 94).

Fenomenologia e cultura de presença

Como visto anteriormente, algumas categorias heideggeria-


nas como ser, ser-no-mundo e sua própria filosofia são de extrema
importância para entender as características da cultura de presença
diagnosticada por Gumbrecht. A fenomenologia adquire grande im-
portância para o entendimento das propostas de ambos os autores na
medida em que anula a relação epistemológica moderna entre sujeito
120
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

e objeto. No conhecimento baseado na concordância entre significa-


do e significante a verdade se dava por meio dos questionamentos do
sujeito ao objeto. Era um conhecimento de profundidade e apenas o
sujeito tinha a capacidade de inquirir e descobrir o mundo. Na feno-
menologia essa relação é modificada e o objeto, como coisa, passa a se
mostrar para o sujeito, como Dasein.
O aspecto mais importante da fenomenologia para nossa re-
flexão é a ausência de mediação no contato do ente com as coisas. A
coisa não é apenas objeto de inquirição, ela mesma se mostra para o
ente e esse mostrar não necessita de um intermediário entre as partes.
A fenomenologia é o método sobre o qual será possível deixar e fazer
ver o ser dos entes. Para Heidegger, o significado da palavra fenome-
nologia não pode ser entendido através da história das ontologias, mas
deve ser encarado na busca pelo significado original da palavra. Enten-
der o significado de fenomenologia através da história das ontologias
traria apenas um significado velado que está soterrado pela conceitu-
ação. O partir do conceito para entender algo é, para Heidegger, um
velamento do sentido do ente. O desvelamento se dá na busca pelas
coisas em si mesmas: pelo método fenomenológico.
Para explicar o significado de fenomenologia, Heidegger bus-
ca sua origem nas palavras gregas que a compõem, ou seja, fenômeno
(phainomenon) e discurso (logos). Fenômeno significa o que se mostra
em si mesmo, o que se revela. Todo fenômeno é uma “totalidade do
que está à luz do dia, ou pode pôr à luz, ou seja, os entes” (HEIDE-
GGER, 1993, p. 63). A característica formativa de um fenômeno é o
mostrar que pode ser um mostrar em si mesmo ou um mostrar aquilo
que ele não é; um “se faz ver assim como”. Essa segunda condição do
fenômeno é denominada por Heidegger de aparecer, parecer e apa-
rência. Em um querer aparecer ele se mostra na aparência. O mostrar
que é aparência não pode ser entendido como falso já que ele contém
o mostrar como movimento primeiro. Apenas porque o ente quer se
mostrar é que ele pode existir enquanto fenômeno. Mesmo que a coisa
se mostre como outra, ou seja, ser aquilo que não é, ela mostra nessa
projeção do ser algo que é: o seu ser. O que pode estar mal colocado
é a pergunta que se faz ao ente, nunca a sua resposta. Outro ponto
importante nesse mostrar aparente é que ele adquire esta condição
por meio de uma modificação privativa. Não se trata de um erro, mas
de uma escolha.
121
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Heidegger expõe que uma manifestação é diferente de um


fenômeno enquanto aparecer, parecer, aparência, pois a manifestação
é sempre algo que em si não se mostra. Ela é apenas um anunciar-se.
Contudo, uma “manifestação só é possível com base no mostrar-se de
alguma coisa” que é o próprio ser do ente. A manifestação carrega
em si um fenômeno. E apenas por isso é que se pode confundir o
manifestar com um fenômeno enquanto aparência. Analisemos mais
de perto essa questão: “o fenômeno, o mostrar-se em si mesmo, significa
um modo privilegiado de encontro”. O encontro que se dá é com o
mundo. A partir do momento que um fenômeno se dá em si mes-
mo ele se abre para ser experienciado. Por outro lado, a manifestação
“indica no próprio ente uma remissão referencial, de tal maneira que
o referente (o que anuncia) só pode satisfazer a sua possível função
de referência se for um “fenômeno”, ou seja, caso se mostre em si
mesmo” (HEIDEGGER, 1993, p. 61). A manifestação é apenas uma
remissão a algo, que só poderá ser um fenômeno na medida em que
se colocar na posição de possível questionado. Ele só poderá ser refe-
rência enquanto fenômeno.
O outro radical da palavra fenomenologia é logos. Logos, para
Heidegger, significa discurso, que “deixa e faz ver aquilo sobre o que
se discorre e o faz para quem discorre (medium) e para todos aque-
les que discursam uns com os outros” (HEIDEGGER, 1993, p. 63).
Percebe-se que tanto fenômeno quanto logos estão embasados em um
elemento: o deixar e fazer ver, a iluminação e a descoberta do ser do
ente. Heidegger argumenta que o logos pode ser verdadeiro ou falso,
mas não em um sentido de concordância. Esse seria apenas o conceito
tradicional (moderno) de verdade que coloca o “lugar” da verdade na
proposição (o juízo) e a essência da verdade na “concordância” entre
o juízo e o seu objeto (HEIDEGGER, 1993, p. 282). Tanto o fenô-
meno quanto o logos são entendidos como algo que se revela, que se
mostra no movimento da verdade. A verdade como revelação é uma
das características ressaltadas por Gumbrecht como componente da
cultura de presença.
Partindo da tradição, ou seja, do conceito corrente de verdade,
Heidegger, em seu escrito Sobre a essência da verdade, aponta que a per-
gunta que devemos fazer não é sobre a essência da verdade, mas sobre
a verdade da essência. Elementos da cultura de sentido estão sempre
servindo para motivar aspectos da cultura de presença e vice-versa.
122
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Não há uma cultura puramente de sentido ou de presença, Gumbre-


cht destaca que ambas estão sempre atuantes e - mais importante -, a
preponderância do sentido produz uma nostalgia das práticas de pre-
sença. A saturação de um tipo de visão de mundo pede a outra.

À guisa de conclusão: a história enquanto presença

Heidegger põe a mostra em Ser e tempo quatro conceitos de


história e diagnostica que apesar de todas as diferenças entre eles exis-
te algo que os uni: a primazia do passado. Esta conclusão leva ao ques-
tionamento: se algo ainda não passou em que medida ele é histórico?
Mas será que o Dasein só se torna histórico pelo fato de não
mais estar pre-sente? Ou será que ele é histórico justa-
mente na medida em que de fato existe? Será o Dasein o
vigor de ter sido apenas no sentido do que vigora por ter sido pre-sente
ou será ele o vigor de ter sido enquanto algo atualizante e por vir, ou
seja, na temporalização de sua temporalidade? (HEIDEGGER,
1996, p. 186. grifo em negrito nosso).
A compreensão da temporalidade da historicidade pode se
dar de duas formas: autenticamente e inautenticamente. A temporali-
dade da historicidade imprópria é a compreensão do passado a partir
do presente, na qual resulta a busca pelo “moderno” (HEIDEGGER,
1996, p. 198). O antiquariato, entendido como uma prática de colecio-
nar sem sistematização e seleção, mostra a outra face dessa historici-
dade que é a coleção, ou seja, no interesse pelas relíquias e registros
históricos em si mesmos (INWOOD, 2002, p. 84). Por outro lado, a
temporalidade da historicidade própria, “enquanto in-stante que an-
tecipa e re-pete, é uma desatualização do hoje e uma desabituação dos
hábitos impessoais”. Ela “compreende a história como um ‘retorno’
do possível e sabe, por isso, que a possibilidade só retorna caso, num
in-stante do destino, a existência se abra para a possibilidade, numa re-
petição decidida” (HEIDEGGER, 1996, p. 198). O destino, contudo,
não significa na filosofia heideggeriana um caminho ao qual o ser está
fadado a trilhar, mas é uma decisão própria, é o acontecer originário
do Dasein. É na decisão que se constitui a transmissão de uma herança
(HEIDEGGER, 1996, p. 189).
A história, para Heidegger, começa pela primeira vez quando
os próprios entes são especificamente promovidos ao desencobrimen-
123
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

to e mantidos nele, quando esta manutenção é concebida em função


do questionamento acerca dos entes enquanto tais. Para Heidegger,
é somente a partir do modo de ser da história, a historicida-
de, e de seu enraizamento na temporalidade que se poderá
concluir de que maneira a história pode ser tornar objeto
possível da historiografia [...] A história não se encontra
no estudo sistemático dos acontecimentos, na ciência
historiográfica, mas no modo de ser da história (HEI-
DEGGER, 1996, p. 180, grifo em negrito nosso).
Ou seja, “o acontecer da história é o acontecer do ser-no-mundo” (HEI-
DEGGER, 1996, p. 194).
A delimitação do fazer histórico e do objeto da história para
Heidegger deve ser pensado tendo como base a proposição de que o
estudo da história, do passado, deve ser feito devido a sua relevância
como presença, como algo que é passado, mas que não passou. Nesse
sentido, Heidegger e Gumbrecht também têm propostas que se en-
contram. Na cultura de presença “não se trata de produzir um sentido
de distância, mas justamente sua dissolução pela experiência da força
substancial do objeto que é apresentado” (ARAÚJO, 2006, p. 327).
A proposta de uma historiografia que valorize as práticas de
presença é testada por Gumbrecht em seu livro Em 1926: vivendo no
limite do tempo. O objetivo do livro é fazer com que o leitor sinta-
se em 1926 através de práticas de presentificação do passado. Para
conseguir esse efeito o livro deixa de lado o tratamento evolutivo do
tema, característico das narrativas modernas, buscando uma organi-
zação que produza a simultaneidade. O livro trata apenas de um ano
específico e dos materiais que foram produzidos neste ano. Esta es-
colha não foi feita por acaso. A simultaneidade histórica tenta isolar
e tornar presente um passado. Neste projeto não existe a necessidade
de “começar pelo começo”, pois este livro não tem começo, no sen-
tido de que têm as narrativas ou discussões (GUMBRECHT, 1999, p.
09). O grande desafio de Em 1926 é “fazer pelo menos alguns leitores
esquecerem, durante o processo de leitura, que eles não estão vivendo
em 1926. Em outras palavras: evocar alguns dos mundos de 1926,
representá-los, no sentido de torná-los novamente presentes” (GUM-
BRECHT, 1999, p. 10).
Gumbrecht tenta tornar presente o ambiente histórico das
124
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

realidades de 1926. O que visa suprir é o desejo de “falar aos mortos’ –


em outras palavras, o desejo por uma experiência de primeira mão dos
mundos que existiram antes de nosso nascimento” (GUMBRECHT,
1999, p. 11). É o retorno às coisas por elas mesmas, a experiência não
mediada do mundo que a fenomenologia trouxe de novo a tona e que
Heidegger desenvolveu em Ser e tempo.

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em outubro


2007.

126
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

MOSAICO DIVINO: LINGUAGEM E


INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA NA OBRA DO
JOVEM HERDER

Eduardo Ferraz Felippe1


42

Resumo: Este artigo analisa a con- Abstract: This article analyzes the
cepção de linguagem e a interpretação language and the interpretation
da história na obra do jovem Herder. of the history in the youth’s work
Em um primeiro instante, este texto Herder. In a first instant, this text
articula a crítica do autor à filosofia articulates the author’s critic the illu-
iluminista e à legitimação da existên- minist philosophy and the legitima-
cia de uma concepção historicista, em tion of the existence of a historicist
seu texto Também uma filosofia da história conception, in his text Also a phi-
para a formação da humanidade. Em um losophy of the history for the humanity’s
segundo instante, busca-se compreen- formation. In a second instant, it is
der as bases da construção do conhe- looked for to understand the bases
cimento para o autor, construindo o of the construction of the knowl-
diálogo com Hamam e Hume, e, pos- edge for the author, building the
teriormente, com outros textos seus dialogue with Hamam and Hume,
como Ensaio sobre a origem da linguagem and, later, with their other texts as
e seu texto sobre Shakespeare. Essay on the origin of the language and
Palavras-chave: Herder, historicis- his text about Shakespeare.
mo, linguagem, gênio romântico. Key-words: Herder, historicism,
language, romantic genius.

Em geral, repensar o fazer histórico pode levar, muitas ve-


zes, aos novos diálogos que a História atualmente vem tecendo com
outras disciplinas, como o seu diálogo com a literatura, a antropolo-
gia ou algum outro campo do saber. Neste percurso, geralmente a
História passa a ser entendida como uma disciplina que, através das
diferenciadas interfaces que mantém, pode ganhar um grau maior de
sofisticação por aglutinar elementos fruto deste diálogo com outros
campos do conhecimento. Um processo de recriação contínua, ex-
pandido através do contato com outras cadeiras institucionais, saberes
e perfis acadêmicos diferenciados. Além deste caminho, frutífero, que
aposta em um grau maior de contato e mudanças, há outro percurso
que busca entender o longo processo de sedimentação das bases sobre
as quais se assentou a disciplina. Cabe aqui investigar caso dessa natu-

1
Mestre em História Social da Cultura na PUC-Rio. Este texto contou com o apoio
da CAPES. E-mail: eferrazfelippe@oi.com.br
127
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

reza, a análise de um autor que lidou com a história, que “pensava com
a história”, conforme expressão de Carl Schorske, antes dela tornar-se
uma disciplina científica e ser regida por uma metodologia que tentas-
se aproximá-la das ciências naturais.
O percurso escolhido para repensar o fazer histórico será a
interpretação da história na obra do padre pietista Johaan Gottfried
Herder. Neste texto procuro deter-me na produção do “jovem Her-
der”, lendo de forma mais intensa seu texto Também uma filosofia da
história para a formação da humanidade, cotejando com outros dois textos
do mesmo período: Ensaio sobre a origem da linguagem, e seu texto crítico
sobre Shakespeare. Estes textos possuem um mesmo ponto de conexão
que é a potencialidade dada ao sujeito através da sua atividade reflexi-
va, ou seja, um observador de segunda ordem que, através da reflexão,
exerce a sua radical diferença ontológica diante de Deus, mas também
impõe um limite ao discurso sobre a história.
Para isso, no primeiro momento deste texto, a discussão remete
às dimensões da história presentes em seu texto sobre a filosofia da his-
tória. Há uma questão que atravessa todo o texto que é o problema da
comparação e o tema que permeia esta questão é o lugar da interpreta-
ção na história. Em um segundo momento do texto, a intenção é refletir
sobre a sua concepção de conhecimento, mas em diálogo intenso com
a noção de história dispersa em alguns de seus textos. Pensar a questão
da linguagem é fundamental, visto que pensar os limites da linguagem
é pensar os limites do humano, o que deriva a discussão para a constru-
ção do conhecimento nos textos do autor que se encontra de maneira
intimamente associada à sua interpretação da história.

Discurso sobre o jardim de Deus

A intenção de compreender a obra do “jovem Herder” está


associada à preocupação de compreender o historicismo enquanto
possibilidade de conhecimento histórico.243 A delimitação histórica

2
George Iggers (1983), em seu livro sobre a concepção alemã de história, diz que
em Herder (1994) pode ser encontrado o estabelecimento definitivo de uma posição
historicista, visível quando Herder pede que cada época seja vista em seus valores.
Não entraremos em um debate sobre o conceito, mas o utilizaremos para o desenvol-
vimento das questões propostas em nosso trabalho.
128
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

para o entendimento desse termo se situa no período que abrange o


fim do século XVIII e se coloca em diálogo com a questão da moder-
nização do pensamento histórico. Ainda que o percurso deste texto
não esteja tratando das diferenças entre historicismo e iluminismo em
âmbitos gerais, mas tratando de sua ligação com o conjunto de ques-
tões ponderadas na produção de Herder, cabe considerar, em termos
contextuais, que, conforme a interpretação clássica de Friedrich Mei-
necke, o historicismo é um fenômeno que possui uma natureza quase
exclusivamente germânica, visto através da ruptura com o iluminismo
(MEINECKE, 1943). Em outra vereda, Peter Hans Reill (1975) pro-
duz outra interpretação onde analisa que a necessidade de identifica-
ção das particularidades das épocas históricas estaria já presente na
preocupação iluminista com o progresso e o processo e colocariam,
imediatamente, questões como a possibilidade de conhecimento do
passado.
Feita a necessária contextualização, entendemos, para os fins
deste artigo, que o mais plausível seja utilizar termos do próprio voca-
bulário de Herder, evitando a utilização de características gerais que,
ao invés de auxiliarem no entendimento, acabam por se tornar obs-
táculos para a leitura intensiva dos seus textos. Portanto, cabe consi-
derar, ainda tecendo considerações de âmbito contextual, que este foi
o período em que houve a aquisição do sentido da História desde si
mesma, conforme ensina Koselleck (1989), uma história sem sujeito
ou objeto agregado.
Nessa modernização epistemológica, o que estava em construção
era o papel do observador que não deixava de se observar a partir
o momento em que observava o mundo. Uma “crise da represen-
tabilidade” que motivou a temporalização como forma de aglutinar
diferenciadas formas de representação. Nesse sentido, o “tempo his-
tórico” surgiu como “um cronótopo historicamente específico”, pois
somente em fins do século XVIII ao tempo foi atribuído o papel de
agente de mudanças. Isto possibilitou a modalização temporal, onde
o presente necessita ser experienciado tanto como modificação do
seu passado como sendo potencialmente modificado pelo seu futuro
(GUMBRECHT, 1998, p. 15). Sob esta perspectiva, a historicização e
a narrativização apareceram como formas de manipular o problema
da percepção do mundo e da experiência. A história deixou de signi-
ficar as múltiplas histórias individuais para passar a designar o termo
129
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

singular-coletivo História (KOSELLECK, 1989, p.79).


Nessas ambiências, ocorreram uma série de querelas, debates
e divergências acerca da escrita da história, envolvendo tanto autores
franceses quanto alemães, entre outros; o que implicava em modelos
contrastantes acerca de uma forma de compreensão do tempo e da te-
oria do conhecimento. Em seu texto Também uma filosofia da história para
a formação da humanidade, Herder expõe de forma detida sua concepção
sobre a escrita histórica e constrói um texto em que ataca diretamente
as perspectivas interpretativas e estéticas do Iluminismo francês do
final do século XVIII.
Nesse sentido, cabe considerar que houve a tentativa, por par-
te da filosofia das Luzes, de abordar os problemas da natureza e da
história com o mesmo aparato intelectual em busca de um fundamen-
to imanente para a história. Através da unidade epistemológica entre
natureza e cultura, foi possível questionar aos fatos do mundo dos
homens da mesma forma que os fatos da natureza, fazendo com que
aquilo que se chama história, que visto do exterior se manifesta como
um enredo de acasos, perdesse este aspecto incompreensível à medida
que se passava do fenômeno para a sua verdadeira profundidade. No
caso, é a partir desta profundidade que é possível obter o sentido dos
eventos externos, “os fenômenos reduzem-se a uma razão que permi-
te explicá-los” (CASSIRER, 1997, p. 218). Da profundidade em que é
possível arrancar a razão subjacente aos fenômenos, a concepção de
constância da natureza humana tornava possível à História observar o
seu processo e o seu progresso. A história tornava-se filosofia.
No texto Também uma filosofia da história para a formação da hu-
manidade, a crítica ao Iluminismo, por parte de Herder, é expressa de
maneira incisiva em múltiplas passagens. Citando-o:
Ora, como segundo os nossos conceitos (e talvez mesmo
sentimentos) europeus, se pode falar de coisa mais horren-
da do que despotismo, consolamo-nos com este gesto de
o afastar de nós...Oh homem, não te deixas enganar pela
palavra do filósofo profissional... Vê como aquilo a que,
neste tenro germinar da humanidade, chamas despotis-
mo... conseguia realizar coisas a que hoje, equipado com a
frígida filosofia do teu século, te vês obrigado a renunciar!
(HERDER, 1994, p.13).
A crítica veemente empreendida contra a frígida filosofia e
seus filósofos profissionais, ao longo do livro, (aqui, especificamen-
130
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

te, a crítica é empreendida contra Montesquieu) possui muito mais o


caráter de indício do que de fundamento. Há múltiplas passagens em
que é caracterizada a impropriedade de se julgar uma época pela ou-
tra, fruto do não reconhecimento, em um tempo determinado, da sua
própria organicidade. Opta-se, a partir desta interpretação, pela artifi-
cialidade, ou seja, pelo caráter mediático constituído ao se ver algo por
aquilo que ele não pode ser: um presente projetado no passado.
No texto Também uma filosofia da história para a formação da huma-
nidade a exposição da história da humanidade é feita através de analo-
gias das idades do ser humano. Herder mostra, ainda neste texto, que
é fundamental que não se tome o egípcio pelo grego, nem este pelo
romano, ou, ainda, o fenício pelo infante da era dos patriarcas; da mes-
ma forma que não se pode exigir do adolescente a atitude do adulto
ou do idoso o vigor de uma criança. Por detrás das analogias, Herder
mostra que cada qual deve ser visto em seu limite:
Também aqui volta a ser loucura querer isolar das circuns-
tâncias tempo e lugar,..., uma única virtude egípcia e avaliá-
la com o instrumento de medida próprio de um tempo
diferente! Se é verdade que, como disse atrás, os gregos
se enganavam tão flagrantemente sobre os egípcios e se
os orientais detestam os egípcios, parece-me que o nosso
primeiro pensamento deveria ser o de os ver no seu lugar
próprio, porque de outro modo, sobretudo na nossa pers-
pectiva de europeus, não conseguiremos ver mais do que
uma caricatura deformada (HERDER, 1994, p. 21).
As épocas são caracterizadas por analogia, demonstrando que
em cada uma há um amálgama entre o que é bom e ruim, e que o iso-
lamento de cada uma destas épocas frente o fluxo temporal da história
torna o empreendimento louco, pois deixa de observar a particulari-
dade de cada uma das sementes de Deus. Deformadas por um olhar
errôneo, tornam-se caricaturas. Não se observa que “a autoridade e o
despotismo continuassem a ser veículo da sua formação cultural”. A
sua temporalidade ocorre mais por descontinuidade do que por pro-
gressão; não por um processo que apresente, após um desvelamento,
seu fim: “Os pastores, os egípcios e os gregos são três momentos
sobrepostos numa inseparável sequência” (HERDER, 1994, p. 38).
As analogias demonstram que cada época deve ser vista em seu limite,
um centro em si mesma. Herder procura representar a história como
o discurso analógico de Deus na natureza. A valorização dada por
131
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Herder ao âmbito da experiência e a sua representação da história


por forma analógica, recheado de metáforas orgânicas, dão o tom da
escrita de todo o texto.
Em contraste com a filosofia fundada em leis naturais, o autor
assume que todos os valores são históricos e individuais: “Em certo
sentido, toda perfeição humana é nacional, secular e considerada in-
dividual” (HERDER, 1994, p. 45). Apesar da história estar em cons-
tante movimento, há certos centros que possuem estabilidade, e estes
são as nações. Estes organismos possuem uma morfologia própria;
são vivos e possuem dinamismo. O seu conceito de nação como fonte
do julgamento verdadeiro implica um critério não objetivo de verdade
a ser aplicado na interpretação do fenômeno social ou cultural. Con-
forme diz Isaiah Berlin (1978, p. 16), Herder não era nacionalista, mas
supunha que diferentes culturas podiam e deveriam florescer no gran-
de jardim humano. Dessa maneira, a espontaneidade e dinamismo da
vida recusam-se a serem reduzidos a um denominador comum.
A observação do limite de cada época histórica influencia não
somente seu texto sobre a filosofia da historia. Em seu texto sobre
Shakespeare, o autor exprime a unicidade da poesia grega, não pelo
reconhecimento da impossibilidade daquela imitação, mas por ter
consciência da historicidade das formas literárias:
O drama surgiu na Grécia, como não poderia ter surgido
no Norte. O que ocorreu na Grécia, não poderia ter ocor-
rido no Norte. No norte não ocorre nem pode ocorrer o
que ocorreu na Grécia. Assim, sob certo ponto de vista,
o drama de Sófocles e o drama de Shakespeare são duas
coisas que entre si simplesmente tem o nome em comum
(HERDER, 1993, p. 32).
Em um nível individual, o trabalho do artista expressa a per-
sonalidade e seu sentimento; em um nível geral, a arte de um tempo
e lugar expressa os valores, aspirações e o meio cultural da sociedade
que o produz. Nesta instância, as formas derivativas ou imitativas se-
riam desqualificadas por não serem capazes de apreender a ambiência
que não estaria mais presente, o que torna a experiência histórica fun-
damental para a compreensão da obra de arte.
O texto de Herder concorda com a obra de Winckelman, de
que a obra de arte é produto da ambiência física e cultural, diferencia-
se deste, entretanto, por não admitir que o exemplo grego seja válido
132
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

para todas as épocas. Apesar disto, Herder “não é inimigo do neo-


classicismo, a comparação com os gregos não mostra a intenção de
um estudo comparativo” (NISBET, 1993, p. 15) e sim a consciência
de que pouco se ganha caso se queira tomar Sófocles para o entendi-
mento de Shakespeare. Ele aplica à tragédia grega a mesma teoria que
Winckelmann havia aplicado à escultura antiga e a estende à tragédia
de Shakespeare. Sendo que, de maneira diferenciada, Shakespeare é a
expressão do homem de gênio em seus escritos, aquele indivíduo ideal
no qual todas as forças intelectuais e sensíveis do homem se desenvol-
vem em perfeita harmonia. Mas nenhum indivíduo, por mais favore-
cido que seja pode exprimir o desígnio da criação em si, mas somente
a espécie, como também afirma Kant em seu texto Idéia de uma história
universal do ponto de vista cosmopolita, e não no indivíduo (KANT, 1986).
De qualquer modo, certas criaturas privilegiadas podem,
como a mônada leibniziana, se “situar na perspectiva correta” para
observar aquilo que os atores isolados da cena ou do mundo não vêem
(HERDER, 19994, p. 96). Além disso, em alguns casos, o talento não
se restringe a ser apenas espectador, mas se transfigura em um segun-
do criador, que pode produzir um microcosmo como uma imagem
fiel da Providência divina. Respondendo questões da discussão estéti-
ca do século XVIII, Herder afirma que Shakespeare transgride as re-
gras teatrais com sua desordem e embriaguez, mas age conforme leis
mais altas de uma “teodicéia de sabedoria infinita” (HERDER, 1993a,
p.152). Os personagens são seres inteiros, individuais, capazes de agir
historicamente, ligados por um fio contínuo, menos perceptível, a um
plano secreto mais alto (HERDER, 1993a, p. 149). O autor inglês é
aquele capaz de unir o personagem com uma representação que aglu-
tina o espírito de uma época; uma expressão por excelência, visto que
as épocas não seguem um princípio de causalidade.
Cada época é meio e fim em si, havendo um abismo entre as
épocas. Este abismo impõe um limite ao discurso sobre a história. A
conceitualização esvazia a história de sua qualidade vital, necessitando
de entendimento. Mas esta compreensão somente é possível se obser-
varmos o que há de individual. A razão abstrata requer o confronto
com o que há de individual de cada nação, para apreender, através da
intuição, a estrutura histórica:
O espírito humano recebeu as primeiras formas de sabe-
doria e de virtude com uma simplicidade, uma intensidade
133
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

e uma elevação que hoje, para dizer de modo abreviado,


no nosso mundo europeu, filosófico e frio, não têm ab-
solutamente nenhum termo de comparação. E é precisa-
mente porque já não somos capazes nem de compreender
essas formas nem de as sentir... que as ridicularizamos ou
interpretamos mal. E com isso fornecemos a melhor das
provas (HERDER, 1994, p. 15).
A relação posta entre o presente e o passado é uma relação
de alteridade. O passado é Outro, não cabendo julgamento por parte
do presente. O ato de conhecer pressupõe a atitude reflexiva do sujeito
ante o passado, procurando compreendê-lo em sua organicidade e sin-
gularidade; a atitude fria européia de separação radical entre sujeito e
objeto tornou o sujeito autocentrado, tornando o passado um Mesmo.
A história viva é alter, pois cada época apresenta seu centro
em si mesma, daí a singularidade que propicia a Herder compreender
a multiplicidade das culturas. O pluralismo é a perspectiva da inco-
mensurabilidade dos valores de cada cultura e a incompatibilidade dos
ideais igualmente válidos, contra uma noção clássica de homem que
permita julgar outras sociedades (BERLIN, 1976, p. 140). Pluralistas
e não relativistas, pois o relativismo aproxima-se muito mais de uma
perspectiva segundo a qual o juízo de um homem ou de um grupo é
algo em si mesmo, sem nenhum correlato objetivo que determine sua
validade ou inexatidão (BERLIN, 1991, p. 76).
Isaiah Berlin diferencia pluralismo de relativismo visto que
no primeiro haveria um correlato objetivo que determinasse exatidão
frente à grande gama de culturas. Conforme o próprio texto do autor,
torna-se pertinente acreditar que não há somente pluralidade de “ob-
jetos”, mas também uma infinitude de discursos sobre o mesmo – o
que torna o termo multiplicidade muito mais rico para designá-lo:
Tudo providenciou, a nossa boa mãe... Colocou disposi-
ções para a diversidade no coração humano, mas colocou
também uma parte da multiplicidade ao nosso alcance, no
círculo que nos envolve, e deu ao olhar humano uma tal
proporção que, depois de breves momentos de adaptação,
o círculo se constitui em horizonte... Mas o seu objetivo
foi tão somente o de me reconduzir a mim mesmo, de me
fazer encontrar a satisfação naquele ponto central que me
transporta. O grego apropriou-se tanto quanto era neces-
sário das produções do egípcio, o romano da dos gregos.
O preconceito é bom... é ele que faz com que um povo se
vire para o seu ponto central (HERDER, 1994, p. 43).
134
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O discurso histórico se dá na medida em que nomeia correta-


mente e diz o que cada época ou nação foi em sua singularidade, não
atribuindo a virtude do grego ao egípcio e vice-versa. Ao observar
cada cultura em seu limite, o autor procura evitar o erro do anacronis-
mo. A observação da singularidade de cada uma das flores de Deus,
seu limite e contingência, torna-se propício ao observador, desde que
não projete sua própria imagem no passado.
Mas esta multiplicidade, fruto da diversidade cultural existen-
te, está articulada a partir da tensão entre unicidade e multiplicidade.
Há uma relação de reciprocidade entre ambos que é fruto da concep-
ção leibniziana de mônada, presente no texto de Herder (IGGERS,
1983, p. 33). Esta concepção se propõe a distinguir o que permanece
sob a mudança, residindo a sua originalidade em apresentar a relação
entre o um e o múltiplo, entre a duração e a mudança: “A substância
persiste na mudança; ela é força diretamente ativa, produtividade de
uma diversidade sem fim, a partir de si” (CASSIRER, 1997, p. 306).
No lugar do conceito newtoniano de Natureza como um mecanis-
mo de partes intercambiáveis, governada por leis abstratas reduzíveis
por uma formulação matemática, Leibniz apresenta a visão de cosmos
preenchida por um conteúdo próprio repleto de mônadas, cuja ener-
gia e desenvolvimento estão em acordo com leis de mudança próprias:
“O termo Wissenchaft como é usado desde de Leibniz apresenta sen-
tido muito mais amplo que o termo Science usado por Franceses ou
ingleses” (IGGERS, 1983, p. 34).
Nessa instância, assim afirma Herder:
Ninguém está em sua época sozinho, constrói sobre o pre-
cedente, e este não se torna outra coisa senão fundamento
do futuro, e outra coisa não quer ser – assim fala o modo
analógico da natureza, a imagem discursiva de Deus, em
todas as obras!...Autêntico progresso, desenvolvimento
progressivo, ainda que nenhuma parte seja a vitoriosa! Vai
em direção a algo de maior! ...Se nós não podemos ver
imediatamente a intenção definitiva, palco da divindade,
ao menos por aberturas e escombros (HERDER, 1994,
p. 39).
A passagem anteriormente citada deixa clara uma concepção
particular de tempo utilizada por Herder. As metáforas ligadas à natu-
reza demonstram que a estrutura se mostra como uma semente que se
desenvolve, folhas que são originadas da árvore, mas que não neces-
135
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

sariamente deveriam ter crescido como parte que contém o todo em


sua singularidade. A temporalidade, em seu texto, ocorre por “preg-
nância” (CALDAS, 1999, p. 56). A crítica veemente contra a concep-
ção temporal iluminista da linearidade do tempo e de sua teleologia,
é feita pelo autor a partir da percepção da estratificação do tempo, a
afirmação de que cada objeto possui o seu próprio tempo e leva em si
a medida do tempo: “No universo existem em um momento muitos
e inumeráveis tempos”( HERDER apud KOSSLECK, 1988, p. 230).
Cada época possui seu centro em si mesma, mas está articulada em
um todo.
A História, que no Iluminismo apresenta-se como a “radi-
calização da gênese” (BINOCHE, 1994, p. 13) no texto herderiano
apresenta uma concepção de tempo muito própria. Não há evolu-
ção, mas uma reelaboração constante de épocas anteriores, onde há
permanências e descontinuidades, dotando tanto o passado quanto o
presente de vícios e virtudes. Para que uma época avance é necessário
que ocorra a perda, sendo este um dos limites humanos impostos pelo
Criador. O passado não é ultrapassado; há uma constante reelaboração
da tradição, pois o passado impregna o presente. A tradição é a cons-
tante primazia da experiência sobre a filosofia e o progresso é fruto de
uma seleção errônea de determinados fatos, pois
até hoje, quando se procurou tratar o tema da progressão dos
séculos quase sempre surgiu a companhia de uma idéia favori-
ta: progressão orientada para maior virtude e maior felicidade
dos indivíduos particulares. Para tanto, houve que enaltecer,
senão mesmo inventar, determinados fatos, houve que dimi-
nuir ou silenciar fatos contrários (HERDER, 1994, p. 44).
Há uma dimensão de futuro no texto, onde a história apresen-
ta-se como um processo benevolente. A negação da idéia de progresso
está fundamentada na negação do avanço unilinear das culturas. O
significado da história não está na direção dos eventos para um fim
racional, mas na multiplicidade de caminhos que cada cultura pode
assumir: “O propósito de nossa existência é desenvolver o elemento
da humanidade (Humanität) presente em cada um de nós”. Enquanto
o Iluminismo expressa a comum característica do homem e sua racio-
nalidade, the Humanistätsideal expressa a diversidade do homem e a
interrelação de todos os aspectos de sua personalidade, racionalidade e
irracionalidade, em perfeita harmonia (IGGERS, 1983, p. 38). Há uma
tensão no texto de Herder entre singularidade e humanidade:
136
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Precisamente porque o bem não deixa conter numa só for-


ma da humanidade, num só território, multiplicou-se em
mil formas, deambula...E, à medida que assim vai deambu-
lando e transformando-se, não é pela maior virtude e felicidade
dos particulares que anseia... A humanidade permanece
sempre humanidade... Palco da divindade, ainda que só
possamos vê-lo por entre as aberturas e os destroços de
cenas particulares (HERDER, 1994, p. 46).
Somente Deus pode conhecer todo o processo da história,
ao homem é fadado refletir sobre os escombros que permanecem.
Resíduos de um passado que ainda impregna o presente. A diferença
ontológica entre Deus e o homem gera uma percepção diferenciada
da história pela imposição de um limite para o conhecimento humano.
O sujeito interpretativo é profundamente limitado. Mesmo em seu
mergulho nas épocas, não é possível compreender a totalidade signi-
ficativa da história:
Quando tu fixas a tua perspectiva em um quadro, e te con-
centras em um pequeno canto, nunca verás o quadro em
sua integridade. Vês então que um quadro geral e conceito
geral só podem ser abstrações. Somente o criador é capaz
de pensar, sem que desapareça a multiplicidade, a unidade
e todas as nações em sua diversidade (HERDER, 1994,
p. 38).
Apesar de não estar tematizada de maneira explícita, há um
debate acerca do estatuto da linguagem. O fato de a linguagem ser
condição para o homem torna-a, por definição, o sistema mais social
de todos. Cada povo constrói um mundo a partir da sua linguagem,
pois a singularidade é caracterizada pela originalidade fruto da conver-
sa específica de Deus com cada povo. A originalidade é criativa, pois
cada uma das experiências singulares é a expressão de Deus. Cada
“cultura” tem a sua originalidade. Há uma mudança com relação ao
objeto, que deixa de ser a Humanidade e passa a ser a pluralidade
cultural. Compreender a originalidade passa ser fundamental, pois se
supõe que o original passa a ser dado na origem. Há um deslocamento
com a preocupação temporal, que passa a se tornar até o oposto que
o Iluminismo, uma volta ao passado para a compreensão de como um
povo passou a ser original.
Em seu Também uma filosofia da história para a formação da huma-
nidade, a História é o discurso analógico de Deus. Este é o todo que
137
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concentra as múltiplas singularidades expressas em cada época.344 Há


um limite do conhecimento para Herder e este limite é o conhecimen-
to do todo, pois esse somente é acessível à providência. A diferença
ontológica entre Deus e o homem, ao mesmo tempo em que afirma a
potencialidade do conhecimento para este, nega-lhe o conhecimento
total. Por isso a multiplicidade das culturas é essencial para o autor,
pois a completude de sentido somente é dada a Deus.

Movimentos do concerto humano

Visando matizar este ponto, é imprescindível considerar que


Herder foi discípulo de Haman para quem toda a verdade era particu-
lar, nunca universal. O verdadeiro conhecimento é a percepção direta
de entidades individuais e os conceitos nunca são, por mais específicos
que possam parecer inteiramente adequados à plenitude da experiên-
cia individual. A descrença no postulado de verdades universais para
este autor apoiava-se em duas leituras: A leitura da Bíblia e a leitura de
Hume.
Haman traduziu o Diálogo sobre a religião natural de Hume que
considerava “pleno de beleza poética” (BERLIN, 1997, p. 49). Se-
gundo o percurso da leitura de Hamann, Hume construiu sua teoria
criticando a metafísica pela possibilidade de conhecimento a priori, di-
zendo que todas as operações naturais são arbitrárias se não consul-
tarmos a experiência. De um fato não é possível deduzir outro fato, a
necessidade é uma relação lógica, ou seja, uma relação entre símbolos
que não possui lugar na realidade do mundo. Ao refletir sobre a ori-
gem das idéias, as divide em pensamentos ou idéias e as impressões,
dizendo que o pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação
mais obscura.
Ao refletir sobre as relações de idéias e de fatos, diz que as
relações de causa e efeito não podem ser descobertas pela razão, mas
somente pela experiência, onde é possível observar se objetos particu-

3
Em diálogo com esta questão, cabe considerar que o critério de Volkspoesie, em
seu texto “Ossian and the songs of Ancient Peoples”, é descrito como um termo que
expressa muito mais do que simples canções folclóricas, mas aquelas que refletem e
expressam a cultura que as germinou. Escombros que permanecem do passado e que
a linguagem expressa; signos de Deus a serem interpretados (HERDER, 1993b).
138
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lares estão conectados entre si. Mas não existe a garantia de que eles
acontecerão:
Todo efeito é distinto de sua causa. Portanto não poderia
ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrá-
rio conhecê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois
que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito
com a causa deve parecer igualmente arbitrária, visto que
há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer
igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, preten-
deríamos determinar qualquer evento particular ou inferir
alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação ou ex-
periência (HUME, 1989, p. 80).
Há uma descontinuidade existente entre o efeito e a causa que
impede que sejam conhecidos unicamente pela abstração: “Daqui po-
demos descobrir porque motivo nenhum filósofo racional e modesto
jamais pretendeu indicar a causa última de qualquer fenômeno natural
ou efeito no universo” (HUME, 1989, p.84). O princípio que valida as
inferências, resolução cética das dúvidas, funda-se em um único prin-
cípio. Este princípio é o costume ou o hábito: “Todas as inferências
tiradas da experiência são efeitos do costume e não do raciocínio”
(HUME, 1989, p. 86). Ao pensar sobre a relação entre as inferências e
a experimentação, o autor observa que o método filosófico adequado
é aquele que permite a contínua reforma de nossas idéias acerca das
operações do entendimento humano. E as idéias são reformadas por
estarem relacionadas com suas impressões correspondentes.
O ataque de Hamann contra as implicações da reflexão me-
tafísica se apóia em sua repetida afirmação de que a revelação ocorre
entre o contato direto entre um espírito e outro e entre Deus e nós
mesmos. O que vemos, compreendemos e entendemos nos é dado
diretamente. A interdependência entre experiência e revelação divina
possui muito da influência de Hume. Em carta a Herder, Hamann
afirmaria: “Hume é o meu preferido, pois pelo menos ele prestou uma
homenagem ao princípio da fé, incorporando-a ao sistema” (HA-
MANN apud BERLIN, 1997, p. 32). Apesar da concepção de fé no
texto de Hume não ser muito clara, ela foi fundamental para a concep-
ção de fé concebida por Hamann. Conforme a observação de Isaiah
Berlin, a crença e o conhecimento da realidade, livre de conceitos a
priori, são as bases da epistemologia para Hume.
O Homem não é um receptáculo passivo que recebe sensa-
139
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ções, mas a faculdade de agir e de criar são qualidades empíricas que


diferem segundo os homens e sociedades, de acordo com a interpreta-
ção do autor bretão. Isto permitiu a Isaiah Berlin dizer que “Hamann
transforma com audácia o ceticismo de Hume em uma afirmação ou
uma crença no conhecimento empírico” (1978, p. 52). A divisão pos-
tulada entre realismo e idealismo é fruto da inteligência escolástica,
visto que a linguagem da natureza não é matemática e Deus é um
poeta e não o geômetra. É necessário interpretar os sinais deixados
por Deus. Esta interpretação dos sinais da divindade o leva a uma
interpretação da linguagem. Não há para o mestre e o aluno conheci-
mento ou pensamento que não seja simbólico; entretanto, a essência
do simbolismo é a comunicação: a comunicação entre os homens e
entre o homem e Deus.
Seu discípulo Herder compreendeu bem sua lição. Neste caso,
para entender melhor o desenvolvimento de suas proposições acerca
da construção do conhecimento, cabe direcionar a atenção para outro
texto do autor. Em seu Ensaio sobre a origem da linguagem, Herder pro-
põe o elogio da experiência atrelado à valorização da tradição, como a
passagem abaixo expressa:
as primeiras experiências não são experimentos frios, len-
tamente raciocinados e cuidadosamente abstraídos, como
o faz o relaxado e solitário filósofo a perseguir a natureza
em seu oculto processo, e não mais quer saber que ela fun-
ciona, mas como funciona (HERDER, 1987, p. 47).
Para se alcançar a configuração do passado, a abstração ne-
cessita estar atrelada à experiência. Com a desvalorização da abstração,
a experiência passa a ter primazia sobre a filosofia, o elemento frio,
raciocinado, que apenas quer saber como funciona.
Em seu Ensaio, Herder atrela a idéia de sujeito à idéia de re-
flexão, como atitude fundamental para o conhecimento humano. A
reflexão sobre a linguagem, no autor, é parte constitutiva da sua re-
flexão sobre a história, pois ambos carregam em suas palavras uma
concepção sobre o entendimento humano. Esta concepção tem como
primeira contraposição uma crítica à afirmação racionalista de que há
um caminho a priori para a realidade. Há um deslocamento temático
e metodológico de uma concepção de linguagem que influencia os
conhecimentos e as ciências, apesar da independência original das per-
cepções que ela designa para uma linguagem que forma a percepção,
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o conhecimento e o saber. Torna-se, por isso, eixo da compreensão


do antropológico, quer no sentido organizacional, quer no sentido
histórico: “Sem linguagem o homem não possui razão e sem razão
não tem linguagem” (HERDER, 1987, p. 53). A linguagem passa a
ser condição para a formação do homem, que para além de razão
e conhecimento, passa a ser também emoção, criatividade, educação,
cultura e história. O aluno ecoa as palavras do mestre Hamann, “a
linguagem é o primeiro e último órgão e critério da razão” (BERLIN,
1978, p. 88).
O ensaio está dividido em duas grandes partes. A primeira
está dividida em três capítulos, onde nos dois primeiros Herder faz
a crítica das teses mais aceitas sobre a origem da linguagem, quais
sejam, a racionalista e a sensualista, permeando-a com a sua própria
teoria sobre o assunto. O terceiro capítulo que fecha a primeira parte
tem a função de afirmar a constituição da linguagem pelos sentidos.
A centralidade do ouvido, para o autor, desmonta a primazia normal-
mente atribuída à visão na teoria do conhecimento, complexificando a
relação entre apreensão/criação do sujeito na Natureza, colocando-o
em um papel muito mais ativo. Na segunda parte do ensaio, o autor
elabora quatro leis naturais que fariam do homem animal de lingua-
gem, fundamentando mais especificamente sua concepção.
Herder constrói sua teoria desmontando duas concepções
sobre a linguagem, a origem divina e a origem animal. A afirmação
inicial do texto, “logo enquanto animal o homem possui linguagem”
(HERDER, 1987, p.14), vai ao cerne da crítica herderiana à origem
divina da linguagem. Herder está questionando especificamente as te-
ses de Süsmilch sobre a origem divina da linguagem e sua afirmação
de que a origem divina é capaz de ser comprovada pela capacidade
de reduzirmos todas as línguas a uma vintena de letras presentes no
alfabeto.445 A tese herderiana diz que estas são fruto de impressões
expressivas e não abstratas, que são inarticuladas, estando o sujeito
no centro da articulação das mesmas. O ato criativo que dá sentido
à massa inarticulada de sons é fruto da ação do sujeito. A concepção
herderiana critica a idéia de que para melhor conhecer o fundamento

4
Johann Peter Sussmlich escreveu, em 1776, também como resposta a um concurso
aberto pela academia de Berlim a obra: Tentativa de uma prova de que a primeira língua não
obteve a sua origem do homem, mas somente do Criador (JUSTO, 1987).
141
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da linguagem deveria ser necessário buscar uma origem (neste caso


concebendo-a como diacronia) da mesma. Uma busca por uma ori-
gem primeva da linguagem não resolveria nada, pois neste momento
primevo não reside um momento inaugural de uma gênese:
e, se uma língua é tanto menos articulada quanto mais pró-
xima estiver da origem, que consequência podemos tirar
senão a de que certamente não foi inventada por um ser su-
perior juntamente com as vinte e quatro letras do alfabeto,
nem para caber dentro delas, que estas foram uma tentati-
va muito posterior e imperfeita para fixar alguns sinais que
facilitassem a recordação, e que a linguagem resultou, não
de letras da gramática de Deus, mas sim das sonoridades
selvagens de órgãos livres (HERDER, 1987, p. 34).
A concepção divina da linguagem negaria a pluralidade pró-
pria ao humano que torna rica a própria vida. Nesse caso, a própria
pergunta acerca da origem da palavra não merece ser feita, visto que
não se chegará a um ponto final acerca da questão:
As palavras surgiram porque já havia palavras antes de ha-
ver palavra: parece-me que não vale a pena continuar a
seguir o fio desta explicação porque...não conduz a lado
nenhum (HERDER, 1987, p. 40).

A alteridade entre presente e passado também é fruto de uma


limitação imposta pela linguagem. As palavras não são capazes de re-
construir o passado, há uma limitação imposta à sua representação,
conforme expressa em sua filosofia da história:
Pálida é a imagem incompleta e descolorida das palavras!
Seria preciso que lhe acrescentássemos, ou que conseguís-
semos, fornecer previamente, todo o quadro vivo do modo
de vida de um povo, dos seus hábitos, das suas necessida-
des, da paisagem e do clima em que habita! (HERDER,
1994, p. 35).
Mas as impressões, que caracterizam a linguagem como ani-
malainda não a singularizam como próprias ao homem. Apesar dos
animais possuírem a faculdade da impressão não possuem o entendi-
mento singular/diferenciador ao humano:
não há animal nenhum, nem o mais perfeito, que chegue
a possuir qualquer coisa que se pareça com um verdadei-
ro rudimento da linguagem humana. Podemos modificar,
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aprimorar, organizar este grito como quisermos, mas se


lhe não vier junto ao entendimento para utilizar esta so-
noridade intencionalmente, não vejo como possa aparecer
uma linguagem humana (HERDER, 1994, p. 48).
Os homens não têm uma esfera estreita e uniforme como os
animais, possibilitando-os a amplitude de reflexão e a possibilidade
de interpretar: “Os sentidos e a organização do homem não estão
aperfeiçoados em uma direção específica” (HERDER, 1994, p.58) dife-
renciando-se dos animais não somente por se elevar acima ou abaixo
dos animais, mas por haver uma mudança de modalidade. Ao homem
é possibilitada a criação da multiplicidade por Deus, nele há a impossi-
bilidade de uma tarefa uniforme, previsível e constante.
O conceito de reflexão, presente no texto de Herder é o ponto
de encontro de múltiplas de suas formulações e dá a dimensão de
muitas visões elaboradas pelo mesmo. Em seu Ensaio sobre a origem da
linguagem, Herder critica o conceito de razão como uma força isolada,
a partir da utilização do termo reflexão, sendo este uma singularidade
humana que o possibilita criar:
Colocado no estado de reflexão que lhe é próprio, logo que
esta reflexão começou a agir livremente, o homem inven-
tou a linguagem... A reflexão é caracteristicamente especí-
fica do homem, faz parte da essência da espécie humana...
Assim, a reflexão da linguagem é para o homem tão natural
como o fato de ser homem (HERDER, 1994, p. 55).
Reflexão e linguagem são atributos indissociáveis do huma-
no, sendo impensável a existência de uma sem a outra, não cabendo
uma discussão sobre a prioridade em um momento originário, pois
a linguagem “foi inventada naturalmente e nos termos da necessida-
de humana, tal como no homem é natural e necessário o fato de ser
homem” (HERDER, 1994, p. 65). Reflexão e linguagem são inerentes
ao humano e o instauram em um presente; sendo que o conceito de
reflexão é particularmente cunhado por Herder como um ato de co-
nhecimento característico, onde estados de reflexão são estados lingüísticos:
O homem dá provas de reflexão quando, surgindo do so-
nho nebuloso de imagens que atravessam seus sentidos,
podem concentrar-se em um momento de vigília, deter-se
voluntariamente em uma imagem, distinguindo o que ca-
racteriza que distingue este e não outro objeto (HERDER,
1994, p. 50).
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A conseqüência de saber-se reflexivo é a capacidade que tem


para nomear, ou estabelecer diferenças, marcar os limites das coisas
que o cercam. Esta atenção não é somente um ato de abstração, mas
um ato de interpretação que o distingue e o conecta com o todo, ele
é ao mesmo tempo singular e representante do todo. O ato de conhe-
cimento para o autor é um ato de “recognição” (CASSIRER, 1998, p.
50) em que há uma nova concepção do individual, em que apesar de
não perder a sua particularidade, possui o todo: “É através do con-
traste entre os sentidos do diálogo, da comunicação e da compreensão
imediata que Herder havia denominado de “empatia” com um ho-
mem, um estilo e uma época” (BERLIN, 1997, p. 91).
Para o autor, a linguagem pode ser considerada como uma
criação da sensação imediata e um ato de reflexão, pois este ato não
provém de um advento externo que foi anexado às sensações, mas
está presente no momento constitutivo. Somente a reflexão faz do
efêmero estímulo sensível algo determinado e diferenciado. O que ca-
racterizamos como “identidade” de conceito e significação, ou “cons-
tância” de coisas e atributos tem suas raízes em um ato fundamental
de reencontro. Uma função que torna possível, por um lado, a lin-
guagem e, por outro lado, a articulação específica do mundo intuitivo
(BERLIN, 1997, p.139). “Não mais uma máquina infalível nas mãos
da natureza, ele se torna meio e fim da própria elaboração” (HER-
DER, 1987, p. 38).
A reflexividade propicia ao homem tornar-se meio e fim, to-
mar sentido de sua própria condição, tornar-se consciente:
Aqui não há nenhum grito das impressões, pois não foi
uma máquina que respira, e sim uma criatura consciente
que criou a linguagem! Não há princípio de imitação na
alma... (HERDER, 1987, p. 40).
A linguagem é um fator da “estruturação sintética da cons-
ciência” (CASSIRER, 1971, p.106) em virtude da qual o mundo das
sensações se configura em um mundo da intuição, por ele, a linguagem
não é nenhuma coisa produzida, senão uma espécie e uma particula-
ridade da criação e da formação espiritual do homem. A reflexividade
propicia entender que o sujeito em Herder está sempre nomeando
e diferenciando. Do oceano de sensações, o homem seleciona uma
que o atinge e a utiliza como propriedade diferenciadora. Esta dife-
renciação é fruto da utilização dos sentidos, mas não utilizados de
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forma mecânica. Pelos sentidos o homem compreende o mundo em


sua diferencialidade. Talvez por isso seja o ouvido o órgão central para
a constituição da linguagem:
O ouvido é o sentido central dentre todos os sentidos que
diz respeito à distinção e clareza, e assim por sua vez sen-
tido para a linguagem...O ouvido está no meio de todos os
sentidos...O ouvido então se espalha por ambos os lados:
torna claro o que é escuro; torna mais agradável o que era
muito claro: traz mais unidade à obscura diversidade do
tato e também à clareza excessiva da visão. E porque esse
reconhecimento da multiplicidade na unidade, por inter-
médio de um sinal, se torna linguagem, o ouvido é órgão
de linguagem (HERDER, 1994, p. 51).
A função do ouvido é selecionar em busca de equilíbrio,
eliminar características de outros sentidos que impedem distinção e
clareza. A primazia do ouvido é de fundamental importância para a
compreensão do pensamento do autor, pois indica que linguagem e
pensamento (reflexão) estão em simultaneidade, retirando seu caráter
apenas instrumental de comunicador de um conhecimento que ocorre
antes da experiência.
O caráter reflexivo dado ao sujeito, a conexão posta entre lin-
guagem e pensamento, indicada de forma mais clara pela primazia do
ouvido como órgão dos sentidos, influencia profundamente a visão da
história de Herder. A reflexividade é a consciência corpórea da própria
corporiedade no observador que se observa (GUMBRECHT, 1998,
p.75). Há uma multiplicidade interpretativa possível sobre a história.
Apesar disto, a contemplação e o pleno conhecimento de todas as
épocas é unicamente possível a Deus. A linguagem como condição
para o humano e o limite do conhecimento sobre a história afirmam
a radical diferença entre o homem e Deus. “O homem nunca chega a
ser outra coisa senão homem, sempre e apenas instrumento” (HER-
DER, 1994, p.95).
A atitude reflexiva requer a aproximação do sujeito e do obje-
to, ocorrendo uma relação de deslumbramento frente ao passado pela
sua diferença. Quase uma atitude estética como condição para o co-
nhecimento. Há um ato primeiro de afetamento; um descentramento
que o torna capaz de compreender o passado vivo:
O homem começa por se espantar com todas as coisas
para só depois chegar de fato a vê-las...Só por meio do
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maravilhamento chega depois à idéia clarificada do verda-


deiro e do belo. Só por meio da submissão e da obediên-
cia consegue chegar a possuir pela primeira vez a noção
de bem. E decerto que o mesmo se passa com o gênero
humano na sua globalidade. Já alguma vez fizeste uso da
gramática filosófica para ensinar uma criança a falar...Dei-
xa que a história dos mais remotos tempos te ofereça essa
natureza como coisa viva e encontrarás inclinações que só
podiam ter se constituído naquelas paragens e daquela ma-
neira (HERDER, 1994, p.16).
Há um nexo que liga a poesia, a forma pela qual Deus fala
com os homens, e o sujeito poético no mundo, que faz com que do
espanto o homem possa chegar à idéia clarificada do bem e do belo,
através do maravilhamento. A filosofia e o século das Luzes extirpam
pela raiz a possibilidade do cultivo das aptidões dos indivíduos, por
que se voltam exclusivamente para o aperfeiçoamento das faculdades
intelectuais. A essa concepção de homem hipertrofiado em sua razão
contrapõe a idéia de Bildung, de formação completa, que leva em con-
ta todo o indivíduo. Não há o crescimento desigual de uma habilidade,
nem conflito entre as faculdades, mas um desenvolvimento harmo-
nioso em todas elas. A formação do homem não pode ser apressada,
mas deve ser vagarosa e deve ser deixada aos cuidados da Natureza.
Formação e Natureza possuem um mesmo ritmo em seu germinar. A
expressão de Deus através de seus sinais que devem ser interpretados
faz com que o criador não seja algo externo ao mundo, mas seja um
princípio interno a ele.
A idéia de formação, a que o termo Bildung se remete, contém
implicitamente uma reflexão sobre o papel da forma “enquanto forma
formans, em contraposição a uma mera forma formata” (JUSTO, 1994,
p. 182). A forma formante será por excelência a beleza humana, que
estará, sempre, em movimento. Esta idéia estará presente na reflexão
tanto de Herder como de Goethe e será fundamental para a compre-
ensão do conceito de Buidung. É de Goethe a observação abaixo:
Para designar o complexo da existência de um ser real, um
alemão possui a palavra Gestalt. Nessa expressão, ele abs-
trai daquilo que é móvel, ele aceita um homogêneo que se
mantém, que está concluído e fixado em seu caráter. Mas
se observarmos todas as figuras, especialmente as orgâ-
nicas, descobriremos que em parte alguma se dá um algo
que perdura, algo em repouso, algo concluído, mas des-
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cobrimos, ao contrário, que tudo balança flutua, vagueia


num movimento contínuo. Por isso nossa língua costuma
empregar, com bastante justeza a palavra Bildung tanto
para aquilo que é produzido quanto para a ação de ser pro-
duzido (GOETHE, 2005, p. 204).
A palavra Bildung marca não somente a diferença com o seu
produto a forma formata (Gestalt), mas indica também movimento, di-
reção, o caráter ativo da forma. A idéia de Bildung está necessariamente
atrelada á idéia de Umbildung: transmutação, metamorfose.
A perspectiva de formação (Bildung) expressa no título do Tam-
bém uma filosofia da história para formação da humanidade significa forma-
ção/cultivo/educação onde é acentuado um trabalho de introspecção
por parte do sujeito. É demandada a atitude reflexiva do homem, que
enquanto ser de linguagem transcria o mundo que apreende constan-
temente. Um afetamento próximo ao do ato estético. Segundo Marcia
Bunge, formação no texto de Herder é um amálgama que coagula as
noções de Tradição, expressando o fato de que toda criação no presen-
te possui uma permanência do passado; criação orgânica é a apropriação
da tradição por uma cultura específica a partir da seleção feita por esta
cultura; e humanidade é a noção de que toda humanidade está ligada por
movimento fruto de um princípio divino, que propicia a relação entre
multiplicidade e totalidade (BUNGE, 1993, p.15).
Em seu texto sobre a Filosofia da História, Herder deixa claro
quais os motivos que o levaram a escrever seu texto e como influenciar
na formação da humanidade:
Conseguisse eu ligar entre si as mais dispares cenas, sem
as confundir, mostrar como se relacionam umas com as
outras, como crescem uma a partir de outras, como se per-
dem umas dentro de outras, mostrar que cada uma por si é
apenas um momento, mas que todos os momentos toma-
dos na sua progressão são meios orientados para fins...Que
encorajamento aí para a ação, para a esperança e para a fé?
Mesmo quando nada se vê, ou quando não se consegue
ver tudo! (HERDER, 1994, p.46).

Apesar de não poder compreender toda a história, somente


Deus o poderia, é possível buscar através da analogia na natureza, a ima-
gem de Deus discursando em todas as obras. A busca pela compreensão deste
discurso, e a fé, tornam possível tentar compreender o movimento que
liga cada cultura, apesar de suas singularidades. A tentativa de compre-
147
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ensão para o autor é fundamental, pois a possibilidade de um discurso


rico e infinito está, justamente, fundamentada na transcendência divi-
na e em um limite natural para o entendimento humano. É do limite
que se origina a possibilidade do conhecimento humano observar a
existência da multiplicidade das diversas culturas convivendo em um
mesmo jardim, um limite dado pela linguagem que serve de crítica às
possibilidades, excessivas, de uma filosofia da história fundamentada
em bases iluministas.

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Os Desafios da História (Política) do


Tempo Presente

Roberto Mendes Ramos Pereira1


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Resumo: Diante das peculiaridades Resumen: Delante de las peculia-


da pesquisa com elementos da His- ridades de la investigación con ele-
tória do Tempo Presente, o presente mentos de la Historia del Tiempo
estudo tem o objetivo de identificar, Actual, el actual estudio tiene el
a partir das discussões realizadas em objetivo de identificar, a partir de
torno de visões e conceitos utilizados las discusiones realizadas alrededor
por alguns autores, os desafios de se de  visiones y conceptos utilizados
trabalhar com essa história presen- por algunos autores, los desafíos de
te, principalmente no que se refere à si trabajar con esa historia actual,
utilização de metodologias viáveis e à principalmente cuanto si refiere a
oralidade. utilización de metodologías viables
Palavras-chave: história do tempo y a oralidad.
presente, história política, oralidade. Palabras-clave: historia del tiempo
actual, historia política, oralidad.

Pensar historicamente assuntos e problemáticas da esfera do


político nos moldes do que se costumou chamar atualmente de Histó-
ria do Tempo Presente, parece pressupor algumas reflexões acerca dos
desafios e dificuldades conceituais e metodológicas na busca de uma
história que seja válida cientificamente. Isto porque desde a década de
1970 não apenas os conceitos, mas também os objetos, enfoques e
métodos da História Política têm sofrido transformações significativas
no universo científico, fazendo até mesmo alguns autores acreditarem
que esse ramo estivesse em crise.
Qual o caminho traçado para que hoje fosse possível se dis-
cutir, como assunto do político, questões com as quais temos contato
no dia-a-dia? O que ocorreu com a história-ciência que tem tratado de
assuntos do cotidiano e da cultura política como relevantes tais quais
os acontecimentos de grande impacto social? Tratar de temas do tem-
po presente é desvirtuar a própria história enquanto ciência?

1
Professor assistente concursado da Universidade Estadual de Montes Claros - UNI-
MONTES, atuando no campus São Francisco-MG. Graduado em filosofia pela PUC-
MG e especialista em História do Brasil pela UNIMONTES, tem experiência de 12
anos na área de Educação, com ênfase em História. Atualmente é mestrando em His-
tória na linha Política e Imaginário pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU.
E-mail: historia.rmendes@yahoo.com.br
151
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

É para responder a questões como essas, preenchendo la-


cunas e sanando desconfianças sobre este tipo de história, que são
necessárias algumas reflexões no sentido de compreender o estágio
e o alcance do estudo sobre as demandas sociais. Assim, este estudo
tem como objetivo apontar, segundo alguns autores, os desafios de se
trabalhar com a história do tempo presente, principalmente no que se
refere à utilização da oralidade pelos historiadores, bem como mostrar
que a história política, em face de crises e de um revigoramento sofri-
do durante os tempos, apresenta-se bastante fecunda de elementos de
investigação, dado o seu contato com outras áreas do conhecimento.
Nesse sentido, busca-se, nesse enredo, refletir sobre quatro
aspectos capazes de apontar para uma justificativa plausível para tal
tendência nos estudos históricos. A primeira refere-se ao que pode-
mos chamar de estado da arte, ou seja, como a história política che-
gou ao estágio atual? O que proporcionou a ela tomar como objeto
elementos da realidade não vislumbrados em outros tempos? Em um
segundo momento, é importante que façamos uma digressão sobre a
difícil tarefa do historiador em associar objetividade e subjetividade na
condução dessa história do tempo presente e alguns aspectos metodo-
lógicos a ela relacionados, uma vez que este talvez seja um dos grandes
problemas para a historiografia atual na busca de uma validade da
história enquanto ciência. Em terceiro lugar, trataremos o assunto das
fontes, em torno das quais, o historiador, por estar tão próximo delas,
pode correr o risco de construir seus próprios objetos de investigação.
Por fim, um quarto aspecto refere-se ao aprofundamento de um as-
sunto importante no trabalho de investigação do historiador, mas que
se mostra revestido de incertezas e desconfianças por parte de muitos:
a oralidade, um espaço rico para a investigação histórica, mas cheio de
armadilhas, capazes de inviabilizar a validade das proposições obtidas
pelo historiador.
O título “Os Desafios da História (Política) do Tempo Pre-
sente” é sugestivo e faz uma alusão ao primeiro capítulo do livro Por
uma história política, organizado por René Remond. Com esse título,
Remond nos proporciona o trajeto feito pela história política até os
dias atuais, tornando compreensível o estágio atual das discussões do
político no tempo presente.
O autor acredita que todo historiador é sempre de um tempo
e que a direção de suas atenções naturalmente gera, de certo modo,
152
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

um abandono de outras possibilidades (REMOND, 1996, p.13-14).


É por isso que Carr insiste em um aspecto interessante sobre o es-
tudo da história, mostrando que antes de estudar a história, estude o
historiador, e antes de estudar o historiador, que se estude seu meio
histórico e social (CARR, 1978, p. 41). Baseando-nos nesse pressu-
posto de Remond e de Carr é que percebemos vários desses autores
ora incomodados ora tentando justificar as transformações sofridas
pelos estudos do político. Afinal, a história política mudou, não é mais
a mesma? Ela tem sofrido uma crise ou apenas se tornou mais sólida,
mais profunda na sua compreensão da realidade?
Pedersen (2006, p. 63), estudando a realidade da Grã-bretanha,
foi uma das que se questionou sobre essa possível crise da história po-
lítica, mas logo ressalta que essa história nunca esteve decadente, mas
que apenas foi redescoberta e redefinida. Apesar disso, vemos que ela
sofreu, sim, certo impacto, uma transformação interna e externa que
pode ser vislumbrada em um período específico e propício para isso.
É sabido que a História Política sempre foi relacionada na his-
toriografia como uma história tradicional, principalmente na primeira
metade do século XX quando se percebe o alvorecer da história das
mentalidades e de outras correntes que se mostram “inovadoras” na
busca de uma compreensão globalizante da realidade. O que estava em
voga nesse momento eram os Annales e as explicações marxistas, aos
moldes de uma história econômica e social. Os enfoques da história
política e da escola metódica eram vistos como ultrapassados, sendo,
pois, taxados de tradicionais. Assim, segundo Remond (1996, p. 18),
a história política, que se atinha aos estudos da história dos tronos, e
vista como uma história factual, subjetivista e idealista, uma vez que
não dava conta da realidade social nas suas particularidades, sofreu
neste momento duras críticas vindas de toda parte.
Rosanvallon (1995, p.10), nesse sentido, identifica bem que o
declínio da história política veio acompanhado pelo desenvolvimento
da história das mentalidades políticas e da sociologia política, ocorrido
nesta primeira metade do século XX. Remond (1996, p. 13), mostra-se
com razão, quando ressalta as “modas intelectuais”, mostrando que o
que ocorre aí não é crise, mas apenas uma sucessão de descobertas de
novos enfoques sobre a realidade.
No entanto, para que entendamos o que realmente ocorreu
com a história política é preciso perceber outros tantos fatores que
153
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

propiciaram sua transformação. O principal deles foi a aproximação


ou o diálogo tecido com o conjunto das ciências humanas. Isso foi de-
terminante para o revigoramento dos estudos do político. Não fosse
esse contato com outras áreas do saber, talvez hoje não fosse possível
estarmos falando de uma história política do tempo presente, dada a
fragilidade de sustentação da história política tradicional.
Já no final do século XIX e, principalmente no século XX,
toda uma conjuntura política, social, econômica e ideológica favore-
cia, sob vários ângulos, uma renovação da ótica dos historiadores. Re-
mond (1996, p. 15) aponta que, após uma hegemonia do político, em
uma perspectiva de história apenas vista de cima, toda uma geração de
historiadores começa a fazer uma revolução da distribuição dos inte-
resses. Em primeiro lugar, porque os holofotes estão apontados para
outros sujeitos históricos, para as massas. O marxismo, então, se viu
bastante enaltecido nas suas colocações. As incursões socialistas pelo
mundo respaldavam tal visão de mundo. A história social e econômica
dos povos, em face do advento da democracia política e social, do
advento do socialismo e do movimento operário, fez, então, insurgir
novos objetos de estudo, suscitando novos olhares e metodologias so-
bre eles. Além disso, Marx e Freud, de certo modo, contribuíram para
o descrédito da história política tradicional, minimizando, com seus
conceitos de luta de classe e de inconsciente, respectivamente, o papel
antes tido como central dos donos do poder. Somado a este emara-
nhado de fatores, há ainda a efervescência da Escola dos Annales, que,
na busca de um entendimento dos fatos dentro de uma perspectiva
da longa duração, acaba por tirar a importância que se dava outrora
às ações individuais de reis, nobres e generais. Por fim, até a concep-
ção de Estado era outra neste período, não sendo mais um ente com
vida própria, mas visualizado como uma construção social a partir de
relações de força. Assim, todos esses fatores vistos na sua totalida-
de mostram que a história política tradicional não tinha mais razões
ou sustentabilidade para ser estudada da forma que era (REMOND,
1996, p. 19-20).
Nessa perspectiva, Ângela de Castro Gomes pode nos dar
uma explicação fundamentada para esse revigoramento dos estudos
do político:
A revitalização dos estudos de história política, ou o que
tem sido chamado de o “retorno” da história política,
guarda relações profundas com as mudanças de orienta-
154
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ções teóricas que atingiram as ciências sociais de forma ge-


ral. Inúmeros autores situam o fenômeno como uma crise
dos paradigmas estruturalistas então vigentes: o marxista,
o funcionalista e também o de uma vertente da escola
dos Annales. Esta crise, traduzida pela recusa de explica-
ções determinísticas, metodologicamente quantitativistas
e marcadas pela “presença” de atores coletivos abstratos,
não localizáveis no tempo e no espaço, teria impactado
o campo das ciências humanas forçando-as a rever suas
ambições totalizadoras e suas explicações racionalistas/
materialistas (GOMES, 2007, p. 12).
Com essa crise dos paradigmas estruturalistas e para a sua
própria sobrevivência, a História Política passa, nesse momento, por
uma re-modelação a partir do diálogo com outras ciências sociais. No
entanto, dessa interação e apropriação de elementos de outras áreas,
surgem outras questões, que até hoje se fazem presentes nos círculos
de discussão dos historiadores: o que se tornou o político? O que é
específico da História Política e o que não é? Qual o limite entre as
ciências sociais e a história política? Perguntamo-nos: seria outra nova
crise vivida por ela?
Rosanvallon não acredita nisso. Para ele, a aproximação, pro-
gressiva com outras ciências sociais, ocorrida nos anos 70, fizeram
com que o político se tornasse um local próprio, o lugar onde se arti-
culam o social e sua representação (1995, p.12). Isto quer dizer que,
ao contrário de Pedersen (2006, p. 65), que vê a História Política como
uma sub-disciplina, Rosanvallon tem como pressuposto metodológico
essa concepção abrangente e, a nosso ver, interessante para a saúde da
história política, sobre o político, pelo qual perpassam outras áreas do
saber. Daí seu caráter de “ciência encruzilhada” (REMOND, 1996,
p. 29), impossibilitando seu isolamento em relação às outras ciências
sociais e colocando como necessidade a multidisciplinaridade.
Isto quer dizer que, se pensarmos em termos de uma Nova
História Política, com certeza temos que entendê-la dentro de uma
concepção flexível, aberta para outras abordagens (sejam estas an-
tropológicas, sociológicas, econômicas ou outras) e, principalmente,
não possuir as fraquezas metodológicas, já pensadas por Rosanvallon
(1995, p.12-15), que fazem a História Política tradicional (por ele cha-
mada de História das Idéias) ter um enorme defeito, que é o de não
possuir nada de histórico, uma vez que este tipo de história fica cons-
155
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tantemente moldada a um tipologismo que a torna antes um catálogo


de explicação de pensamentos e doutrinas do que propriamente uma
construção capaz de deixar claras as racionalidades políticas de um
tempo.
É sob este “Retorno do Político”, termo questionado por al-
guns autores como Gomes,247 que devemos refletir sobre a relação
existente entre o tempo presente e o passado, relação muitas vezes
conflituosa na prática do historiador.
É sabido que a aproximação da História com as Ciências So-
ciais parece ter aberto a possibilidade entre as décadas de 1950 e 1970,
e, hoje, realidade da História do Tempo Presente. Assim, ao mesmo
tempo em que tornou fecundo o espaço do político, essa integração
acabou por suscitar algumas questões bastantes polêmicas: afinal, o
passado deixou de ser objeto de estudo para a História? A história do
tempo presente, que traz consigo a oralidade como caminho meto-
dológico, não possui objetividade na formulação de suas conclusões?
Existe o risco da construção de objetos e fontes neste tipo de história,
comprometendo assim a racionalidade histórica, uma vez que há uma
proximidade entre o historiador e esses objetos/fontes de estudo? O
presentismo é ou não uma ameaça para a natureza do conhecimento
histórico? Para responder a estas questões, que trazem consigo proble-
mas de cunho metodológico associados à hermenêutica, é preciso que
abordemos tanto aspectos relativos à prática do historiador quanto à
especificidade das características da oralidade nos estudos históricos.
Em primeiro lugar, quando se questiona se o passado deixou
de ser objeto de estudo para a História nesta história do tempo pre-
sente, o que temos que pensar não é se isso ocorreu, mas pensar sobre
o modo de pensar que existia antes disso. Para Remond (1996, p. 18) a
escola metódica, que se manteve tanto tempo hegemônica nos estudos
históricos, mostrava-se basicamente como uma história factual, sub-
jetivista, idealista, tendo, assim um tratamento narrativo e descritivo,
não cumprindo, portanto, a vocação própria da história, que é inter-
rogar-se sobre o sentido dos fatos. Goldmann, visto de certo modo,
como uma referência nessa perspectiva de buscar o sentido dos fatos,
vai contribuir decisivamente, já na década de 1950, com sua discussão

2
A autora defende uma revitalização da história política e não uma crise.
156
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

sobre o pensamento histórico e seu objeto. Partindo do entendimento


do fato social carregado de historicidade e de significados, o autor
ressalta que se a história pretende ultrapassar o simples registro dos
fatos, ela necessariamente tornar-se-á explicativa, não mais narrativa.
Com o pressuposto de que todo fato social é um fato histórico e todo
fato histórico é social (GOLDMANN, 1976, p.17), o autor favorece a
aproximação entre história e as ciências sociais, incorporando, assim,
problemáticas relativas ao tempo presente já suscitadas com os Anna-
les e com a história econômico-social.
Fundamentando essa perspectiva, de que a história se cons-
trói enquanto ciência no tempo presente, Moradiellos (2005, p.15-16)
ressalta que o passado, por definição, não existe e não pode ser campo
da história, sendo que este se mostra no presente, cristalizado nos
vestígios o passado histórico só se nos oferece à compreensão como
presente fisicalista através das relíquias, isto implica então que a histó-
ria se faz no presente.
Respondendo à questão mencionada referente à possibilida-
de de o passado ter perdido o status de objeto da história, notamos
uma resposta negativa: a de que não houve uma crise na identidade da
própria história vista como ciência. Pelo contrário, novos elementos
foram incorporados de outras áreas para uma compreensão que me-
lhor corresponda à realidade, minimizando o teor idealista da “velha
história política” (GOMES, 2007, p. 03).
Atualmente, com o alvorecer de tantas visões suscitadas com
uma história do tempo presente, não existe mais uma só historiografia
hegemônica, como em outros tempos. O que existe mesmo, no pen-
samento de Rojas (2004, p. 75), é um esquema plural, diversificado e
policêntrico na historiografia atual, parecendo ser esta uma categoria
própria deste tipo de história que se perfaz no tempo presente. Este
tempo é, pois, ponto de partida e de chegada, não sendo possível a
dicotomização entre passado-presente gestada pela escola metódica.
Dessa forma, concordamos com Carr quando ele diz que
o passado é inteligível para nós somente à luz do presente:
só podemos compreender completamente o presente à luz
do passado. Capacitar o homem a entender a sociedade
do passado e aumentar o seu domínio sobre a sociedade
do presente é a dupla função da história (CARR, 1978, p.
49).
Passando para uma discussão surgida desta incorporação do
157
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

presente nos estudos históricos, retomemos os outros questionamen-


tos anteriormente mencionados, vislumbrando a oralidade como nú-
cleo discutível e discutido. Afinal, onde fica a objetividade científica,
tão exigida da história por outras áreas que trabalham com tal objetivi-
dade, na incorporação da oralidade como caminho metodológico des-
ta história presente e na qual a subjetividade se desponta como uma de
suas características? A validade de objetos e fontes fica comprometida
com a possibilidade de uma criação destes elementos pelo historiador?
Onde fica a validade do conhecimento histórico com o risco do pre-
sentismo? Para uma maior clareza das proposições, subdividimo-nas
em tópicos a partir dos quais construiremos abordagens sobre cada
um desses pontos.

Objetividade / subjetividade

Quando se fala da oposição, ou sob outro ângulo, da com-


plementaridade existente entre objetividade e subjetividade no trata-
mento com fontes em história, o que mais se questiona é se o uso da
oralidade, ou da chamada História Oral, minimiza o teor científico
e objetivo do conhecimento histórico construído. Se anteriormente,
quando analisamos a história política sob a ótica da escola metódica,
havia uma preocupação sobre o fato, em uma espécie de “fetichis-
mo dos fatos” complementado pelo “fetichismo dos documentos”
(CARR, 1978, p. 18) e de em uma supervalorização das provas que
falem por si mesmas, aqui, na História do Tempo Presente o que há
é uma necessidade da história oral. Isso não quer dizer que haja uma
negação das contribuições da escola positivista. Estas tiveram sim sua
importância. Mas, como ressalta Remond, tanto o descrédito da histó-
ria política num determinado tempo quanto o retorno deste político
são explicados pela evolução das realidades e dos espíritos dos his-
toriadores. Cada período tem seu historiador, como já vimos. O que
ocorreu, nessa História (Política) do Tempo Presente é a apropriação
de categorias já utilizadas, mas com uma evolução ou mudança de
perspectiva, inclusive uma utilização da oralidade como caminho me-
todológico. François (2006, p. 06-07) chega a dizer que essa oralidade
está para a história do tempo presente assim como a arqueologia está
para a história antiga, dada sua importância nessa nova forma de se
construir o conhecimento histórico.
158
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Na apresentação de Usos e abusos da história oral, Janaína Amado


e Marieta de Moraes Ferreira, como organizadoras da obra, parecem
identificar elementos dessa gênese da História Oral nessa História do
Tempo Presente, inclusive contextualizando quando isso se deu:
A virada dos anos 70 para os anos 80 trouxe, entretanto,
transformações expressivas nos diferentes campos da pes-
quisa histórica, revalorizando a análise qualitativa, resgatan-
do a importância das experiências individuais, promovendo
um renascimento do estudo do político e dando impulso à
história cultural. Nesse novo cenário, os depoimentos, os
relatos pessoais e a biografia também foram revalorizados,
e muitos dos seus defeitos, relativizados. Argumentou-se,
em defesa da abordagem biográfica, que o relato pessoal
pode assegurar a transmissão de uma experiência coletiva e
constitui-se numa representação que espelha uma visão de
mundo (FERREIRA; AMADO, 2006, p.xxii-xxiii).
Essa incorporação de experiências individuais ainda hoje
é motivo de discussão entre os historiadores. Contribuindo no de-
bate sobre o uso da subjetividade sem comprometer a objetividade
do conhecimento histórico, Moradiellos (2005, p.19-20) aponta para
alguns princípios da racionalidade histórica, capazes de assegurar a
cientificidade dos achamos do historiador. Resumidamente, podemos
identificá-los em primeiro lugar no pensamento de que todo relato
ou narração histórica deve estar apoiado sobre provas e evidências
materiais que sejam físicas, mostrando claramente a contribuição e até
a incorporação desta característica da escola metódica. Em segundo
lugar, é preciso notar que qualquer acontecimento humano surge ne-
cessariamente a partir de condições prévias homogêneas e seguem um
processo de desenvolvimento interno e imanente, deixando evidente
que é preciso pressupor que não existam causas externas (providência
divina, astros, azar, etc.) na construção do conhecimento histórico.
E, finalmente, como uma terceira forma de sanar conflitos surgidos
a partir do embate subjetividade-objetividade é a necessidade de se
utilizar a categoria da flecha do tempo, fazendo perceber uma natureza
direcional e acumulativa do passo do tempo no sentido obrigatório
de passado fixo para um futuro aberto através de um presente em
construção.
Com esses três princípios da racionalidade histórica parecem
que superamos de modo convincente os riscos da subjetivação da
159
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

história. Entretanto, é preciso que vejamos mais um aspecto, o que


aponta para os fatos históricos sempre com a “mão” do historiador.
Se, como vimos com Carr, antes de estudar os fatos, é preciso que se
estude o historiador, é porque ele mesmo é objeto do seu tempo. Não
há como falar de “fatos puros” (CARR, 1978, p. 23). O que há são
interpretações, as dos historiadores. Para a questão “a história então
é subjetiva?”, o autor apenas reflete no sentido de mostrar que não,
apontando para a existência da objetividade a partir do momento em
que outras subjetividades e fontes são buscadas, num compromisso
com os fatos. Para Carr (1978, p.29), “o historiador sem seus fatos
não tem raízes e é inútil; os fatos sem o historiador são mortos e
sem significado”. De certo modo, fica assim resolvido o conflito do
historiador em construir, a partir de subjetividades, um conhecimento
objetivo e válido.

Objetos e fontes

Nesse tópico, o que se busca evidenciar é o risco ou perigo


de o historiador, tão próximo de suas fontes, construir seus próprios
objetos e fontes. É evidente que por trás dessa questão há um pro-
blema de caráter ético-profissional que coloca em xeque o próprio
reconhecimento das conclusões obtidas dessa forma, uma vez que o
que é colocada em questão é a validade deste conhecimento. Toda essa
discussão advém de características inerentes à oralidade, como a me-
mória e o esquecimento, apontando, assim, para possibilidades reais
de o historiador manipular dados em uma busca de fazê-los “falar” o
que ele desejar que falem, já que a sua interpretação é determinante na
construção do conhecimento histórico.
Becker (2006, p. 28) chama isso de construção de “arquivos
provocados”, que traz sempre um inconveniente: o de ser constituí-
do depois do acontecimento, sendo responsável por tudo o que foi
dito e escrito a posteriori. Para o autor, esses arquivos provocados po-
dem resgatar lembranças involuntariamente equivocadas, lembranças
transformadas em função dos acontecimentos posteriores, lembran-
ças sobrepostas, lembranças transformadas para coincidir com o que
é pensado muitos anos mais tarde, para justificar posições e atitudes
posteriores.
Com esse inconveniente de se trabalhar com fontes e objetos
160
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

“construídos” a partir da oralidade surgem outros desafios, identifi-


cados pelo autor. Uma delas é o caráter individual que os depoimen-
tos possuem, ou seja, fala-se em nome próprio, e não em nome de
um grupo. Isso pode possibilitar distorções sobre os dados coletados,
ainda mais que tais falas dependem da memória de cada pessoa, uma
característica sempre presente na História Oral. Além disso, falar após
os fatos também pode gerar transformações de sentimentos quanto
ao fato ocorrido, o que aumenta a probabilidade de erros. Para mi-
nimizar a possibilidade de distorções, contra-sensos e falsificações, o
autor aponta para a saída de nunca se confiar numa única fonte, sendo
este, na visão de Becker (2006, p. 28), um dos mandamentos da pro-
fissão do historiador.
Apesar desses desafios, Remond (2006, p. 209) vê um ponto
positivo no trabalho com fontes e objetos mais próximos, ressaltan-
do que “a história do tempo presente é um bom remédio contra a
racionalização a posteriori, contra as ilusões de ótica que a distância e
o afastamento podem gerar”. Isto quer dizer que, se por um lado há
dificuldades e desafios no trabalho com depoimentos ocorridos após
os fatos, por outro, ter um contato com a realidade num raio relati-
vamente curto miniminiza possíveis equívocos tidos com objetos e
fontes num passado longínquo, idéia seguida por Roger Chartier, que
diz o seguinte:
O historiador do tempo presente é contemporâneo do seu
objeto e, portanto, partilha com aqueles cuja história ele
narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas referên-
cias fundamentais. Ele é, pois, o único que pode superar
a descontinuidade fundamental que costuma existir entre
o aparato intelectual, afetivo e psíquico do historiador e o
dos homens e mulheres cuja história ele escreve. Para os
historiadores dos tempos consumados, o conhecimento
histórico é sempre uma difícil operação de tradução, sem-
pre uma tentativa paradoxal: manifestar sobre o modo de
equivalência um afastamento irredutível. Para o historiador
do tempo presente, parece infinitamente menor a distância
entre a compreensão que ele tem de si mesmo e a dos atores
históricos, modestos ou ilustres, cujas maneiras de sentir e
de pensar ele reconstrói (CHARTIER, 2006, p. 216).
O que se percebe, desse modo, é que a História do Tempo
Presente, que traz consigo a oralidade, possui tanto pontos negativos,
ou que apresentam dificuldades para a prática do historiador na cons-
161
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tos necessários para a construção do conhecimento histórico. Nesse


sentido, Lozano (2006, p. 16) mostra que é preciso saber que a história
só se interessou pela oralidade na medida em que ela permite obter e
desenvolver conhecimentos novos e fundamentar análises históricas
com base na criação de fontes inéditas e novas.
Essa característica é muito importante se pensarmos na pró-
pria história política do tempo presente, na qual se percebe depoimen-
tos imbuídos de paixões, sentimentos e tensões vividos exclusivamen-
te num determinado período. Se as narrativas não forem coletadas no
momento certo, no lugar certo, é possível que se perca dados impor-
tantes para a compreensão histórica do fato ocorrido.
Outro ponto a se destacar é a relevância dos chamados “even-
tos” históricos na vida das pessoas (PORTELLI, 2005, p. 309). O que
para mim é significativo pode não ser para outra pessoa. Esse é um
outro problema que o historiador precisa estar atento, a fim de que
suas conclusões não sejam parciais e errôneas.
Apesar de fato de muitos historiadores com uma tradição
clássica do historicismo desconfiarem e colocarem a história oral
como que de “segunda classe”, Portelli (2005, p. 296) valoriza este
tipo de história, ressaltando que as estórias preservam o narrador do
esquecimento e que a elas têm a capacidade de construir tanto a iden-
tidade deste narrador quanto o legado que ela ou ele deixa para o
futuro. Assim, sem cair numa exaltação da oralidade, é preciso notar
que é relevante a sua apropriação na construção de uma racionalidade
histórica capaz de explicar a realidade.

Considerações finais

Finalizando as abordagens sobre os desafios de uma histó-


ria política do tempo presente, é vital que pensemos os estudos do
político não mais com as características da história tradicional, mas
com outros moldes, mais flexível e aberta a problemáticas antes não
vislumbradas.
Se a oralidade, caminhando junto com a história do tempo
presente, apresenta inúmeros desafios e dificuldades para a prática do
historiador, como vimos, essa história política renovada também traz
dificuldades e problemas para a construção do conhecimento histó-
rico.
162
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trução do conhecimento histórico, como também pontos positivos,


fazendo com que este mesmo historiador compreenda melhor a reali-
dade, uma vez que compartilha das mesmas categorias com os sujeitos
por ele pesquisados.

A história oral

Antes de fazermos uma abordagem sobre a oralidade e res-


pondendo à questão proposta inicialmente sobre o risco do presen-
tismo no trabalho com a história do tempo presente, percebemos em
Carr (1978, p. 29) uma resposta plausível, surgida a partir da sua de-
finição de história: “ela se constitui de um processo contínuo de in-
teração entre historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre
o presente e o passado”. Ou seja, para não se correr o risco de ficar
preso no presente, o historiador necessariamente deve trabalhar com
o ir-e-vir no tempo, fazendo com que o presente e o passado formem
não uma dicotomia insuperável, mas possibilitem uma compreensão
mais abrangente da realidade.
Sobre a discussão específica da oralidade, fizemos a escolha
de nos fundamentar basicamente em um dos autores mais expressivos
sobre a História Oral na atualidade, Alessandro Portelli, pesquisador
italiano que, em O momento da minha vida: funções do tempo na história
oral, contribui para uma complementação de dicas e posturas que o
historiador deve ter no trabalho com a história oral.
Segundo Portelli (2005, p. 298) uma das grandes dificuldades
tidas pelo historiador no trabalho com a oralidade, é saber que a estó-
ria narrada pelo entrevistado é sempre aberta, provisória e parcial, daí
uma dificuldade de se terminar a entrevista. Isto implica que parece
sempre ter algo a mais para se contar, para se falar. Além do mais, há
o fato de que uma estória nunca será contada duas vezes de forma
idêntica, mostrando que cada história que ouvimos é única.
Isto quer dizer que há sempre um momento oportuno de se
entrevistar uma pessoa, dada a especificidade do momento, além do
mais porque é preciso saber que o tempo tanto tira quanto acrescenta
elementos nos depoimentos das pessoas, na visão de Portelli (2005, p.
299). Talvez essa seja uma das melhores dicas que este autor nos dá
para a coleta de dados através de entrevistas ou depoimentos. Há sem-
pre um tempo de se narrar e de se captar nessas narrativas os elemen-
163
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Trabalhar com a oralidade não é algo tão simples. O historia-


dor deve possuir habilidade de análise em torno de todas as brechas
possíveis sobre o discurso dos sujeitos históricos, identificando aspec-
tos nem sempre claros, como sensibilidades, ideologias, medos, bus-
cando entender até mesmo as razões do não dito. Dentre as dificulda-
des, um aspecto que se mostra como desafiante para o historiador é
o fato de os discursos e depoimentos coletados serem carregados de
paixões, uma vez que os depoentes tratam da sua realidade, segundo
sua ótica, ressaltando suas necessidades mais emergentes, suas deman-
das mais gritantes. Assim, é preciso, como já vimos com Portelli, que
estes discursos sejam coletados nos momentos propícios, possibilitan-
do um maior entendimento sobre os fenômenos analisados.
Enfim, na união entre história do tempo presente, história
política (agora “renovada”) e história oral, o que percebemos é que o
caminho a ser trilhado se mostra permeado de desafios, que, por um
lado, geram insegurança, mas que, por outro, suscita uma prazerosa
tarefa de investigação sobre a realidade vivida por pessoas em um mo-
mento específico da história.

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em dezembro 2007.

165
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

SOBRE A FEITURA DA MICRO-HISTÓRIA


48
José D’ Assunção Barros1

Resumo: Este artigo busca esclare- Abstract: This article attempts to


cer e discutir alguns aspectos relacio- clarify and discuss some aspects
nados à Micro-História, considerada related to Micro-History, which are
aqui mais como uma especialidade e considered here to be more of an
abordagem do que como uma cor- specialty and an approach than as
rente da historiografia recente. São a current of recent historiography.
discutidos aspectos diversos, incluin- The aspects to be discussed are di-
do as abordagens de que dispõem os verse, and include the approaches
micro-historiadores para o tratamento at the disposal of micro-historians
de suas fontes históricas e as novas in the treatment of their historical
maneiras de apresentar o texto his- sources and the new ways of pre-
toriográfico que foram introduzidas senting the historiographical text
na historiografia recente pela Micro- that have recently been introduced
História. Busca-se definir com maior by Micro-History. This article also
precisão este campo da historiografia, attempts to define with greater pre-
contrastando-o com a Macro-História cision this field of historiography
tradicional e distinguindo-o de outras by contrasting it with traditional
especialidades em que hoje se divide a Macro-History and by distinguish
Historiografia profissional. it from the other specialties which
Palavras-chave: micro-história, aná- nowadays divide professional His-
lise intensiva, novos padrões narrati- toriography.
vos. Key-words: micro-history, inten-
sive analysis, new historiographical
patterns.

A Micro-História é um campo relativamente recente na His-


toriografia, e ainda hoje gera muitas polêmicas com relação às suas
possibilidades de definição. Uma questão complicadora é que a Micro-
História começou a desabrochar com um grupo muito específico de
historiadores italianos, que tem até os dias de hoje publicação própria
(os Quaderni storici), e por isto não é raro que se confunda a Micro-
História – enquanto nova possibilidade de abordagem historiográfica
– com este grupo. Mas veremos a seguir que a Micro-História merece
ser tratada de maneira mais ampla, como um novo âmbito de possi-

1
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense e professor de
História nos Cursos de Graduação e Mestrado da Universidade Severino Sombra
(USS) de Vassouras. Autor dos livros O Campo da história (2004), O projeto de pesquisa em
história (2004) e Cidade e história (2007), todos publicados pela Editora Vozes. E-mail:
jose.assun@globo.com  
167
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

bilidades historiográficas, e não como uma corrente ou escola dentro


da historiografia. O olhar micro-historiográfico, podemos sustentar,
pode ser conectado aos mais distintos aportes teóricos, e é assim que
ele tem aparecido inclusive na historiografia brasileira das últimas dé-
cadas.
Outra confusão sem nenhum fundamento que algumas vezes
se faz surge quando se relaciona equivocadamente a História regional e
a Micro-História, apesar de estes serem campos radicalmente distintos
no que concerne às suas motivações fundadoras. Vejamos a seguir,
para diferenciá-la mais claramente da Micro-História, do que se trata
quando se fala em “História regional”.
Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âm-
bito da História regional, ele mostra-se interessado em estudar direta-
mente uma região específica (ou, melhor dizendo, uma determinada
espacialidade). O espaço regional, é importante destacar, não estará
necessariamente associado a um recorte administrativo ou geográfico,
podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural
ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com
o problema histórico que irá examinar. Mas, de qualquer modo, o in-
teresse central do historiador regional é estudar especificamente este
espaço, ou as relações sociais que se estabelecem dentro deste espaço,
mesmo que eventualmente pretenda compará-lo com outros espaços
similares ou examinar em algum momento de sua pesquisa a inserção
do espaço regional em um universo maior (o espaço nacional, uma
rede comercial).
Que a região é uma construção do historiador, do geógrafo
ou do cientista social que examina uma determinada questão, isto já o
sabem de longa monta os historiadores regionais. A região não existe
obviamente como espaço pré-estabelecido, ela é construída dentro das
coordenadas de uma determinada pesquisa ou de certa análise socioló-
gica ou historiográfica. Por isto, aliás, é preciso que o pesquisador – ao
delimitar o seu espaço de investigação e defini-lo como uma “região”
– esclareça os critérios que o conduziram a esta delimitação. Posto
isto, é óbvio que o “espaço”, seja este definido como espaço físico ou
como espaço social, é uma noção fundamental dentro deste campo de
estudos que pode ser enquadrado como História regional.
Enquanto a História regional corresponde a um domínio ou
a uma abordagem historiográfica que foi se constituindo em torno da
168
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

idéia de construir um espaço de observação sobre o qual se torna pos-


sível perceber determinadas articulações e homogeneidades sociais (e
a recorrência de determinadas contradições sociais, obviamente), já
a Micro-História corresponde a um campo histórico que se refere a
uma coisa bem distinta: a uma determinada maneira de se aproximar
de certa realidade social ou de construir o objeto historiográfico. A
Micro-História, sustentaremos aqui, relaciona-se a uma abordagem,
mais do que a qualquer outra coisa.
Antes de tudo, é preciso deixar claro que a Micro-História
não se refere necessariamente ao estudo de um espaço físico reduzido
ou delimitado, embora isto possa até ocorrer. O que a Micro-História
pretende é uma redução na escala de observação do historiador com o
intuito de se perceber aspectos que, de outro modo, passariam desper-
cebidos. Quando um micro-historiador estuda uma pequena comuni-
dade, ele não estuda propriamente a pequena comunidade, mas estuda
através da pequena comunidade (não é, por exemplo, a perspectiva da
História local, que busca o estudo da realidade micro-localizada por
ela mesma). A comunidade examinada pela Micro-História pode apa-
recer, por exemplo, como um meio para se atingir a compreensão de
aspectos específicos relativos a uma sociedade mais ampla. Da mesma
forma, pode-se tomar para estudo uma “realidade micro” com o intui-
to de compreender certos aspectos de um processo de centralização
estatal que, em um exame encaminhado do ponto de vista da macro-
história, passariam certamente despercebidos.
O objeto de estudo do micro-historiador não precisa ser,
desta maneira, o espaço micro-recortado. Pode ser uma prática social
específica, a trajetória de determinados atores sociais, um núcleo de
representações, uma ocorrência (por exemplo, um crime) ou qualquer
outro aspecto que o historiador considere revelador em relação aos
problemas sociais ou culturais que está disposto a examinar. Se ele
elabora a biografia ou a “história de vida” de um indivíduo (e freqüen-
temente escolherá um indivíduo anônimo) o que o estará interessando
não é propriamente biografar este indivíduo, mas sim os aspectos que
poderá perceber através do exame micro-localizado desta vida.
Da mesma maneira, assim como a Micro-História não deve
ser confundida com a História regional ao examinar eventualmente
um espaço micro-recortado, também não deve ser confundida com o
chamado “estudo de caso” ao estudar uma prática social ou uma ocor-
169
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

rência, e nem ser confundida com a Biografia histórica ao examinar


uma “vida” ou uma trajetória individual. Sempre que toma estes obje-
tos – micro-localidade, prática social, ocorrência histórica, trajetórias
individuais entrecruzadas ou vida individual – o micro-historiador está
no encalço de algo mais do que estes objetos em si mesmos. A prática
micro-historiográfica não deve ser definida propriamente pelo que se
vê, mas pelo modo como se vê.
Para utilizar uma metáfora conhecida, a Micro-História pro-
põe a utilização do microscópio ao invés do telescópio. Não se trata,
neste caso, de depreciar o segundo em relação ao primeiro. O que
importa é ter consciência de que cada um destes instrumentos pode
se mostrar mais apropriado para conduzir à percepção de certos as-
pectos do universo (por exemplo, o espaço sideral ou o espaço intra-
atômico). De igual maneira, a Micro-História procura enxergar aquilo
que escapa à Macro-História tradicional, empreendendo para tal uma
“redução da escala de observação” que não poupa os detalhes e que
investe no exame intensivo de uma documentação. Considerando os
exemplos antes citados, o que importa para a Micro-História não é
tanto a “unidade de observação”, mas a “escala de observação” utili-
zada pelo historiador, que observa e o modo intensivo como ele ob-
serva o seu objeto.
A idéia de que, em muitos casos, a Micro-História examina
um campo ou um aspecto reduzido para enxergar mais longe, ou para
perceber elementos que escapariam à macro-perspectiva tradicional,
merece alguns esclarecimentos adicionais. Poderíamos utilizar aqui
uma nova metáfora: a de que o micro-historiador examina “uma gota
d’água para enxergar algo do oceano inteiro”, contanto que tenhamos
uma compreensão muito precisa sobre que esta imagem significa. Su-
ponhamos um oceanógrafo que estivesse investindo em uma possibi-
lidade como esta. Ele se propôs a buscar compreender algo do oceano
inteiro a partir de uma minúscula gota d’água extraída deste oceano
– será isto possível? A resposta depende obviamente do problema
científico que se pretende examinar. Não é possível compreender a
fauna marítima examinando uma simples gota do oceano (um peixe
não cabe em uma gota d’água). Mas é possível estudar a composição
molecular da água a partir de qualquer gota (com exceção, talvez, das
gotas extraídas de áreas que sofreram vazamentos de óleo nos aci-
dentes ecológicos que ocasionalmente têm perturbado os noticiários
170
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

recentes). Não está sendo defendida aqui nenhuma proposta de que


este macrocosmos que é o oceano está essencialmente contido nesse
microcosmo que é a gota d’água, ou de que a sociedade inteira está
contida em cada um dos seus fragmentos passíveis de serem examina-
dos. Também não se trata de dizer que a micro-análise seleciona um
fragmento para amostra (algumas gotas do oceano, por exemplo), para
depois proceder a uma generalização das observações com o fito de
concluir que o que aconteceu a uma ou mais gotas d’água acontecerá
a todas que compõem o oceano (o que seria o método empírico-indu-
tivo tradicional). Na verdade, a Micro-História não trabalha propria-
mente com generalizações deste tipo. Pelo contrário, as motivações
que produziram este novo tipo de abordagem historiográfica são até
mesmo um pouco avessas seja às grandes generalizações (tão típicas
das antigas utopias historiográficas da “história total”), seja à idéia de
que a gota contém o oceano (ou de que o fragmento social contém a
sociedade). De que se trata então?
Retomemos a metáfora. Dizíamos que o micro-historiador
procura “enxergar algo do oceano inteiro através de uma simples gota
d’água”. Não dissemos que o seu objetivo é enxergar o oceano (ou
todo o oceano) através de uma gota d’água (este seria um raciocínio do
tipo místico: o mundo se reflete em uma flor-de-lótus; ou a sociedade
reflete-se por inteiro neste pequeno fragmento que é o homem ou a
aldeia). A raiz da metáfora que aqui empregamos para compreender
o significado do procedimento micro-historiográfico está alicerçada
precisamente neste “algo”, nesta partícula utilizada com muita pre-
cisão. A idéia é que, embora não seja possível enxergar a sociedade
inteira a partir de um fragmento social, por mais que ele seja cuida-
dosamente bem escolhido, será possível – dependendo do problema
abordado – enxergar algo da realidade social que envolve o fragmento
humano examinado.
Daremos alguns exemplos. Seguiremos um problema típico
da História cultural da forma como foi enfrentado por dois autores
geniais. Um desses autores é Mikhail Bakhtin, que se tornou importan-
te para o desenvolvimento do campo da História cultural no seio dos
estudos marxistas. A História cultural deve ser considerada aqui uma
dimensão que se refere ao tipo de enfoque que é buscado pelo histo-
riador (podemos ter outros campos análogos, que também se referem
aos enfoques trazidos a primeiro plano, com a História econômica, a
171
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

História política, a História demográfica, e assim por diante). O fato


de que um trabalho esteja inscrito no âmbito da História cultural, da
História política, ou qualquer outro, não impede naturalmente que ele
esteja articulado a esta abordagem que é a Micro-História (História
cultural, no caso, refere-se à “dimensão social” examinada, Micro-
História refere-se a uma determinada ‘abordagem historiográfica’ que
estamos tentando definir mais sistematicamente).
Mikhail Bakhtin – que não deve ser definido como micro-
historiador, embora tenha influenciado bastante a obra de Carlos
Ginzburg, um dos micro-historiadores mais importantes das últimas
décadas – é o grande teórico da circularidade cultural, da polifonia de
registros discursivos que pode se esconder em um texto ou enuncia-
ção (Bakhtin, 1981). É de certo modo um dos pensadores que abriram
a possibilidade de examinar a cultura como algo plural, e os objetos
culturais (por exemplo, os textos) como universos complexos a serem
desvendados pelo lingüista ou pelo historiador. Bakhtin denuncia, ao
longo de todas as suas obras importantes, os limites do pensamento
monolítico. Nada mais falso do que a idéia de que Bakhtin investiu em
generalizações simplificadoras.
Reagindo contra a dicotomia (esta sim generalizadora) de que
existe, na sociedade européia que se afirma a partir da Idade Moderna,
uma “cultura oficial” que se opõe a uma “cultura popular” – sendo
cada uma destas dimensões culturais bem delimitadas em relação à
outra – o micro-historiador italiano Carlo Ginzburg (1989) pretendeu
seguir Mikhail Bakhtin na demonstração de que, mesmo que seja pos-
sível falar por hipótese na oposição entre uma “cultura erudita” e uma
“cultura popular” (ou de um campo cultural erudito em relação a um
campo cultural popular) existirá sempre uma “circularidade cultural”
envolvida na interação entre estes campos.
Bakhtin, para enxergar esta circularidade cultural, havia es-
colhido o “fragmento” François Rabelais – intelectual renascentista
famoso por obras satíricas de alto teor crítico e que resistiram aos
cânones e regras da arte literária vigentes no século XVI. Quis mos-
trar que o universo de imagens utilizadas por Rabelais em obras como
Gargântua e Pantagruel, conjunto de imagens que ele chama de “realis-
mo grotesco”, acha-se perfeitamente posicionado dentro da evolução
milenar da cultura popular (BAKHTIN, 1985, p. 03). Em última ins-
tância, demonstra que Rabelais, intelectual erudito, filtrou a cultura
172
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

popular através de sua obra. Para retomar nossa metáfora da “gota


d’água”, Bakhtin enxerga através deste “fragmento” que é Rabelais um
problema maior, de dimensões oceânicas: o da “circularidade cultural”
(noção que está apenas implícita em Bakhtin, mas que em Ginzburg já
aparecerá conceitualizada).
Poderíamos dizer que Ginzburg está preocupado com o mes-
mo problema da circularidade cultural, embora o inverta no que se
refere ao sujeito ou pólo escolhidos como campo de observação. O
seu “fragmento” é Menocchio, um moleiro herético do século XVI
que filtrou diversas obras e proposições pertencentes ao campo da
“cultura oficial” para construir uma cosmovisão original que era de al-
gum modo isto: a “cultura oficial” filtrada através de uma experiência
perceptiva mergulhada na “cultura popular”. O seu “fragmento” – a
trajetória de um moleiro herético perseguido pela Inquisição na Itália
do século XVI – permitiu-lhe acessar esta questão que afeta toda a
sociedade (GINZBURG, 1998).
Cada indivíduo pertencente a uma sociedade realiza a circu-
laridade cultural de uma maneira diferenciada, mas esta “circularidade
cultural” efetivamente existe e não pode ser ignorada – ela é um traço
característico, poderíamos dizer, do vasto oceano social que, embora
complexo e multi-diversificado, nesse aspecto específico, projeta-se
em cada gota d’água. A dicotomia entre “cultura oficial” e “cultura
popular” é, neste caso, um falso problema. O que se coloca é o proble-
ma da circularidade cultural, que se realiza de infinitas maneiras, mas
que de fato se realiza como um processo característico de sociedades
como as do Ocidente Cristão.249 É verdade que, ao perseguir o mo-
leiro Menocchio na sua trajetória herética, Carlo Ginzburg também

2
Mikhail Bakhtin, aliás, é um autor muito festejado, mas freqüentemente mal compre-
endido. Examinam Cultura popular na Idade Média e no Renascimento como se esta obra
estivesse preocupada essencialmente em delimitar esta dicotomia que opõe “popular”
e “erudito” – quando na verdade o que Bakhtin pretende, de maneira hábil e sutil, é
precisamente lançar luz sobre os limites desta dicotomia. Define estes pólos com clare-
za, mas logo a seguir demonstra como se processa a circularidade através da produção
intelectual de François Rabelais. O contexto de produção da obra de Bakhtin é a Rús-
sia stalinista, que também tenta impor um modelo rígido de ver e de agir no mundo
– e já se aventou que a polêmica obra de Bakhtin sobre Rabelais esconde dentro de
si esta polifonia que ensina que a circularidade cultural existe em qualquer sociedade,
de mil maneiras que estão sempre expressando formas de resistência. Rabelais teria
criticado a sociedade intelectual esclerosada de sua época, e Bakhtin maneira extrema-
mente sutil – a sociedade stalinista em que vivia.
173
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

examina muitas outras questões igualmente importantes. Lança luz,


por exemplo, sobre os limites da Inquisição – sobre seus níveis de
tolerância e de intolerância (Menocchio foi poupado em um primeiro
processo inquisitorial e foi condenado à morte em um segundo pro-
cesso, anos depois, porque continuou a difundir suas idéias heréticas
na sua prática cotidiana).
Ginburg, em O queijo e os vermes, aborda os mecanismos de
rivalidade e solidariedade que atravessam esta peculiar sociedade ita-
liana e que ficaram registrados nos inquéritos inquisitoriais – quando
as testemunhas inquiridas pelos inquisidores silenciam, quando com-
prometem Menocchio propositalmente, quando o comprometem sem
querer; ou quando o próprio Menocchio fala de seus diálogos com os
indivíduos de sua aldeia expondo suas reações diversas. Percebemos
ainda estes mecanismos, finalmente, pelo próprio fato de Menocchio
ter sido poupado da primeira vez com apenas uma ligeira punição e
levar anos até cair de novo nas malhas do Santo Ofício, apesar de ter
prosseguido com a sua divulgação herética.
Todo este complexo tecido de depoimentos contraditórios
foi rastreado pelo historiador Carlo Ginzburg não só para lhe reve-
lar a rede de solidariedades e rivalidades que percorre esta pequena
comunidade, como também para mostrar-lhe, a ele e a seus leitores,
algo sobre o cotidiano dos camponeses naquela região do norte da
Itália. A verdade é que Carlo Ginzburg consegue captar através da sua
“gota d’água” algumas coisas que ao mesmo tempo são específicas na
sua maneira de se expressarem e generalizadas no fato de se expressa-
rem: circularidade cultural, solidariedade e rivalidade como expressão
de micro-poderes, rigor e flexibilidade dos sistemas repressivos, meca-
nismos direcionados para converter a “diferença” quando isto é pos-
sível, e para “excluir” ou punir a diferença quando falha esta primeira
possibilidade. Tudo isto, enfim, transparece através desta gota d’água
que é o posicionamento de Menocchio na fronteira de uma “cultura
popular” essencialmente oral e típica de seu mundo rural e uma “cul-
tura letrada” típica das elites e percebida através de algumas leituras
– situação potencializada pela possibilidade oferecida ao moleiro, de
natureza imprudentemente loquaz para um homem de sua posição
social, para dar vazão às suas idéias em um tribunal de Inquisição.
É a partir de exemplos como este que podemos dizer que a
Micro-História lida com o fragmento como meio através do qual se
174
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

pretende enxergar uma questão social mais ampla ou um problema


histórico ou cultural significativo. O fragmento é o que se apresenta
ao historiador como caminho para realizar a sua “análise intensiva” ou
a sua “descrição densa” (técnica antropológica com a qual dialoga a
Micro-História). São muito comuns as escolhas de “vidas” ou de tra-
jetórias individuais para a realização desta observação intensiva. Além
do Menocchio de O queijo e os vermes, existem alguns outros exemplos
igualmente significativos.
Por outro lado, tal como mencionamos anteriormente, devem
ser consideradas outras possibilidades de micro-realidades a serem
examinadas, que não somente as “vidas” individuais. Pode-se tomar
como campo de observação, para a percepção de todo um regime
do imaginário, uma determinada “prática” que era realizada por cer-
to grupo social em uma comunidade historicamente realizada. Foi o
que Carlo Ginzburg empreendeu em uma obra de 1966, intitulada Os
andarilhos do bem (1991), ao estudar os sabás mencionados por aqueles
inquéritos de Inquisição em que são investigados os indivíduos per-
tencentes a determinado grupo (os benandanti).
A escolha micro-historiográfica também pode incidir sobre
determinada comunidade micro-localizada, mas, tal como já dissemos,
nunca o verdadeiro objeto de que se ocupa o historiador será a comu-
nidade em si mesma, como seria o caso da História local, e, sim, de-
terminado aspecto que incide transversalmente sobre esta comunida-
de. Por exemplo, pode-se pretender estudar os efeitos do centralismo
estatal do princípio da Idade Moderna em uma aldeia do interior ou
de importância periférica em um país europeu (já que para esta época
são muito conhecidos os efeitos do centralismo nas grandes cidades
e capitais, mas não tão conhecidos os seus efeitos nas cidades meno-
res). De todo o modo, conforme já foi ressaltado, a escolha do micro-
recorte, não deve ser confundida com o estudo de caso e tampouco
com o recorte monográfico – este que é, na verdade, realizado pelo
historiador que trabalha com qualquer enfoque ou abordagem para tor-
nar viável uma pesquisa direcionada. No caso da Micro-História, não se
trata de recortar para permitir uma análise viável (isto, de resto, é ponto
pacífico em qualquer trabalho de pesquisa). O que ocorre é que o pró-
prio recorte existe em função de um problema, é este recorte que define
o problema. O problema e o recorte estão, de uma maneira ou de outra,
intimamente ligados. Não se tem um problema anterior para o qual é
175
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

estabelecido um recorte no interesse de viabilizar a pesquisa, e nem se


tem um recorte prévio dentro do qual vão surgindo os problemas que o
historiador se empenhará em examinar (como no estudo de caso).
É o mesmo que ocorre com a “vida” ou com a “trajetória”
de um ator social: não se trata de escolher um indivíduo a ser biogra-
fado como um fim em si mesmo. A vida está sendo examinada em
função de um problema: Menocchio é escolhido por Carlo Ginzburg
porque o seu processo inquisitorial permite trazer à tona determinado
diálogo de culturas, certa prática marcada pela circularidade cultural,
uma determinada rede de rivalidades e solidariedades, de medos e de
expectativas que afloram a partir das práticas cotidianas recuperadas,
das fantasias possíveis a um moleiro e das reações de inquisidores e
testemunhas inquiridas a estas fantasias multi-circulares.
Outro aspecto importante a ser tratado quando falamos em
Micro-História refere-se à maneira de construir o texto final que será
oferecido ao leitor. A preocupação dos micro-historiadores em evitar
generalizações simplificadoras os leva habitualmente a novos modos
de estruturação do texto, que nem sempre coincidem com os que têm
sido empregados pela historiografia tradicional. Com relação a isto,
não é raro que os micro-historiadores experimentem efetivamente no-
vos modos de exposição textual. A Micro-História tende a trabalhar
com a idéia de que expor o texto de uma determinada maneira é favo-
recer certa maneira de ver, e por isto alguns dos principais expoentes
desse novo modo de abordar a História costumam dar tanta impor-
tância aos aspectos mais propriamente literários de suas narrativas ou
sínteses históricas.
Se suas fontes são inquéritos judiciais, ver-se-ão tentados a ex-
perimentar o modelo do inquérito na própria elaboração de seu traba-
lho final: deixarão que o leitor vivencie simultaneamente a experiência
de inquisidor e inquirido, de investigador criminal e réu suspeito, por
que isto favorecerá a percepção do dialogismo contido nas suas fon-
tes, do entrechoque das muitas versões contrapostas e da possibilidade
de tirar partido precisamente destas contradições.
Se sua investigação examina as vozes dos vários atores sociais
que estão intervindo em uma determinada configuração histórica a
ser examinada, talvez explorem a possibilidade de escrever um texto
polifônico, no qual o ponto de vista vai se deslocando ao invés de ser
apresentado como um ponto de vista unificado por um narrador exte-
176
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rior que seria o historiador.


Se estiver trabalhando com certo regime de Imaginário, não
hesitarão em explorar as próprias imagens que aparecem nesse regime
como núcleos motivadores para seus capítulos. Natalie Davis, autora
da polêmica obra O retorno de Martim Guerre (1987), não se sentiu cons-
trangida em dar um tom novelesco à sua narrativa sobre um pequeno,
mas curioso acontecimento, que abalara uma pequena aldeia italiana
do século XVI. Em Indagações sobre Piero, Carlo Ginzburg adota pro-
positalmente a forma do inquérito policial (GINZBURG, 1989). As
experiências estão abertas.
Assim, pode-se dizer que existe uma tendência em alguns
micro-historiadores a incorporar ao seu modo de enunciar – ou de
registrar em texto o conhecimento histórico produzido – as idiossin-
crasias ou mesmo as limitações da documentação com a qual trabalha,
e também os procedimentos da pesquisa, propriamente dita, e, até
mesmo, as suas hesitações e tateamentos (que a macro-história tra-
dicional costuma afastar da vista do leitor, como se empurrasse uma
poeira incômoda que não pôde ser varrida para debaixo do tapete).
Dito de outra forma, o micro-historiador traz a nu, tanto as
contradições e imprecisões de suas fontes, como as limitações de sua
prática interpretativa, não se preocupando em ocultar as técnicas de
persuasão que está utilizando e até mesmo declarando os pontos em
que se está valendo de raciocínios conjecturais. Ele deixa claro, pode-
ríamos dizer, o que há de construtivo nas suas construções interpre-
tativas (enquanto isto, o modo de narrar da macro-história tradicional
tende a apresentar as suas interpretações sob a forma de uma verdade
que é enunciada objetivamente e de fora, ou pelo menos esta tem sido
uma crítica muito presente entre os micro-historiadores ao modelo
tradicional).
Estas experiências ao nível de construção final do texto mi-
cro-historiográfico não constituem uma regra, repetimos, mas apenas
uma tendência. Uma vez que a Micro-História trabalha muito com as
contradições dos atores sociais a serem investigados, com os discur-
sos subjetivos, falseados e dialógicos, trazer estas subjetividades, estes
falseamentos, este dialogismo para a superfície do texto final do histo-
riador é uma possibilidade muito rica.
Um último ponto para compreender de maneira integral o
que se propõe com a abordagem micro-historiográfica refere-se ao
177
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

seu tratamento intensivo das fontes, ao seu modo peculiar de ler os


indícios a partir dos quais buscar-se-á construir uma realidade histo-
riográfica e interpretá-la. O modo de tratar as fontes que predomina
na Micro-História é aquele que Ginzburg (1994, p. 143) chamou de
“paradigma indiciário”. Implica também naquilo que se denomina
“análise intensiva” das fontes. O que vem a ser isto?
Para empreender uma análise intensiva de suas fontes, o his-
toriador deve estar atento a tudo, sobretudo aos pequenos detalhes.
Uma vez que em diversas oportunidades ele estará trabalhando ao
nível da realidade cotidiana, das trajetórias individuais, das estratégias
que circulam sob uma extensa rede de micro-poderes na qual os atores
sociais revelam-se em toda a sua humanidade possível, deve estar pre-
parado concomitantemente para as contradições que irá enfrentar.
O ser humano só não é contraditório quando se reveste da
formalidade pública ou privada, quando se esconde por trás de do-
cumentos oficiais, quando oferece ao público coerentes declarações
públicas; ou então quando ele se transforma em um número na docu-
mentação explorada pela História serial de cunho quantitativo. O ser
humano também perde as suas ambigüidades, as oscilações e tatea-
mentos que se integram à sua vida individual e intersubjetiva quando
se incorpora a uma multidão.
A multidão é espontânea; vista de fora e de cima ela realiza
atos unidirecionais: avança para invadir um palácio de governo ou foge
diante da polícia até que se dispersa e deixa de ser multidão; unifica-
se no aplauso ou na vaia a um político ou a um artista (ao ouvi-la de
longe, um espectador irá ignorar que possivelmente existem ali vozes
minoritárias que silenciam ou aplaudem enquanto a maioria vaia, de
modo que este se torna o ruído aparentemente unidirecional da mul-
tidão). Ao contemplarmos uma multidão em disparada, visualizamos
um movimento homogêneo em uma única direção, e só perceberemos
os indivíduos que caíram e foram pisoteados quando a multidão se
afasta e deixa um clarão atrás de si; ou então se apontarmos para o
meio do tumulto uma câmera dotada de objetiva, que é mais ou menos
o recurso, metaforicamente falando, utilizado pelo micro-historiador.
Quando um indivíduo é focalizado na sua trajetória individu-
al, nos seus gestos cotidianos, agindo sob pressão em certas circuns-
tâncias, negociando a sua vida diária e o direito de prosseguir no seio
de determinada comunidade ou ambiente social, escalando as suas
178
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

oportunidades no emprego ou desviando-se dos outros para evitar


entrechoques definitivos, ou para reafirmar aqueles que são inevitáveis
quando isto lhe convém. Nesses momentos, o indivíduo mostra-se
humano em suas ações, experimentador, oscilante, ambíguo, com di-
reito a ser contraditório, a refazer o seu caminho, a mentir, a se esqui-
var, a se arrepender das suas ações. Para inserir-se nas múltiplas redes
de solidariedades deverá ser contraditório, poderá fazer inimigos ao
se tornar amigo de outro, ou poderá conquistar o direito de se tor-
nar simultaneamente amigo de dois inimigos administrando bem estas
tensões.
Colocado na situação-limite de ser acusado de um crime, de
ser inquirido por um inquisidor, ou mesmo de ser convocado como
testemunha (quando terá de se pronunciar sobre algo que poderá afe-
tar o grupo ou outros de seu campo de solidariedades) o indivíduo
poderá ver potencializada ainda mais o seu caráter contraditório. Se
a situação-limite envolve vários indivíduos, cada qual mergulhado na
sua intersubjetividade e no seu circuito de ambigüidades pessoais, te-
mos adicionalmente uma rede dialógica, polifônica, na qual estarão
expressas diversas vozes a serem decifradas.
Muitas vezes, o historiador que trabalha com esse nível hu-
mano mais imediato, mais sublunar, precisará de uma argúcia especial.
Pode ser que encontre as respostas nos detalhes aparentemente se-
cundários, nos elementos que habitualmente são pouco percebidos (e
que por isto mesmo são menos sujeitos a falseamentos). O criminoso
na maior parte dos casos é apanhado a partir dos pequenos detalhes,
já que os elementos que ele considera mais importantes são cuida-
dosamente ocultados após a execução do crime. Da mesma forma,
um psicanalista vai decifrando a personalidade do seu paciente, que
inevitavelmente irá mentir, a partir dos pequenos gestos, das hesita-
ções de fala, das expressões que deixa escapar, dos atos falhos. Os
pequenos gestos inconscientes e involuntários, para ele, serão muito
mais eloqüentes do que qualquer atitude formal. Profissões como a de
investigador policial ou de psicanalista (investigador de almas) pouco
valeriam se aqueles que a elas se dedicam não fossem capazes de ex-
trair a informação primordial do pequeno detalhe que normalmente
passa desapercebido para os homens comuns. Vislumbramos, aqui,
um novo modelo de investigação da realidade: o do micro-analista.
Os exemplos abundam na Literatura, que parece tê-los des-
179
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coberto antes da Ciência. Modelo de micro-analista impecável é, por


exemplo, um dos personagens do filme O silêncio dos inocentes – o psi-
canalista-canibal que é capaz de avaliar a origem de um indivíduo pelo
seu sotaque, o seu estado de ânimo pelo ritmo respiratório, e que é
capaz de ler as contradições entre um sapato caro e um “andar caipi-
ra”, entre um modo de falar e o gesto que o acompanha. Outro micro-
analista arguto, este citado por Carlo Ginzburg (1994, p. 143) em seu
artigo sobre “o paradigma indiciário”, é certamente Sherlock Holmes
– o famoso detetive inventado pelo escritor Conan Doyle.
O detetive inglês era capaz de descobrir o autor de um crime
apenas com base em indícios imperceptíveis para a maioria, incluindo
entre suas habilidades desde a de interpretar pegadas na lama até a de
decifrar metodicamente as cinzas de um cigarro – sem contar as habi-
lidades psicanalíticas de enxergar a alma humana através do corpo, das
quais se revelava possuidor ao decifrar rostos ou mesmo ao desvendar
origens sociais e naturalidades a partir do discurso das vestimentas.
Sherlock Holmes, enfim, era capaz de identificar e de conectar indícios
aparentemente isolados para elaborar deduções magníficas.
O ancestral comum a Sherlock Holmes e ao psicanalista-ca-
nibal de O silêncio dos inocentes é certamente o célebre personagem de
Voltaire chamado Zadig (1994), que não raro se metia em apuros por
causa de sua inacreditável capacidade de enxergar o que ninguém via.
Não satisfeito em identificar a espécie e o gênero de uma cadela que
nunca vira, apenas a partir dos traços e pegadas que ela havia deixa-
do na areia, Zadig ainda era capaz de perceber que ela manquejava
de uma das pernas, já que as impressões deixadas na areia por uma
das patas eram menos fundas do que as das outras três! Os exemplos
abundam nessa obra ficcional de Voltaire, que constitui muito mais do
que uma história curiosa. O que o filósofo iluminista estava sugerindo
através de seu personagem era na verdade um novo paradigma de
investigação que poderia ser aplicado não apenas na vida cotidiana,
como também nas várias esferas do saber. Mas o desenvolvimento
pleno desse “paradigma indiciário”, tal como o chamou mais tarde o
micro-historiador italiano Carlo Ginzburg, ficaria a cargo dos séculos
seguintes.
Aonde esses modelos nos levam? Em primeiro lugar, o micro-
historiador que trabalha “ao rés do humano” tem que ter um pouco
de Zadig, de Sherlock Holmes, ou do psicanalista-canibal que devora
180
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

almas. Quando ele lida com fontes de natureza dialógica, como os


registros de inquisição ou como os inquéritos policiais, por vezes, terá
de “espiar por cima dos ombros do inquisidor”, como dizia Ginzburg
(1990, p. 201), já que tanto o historiador como o inquisidor irmanam-
se na intenção de empreender uma análise intensiva dos materiais que
têm à sua disposição – o inquisidor contando com os contraditórios
depoimentos orais de réus e testemunhas, o historiador tendo à sua
disposição apenas o registro escrito destes depoimentos orais, já filtra-
dos pela primeira percepção do inquisidor.
De igual maneira, ao examinar como fonte um inquérito po-
licial, o historiador ver-se-á tentado a espiar por trás dos ombros do
delegado, mas munido da consciência de que o próprio delegado é
mais uma das vozes contraditórias que se juntam ao processo. Ao pre-
parar o campo para um trabalho sobre fontes de processos criminais
do Rio de Janeiro do início do século XX, coligadas as notícias de
jornais relativas aos crimes examinados, e chamando atenção para a
rica quantidade de versões contraditórias com as quais o historiador
há de se deparar, Sidney Chalhoub registra um procedimento-guia que
vale a pena reproduzir:
o fundamental em cada história abordada não é ‘descobrir
o que realmente se passou’ [...] e sim tentar compreender
como se produzem e se explicam as diferentes versões que
os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para
cada caso (CHALHOUB, 1986, p. 22-23).
Assim, o autor revela que a riqueza de suas fontes está pre-
cisamente na natureza contraditória das várias versões de um crime,
oriundas de depoimentos do réu, das testemunhas, de retificações nos
depoimentos de um e de outros, de silêncios reveladores, e das leituras
desses depoimentos empreendidas em âmbitos diferenciados como o
judicial e o jornalístico:
cada história recuperada através dos jornais e, principal-
mente, dos processos criminais é uma encruzilhada de muitas
lutas: de lutas de classes na sociedade, lutas estas que se re-
velam na tentativa sistemática da imprensa de estigmatizar
os padrões comportamentais dos populares – estes ‘brutos’
– nas estratégias de controle social dos agentes policiais e
judiciários, e também nas reações dos despossuídos a estes
agentes – como por exemplo na atitude hostil dos popula-
res em relação aos guardas-civis, ou na estratégia utilizada
181
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

pelos estivadores amigos de Paschoal [o autor de um cri-


me], e muitas vezes repetidas pelas testemunhas em outros
autos, de ‘sumirem’ ao longo do andamento do processo,
ou nos casos numerosos em que acusados e testemunhas
denunciam maus-tratos; das contradições ou conflitos no
interior do próprio aparato jurídico-repressivo – como por
exemplo, no procedimento bastante comum dos juizes
encarregados do interrogatório na pretoria no sentido de
checar as condições em que foi elaborado o inquérito na
delegacia de polícia (CHALHOUB, 1986, p. 23).
Abre espaços para inúmeras complexidades a ‘situação-limite’
de um crime que dará origem a um processo – no qual será investi-
gado um suspeito, depois transformado em acusado e finalmente em
réu, e no âmbito do qual serão ouvidas testemunhas que poderão ser
simpáticas, neutras ou hostis ao acusado. Digno de nota é o fato de
que os depoimentos de certos indivíduos – réus, acusadores ou tes-
temunhas – poderão ser diferentes em um momento e outro, revelar
ou ocultar estratégias, motivar-se em atitudes preventivas e arrependi-
mentos, ou em receios de se verem comprometidos (tanto no que se
refere ao réu como a algumas testemunhas) sem contar com as redes
de solidariedades e rivalidades que processos como estes permitem
que aflorem, com os preconceitos que encontram um terreno profí-
cuo para se extravasarem.
Nem mencionaremos o fato de que, independente das es-
tratégias e ações preventivas, a memória dos indivíduos é complexa
e contraditória, ou ainda de que os boatos costumam influenciar o
que um indivíduo sabe por alto até que ele jure que tem certeza de
fato sobre algo que aconteceu. De todo modo, fontes como os pro-
cessos criminais são ricas, precisamente porque são dialógicas – e se
por vezes se mostram repletas de contradições a serem examinadas,
são, por outro lado e por isso mesmo, reveladoras de humanidade. A
tarefa do historiador, certamente, não será a de julgar um crime, mas
avaliar representações, expectativas, motivações produtoras de versões
diferenciadas, condições de produção destas versões, além de captar a
partir da documentação detalhes que serão reveladores do cotidiano,
do imaginário, das peculiaridades de um grupo social, das suas resis-
tências, das suas práticas e modos de vida.
Pode-se dar ainda que o historiador encontre fontes dialógi-
cas e ricas de indícios reveladores não apenas nos processos criminais
relativos a indivíduos isolados. As sublevações e movimentos popula-
182
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

res também podem dar origem a processos e registros judiciais, haja


vista que, quando não são bem sucedidas e mudam o curso da história
de uma sociedade (transformando-se em “revoluções” propriamente
ditas) as insurreições são quase sempre convertidas em crimes cole-
tivos pelos seus repressores, gerando todo o aparato de registros e
inquéritos criminais a que têm direito os crimes comuns.
Ciro Flamarion Cardoso (1990, p. 384), em uma frase feliz,
ressaltava que “uma revolta que escapa à repressão escapa à história”.
Assim, as sublevações reprimidas, dada a massa de documentação que
produzem após a sua debelação, podem gerar fontes preciosas para os
historiadores. É o que vemos, por exemplo, em um dos capítulos de
Visões da liberdade, de Sidney Chalhoub (2001), em que o autor analisa
inquéritos sobre sublevações de escravos ocorridas no Rio de Janeiro
entre 1870 e 1880. Os escravos, que habitualmente chegam aos histo-
riadores como um número nos inventários das fazendas escravistas e
inquéritos que apuram sublevações adquirem um rosto, um nome, ca-
racterísticas pessoais, visões de mundo que são pacientemente extraí-
das de seus inquiridores para documentar o processo repressivo.350
Ao lidar com estes tipos de fontes, ou com quaisquer outras
que permitam uma análise intensiva e atenta aos pormenores, será
preciso que o historiador comungue com a argúcia de um Sherlock
Holmes, de um psicanalista devorador de almas, de um expert em falsi-
ficações que identifica a falsidade de um quadro não pelos seus traços
principais – estes que são de resto cuidadosamente trabalhados pelo
falsificador – mas sim pelos detalhes aparentemente insignificantes, e
que por isto mesmo foram descuidados pelo falsificador da mesma
maneira que um criminoso abandona inadvertidamente uma ponta de
cigarro no local de um crime. É preciso examinar, nestes casos, “os
pormenores mais negligenciáveis” (GINZBURG, 1994, p.144).

3
Na obra citada, Chalhoub pretende recuperar o processo histórico de abolição da
escravidão na Corte através da análise intensiva das lutas que se desenvolviam em
torno das visões ou definições de liberdade e de cativeiro. Suas fontes são não ape-
nas os já referidos inquéritos sobre sublevações de escravos, mas também toda uma
sorte de outras fontes que incluem, além dos processos criminais e das ações cíveis
de liberdade, também fontes literárias como os Tratados sobre a Escravidão e os re-
latos de viajantes escritos na época. A idéia, portanto, é interconectar fontes diversas,
deixando que elas se iluminem reciprocamente (diferentemente de sua primeira obra
– Trabalho,lar e botequim – na qual o autor procurou se restringir às fontes criminais e
judiciais).
183
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Essa atenção simultânea aos detalhes e pormenores, de um


lado, e às muitas vozes de um texto ou às múltiplas versões de um pro-
cesso, de outro, corresponde ao que estaremos chamando aqui de uma
‘análise intensiva das fontes’. Freqüentemente, será necessário pôr as
fontes a dialogar em registros de intertextualidade, deixar que uma
ilumine a outra, permitir que seus silêncios falem e seus vazios se com-
pletem. O olhar micro-historiográfico necessita desta análise intensi-
va, incisiva, atenta tanto aos pequenos pormenores como às grandes
conexões. Trabalha-se ao nível das contradições e ambigüidades – não
contra estas ambigüidades, mas sim se tirando partido delas.
Finalizamos esse levantamento dos aspectos fundamentais da
prática micro-historiográfica, lembrando mais uma vez que, no decur-
so desse artigo, a Micro-História foi tratada como uma abordagem, e
não como uma corrente. Muitas das incompatibilidades, que alguns
apontam entre essa abordagem e certos campos teóricos, estão anco-
radas precisamente na incompreensão de que a Micro-História é abor-
dagem e não campo teórico ou corrente historiográfica. Confunde-se,
por exemplo, os posicionamentos teóricos de alguns dos principais
micro-historiadores (que são seus posicionamentos singulares, não
necessariamente por serem micro-historiadores) com o campo mais
específico da abordagem micro-historiográfica. Mas esta é outra ques-
tão, à qual poderemos retornar em outra oportunidade.

Referências Bibliográficas

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184
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MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Brasília: EdUnB, 1992.
VOLTAIRE. Zadig ou o Destino: história oriental. São Paulo: Vozes, 1994.

Artigo recebido em junho2007 e aceito para publicação em agosto


2007.

185
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

OS HISTORIADORES E OS “FAZEDORES DE
HISTÓRIA”: LUGARES E FAZERES NA PRODUÇÃO
DA MEMÓRIA E DO CONHECIMENTO
HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO A PARTIR DA
INLFUÊNCIA MIDIÁTICA
51
Sônia Maria de Meneses Silva1

Resumo: Esse artigo analisa a produ- Abstract: This article analyzes the
ção do acontecimento histórico a par- production of the historical event
tir da mídia, destacando a elaboração from the media, detaching the
do conhecimento fora dos domínios elaboration of the knowledge is
dos historiadores por aqueles que cha- of the control of the historians for
mamos “fazedores de história”. Inves- those we call “History Makers “.
tigamos que tipos e formas de história We investigate that types and forms
são colocados em relevo nessa produ- of history are placed in relief in
ção e como ela pode ajudar a construir this production and as it can help
um novo regime de historicidade na to construct to a new regimen of
sociedade contemporânea. historical idea in the contemporary
Palavras-chave: história, midia e con- society.
tecimento histórico. Key-words: history, media and
event historical.

O que fabrica o historiador quando ‘faz história’?


Michel de Certeau

Iniciamos nosso artigo com essa pergunta feita por Michael


de Certeau. Contudo, mais que um questionamento, a interrogação
traz em si uma afirmativa essencial: o historiador fabrica algo, ou seja,
sua função principal é produzir, elaborar, construir. Com ela o autor
pôs em destaque a ação do historiador na construção do conhecimen-
to histórico, marcando assim, uma crítica contundente às proposições
que tentaram reduzir seu papel ao de mero coletor de fontes.
Não somente Certeau, mas as reflexões teóricas desenca-
deadas pelas várias concepções historiográficas no século XX ser-

1
Professora de teoria da história da Universidade Regional do Cariri-URCA; mestre
em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, atualmente cur-
sando doutorado em História pela Universidade Federal Fluminese-UFF. Desenvolve
pesquisas investigando as relações entre História e Mídia a partir da segunda metade
do século XX. E-mail: sonia.meneses@gmail.com
187
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

viram para nos sacudir de nossa confortável posição de caçadores,


para ressaltar nosso papel na construção dos fatos históricos. Conse-
quentemente, tal processo nos tornou socialmente responsáveis pelo
que produzíamos em nosso trabalho de sistematização da memória
transformada em história. Entretanto, ao contrário de guardiões de
um passado morto, o historiador atual é o “recriador” de um passado
sempre vivo em diálogo com seu presente. Sabemos que caminhamos
em uma estrada de muitos atalhos, afinal, a definição de fato histórico
sempre se constituiu o centro de toda polêmica ensejada em intermi-
náveis debates historiográficos.
Tais considerações nos conduziram também à compreensão
de que nenhum acontecimento é significativo por si mesmo, não existe
um valor intrínseco ou um sentido que conceda um significado isola-
do dos demais componentes. Na verdade, um acontecimento somente
se torna histórico quando é construído enquanto tal, e sua formulação
é eminentemente social, na medida em que conceituamos e elabora-
mos categorias de compreensão e explicação sobre ele, pois, como nos
lembra Mitre (2003, p. 19), é necessário que “saibamos assumir, a sério
o esforço estruturante e seletivo sem o qual o relato torna-se um caos
de impressões”.
Desta forma, fato histórico é aquilo que se refere a um deter-
minando evento humano que se tornou objeto de apropriação e siste-
matização intelectual, social, cultural e temporal. Esta, por sua vez, é
influenciada por valores, posições e interpretações em uma constante
construção de significados.
Isso significa que nem todos os acontecimentos humanos
são históricos e é exatamente a necessidade da existência deste “não
histórico” que ajuda a construir a memória histórica de uma socieda-
de, caso contrário, entraríamos em uma espécie de mundo de Funes,
o Memorioso onde tudo é histórico e, conseqüentemente, nada o é
(BORGES, 1978).
Nestes termos, há um diálogo constante entre passado e pre-
sente de modo que nem podemos submeter todo o sentido do passa-
do ao presente, tampouco, reduzir o passado a um mero constructo da
linguagem. Nenhum historiador pode prescindir dos rastros deixados
por outros grupos humanos para construir-lhes suas histórias sob o
risco de tornar sua obra irremediavelmente comprometida. Por outro
lado, nenhum rastro fala por si, pois necessita de alguém que o inter-
188
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rogue. Sendo assim, por mais que todas as nossas conclusões possam
ser revistas, há ainda que se considerar que o passado existiu e a im-
possibilidade de apreendê-lo em sua totalidade não deve justificar sua
diluição integral em nosso presente.
Qualquer narrativa histórica representa o olhar de uma so-
ciedade para seu passado em um esforço de compreensão e de cons-
trução de significado a partir de questões ensejadas em seu presente.
Como afirma Mastrogregori (1996, p. 68), os textos de história são
“elementos de um desenvolvimento histórico mais geral, amplo e va-
riado” dentro do qual outras atividades exercem também esse papel,
inserindo-se naquilo que o autor chama de “tradição das lembranças”.
Na obra historiográfica efetivam-se, por assim dizer, relações culturais
e sociais que nos servem para demonstrar ansiedades, expectativas e
formulações efetuadas a partir de um patrimônio intelectual, cognitivo
e pragmático.
Nesse complexo jogo de formulações, a história, entendida
como prática humana de reflexão e ação sobre diversas temporali-
dades pode ser efetivada em vários espaços: escola, família, grupos
religiosos, academias, recursos midiáticos, entre outros. Embora no
século XIX tenha havido um esforço de institucionalização e legitima-
ção de um lugar próprio para a elaboração da história, o final do sécu-
lo XX veio demonstrar, de forma contundente, que tal conhecimento
será sempre um campo em litígio.
No meio desse embate, os lugares de história e de memória
tornaram-se cada vez mais heterogêneos, sobretudo, a luta pelo con-
trole desses lugares, a começar pelos próprios processos de governa-
bilidade contemporâneos. Não que a instrumentalização da história
ou da memória pelo poder seja artifício recente, mas o que se percebe
é que há uma mudança considerável nesses usos, porque a própria
idéia de futuro foi alterada, como nos chama atenção Brossat (2006),
sobretudo, pelo desenvolvimento de uma sensibilidade pós-catástrofe,
caracterizada por uma profunda melancolia.
Tal circunstância se deu, em grande parte, influenciada pelos
chamados acontecimentos emblemáticos no século XX como guer-
ras, genocídios e ditaduras, além do abandono de milhões de pessoas
entregues à miséria nos continentes afro-asiáticos. Eventos no quais
existem, inicialmente, dois elementos importantes a serem considera-
dos: primeiro são acontecimentos midiáticos de “primeira grandeza”.
189
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A divulgação espetacular de guerras, desastres ambientais, massacres,


dentre outros, acabou por estabelecer um elo de historicidade muito
mais elástico entre povos e sociedades em várias partes do mundo.
Nesse caso, também houve um apelo inquestionável à sensibilidade e
à comoção pública diante de tais eventos.
Em segundo lugar, no momento de sua efetivação, tais acon-
tecimentos emergem construídos a partir de uma narrativa que os
delimita como marcos históricos representativos. Estes dois fatores
parecem ter tornado tais acontecimentos objetos de luta mais inten-
sos que outros, especialmente, porque sobejam sobre eles disputas de
identidades, reparações sociais e memórias traumáticas.
A problemática em torno desses acontecimentos é ainda mais
complexa, principalmente, quando falamos em termos da produção
do conhecimento histórico, pois, se ao longo do século XX aprende-
mos que o fato histórico é elaborado em um dado lugar social, como
realizarmos a crítica historiográfica sobre eventos que trazem um ape-
lo social e ético tão forte quanto à necessidade de memória, como é o
caso dos que mencionamos acima? Desta forma, que papel caberia ao
historiador? Voltamos a outro ponto essencial que nos remete aos di-
lemas ensejados no século XIX: o problema sobre a verdade histórica,
a questão de saber se alguns acontecimentos colocam ou não limites à
interpretação do historiador.
A partir da segunda metade do século XX, o fazer histórico
parece ter seguido cambaleante, com duas pesadas cabeças: de um
lado, uma produção historiográfica excepcional, com sofisticadas me-
todologias para a investigação de sociedades, imaginários, práticas cul-
turais, cotidianos, o que tornou a escrita da história uma tentativa de
mergulho na totalidade das relações humanas no tempo. De outro
lado, a profusão acontecimental difundida pelos meios de comuni-
cação. Como afirmou Nora (1995, p.185), “um acontecimento sem
historiador”. Deparamos-nos com um paradoxo: um acontecimento
pensado como construção e outro como um dado.
O século da mídia espetacularizou o acontecimento, ofereci-
do como mercadoria em uma feira barulhenta, tornando-o indomá-
vel. Achamos-nos quase mergulhados no devaneio de Funes, como se
fôssemos “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme,
instantâneo e quase intolerantemente preciso”, prisioneiros em uma
realidade saturada de eventos, “tão infatigável como a que dia e noite
190
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convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sul-ameri-


cano” (Borges, 1978). Ao mesmo tempo em que “distrair-se do
mundo” tornou-se quase impossível para nós.
A apologia ao não esquecimento se tornou a fuga para uma
sociedade que esquece a si própria por não saber o que é importan-
te lembrar. No meio desse conjunto de reais novos problemas, uma
constatação: a história se tornou um produto cobiçado, não somente
de legitimação, mas mercadoria simbólica vendida em bancas de jor-
nal. Produto que desencadeou a corrida de uma série de novos pro-
dutores, ou “fazedores” de História.
Nesse sentido, é fundamental problematizamos uma questão
premente em nossa época: o conhecimento histórico elaborado por
não historiadores de ofício. Uma produção cambiante que está fora
dos muros de nossas academias com o objetivo de pensar, a partir de
outros lugares, a construção do próprio conhecimento histórico.
Se por um lado a história, como prática acadêmica, alcançou
um importante lugar de produção no século XX, por outro, assistimos
à circulação de conteúdos históricos permeando, como uma complexa
rede, vários aspectos de nosso cotidiano. Atualmente “esbarramos”
com a história estampada em bancas de revista, canais de televisão,
romances nas prateleiras das livrarias, em matérias de jornais.
Tudo isso nos demonstra uma dinâmica circularidade do co-
nhecimento que há muito transpôs os domínios dos historiadores.
Para alguns, essa produção não é “História” ou, pelo menos, não se
apresenta como um conhecimento de primeira grandeza, como talvez
seja aquele elaborado segundo as meticulosas possibilidades teórico-
metodológicas formuladas em penosos anos de reflexão historiográ-
fica.
É incontestável que há grande variedade de lugares onde o
conhecimento histórico se efetiva, principalmente quando levamos
em conta os elementos cognitivos com os quais o homem contempo-
râneo se depara. Com isso, a problemática do lugar de produção do
conhecimento se tornou muito mais complexa.
Atualmente assistimos a um interesse quase obsessivo pelo
passado, levando a uma verdadeira profusão de obras e produtos que
estimulam e alimentam uma sede de história em nosso cotidiano. Nes-
se universo polifônico, segundo Ferreira (2002), estabeleceu-se verda-
deira confusão entre memória e história, e entre o que é ser historiador
191
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e History maker. Vigora, sob diversos aspectos, uma competição de


formas de leitura do passado, tornando a memória mercadoria que
“invade o cotidiano, mas na maioria das vezes apenas para satisfa-
zer parcialmente uma demanda por identidade, e torna-se assim uma
identidade domesticada” (FERREIRA, 2002, p. 326). O universo des-
ses “fazedores de história”, bem como sua produção, tornou-se um
poderoso objeto de ensino de história em nossa sociedade. Tal cons-
tatação já nos demonstra o espaço de tensão no qual nos situamos
nessa reflexão.
Ao pensarmos essas questões, consideraremos que essa pro-
dução concorre para a elaboração de um novo regime de historicidade
efetivado a partir dos anos 50. Para Hartog (2006), a partir da segunda
metade do século XX, a sociedade ocidental passou por mudanças
significativas em sua percepção temporal. Na verdade, Hartog argu-
menta que nas últimas décadas desse século assistimos ao declínio
do moderno regime de historicidade, no qual predominava uma visão
teleológica da história tomada como uma marcha linear e contínua
rumo a um futuro previsível. Ainda dentro desse ideal, vislumbrava-se
a possibilidade de uma história universal e de um tempo instrumenta-
lizado em uma cronologia precisa e meticulosa.
Se por um lado o final do século XX foi marcado por essa
ênfase no presente, por outro marca também uma verdadeira corrida
pela preservação, como se a perspectiva do futuro fosse cada vez mais
irreal e tomada de certo pessimismo. Memória, patrimônio e come-
moração, tornam-se os lemas mais fortes para essa sociedade.
A Memória e a História assumiram lugares de conceitos fun-
dantes na nova configuração. As disputas pela lembrança e também
pelo esquecimento tornaram-se espaço de luta entre vários grupos,
tornando o passado o lugar de concessão de justificativas, ressenti-
mentos, lições e poder.
O início do século XXI marca um combate por justiça, como
um lenitivo para uma sociedade que necessitou de explicações e a re-
paração de um projeto de futuro que pareceu fracassar em meio a
guerras, regimes autoritários, genocídios e desilusões. A necessidade
de não esquecer tornou o final do século XX e início do XXI a era
das comemorações e da constituição dos marcos temporais, em uma
frenética cadência de ritos que parecem ser pensados quase em linha
de produção. Como nos lembra Brossat (2006), o rápido registro do
192
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passado resultou em uma inesgotável demanda de datas, lugares e per-


sonagens que, por apresentarem certo valor de antiguidade, tornam-se
memoráveis.
Nesse contexto, o passado domado surge como o substitu-
to do futuro previsível e a História retoma seu lugar de provedora
de lições. Assistimos a uma profusão de leituras possíveis num cons-
tante processo de fazer e refazer a História. A saturação do presente
por uma alucinante produção de acontecimento é outra característica
marcante desse momento, para muitos visto como sendo um dos res-
ponsáveis pelo afastamento da idéia de futuro, imponho um desejo
ansioso de usufruirmos ao mesmo tempo de tudo, fazendo com que a
“permanência no presente, às vezes parece ter um caráter predatório
como se – na incerteza de todas as coisas – o homem buscasse vanta-
gens causais” (BODEI, 2004, p. 15).
Essa saturação é em parte atribuída à ação do processo de su-
perinformação ensejado pelos recursos midiáticos que, a partir da se-
gunda metade do século XX colocou-nos em uma corrida lancinante
que modificou drasticamente as relações tanto entre os homens como
também a visão destes sobre o tempo:
O desenvolvimento dos meios de comunicação criou as-
sim o que agora descrevemos como ‘historicidade media-
da’: nosso sentido do passado e de como ele nos alcança se
torna cada vez mais dependente da expansão crescente de
um reservatório de formas simbólicas mediadas (THOMP-
SON, 2004, p. 38).
Nesse contexto, às tradições orais familiares, livros escolares,
grupo sociais, associaram-se também a televisão, o rádio, jornais e,
mais recentemente, a internet, como difusores de uma nova constru-
ção do fazer e do pensar historicamente. Ao refletirmos sobre essa
produção, é necessário que consideremos que ela efetiva um comple-
xo amalgama de formas de pensamentos que abarca desde elementos
da memória à questões historiográficas, em um jogo de superposições
de sentidos intenso e variado.
Recaem sobre nós múltiplos esquemas de produção de acon-
tecimentos e, mais ainda, complexos construtores de sentido, nos
quais a própria sensação de inexistência de sentido histórico faz parte.
Nossos referenciais subjetivos de apreensão do real foram alterados;
considere-se, dentro disto, ideologias e utopias que por séculos ha-
193
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viam orientado e dado um sentido, se não claro, ao menos bastan-


te tranqüilizador ao desenvolvimento histórico. A percepção sobre a
realidade parece estar saturada por um sem número de mecanismos
mediadores, em meio aos quais, os recursos midiáticos assumem um
papel capital.
Lembremos da invasão do Iraque pelos Estados Unidos em
20 de março 2003. Através dos meios de comunicação – em suas varia-
das narrativas, sons, imagens e textos –, fomos arrastados para dentro
de tanques de guerra, campos de batalhas e esconderijos no Oriente
Médio. Em certo sentido, tornamo-nos participantes desse evento, na
medida em que a simultaneidade da informação nos levava à condi-
ção de testemunhas. A invasão iraquiana foi quase instantaneamente
nomeada como fato histórico contemporâneo, servindo de marco no
grande caldeirão de outros acontecimentos que compõem as relações
políticas, sociais, bélicas e culturais entre o ocidente e oriente nesse
início de século XXI.
Agora tomemos outro acontecimento histórico, também um
conflito, só que ocorrido no século XIII. Estamos falando da Batalha
de Bouvines, acontecida em 27 de julho de 1214, analisada por Geor-
ges Duby (1993) no livro intitulado O domingo de Bouvines. Muito prova-
velmente, à exceção dos próprios franceses, poucos tenham escutado
falar do episódio analisado por Georges Duby, embora não possamos
deixar de considerar que a preservação de registros sobre o evento em
si já denota um desejo de construção monumental e memorial sobre
o mesmo.
Duby argumenta que esse evento é fundamental para pensa-
mos o sentimento de patriotismo, assim como as práticas militares no
começo do século XIII. Além disso, o acontecimento descortina tam-
bém as relações entre o sagrado e o profano, naquele contexto que,
portanto, tornou Bouvines algo mais que uma batalha, travada em um
único dia, como outras que devem ter ocorrido naquele período.
O que faz diferir Bouvines do Iraque não é somente o tempo
que os separa, mas chamamos atenção para dois elementos fundamen-
tais: o primeiro logo nos salta aos olhos. A diferença na circulação de
informações sobre eles é enorme, conseqüentemente, as narrativas que
irão ser construídas sobre cada um. Em segundo lugar, na construção
da invasão Iraquiana como fato histórico, os sistemas de comunicação
contemporâneos foram fundamentais e, mesmo que posteriormente
194
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ele seja submetido ao rigor da metodologia e da crítica historiográfica,


a possibilidade de sua retirada total dos livros de história, ou de sua
categoria de acontecimento histórico, parece remota. Em Bouvines, a
atuação do historiador teve importância fundamental para que Batalha
passasse da categoria de evento para a de acontecimento histórico.
Evidentemente, Duby não criou todos os sentidos de Bouvi-
nes. Para elaborá-lo e narrá-lo, o autor foi buscar seus vestígios “no
passado” e a própria preservação deste já demonstra a intenção de
construção de uma dada memória sobre o mesmo, como o próprio
autor afirma:
Os acontecimentos são como espuma da história, irrom-
pem na superfície e, ao estourar, provocam ondas que se
propagam a maior ou menor distância. Este deixou mar-
cas bastante duradouras, até hoje não foram totalmente
apagadas. Somente essas marcas lhe conferem existência
(DUBY, 1993, p. 23).
Contudo, tais marcas não falam por si só, também, e, tomadas
isoladamente, não fariam de Bouvines um acontecimento histórico.
Nesse caso, sem a ação do próprio Duby, ao compor sobre a batalha
uma narrativa coerente, as marcas não passariam de souvenirs dispostos
em um antiquário, pois, como nos lembra Paul Veyne (1998, p. 18), “a
narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que
nenhum deles pode ser o próprio evento, ela não é um documentário
em fotomontagem e não mostra o passado ao vivo ‘como se você
estivesse lá’”.
Os meios de comunicação também não construíram todos
os significados sobre a Invasão Iraquiana, que, certamente, ainda
será apropriada em várias narrativas. Contudo, assim como Duby es-
tabeleceu um recorte sobre o passado, a mídia efetuou um recorte
sobre nosso presente, organizando sobre ele uma narrativa marcada
por visões de mundo, lugares sociais e ideologias. Posteriormente tais
narrativas servirão para a construção de novos sentidos sobre o pas-
sado, tanto por parte dos historiadores de ofício, como também por
qualquer pessoa que de alguma forma partilhou de seu universo de
construção. Neste caso, tais notícias tanto podem se tornar lugar de
história como de memória.
Ao longo de nosso texto, tentamos apontar alguns aspectos
sobre a elaboração do conhecimento histórico na sociedade contem-
195
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

porânea. Com mencionamos inicialmente, as últimas décadas do sé-


culo XX trouxeram novas complexidades para a sua produção, dentre
as quais os meios de comunicação assumiram um papel extremante
relevante, seja através da acelerada produção de notícias, que recolo-
cou antigos e novos problemas na produção dos acontecimentos, seja
em seu papel de produtor de versões ou de datas convocantes sobre
temáticas históricas.
Nesse contexto, a produção do conhecimento histórico se
manifesta a partir de novas variedades de lugares e atores, fazendo
com que os historiadores de ofício agora se deparem com uma pro-
dução que avança velozmente sobre temáticas e objetos tornando a
história uma mercadoria cobiçada pelos recursos midiáticos. Ressalta-
se também que se aprofundaram as lutas de grupos, classes, etnias e
governos por esses lugares de produção.
Tais lugares são ocupados por fazedores de história que, cons-
cientes do potencial convincente e legitimador do discurso histórico,
produzem uma avalanche de novas narrativas que misturam as ur-
gências de relatos cotidianos a uma produção de sentido que procura
construir memórias e marcos temporais. Como tentamos demonstrar,
a construção da própria historicidade contemporânea é marcada pelo
imediatismo que tenta fixar o histórico no momento de sua constitui-
ção e, por outro lado, pelo por um trabalho de construção do presente
amparado pelas referências aos conceitos de história e memória, efeti-
vando, assim, uma consciência histórica multifacetária.
Mas a história, que é produzida com tais recursos, evoca uma
epistemologia tradicional, na qual deve se eximir de posicições e a ver-
dade descoberta por baixo de toda a poeira das versões. É nesse senti-
do que os recursos midiáticos jogam com uma gigantesca variedade de
depoimentos, testemunhos e hipóteses. Nelas cabem todas as versões,
que, embora rivalizem entre si, buscam chegar ao mesmo ponto: a
verdade final. A história é explicada a partir de um encadeamento de
causas, efeitos e conseqüências. Em nenhum momento, a produção de
tais relatos se apresenta como “construção”, mas são tomados como
lugares de verdades que “resgatam”, “retratam” e “apresentam” o pas-
sado, cabendo ao leitor descobrir qual deles é o verdadeiro.
O conhecimento produzido por esses lugares, além de ter se
tornado um recurso poderoso para o ensino e a reprodução de conte-
údos históricos, efetiva também olhares e atitudes de nossa sociedade
196
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

sobre o seu passado uma vez que é preciso termos clareza que a pro-
dução científica da História é, tão somente, uma parte da “formação
histórica” de uma sociedade.
Devemos considerar, portanto, o conjunto de “todos os pro-
cessos de aprendizagem em que a história é assunto e que não se des-
tinam, em primeiro lugar, à obtenção da competência profissional”
(RÜSEN, 2001, p. 48). Existem, por conseguinte, diferentes narrativas
que explicam e evidenciam formas de pensamento histórico que se
manifestam em variados fenômenos de aprendizagem, desde o ensino
formal até os meios de comunicação. Levar em contar o trabalho dos
fazedores de história como um conhecimento socialmente válido nos
possibilita compreender os elementos constitutivos da maneira que
uma sociedade pensa historicamente a si própria.

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em novem-


bro 2007.

198
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Artigos
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HISTORIOGRAFIA E IDENTIDADE URBANA NO


SUL DE SANTA CATARINA (DÉCADA DE 1970)
52
Dorval do Nascimento1

Resumo: Busca-se refletir sobre as Abstract: The aim of this work is


relações da historiografia com a me- to reflect the relations of the histo-
mória oficial e a identidade urbana, riography with the official memory
tomando-se como centro da análise and the urban identity, taking as
um conjunto de obras produzidas center of the analysis a set of work-
no Sul de Santa Catarina na década manships produced in the South of
de 1970. Esse período é considerado Santa Catarina in the 1970 decade.
fundamental no processo de transfor- This period is considered basic in
mações identitárias pelas quais passa- the process of identity transfor-
vam as cidades da região carbonífera mations in which the cities of the
do Estado. De certa forma, pretende- carboniferous region were going
se refletir sobre as inflexões na identi- through. In a certain way there is an
dade urbana a partir da historiografia intention to consider the inflections
local. of the local historiography in the
Palavras-chave: historiografia, me- urban identity.
mória, identidade, cidade. Key-words: historiography, memo-
ry, identity, city.

As cidades da região carbonífera de Santa Catarina se forma-


ram a partir de um duplo registro, aquele da imigração que forneceu
o núcleo inicial de povoamento e o da indústria de extração de car-
vão mineral que moldou por longos anos as suas identidades urbanas
e conformou uma cidade que podemos chamar de carbonífera. No
cruzamento desses dois registros forjaram-se lutas de representações
que implicaram em um redimensionamento das identidades urbanas
das cidades em questão. Tomando Criciúma, a cidade pólo da região,
como campo de observação e a produção historiográfica local como
ponto de partida, busca-se compreender o papel exercido por essa
historiografia no processo de afirmação de uma identidade urbana ar-
ticulada as noções de etnia e etnicidade, que valorizavam os imigrantes

1
Doutor em História (UFRGS), professor do curso de história da UNESC, realizou
aperfeiçoamento na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales - EHESS (2005-
2006). É líder do grupo de pesquisa Cidade, Espaço e Cultura (UNESC) e membro do
grupo de pesquisa Cidade e Cultura (UFRGS). É autor do livro As Curvas do Trem - A
Presença da Estrada de Ferro no Sul de Santa Catarina (Criciúma: UNESC, 2004), além de
artigos e capítulos de livros. E-mail: dna@unesc.net
201
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e o imaginário da imigração. Analisar-se-á algumas obras da década de


1970, período em que essas cidades, em especial Criciúma, passavam
por um processo de rearticulação de suas identidades urbanas e busca-
vam na história os elementos fundadores de outra urbe.
O período compreendido pela década de 1970 pode ser en-
tendido como uma conjuntura propícia a comemorações e criação de
memória histórica, tal como Catroga (2001, p. 61-62) analisou o pe-
ríodo do chamado comemoracionismo português em fins do século
XIX. Neste período, para Criciúma, se escreveram as obras modelares
de sua história-memória oficial e se instituíram ritos, que atravessaram
os anos e estabeleceram uma nova identidade urbana centrada na etni-
cidade. Se seguirmos a nomenclatura de Michael Pollak (1989, p. 09),
foi um período de intenso trabalho de enquadramento da memória. Pollak
(1989, p. 04) lembra que, se é necessário analisar como a memória
se solidificou e criou uma durabilidade e estabilidade, a investigação
precisa se interessar pelos processos de formalização das memórias
e seus atores. Entre estes últimos, Pollak (1989, p. 10) cita, de forma
privilegiada, os “profissionais da história das diferentes organizações
de que são membros, clubes e células de reflexão”. Em nosso caso,
os historiadores da cidade, que fazem um trabalho de enquadramento
de sua memória. Catroga, também lembra essa relação entre a histo-
riografia e a memória – especificamente a urbana, objeto de nossa
pesquisa – ao afirmar que:
A historiografia, com as suas escolhas, valorizações e es-
quecimentos, também gera a ‘fabricação’ de memórias,
pois contribui, através do seu cariz narrativo e da sua cum-
plicidade, directa ou indirecta, com o do sistema educativo,
para o apagamento ou secundarização de memórias ante-
riores, bem como para a refundação, socialização e interio-
rização de novas memórias (CATROGA, 2001, p. 57).
O texto historiográfico é, dessa forma, um demarcador do
passado e provocador de efeitos performativos sobre o presente, já
que “marcar um passado é dar, como no cemitério, um lugar aos mor-
tos, é permitir às sociedades situarem-se simbolicamente no tempo,
mas é também um modo subliminar de redistribuir o espaço dos pos-
síveis e indicar um sentido para a vida” (CATROGA, 2001, p. 44). Ao
dizer o texto, o autor institui o discurso autorizado no mundo social
através do reconhecimento daquilo que enuncia:
202
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O auctor, mesmo quando só diz com autoridade aquilo que


é, mesmo quando se limita a enunciar o ser, produz uma
mudança no ser: ao dizer as coisas com autoridade, quer
dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamen-
te e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as,
santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas
de existir, como conformes à natureza das coisas, ‘naturais’
(BOURDIEU, 1989, p. 114).
Texto historiográfico, profissionais da história, historiografia.
A análise de obras historiográficas da década de 1970 nos permitirá
estabelecer relações entre os discursos sobre o passado e a identidade
urbana que se construía no período. Estas obras podem ser classi-
ficadas dentro daquele conjunto que Cristina Scheibe Wolff (1994)
chamou de história local tradicional. Elas possuem aquelas características
que Peter Burke associou com a história tradicional, em comparação
com a nova história, quais sejam, a apresentação dos fatos “como eles
realmente aconteceram” em uma cadeia contínua de acontecimentos,
especialmente acontecimentos políticos, depreendidos do fluxo do
tempo através de documentos, sancionadores de que o fato ‘realmente
aconteceu’ (BURKE, 1992). Acrescente-se que, nessas obras, em geral
se trata de uma grande quantidade de acontecimentos e informações
sem uma relação explícita entre si, a não ser a “localidade onde todos
os eventos se passam”. Entretanto, diz Wolff,
Devemos ainda ressaltar que todas as críticas feitas a esta
maneira de se escrever a história não a tornam menos im-
portante, mesmo no momento atual. Em Santa Catarina,
por exemplo, boa parte do conhecimento histórico sobre
as diversas regiões só pode ser obtido em obras com este
tipo de orientação metodológica (WOLFF, 1994, p. 07).
Para Criciúma, a atividades desses “historiadores” e as obras
que produziram foram fundamentais para o despertar de uma certa
valorização da história da cidade. Eles descobriram fontes, levanta-
ram temas, coletaram informações, batalharam pelo passado, enfim,
trilharam um caminho que, de certa forma, é o mesmo que trilhamos
hoje. Destacam-se José Pimentel e Mário Belolli, cujas obras principais
desse período serão analisadas. Pimentel nasceu em Aracruz/ES em 3
de março de 1915. Formou-se em Direito em 1943 e chegou na cidade
em 1945. Foi presidente da associação local de empresários (1951) e
203
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

fundador do jornal Tribuna Criciumense (1955), além de vereador, no


período 1947–1951, pela UDN (ZACHARIAS, 2000, p. 543-544).
Mário Belolli nasceu em Criciúma em 9 de julho de 1939 e atuou pro-
fissionalmente como comerciário, formando-se posteriormente em
Direto e História (ZACHARIAS, 2000, p. 450). A análise das obras
nos permitirá relacionar o discurso sobre a história da cidade com a
disputa em torno de sua identidade.

Mini biografia de um pioneiro: Marcos Rovaris

Esta obra foi o primeiro texto publicado em forma de livro


sobre a história de Criciúma e é de autoria de José Pimentel e Mário
Belolli, dois autores intensamente envolvidos com a história da cidade.
A obra foi escrita, segundo os autores, com o fim de cons-
cientizarem as gerações contemporâneas e futuras da necessidade de
reconhecer o trabalho de seus antepassados, já que “povo que não
cultua seus antepassados [...] não sobreviverá”. A história da cidade é
vista com objetivo cívico, como uma matéria que visa formar os cida-
dãos e conscientizá-los de seu passado:
A fim de atender às insistentes solicitações da mocidade
criciumense – o maior capital que possuímos – resolvemos
[...] dar à estampa pequena notícia sobre a vida de Marcos
Rovaris (PIMENTEL; BELOLLI, 1971, p. 01).
Entretanto, há outro objetivo não muito explicitado pelos au-
tores, mas bastante presente, que é o de dotar Criciúma de um desen-
volvimento cultural corresponde ao seu desenvolvimento econômico.
Há um contraste entre o crescimento econômico de Criciúma e sua
condição cultural que precisaria melhorado, já que enfraquecia a cidade
diante de outras no sul de Santa Catarina. A falta de conhecimento da
história da cidade “produz péssima repercussão, colocando Criciúma
junto as suas co-irmãs sulinas em situação melancólica” (PIMENTEL;
BELOLLI, 1971, p. 01). Assim, a escrita da história da cidade tem um
sentido de desenvolvimento cultural, “a fim de que possa ela [Criciúma]
projetar-se, também, no cenário barriga-verde e nacional, como a ca-
pital cultural do sul catarinense” (PIMENTEL; BELOLLI, 1971, p. 02).
Criciúma estava se tornando, em princípios dos anos 1970, na mais
importante cidade do Sul de Santa Catarina, superando Tubarão que,
desde as décadas de 1930 e 1940, havia se tornado a cidade principal.
204
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Entretanto, cidade nova, de crescimento recente, com população ma-


ciçamente operária, Criciúma era caracterizada como uma cidade que
não possuía cultura, o que precisava ser superado, aos olhos de sua
elite intelectual (SORATTO, 2002).
A partir de vários indícios, percebe-se que a principal fonte
do texto foi a oral. O termo “Reminiscências Criciumenses”, presente
como título na primeira página, remete, pela palavra reminiscência,
“ao que se conserva na memória” e que pode ser conhecido, portanto,
pela oralidade. Logo abaixo, na mesma página, como atribuição de au-
toria, aparece explicitamente a expressão “subsídios orais colhidos por
José Pimentel e Mário Belolli”. Também quando narra a ocupação dos
municípios de Turvo e Jacinto Machado, referem-se a Ângelo Antonio
Nichele, “que sempre residiu na cidade de Urussanga e com seus 85
anos continua lúcido, recordando com segurança, os primórdios da
colonização do atual município de Jacinto Machado” (PIMENTEL;
BELOLLI, 1971, p. 08).
Toda a obra é organizada a partir das funções referenciais de
Marcos Rovaris, aquelas atividades a partir das quais pode-se falar em
um personagem que vale a pena ser biografado. Essas funções refe-
renciais são os subtítulos da obra e descrevem a personalidade e as
realizações de Marcos Rovaris: Apoiador da educação (PIMENTEL;
BELOLLI, 1971, p. 03); “Criador de progresso” (PIMENTEL; BE-
LOLLI, 1971, p. 03 e 05); “Construtor de estradas” (p. 05); “O pri-
meiro administrador de Criciúma” (PIMENTEL; BELOLLI, 1971, p.
07); “O colonizador” (PIMENTEL; BELOLLI, 1971, p. 07).
Marcos Rovaris é apresentado na obra como o exemplo má-
ximo de imigrante italiano: empreendedor, líder político sobre quem
não pairava nenhum deslize, primeiro superintendente municipal da
cidade recém emancipada. Tudo isso lhe credenciou para ser apre-
sentado como exemplo do tipo de pessoa que veio da Europa para o
Brasil e modelo para as gerações contemporâneas, que desconheciam
a história de sua cidade, e para a mocidade criciumense, “maior ca-
pital que possuímos”. De fato, ainda que seja o ator histórico prin-
cipal na obra, Marcos Rovaris atua a partir de um cenário montado
por outros atores, que os autores nomeiam, basicamente, os pioneiros
italianos, “extraordinários e indomáveis” (PIMENTEL; BELOLLI,
1971, p. 01), e os imigrantes italianos, alemães e poloneses, que “en-
sejaram o surto surpreendente de progresso da ‘capital do carvão’”
205
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

(PIMENTEL; BELOLLI, 1971, p. 08). Dessa forma, através de suas


qualidades, por “sua infatigável capacidade de trabalho, amor à ter-
ra adotiva...” (PIMENTEL; BELOLLI, 1971, p. 01), Marcos Rovaris,
“um italiano de ampla visão” (PIMENTEL; BELOLLI, 1971, p. 01),
é apresentado como exemplo típico de imigrante, fortalecendo certo
imaginário da imigração que, na década de 1970, havia ganhado um
espaço considerável.
Em 1980, a Prefeitura Municipal publicou uma segunda edição
da obra, já no contexto das comemorações do Centenário de fundação
da cidade (PIMENTEL; BELOLLI, 1980). Os subtítulos e a redação
da primeira edição são a base para esta segunda edição. A diferença é
que, além de uma edição mais bem cuidada, acrescentou-se inúmeras
fotografias e reproduções de documentos. Este acréscimo na obra, em
tão grande número, pode ser uma tentativa de retirar o seu caráter de
oralidade e dar-lhe uma apresentação mais ‘científica’. De fato as refe-
rências à oralidade, presentes na primeira edição, foram todas retiradas
para a segunda edição.

Tímido ensaio biográfico: Giácomo Sônego

A obra busca fundamentar, através da vida exemplar de Giá-


como Sônego, a contribuição dos imigrantes europeus para o cresci-
mento da cidade de Criciúma:
Município pujante, cidade que cresce vertiginosamente,
não é possível retardar mais essa iniciativa, deixando às ge-
rações que estão surgindo, o testemunho imperecível do
que realizaram os valorosos imigrantes italianos, alemães
e poloneses, que não mediram sacrifícios para que Criciú-
ma fosse, o que hoje ostenta entre seus co-irmãos barriga-
verdes (PIMENTEL; BELOLLI, 1972, p. 03).
A narrativa articula crescimento da cidade – imigrantes - car-
vão, e tem seu núcleo central no relato da descoberta do carvão mi-
neral por um imigrante italiano e na utilização de suas terras como
impulso para o desenvolvimento da cidade, pois “das férteis terras de
Giácomo Sônego transbordou o veio rico do carvão, muito conhecido
por ‘ouro negro’, dado em função de sua extraordinária importância”
(PIMENTEL; BELOLLI, 1972, p. 16).
Se a primeira obra dos autores foi organizada a partir das fun-
206
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ções do biografado, na presente obra são os fatos que organizam a


narrativa, mais que as qualidades de Giácomo Sônego, ainda que es-
sas também sejam importantes para reforçar a temática central, que é
vincular progresso e imigração através do carvão mineral. A narrativa
inicia com a partida da Itália e termina com a descoberta e exploração
do carvão mineral nas terras de Sônego e seus vizinhos, demonstran-
do na prática a contribuição dos imigrantes para o desenvolvimento
da cidade.
A capa do livro é extremamente reveladora das intenções que
presidiram a feitura e publicação da biografia. É uma fotografia pa-
norâmica do centro de Criciúma no início da década de 1970, com a
seguinte frase abaixo: “Criciúma, a ‘Capital Brasileira do Carvão’, fun-
dada por imigrantes italianos, em 6-1-1880, entre os quais Giácomo
Sônego”. A fotografia apresenta Criciúma como uma cidade grande
e moderna, que teve seu crescimento baseado no carvão mineral, de-
monstrado através da utilização do lema oficial da cidade. Entretanto,
Criciúma foi fundada por imigrantes italianos, e é a importância desse
grupo que o livro quer ressaltar. Giácomo Sônego, como personagem
exemplar, é aquele que une imigração e carvão, através da descoberta
do mineral em suas terras. Por intermédio da narrativa, se mostra que
foram os imigrantes, representados por Sônego, que afinal propicia-
ram as condições para que Criciúma se desenvolvesse. Há uma linha
de raciocínio que articula Criciúma a crescimento, passando pelo vín-
culo entre carvão – imigrantes italianos – Giácomo Sônego. Como
imigrante modelo, Sônego sintetiza a cidade como fruto das atividades
dos imigrantes através do carvão. O relato da descoberta do carvão
mineral por Giácomo Sônego tornou-se um dos relatos fundadores
da cidade.
A biografia de Sônego é apresentada de modo a reforçar o
objetivo da obra, que é explicar o crescimento da cidade a partir da
contribuição dos grupos de imigrantes, especialmente o italiano. Sô-
nego é apresentado como pioneiro e fundador da colônia de Criciú-
ma, “unindo-se a dezenas de famílias que faziam parte das pioneiras
levas imigratórias do sul catarinense, cuja leva fundou a colônia de
Criciúma, a 6 de janeiro de 1880” (PIMENTEL; BELOLLI, 1972,
p. 09) e descobridor do carvão: “Nas suas longas caminhadas, usava
uma de cada vez [suas mulas], até que um dia, ao esconder um dos ani-
mais, acabou descobrindo ‘carvão’” (PIMENTEL; BELOLLI, 1972,
207
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

p. 09). A partir daí tornou-se uma autoridade importante, já que com


o carvão o lugar passou a ter importância, despertando o interesse
de autoridades nacionais e estaduais, “que passaram a freqüentar sua
modesta residência” (PIMENTEL; BELOLLI, 1972, p. 09). Desta
forma, Sônego – e com ele os imigrantes – é o propiciador do desen-
volvimento da cidade, por intermédio da descoberta do carvão (p.
09; p. 16-17) e da assinatura de contrato para exploração do carvão
mineral em suas terras e adjacências (PIMENTEL; BELOLLI, 1972,
p. 13) e transcrição do contrato (PIMENTEL; BELOLLI, 1972, p.
19-20):
A partir desta data [da visita do engenheiro Paulo de Frontin
as terras de Sônego e da fundação da CBCA, primeira companhia
carbonífera da cidade], famílias inteiras deixavam as localida-
des vizinhas e transferiram-se para o distrito de Criciúma,
município de Araranguá. Igualmente acontecia com vários
colonos de Criciúma, que deixavam sua agricultura e mu-
davam-se para os trabalhos da mineração (PIMENTEL;
BELOLLI, 1972, p. 14).
Como um dos relatos fundadores da cidade de Criciúma e
que busca explicar as suas origens, a narrativa da descoberta do carvão
mineral por Giácomo Sonego, base de sua biografia, é exemplar para
entender o papel que a historiografia exerce no estabelecimento de
memórias, no caso para a memória urbana, geradora de identidades.
No dizer de Catroga,
A historiografia também funciona como fonte produtora
(e legitimadora) de memórias e tradições, chegando mes-
mo a fornecer credibilidade cientificista e novos mitos e
(re)fundação de grupos e da própria nação (reinvenção e
sacralização das origens e de momentos de grandeza sim-
bolizados em ‘heróis’ individuais e coletivos) (CATROGA,
2001, p. 50).
Criciúma – amor e trabalho

O livro (PIMENTEL; BELOLLI, 1974) possui duas partes.


A primeira intitulada Criciúma – amor: apontamentos para uma História
de Criciúma, de autoria de José Pimentel e Mário Belolli, e a segunda
Criciúma – trabalho, escrita por Hélio dos Santos Corrêa e Agostinho
da Silva e tratando mais de aspectos da estrutura urbana e econômica
208
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

do município. Vamos explorar a primeira parte, que é um relato da


história da cidade.
Essa é a primeira obra que busca apresentar de forma siste-
mática a história de Criciúma, anunciada como uma necessidade desde
a apresentação da biografia de Giácomo Sônego. Entretanto, diante
das dificuldades de tal empreitada, os autores buscam minimizar o
texto que apresentam ao público, colocando a palavra “apontamen-
tos” no título para frisar o caráter incompleto do texto (PIMENTEL;
BELOLLI, 1974, p. 09), cujas lacunas devem ser preenchidas poste-
riormente “para as celebrações do centenário”. Lamentam também a
ausência de documentos escritos, sobre os quais basearia sua história,
e apontam as perseguições aos imigrantes e descendentes, com des-
truição de registros, por ocasião da Segunda Guerra como causa desta
ausência. Também deploram a necessidade que tiveram de utilizar a
fonte oral, “processo que normalmente deixa muito a desejar”, para
substituir a ausência de documentos escritos. Talvez por isso exista
no texto a reprodução de vários documentos escritos, como leis (de
criação do distrito de paz, de criação do município, etc), cartas, atas,
jornais, discursos, etc. A presença de documentos escritos atestaria a
autenticidade das informações históricas narradas na obra. Também
as fotografias são ilustrativas, como as da biografia de Sônego. E são
ainda mais, ilustram os acontecimentos, como prova de que eles efe-
tivamente aconteceram, e da maneira como os textos da obra os nar-
ram. As imagens estão no mesmo nível do documento escrito, isto
é, são apresentadas como provas que garantem a confiabilidade dos
fatos narrados na obra. Porém, diferentemente dos documentos escri-
tos reproduzidos na obra, parecem não ser utilizadas como fonte de
informações para compor a narrativa.
Os principais atores históricos que o texto apresenta são os
grupos étnicos, alguns indivíduos importantes e algumas instituições,
sendo os primeiros os mais relevantes. Os autores seguem o esquema
que Pimentel defendia desde 1955,253 de considerar como imigrantes
e grupos étnicos os imigrantes e descendentes de italianos, alemães e

2
PIMENTEL, José. Monumento ao Imigrante. Tribuna Criciumense, Criciúma,
01/08/1955, p. 1 e 4. Neste texto, os imigrantes estão identificados como sendo “vá-
rios contingentes de imigrantes, italianos em sua grande maioria, de poloneses e de
alemães”.
209
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

poloneses. São esses grupos os atores privilegiados na obra e é a partir


deles que a história da cidade se organiza. Aliás, os grupos são apre-
sentados como ocupantes de áreas definidas da cidade, de tal forma
que mesmo espacialmente a cidade se articula a partir da ocupação do
espaço tornado urbano pelos grupos imigrantes.
Dos três grupos, o mais importante é o dos imigrantes ita-
lianos, apresentados como “pioneiros habitantes de Criciúma” e res-
ponsáveis pelo “desbravamento e colonização da atual área urbana e
periférica” (PIMENTEL; BELOLLI, 1974, p. 14). São reconhecidos
como os “primeiros colonizadores de Criciúma” (PIMENTEL; BE-
LOLLI, 1974, p. 15). Sua história é apresentada como uma atividade
civilizatória cheia de coragem e perigos, notadamente pela presença
de animais selvagens e indígenas, “arrostando imensos perigos, não
só pela falta total de estradas, como, ainda, expondo-se aos ataques de
animais ferozes e dos silvícolas, que acompanhavam, assiduamente, as
pegadas desses homens destemidos” (PIMENTEL; BELOLLI, 1974,
p. 15). Eles reproduzem o relato da morte de Domingos Sônego, pu-
blicado originalmente na biografia de Giácomo Sônego, e afirmam
que o indígena “matreira e silenciosamente se achava postado atrás
de uma árvore” e traiçoeiramente atingiu o imigrante (PIMENTEL;
BELOLLI, 1974, p. 16).
Os imigrantes alemães são apresentados como fundadores
de Forquilhinha, atualmente município, porém, por muitos anos, per-
tencente à Criciúma, apesar de existirem na área famílias de origem
luso-brasileira, remanescentes de imigrações anteriores e migrações
da área litorânea e de outros estados. Quando os autores caracterizam
esses últimos grupos, que no contexto da obra poderíamos chamar de
“brasileiros”. Eles afirmam que, “no passado, Forquilhinha foi uma
localidade pobre, de muitos e pequenos casebres, de população lusa
que não era dona das terras, pertencentes a grandes sesmeiros” (PI-
MENTEL; BELOLLI, 1974, p. 14). Diante disso, a presença dos imi-
grantes alemães é louvada na narrativa pelas transformações positivas
que provocou no lugar:
O aspecto econômico, social e religioso se alterou por
completo, quando em 1911, para ali se movimentou, ra-
pidamente, uma corrente imigratória alemã. [...]. A colônia
desenvolveu-se logo, quer pela fertilidade das terras, quer
pelo espírito de trabalho e coragem daqueles bravos colo-
210
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

nizadores. É notória a união agrícola e industrial daquelas


famílias, bem como a instituição imediata da escola (PI-
MENTEL; BELOLLI, 1974, p. 14).
Nesse contexto de afirmação de uma vida econômica e cul-
tural superior, Paulo Evaristo Arns, na época Arcebispo de São Paulo,
representa o maior exemplo dos “inúmeros filhos ilustres” de Forqui-
lhinha, “sendo o de maior proeminência” (PIMENTEL; BELOLLI,
1974, p. 14), como que para atestar o sucesso da colonização alemã e
européia na cidade.
Os imigrantes poloneses são apresentados como fundadores
do “primeiro núcleo de colonização, na zona leste – nordeste do mu-
nicípio, compreendido pelas localidades de Linha Batista, Linha Anta
e Linha Cabral” (PIMENTEL; BELOLLI, 1974, p. 14). É o menor re-
lato dentre os três grupos. Destacam-se apenas fatos históricos como
data de chegada e movimentações de partida. Além disso, são destaca-
das a construção da igreja católica e a vinda de um sacerdote polonês
(PIMENTEL; BELOLLI, 1974, p. 14).
O livro é organizado a partir das seguintes temáticas: Colo-
nização, o tema mais importante; História Política e Administrativa,
Carvão, História Econômica e Instituições, sendo os três últimos te-
mas tratados como uma espécie de “história dos primeiros”. Em cada
uma das temáticas, com exceção da primeira, são relacionadas per-
sonalidades proeminentes que contribuíram para o desenvolvimento
da cidade, num desfilar incessante de personagens destacados pelos
autores.
Em 1977, a Prefeitura Municipal de Criciúma relançou a obra
com o mesmo título, porém com algumas alterações (CRICIÚMA,
1977). A obra se divide em duas partes, a primeira, intitulada Aspectos
históricos e a segunda parte Aspectos administrativos, com informações
sobre a atuação do governo municipal no mandato de Algemiro Ma-
nique Barreto (1973 – 1976), promotor da obra. A primeira parte da
obra é uma reprodução daquela de 1974, com uma redação ligeira-
mente diferente e a ausência de algumas matérias. A seleção destas
matérias da obra de 1974 para constar na obra de 1977, permite-nos
identificar, dentre aquele material, quais os conteúdos que os autores
julgavam mais apropriado para constar na história de Criciúma: 1) O
relato da ocupação do município pelos grupos de imigrantes; 2) Os
acontecimentos vinculados com a situação administrativa (criação do
211
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Distrito de Paz, do Município e da Comarca); 3) Relato de institui-


ções ou atividades pioneiras (Hospital, Matriz, descoberta do carvão,
primeira carbonífera, chegada da estrada de ferro, etc). Na verdade, a
lógica de organização do material histórico foi mantida: 1) Imigração;
2) História Administrativa; 3) História “dos inícios”.
As noções de herança e dívida estão constantemente presen-
tes na construção do lugar da imigração e dos imigrantes na história
da cidade pela historiografia local. A cidade é apresentada como um
patrimônio legado pelas primeiras gerações as gerações contemporâ-
neas dos autores. Diante disso, e em vista do patrimônio recebido, as
gerações contemporâneas têm uma dívida para com os imigrantes, a
ser paga por um trabalho realizado no início da história da cidade. No
entanto, a consciência dessa dívida como memória acaba por alterar
as relações sociais, culturais e políticas que existem na cidade naquele
momento.
De fato, a valorização dos imigrantes e da imigração nas obras
historiográficas do período valorizava em especial aquelas famílias que
descendiam dos imigrantes italianos fundadores do núcleo colonial, e
os descendentes de italianos em geral, fortalecendo sua posição social
e cultural nas relações presentes na cidade, além de outros descenden-
tes de imigrantes de origem européia. A historiografia local foi mobi-
lizada na criação de uma determinada memória oficial, que teve um
papel fundamental na identidade urbana, que então se forjava.

Referências Bibliográficas

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ZACHARIAS, Manif. Criciúma: vultos do passado e personalidades
contemporâneas. Criciúma: Edição do autor, 2000.

Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em novem-


bro 2007.

213
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

OS DIFERENTES 13 DE MAIO. HISTÓRIA,


MEMÓRIA E FESTA DA ABOLIÇÃO

54
Renata Figueiredo Moraes1

Resumo: Esse texto lança uma dis- Abstract: This text introduces a
cussão em torno da escrita da história discussion on the writing of the
da Abolição através de uma historio- History of Abolition by research-
grafia mais contemporânea e dos jor- ing a more contemporaneous bibli-
nais de 1888. Além disso, tratamos ography and newspapers published
da sistematização dessa história logo in 1888. In addition, this article ap-
após 1888 através do texto de Barão proaches the systematization of this
de Loreto, publicado na Revista do history after 1888 by using the text
IHGB, em 1900, e do livro Abolição, by Barão de Loreto published in
um esboço histórico de Osório Du- Revista do IHGB (IHGB magazine
que-Estrada, de 1918. / IHGB: “Brazilian Geographical
Palavras-chaves: historiografia, abo- and Historical Institute”) in 1900,
lição, escravidão. and also the book Abolição, um Es-
boço Histórico, by Osório Duque
Estrada, published in 1918.
Key-words: historiography, aboli-
tion, slavery.

No domingo do dia 13 de maio de 2007, a visita do papa Ben-


to XVI ao Brasil encerrava-se depois de uma semana intensa. Dentre
as últimas mensagens no encerramento da Conferência Geral do Epis-
copado Latino-Americano realizada no Santuário de Aparecida do Norte, o
Papa lembrou do 13 de maio de 1888, e o destacou como momento
de suma importância para a História do país. Essa mensagem demons-
trou também a proposta de proximidade feita pelo Papa a comunidade
afro-brasileira.255 Além disso, o 119° aniversário da Abolição não ren-
deu muitos comentários na imprensa e apenas alguns jornais dedica-
ram um curto espaço ao tema, tais como o jornal O Dia, e o Jornal do
Brasil, ambos do Rio de Janeiro.
Nesse texto356, pretendemos destacar as diferentes aborda-

1
Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: renata-
fm2003@yahoo.com.br
2
Zenit.org, de 13/05/2007
3
Essa é uma versão modificada da primeira metade do capítulo “Em torno do 13
de maio: combates da história e da memória”, da dissertação de mestrado defendida
em 2007 no programa de pós-graduação em História Social da Universidade Federal
Fluminense, sob orientação da Profª Drª Martha Campos Abreu.
215
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

gens que recebeu o 13 de maio de 1888; primeiro por uma historio-


grafia mais recente e depois através de textos da época publicados em
jornais. Além disso, temos também trabalhos de historiadores que,
além de documentos oficiais, também utilizaram sua memória sobre
os fatos para a escrita da História da Abolição. Um desses exemplos é
o livro do historiador Osório Duque-Estrada que escreveu, em 1913,
Abolição - um esboço histórico, o qual foi lançado em 1918, ano do trigés-
simo aniversário da Abolição (MORAES, 2007).
Desse modo, lançamos um olhar sobre as interpretações
dadas a esse momento da História do Brasil que hoje passa por um
esvaziamento no seu significado histórico para a comunidade afro-
brasileira.

O 13 de maio de 1888 – uma abordagem historiográfica

O movimento abolicionista, “mosaico de muitas cores e dese-


nhos”, catalisou o inconformismo dos setores urbanos com o Império
na crítica à escravidão e aos seus males à economia e ao trabalho livre.
Segundo Maria Helena Machado (1994, p. 160), o movimento abriu
espaço para tendências e atuações diversas, desde o zé-povinho até
setores mais conservadores, contendo, dessa forma, variadas e impre-
cisas molduras ideológicas. Na década de 80 do século XIX o movi-
mento recebeu a adesão de pessoas alfabetizadas, como funcionários
públicos, negociantes, além dos membros dos grupos profissionais
que mais tarde se reuniriam em associações abolicionistas (MACHA-
DO, 1994, p. 147).457 Um dos exemplos do movimento abolicionista
citados pela autora foi o da cidade de Santos que agregou antigos
rivais, habitantes das áreas dos Quartéis e dos Valongos, em torno da
causa abolicionista, agregada ao movimento de reivindicações feitas
pelos moradores das camadas mais baixas de Santos, o que reforça o
caráter popular e agregador do movimento. A autora destaca as ca-
racterísticas da cidade de Santos e do Rio de Janeiro que no contato
pelo mar com navios de outras pátrias, seus habitantes receberam a
influência de novas idéias políticas e de conceitos que deram corpo ao
movimento abolicionista urbano.

4
Segundo a autora, a militância abolicionista também abrigou idéias mais amplas que
iam além do trabalho escravo (MACHADO, 1994, p. 163).
216
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Um dos destaques do movimento abolicionista da cidade de


São Paulo, além dos conflitos de rua e da participação popular, está
na ocorrência, desde a década de 70, de um abolicionismo baseado
nas ações dos advogados, que a partir das brechas abertas pelas leis
emancipadoras reivindicaram a liberdade de muitos escravos. A atua-
ção jurídica do movimento abolicionista de São Paulo não impediu o
envolvimento de variados setores da sociedade, como, por exemplo,
cocheiros, ferroviários, empregadores do comércio e outras categorias
profissionais.
Além de tratar do abolicionismo urbano, Maria Helena Ma-
chado, em O plano e o pânico, também questionou algumas fontes sobre
esse período, principalmente as feitas a partir de relatos memorialís-
ticos dos próprios militantes do movimento. Nessas fontes, o mais
freqüente é a menção de um abolicionismo na Corte, em São Paulo e
em Santos e com a reconstituição dos embates dos anos 80 do século
XIX. Esses textos foram produzidos por uma elite letrada de políticos
liberais, progressistas, republicanos, jornalistas, intelectuais, de cunho
panfletário e também de reminiscências dos próprios militantes. Nes-
sas últimas privilegiaram um discurso que indicavam o movimento
abolicionista como momento de sacrifício, com obstáculos a serem
superados para o objetivo final, além de denunciar os adesistas de úl-
tima hora e de lembrar os “verdadeiros abolicionistas”. Essas memó-
rias foram produzidas após a euforia da Abolição e no ostracismo
gozado por alguns militantes após 1888. Um dos exemplos para esse
tipo de trabalho apontado por Maria Helena Machado é o livro de
Osório Duque-Estrada (1918), exemplo de abolicionista que, com o
advento da República, tratou de sistematizar o abolicionismo, através
de uma cronologia com fases que envolviam abolicionistas, escravos,
parlamentares e outros. Apesar de colocar em dúvida as abordagens
sobre as fugas dos escravos e a participação dos líderes do movimento
nessas ações, a autora destacou que essas fontes mostraram a grande
adesão que o movimento teve na sua fase final, e a imprecisão em torno
dos “verdadeiros abolicionistas” (MACHADO, 1994, p. 147), conforme
mencionado também pelo próprio Duque-Estrada em seu livro.558

5
Um dos objetivos de Duque-Estrada em seu livro foi o de retirar os “falsificadores”
da história da Abolição. Para isso, indicou nomes que compôs o seu Panteão Aboli-
cionista.
217
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Além de um abolicionismo urbano, que podemos perseguir


através de livros de memória ou pelos jornais da época, temos, tam-
bém um abolicionismo feito nos tribunais que, em sua maioria, apro-
veitou-se das brechas deixadas pelas leis de 1831 e pelas seguintes.
Dentre as inúmeras discussões favoráveis às leis emancipado-
ras, 1871 e 1885, Joseli Mendonça em “Cenas da Abolição no Parla-
mento” destacou os argumentos parlamentares contrários a essas leis.
A justificativa desses parlamentares para o voto contrário era de que
elas traziam mais “prejuízo” à vida dos libertos, principalmente aos
“velhos escravos” já que não poderiam gozar da própria liberdade de-
vido à idade. Um deputado na época chegou a dizer que libertar quem
não podia gozar da própria liberdade seria um presente cruel. Em
1888, segundo esses parlamentares, a falta de “proteção” aos libertos
representava um “perigo” para a sociedade brasileira, devido, princi-
palmente a recusa dos libertos ao trabalho, que teria como solução a
vinda de mão-de-obra imigrante (MENDONÇA, 2001, p. 37).659
Os protestos dos parlamentares contra as leis de 1871 e 1885
estão de acordo exatamente com a regulamentação que elas ofere-
ceram para a relação entre senhor e escravo e os dispositivos legais
para a reivindicação de direitos (MENDONÇA, 2001, p. 12) bastan-
te utilizados pelo abolicionismo da cidade de São Paulo, como, por
exemplo, a atuação de Luiz Gama (MACHADO, 1994, P. 151).760 Mas
apenas uma lei acabaria com a relação entre Senhor e escravo, a lei
3353 de 13 de maio de 1888. Diferentemente das outras leis, essa teve
rapidamente a sua aprovação na Câmara, passando logo depois para
o Senado. Porém, o que mais pode ser destacado nos relatos da época
nos poucos dias de discussão do projeto para a Abolição imediata é a
presença popular na Câmara e sua intervenção através de aplausos e
comemorações (MENDONÇA, 2001, p. 15).861 Um imaginário do de-
sejo popular em torno da lei foi criado, principalmente nos momentos
que a antecederam.

6
Segundo a autora esse discurso de proteção dos parlamentares aos escravos e a idéia
de uma recusa ao trabalho livre foi reproduzido por uma historiografia que via no ex-
escravo um “baixo envolvimento mental” e sem afinidades ao trabalho livre.
7
A autora lembra que não só de lutas forenses se fazia a luta abolicionista de São
Paulo. Nas ruas aconteciam manifestações com participação de escravos e da arraia-
miúda.
8
A autora dá o exemplo de Nabuco que ao apresentar a proposta teve sua fala inter-
rompida inúmeras vezes por aplausos e aclamações.
218
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Essa mesma sensação foi comentada pela princesa Regente


que na Fala do trono, 10 dias antes da aprovação da lei, dizia ser a Abo-
lição uma “aspiração aclamada por todas as classes”. Essa imagem de
satisfação nacional pelo fim da escravidão foi alimentada pelos jor-
nais que naquela época não deixavam de publicar textos de apoio e
de exemplos de ações favoráveis ao fim da escravidão. No entanto,
essa “vontade geral” não era unânime e foi contestada por Andrade
Figueira que lembrou que a população do Brasil não correspondia
apenas aos que freqüentavam as galerias da Câmara (MENDONÇA,
2001, p. 20).962
A idéia de unanimidade em torno da Abolição, segundo Men-
donça, principalmente em 13 de maio de 1888, é mais um elemento da
memória que naquele instante começou a ser construída. Os jornais
daquela época não lembraram os insatisfeitos com a lei e trataram
apenas de reproduzir em suas manchetes as comemorações por toda a
cidade. Além disso, não deixaram de associar Império e Abolição e va-
lorizar a faceta redentora da Princesa Regente. No entanto, Mendonça
mostrou que essa unanimidade dependeu de quem se beneficiou com
a Abolição, logo, os deputados que negavam a necessidade de uma
solução rápida para a escravidão não participaram das festas eufóricas
do dia seguinte ao 13 de maio. Outra conseqüência foi a associação
feita entre Abolição e República.
A lembrança do 13 de maio de 1888 nos relatos dos jornais
ou daqueles que viveram esse período constam de um dia de chuva,
“memorável”, que segundo Machado de Assis foi “único dia de delí-
rio que lembra ter visto” (MIRANDA, 1999, p. 09). Festejos públicos
ocorreram em toda a cidade e os jornais comentaram o 13 e o 14
de maio com matérias que ocupavam inteiramente as suas primeiras
páginas. Desfiles cívicos foram feitos pelas ruas da cidade do Rio de
Janeiro com discursos de Coelho Neto e com recitação de poesias por
Alberto de Oliveira, Oliveira e Silva e Soares Sousa Junior (MIRAN-
DA, 1999, p. 19).
A possível unanimidade em maio de 1888 também foi repre-
sentada pelos relatos de festas que reuniram um grande número de
pessoas nas ruas da Corte. A reunião de diferentes setores da socieda-

9
Esse deputado, segundo a autora, não estava só. Durante seu discurso contou com
alguns “apoiado”, além de não ficar sozinho na votação do projeto pela Abolição.
219
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

de favoráveis à Abolição, republicanos e monarquistas, radicais e mo-


derados, liberais e conservadores, imigrantistas, trabalhadores manu-
ais, comerciantes e profissionais liberais, foi percebida somente em maio
de 1888, nas comemorações pela Abolição (SANTOS, 2000, p. 54).
Até mesmo os mais ortodoxos escravistas se serviram desse momento
como forma de oportunismo político. Esses se tornaram abolicionistas
confessos da noite para o dia e eram denunciados pelos jornais que pro-
curavam entender tamanha mudança (PIMENTEL, 1999, p. 97).
Os jornais se constituíram em importante veículo de informa-
ções sobre a adesão à causa abolicionista devido aos seus constantes
relatos e minuciosas descrições de seus colaboradores dos dias que
antecederam a aprovação de lei. Além disso, nos fornece também in-
formações acerca de quem participava das manifestações favoráveis
ao fim da escravidão. O uso constante da palavra “povo” para identifi-
car os manifestantes nos leva a crer que a forte presença da população
da cidade do Rio de Janeiro, principalmente na sua diversidade, tornou
difícil a sua identificação ser feita de outra forma (PIMENTEL, 1999,
p. 86). Os abolicionistas viam esse “povo” como força na luta parla-
mentar, enquanto que os escravistas se incomodavam com a presença
de público que acompanhava os debates nas galerias (MENDONÇA,
2001, p. 191).
Os jornais também descreveram a euforia das festas pela lei de
13 de maio que, regada a samba, pararam a cidade do Rio de Janeiro.
Mas antes da assinatura da lei, os jornais exerceram influente papel na
convocação do povo à aclamação à Princesa e a enfeitar as ruas próxi-
mas ao Senado nos dias que antecederam a aprovação da lei (Diário de
Notícias, Rio de Janeiro, 03/05/1888). No dia seguinte a essa convoca-
ção, o jornal trouxe o relato da adesão popular, com o número de “oito
a dez mil pessoas impacientes” que esperavam a chegada da Princesa.
O Diário de Notícias deu ênfase a duas situações: a adesão popular à cau-
sa da liberdade e o apoio dado à Princesa na ocasião (Diário de Notícias,
Rio de Janeiro, 04/05/1888)1063. No entanto, desde abril os relatos de
libertação em fazendas já ocupavam a imprensa do Rio de Janeiro.

10
Além dos populares, a causa abolicionista na primeira semana de maio ganhava
a adesão do comércio e da lavoura, vista como prova de patriotismo. A euforia dos
jornais demonstra o quanto a causa ganhava uma adesão momentânea, sendo classifi-
cado esse momento pelos jornais como “fase triunfal do movimento abolicionista”.
220
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O grande entusiasmo em torno da lei de 13 de maio pode ser


medida pelo nível da adesão à festa. A comemoração era de todos e to-
dos pararam (MIRANDA, 1999, p. 16).1164 Desde repartições públicas,
até a vida política, e também o porto, os correios, os bancos e escolas
renderam comemorações que se seguiram por longos 8 dias (SILVA,
2001, p. 112). Nos dias 19 e 20 de maio, quase no encerramento das
festas, cortejos foram realizados pela cidade onde foram distribuídas
poesias impressas em papéis azuis, amarelos e cor-de-rosa. Essas poe-
sias foram encontradas por pesquisadores no Arquivo Público Mineiro, e
depois reunidas em livro, organizado pela Academia Brasileira de Letras,
intitulado Maio de 1888 – poesias distribuídas ao povo, no Rio de Ja-
neiro, em comemoração à Lei de 13 de maio e 1888.1265
O entusiasmo pelo fim da escravidão não contaminou apenas
as ruas da cidade do Rio de Janeiro e aqueles que escreviam para os
jornais da cidade. Os membros do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro
também participaram das comemorações através da convocação de
uma sessão extraordinária dias depois da assinatura da lei. O ano de
1888 também era de comemoração para o IHGB devido à celebra-
ção dos seus 50 anos. Nas comemorações ao jubileu os membros do
Instituo não deixariam de mencionar a nova condição do trabalho no
Brasil.1366
Em sessão extraordinária de 16 de maio de 1888, os membros

11
No entanto, nem todos foram às ruas. O autor cita que Silvio Romero deixou isso
registrado no prólogo que escrevia para a primeira edição da sua História da Literatura
Brasileira enquanto ouvia os ruídos dos festejos das festas da abolição. Esse texto de
Romero foi assinado entre 18 e 19 de maio de 1888.
12
Esse livro possui apresentação e nota de José Américo Miranda, além de textos de
Thais Pimentel, Regina Helena da Silva e Luiz Arnaut sobre as festas de maio de 1888.
Essas poesias foram escritas por Machado de Assis, Artur Azevedo, Oscar Pedernei-
ras, Rodrigo Octávio, Soares de Sousa Júnior, B. Lopes, Guimarães Passos, Baronesa
de Mamanguape (Cármen Freire), Lúcio de Mendonça, Oliveira e Silva, Virgílio Gen-
til, Mário Pederneiras, Gastão Briggs, A. Cardoso de Meneses, Afonso Celso Júnior,
Valentim Magalhães, Osório Duque-Estrada, Adelina Lopes Vieira, Bernardino Quei-
rós, A. Peres Júnior, Henrique de Magalhães, e os que assinaram seus poemas como
B. de M., Guil Mar. e Pedro Malasarte.
13
O Instituto Histórico foi criado em 1839 e os objetivos da produção de seus membros
estavam fortemente ligados ao traçado da gênese da Nação brasileira. Duas obras clássicas
sobre esse tema e ligadas à produção do Instituto são a de Karl Von Martius, Como se deve
escrever a História do Brasil, de 1845, e a de Francisco Adolfo Varnhagen, História Geral do
Brasil, de 1854. Essa última ofereceu uma esquematização de interpretação da História do
Brasil largamente reproduzida nos livros didáticos. Cf. GUIMARÃES, 2001, p. 83.
221
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

do Instituto se reuniram para ouvir as palavras do presidente, o comen-


dador Joaquim Norberto de Souza Silva, que destacou o desejo dos
membros pelo fim da escravidão e a forma repentina como se deu:
Como esse mundo de trevas, que paira eternamente ante o
cruzeiro do sul, parecia, que a negra mancha da escravidão
teria de ofuscar ainda por muito tempo a terra de Santa
Cruz.
As gerações se sucediam sem que lhes fosse dado antever
a terra da promissão. Apenas aqui e ali, de espaço em es-
paço, irrompiam das negras nuvens as cintilações de uma
imensa aurora, e eis que de repente, quando ainda mal se
esperava, surge no horizonte da pátria o Sol da liberdade,
o astro da redenção humana (Revista do IHGB, n. 51, v. 77,
1888).
A comemoração realizada pelos membros do IHGB pelo fim
da escravidão incluía uma mensagem de felicitação ao Imperador e
a colocação de um busto de Perdigão Malheiros na sala das sessões,
devido à relevância da sua obra para a questão (RIHGB, n. 51, 1888,
p. 210-212).1467 Além deles seriam também felicitados a Princesa, o Mi-
nistério, a Câmara Legislativa, e a imprensa de “todo o Império, que co-
operou para o triunfo incruento da causa da Abolição” (Ibidem).1568
Nas mensagens endereçadas à Câmara, ao Senado e ao Gover-
no pela secretaria do Instituto, não há nenhuma referência aos termos
como “negro” ou “abolicionista”. Apenas felicitações aos represen-
tantes da Nação. Além disso, nas atas das sessões do IHGB seguintes
ao 13 de maio e nas demais do ano de 1888 não foram encontradas
nenhuma referência aos significados da Abolição para os próprios li-
bertos, apenas a associação do fim da escravidão com as “melhorias”
na sociedade, principalmente com a introdução de mão-de-obra imi-
grante (Ibidem, p. 325).
Apesar de ser um ambiente de produção da História do Brasil,
os membros IHGB não propuseram ao longo dos seus primeiros 50

14
Perdigão Malheiros produziu uma análise que resultou no livro Abolição, ensaio his-
tórico e jurídico. A leitura que fez dessa obra no Instituto em 1867, com a presença do
Imperador Pedro II, fez com que fosse homenageado em 1888 como o grande incen-
tivador, através da sua obra, para a solução do elemento servil.
15
No texto “A extinção da escravidão no Brasil: o jubileu do Instituto Histórico”,
publicado nesse mesmo volume da revista, vimos que além desses, seriam homenage-
ados todos que contribuíram para o triunfo da causa da Abolição.
222
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

anos nenhum trabalho Histórico mais específico a respeito da escra-


vidão no Brasil. O índice geral da Revista do IHGB, criada em 1839,
reúne poucos trabalhos sobre a escravidão no Brasil até 1888. A te-
mática Escravidão, não ocupa mais que 3 páginas do índice geral e está
dividida entre: Escravidão – Amazonas; Escravidão – Aspextos econômicos
– Brasil; Escravidão – Brasil; Escravidão – Brasil – Emancipação; Escravidão
– Niterói (RJ; Escravidão e A Igreja – Brasil . Em temáticas afins, como
Abolicionistas – Brasil ; Brasil – História – Abolição da Escravidão, 1888;
Brasil – História – Lei do Ventre Livre, 1871; Brasil – História – Palmares,
1630-1695; Brasil – Relações Exteriores – África; Negros – Brasil; Negros
– Brasil – Religião, encontramos textos anteriores a 1888. Alguns deles
reproduziram os relatos sobre as guerras contra Palmares,1669 e tam-
bém sobre a introdução dos escravos no Brasil.
Desse modo, em 1888, o Instituto Histórico, ambiente de escri-
ta da História do Brasil no Império, seguiu as demais tendências das
comemorações daquele maio com produção de discursos por parte
dos seus membros e também o envio de mensagens de felicitação
aos “responsáveis” pela conquista, segundo eles, a Princesa Isabel, o
Imperador, João Alfredo e demais membros do Gabinete. Durante os
discursos sobre a Abolição, os seus membros associaram a lei áurea à
Princesa Regente e ao gabinete de João Alfredo, visto por eles como
um dos Heróis da Abolição.
Nas comemorações aos 50 anos do Instituto, o seu presiden-
te, Joaquim Norberto de Sousa e Silva, reforçou o caráter dessa insti-
tuição e da produção dos seus membros que deveriam concorrer para
o estudo da História e da Geografia do país. Segundo o presidente a
grandeza do Império, que marchava progressivamente sem obstáculo,
seria seguida pelo IHGB nessa mesma marcha. A respeito da Abolição,
o presidente destacou a evolução humanitária por que passou o país, onde
o fim da escravidão não custou gota de sangue nem lamentações, apenas
um vago queixume. E assim, o primeiro ciclo do Instituto havia fechado
com a extinção da escravidão e um novo se abriria com a liberdade de
todos. (RIHGB, Suplemento ao número 51, 21 de outubro de 1888).

16
Os dois textos sobre Palmares são: “Condições ajustadas com o governador dos
Paulistas, Domingos Jorge Velho, em 14 de agosto de 1693 para a conquistar e des-
truir os negros de Palmares”, 1884; “Memória dos feitos que se deram durante os
primeiros anos de guerra com os negros quilombolas dos Palmares: seu destroço e
paz aceita em junho de 1678.”, 1876. (RIHGB, v.159, n. 400, jul/set. 1998).
223
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O texto que propôs uma sistematização do processo aboli-


cionista nas revistas do IHGB foi publicado por Franklin Américo de
Meneses Dória, o Barão de Loreto em 1900, mas seu texto aparece
datado em 1888. A “A abolição no Brasil”, propôs um esquema para
a Abolição a partir de quatro períodos da História do Brasil, segundo
seu autor. O primeiro foi iniciado sob o governo d’El Rei D. João VI
marcado pela reação contra o comércio de escravos e a pressão da
Inglaterra contra o tráfico. Compreendeu também, nesse período, a
abdicação de Pedro I e por isso a sua falta de ação mais efetiva sobre o
acordo de 1826 com a Inglaterra. A regência e o fim do tráfico marca-
ram o final desse primeiro período, segundo Loreto (LORETO, 1900,
p. 187). O seguinte foi caracterizado, segundo ele, pela “emancipação
lenta dos escravos”. Nesse momento, o autor destacou os debates a
respeito da reforma do elemento servil, que segundo ele foi um dos
desejos do Imperador, na fala do trono, em 1867. O destaque desse
período foi a aprovação da lei de 1871 e o interesse do “espírito pú-
blico” que, a partir de 1880, passou a se interessar pela sorte dos escravos
(LORETO, 1900, p 189).
O terceiro período foi marcado pelo ano de 1880 e as agita-
ções que se seguiram, principalmente no Rio de Janeiro, e o desejo da
Abolição imediata, tanto nas ruas quanto nos jornais. A libertação das
províncias do Ceará e do Amazonas, o debate em torno da lei dos se-
xagenários, a aspiração do abolicionismo e a “força por ele adquirida”,
erguendo “vozes do seio de todas as classes”, e as agitações da década
de 80 marcaram o início do quarto período.
Segundo ainda esse texto, os prazos colocados para o fim da
escravidão, os comícios em São Paulo e a libertação dessa província
foram interpretados pela Princesa Regente como tendências do país
para a Abolição, e a Princesa, segundo Loreto, “revelou pelo seu pro-
ceder o propósito de contribuir para a pronta consumação do resgate
dos míseros oprimidos” (LORETO, 1900, p. 189). Para isso, escolheu
para formar o gabinete em 1888 o Conselheiro João Alfredo, o mes-
mo que havia colaborado com a lei de 1871. Após isso, o autor relatou
uma série de adesões populares à causa, à Princesa e à sua chegada ao
Paço com todos os “vivas” e “enchente de flores” que recebera no dia
da assinatura da lei.
Loreto terminou esse seu texto com a seguinte impressão a
respeito da Princesa:
224
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Assim a princesa, que antes, sancionando outra lei famosa,


proclamara livres as gerações futuras, revocou à liberdade
centenas de milhares de cativos, e completou a obra da
Abolição na sua pátria, a qual, reconhecida, lhe deu o título
de ‘Isabel a Redentora’ (LORETO, 1900, p. 187).
Desse modo, 12 anos após a Abolição realizada, o Instituto
propõe, já na República, uma interpretação imperial para a Abolição.
Ela seria obra do Império, mais precisamente da Princesa que soube
perceber os momentos de definição do processo abolicionista e mon-
tar um gabinete cujo representante já havia participado de discussões
anteriores. O grande objetivo desse esquema proposto por Loreto foi
o de mostrar a adesão do Governo Imperial às idéias que encurtavam
a escravidão, primeiramente com o tráfico e logo depois com as leis
que se seguiram até chegar 1888.
Por fim, ressaltemos mais uma sistematização da História da
Abolição feita por Osório Duque-Estrada em 1913 e publicada em
1918. Em Abolição, esboço histórico, Duque-Estrada, ao contrário de Lo-
reto não responsabilizou nem a Princesa nem o seu Gabinete pela
aprovação da lei de 13 de maio de 1888. Segundo ele, na ocasião da
aprovação dessa Lei a Abolição já estava feita (DUQUE-ESTRADA,
2005, p. 72).1770 Para Duque-Estrada o parlamento foi pressionado
pelas ações do movimento abolicionistas, presentes tanto nas ruas
quanto dentro do próprio parlamento. As leis anteriores a 1888 foram
apenas para iludir quem acreditava que elas poderiam trazer algum be-
nefício para os escravos, e também serviram para a forte oposição dos
escravistas à solução do problema do elemento servil no Brasil.
O livro de Duque-Estrada começa com os argumentos em
torno da lei de 1831, que segundo ele foi a que acabou com o tráfico,
apesar de não ter sido cumprida. Por isso, a escravidão que se seguia
desde então era ilegal. Abolição teve seus capítulos divididos entre as
ações do parlamento e as ações dos abolicionistas nas ruas. Apesar
de muito jovem em 1888, Duque-Estrada era ligado à Confederação
Abolicionista, o que lhe garantiu no final do seu livro algumas passa-
gens que podem ser consideradas como fruto da sua memória.
Segundo o autor, o livro é uma tentativa de organização do

17
A fim de facilitar a consulta ao livro utilizo a última edição de 2005, ao invés da
edição de 1918.
225
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

material da história da Abolição. Para tal, utilizou-se tanto de fontes


oficiais quanto de suas reminiscências. Além do mais, o livro servi-
ria para apontar os verdadeiros abolicionistas e denunciar aqueles que
aderiram à causa no momento que era certa a sua vitória. Com pre-
fácio escrito por Rui Barbosa, que também defendeu a idéia de que,
a cada momento, novos heróis eram associados à causa abolicionista,
esse livro conseguiu reunir um grande número de personagens do pe-
ríodo abolicionista, não só da década de 80, mas desde a década de
20 do século XIX. Na tentativa de indicar os “verdadeiros heróis”,
Duque-Estrada, no final, do seu livro criou o “Panteão Abolicionis-
ta”. Nesse Panteão, os heróis ganharam textos biográficos de outros
também abolicionistas que descreveram algumas passagens da vida
do biografado. Não há nenhuma informação sobre a ocasião da pro-
dução desses textos, mas servem para indicarmos que a escolha de
Duque-Estrada era compartilhada por outros.1871
Essa obra de Duque-Estrada exerceu influência sobre os seus
livros didáticos que ao tratar de Abolição reforçou a idéia de que ela
foi feita por ação do movimento abolicionista e não apenas de uma
generosidade da Princesa. Além do mais, sua interpretação sobre a
Abolição serviu para que outros nomes de abolicionistas ficassem co-
nhecidos pelo grande público e também pelo escolar, devido a sua
grande produção didática (MORAES, 2007, p. 249-266).
Desse modo, podemos chegar a algumas conclusões a res-
peito da produção historiográfica da Abolição. A lei de 13 de maio de
1888 foi o ponto final de um processo abolicionista que não começou
na década de 1880 – um período bastante reivindicado como auge do
movimento abolicionista – mas, sim, desde as discussões em torno
de medidas que pusesse fim a escravidão no Brasil. Tanto o texto de
Loreto quanto o de Duque-Estrada são exemplos dos variados esque-
mas que apareceram para a Abolição, onde a escrita dessa História, da
mesma forma que qualquer outra, está em meio a disputas teóricas e
metodológicas.
Os historiadores da Abolição demonstraram que os persona-

18
Foram esses os indicados por Duque-Estrada para o Panteão: Luís Gama, André
Rebouças, Ferreira de Menezes, José do Patrocínio, Sizenando Nabuco, José Boni-
fácio (O Patriarca), José Bonifácio (o moço), Joaquim Nabuco, Ferreira de Araújo,
Joaquim Serra, João Clapp e Antonio Bento.
226
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

gens principais poderiam revezar da mesma forma que as percepções


em torno do 13 de maio poderiam contribuir com “outras” Histórias
da Abolição. Além disso, ao analisarmos a festa e o relato do 13 de
maio e as comemorações que se seguiram é possível perceber a tentati-
va de criação de uma memória, alimentada pelos jornais da época, por
memorialistas que associaram símbolos, heróis e textos a esses festejos
e também por aqueles que escreveram a História, propondo uma es-
quematização para esse período logo depois de ocorrida a Abolição,
conforme o caso de Loreto.
No entanto, em todas essas esquematizações um elemento
principal dessa festa foi esquecido: o ex-escravo. A grande dúvida em
torno dessas festas e do próprio movimento está na participação efe-
tiva do escravo e do ex-escravo. No entanto, é possível perceber tanto
através do texto de Maria Helena Machado quanto nos relatos dos
jornais que a defesa da Abolição ia muito além dos homens de casaca
do parlamento. Ela envolveu todos os habitantes da cidade apesar de
poucos textos registrarem as vozes da arráia miúda abolicionista.
Dessa forma, o significado dado ao 13 de maio em 2007 e
nos anos que se seguirão é fruto tanto da construção histórica que
começou no dia seguinte a Abolição quanto das disputas entre os his-
toriadores na definição de heróis, símbolos e efeitos da Abolição. O
que não podemos esquecer é que a lei 3353 assinada em 13 de maio
de 1888 acabou definitivamente com a escravidão no Brasil, apesar
de não prever nada além da liberdade. Em 14 de maio de 1888 come-
çava-se uma nova luta na sociedade brasileira, cujos novos militantes
do século XXI esqueceram-se de onde ela começou: no domingo da
Abolição da Escravidão no Brasil.

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em novembro 2007.

228
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O ENDEREÇO DA CULTURA PARA O CARIOCA


JOANINO
72
Maria Renata da Cruz Duran1
Resumo: Procuramos apresentar Abstract: At this article I try to
o espaço em que se deu a formação explain how the transference of
da literatura nacional, assim como lo- Bragança´s House touch  many as-
calizar, neste quadro, o lugar social da pects of brazilian culture, speciality
cultura no Rio de Janeiro do primeiro a culture of Rio de Janeiro.
quartel do século XIX, dedicando-nos Key-word: brazilian literature, ser-
a mapear as transformações no âmbito monistic, D. João VI
da cultura, promovidas pelo encontro
entre reinóis e habitantes da colônia,
segundo uma análise do cotidiano e
do lugar da cultura no Rio de Janeiro
joanino.
Palavras-chave: literatura brasileira,
sermonística, D. João VI.

Ora, se os brasileiros tem seu caráter nacional,


também devem possuir uma literatura pátria.
Santiago Nunes Ribeiro

As mudanças sofridas pelo Rio de Janeiro do primeiro quartel


do século XIX incrementaram a formação de uma literatura brasileira
que, a princípio, ainda era reconhecida como parte da literatura lusi-
tana. Segundo Almeida Garret, a razão dessa denominação consistia
em três pressupostos: 1) a língua os unia; 2) esta união era também
eletiva e não obrigatória; 3) as diferenças estavam nos temas, imagens
e referências (AMORA, 1918). Herdeira de uma tradição ibérica, a pecu-
liaridade que fez da literatura produzida no Brasil uma literatura bra-
sileira foi a busca por uma cor local e a definição de um estilo próprio
de expressão. A criação de uma singularidade para essa literatura, pro-
duzida no Rio de Janeiro a partir de 1808, será o tema dos próximos
parágrafos.
1
Doutoranda em História social e da cultura pelo programa de pós-graduação em
história da UNESP/ Franca, sob a orientação do prof. Jean Marcel Carvalho França.
Este artigo é parte do texto que compõe a dissertação de mestrado da autora, defen-
dida em 2005 pela mesma instituição, com o título: Frei Francisco do Monte Alverne e a
sermonística no Rio de Janeiro de D. João VI. E-mail: mrcduran bol.com.br
229
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Para Antônio Cândido e Aderaldo Castello (1982), o deno-


minado arcadismo,273 preponderante na segunda metade do setecen-
tos, havia contribuído para trazer ao Brasil um debate existente na
Europa Ocidental. Naquele momento, a construção de uma nação
passava também pela construção literária de um nacionalismo. Debate
importado da Europa Ocidental, sobretudo da França, serviu o nacio-
nalismo como tema para que as belas letras desenvolvessem suas pri-
meiras idéias de Brasil. O processo de independência contribuiu nesse
sentido,374 mas, nas ruas do Rio de Janeiro, já ecoava um pensamento
que se entendia como brasileiro desde 1808. Arte que deveria ser útil,
as belas letras trataram de construir uma soma de qualidades que pudes-
sem identificar no Brasil sua brasilidade. Para Gonçalves de Magalhães
esta discussão teve como eixo a idéia de pátria:
No século XIX com as mudanças e reformas políticas
que tem o Brasil experimentado, uma nova face literária
se apresenta. Uma só idéia absorve todos os pensamentos,
uma nova idéia até ali desconhecida: é a idéia de Pátria; ela

2
Os textos árcades possuíam conflito de paixões e motes diferentes, mas consegui-
ram certa uniformidade nos temas e formas. Voltado para um diálogo com o outro,
o arcadismo propôs uma linguagem universal, entretanto, destinada às elites - neste
sentido, as citações e referências serviam como uma amostra estilística ou um guia de
leituras por meio do qual o beletrista se vinculava a uma corrente de pensamento. O
estabelecimento por academias ou agremiações como a Junta da Providência Literária,
criada por José Bonifácio em 1770, ou a Academia dos Esquecidos, fundada na Bahia em
1724, a Academia dos Felizes, fundada no Rio de Janeiro em 1736, a Academia dos Seletos,
também do Rio desde 1752 e a dos Renascidos, Bahia, 1759. Como parâmetros para o
entendimento do arcadismo brasileiro, que os críticos literários situam até 1836, cos-
tuma-se citar Tomás Antonio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa ou Basílio da Gama.
Todavia as condições que lhes forneceram temas, entre elas o ciclo do ouro em Minas
Gerais, não compõe um quadro uniforme se comparados com a realidade vivida no
Rio de Janeiro a partir de 1808. De qualquer maneira, o arcadismo nos importa como
uma das expressões que o movimento de ilustração teve no Brasil.
3
“A Independência importa de maneira decisiva no desenvolvimento da idéia român-
tica, para a qual contribuiu pelo menos com três elementos que se podem considerar
como redefinição de posições análogas do Arcadismo: (a) o desejo de exprimir uma
nova ordem de sentimentos, agora reputados em 1o plano, como o orgulho patriótico,
extensão do antigo nativismo; (b) desejo de criar uma literatura independente, diversa,
não apenas uma literatura, de vez que, aparecendo o classicismo como manifestação
do passado colonial, o nacionalismo literário e a busca de modelos novos, nem clássi-
cos nem portugueses, davam um sentimento de libertação relativamente à mãe-pátria;
finalmente (c) a noção já referida de atividade intelectual não mais apenas como prova
de valor do brasileiro e esclarecimento do mental do país, mas tarefa patriótica na
construção nacional” (CANDIDO, 1969, p. 11).
230
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

domina tudo, tudo se faz por ela, ou em seu nome (MAGA-


LHÃES, 1836, p. 156).

As belas letras deste período possuíam uma missão coletiva,


pois, como Teófilo Braga, autor de Teoria da história da literatura portu-
guesa, publicado em 1896, acreditava-se que:
Quanto mais profundo for o sentimento de PÁTRIA,
mais intensa é a consciência da NACIONALIDADE, para
resistir aos acidentes das idades. É esta relação afetiva que
faz com que a arte e a literatura sejam a estampa do caráter
nacional (BRAGA, 1896, p. 161).
Cabia aos beletristas disseminar esse sentimento de pátria por meio de
uma literatura informativa, pedagógica mesmo. As informações conti-
das nessa literatura serviriam para educar a população que tinha pouco
acesso ao saber,475 além de criar uma literatura que era “prova do valor
brasileiro, tratava-se de sustentar uma tarefa patriótica de construção
nacional, que havia adquirido categoria estética”576 e referências pró-
prias, pois, como afirmou Lopes Gama, em 1846, nas suas Lições de
Eloqüência Nacional:
Enquanto uma língua é escrava da autoridade, não se pode
esperar que engrosse muito seus tesouros. Que progres-
so, que perfeição, que riqueza poderia ter uma língua, que
nunca discrepasse nem um ápice das autoridades de um ou
outro século? Os escritores de primeira ordem, esses enge-
nhos raros, que aparecem de século em século, são os que
ampliam os apertados limites da analogia, e como legisla-
dores se elevam acima do uso e da autoridade (GAMA,
1846, p. 288 apud SOUZA, 1999, p. 61).
A contribuição de D. João VI, da corte portuguesa e dos
estrangeiros que o seguiram foi, portanto, a ampliação, senão a cria-

4
“O mais freqüente? Posição semelhante à que externa Pierre Plancher em O espelho
diamantino. Tratava-se de tentar, em alguma medida, sugerir as deficiências de instru-
ção de um público que “não se tendo podido educar em país estrangeiro achava es-
tabelecimentos de instrução incompletos”. Tratava-se, pois, de resolver, na literatura,
a falta de uma viagem de formação e as deficiências do ensino no país. Daí o papel
de enciclopédia de pequeno porte assumido pela literatura de ficção brasileira nesse
período de formação” (SÜSSEKIND, 1990, p. 90).
5
A idéia de uma literatura que tinha uma tarefa é de Antonio Candido e a de uma du-
pla influência, cujo resultado foi uma literatura de conhecimento que depois adquiriu
senso estético é de Afrânio Coutinho.
231
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ção, de um espaço para as belas letras. Mas, que espaço era esse? Que
elementos ele incluía? Como ele contribuiu para a formação de um
público e, assim, de uma literatura brasileira?
A literatura e a educação no Brasil, pelo menos até a primeira
metade do século XIX, estiveram relacionadas ao poder da Igreja, à
ação do Estado e às posses de seus interessados. A Companhia de Jesus
foi responsável, até a segunda metade do século XVIII, pela educa-
ção daqueles que residiam no país; sua colaboração foi enfática na
homogeneização de uma língua falada no Brasil. O Estado contribuiu
sustentando parte das atividades da Igreja no país e, após a expulsão
dos jesuítas, criando as aulas régias e fomentando a transição de es-
trangeiros no país. E se, no sentido da formação de uma intelligentsia
brasileira, esses subsídios foram exíguos, foram praticamente os únicos
até meados de 1808.
Em 1760, havia três instituições destinadas ao ensino no Rio
de Janeiro: os seminários São José, São Joaquim e da Lapa, que aten-
diam a um conjunto de 95 seminaristas. Além dessas instituições, ha-
via 12 mestres particulares que atendiam 309 alunos leigos. Alguns
professores atendiam ainda em suas casas, a quantidade de alunos
desses professores não pode ser calculada por falta de referências aos
mesmos. Entre seminaristas e leigos, o Rio de Janeiro possuía 404
dos 700 alunos do Brasil, o que representa mais de 50% do total de
alunos matriculados nas aulas régias e instituições religiosas de ensino
do Brasil.
Desde a emissão do alvará de 30 de junho de 1759, as aulas
régias foram instituídas para substituir o sistema de ensino criado pe-
los jesuítas, pois a Companhia seria expulsa por D. José I, com o alvará
de 3 de setembro de 1759. A finalidade dessa expulsão era justificada
pela necessidade de libertação do ensino nos domínios portugueses.
Tal libertação estava cunhada pelos ideais iluministas que ocupavam
os pensamentos dos europeus no século XVIII. Em 1772, eram 479
os mestres régios nos domínios lusitanos, 440 deles em Portugal e
24 nos domínios ultramarinos, dos quais 15 nas ilhas e 7 no Rio de
Janeiro. Deste número de 7, 2 destinavam-se ao ensino básico, 2 à gra-
mática latina, 1 ao grego, 1 à retórica e 1 à filosofia. O salário desses
professores era de 450 réis anuais, e equivalia a 20 vezes menos que
o salário mais alto da capitania, o que fazia desta a última profissão
escolhida pelos instruídos da cidade ou a transformava numa atividade
232
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

secundária. Além de custear as instalações das aulas, que geralmente


eram dadas na própria casa do professor, os mestres régios deveriam
arcar com os gastos de sua instrução e com o material a ser utilizado
pelos seus alunos. Desse modo, a maioria dos professores régios não
tinha na atividade de ensino a sua principal ocupação, deixando muito
a desejar no que tange à instrução daqueles poucos que conseguiam
suas vagas. E as questões econômicas não se restringiam ao salário
do professor. O alvará de 6 de novembro de 1772, determinava que
a educação deveria pautar-se pela origem social do aluno. Afinal, aos
“braços e mãos do corpo político bastaria que tivessem as instruções
dos párocos” (ALVARÁ apud CAVALCANTI, 2004, p. 60).
Com a vinda da corte e a imigração impulsionada por ela,
muitos estrangeiros tentaram se estabelecer no Rio de Janeiro dando
aulas particulares de suas línguas maternas. A educação do povo ca-
rioca deveria incluir, segundo esses estrangeiros que geralmente ofe-
reciam seus serviços em jornais como o do Jornal do Comércio, boas
maneiras, bordados, contas, estilo e todo tipo de curiosidade de que
se sentiam aptos a falar. Essa perspectiva de que o estrangeiro possuía
um conhecimento sempre maior e mais confiável do que o autóctone
prejudicou, em certa medida, a educação do período, pois, muitas ve-
zes os professores eram desqualificados.
Atentos a essa possível lacuna, em anúncio na Gazeta do Rio de
Janeiro de 7 de abril de 1813, exigia-se do mestre a ser contratado: “vas-
tos conhecimentos, retidão de costumes, pureza de religião e avança-
da idade [...]. Pronúncia da língua que ensina na sua maior pureza e
também que saiba a Língua portuguesa, circunstância muito atendível
para este fim” (RENAULT, 1969, p. 19) . Entretanto, essas precau-
ções, sejam com os estrangeiros que estavam tentando se estabelecer
ou com os cariocas mal qualificados pelo salário oferecido, parecem
não ter surtido o efeito desejado, pois, em 4 de setembro de 1825, Frei
Miguel do Sacramento Lopes, numa carta ao Governo Pernambucano
avaliando o ensino em todo o país, escrevia:
As aulas de primeiras letras, tão necessárias à Mocidade es-
tão comumente em lamentável atraso. Os professores pela
maior parte ignoram os primeiros rudimentos da Gramá-
tica da língua; e daqui os rapazes sem a mais leve idéia da
construção e regência da oração, e nenhum conhecimento
da ortografia, e prosódia da língua; daqui os barbarismos,
233
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

os solecismos, os neologismos, e infinitos erros, a que des-


de os tenros anos se vai habituando a mocidade (LOPES,
1825 apud SOUZA ARAÚJO, 1999, p. 170).
Em termos de instituição de ensino na capital do Brasil, o
estudo já possuía, entre 1808 e 1820, alguns endereços, conforme ano-
taram Spix e Martius:
Para a instrução da juventude, dispõe a capital de diver-
sas boas instituições de ensino. Pessoas abastadas tomam
professores particulares a fim de prepararem os filhos para
a Universidade de Coimbra, o que obriga a grandes sacri-
fícios visto que são raros os professores competentes. No
Seminário de São Joaquim, aprendem-se os rudimentos de
Latim e do cantochão. Mas o melhor colégio é o Liceu ou
Seminário São José, onde, além do latim, do grego, das
línguas francesa e inglesa, retórica, geografia e matemática,
também se leciona filosofia e teologia. A maioria dos pro-
fessores é do clero, o qual, entretanto, exerce atualmente
muito menor influência no ensino do povo do que antiga-
mente, sobretudo no tempo dos jesuítas. Uma instituição
muito útil aos novos tempos é a Aula de Cirurgia, que foi
fundada para se formarem médicos práticos, pessoal de
que há absoluta falta de interior. Ao cabo de cinco anos
de estudo, podem os jovens diplomar-se aqui, como mes-
tres de cirurgia. Segue-se aí severo programa, e cuida-se da
aquisição de conhecimentos positivos na clínica do Real
Hospital Militar vizinho (SPIX; MARTIUS, 1967, p. 48).

As condições oferecidas por esses colégios, todavia, eram di-


ferentes. Tais diferenças implicavam na qualidade e na finalidade dos
estudos. Luccock ressaltou essas particularidades descrevendo os se-
minários São José e São Joaquim:

Dos colégios, o de São José é o mais antigo e o mais afa-


mado. Foi provavelmente fundado logo após a Igreja de
São Sebastião, encontrando-se ao pé do morro que trás
seu nome, perto da Rua da Ajuda. Na frente há um por-
tão, mais que sólido, degenerando já para o pesado estilo
brasileiro. Passando por debaixo desse portão, os visitan-
tes atingem uma área aberta, coberta de grama, em cujo
fundo encontram um só lance de edifício com janelas de
rótulas pintadas de vermelho. A aparência externa oferecia
sinais palpáveis de negligência, e exames ulteriores confir-
234
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

mavam as primeiras impressões. Os quartos eram suficien-


temente numerosos, mais pareciam incômodos, estando
alguns desocupados. Avistamos uns poucos colegiais que
se achavam por ali passeando, de beca vermelha; alguns
já tonsurados, mas a maior parte ainda muito jovem. Não
apresentavam nenhuma elasticidade de espírito, nenhuma
curiosidade sagaz (...) Um outro colégio, mais respeitável
quanto à aparência e direção que o anterior, encontra-se
na estreita e suja rua de São Joaquim, tendo o mesmo
nome que ela. Ali os letrados fazem praça de educar os
jovens para funções de estado e de lhes ensinar muito es-
pecialmente os conhecimentos próprios para este fim. Mas
embora o governo empreste seu patrocínio à instituição o
número de estudantes é pequeno e, na realidade, a casa não
está em condições de os receber em grande quantidade
(LUCCOCK, 1970, p.49).
De qualquer maneira, para ele, em 1813, “a educação dada
nos colégios visa quase que unicamente o sacerdócio ou os cargos dos
leigos nas Igrejas e, embora reduzida a esses objetivos especiais, acha-
se em extrema decadência” (LUCCOCK, 1970, p. 86). Opinião com-
partilhada por muitos que acreditavam, como o conselheiro de Estado
Estevão Rezende, que essa “falta de educação” do Brasil impedia o
desenvolvimento de uma democracia que incluísse certos pressupos-
tos, como o voto direto:
Eu sustentarei que a degradação da educação e, por con-
seguinte do conhecimento em que tem estado o Brasil
até hoje me fará sempre propender para votar pelas no-
meações indiretas, com um misto e aparência das diretas;
visto que estou convencido que as diretas em toda a sua
extensão serão nas primeiras épocas do Brasil sempre tu-
multuosas, ou pelo menos sujeitas a transmitirem-se dos
Representantes da Nação a ignorância dos votantes, que
mal sabendo avaliar os funestos resultados de sua má es-
colha, não podem antecipar uma escolha imparcial e que
seja profícua ao fim (REZENDE, 1821 apud BANDECCHI,
1976, p. 47).

Até que a fundação dos cursos jurídicos de São Paulo e Olin-


da fosse efetivada em 1828/9, D. João VI já havia planejado a institui-
ção de outras faculdades no Brasil. Entre essas iniciativas, destacamos
a de José Manuel de Souza França, interessado em fundar uma escola
agrícola no país, escola que só seria criada depois de 1830, e a de um
235
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

intendente de polícia que atuava na cidade em 1781, que enviou para a


rainha D. Maria I a proposta de uma “Casa de Educação” para ambos
os sexos, mas que também não se efetivaria até 1823, quando o méto-
do lancasteriano seria introduzido por meio da Escola do Ensino Mútuo
anunciada pelo Almanaque para o Rio de Janeiro de 1824:
Criada por Decreto de 13 de abril de 1823. Admite-se gra-
tuitamente até 270 meninos da idade de 7 anos para cima,
fornecendo-lhes papel, penas e mais aprestes para ensino.
Diretores: O tenente-coronel José Saturnino da Costa Pe-
reira [...] O Tenente-Coronel João Paulo dos Santos [...] O
doutor João da Silveira Caldeira [...]. Professor: Francisco
Joaquim Nogueira Neves (RIHGB, 1968, v. 278, p. 268).
Segundo o Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1816
(RIHGB, 1965, v. 268, p. 325), também serviam como instituições de
ensino a Academia Real Militar, criada em dezembro de 1810, a Academia
Real dos Guardas Marinhas, criada em abril de 1796 e a Academia Médico-
Cirúrgica. A primeira possuía 25 oficiais, entre deputados, lentes, subs-
titutos, ditos de desenho, secretário, professores, porteiros e dito do
gabinete de mineralogia. A segunda possuía 15 funcionários: diretor,
lente de matemática e substituto, professor de desenho e substituto,
lente do aparelho, oficiais, secretário, porteiro, guardas e varredores.
A terceira possuía um diretor, um professor para cada um dos cinco
anos – dois para o terceiro -, um secretário, um porteiro da aula de
anatomia e o professor de botânica, Frei Leandro do Sacramento. Os
professores régios de gramática latina eram: Luís Antonio de Souza,
Manoel Marques e Luiz Gonçalves; seus substitutos eram: João Ba-
tista, João Alves e Domingos Lopes Guimarães. João Marques Pinto
ensinava a língua grega; João José Vaía, retórica, na rua dos Latoeiros;
Januário da Cunha Barbosa, filosofia, na rua dos Quartéis; e, por fim,
Manoel Dias de Oliveira ensinava desenho e figura, na rua do Rosário.
Entre 1808 e 1824, esses cargos tiveram diferentes funcionários.
O ensino era acompanhado por apostilas ou compêndios es-
critos pelos próprios professores, à moda de tratados. Até a permissão
de tipografias, em 1808, importavam-se esses compêndios, ou mesmo
copiava à mão cada um deles, que não eram muitos nem muito ex-
tensos, dependendo dos honorários do estudante para o pagamento
de diferentes professores. Esses compêndios eram Resumos ou livre
interpretações daquilo que os professores consideravam como conhe-
236
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

cimento necessário ao aluno. A originalidade, portanto, não era essen-


cial. Bastava que eles conseguissem aglutinar as partes mais impor-
tantes do pensamento europeu até o momento, conforme explicou
Fernandes Pinheiro em 1823:
A gente instruída conhecerá bem os autores que temos
seguido sobre cada matéria, e dos quais temos freqüen-
temente fundido nesta obra, não somente idéias, mas as
mesmas expressões. A mania de querer dizer melhor que os
outros não é demasiadas vezes que o modo de exprimir-se
mal, e de falta, sobre tudo, em matéria de ciência, ao fim
que se deve tender. Como nós não escrevemos que para
ser útil, pouco nos importa que se diga que uma definição,
que uma regra, que um exemplo, que uma passagem, &c.
são tiradas de tal ou tal autor. O essencial é que eles sejam
bons, claros, e trazidos ao propósito (FERNANDES PI-
NHEIRO, 1823, p. VII, apud SOUZA, 1999, p. 40).
Quando nem os compêndios, nem a Igreja, nem o Estado sa-
ciavam a avidez por saber dos brasileiros, a iniciativa pessoal, munida
de recursos, levava nossos estudantes para o estrangeiro. Ao habitante
do Brasil seria necessário mudar-se para o velho mundo a fim de ad-
quirir maiores conhecimentos além das primeiras letras677, cálculos e
do curso de retórica – pré-requisito ao ingresso na Universidade de Coim-
bra. Até o século XVIII, cerca de 1.875 estudantes brasileiros haviam
se formado na Universidade de Coimbra. Entre 1810 e 1820, o governo
financiou um intercâmbio cultural representado, sobretudo, pela mis-
são francesa no Brasil. Essa missão consistiu na vinda de uma série de
artistas – pintores, desenhistas e arquitetos – franceses para o Brasil,
chefiados por Lebreton. Esses profissionais deveriam participar da
fundação de um curso superior de Artes. O curso foi criado por Porto
Alegre, discípulo de Debret, após a partida da missão, mas a presença
desses artistas no Brasil contribuiu, e muito, para a renovação da idéia
de arte e de conhecimento no país. Complementarmente, o jornal Le
Courrier Français noticiou haver, em meados de 1827, cerca de 30 es-

6
“Observava (Suzannet), por exemplo, que, entre os poucos brasileiros que freqüen-
tavam os colégios, a maior parte não ia além do curso primário; que, segundo os
dados, que colhera, numa população de 400 mil almas apenas pouco mais de mil fre-
qüentavam essas escolas na corte; ou, passando pela Bahia, que a Escola de Medicina
de Salvador estava em estado deplorável” (SÜSSEKIND, 1990, p. 86).
237
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tudantes brasileiros na Europa, custeados pelo governo brasileiro.778


Não raro, o governo concedeu verbas e dispensas do serviço do Paço
para que brasileiros estudassem na Europa. Segundo o referido alma-
naque, Francisco Gomes de Campos, oficial de registro do Registro
Geral das Mercês, era um deles que, com licença desde 1809, estava
freqüentando a Universidade de Coimbra para melhor servir à pátria.
Caso o estudante não tivesse conseguido nem ir para o exte-
rior, nem estudar nas instituições locais, nem freqüentar as aulas régias,
então ele deveria recorrer à literatura disponível no país. A Biblioteca
Nacional e o Museu Nacional faziam parte do espaço criado por D. João
VI para as belas letras no Brasil, assim como a Escola Real de Comércio,
Artes, Ciências e Ofícios, estabelecida em meados de 1816. Segundo ob-
servou John Luccock:
Como instituições científicas, possui o Rio uma biblioteca
e um museu. A primeira está instalada no Largo do Paço
em edifício adaptado para o fim, de 3 andares, e contém
cerca de 60.000 volumes, na maior parte antigos. Seu dire-
tor foi amabilíssimo, prontificando-se a mostrar-me tudo.
No primeiro andar está a grande sala de leituras, franquea-
da ao público pela manhã; lá encontrei meia dúzia de leito-
res. Para o museu, fez o último Rei construir belo edifício
próprio na Praça da Aclamação, o qual guarda, numa série
de salas e peças menores, notáveis coleções de história na-
tural (LUCCOCK, 1970, p. 106).
O acervo da Biblioteca Real, criada em 27 de junho de 1810,
tinha cotribuições da biblioteca do Conde da Barca, da livraria orga-
nizada por D. José I – a Real Biblioteca da Ajuda, e da rica coleção do
abade Santo Adrião de Sever, que a doara, em 1773, a D. José I. Essa
biblioteca tornou-se Biblioteca Nacional em 1815. O acesso era livre e
gratuito e, segundo Ferdinand Denis, havia em seu interior pinturas
que imitavam aquelas feitas no Vaticano. Para incentivar a visitação à
Biblioteca foram dispostos papel e tinta para a escrita, gratuitamente.
John Luccock, porém, notou a pouca freqüência que a sala de leitura
desta instituição possuía, pelo menos até o momento em que alguns
jornais estrangeiros começaram a serem colocados à disposição do

7
Entre eles estavam Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre e Salles Torres
Homem, que seriam responsáveis, em 1836 pela Revista Niterói, um dos trabalhos que
marcou mais acentuadamente a idéia de pátria desenvolvida pelas belas letras oitocen-
tistas (PRADO, 1999).
238
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

público. Denis observou que pessoas de todas as classes e cores visitavam a


Biblioteca a fim de correr os olhos pelas notícias e anúncios dos peri-
ódicos. Sobre o acervo desta biblioteca o viajante comentou:
Embora se componha, em geral, de livros modernos, per-
tencentes sobretudo à literatura francesa; a biblioteca do
Rio de Janeiro é desprovida de curiosidades bibliográficas;
destaque-se uma grande coleção de Bíblias, entre as quais
convém distinguir um belo exemplar da Bíblia da Mon-
gúcia, impressa em 1462, e que faria inveja às mais ricas
bibliotecas das capitais da Europa. Entre os manuscritos,
distingue-se uma obra magnificamente executada, que tra-
ta, como o seu título indica, da Flora do Rio de Janeiro
(DENIS, 1980, p. 130).
O Museu Nacional, na avaliação de Denis, era pobre na quan-
tidade de objetos à mostra, mas algumas caixas de ofício (caixas com
mini-maquetes de processos de manufatura) causavam muita curiosi-
dade nos habitantes do Brasil. Ainda segundo esse viajante, cada uma
destas instituições, em 1823, tinha um custo mensal para governo de
4:485$000 e 4:512$000 réis, respectivamente.
Havia outra biblioteca no Rio de Janeiro, a biblioteca do Con-
vento São Bento, que possuía um acervo bem menor e também menos
diversificado; na porta que lhe dava acesso, segundo John Luccock,
vinha escrito “A sabedoria construiu uma casa para si”. Entretanto,
esta biblioteca não tinha o acesso livre e nem tampouco os atrativos
daquela que descrevemos acima, tais como: jornais, papéis e tinta. A
biblioteca servia muito especificamente aos religiosos e, por vezes,
àquelas pessoas consideradas importantes, afinal, nem todos tinham
acesso a todos os livros desejados, pois, como ressaltou o censor ré-
gio879 Francisco de Borja Garção Stockler, pensava-se que:

8
“Dos treze (censores da Mesa do Desembrago) nomeados entre 1808 e 1819, sete
exerciam o sacerdócio, cinco dos quais regulares. Dois acabaram nomeados bispos:
frei Antonio d’Arrábida, preceptor dos príncipes d. Pedro e d. Miguel, confessor do
primeiro e futuro reitor do Imperial Colégio de Pedro II; e frei Antonio de Santa
Úrsula Rodoalho, pregador régio da Capela Real e Ministro Provincial do Convento
da Corte, mas que, indicado para bispo de Angola, renunciou antes de sua sagração.
Outros dois foram abades, um da Ordem de São Bento e outro de São Bernardo. O
último regular, Frei Inocêncio Antonio das Neves Portugal, foi lente das Faculdades
de Teologia de Coimbra e confessor régio. Entre os dois seculares, destaca-se João
Manzoni, padre mestre e confessor da Infanta D. Mariana. Em relação aos censores
leigos, todos tinham sido formados pela Universidade de Coimbra e exerceram fun-
239
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

as nações são como indivíduos, têm sua infância, sua pue-


rícia, sua adolescência, sua idade madura, sua velhice... e
desgraçadamente também sua morte [...] portanto se os ali-
mentos não podiam ser consumidos indistintamente por
todas as idades [...] também as mesmas leituras e os mes-
mos meios de instrução não se acomodam perfeitamente
a todos os estados e circunstâncias das Nações (STOCK-
LER apud ALGRANTI, 1999, p. 647).
O cuidado com o teor das obras lidas levou as autoridades
lusitanas a restringir, em meados de 1810, os livros que chegariam ao
Brasil. A esse propósito, o mesmo censor explicou:
Ora, os livros são prejudiciais porque atacam a religião,
ou porque ofendem a moral, ou porque contradizem os
princípios políticos e a legislação civil do Estado, ou fi-
nalmente porque, confundindo os primeiros princípios da
razão, com sutilezas e paradoxos, evitam aos leitores os
progressos do entendimento no sentido das ciências úteis
(STOCKLER apud ALGRANTI, 1999, p. 646).
No entanto, a própria falta de interesse dos habitantes do Brasil pare-
cia impedir a circulação de algumas obras. O que pode ser constatado
por meio da carta de Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça,
enviada à D. Rodrigo de Souza Coutinho, em 1801, na qual se lia:
Ano de 1801, no. 19. Sobre a recepção de livros de artes e
ciências. Ilmo e Exmo. SNR. – Acompanhada do Aviso no.
26 de 22 de 8bro. De 1800, recebo a relação dos impressos
que em um caixote me foram entregues com a importância
de 165$120 rs com ordem de a fazer vender pelos preços
indicados na mesma relação, e de remeter o seu produto ao
Oficial Maior da Secretaria, na forma do costume.
Eu já ponderei a V. Exa. Nos ofícios no. 13 e 15 a pouca
extração que atualmente tem nesta Capitania os ditos Im-

ções administrativas , judiciais ou militares; um era tenente geral dos Reais Exércitos;
dois, médicos, um dos quais acabou em 1820 lente da Faculdade de Medicina da
Universidade de Coimbra, desembargador do Paço, autor de inúmeras obras ligadas
à situação política do Brasil, às vésperas da Independência, e Mariano José Pereira da
Fonseca, enobrecido em 1825, apesar de ter sido preso por estar implicado na suposta
Conjuração Carioca de 1794. Outros dois também receberam título de nobreza e to-
dos foram agraciados com honras e grandezas, como as mercês das ordens militares.
Do conjunto, três censores foram sócios da Academia real de ciências de Lisboa, e
um do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, deixando mais de dois terços deles
escritos no mundo das letras”(NEVES, 1999, p. 674).
240
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

pressos pelo nenhum gosto que há de se aplicarem ao Es-


tudo das Artes e Ciências, de tal maneira que com muita
dificuldade se pode conseguir que os Estudantes que se des-
tinam à vida eclesiástica freqüentem os Estudos de Filosofia
e Retórica.
Ora, se estes Estudos tão essencialmente necessários a que
se destina o semelhante estado não demovem aos candidatos
a adquiri-los, que se poderá conjeturar a respeito da Lição de
Livros que bem que interessantes, entram, contudo na classe
dos úteis e curiosos, que só tem lugar na Ordem dos conhe-
cimentos depois dos necessários. [...] Nestes termos repre-
sento a V. Exa. Se digne não enviar para esta Capitania mais
remessa de Livros [...] que tenho todos expressado e na que
tenho de dirigir a Real Presença, mandando uma relação dos
que necessariamente se devem enviar para esta Capitania, ou
sejam compostos de novo, ou feitos vulgares pelas Tradu-
ções, ou pelas re-impressões; comprometendo-me contudo
a ver se posso dar saída aos que se acham por aqueles meios
que me parecem mais próprios e mais adequados a excitar
a curiosidade dos compradores, e tendo-o assim praticado,
imediatamente mandarei entregar ao mencionado Oficial
Maior da Secretaria de Estado a soma total do seu produto,
na forma que V. Exa. Me recomenda. D.s.g.e. a V. Exa. S. m.
Paulo 22 de Janeiro de 1801 – Ilmo e Ex.mo Snr’ D. Rodrigo
de Souza Coutinho – Antonio Manoel de Mello Castro e
Mendonça (apud SOUZA ARAÚJO, 1999, p. 151).
Não obstante, os livros melhor digeridos e mais comprados
pela população local ou eram traduções, feitas à guisa de Resumos, ou
eram obras clássicas, que tampouco garantiam a sua leitura no país.
Com a vinda da corte para o Brasil e a revogação do alvará
de 1785, que proibia a confecção de manufaturas no país, a impressão
foi permitida e impulsionada pelo fim da censura prévia em 1821, o
que incentivou a leitura no país. Conhecida como Junta da Impressão
Régia, e da Fábrica das Cartas de Jogar e depois como Impressão Nacional,
uma tipografia destinada à impressão de papéis oficiais foi criada logo
em maio de 1808. A partir de então, o país passou a ter também pro-
duções de gráficas locais, o que barateou o seu custo de circulação980.

9
Embora o trabalho de Hallewell (1985) ateste que Garnier enviava seus livros para
serem editados em Paris porque o custo desta impressão ficava mais barato, pequenos
folhetos de material muitas vezes “repreensível” aos olhos do governo tinham um
custo menor se fossem impressos em terras brasileiras.
241
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Para a leitura, havia, nos idos de 1820, além de alguns títulos como:
Assunção, de Frei São Carlos (1819), Salmos de Davi (1820), Poesias, de
José da Natividade Saldanha (1822), Poesias Avulsas de Américo Elísio, de
José Bonifácio de Andrada e Silva (1825), Poesias Oferecidas às Senhoras
brasileiras por um bahiano, de Domingos Borges de Barros (1825), entre
outros1081; folhas volantes com notícias avulsas, algumas delas suspen-
sas em 15 de janeiro de 1822, quando se proibiu a publicação de textos
anônimos1182.
Havia também os jornais: A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-
1822), A idade do ouro no Brasil (1811- 1823), As variedades ou Ensaios
de literatura – nossa primeira revista literária (ARAÚJO: 1999), com
apenas dois números (1812), O Patriota (1813- 1814), Correio Brazi-
liense (1808 – 1822), Aurora Pernambucana (1821), O Paraense (1822), O
conciliador do Maranhão (1821 – 1823), Conciliador do Reino Unido (1821),
O Seminário Cívico (1821 – 1823), Diário Constitucional Fluminense (1821
– 1822), Despertador Fluminense (1821), O Marimbondo (1822), O Correio
do Rio de Janeiro (1822 – 1823), O Tamoio (1823), A sentinela da liberdade
na guarita de Pernambuco (1823 – 1824), Typhis Pernambuco (1823- 1824),
Diário de Pernambuco (1825) e Aurora Fluminense (1827 – 1835). E ainda, o
Despertador Brasiliense, de Francisco de França Miranda; o Bem da Ordem,
de Francisco Vieira Goulart; o Revérbero Constitucional, de Joaquim Gon-
çalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa; a Sabatina Familiar, de José da
Silva Lisboa; A Malagueta, de Luís Augusto May; O amigo do rei e da nação,
de Custódio Saraiva de C. e Silva; o Diário do Rio de Janeiro, de Zeferino
Vito de Meirelles; o Regulador Brasílico-Luso, de Antonio José da Silva
Loureiro; o Compilador Constitucional, de José Joaquim G. do Nascimento
e João Batista Queiroz; O papagaio, de José Moutinho Lima A. e Silva ; e,
por fim, O macaco brasileiro, de Manuel Inácio Ramos Zuzarte.

10
Neves dispõe, no Quadro intitulado Obras impressas no Rio de Janeiro: 1808 –
1822, as quantidades: jurisprudência,50; ciências e artes, 127; belas letras, 397; história,
206; teologia, 35; periódicos, 38; documentos oficiais, 347. O total era de 1.200 obras.
(NEVES, 2003, p. 35).
11
Gladys Ribeiro (2002) informou que estes folhetos eram responsáveis por uma
disputa entre portugueses e brasileiros. A depreciação dos brasileiros, por meio das
ofensas de que o Brasil era uma “Terra de macacos, pretos e serpentes” e, em contra-
partida, de que Portugal era “uma terra de lobos, galegos e raposas” começou com
o decreto de 28 de agosto de 1821, que abolia a censura prévia e cessou com o de 15
de janeiro de 1822.
242
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O jornal de maior circulação entre os cariocas, segundo Tho-


mas Ewbank1283, era o Jornal do Comércio. Sua periodicidade era diária,
salvo os dias santos. O tamanho de suas folhas era de 73 x 55 cm
e, no momento de sua chegada, em 1845, Ewbank constatou que o
jornal citado já circulava há 21 anos. O custo de sua assinatura anual
era de 20 mil réis na cidade e 24 mil no campo. Dada sua circulação,
possuía um número maior de anúncios de toda qualidade. Embora
Thomas Ewbank tenha notado o pouco interesse do brasileiro pela
leitura, Ferdinand Denis documentou sua surpresa quanto ao cres-
cimento da imprensa no Brasil entre 1808 e 1823, sobretudo, no Rio
de Janeiro. Para ele, “é quase impossível acreditar que há vinte anos
somente, nenhum jornal existia em uma nação em que mais de trinta
periódicos hoje circulam livremente e são lidos em uma só cidade”
(DENIS, 1980, p. 113).
Estes, porém, não eram os únicos títulos a circularem no Rio
de Janeiro do primeiro quartel oitocentista. Pelas mãos dos cariocas do
período joanino também passavam alguns jornais britânicos, franceses
e alemães. Seu acesso, entretanto, era menos corrente; dependia de
uma encomenda ou de uma sala de leitura, como a sala Bernie, na rua
Direita. A maioria dos assinantes desta sala, segundo a informação de
Ernest Ebel, era de ingleses e ali podiam ser encontrados quase todos os
diários ingleses e um par de franceses, além do Correspondent, de Hamburgo.
As principais livrarias ou editoras1384 eram: a loja do Diário,
na rua da Quitanda; a da tipografia dos Anais Fluminenses, na Praça

12
Thomas Ewbank deixou Nova Iorque em destino ao Brasil em 02 de dezembro de
1845 e, para ele, o mais importante detalhe da vida pública e privada que aí temos foi
assim anotado: “No Brasil, por toda parte encontra-se a religião ou o que receba tal
nome” (EWBANK, 1976, p. 18).
13
“No entanto, o mais afortunado dos editores brasileiros no primeiro quartel do
século XIX, aquele que combina os ofícios de impresso, livreiro e divulgador do livro,
é mesmo Manuel Antonio da Silva Serva, português de Vila Real de Trás-os-Montes,
instalado na Bahia desde 1797, vendendo móveis e posteriormente livros importados
da Europa. Em 1809, Silva Serva consegue licença para trazer uma impressora de
Londres, graças aos esforços do Conde dos Arcos. Começa a editar em 1811, com o
Plano para o estabelecimento de uma biblioteca pública na cidade de S. Salvador, em
4p., mais um prospecto para jornal e uma Oração gratulatória do Príncipe Regente,
por Inácio José de Macedo, em 11 páginas. Daí Silva serva salta para o jornalismo
periódico com A Idade d’Ouro do Brasil e As Variedades ou Ensaios de Literatura, desen-
volvendo, em termos particulares, a mais produtiva trincheira de popularização da
leitura no Brasil Oitocentista” (SOUZA ARAÚJO, 1999, p. 194).
243
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

da Constituição e a da Imprensa Nacional, no acesso ao Passeio Públi-


co. Identificadas com seus donos, havia: a loja de Paulo Martim, que
ficava na rua da Quitanda; a de Francisco Saturnino Veiga, na rua da
Alfândega; a de Manuel Joaquim da Silva Porto, na rua da Quitanda; a
de Antonio José da Silva, na rua Direita; a de Jerônimo G. Guimarães,
na rua do Sabão; a de Francisco Nicolau Mantillo, na rua da Quitanda;
a de João Batista dos Santos, na rua da Cadeia; a de Joaquim Antonio
de Oliveira, na rua da Quitanda e a de Antonio Joaquim da Silva Gar-
cez, na rua dos Pescadores. Outros estabelecimentos aproveitavam
o espaço existente para oferecer as publicações do dia, como Costa
Guimarães, na loja de papel de Campos Bello e Porto, J. Lopes Coelho
Coutinho, José Domingues Bastos, Anoel Alves do Santos e Compa-
nhia, Manuel Luís de Castro, Manoel Rodrigues Chaves, Cipriano José
de Carvalho, a loja de ferragens de José Bernardo de Sá, a botica de
David Pamplona e o Armazém Francês. O Hospício de Nossa Senhora do
Patrocínio oferecia, na rua das Marrecas, literatura religiosa (NEVES:
2003). Esses espaços serviam, além de pontos de venda de livros e
periódicos, como lugares de encontro da população e de certa troca
de idéias.
O perfil dos leitores deste primeiro quartel do século XIX era
de negociantes, boticários, cirurgiões, padres, médicos e bacharéis. Os
livros à que estes leitores tinham acesso possuíam, em sua maioria,
dois formatos: in-oitavo, com 16,5 x 10,5 cm; e o mais vendido, longo
in-doze, com 17,5 x 11,0 cm. As edições continham um número máxi-
mo de 500 exemplares de cada título. Uma tiragem maior representava
o risco de uma mercadoria encalhada, pois, mesmo após a reinvenção
promovida no cotidiano do Rio de Janeiro com a chegada da Corte, a
literatura ainda não possuía um público substancial na cidade.
A formação de um público para a incipiente literatura produ-
zida no Rio de Janeiro do primeiro quartel do século XIX dependia da
educação e dos costumes locais. A dificuldade de acesso à leitura, de-
corrente da ausência de espaços e meios pelos quais o conhecimento
pudesse ser disseminado em vias impressas, resultou na completa falta
do hábito da leitura. Embora o Rio de Janeiro apresentasse condições
de acesso ao saber muito melhor do que em outras Províncias e a
transferência da corte tenha significado uma reinvenção de seu coti-
diano, propiciando mais acesso à informação, a maior parte de sua po-
pulação ainda era de poucos estudos, senão de analfabetos. Destarte, a
244
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

população teve de se “acostumar” com os espaços de cultura criados


por D. João VI. Como não havia outra opção a igreja, antigo espaço de
predileção da população local, serviu como o lugar de contato com a
corte. Tal contato serviu para despertar no brasileiro um sentimento de
distinção em relação ao estrangeiro, que propiciou um primeiro passo
rumo à identificação do que era ser brasileiro. Ora, o único lugar que
era “publicamente” freqüentado por grande parte da população do
Rio de Janeiro desde antes de 1808 era a igreja, o que levou Ferdinand
Denis a comentar:
São sete horas, entrai em qualquer igreja, na dos Terceiros,
por exemplo, que é situada perto do palácio; vede o povo
apinhar-se, a escuridão é quase completa, não distingue o
coro, que largos panos ocultam. De repente, o sacerdote
sobe ao púlpito e, depois de alguns instantes de recolhi-
mento, começa seu sermão da paixão. Já se disse que o
povo brasileiro era um povo de oradores, e, com justiça,
se lhe podem aplicar estas belas palavras de um dos nossos
maiores escritores, que disse que a eloqüência não está
somente em quem fala, mas também em quem ouve.
Quaisquer que sejam as disposições com que no templo se
entre, impossível é não sentir emoção a cada uma dessas
palavras, que disputam na alma a lembrança de um sacri-
fício, e que convidam ao arrependimento, mas, quando,
depois de haver feito a enumeração das dores de Cristo e
suas ignomínias, o sacerdote de repente exclama: Eis aqui
o vosso Senhor, que haveis matado – deixando cair a grande
cortina, em que Jesus aparece deitado no túmulo rodeado
de seus discípulos, e guardado pelo soldado romano, é im-
possível não se sentir emocionado pelo frêmito religioso
que percorre a assembléia e somente então se compreende
o que deviam ser esses grandes dramas religiosos da Idade
Média, que se dirigiam a povos crentes, e que consagravam
de qualquer modo o dia em que eram executados (DENIS,
1980, p.145, grifos em negrito nosso).

Esse “povo de oradores” tinha na figura do sermonista um


modelo a ser seguido e um tema a ser debatido, pois sua presença e
sua fala serviam como mote para as primeiras discussões acerca dos
acontecimentos que afligiam a população. Nesse sentido, o pregador
falava e ouvia as preocupações da população que habitava o Rio de Ja-
neiro no primeiro quartel do oitocentos. A sermonística foi, portanto,
um ramo das Belas Letras no Brasil oitocentista que contribuiu para a
245
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

invenção da identidade nacional porque propiciou, entre outras coisas: a


criação de uma vida social, a uniformização da linguagem, e a afirma-
ção de um público acostumado a ouvir escritos mais elaborados. Para
mais, um modelo de postura intelectual e um tema, a pátria, para as
discussões locais. Em síntese, “a inteligência local deve à atividade dos
púlpitos nada menos que a demarcação inicial do lugar que a literatura
e o literato ocupariam no meio social carioca do oitocentos” (FRAN-
ÇA, 1999, p. 110). Destarte, a figura do sermonista, estaria abrindo
precedência para uma atividade que ainda não existia de forma siste-
mática no Brasil: o pensamento acerca do próprio Brasil. A sermonís-
tica criou a opinião pública com que dialogariam os literatos.

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Artigo recebido em julho 2007 e aceito para publciação em agosto 2007.

249
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O JESUÍTA E O HISTORIADOR:
UMA REFLEXÃO ACERCA DO CONHECIMENTO
HISTÓRICO PRODUZIDO POR LUIS PALACÍN
85
Rogério Chaves da Silva1

Resumo: O objetivo desse artigo é Abstract: The objective of this


analisar como a formação jesuítica de article is to analyze as the Jesuiti-
Luis Palacín Gómez influenciou em cal formation of the Luis Palacín
sua prática como historiador, seja na Gomes influenced in practical on
escolha dos objetos pesquisados ou his as historian, either in the choice
na forma como representou narrativa- of the researched objects or in the
mente o passado humano. form as it represented in a narrative
Palavras-chave: Luis Palacín, jesuítas, way the human past.
conhecimento histórico. Key-words: Luis Palacín, jesuits,
historical knowledge.

Enquanto seres imersos em um mundo cultural, os homens


precisam agir e o requisito da ação é que nela residam intenções. A
ação humana no mundo se realiza, então, mediante a interpretação
que o homem constrói de si mesmo e do universo que o circunda: ele
se coloca para além do que ele e o seu grupo são no presente imedia-
to, estabelecendo um quadro interpretativo do que experimenta como
mudança de si mesmo e de seu mundo, para poder agir no decurso
temporal. Buscando orientação diante dessa experiência no tempo, os
seres humanos recorrem, permanentemente, ao passado para preen-
cherem seu quadro de interpretações da vida atual. Essa rememoração
do passado se realiza com respeito à experiência do presente, por isso,
articula-se diretamente com as expectativas de futuro, que se formu-
lam a partir das intenções e das diretrizes do agir humano. Essa es-
treita interdependência entre passado, presente e futuro, é concebida
como uma representação de continuidade que serve como orientação
da vida humana. Logo, como um fenômeno intrínseco à condição hu-
mana, o pensar histórico torna-se algo cotidiano e inseparavelmente
ligado ao fato de estar no mundo, pois emerge de determinados pro-
cessos da vida prática.
O pensamento histórico se manifesta, justamente, nessa tare-

1
Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: rcmc26@bol.com.br
251
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

fa, realizada pelos homens, de olharem e voltarem ao passado a fim de


poderem seguir em frente em seu agir. Esse resgate do passado pela
lembrança histórica possibilita que sejam clarificados efeitos dele no
presente e, ao mesmo tempo, estimula uma extensão da consciência
subjetiva da historicidade, pela qual o agir e o sofrer humanos se dei-
xam orientar. Enquanto uma modalidade do pensamento histórico,
a ciência da história também realiza o trabalho de orientação da vida
prática, o que significa, a priori, uma rememoração do sentido do pas-
sado, pois consiste em uma forma de interpretação do mundo huma-
no em que esse passado é chamado à tona para esclarecer o presente
e tornar o futuro esperável. Portanto, o pensar histórico encontra-se
intimamente ligado à problemática de sentido da vida humana, tendo
em vista que o próprio conhecimento histórico se mostra subordina-
do aos contextos de orientação nos quais é produzido e aos quais se
destina.
Considerando, então, que Luis Palacín286 tratava-se de um ho-
mem que lidava com a construção de conhecimento histórico, é per-
ceptível a estreita relação existente entre seu interesse cognitivo com
respeito ao passado e o contexto de demandas por sentido oriundo
de sua vida pessoal. Embora seja a história de Goiás, por sua estada
de quase quarenta anos no estado, o grosso calibre do arsenal histo-
riográfico palaciniano, outro tema que se mostra “caro” ao universo
cultural desse historiador, refere-se a questões relativas à Igreja Católica,
em especial, à Companhia de Jesus.
A afinidade de Palacín com a ordem religiosa a qual perten-
cia, revela outra faceta das inquietações pessoais desse pesquisador

2
Nascido em Valladolid, aos 21 dias do mês de junho de 1927, Luis Palacín Gómez
ingressou, com 17 anos, na Companhia de Jesus, mais precisamente no Noviciado de
San Estanislau, em Salamanca. Durante os anos de 1948 e 1951, cursou licenciatura
em Filosofia pela Universidade Pontifícia de Comillas; entre 1951 e 1954, dedicou-se ao
curso de História nas Universidades de Salamanca e de Santiago de Compostela, sendo que,
de 1954 a 1958, diplomou-se em Teologia pela Universidade de Comillas. Em 15 de julho
de 1957, foi ordenado sacerdote na cidade de Comillas e pouco depois, já em 1958,
foi transferido por seus superiores ao Brasil, onde realizou sua Terceira Provação. No
início da década de 1960, veio para Goiás, evangelizar e ministrar aulas pela Univer-
sidade Católica de Goiás. Posteriormente, também ingressou na Universidade Federal de
Goiás, onde foi um dos responsáveis pela consolidação do curso de pós-graduação
em História. Entre os anos de 1965 e 1967, fez seu doutoramento pela Universidade
Complutense de Madri. Desde que chegou à cidade de Goiânia, Palacín adotou-a como
um novo lar, permanecendo até sua morte em 1998.
252
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

e que acabam aflorando em suas obras. Somente após um contato


mais próximo com os textos palacinianos, somado ao conhecimento
de aspectos de sua vida pessoal, é que essa relação vai ganhando ni-
tidez. Dentro dessa perspectiva, proponho-me a realizar uma análise
da relação entre vida pessoal e produção de conhecimento histórico,
ou, de modo mais definido, como o fato de ser um jesuíta influenciou,
sobremaneira, na forma como Palacín produziu o conhecimento his-
tórico. Para corroborar essa assertiva, utilizarei as seguintes obras e
artigos palacinianos: Sociedade colonial: 1549-1599; Subversão e corrupção:
um estudo da administração pombalina em Goiás; Vieira e visão trágica
do Barroco: quatro estudos sobre a consciência possível; Vieira: entre
o reino imperfeito e o reino consumado e Quinto império: a utopia de
século férreo.
Iniciando essa empreitada, começarei com sua primeira obra
dos anos 1980: Sociedade colonial: 1549-1599. Esse estudo, publicado
em 1981, trata-se, em termos gerais, de uma análise da formação das
estruturas básicas da sociedade colonial, nos cinqüenta anos que vão
desde a instalação do Governo Geral, em 1549, até quase o fim do
século. Além de dar visibilidade ao que se poderia chamar de “mode-
lo colonial brasileiro”, caracterizado, sobretudo, por uma economia
agrícola, fundamentada na escravidão, no latifúndio e voltada para o
mercado externo, além de uma estrutura social de caráter estamental
e de mentalidade aristocrática. Palacín trabalha com outra face da co-
lonização: o choque cultural entre europeus e sociedades indígenas do
Brasil.
Dentro da premissa que embasa esse artigo, o primeiro aspec-
to dessa obra que merece destaque é a tentativa, por parte de Palacín,
de reconstruir a experiência missionária dos jesuítas no Brasil, durante
a segunda metade do século XVI. Subjacente à proposta de analisar as
estruturas básicas da sociedade colonial, o livro retrata, com bastante
intensidade, os conflitos, os dramas, as realizações, as derrotas e êxitos
da Companhia de Jesus nesses primeiros cinqüenta anos de sua estada
no Brasil.
O primeiro elemento que atesta essa proposição é a predomi-
nância de fontes originárias da Companhia de Jesus ou de textos historio-
gráficos referentes a essa ordem: o epistolário e outros documentos
relacionados aos missionários jesuítas (Manuel Nóbrega, José de An-
chieta, Fernão Cardim), a história da fundação dos colégios da Bahia,
253
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

do Rio de Janeiro e da capitania de Pernambuco, obras do padre Sera-


fim Leite, além de outras fontes extraídas do Archivum Romanum Socie-
tatis Jesu, ARSI, de Roma. O próprio Palacín assume que, nessa obra,
predominou o uso de documentos jesuíticos:
Atendendo à origem, as fontes manuscritas conservadas
para este período são quase em sua totalidade oficiais – do
governo central e seus organismos e dos governos locais,
e religiosas – dos jesuítas principalmente. Não é, pois, de
estranhar que estes documentos se encontrem hoje nos
arquivos públicos e dos jesuítas. [...] A documentação dos
jesuítas, - um acervo de mais de quinhentos documentos –
se refere, em primeiro lugar à vida religiosa e à história da
própria ordem. Mas por estar a ação dos jesuítas voltada
principalmente à conversão dos índios e ao ensino, esta
documentação é também fundamental para o referente
às relações inter-raciais e a educação (PALACÍN, 1981, p.
321).
Por seu pertencimento a essa ordem religiosa, o acesso aos
arquivos jesuíticos era facilitado em termos de pesquisa. Além disso,
é preciso considerar toda relação histórica da Companhia de Jesus com a
educação e, sobretudo, com o ensino superior,387 o que viabilizava pes-
quisas que se valessem desses documentos. Todavia, a questão central
não se traduz somente no amplo uso dessas fontes, mas à forma como
as mesmas foram utilizadas, servindo de base para a escrita desse tex-
to. Em um trecho que citarei a seguir, Palacín demonstra que a história
da Companhia no Brasil, durante o século XVI, ocupa lugar privilegiado
em “seu olhar” sobre a sociedade colonial:
Em capítulos anteriores foram já considerados alguns dos
marcos mais importantes da múltipla ação dos jesuítas no
Brasil: conversão dos índios, luta pela sua liberdade, fun-
dação e gestão das aldeias, fundação das escolas e colégios.
Aqui procurarei esboçar alguns dos traços fundamentais
de sua própria evolução interna, e sua inserção na socieda-
de incipiente (PALACÍN, 1981, p. 243).
Outro elemento digno de destaque é o recorte temporal feito
por Palacín: 1549-1599. Cinqüenta anos, desde a vinda do primeiro
3
A Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), a Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS-RS), a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP-PE) são
exemplos de instituições universitárias de direção jesuítica.
254
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

governador-geral para o Brasil, Tomé de Souza, até quase o final do


século. Depois de uma leitura mais atenta à obra, percebe-se que a elei-
ção desse recorte inicial, 1549, não foi aleatória e, ao mesmo tempo,
não retrata somente a preocupação do autor em analisar essas quatro
décadas do “período colonial brasileiro”, tendo como ponto de parti-
da a instalação do Governo Geral. Palacín, no decorrer de toda obra,
tenta enfatizar que aquele ano, 1549, foi importante também devido à
chegada da Companhia de Jesus ao Brasil. Dentre as diversas vezes que
autor cita e enfatiza essa data como marco da chegada nos inacianos
em terreno brasileiro, salientarei alguns trechos:
Os Jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, ao instituir-se o
Governo Geral. Vinham com a missão, se não exclusiva,
porém preponderante, de dedicar-se à conversão dos ín-
dios (PALACÍN, 1981, p. 111).

Seis foram os chegados em 1549, com o primeiro Gover-


nador, Tomé de Souza. No catálogo de 1562-68, aparecem
já sessenta e um jesuítas, deles trinta e sete entrados no
Brasil (PALACÍN, 1981, p. 242).

A terra a que chegaram os jesuítas em 1549, era uma terra


semi-selvagem, e que precisava mais de um revulsivo mo-
ral, que de luzes doutrinais (PALACÍN, 1981, p. 247).

Ao chegarem os jesuítas ao Brasil, em 1549, a moral como


vida, e mesmo como ideal encontrava-se numa ruína total.
As primeiras cartas traduzem o horror dos missionários ao
constatarem a situação (PALACÍN, 1981, p. 273).

Assim, quando em 1549 chegaram os jesuítas, o quadro


não podia ser mais desencorajador para eles (PALACÍN,
1981, p. 274).

Foi preocupação imediata dos jesuítas, ao chegarem em


1549 com o governador Tomé de Souza, ir abrindo escolas
de “ler e escrever” em todas as povoações onde adquiriam
residência (PALACÍN, 1091, p. 287).

O realce dado por Palacín não se destina, per si, ao ano de che-
gada dos jesuítas no Brasil, dirige-se, igualmente, ao ambiente de total
“imoralidade”, do ponto de vista cristão, que os missionários encon-
traram em 1549. Há uma clara distinção da realidade brasileira em dois
255
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

períodos: antes e após 1549. Essa diferenciação se manifesta pelas


idéias de ausência e presença: antes de 1549, a ausência de um eficaz
regulador moral na vida da colônia, depois, a presença da Companhia
de Jesus que, mesmo num ambiente com muitas adversidades naturais e
culturais, estava ansiosa por normatizar moralmente, a partir de ideais
cristãos, a vida no Brasil dos quinhentos. Algumas passagens de Pa-
lacín são esclarecedoras quanto a esses dois momentos distintos e à
“dura” missão dos jesuítas em ordenar moralmente a vida no Brasil:
Seguramente, não há um testemunho mais expressivo do
agigantamento espiritual dos primeiros jesuítas chegados
ao Brasil, da impressão quase lendária que deixaram atrás
de si, que o transmitido pelo primeiro Governador, Tomé
de Souza, à sua volta à pátria (PALACÍN, 1981, p. 245).

A evidente falta de preparação intelectual dos sacerdotes


nos primeiros anos, compensada por sua grandeza moral,
encaixava perfeitamente dentro da situação da colônia e da
província jesuítica (PALACÍN, 1981, p. 247).

Na realidade, embora Nóbrega não o percebesse por


sua paixão e proximidade, tinha-se chegado ao equilíbrio
possível, que duraria por muitos anos, entre as forças dis-
solventes e as moralizadoras: não voltaria o concubinato
público e múltiplo à luz do dia, como até 1549, mas con-
tinuaria mais velado à sombra da presença doméstica das
escravas, da promiscuidade dos engenhos e fazendas, da
primeira liberdade que havia presidido o nascimento da
colônia, do sangue mestiço que por ela corria(PALACÍN,
1981, p. 277).
Fica perceptível o tom de triunfalismo nas palavras do “his-
toriador jesuíta” quando descreve o esforço missionário dos primei-
ros representantes de sua ordem no Brasil. O autor não só exalta “a
grandeza moral” dos jesuítas que chegaram ao Brasil, como também
enaltece a participação da Companhia na formação da sociedade bra-
sileira, nesse primeiro século de colonização, tanto do ponto de vista
religioso, como do político:
Assim, não só por seu peso numérico, mas, sobretudo, por
sua distribuição e ocupação de todos os pontos nevrálgi-
cos, por sua coesão interna e pela continuidade de suas
empresas, a Companhia de Jesus representa uma das pre-
senças fundamentais para a formação da sociedade brasi-
256
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

leira neste primeiro século da colonização. Sua influência


foi principalmente, como é lógico, de caráter religioso e
moral, de formação e cultura, mas teve também um alcan-
ce incalculável na ordem política. Numa costa tão extensa,
com pouquíssima intercomunicação regional, com admi-
nistrações locais quase autônomas, a Companhia represen-
ta mais que nenhuma outra instituição, a consciência uni-
tária. Com seu freqüente intercâmbio de pessoas, sua con-
tínua correspondência e divulgação de notícias, as visitas
periódicas de provinciais e visitadores percorrendo o país
todo, a Companhia é, indubitavelmente, nestes primeiros
anos, uma das influências mais decisivas para manter vivo
o sentimento de unidade (PALACÍN, 1981, p. 243).
Outro aspecto que demonstra a herança jesuítica de Palacín
influenciando em seus recortes temáticos, diz respeito à forma como
ele ressalta os impactos culturais sofridos pelas sociedades indígenas
durante o processo de colonização. É importante considerar a relação
histórica construída entre a Companhia de Jesus e os índios no Brasil
e que remonta os primeiros anos de colonização. A partir desse elo,
compreende-se o foco de abordagem palaciniano na segunda parte
desse livro, intitulada de O choque de duas culturas: o impacto da colo-
nização sobre a sociedade indígena, na qual se incumbe da análise do
encontro conflituoso dessas duas culturas, enfatizando os impactos
sofridos pela sociedade indígena.
O modo como ele elaborou seus tópicos certifica esse foco
de abordagem: “A conquista e a destribalização dos tupis”, “A degra-
dação dos índios pela conquista”, “A escravização dos índios”, “A luta
pela liberdade dos índios”, “Causas da desaparição dos índios”, além
de outros. Interessante sublinhar que, nessa parte do livro, Palacín tra-
va uma verdadeira “batalha velada” com os etnólogos, que atribuem
ao cristianismo jesuíta uma grande parcela de responsabilidade sobre
a degradação cultural das sociedades indígenas durante a colonização
do Brasil. Ponto de vista esse, logicamente, negado por Palacín.
Em algumas passagens, além de trabalhar com os resultados
desse choque cultural, o autor busca analisar a atitude indígena ante a
colonização, tendo como base seu conhecimento sobre as especifici-
dades culturais dessas sociedades. Muitas vezes, o autor rechaça, com
explícito partidarismo, algumas explicações sobre o comportamento
dos índios à época da colonização. A primeira passagem que citarei
257
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

refere-se às impressões de Antônio Blazquez sobre a venda de paren-


tes realizada pelos índios, vista, por esse, como um comportamento
desleal; a segunda trata-se da concepção, já revista na historiografia
brasileira, sobre a inaptidão do índio ao trabalho, ou de sua possível
fraqueza para a execução das atividades inerentes ao processo coloni-
zador:
pôde Blazquez acusar os índios de que “entre eles não há
amor nem lealdade. Vendem-se uns aos outros, estimando
mais uma cunha ou podão que a liberdade de um sobrinho
ou parente mais próximo, que trocam por ferro, e é tanta
miséria que as vezes trocam-no por um pouco de farinha.
[...] Mas Blazquez procedia nesta acusação injustamente.
Registra um fato indubitável: a venda dos índios uns pe-
los outros. Daqui argúi a falta de amor e lealdade, e acusa
os índios de viverem quase como bestas. Mas Blazquez
se olvida de anotar, ao mesmo tempo, que este costume
tinha sido introduzido entre os índios pelos mesmos por-
tugueses, e era a antítese de suas antigas tradições fami-
liares. Todos os observadores sublinham o extremo amor
dos índios para com os filhos. Tanto que os missionários
encontravam dificuldade em que os deixassem ir viver com
eles para instruí-los, pois apesar de saberem que era para
seu bem, não podiam resignar-se à separação (PALACÍN,
1981, p. 58).

Não se tratava nem de fraqueza do índio, nem de falta


de capacidade para o trabalho. Da fortaleza e resistência
do índio temos inúmeros testemunhos. O esforço por ele
despendido na guerra, nas viagens por terra e por mar, sua
capacidade para tolerar privações, os recordes de forço,
agilidade e resistência por ele alcançados assombraram a
todos os cronistas. Mas o índio, capaz de qualquer esforço
momentâneo, era incapaz do esforço pretendido, da cons-
tancia, da uniformidade, da rotina. Enfermava psicológica
e fisicamente. Ou acabava fugindo, ou definhava até mor-
rer. Não havia para ele outra vida, senão sua vida errabun-
da, em completa liberdade. E não há tirania maior que a do
trabalho diário (PALACÍN, 1981, p. 79).
O livro Subversão e corrupção: um estudo da administração pom-
balina em Goiás, de 1983, também revela essa afinidade entre o jesuíta
Palacín e os objetos históricos selecionados em suas pesquisas. Nessa
obra, o autor destaca o valor de alguns documentos, dentre os vários
258
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

que pesquisou e que serviram de base para esse estudo: as Instru-


ções de Sua Majestade (D. José) ao novo governador da Capitania de
Goyaz, João Manuel de Melo; a devassa realizada pelo desembargador
Brandão, juiz sindicante, que presidiu a investigação para apurar ir-
regularidades administrativas na capitania de Goyaz durante a gestão
do Conde de São Miguel, além de escritos desse desembargador ao
governo português.
Nesse universo documental, ele escolheu um evento histórico
específico: as instruções dadas pelo Ministro Pombal a João Manuel de
Melo, com vistas a abortar o plano de subversão dos jesuítas e instau-
rar um processo de investigação dos crimes de corrupção praticados
contra a administração no governo do Conde de São Miguel. Nova-
mente, Palacín seleciona um tema que tangencia a história dos jesuítas
no Brasil e, mais do que isso, analisa a administração de um perso-
nagem que marcou, sobremaneira, a própria história da Companhia de
Jesus: o Marquês de Pombal. Debruçar-se sobre a política de Pombal
era encarar uma “ferida aberta” na história dessa ordem religiosa, pois
o ataque frontal desse ministro à Companhia não se resumiu ao mundo
português. A repulsa pombalina pelos jesuítas se materializou, gradati-
vamente, com a proibição dos jesuítas de dirigirem as aldeias no Brasil
(1758), pela expulsão desses religiosos do reino português e de suas
conquistas (1759) e, posteriormente, em seu auxílio no banimento dos
mesmos dos territórios da França e da Espanha (1762), além, é claro,
de contribuir para a extinção da ordem, em 1773.
Com certeza, analisar o alcance da política pombalina em Goi-
ás converteu-se num desafio a Palacín quando encontrou essas fontes
sobre história de Goiás e que acabavam se relacionando com as ações
desse ministro. Nos escritos desse jesuíta, as adjetivações, mescladas
com certo tom de ironia, salientam o quanto Pombal representa uma
“ferida aberta” na história da Companhia:
chama a atenção no caso da ação contra os jesuítas em
Goiás é a extrema desproporção entre a declaração de mo-
tivos e os fatos (PALACÍN, 1983, p. 9).

chega-se ao extremo de permitir que seja empregado ouro


do quinto (sempre intocável) na ajuda a Mato Grosso
contra o avanço jesuíta, “porque a tudo deve prevalecer a
defesa e segurança da importantíssima fronteira de Mato
Grosso. [...] somos levados a pensar que os jesuítas consti-
259
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tuíam em Mato Grosso e Goiás uma verdadeira potência,


capaz de por em perigo a mesma existência do estado. A
realidade é decepcionante: a presença dos jesuítas em Goi-
ás e Mato Grosso era pouco mais que simbólica. [...] Tanto
o governo em Lisboa, como os governadores em Goiás,
insistem em criar em manter o mito do perigo jesuíta. A
história dos aldeamentos dos jesuítas em Goiás, porém, é
breve e melancólica (PALACÍN, 1983, p. 09)

a situação com respeito aos jesuítas estava bem clara no iní-


cio de 58: só um jesuíta ficava no norte, e fora das aldeias
que se tinham esvaziado depois da revolta; outro ficava nas
aldeias do sul – aldeias quase extintas após quinze anos de
guerra contra os caiapós – incompatibilizados com João de
Godoy, administrador das aldeias. Estes dois jesuítas cons-
tituíam, sem dúvida, o perigo extremo contra a segurança
do estado, encarecido pelas instruções de outubro de 1758
(PALACÍN, 1983, p. 14).
O grande interesse de Palacín pelo pensamento do Padre An-
tônio Vieira é outro indício da aguda relação desse historiador com a
história da Companhia de Jesus. Essa “curiosidade” pela vida e obra do
Padre Antônio Vieira pode ser atestada por suas diversas publicações
sobre o pensamento desse religioso luso: Vieira e visão trágica do Barroco:
quatro estudos sobre a consciência possível e Vieira: entre o reino
imperfeito e o reino consumado, além dos artigos, Quinto Império: a
utopia de século férreo e Vieira: do homem ideal ao homem social-
mente realizado.
A estreita ligação de Palacín com sua ordem religiosa não é
perceptível somente nos objetos os quais elegeu para pesquisa, mas
também na forma como representou narrativamente o passado huma-
no. O trabalho com temas e fontes muito próximas de seu universo
cultural conduziu-o a uma postura em que suas concepções pessoais
afloraram em meio aos objetos em estudo. Falar de Vieira era dis-
correr sobre a própria história da ordem religiosa a qual fazia parte.
Debruçar-se sobre Pombal era tocar em uma “ferida aberta” na his-
tória dos jesuítas. Analisar os impactos culturais sobre as sociedades
indígenas, durante o processo de colonização, era enfrentar o desafio
de refletir sobre a parcela de responsabilidade da Companhia de Jesus na
“aculturação” ou no próprio desaparecimento de alguns povos indí-
260
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

genas. Indiscutivelmente, temas “caros” a sua atmosfera valorativa e


que o fizeram expor, em determinados momentos, uma identificação
ou oposição frente aos sujeitos históricos em estudo, seja indivíduos,
circunstâncias ou idéias.
Essas identificações ou oposições aparecem nos textos palaci-
nianos, dos anos 1980 e 1990, de forma explícita ou latente, conforme
o tema analisado. Em suas obras sobre Vieira ou nas pesquisas que
tratam de assuntos relacionados ao cristianismo, à Igreja Católica e, em
especial, à Companhia de Jesus, Palacín demonstra essas tendências de
aproximação e distanciamento. Para a compreensão dessa postura pa-
laciniana, começo com um trecho de Vieira e a visão trágica do Barroco:
quatro estudos sobre a consciência possível:
um homem de extraordinária inteligência, que se tinha a si
mesmo como um dos políticos mais sagazes de sua época,
e se gloriava de uma experiência européia, que o elevava
definitivamente sobre o meio provinciano de sua nação,
e que, contudo, não vacilou em predizer publicamente a
ressurreição de D. João VI, por estar destinado por Deus a
instaurar o Império Universal, tendo como base as estrofes
sem sentido de um profeta leigo e analfabeto (PALACÍN,
1986a, p. 19).
Nessa obra, Palacín apropria-se do conceito de “consciência
possível” de Lucien Goldmann488. Esse conceito consiste, em termos
gerais, num verdadeiro exercício de se evitar o anacronismo, pois
busca-se compreender como os condicionamentos sociais podem in-
fluenciar na “visão de mundo” de um determinado sujeito histórico.
Por meio desse constructo conceitual, Goldmann (1974) preocupa-se
em situar os objetos no tempo e no espaço, considerando suas espe-
cificidades no campo da realidade e das idéias. No tocante a Palacín,
apesar dessa apropriação, o sentido do conceito de Goldmann (1974)
acabou lhe escapando, algumas vezes, em sua análise acerca do pensa-
mento de Vieira.
Primeiramente, Palacín destina, mesmo que de forma latente,

4
Segundo Goldmann (1974), o historiador e o sociólogo devem levar em conta o má-
ximo de consciência possível das classes que constituem a sociedade a ser analisada,
ou seja, o limite extremo de percepção da realidade que os condicionamentos sociais
impõem a um indivíduo ou a uma classe.
261
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

uma crítica a Vieira ao afirmar que um homem, que se vangloriava de


sua experiência européia, acabou prenunciando a ressurreição de D.
João IV e um futuro reino cristão (o Quinto Império), que tinha como
base os versos de um “profeta leigo e analfabeto”. Interessante é notar
que o próprio Palacín, em uma passagem anterior, afirmara que, em
meio ao domínio castelhano sobre Portugal, muitas profecias pulula-
vam naquele ambiente, prova disso, era o sebastianismo.
Entretanto, causou estranheza ao historiador espanhol o fato
de um cristão, do quilate intelectual de Vieira, pudesse predizer a res-
surreição de um ser humano e, concomitantemente, profetizar um fu-
turo império cristão, de direção lusitana, tendo como base as estrofes
de um “analfabeto”.589 Esse “estranhamento” palaciniano demonstra
sua oposição à atitude de seu companheiro inaciano dos seiscentos.
Além disso, mostra que sua impressão pessoal sobre a postura do jesu-
íta português se sobrepôs, neste aspecto, à análise das especificidades
culturais nas quais Vieira estava inserido.
Um detalhe que merece realce é que, alguns anos depois de
Vieira e a Visão Trágica do Barroco, de 1986, quando da publicação de
Vieira: entre o reino imperfeito e o reino consumado, de 1998, Palacín faz uma
espécie de “confissão de culpa” ao admitir que essa impressão sobre
Vieira fosse fruto de um “pecado historiográfico”, o anacronismo,
pecado esse, ao que parece, pretendia se redimir:
A proposta e a defesa do Quinto Império por parte de
Vieira nos confrontam com um fato insólito na história das
idéias. Constitui uma surpresa – quase um choque de cre-
dibilidade – para o leito atual de Vieira que “a mais notável
personalidade do mundo luso-brasileiro do século XVII”
(segundo Boxer) tenha defendido que um império cristão,
baseando-se, aparentemente, com exclusividade nas obs-
curas trovas compostas por um sapateiro quase iletrado de
uma vila remota do interior. Esse primeiro juízo, apressa-
do, deve-se à falta de familiaridade com o contexto histó-
rico por nossos parâmetros de objetividade. A surpresa do
primeiro momento converte-se mais tarde em admiração,

5
Esse “analfabeto” a que Palacín (1998) se refere trata-se de “O Bandarra” (1534-
1545), um sapateiro da Vila de Troncoso, na Beira. Vivia entre cristãos-novos e tirava
seus vaticínios do Antigo Testamento. Autor de diversas profecias sobre a Redenção
Portuguesa, as Coplas de Bandarra serviu de base para a elaboração da obra Esperan-
ças de Portugal, pelo Padre Antônio Vieira.
262
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

quando se constata que essa afirmação chocante de Vieira,


nos anos 40, não foi uma vacilação momentânea, senão
origem de uma contínua elaboração que durou cinqüenta
anos, até o fim de sua vida (PALACÍN, 1998, p. 77).
Outro tema tratado por Palacín e que, igualmente, demonstra
esse “estranhamento” com o comportamento do missionário portu-
guês do século XVII, é o da escravidão dos negros. Algumas passagens
comprovam a imposição de valores pessoais, por parte de Palacín, no
que se refere à postura vieirense quanto à escravidão dos africanos:
Não se pode dizer que faltassem a Vieira conhecimento
ou sensibilidade para perceber a tristíssima condição da
vida do escravo. [...] É realmente constrangedor, escrito
por um homem que tanto prezava a liberdade, o bilhe-
te escrito por Vieira respondendo a uma consulta de seus
superiores sobre se a ordem devia enviar um capelão ao
Quilombo dos Palmares, como era solicitado pelos negros:
depois de negar a conveniência, com quatro razões, acres-
centa: “Quinta, fortíssima e total, porque sendo rebelados
e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e atual,
de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de
Deus, sem se restituírem ao serviço e obediência de seus
senhores, o que de nenhum modo hão de fazer” (PALA-
CÍN, 1986a, p. 53-54).
Em uma simbiose complexa, o jesuíta e o historiador Palacín
se confundem ao emitir esse parecer. As adjetivações utilizadas pelo
pesquisador são claras. A “tristíssima” condição de vida do escravo,
do ponto de vista cristão, não fora denunciada pelo “soldado de Cris-
to” do século XVII. Foi “constrangedor” para o inaciano espanhol
que, um humanista como Vieira, defensor incondicional da liberdade,
respondesse negativamente ao pedido dos negros, aquilombados em
Palmares, quanto ao envio de um capelão. Assim, o sujeito cognoscen-
te, mais uma vez, impõe ao sujeito histórico suas impressões pessoais,
seus dramas de consciência. Tornava-se um incômodo o fato de que
um missionário da mesma ordem, independente da época, negasse
o envio de um religioso para um grupo que ansiava pela presença da
igreja. Novamente, a atitude de Vieira se constitui, para Palacín, num
“contra-exemplo” para a tradição cristã jesuítica a que ambos perten-
ciam.
É no exame da relação de Vieira com o protestantismo que
263
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

algumas concepções do jesuíta Palacín se tornam mais evidentes. Par-


tindo do limite da consciência possível, ele afirma que as manifesta-
ções de conservadorismo encontráveis no pensamento de Vieira fo-
ram resultado, em grande parte, dos conflitos religiosos que assolavam
a Europa durante o século XVII. O avanço do protestantismo e as
exigências das reformas tridentinas faziam com que a Igreja Católica
tivesse uma postura cada vez mais autoritária ante a um momento de
crise. Padre Antônio Vieira era filho desse tempo da Contra-Reforma.
Todavia, o mesmo historiador que localiza no tempo e no espaço as
razões históricas para a formação de uma tendência conservadora
dentro da Igreja, é o jesuíta que “cobra” de Vieira um “distanciamen-
to” que não era típico dos seiscentos:
Na explicitação de seu princípio de que “todas as heresias
nasceram dos vícios, Vieira chega aos limites da mais cega
unilateralidade quando se trata de Lutero e Calvino” (PAL-
CÍN, 1986b, p.72).

Suas referências à Reforma e aos reformadores evocam


inequivocadamente o clima de guerra, num clima de pro-
paganda cegamente emocional, vazado na extrema sim-
plificação e radical oposição das diferenças, a reduzir as
pessoas e opiniões do adversário aos mais grosseiros este-
reótipos. [...] De acordo com este sistema de simplificação
redutora, para Vieira todas as religiões não cristãs, e muito
especialmente as confissões protestantes, tiveram origem
nos vícios de seus fundadores. (PALACÍN, 1998, p. 71).
Palacín, então, acaba se esquivando de sua proposta metodo-
lógica, a aplicação do conceito de consciência possível, ao exigir de
Vieira uma “alteridade”, um “distanciamento”, que não estava posto
no século XVII. “Cobrar” diálogo de um missionário católico dos
seiscentos em relação a Lutero e Calvino fugia à “consciência pos-
sível” desse jesuíta português. Vieira, como já enfatizei, era um filho
legítimo da Contra-Reforma. A própria Companhia de Jesus se fortale-
ceu no seio desse movimento reacionário católico. Portanto, o Vieira
dos seiscentos, das guerras religiosas, da Contra-Reforma, não pode
ser considerado a um religioso do ecumenismo proposto pela Igreja
Católica, durante o final do século XX. Logo, a posição de Palacín em
relação a Vieira manifesta, justamente, um princípio de negação, na
qual o sujeito cognoscente revela sua diferença, sua oposição frente
264
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ao sujeito histórico, evocando, do passado humano, uma espécie de


“contra-experiência” a ser rememorada.
A postura de Palacín não é somente de negação às atitudes
dos inacianos do passado, há momentos de nítida aproximação, princi-
palmente quando reconstrói a experiência jesuítica durante o passado
colonial brasileiro. Um trecho da obra, Vieira: entre o reino imperfeito
e o reino consumado, mostra-se bastante profícuo para essa análise:
Essa denúncia dos abusos dos governantes e da prepo-
tência da autoridade, sua defesa dos injustiçados, índios,
negros, cristãos-novos constituem, sem dúvida, a grandeza
moral de Vieira. O leitor de suas obras percebe seu ódio ao
abuso do poder com os mais fracos, seu repúdio à prepo-
tência, à violência e à opressão. Estamos em presença do
que hoje chamaríamos um defensor dos direitos humanos?
(PALACÍN, 1998, p. 39).
Nessa passagem, há uma cristalina identificação moral de Pa-
lacín para com Vieira. Defender os humildes, denunciar os opresso-
res, repudiar as impunidades, são premissas básicas as quais qualquer
religioso, coerente com os preceitos do cristianismo, deveria seguir
e praticar. A denúncia dos males sociais presentes em Nóbrega, An-
chieta ou Vieira, por exemplo, fazem parte da cartilha inaciana desde
os tempos de sua fundação e, portanto, refere-se à tradição de uma
ordem que, pelas palavras de Palacín, buscava abraçar as exigências
morais da religião cristã.
O livro, Sociedade colonial: 1549-1599, também oferece frag-
mentos em que Palacín se identifica com a atitude dos jesuítas dos
quinhentos que estiveram no Brasil. Por parte do autor, é transpa-
rente o enaltecimento da experiência dos primeiros missionários da
Companhia que ficaram no Brasil, principalmente no que margeia as
privações, perigos, conflitos, dramas de consciência, enfim, todas as
dificuldades, seja no campo da realidade ou das idéias, as quais os
“soldados de Cristo” provaram em terreno brasileiro. Sob o espectro
desse “elogio” à vocação missionária dos jesuítas, há uma busca pela
afirmação de uma identidade apostólica, que seria típica dos jesuítas.
Por isso, todo o engrandecimento do esforço evangelizador
desses primeiros inacianos que, diante de tantas “adversidades”, lu-
taram pelos ideais cristãos que se “eternizaram” no tempo e se “ma-
nifestaram”, no caso de Palacín, sob a forma de uma sublimação da
265
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

experiência dos primeiros missionários que estiveram no Brasil. Para


patentear essa colocação, apresento alguns trechos escritos pelo espa-
nhol:
a pobreza dos padres, os enormes perigos e sofrimentos
da pregação, sua falta reconhecida de ambição e sua colos-
sal estatura moral faziam com que mesmo os contrariados
os aceitassem. [...] Seguramente, não há um testemunho
mais expressivo do agigantamento espiritual dos primeiros
jesuítas chegados ao Brasil, da impressão quase lendária
que deixaram atrás de si, que o transmitido pelo primeiro
Governador, Tomé de Souza, à sua volta à pátria (PALA-
CÍN, 1981, p. 245).

Os perigos, privações, sofrimentos físicos e morais de todo


tipo, que padeceram aqueles primeiros apóstolos, chega-
vam a superar abundantemente o que nos Exercícios, lar
espiritual de todos eles, tinham pedido em momento de
fervor e exaltação mística para o seguimento de Cristo
(PALACÍN, 1981, p. 249).
Não de forma autônoma, mas vinculada a esse engrandeci-
mento da “colossal estatura moral” dos primeiros jesuítas, Palacín tra-
va, em “Sociedade Colonial”, uma verdadeira “batalha velada” com
os etnólogos, principalmente no que concerne à responsabilidade que
esses atribuem à Companhia de Jesus em relação ao “declínio demo-
gráfico e cultural” das sociedades indígenas do Brasil. É nesse confli-
to no campo da argumentação racional, marcado pelo proselitismo,
que fica perceptível o anseio palaciniano por reafirmar uma identida-
de missionária, apostólica, arraigada de objetivos cristãos, típica dos
jesuítas. Convicção essa que o leva a se opor, de maneira incisiva, à
representação construída pelos etnólogos acerca da responsabilidade
da Companhia no que se refere à “degradação cultural” e “extinção”
dos índios durante o processo colonizador. Em uma mescla de “afir-
mação” e “negação”, Palacín exalta e critica: sublima o esforço dos
companheiros inacianos dos primeiros tempos e repudia as explica-
ções dos etnólogos sobre a culpa da igreja, em especial dos jesuítas, na
degradação cultural dos índios. Esse embate promovido por Palacín é
apresentado da seguinte forma:
Se as culturas indígenas se extinguiram, não foi tanto pela
ação direta da catequese, como parecem supor hoje mui-
tos etnólogos. Era algo inevitável. Os jesuítas estudaram,
266
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

propagaram e enriqueceram a língua tupi. Estudaram com


certo carinho e compreensão – os únicos desta época os
costumes dos índios, e seus valores peculiares, para fazer
mais efetivo o ensino da religião. Procuraram adaptar e en-
riquecer os melhores valores da cultura social dos índios:
sua generosidade, seus espírito comunitário, sua simplici-
dade, seus costumes. Extinguiram, é verdade, sem piedade,
o que julgavam contra “a lei natural ou lei da graça”. Mas
se é que contribuíram decisivamente à destruição das cul-
turas indígenas, é por haver tratado de inculcar ao índio
uma nova concepção de vida, sobre base totalmente dife-
rente. Se os antigos costumes persistem por algum tempo,
é mais como folclore, que como expressão de uma forma
integral de vida. Suas raízes tinham sido cerceadas, e isto
era inevitável. Pensemos, por exemplo, no significado que
podiam ter as danças e ritos antropofágicos sem antropo-
fagia (PALACÍN, 1981, p. 122).

Estas críticas, feitas à luz da moderna antropologia, não


carecem, muitas vezes, de fundamento, mas falta-lhes, com
freqüência, o senso de historicidade. Os conhecimentos
científicos dos quinhentos não eram os de hoje e, sobre-
tudo, não é o mesmo que cuidar de várias centenas de ín-
dios num espaço amplo, totalmente reservado, como é o
Parque Nacional do Xingu, dispondo de abundantes ver-
bas federais, que enfrentar sem precedentes, sem recursos,
num meio fundamentalmente hostil, o problema inadiável
da assimilação de um número de índios muitas vezes supe-
riores ao número dos colonos (PALACÍN, 1981, p.143).
Logo, percebe-se o quanto a afinidade de Palacín com a Com-
panhia de Jesus influenciou-o na sua prática como historiador, seja na
escolha dos objetos, ou das fontes de pesquisa e, sobretudo, na forma
como representou narrativamente o passado humano. Diversas vezes,
o jesuíta Palacín emergiu na seleção dos sujeitos históricos (Vieira,
Pombal), nos recortes temporais (1549), por meio da indignação ou
defesa dos menos privilegiados e injustiçados ou no enaltecimento das
dificuldades da vida missionária. A partir desse ponto de vista, bus-
quei demonstrar que, para a compreensão do conhecimento histórico
produzido por Luis Palacín, é preciso considerar o espaço de tensão
existente entre seu ofício sacerdotal e o de historiador. Evangelizar
e praticar história, duas paixões, dois sentidos. Opções de vida tão
díspares, mas, inextricavelmente, imbricadas no caso de Luis Palacín.
267
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Essa relação tensa e, ao mesmo tempo, fecunda foi apresentada pela


rubrica de “O Jesuíta e o Historiador”, um artifício retórico que, na
verdade, busca representar o quanto a produção do conhecimento
histórico guarda íntimas relações com a vida humana prática e, em se
tratando de Luis Palacín, essa relação é intensamente viva.

Referências Bibliográficas

GOLDMANN, Lucien. Ciências humanas e filosofia: Que é a Sociologia?


Trad. Lupe C. Garaude e José Arthur Giannotti. São Paulo: DIFEL,
1974.
PALACÍN, Luis. Sociedade colonial: 1549-1599. Goiânia: EdUFG, 1981.
______. Subversão e corrupção: um estudo da administração pombalina
em Goiás. Goiânia: EdUFG, 1983.
______. Vieira e a visão trágica do Barroco: quatro estudos sobre a cons-
ciência possível. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, Fundação Nacional
Pró-Memória, 1986a.
______. Quatro tempos de ideologia em Goiás. Goiânia: Cerne, 1986b.
______. Coronelismo no extremo norte de Goiás: o padre João e as três re-
voluções de Boa Vista. Goiânia: EdUFG, São Paulo: Loyola, 1990.
______. O quinto império, utopia de um século férreo. Ciências Huma-
nas em Revista, Goiânia, v. 5, n. 2, p. 107-118, jul.dez, 1994.
______. Vieira entre o reino imperfeito e o reino consumado. São Paulo: Loyo-
la, 1998.

Artigo recebido em julho 2007 e aceito para publicação em novembro


2007.

268
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE HISTÓRIA EM


UM PROJETO DE ARTICULAÇÃO COM A ESCOLA
DE APLICAÇÃO: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA

Claudia Schemes1
90

91
Inês Caroline Reichert2

Resumo: Este artigo relata uma ex- Abstract: This report describes a
periência de prática pedagógica desen- teaching internship project con-
volvida pelos alunos do curso de His- ducted by students of the History
tória do Centro Universitário Feevale, Course of Centro Universitário Fe-
com os professores das etapas iniciais evale with schoolteachers working
da Escola de Aplicação Feevale. Essa with the first grades of the Feevale-
prática procurou construir um progra- operated elementary school. The
ma de estudos com metodologias es- purpose of this project was to de-
pecíficas da ciência histórica para ser velop a study program to prepare
aplicado pelos professores da escola, schoolteachers to use the specific
buscando criar um diálogo entre os methods of history studies in their
níveis de ensino e aproximar a licen- classes, as well as to establish a dia-
ciatura da realidade escolar. log between these different educa-
Palavras-chave: escola de aplicação, tional levels and bring together
história, formação de professores. teacher education programs and
elementary school reality.
KEY WORDS: university-operated
school, history, teacher education.

Escola de Aplicação Feevale

O espaço constituído pelas escolas de aplicação no mundo


todo é utilizado para as discussões teóricas e para a prática de propos-
tas inovadoras e diferenciadas de educação. Assim, a Escola de Educação
Básica Feevale – Escola de Aplicação – apresenta-se como um espaço

1
Graduada em História (UNISINOS/RS), mestre em História Social (USP/SP) e
doutora em História (PUC/RS). É professora do Centro Universitário Feevale (Novo
Hamburgo-RS) nos cursos de História e Design de Moda e Tecnologia; leciona as
disciplinas de Metodologia do Ensino de História e Estágio de Ensino Fundamental,
entre outras. É pesquisadora do grupo de pesquisa Cultura e Memória da Comunida-
de do Centro Universitário Feevale. E-mail: ClaudiaS@feevale.br
2
Graduada em História (UNISINOS/RS), mestre em Educação (UNISINOS/RS). É
professora do Centro Universitário Feevale, no curso de História. Coordena, também
na instituição, o projeto de extensão PROEJA, com foco na formação de docentes e
a Educação de Jovens e Adultos. É coordenadora pedagógica da Secretaria de Munici-
pal de Educação e Desporto de Novo Hamburgo. E-mail: InesRei@feevale.br
269
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

por excelência da articulação entre os diferentes níveis de ensino, da


Educação Básica ao Ensino Superior, através dos cursos de formação
de professores do Centro Universitário Feevale, e constitui-se em uma
possibilidade constante da investigação em educação e construção de
novas práticas pedagógicas a partir do diálogo entre as partes envol-
vidas.
Segundo Escott,
A implementação da proposta da Escola representa um
grande desafio, já que, aliada à construção de um espaço
escolar inovador, com novas práticas curriculares, preten-
de-se alicerçar uma nova relação acadêmica que consolide
a cultura de indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão
(ESCOTT, 2004, p.11).

Dentre os diferenciais que a Escola possui está a proposta


de inclusão, na qual a diversidade é valorizada como elemento natural
e que enriquece o processo escolar. O aluno portador de necessida-
des especiais tem seu acesso e permanência garantidos na escola, pois
acredita-se que, com uma proposta de ensino diversificado e que dê
conta das individualidades, os alunos têm uma educação de maior qua-
lidade.
Um segundo diferencial importante é a organização escolar
por ciclos de formação, que possibilitam que o currículo seja traba-
lhado em um período maior que o tradicional e que respeite o tempo
de cada aluno, o que favorece “uma menor fragmentação do conheci-
mento e uma intervenção efetiva para garantir melhores condições de
aprendizagem [...] privilegiando a continuidade da trajetória do aluno
e suas experiências” (www.feevale.br/escoladeaplicacao).
A Escola de Aplicação tem como pressuposto filosófico,
compreender a educação como construção coletiva per-
manente, baseada nos princípios de convivência, de soli-
dariedade, de justiça, de respeito, de valorização da vida na
diversidade e na busca do conhecimento, através de uma
metodologia cooperativa e participativa, que contribua na
construção da autonomia moral e intelectual, buscando
humanização e comprometimento com a inovação do en-
sino  (ESCOTT, 2004, p. 01).
Nesse sentido, o curso de História propôs um projeto visan-
270
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

do à articulação das etapas iniciais da Escola de Aplicação com os


acadêmicos em formação, através da disciplina de Metodologia do
Ensino de História.

Articulação ensino superior/escola de aplicação

Considerando-se que a História constitui-se como uma área


do conhecimento humano que busca a preservação da memória co-
letiva para uma constante reflexão-ação do agir humano, ela se torna
uma dimensão essencial do processo ensino-aprendizagem desde as
etapas iniciais da Educação Básica. A especificidade do conhecimento
histórico, seu objeto de estudo, seus procedimentos científicos e obje-
tivos éticos trazem, contudo, a necessidade de uma formação teórica
sólida na disciplina e em sua metodologia própria, o que não ocorre
nos espaços de formação dos professores das etapas iniciais, gerando
uma lacuna a ser preenchida.
O egresso dos cursos de licenciatura de história, que exerce
o trabalho pedagógico, é um professor. Por outro lado, os cursos de
formação de professores, se possuem os conhecimentos e metodolo-
gias específicas de suas áreas, carecem de espaços de articulação com
a prática profissional. Isto se deve em parte ao fato de que, durante
as últimas décadas do século XX, o modelo de formação predomi-
nante estruturava-se com base na dicotomia conhecimentos especí-
ficos da disciplina/conhecimentos pedagógicos, preparação para o
ensino/preparação para a pesquisa, conhecimentos teóricos/prática
(FONSECA, 2004, p. 61). Os resultados deste tipo de formação ainda
podem ser vistos no campo educacional: um professor distanciado
da realidade educacional brasileira, com uma idéia generalizada entre
os estudantes de História de que para ser professor de história basta
dominar os conteúdos de História. Outra conseqüência desta men-
talidade foi que as disciplinas da área pedagógica eram consideradas
desnecessárias, meras formalidades.
Nesse sentido, o curso de História do Centro Universitário Fe-
evale procurou, já no momento da construção de seu Projeto Peda-
gógico do Curso, contemplar a articulação entre os conhecimentos
históricos e os conhecimentos pedagógicos. Para isso, o currículo do
curso distribuiu a carga horária da prática profissional ao longo do
percurso acadêmico, constituindo-se como parte integrante de deter-
271
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

minadas disciplinas. Buscou-se justamente fazer um contraponto ao


antigo curso, que dicotomizava os diversos conhecimentos, como co-
mentamos acima.
Por prática profissional, atendendo à compreensão da própria
legislação nacional para as licenciaturas, entendemos todas as expe-
riências que aproximem o acadêmico da realidade profissional, e, no
caso da licenciatura, especialmente a escola e a docência. Assim, a prá-
tica profissional inclui desde um relato de caso na própria sala de aula
do acadêmico quanto a uma observação realizada na escola.
Uma das disciplinas da qual a prática profissional compunha
a carga horária é Metodologia do Ensino de História, na qual foi re-
alizado o projeto que aqui apresentamos. Entendendo que o exer-
cício da docência consiste no domínio do conhecimento específico
da disciplina, no caso, do conhecimento historiográfico, dos saberes
curriculares, dos saberes pedagógicos e dos saberes práticos da expe-
riência, foi proposto um projeto pautado na formação teórica e na
discussão sobre sua transposição didática. Segundo Seffner (2000, p.
258), o conhecimento escolar é composto pelo conhecimento da dis-
ciplina, construído e acumulado pelas gerações que nos antecederam,
pelos problemas contemporâneos, pelas concepções dos alunos e pe-
los interesses dos estudantes. A partir desta experiência de articulação,
esperava-se contribuir tanto para a formação dos docentes das etapas
iniciais da Escola de Aplicação, quanto para a formação dos acadêmi-
cos do curso de História.
Nosso objetivo principal com esse projeto foi a realização
de um diagnóstico das necessidades de formação teórica na área da
História e do ensino de História na Escola de Aplicação Feevale, especi-
ficamente nas etapas iniciais, buscando também a construção, a partir
dos dados coletados, de um programa de estudo e discussão sobre
conhecimentos e metodologias específicas em constante diálogo com
o espaço de formação do curso de História, seja em suas atividades
de ensino, pesquisa ou extensão. Além desses objetivos, também se
pretendeu contribuir para a concretização de um espaço de desenvol-
vimento da pesquisa-ação, de construção do conhecimento histórico
e de formação didática para todos os envolvidos.
272
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O desenvolvimento do projeto

O projeto intitulado “Construção dos conceitos sócio-histó-


ricos nas etapas iniciais do ensino fundamental” tinha como objetivos
gerais realizar o diagnóstico sobre as necessidades de formação teó-
rica na área da História e do ensino de História na Escola de Aplicação
Feevale e construir, a partir dos dados coletados, um programa de es-
tudo e discussão sobre conhecimentos e metodologias específicas, em
constante diálogo com o espaço de formação do curso de História,
seja em suas atividades de ensino, pesquisa ou extensão. Os objetivos
específicos eram: contribuir para a concretização de um espaço de
desenvolvimento da pesquisa-ação, de construção do conhecimento
histórico e de formação didática, para todos os envolvidos; proporcio-
nar aos acadêmicos envolvidos a prática da construção de um projeto
de pesquisa-ação; articular as diferentes faces do ensino de graduação
à Escola de Aplicação e divulgar, em fórum público, as discussões e
produções realizadas.
Para a efetivação desse projeto propomos, em um primeiro
momento, a formação de uma equipe de trabalho formada pelo curso
de História, composta pelos acadêmicos da disciplina de Metodologia
do Ensino de História e Seminário de Pesquisa e Prática em Abor-
dagens do Ensino de História, um integrante do Núcleo de Apoio
Pedagógico e as professoras das etapas iniciais do ensino Fundamental
2ª etapa do 1º. Ciclo (antiga 1ª. série),1ª., 2ª. e 3ª. etapa do 2º. Ciclo
(antigas 2ª, 3ª e 4ª séries).
A primeira reunião visava à construção de uma proposta de
formação teórico-metodológica que articulasse as necessidades apon-
tadas pelo grupo de professores e pelo NAP, dentro dos princípios
postulados pela área de História e pela proposta curricular da Escola de
Aplicação. Foram organizados, a partir daí, quatro grupos de trabalho
formados pelos alunos que se envolveram especificamente com uma
etapa de ensino e a professora correspondente. Eles se reuniram para
uma discussão inicial e o levantamento das necessidades que essas
professoras sentiam, quanto aos objetivos propostos para o ensino e
construção de conceitos sócio-históricos. Quando possível, os alunos
observaram as aulas das etapas iniciais com as quais estavam envolvi-
dos.
A partir desse momento inicial, os alunos passaram a pesqui-
273
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

sar e desenvolver um projeto de estudo, orientado pela professora da


disciplina e que pudesse ser aplicado pela escola.
Esta pesquisa inicial estava relacionada com algum conteú-
do que já havia sido estudado pelos alunos em alguma disciplina do
curso, o que facilitou esta etapa do projeto. Outro facilitador foi que
todas as disciplinas do curso de História trabalham com o princípio
da transposição didática, ou seja, todos os professores devem discutir
com seus alunos quais as melhores formas de trabalhar nas escolas os
conteúdos estudados na graduação, dessa forma, a metodologia de
ensino perpassa todo o curso de graduação. As disciplinas teóricas do
curso (Introdução aos Estudos Históricos, Teorias da Historia I e II
e Historiografia) também procuram abordar seus conteúdos, levando
em consideração a sua utilização em sala de aula.
O projeto, quando concluído, foi apresentado para a professo-
ra titular da disciplina e discutido com os demais alunos, que puderam
sugerir modificações baseadas em experiências prévias de sala de aula.
Depois disso, ele foi entregue às professoras da escola, que puderam
utilizá-lo, integral ou parcialmente, dentro de seu planejamento.
Como exemplo, podemos citar um dos projetos desenvolvi-
dos pelos acadêmicos, com a 2ª etapa (1º ciclo), intitulado “Casas: das
construções mais antigas aos edifícios da modernidade”. A professora
relata que quando estava trabalhando o assunto deuses gregos, em
função das olimpíadas que aconteceriam na Grécia, seus alunos se
interessaram em saber como eram os castelos em que moravam os
deuses gregos. Nesse momento, a professora pediu auxílio aos acadê-
micos que fizeram uma pesquisa ilustrada, mostrando os diversos ti-
pos de construção de castelos, salientando que alguns ainda existem.
Aproveitando o interesse dos alunos, a professora iniciou o
assunto dos diferentes tipos de construção em diferentes localidades
e foi feita uma comparação entre os castelos e as construções mais
antigas da cidade (Novo Hamburgo-RS), através de pesquisa tam-
bém realizada pelos acadêmicos. Foram ressaltados, nesta pesquisa,
os diversos tipos de construção, os materiais utilizados, quem eram os
responsáveis por elas e os motivos que as levaram a se modificar no
decorrer do tempo.
Por fim, os alunos da 2ª etapa visitaram algumas dessas cons-
truções locais e construíram um castelo utilizando caixas de papelão
em que podiam entrar dentro.
274
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O projeto “A medida de todas as coisas” foi desenvolvido com


a 1ª etapa do 2º ciclo e tinha como objetivos construir conhecimentos
fundamentais para o educando se situar espaço-temporalmente, a fim
de identificar a situação fundamental dos diversos períodos e culturas
abordados no estudo da História. Pretendia, também, elaborar e inter-
pretar linhas de tempo, gráficos, plantas-baixa, mapas e evidenciar a
utilidade de medições para o estudo e solução de problemas.
A metodologia sugerida para operacionalizar esse projeto foi
a medição, no sistema métrico, da altura e envergadura dos alunos,
registrando os resultados. Esta medição deveria ser retomada ao lon-
go do ano letivo, a fim de evidenciar o crescimento físico dos alunos
e a comparação dos resultados serviria como mote na elaboração de
gráficos simples.
Com essa atividade, os alunos poderiam refletir, com o auxí-
lio da professora, sobre o sistema métrico e compará-lo com outros
sistemas de medidas baseadas no corpo humano (polegadas, palmos,
pés). Os alunos poderiam fazer um exercício medindo suas mesas uti-
lizando os polegares e palmos, evidenciando as possíveis distorções
das medidas correntes anteriores ao sistema métrico. O projeto previa,
ainda, a elaboração de uma planta baixa da sala de aula, do pátio da es-
cola, um mapa do bairro e os vários instrumentos e medidas utilizados
para mensurar o tempo. Os alunos elaborariam linhas do tempo da sua
vida, árvore genealógica, entre outras atividades.
Outros projetos desenvolvidos foram: “Bairro de Hamburgo
Velho” (1ª etapa, 2º. Ciclo), “Aniversário de Novo Hamburgo” (2ª.
Etapa, 2º. Ciclo), “Influência da Imigração Alemã no Vale dos Sinos”
(3ª etapa, 2º. Ciclo), entre outros.
As professoras deram um retorno por escrito de todos os
projetos apontando os pontos positivos e negativos e salientando a
receptividade do trabalho junto aos alunos:

Recebi o trabalho “Casas: das construções mais antigas


aos edifícios da modernidade”, bem como uma visita a
nossa turma. O projeto está ótimo! Posso utilizá-lo para
dar continuidade ao trabalho que venho realizando com os
meus alunos, além de poder encaixar várias sugestões ao
trabalho que estamos construindo na sala de aula. Deixo
um agradecimento especial a vocês por proporcionar, aos
acadêmicos e a nós da Escola de Aplicação, novas e ricas
aprendizagens (Profa. Suzete M. D. Koste).
275
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Os objetivos do projeto “Aniversário de Novo Hamburgo”


foram muito bons, mas as atividades que foram oferecidas
foram muito superficiais, faltando um aprofundamento
para atingir realmente os objetivos destacados. Penso que
as atividades poderiam ser mais diversificadas, com um fio
condutor e uma fundamentação teórica mais coesa.

O projeto “A medida de todas as coisas” contempla uma


interdisciplinaridade muito grande, é prático, não muito
extenso, mas com um conteúdo muito significativo que,
com certeza, utilizarei em minhas aulas. [...] Parabéns pelo
projeto, prático, bem esquematizado e bem elaborado.
Agradeço, pois me será de grande valia (Profa. Rosalie Ja-
eger)

Considerei o trabalho “Influência da Imigração Alemã no


Vale dos Sinos” muito bom. Muitas das sugestões já foram
realizadas, como um álbum da vida dos alunos, um quebra-
cabeça histórico, visitas a museus e teatro, e colocarei em
prática a sugestão de fazer com os alunos receitas típicas da
culinária alemã. Enfim, o assunto é atrativo, pois as crian-
ças estão pesquisando e conhecendo sobre sua própria
história e de seus antepassados. Agradeço a colaboração e
continuo a disposição de vocês (Profa. Janaina Blanco)
Como finalização do projeto, os alunos o apresentaram no
Fórum de Práticas Pedagógicas organizado pelos cursos de licenciatu-
ra do Centro Universitário Feevale para a divulgação de suas práticas.

Considerações finais

Percebemos que esse projeto de articulação entre a Escola de


Aplicação através das professoras das etapas iniciais e dos acadêmicos
do curso de História resultou num rico aprendizado para ambas as
partes. Os professores que não têm uma formação específica na área
de História puderam aprofundar alguns conceitos da disciplina e apli-
car um projeto sugerido pelos acadêmicos; já os alunos aprenderam
muito com a experiência e prática pedagógica das professoras envol-
vidas nessa atividade.
Muito ainda se poderia dizer e contar sobre esta prática peda-
gógica construída coletivamente, construindo para os alunos o sentido
do conhecimento histórico e a aprendizagem significativa que se espe-
276
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

rava alcançar. Para conduzir nossa finalização, optamos por sublinhar


outros aspectos que também podem ser incluídos como resultados
obtidos no processo vivido. Aspectos que estão intrinsecamente pre-
sentes nos objetivos colocados no início deste trabalho, mas que se re-
lacionam mais diretamente com objetivos procedimentais e atitudinais
que postulamos como historiadores, como professores de História e
da área de História da Escola de Aplicação, como objetivos a serem per-
seguidos pelo ensino da História. São eles:
a) a utilização de diferentes fontes históricas, para além do
livro didático, o que possibilitou aos estudantes a percep-
ção da questão da construção do conhecimento histórico
como possibilidade para eles próprios, atuando não somen-
te como receptores da História, mas também como sujeitos
e construtores. Permitiu também que compreendessem a
História como fruto da interpretação humana, confrontan-
do-se com discussões sobre historiografia, “verdade” histó-
rica, metodologia de pesquisa histórica, entre outras discus-
sões teóricas que, muitas vezes, não encontram espaço nas
salas de aula do Ensino Fundamental, Médio e até mesmo,
na formação do professor de História;
b) a valorização da memória social e a consequente preserva-
ção desta memória, trazendo no bojo os conceitos de iden-
tidade social e cultural e patrimônio cultural como valores
sociais a serem incluídos em uma importante e necessária
Educação Patrimonial;
c) a vivência da interdisciplinaridade como condição essencial
para a compreensão da realidade histórico-cultural apre-
sentada, onde as histórias relatadas de outras épocas não
separavam ambiente, economia, tecnologia e trabalho da
História, o que pôde ser experienciado pelos alunos;
d) a construção da autonomia dos alunos em relação ao seu
processo de ensino-aprendizagem.
A troca de experiências resultante desse trabalho nos mostra
a importância desse intercâmbio de saberes entre os diversos níveis de
ensino, e reforça a idéia de que a pesquisa só tem fundamento com
uma ação e que o espaço aberto pela escola para essas práticas é de
grande importância. Cabe aqui a questão: como alguém se torna pro-
fessor (a) de história? Como nos tornamos professores? Diante desta
277
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

provocação, e pela experiência vivida através deste projeto de articula-


ção entre a licenciatura e a Escola de Aplicação, podemos responder:
aprendendo e ensinando. A formação e a prática não são atividades
distintas para a maioria dos professores e não o deveriam ser também
para os professores em formação.

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em setembro


2007.

278
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E ENSINO


PRIVADO NOTURNO: UMA BREVE REFLEXÃO
SOBRE CURSOS SUPERIORES DE HISTÓRIA
92
Rejane Penna1

Resumo: Nos últimos anos assistiu- Abstract: Formation of professors


se, se não a uma revolução episte- and nocturnal private education:
mológica, a algumas transformações one soon reflection on superior
significativas na interpretação e escri- courses of History. In recent years
ta da História. Buscou-se superar um it was attended, if not to a episte-
tempo em que se trabalhava sempre as mológical revolution, some signifi-
mesmas técnicas de investigação, fon- cant transformations in the inter-
tes e temas. No presente texto, a partir pretation and writing of History.
da concomitante experiência de traba- One searched to surpass a time
lho como docente de ensino superior where if it always worked the same
e historiógrafa do Arquivo Histórico techniques of inquiry, also folloied
do Rio Grande do Sul, analisa-se as of the same sources and subjects.
dificuldades para que o processo de In the present text, from the con-
renovação historiográfica penetre no comitant experience of working as
ensino superior privado noturno dos a teacher in higher education and
cursos de História. historiógrafa the Historical Archive
Palavras-chave: pesquisa, formação of Rio Grande do Sul, analyzes
de professores, história, memória. the difficulties so that the process
of historiographical renewal pen-
etrates in the nocturnal private su-
perior education of the courses of
History.
Key-words: research, formation of
professors, history, memory.

A historiografia dos novos tempos

O campo da investigação histórica ampliou-se consideravel-


mente nos últimos anos, acompanhando o crescente relacionamento
entre as diversas práticas culturais, políticas e econômicas.
A decorrência dessa dinâmica, para os que trabalham com
a pesquisa e o ensino de História é o reconhecimento de uma extra-

1
Doutora em História (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação e do Curso de História do Centro Universitário La Salle (Canoas/RS). His-
toriógrafa do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. E-mail: rejanepenna@uol.
com.br
279
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ordinária internacionalização da pesquisa, além da diversificação de


objetos de investigação (BOUTIER; JULIA, 1995).
Torna-se relevante, brevemente, recuperar o caminho que
proporcionou espaço à crítica relativa ao conservadorismo na escrita
da História. Embora não exista consenso sobre a origem deste movi-
mento de contestação, pode-se tentar identificar alguns marcos signi-
ficativos, relacionando os argumentos que defendem uma renovação
historicamente recente, a partir dos anos 60 do século XX, aos de
outros analistas, que destacam precursores e períodos anteriores, in-
vocando continuidades ao invés de rupturas.
Segundo vários autores,293 a Etnologia foi uma influência de-
cisiva na “popularização” da História. Enquanto os historiadores ain-
da tratavam de narrar façanhas militares e trajetórias de reis e tratados
diplomáticos, a etnologia procurava analisar as pessoas comuns e suas
relações com o meio em que viviam. .
Mas uma melhor compreensão do processo de renovação his-
toriográfica pode ser buscada no interior do próprio saber histórico,
identificando a construção dos elos que possibilitaram a multiplici-
dade de relações com outras áreas de conhecimento, como o impul-
so importante que ocorreu no fortalecimento de tendências como a
Nova História,394 influenciando muitos historiadores a ampliar não só
o objeto a ser pesquisado, mas, sobretudo, a noção de fonte histórica.
Além da Nova História, o questionamento da historiografia

2
Ver artigo de Nanci Oliveira ((2001, p. 254-263): “História e Antropologia: encon-
tros e desencontros”.
3
Não existe consenso entre os historiadores do que significa Nova História. Para o
presente trabalho, admite-se a classificação de Rogério Forastieri da Silva, o qual ana-
lisou esta tendência em sua tese de Doutoramento. Segundo Silva (1999): “Em parte
significativa da bibliografia corrente, faz-se uma associação direta entre a chamada Es-
cola dos Annales e a Nova História; assim, para alguns autores, a Nova História teria
nascido com a fundação da revista Annales (1929) e seriam, neste sentido, sinônimos.
Existem, entretanto, aqueles que cunharam a expressão no contexto da historiografia
francesa contemporânea, especificamente Jacques Le Goff e Pierre Nora, além de
parte significativa de autores que se debruçaram sobre a Nova História. Afirmam
que este nome corresponde à chamada terceira geração de historiadores associados à
revista”. Logo, quando ocorrerem referências à Nova História, considera-se historia-
dores da terceira geração dos Annales.
As dificuldades de classificar este movimento são analisadas também por Peter Burke
(1992) – “Overture: the New History, its Past and its Future”, onde aponta que a
tendência se define mais em relação ao que não é.
280
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tradicional, com sua rigidez em torno de temas e fontes, ocorreu em


múltiplos lugares e temporalidades, conforme observou Silva (1999)
em sua tese de doutoramento. Diversos autores citam Karl Marx, Karl
Lamprecht, James Harvey Robinson e Charles Austin Beard, como
precursores da recorrência a algo proclamado como “novo”, desta-
cando-se Robinson e sua obra The New History (1912). Este dedicou
praticamente toda sua vida acadêmica no questionamento da chamada
história tradicional, esperando vê-la substituída por aquela que for-
malmente chamou de “New History”.
Outra posição remete a Thuillier e Tulard (1990), afirmando
que cada momento existe uma demanda por uma nova História: logo,
toda a produção histórica está condenada a tornar-se ultrapassada. Os
autores também são partidários da tese de que um movimento, ou a
criação de uma escola histórica, define-se bem mais pelo meio exterior
do que por razões internas.
Alguns sequer admitem que, no final dos anos 60 do século
XX, tenha ocorrido uma ruptura no campo da historiografia. Enten-
dem, apenas, ter havido uma maior preocupação com a teoria e as ca-
tegorias sociais marginalizadas, além de um contato significativo com
a sociologia e a lingüística, entre outras áreas do conhecimento, sem
configurar-se em algo essencialmente novo. Destacam, entretanto, um
quadro de ruptura com as fontes tradicionais pelas incursões de his-
toriadores no estudo da História da memória, a partir dos anos 80 do
século XX.495
Haddock (1989) também fornece outra linha de raciocínio
para explicar os rumos da modernização da historiografia. O aprimo-
ramento da História como disciplina e pesquisa relaciona-se ao au-
mento das exigências de outros setores do conhecimento. Cada vez
mais, utiliza-se a justificativa histórica para argumentar, forçando os
historiadores a aprimorarem seus métodos, bem como abordar temas
variados. Nesse entendimento, Ruggiero Romano (1981) acrescenta o
fator da ampliação do alcance da memória humana pelos processos
tecnológicos.
Essas influências impulsionaram a historiografia para deter-
minados rumos, como a denúncia da exclusão de grupos e a abor-
dagem de contextos situacionais antes ignorados, como minorias ou

4
Idéia desenvolvida por Françoise Hildesheimer (1994).
281
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

estudos do cotidiano, bem como a valorização de concepções teóricas


que apontavam o objeto da pesquisa como não estando simplesmen-
te “lá”, mas existindo porque determinado pelo próprio pesquisador
(PENNA, 2005).
O resultante de todo esse processo é que se assistiu, se não a
uma revolução epistemológica, algumas transformações significativas
na interpretação e escrita da História. Buscou-se superar um tempo
em que se trabalhava sempre as mesmas técnicas de investigação, fon-
tes e temas. No século XX, o impulso final ocorreria ainda na década
de 60, com a implantação dos cursos de pós-graduação em História
no Brasil, sendo que mais adiante, nos anos 80, consolidaram-se os
programas de pós-graduação em História e Ciências Sociais, enfocan-
do a História Social e Cultural.
Atualmente, a já mencionada renovação indica que, na área
das Ciências Humanas, a própria exigência dos temas que se é obri-
gado a tratar leva a uma revisão não só do corpus, nosso objeto de
trabalho, mas dos instrumentos metodológicos de investigação e de
pesquisa (CAMPOS; CURY, p. 02, 1997).

O impacto das transformações historiográficas no ensino de


História.

A questão que se objetiva analisar é o quanto esse processo
de renovação penetrou no ensino de história, mais especificamente,
nas licenciaturas que enfrentam alguns obstáculos para incorporá-lo,
ou seja: os cursos noturnos das instituições privadas de ensino, sem
tradição em pesquisa e integrados por alunos que desenvolvem outras
atividades durante o dia.
Parte-se do pressuposto de que a incorporação dos avanços
na interpretação do processo histórico aos cursos superiores tenha
relação direta com o comportamento dos professores formadores de
novos mestres, bem mais do que determinado por algum aprisiona-
mento aos currículos ou diretrizes dos órgãos públicos.
Inclusive Flavia Caimi (2007), analisando os objetivos da His-
tória para os anos finais do ensino fundamental, por exemplo, (5ª a
8ª séries), expressos no documento da área de História dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, Secretaria de Educação Fundamen-
tal. Parâmetros Curriculares Nacionais: História/ Secretaria de Educação
282
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Fundamental – Brasília: MEC/SEF, 1998) apontou que eles desquali-


ficavam os propósitos da escola tradicional, voltados para a aquisição
cumulativa de informações e conteúdos apresentados aos alunos como
pacotes-verdades, desconsiderando e desvalorizando suas experiên-
cias cotidianas e práticas sociais. Isso implicaria em instrumentalizar
um professor para o desenvolvimento de capacidades e habilidades
cognitivas em seus alunos, tais como: estabelecer relações históricas
entre o passado e o tempo presente; situar os conhecimentos históri-
cos em múltiplas temporalidades, além de dominar procedimentos de
pesquisa, lidando com fontes textuais, iconográficas, sonoras e mate-
riais (CAIMI, 2007, p. 21).
Não é o que sempre ocorre, à medida que “o ensino de his-
tória, mais do que outras disciplinas escolares, tem se constituído em
solo fértil para a memorização, a repetição, o monólogo do professor,
um espaço propício para a idéia de saber pronto, acabado, que resta
apenas transmitir” (STEPHANOU, 1998, p.17).
Na realidade imagina-se que a mera repetição de nomes e da-
tas e o espaço da sala de aula como local de memorização dos velhos
manuais ou novos livros revestidos de uma pretensa modernidade na
linguagem, mas conservadores na essência, tivesem sido relegadas ao
passado, recobertas por mil fios de teias de aranha.
Em alguns casos isso é fato, notadamente nas universidades
públicas ou universidades privadas com longa tradição no campo da
pesquisa articulada ao ensino, estreitando-se o caminho, porém, em
boa parte das instituições privadas de ensino superior, parcela das
quais mantém alguns cursos com ensino tradicional, sem produzir
qualquer forma de novo conhecimento.
Esse fenômeno perpassa toda a estrutura de ensino brasilei-
ra, percebendo-se a insatisfação com a dinâmica dos cursos superiores
de História, em vários depoimentos de professores, como o que foi
cotejado em um artigo recente, do Estado do Paraná:
Eu acho que o curso de História tem que passar por uma
modificação. [...] Você pega professores lá, que estão uti-
lizando há oito anos o mesmo texto. O mesmo texto que
eu analisei eles estão analisando. Quer dizer que não houve
crescimento nenhum. Eu acredito que hoje, quando tu en-
tras, tem uma visão do curso de História e quando tu sais
tem uma visão cinqüenta por certo negativa de quando
você entrou. Quanto tu vai pra sala de aula é pior ainda. A
283
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

realidade é diferente, é contraditória (AGOSTINI; PAIM,


2006, p.189).
Cardoso (2007, p. 211-212) refletiu que muito mais do que
apontar soluções, talvez devamos identificar que o problema dos pro-
fessores de História e pesquisadores de sua didática não é descobrir
que alterações devem ser feitas nas aulas para que se crie saber his-
tórico escolar, mas identificar características ou tendências do saber
histórico escolar já existente no cotidiano de todas as salas de aula e
compreender como ele é criado.
De acordo com Stephanou (1998, p. 36), em oposição aos
currículos tradicionais, a análise do vivido deveria ser acompanhada
da compreensão de como se produz conhecimento histórico, recons-
truindo os critérios a partir dos quais os historiadores formulam per-
guntas, problematizam a realidade, elaboram explicações e problemas
significativos que constituam temas de investigação coletiva nessas
aulas.
A formação de um professor de história alicerçada quase que
exclusivamente na bibliografia, dificulta a efetivação deste tipo de pro-
posta, escondendo produções e reproduções de “verdades históricas”.
Muitas vezes, livros supostamente favoráveis a segmentos desfavoreci-
dos da sociedade, carregam estereótipos, conforme observou Magali
Engel (2007, 295) em sua análise de livros didáticos. Ao comparar
o episódio Revolta da Vacina, ocorrido no início do século XX, em
livros destinados à oitava série da coleção História e Vida Integrada, de
Nelson e Claudino Piletti, verificou que a descrição guardava proximi-
dade com a imagem da população como bando feroz veiculada por
Olavo Bilac na crônica intitulada ‘A revolta da vacina’, publicada na
Gazeta de Notícias em 1904.
É relevante também recuperar a reflexão de Munakata (2004,
p. 522) sobre o processo de produção do livro didático, expondo as
lutas e escolhas envolvendo concepções sobre história e ensino de his-
tória que precederam à forma final de cada um deles na Campanha do
Livro Didático e Manuais de Ensino (CALDEME), instituída por Anísio
Teixeira quando este assumiu o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos
(INEP), em 1952.
São apenas alguns exemplos de como seria fundamental incor-
porar este tipo de discussão do campo historiográfico na própria forma-
ção dos novos professores, conjugando teoria e prática efetivamente.
284
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O campo do conhecimento histórico, mais do que qualquer


outro, necessita que as fontes primárias, contemporâneas do objeto
estudado, sejam descobertas ou revisitadas, do contrário, parte impor-
tante de nossa história continuará repousando, sem ser tocada pelo
presente, nas instituições da memória, como os arquivos históricos.
A experiência humana é continuamente registrada em atas,
jornais, proclamações, registros, fotografias, diários, vestígios orais e
visuais, enfim, toda aquela gama de elementos que são a matéria-prima
para discutir o que já foi estabelecido ou para reconstruir, de outra for-
ma, as trajetórias de grupos, de cidades, de pessoas e acontecimentos.
Se o historiador, formado ou não, esquecê-los, privilegiando a repre-
sentação contida nos livros (indispensáveis, mas não autoformadores
e autosuficientes) as lacunas permanecerão, tanto na sociedade, como
na formação dos futuros professores.

Ensino privado noturno e os cursos de História: que tipo de pro-


fessor está se formando?

A discussão acerca da formação de professores reflexivos,


investigadores da sua prática é um tema bastante debatido. O levan-
tamento realizado por Caimi (2007, p. 28) aponta um número consi-
derável de autores como D. Schön, H. Giroux, L. Stenhouse, J. Elliot,
T. Popkewitz, A. Nóvoa, K. Zeichner, afirmando a importância da
investigação realizada pelo próprio professor, de maneira integrada ao
seu trabalho na escola, num processo de ação e reflexão, como possi-
bilidade de dar conta da complexidade do seu ofício.
Neste sentido, Mizukami e Reali (2002) apontam alguns ele-
mentos necessários à aprendizagem profissional da docência, cuja
apropriação deveria ser garantida nos processos de formação de pro-
fessores, tanto no âmbito da formação inicial quanto no da formação
em serviço. Como ponto de partida, os professores precisam compre-
ender o conteúdo específico da disciplina que ensinan, o que implica,
no caso da História, em reconhecer como os conhecimentos se estru-
turam e se relacionam do ponto de vista teórico, historiográfico e me-
todológico. Com isto, enfatizam a importância da pesquisa histórica,
não só no bacharelado, mas também, e, sobretudo, nas licenciaturas,
conhecendo as diversas possibilidades de produção e de expressão
do conhecimento histórico, de modo a operacionalizar diferentes es-
285
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tratégias para viabilizar as aprendizagens em sala de aula e fora dela,


superando os limites impostos pelo uso exclusivo do livro didático e
pelo verbalismo vazio.
Logo, a questão não é aumentar a prática em detrimento da
teoria ou vice-versa, o problema consiste em adotar-se uma nova for-
ma de produzir conhecimentos no interior dos cursos de formação
do educador (FREITAS, 1992, p. 96 apud AGOSTINI; PAIM, 2006,
p. 198), o que pode alterar o atual quadro de frustração entre alunos
e professores que é observado também na reflexão sobre o ensino,
aprendizagem e formação de professores de Flavia Caimi, ao transitar
pelas escolas, no acompanhamento de estágios ou na realização de
pesquisas:
Os professores, de um lado, reclamam de alunos passivos
para o conhecimento, sem curiosidade, sem interesse, de-
satentos, que desafiam sua autoridade, sendo zombeteiros
e irreverentes. Denunciam, também, o excesso e a comple-
xidade dos conteúdos a ministrar nas aulas de História, os
quais são abstratos e distantes do universo de significação
das crianças e dos adolescentes. Os alunos, de outro lado,
reivindicam um ensino mais significativo, articulado com
sua experiência cotidiana, um professor “legal”, “amigo”,
menos autoritário, que lhes exija menos esforço de memo-
rização e que faça da aula um momento agradável (CAIMI,
2007, p.20).
Complementando este quadro de insatisfação mútua, Cer-
ri resgata a expressão “teacher burnout”, que poderia ser traduzida
como “mal estar docente”:
Essa síndrome, que leva ao afastamento do profissional,
tem entre suas causas um profundo desânimo diante da
profissão, que por sua vez tem como principais fatores a
ausência de autonomia, a sensação de impotência e a in-
satisfação crônica em relação aos resultados do trabalho
(CERRI, 2004, p. 3).
Muitas vezes, para alunos e professores, o tempo de aula
constitui-se em uma espécie de acorrentamento que impede o impulso
na velocidade desejada. A lentidão penetra nos menores gestos, como
se a vida girasse em câmara lenta e o cenário não fizesse sentido.
Entretanto, o tempo, criação humana, pode tornar-se um alia-
do, pois quem já não vivenciou a sensação de que tudo passou rápido,
286
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

quando apresentou-se uma boa experiência, um momento proveitoso


e feliz?
Então, afirma-se a possibilidade de transformar aulas monó-
tonas (discurso monocórdico do professor, alunos apenas realizando
sínteses de texto) ou pseudomobilizadoras (professor faz discurso a
favor de segmentos oprimidos + alunos indignados = nenhum resul-
tado em termos de vivência pessoal ou acadêmica) em experiências
estimuladoras.
A partir da trajetória docente no ensino superior ocorrida nos
últimos anos, compartilha-se da opinião de um grupo significativo de
professores de que é necessário encontrar formas enriquecedoras de
ensinar a aprender, mesmo em situações não ideais, caso do ensino
superior privado noturno, que se proliferou a partir de determinado
contexto.
Este ocorreu no processo de modernização brasileiro, refle-
tindo suas contradições, paradoxos, problemas estruturais e carências
de difícil solução. A Reforma Universitária, idealizada e colocada em
prática pelo Estado sob o Regime Militar, facilitou a proliferação de
cursos superiores em instituições privadas de ensino, ampliando a
quantidade de vagas e diminuindo a pressão por investimentos públi-
cos na área educacional.
Boa parte dessas instituições educacionais ampliou seu cam-
po de trabalho na área do ensino superior, preferencialmente com cur-
sos noturnos, constituindo-se como empresas que utilizavam a área
educacional como campo privilegiado de investimentos. O objetivo
prioritário não era ampliar um lastro para dar suporte à continuidade
das atividades de ensino e sim a obtenção de lucro. Nesse sentido, o
trabalho de integração e contribuição junto à comunidade em que se
localizavam foi de pouca relevância, o que se justificava, visto que a
empresa educacional visava o acúmulo de capital, em primeiro lugar.
Logo, o investimento em pesquisa foi condicionado à apresentação
de um produto rentável como resultado do trabalho de seus profes-
sores.
Mas, algumas instituições fugiram ao modelo, seja por perten-
cerem a ordens religiosas interessadas em preservar longas tradições
de ensino na comunidade em que se localizavam, seja por pretender
adquirir legitimidade junto ao meio acadêmico na produção do co-
nhecimento.
287
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

No caso, proporcionaram condições a que parte de seu cor-


po docente também trabalhasse na área da pesquisa, convivendo, no
entanto, com parcela considerável de colegas cuja única atividade seria
ministrar aulas, por vezes a elevado número de alunos, com disciplinas
também diversificadas. As turmas foram integradas por um contin-
gente de estudantes já inseridos no mercado de trabalho, porém, em
sua grande maioria, no setor de comércio, indústria e serviços.
A conjunção desses fatores desenhou a seguinte realidade:
a) boa parte dos alunos necessitando trabalhar em atividades
de diferentes naturezas durante o dia para custear seus es-
tudos;
b) parcela do corpo docente envolvido com ensino e pesqui-
sa;
c) e outra parcela do corpo docente lecionando na condição
de horista, praticamente sem tempo para freqüentar insti-
tuições de memória ou atualizar-se nas discussões de sua
área.
O resultado configura-se em um ensino sem continuidade de
propostas. Por um lado alguns professores estimulam os estudantes a
superar a adversidade do cansaço e falta de tempo questionando ver-
dades históricas estabelecidas, levando-os a freqüentar, quase sempre
pela primeira vez, em horários de almoço ou finais de semana, arqui-
vos históricos para apreender a analisar as fontes primárias, geradoras
de parte da historiografia existente.
Por outro lado, outros professores condicionam seus alunos a
seguir velhos manuais, livros dogmáticos ou até a trabalhar com boas
obras, mas sem discutir o processo de constituição dos conteúdos dos
livros. Algumas vezes o professor do ensino “livresco” pretende-se
crítico e estimulador da autonomização dos alunos, determinando os
famosos trabalhos em grupo para discutirem alguns pontos e explana-
rem suas conclusões. Ou, então, simplesmente determina que colham
elementos em arquivos históricos, sem qualquer orientação sobre a
leitura e a interpretação desse material, conforme observou Cardoso:
Todos esses episódios, nos quais os alunos foram deixa-
dos à própria sorte diante de fontes e conteúdos que des-
conheciam, descrevem bem uma das representações dos
professores sobre o saber histórico escolar. A de que ele
pode ser criado pelos alunos em trabalhos realizados em
288
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

grupo sem a sua intervenção. Nas palavras dos sujeitos,


essa ausência de intervenção em nenhum momento foi
entendida como ausência de ensino por arte do professor,
mas como autonomia do aluno. Eles declararam que os
alunos precisavam aprender a pensar por conta própria e
os professores não deveriam querer colocar as idéias em
suas cabeças (CARDOSO, 2007, p. 223).
O que geralmente ocorre é que os professores pensam que
inovam no ensino de história, mas apenas está deixando os alunos
à própria sorte, ao invés de autonomizá-los. Muitas vezes no ensino
privado noturno o abandono como educador é suprido com uma es-
pécie de assistência pessoal ao aluno. Então uma estranha relação se
estabelece entre os professores e seus alunos. Ambos assumem uma
condição que não os equipara aos demais profissionais e estudantes,
tendo sua trajetória de vida como elemento justificador para que, diga-
mos assim, tenha-se um olhar mais brando ao avaliá-los. O professor
trabalha demais, não tem tempo para preparar uma proposta de ensi-
no inovadora, pois isso demanda novos estudos, acompanhamentos
e avaliação. O aluno, também trabalha demais, muitas vezes teve sua
formação falha e, se for reprovado, provavelmente desistirá do curso –
o esforço foi excessivo! O afeto, elemento importante no processo de
aprendizagem, foi distorcido em sua função humanizadora de com-
preensão e estímulo, assumindo características manipuladoras.
A partir daí o professor torna-se não um educador, mas um
confidente, que conhece os problemas pessoais e que, portanto, avalia
à luz dos mesmos. O aluno, grato à compreensão, desiste de um es-
forço maior, à medida que suas carências são aceitas. Final do pacto:
ambos deixaram de crescer, todos perderam. A instituição de ensino
desperdiçou mais uma parcela do seu potencial de tornar-se uma re-
ferência na área e a sociedade viu desaparecer a oportunidade de ter
um profissional que auxiliasse os semelhantes a buscar alternativas ao
sofrimento, à miséria e ao crescente desencanto humano.

Algumas alternativas e experimentações em cursos superiores


noturnos

A abordagem da problemática proposta nasce da experiência


iniciada no final dos anos 80 até a presente data no exercício da do-
cência em duas instituições particulares de ensino na região metropo-
289
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

litana de Porto Alegre, concomitante a 15 anos de atividades técnicas


de nível superior na Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul,
sendo os últimos quatro anos no Arquivo Histórico do Rio Grande do
Sul. Este reúne o mais significativo acervo sobre a história do Estado,
constando de documentos escritos e iconográficos desde 1737, sendo
a grande maioria originada do Poder Executivo do Estado.
O ensino da disciplina de História do Rio Grande do Sul, em
cursos superiores no período noturno, permitiu observar-se, ao longo
do tempo, que os esforços em integrar a pesquisa com fontes primá-
rias para discutir ou questionar textos de diferentes autores, esbarrava
em um desconcerto da maior parte dos alunos, seguido de resistências
geralmente ancoradas em uma indefectível “falta de tempo”. Culmi-
navam, quando esgotados seus argumentos, na confissão de que não
tinham a menor idéia onde pesquisar as tais fontes, muitos sequer sus-
peitando da existência de Arquivos Históricos abertos ao público.
O mais preocupante, entretanto, é que esta disciplina ocor-
ria na metade do curso de História, desconfiando-se, então, de que a
maior parte dos professores não apresentara aos seus alunos o proces-
so de construção dos textos sobre os temas tratados em aula.
Já na condição técnica de historiógrafa, verificou-se a discre-
pância entre o número de alunos egressos de universidades públicas
que freqüentavam o Arquivo Histórico e os oriundos de instituições par-
ticulares. Estes, muitas vezes em grandes grupos, acompanhados pelo
professor de uma disciplina relativa à introdução aos estudos histó-
ricos, visitavam a instituição de pesquisa, olhando com interesse seu
acervo. Dificilmente retornavam.
Buscando combater este quadro de ensino meramente repro-
dutivo, a partir de 1994 procurou-se trabalhar com ensino e pesquisa
associados, integrando vários alunos do curso de História do Centro
Universitário La Salle, na cidade de Canoas/RS a projetos envolvendo
a história local. As dificuldades com a escrita da história de Canoas
são significativas, encontrando-se, até pouco tempo, circunscrita aos
historiadores diletantes e memorialistas.
No exercício realizado pelos alunos, em um dos casos, op-
tou-se pela utilização da História Oral como mais uma metodologia
de trabalho, dialogando com a documentação escrita e iconográfica,
abordando-se diferentes aspectos da dinâmica da cidade. O testemu-
nho oral representou o núcleo da investigação mais problemático,
290
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

o que obrigou os graduandos a levarem em conta perspectivas nem


sempre presentes em outros trabalhos históricos, como por exemplo,
as relações entre escrita e oralidade, memória e história ou tradição
oral e história.
Mas, o uso sistemático do testemunho oral e de leituras alter-
nativas aos grandes eventos, possibilitou o esclarecimento de trajetó-
rias individuais ou processos que às vezes não têm como ser enten-
didos ou elucidados de outra forma, encobertos ou esquecidos pela
historiografia oficial da cidade.
Ao lidar com a pesquisa histórica sistemática, especialmente
com as diferentes versões que marcam a tradição oral, foi possível
uma discussão sobre identidade, características culturais e históricas,
diferenças, bem como de interação entre o passado, a história, a me-
mória e a realidade atual, comparando-se com as versões de textos já
publicados e as fontes utilizadas para construir suas versões.
Este tipo de atividade de ensino e de aprendizagem promo-
veu, também, a possibilidade de os alunos assumirem compromissos,
de definirem papéis e construírem uma maior consciência e respon-
sabilidade de sua atuação nas aulas, pois ao montarem o projeto de
trabalho passaram por um processo que lhes desvelou o por quê e para
quê estudar um determinado tema.
Os alunos perceberam como as pessoas envolvidas direta ou
indiretamente, ou aqueles que apenas testemunharam certos episó-
dios, raramente, possuíam uma visão exata de todas as circunstâncias e
detalhes que construíram e explicaram os eventos. Ficou explícito que
a história deve procurar ir além da simples aparência, investigando as
forças que agem na sociedade, seus potenciais de influência, os objeti-
vos a que visam alcançar e os motivos que as movem, que vão além de
discursos e muitas vezes em direção oposta a estes.
Outro exemplo de integração entre ensino e pesquisa ocor-
reu em 2003, com a realização da primeira oficina para qualificação
dos pesquisadores voluntários do projeto relativo à Memória Lassalista.
Denominamo-la de Oficina de Lembranças II, à medida que era uma
reedição de um trabalho desenvolvido junto à comunidade de Nova
Santa Rita, próxima a Canoas, com quem o Centro Universitário La Salle
estabeleceu um Termo de Cooperação Técnica. Ministrada pelos co-
ordenadores do projeto, buscou instrumentalizar os alunos, tanto do
Curso de História como demais estudantes de outras áreas do conhe-
cimento, na metodologia da História Oral.
291
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

As oficinas tiveram a duração de vinte horas, distribuídas em


atividades internas (discussão de textos, aprendizagem do processo
de entrevista, transcrição e apresentação de resultados) e atividades
externas (busca de entrevistados, entrevista propriamente dita e trans-
crição).
Todas as entrevistas foram semi-dirigidas, buscando enfocar
as impressões das experiências diversas dos entrevistados com a Con-
gregação Lassalista, seja como integrantes da Ordem, ou como professo-
res, alunos e funcionários lotados em outras atividades. As falas foram
editadas, podendo, entretanto, ser consultadas na sua integralidade no
Arquivo Histórico e Museu La Salle.
Levando em consideração que a proposta não foi a recupe-
ração exata, exaustiva e minuciosa dos fatos – como se fossem coisas
captadas em sua essência – fez perceber aos estudantes que os espaços
subjetivos e objetivos da instituição, possibilitaram diversificadas e não
necessariamente convergentes visões institucionais.
Por outro lado, as descrições, isoladamente, não apontaram
significados múltiplos, superpostos e contraditórios, mas um conjunto
delas revelou e desdobrou aspectos que, interpretados, auxiliaram na
compreensão de redes de relações, não apenas iluminando situações
passadas, mas também as do presente. Como originariamente o Cen-
tro Universitário La Salle oferecia o que corresponderia hoje ao ensino
médio e fundamental, com os cursos superiores iniciando apenas nos
anos 70, percebe-se um tom nostálgico em algumas entrevistas frente
a uma realidade passada, com as relações mais próximas, as comemo-
rações quase que familiares e o crescimento da instituição acompa-
nhado passo a passo. Presente nas entrelinhas de alguns depoimentos
daqueles que atuam junto ao ensino médio e fundamental, o temor de
que a parcela da instituição educacional, transformada em um com-
plexo de ensino superior, suprimisse a outra parte, que convive no
mesmo espaço – o colégio – eliminando hábitos, histórias, pessoas e
certo mundo mais seguro.
Em outro caso, especificamente em se tratando de fontes es-
critas, utilizou-se em um dos últimos semestres da disciplina de His-
tória do Rio Grande do Sul II o estudo de um evento consagrado
pela historiografia do Estado, denominado de Revolução Federalista.
Ocorrido entre 1893-1895, suscitou um significativo número de pu-
blicações devido ao seu caráter emblemático de disputa entre as duas
292
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

maiores lideranças do primeiro período republicano no Estado: Ju-


lio de Castilhos e Gaspar da Silveira Martins. Também foi conhecida
como a Revolução da Degola – costumava-se dizer que não se faziam
prisioneiros, degolava-se.
Pois bem, ao invés de apenas discutir livros que apontassem
suas versões do episódio, foi proposto aos alunos que analisassem um
conjunto de textos sobre o tópico, corroborando, questionando racio-
cínios, ou propondo novos aspectos, com a exigência de alicerçarem
sua discussão em, no mínimo, duas fontes primárias sob a guarda do
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
Foi surpreendente a criatividade dos alunos que, após os pro-
testos tradicionais, saíram a campo para pesquisar. Analisando relató-
rios de autoridades governamentais, diários de combatentes, jornais
da época e correspondências, dentre outros, discutindo desde a cons-
trução de mitologias sobre o episódio, às diferentes versões e formas
de sobrevivência da população comum durante o conflito. Um aluno,
por exemplo, mapeou a criação de um orfanato para abrigar as crian-
ças com pais mortos durante a Revolução; outro procurou indícios de
como as mulheres sobreviviam com os maridos ausentes, lutando no
campo de batalha. Reformas no aparato repressivo e resistências após
o tratado de paz, enfim, diversos recortes aprofundaram ou polemi-
zaram com a historiografia já existente, mostrando a escrita de um
acontecimento como um processo sempre inacabado e em perma-
nente discussão.
O mais importante: os alunos transformaram sua apatia em
criticidade e mobilização, compreendendo sua potencialidade para
produzir também conhecimento, bem como a estreita ligação entre
ensino e pesquisa. Vários desses trabalhos foram inscritos, posterior-
mente em salões de iniciação científica, tanto na própria instituição
como fora dela, pela confiança que recentemente eles haviam adqui-
rido, com uma auto-estima renovada que ousava expor seus trabalhos
à crítica externa.

Tentando unir as pontas da trama para concluir

Diante da imensidão de conteúdos a ensinar, querendo abar-


car “toda a história”, é comum que nós, professores de História, ab-
diquemos de metodologias participativas, dialogadas, de trabalho em
293
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

grupo, em favor de um melhor aproveitamento do tempo escolar


(CAIMI, 2006, p. 25).
Mas a área de estudos da História necessita da visita aos cen-
tros de memória, entre os quais os arquivos históricos para simples-
mente oxigenar-se e sobreviver, porque a produção de raciocínios que
resultam em livros e artigos, alimentam-se de fontes primárias existen-
tes nesses locais. O não estímulo aos estudantes de um curso superior
de História para que freqüentem, familiarizem-se e trabalhem com
as fontes contemporâneas ao seu objeto de estudo resulta em uma
aprendizagem meramente reprodutora - ou do discurso do professor
ou dos livros abordados – ambos, na maioria das vezes.
Conscientes de que esse procedimento gera uma lacuna di-
ficilmente superável na vida profissional, os professores dos cursos
superiores de História mais renomados do Brasil colocam como ele-
mento fundamental o trabalho com as fontes primárias para o desen-
volvimento dos raciocínios históricos.
Entretanto, verifica-se que tal não ocorre com a freqüência
necessária no ensino superior privado noturno, devido a alegados pro-
blemas de tempo e trabalho, além da desculpa que o objetivo é lecio-
nar e não pesquisar, como se o conhecimento necessário ao desem-
penho em sala de aula fosse menos denso e destituído de descobertas
próprias.
Na realidade, acontece uma acomodação de parte dos profes-
sores dessas instituições, ou por estarem assoberbados de tarefas e não
se sentirem em condições de acompanhar seus alunos aos arquivos e
orientá-los em uma tarefa bem mais complexa do que apenas ler tex-
tos prontos (as tais discussões críticas). Ou ainda: o próprio professor
jamais freqüentou um arquivo histórico, bem como se acomoda na
condição de lecionar no que considera instituição periférica, sendo
também um professor periférico.
Os gestores das instituições privadas que integram os cursos
noturnos limitam-se a exigir um ensino correto de seus professores
que não possuem horas de pesquisa, implicando em cumprir horários
e não criar problemas em sala de aula.
O resultado desse círculo perverso é a desqualificação do en-
sino superior privado noturno e o desestímulo colaborando para a de-
sistência dos estudantes à continuidade do curso. Outra conseqüência,
o que ocorre na maioria dos casos, é a repetição da situação frustrante
294
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

dos novos professores com seus próprios alunos, a partir de sua for-
matura e inserção no mercado de trabalho.

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Artigo recebido em julho 2007 e aceito para publicação em agosto 2007.


296
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

LEMBRANÇAS DE MULHER: LITERATURA,


HISTÓRIA E SOCIEDADE EM CORA CORALINA
96
Clovis Carvalho Britto1

Resumo: Este artigo pretende anali- Abstract: This paper intends to


sar as interconexões entre literatura, analyze the interconnections be-
história e sociedade no poema “Do tween literature, history and society
Beco da Vila Rica”, de Cora Coralina in the poem Do Beco da Vila Rica
(1889-1985). Nele, observa-se como a of Cora Coralina (1889-1985). In it,
poetisa registrou, através da memória observe as the poetess registered,
dos becos, a história de mulheres do through the memory of the alleys,
interior brasileiro nos séculos XIX e the history of women of the bra-
XX sob o olhar da periferia, dos que zilian interior in centuries XIX and
estavam à margem na considerada XX under the look of the periph-
“boa sociedade”, enfim, a partir dos ery, of that they were to the edge
becos, válvulas coronárias de sua ve- in considered “the good society”, at
lha cidade. last, from the alleys, coronary valves
Palavras-chave: poesia, história, me- of its old city.
mória. Key-words: poetry, history, mem-
ory.

Uma leitura dos significados fornecidos pela poesia de Cora


Coralina (1889-1985) conduz à identificação de importantes aspectos
da história e da sociedade goiana. A longevidade da autora contri-
buiu para que sua obra manifestasse distintas influências e retratasse
elementos que, em conjunto, possibilitam recompor as relações entre
gêneros, classes e gerações, as disputas pelo poder, as representações
dos modos de vida, valores e crenças, enfim, as mediações entre os
indivíduos e a sociedade na qual esteve inserida. As imagens tecidas
através de sua criatividade ampliam as perspectivas de análise das lutas
travadas nos séculos XIX e XX no interior brasileiro e, em um diálogo
entre texto poético e contexto sócio-histórico, denunciam e refletem
entraves e belezas, desnudando múltiplas e silenciadas nuanças da so-
ciedade goiana.
A cidade de Goiás se transformou em palco para o estabele-
cimento desta memória repleta de significados, captados e reconstruí-

1
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Linha de pesquisa:
Arte, Cultura e Pensamento Social. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal
de Goiás (UFG). Estuda as interconexões entre literatura e sociedade, com destaque
para a lírica brasileira de autoria feminina. E-mail: clovisbritto5@hotmail.com
297
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

dos por Coralina entre um exercício de afetividade e percepção crítica.


Conforme ensina Machado (2002), a cidade possui aspectos físicos
e uma vida interior, em um mecanismo contínuo que funde a vida
com sua configuração espacial. Dessa forma, os aspectos urbanísticos
constituiriam fio condutor para a compreensão do que a pesquisadora
define como cidade-vida, cidade-história, cidade-sociedade, cidade-
cultura.
É em busca desta cidade em suas múltiplas dimensões que
o presente artigo se desenvolverá. Pretendemos, a partir da análise
do poema “Do Beco da Vila Rica” no livro Poemas dos becos de Goiás e
estórias mais (CORALINA, 2001a), evidenciar as relações ocorridas na
sociedade goiana e perceber o que a cidade e seus habitantes têm a
dizer através dos versos de Aninha.
Constatamos que dentre as cenas repletas de conteúdo so-
ciológico, as imagens do beco se sobressaem no imaginário da autora.
Em vários poemas e contos a vida da cidade é traduzida a partir da
vida nos becos, dos personagens que neles residem e circulam, das
relações e reações que provocam como palco ou bastidor.
Após definir a caracterização do lugar, dos personagens e
destinos, em uma espécie de considerações iniciais sobre a cidade-vida
e suas relações, Coralina deteve sua análise na tematização de um beco
em especial, o Beco da Vila Rica, fonte de um rico imaginário em vir-
tude talvez de ser o mais próximo de seu cotidiano, que interage com
os fundos da Casa Velha da Ponte. Eis o poema:
No beco da Vila Rica
tem sempre uma galinha morta.
Preta, amarela, pintada ou carijó.
Que importa?
Tem sempre uma galinha morta, de verdade.
Espetacular, fedorenta.
Apodrecendo ao deus-dará.

No beco da Vila Rica,


ontem, hoje, amanhã,
no século que vem,
no milênio que vai chegar,
terá sempre uma galinha morta, de verdade.
Escandalosa, malcheirosa.
Às vezes, subsidiariamente, também tem
- um gato morto (CORALINA, 2001a, p. 96, grifo nosso).
298
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As percepções de outros poemas são aqui ampliadas, agre-


gando valores ao cenário e inserindo a idéia do beco como represen-
tativo da tradição. É o lugar da degradação, do resíduo que agride pelo
mau cheiro e pela perenidade. Esta perenidade é caracterizada pela
autora quando destaca as origens do desprezo pelos becos e realiza a
projeção futura: “ontem, hoje, amanhã, no século que vem, no milênio
que vai chegar terá sempre uma galinha morta”. Suas imagens reme-
tem ao imobilismo de Goiás, ao conservadorismo onde o passado e o
presente fecham as perspectivas de mudanças.
Cora Coralina oferece no poema dois eixos sociologicamente
significativos. O primeiro é a ampliação da descrição do lugar: o beco
como representativo do conservadorismo e como baliza da cidade, re-
ferência e limite. O segundo eixo caracteriza a função dos becos como
meio de as mulheres circularem e lugar dos segregados, revelando o
modo de vida do elemento feminino, que deveria ser “resguardado a
sete chaves”, não se expondo, traduzida na autorização dos mais ve-
lhos para sair e entrar pelos portões dos becos, cobertas com o xale e
através das janelas de tabuleta.

O beco: lixo e boninas

A poetisa não deixa escapar as idéias do beco como portador


do contraditório, onde convive a podridão do lixo e boninas perfu-
madas, e manifesta uma das idéias centrais do poema quando adjetiva
Vila Rica de baliza da cidade:
No beco da Vila Rica tem
velhos monturos,
coletivos, consolidados,
onde crescem boninas perfumadas.
Beco da Vila Rica...
Baliza da cidade,
do tempo do ouro.
Da era dos “polistas”,
de botas, trabuco, gibão de couro.
[...]
A estória da Vila Rica
é a estória da cidade mal contada,
em regras mal traçadas.
Vem do século dezoito,
Vai para o ano dois mil.
299
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Vila Rica não é sonho, inventação,


imaginária, retórica, abstrata, convencional (CORALINA,
2001a, p. 96-97).
O beco como baliza tanto significa uma referência quanto
um limite. Referência histórica ao ser situado no tempo, em diversas
épocas: mineração, entradas e bandeiras, escravidão, abolição, entre
outras, possibilitando compreender a sociedade através das cenas sub-
terrâneas de Goiás. Ao mesmo tempo constitui em limite físico, pois
separa os ambientes públicos e privados, e social, ao segregar e se
tornar o abrigo dos marginalizados. Ao desenhar esse perfil, Coralina
define o beco como relicário da história. Em suas entrevistas, cons-
tantemente apresentava a ressalva “estória ‘sem h’, porque não sou
historiadora nem memorialista, apenas e sempre a estória do cotidiano
– verdades e mentiras” (CORALINA, 2001b, p. 05). As palavras de-
monstram seu processo de criação e, consequentemente, contribuem
para a proposta deste artigo. Ao definir os becos como portadores da
estória da cidade e ao descrever a estória como veículo das verdades e
mentiras do cotidiano, a autora demonstra que suas poesias se basea-
ram tanto na história documentada, quanto na história oral, nas coisas
que “ouviu dizer”.
É interessante observar como a autora realizou a composição
da obra: “na falta do exato, forte e bem configurado, conto o que ouvi
e a mais não estou empenhada, que história indagada, perquirida, é
difícil na minha cidade, com papéis perdidos, roídos de traça e cupins,
mofados de goteiras... Nem eu tenho jeito de historiadora” (BUENO,
2002, p. 51). Sua fonte principal era a oralidade, todavia, algumas ve-
zes, retirava a matéria da história documentada, a exemplo da citação
inédita encontrada no original de um de seus contos, quando descreve
a decadência da mineração:
os veeiros se aprofundando na terra e a impossibilidade
física de os alcançar. Não havia técnica nem recursos, se-
não o braço escravo inoperante, frente às dificuldades in-
superáveis: a força muscular. Ver o livro de Palacin Goiás
-1722-1822 (Caderno/diário n. 5, 1981, p. 5).

Outro exemplo é o conto “Correio Oficial de Goiás” em que


utilizou matérias de jornal para tecer a trama:
300
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

começo a leitura dessa crônica me reportando ao número


179 do ‘Correio Oficial de Goiás’, de 1.° de maio de 1839,
número de quarta-feira e que, segundo esclarece o seu mi-
nucioso cabeçalho, se publica às quartas e aos sábados na
Tipografia Provincial (CORALINA, 2001c, p. 73).
Essas informações fortalecem a afirmação de que a história
dos becos seria a “estória da cidade mal contada”, pois não se encon-
tra inserida nos “autos oficiais do passado”. Para Cora Coralina, a
história da cidade se pauta no conservadorismo, em um conjunto de
discursos característicos da involução e do preconceito, pois dialoga
com a das vidas destinadas ao confinamento nos becos. Portanto, deve
ser lida não apenas nos registros oficiais, mas em seus interstícios, nas
relações cotidianas de classe, gênero, poder, cor e geração:
Interessante nesse sentido é a opção da autora pela palavra
estória para denominar a sua produção, seja a vazada em
verso ou em prosa. Hoje nos parece imprópria a distinção
entre história/estória. Isso porque já caiu no vulgo que a
história, mesmo e, sobretudo, aquela escrita com H, não
passa de uma interpretação do passado, sendo, portanto,
relativa, ficcional, e que a estória, assumidamente ficcio-
nal, muita vez, desvela o passado de uma maneira muito
mais “verdadeira” que as histórias que se querem factuais.
[...] Mas Cora escreve em uma época em que essa diferen-
ça ainda é sustentada e a poetisa mantém a denominação
de estórias para os autos do passado por ela recuperados
literariamente. [...] Negando-se a ser uma historiadora e
assumindo-se como uma legítima contadora de estórias,
Cora termina por subverter a memória coletiva oficializa-
da, por promover um rearranjo da história. [...] A estória,
em Cora, é contra a história. Contra uma história e uma
memória coletiva uniformizadoras e opressoras (YOKO-
ZAWA, 2002, p. 6-7).
As reflexões da poetisa ultrapassam a definição dos becos
como baliza/referência da história, retratando-os também como ba-
liza/limite. Inicialmente, um limite físico representado pelos muros,
portões e pelo lixo que incomodava. Depois um limite social, demons-
trado pelas proprietárias dos muros - velhas donas herdeiras da tradi-
ção que se protegiam da vida/morte dos becos através do exercício
de repor as telhas destruídas e manter seus portões fechados - e pelas
pessoas que neles viviam ou aproveitavam do que o lixo poderia ofe-
301
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

recer como as boninas utilizadas pelas meninas pobres:


Velhos portões fechados.
Muros sem regra, sem prumo nem aprumo.
(Reentra, salienta, cai, não cai,
entorta, endireita,
embarriga, reboja, corcoveia...
Cai não.
Tem sapatas de pedras garantindo.)
Vivem perrengando
de velhas velhices crônicas.
Pertencem a velhas donas
que não se esquecem de os retalhar
de vez em quando.
E esconjuram quando se fala
em vender o fundo do quintal,
fazer casa nova, melhorar.
E quando as velhas donas morrem centenárias
os descendentes também já são velhinhos.
Herdeiros da tradição
- muros retelhados. Portões fechados (CORALINA,
2001a, p. 97-98).
A referência às “velhas donas herdeiras da tradição” indica
a idéia de um aparente matriarcado na cidade de Goiás. A preponde-
rância da autoridade feminina é citada devido a um grande número de
mulheres solteiras - havia uma “lei familiar em Goiás, uma das filhas
renunciar ao casamento para cuidar dos pais na velhice e reger a casa”
(CORALINA, 2001d, p. 91) - e viúvas, em virtude dos homens geral-
mente se ocuparem com trabalhos fora da cidade. Em As três faces de
Eva na cidade de Goiás, Bittar (2002) estuda a condição feminina a partir
de três tipos ideais: a mulher intelectual, a concubina e a matriarca.
Compete destacarmos que o exemplo de mulher “matriarca” utilizado
no estudo de caso foi a senhora Jacyntha Luiza do Couto Brandão,
mãe de Cora Coralina.
De acordo com Gomes (2004), as mulheres sempre tiveram
um papel de destaque na cidade de Goiás, tanto na participação do-
méstica, quanto fora do lar, e a vida de Cora Coralina, por ter se passa-
do entre oito mulheres, teria contribuído para que a poetisa se tornasse
um marco na luta pela expansão feminina na cidade. Todavia, confor-
me referido, era apenas uma falsa idéia de matriarcado visto que
através do exercício da autoridade, adquire muito poder no
302
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

espaço doméstico e acaba por adquiri-lo, também, no es-


paço público, na medida em que consegue independência
econômica através do trabalho que exerce fora de casa. [...]
Por outro lado [...] as mulheres elevam a figura e a força
do homem, reforçando sua construção de mandonismo
masculino; e os homens, por sua vez, valorizam a mulher,
estabelecendo-se, a partir daí, um espírito de cumplicida-
de e amizade. A vilaboense/matriarca comporta-se como
uma pseudoprisioneira, reforçando, no homem, uma ca-
racterística machista que visa atender a costumes tradicio-
nais, mais do que à própria realidade (BITTAR, 2002, p.
160-162).

O beco: limite físico e social

Cora Coralina retratou os portões como “sentinelas imutáveis


dos becos”, traduzindo o conservadorismo e reafirmando a idéia da
baliza/limite físico e social. A autora evocou um tempo em que os
becos não eram destinados ao confinamento dos marginalizados, mas
serviam como meio de comunicação e circulação das mulheres das
“famílias de conceito”. Também consistia em cenário onde não se
podia circular livremente - era necessário o consentimento dos mais
velhos – e onde através dos portões “rígidos, velhíssimos, caruncha-
dos, trancados a chave, escorados por dentro, chavões enormes...” se
preservava a intimidade das famílias estabelecidas. Apesar de se tornar,
desde a origem, um lugar secundário, a escritora o elege como priori-
tário por reconhecê-lo portador da vida que sustenta em sua capilari-
dade o “coração” da cidade.
Fonte de abandono e tristeza, o beco coleta em seu subterrâ-
neo o esgoto da cidade. Coralina utiliza-se desta realidade para explicar
a origem do nome Vila Rica e se detém aos hábitos familiares ligados
aos portões. Tais hábitos revelam as práticas de violência e controle
destinadas às mulheres que, do século XVIII até o início do século
XX, eram submissas a ponto de não poderem circular pela cidade.
Para tanto, descreve a função dos becos como forma de censurar a
exposição feminina.
Cora Coralina explica que anteriormente os becos e portões
serviam como meio das mulheres se resguardarem, movimentando-se
através dos fundos dos quintais pela entrada de serviço, jamais inte-
303
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

grando a paisagem das ruas principais e dos largos. Descreve alguns


“costumes sociais interessantes”, a exemplo dos rituais de mandar
portador de confiança para solicitar a liberação para visitas, passeios
ou participar de festas religiosas. São rituais que, conforme relata a
poetisa, foram “conservados através de gerações” e contribuem para a
visualização do cotidiano e da mentalidade da mulher de sua época:
Andar pelas ruas. Atravessar pontes e largos,
as moças daquele tempo eram muito acanhadas.
Tinham vergonha de ser vistas de “todo o mundo”...
[...]
Era comum portador com este recado:
- “Vai lá na prima Iaiá, fala pra ela
mandar abrir o portão, depois do almoço,
que vou fazer visita pra ela...”

Costume estabelecido:
Levar buquê de flores.
Dar lembrança, dar recado.
Visitas com aviso prévio.
Mulheres entrarem pelo portão.
Saírem pelo portão.
Darem voltas, passarem por detrás.
Evitarem as ruas do centro,
serem vistas de todo o mundo (CORALINA, 2001a, p.
105).
As mulheres não deveriam “andar pelas ruas, atravessar pon-
tes e largos” e nem serem “vistas de todo o mundo”. Em Becos de Goiás,
a autora acenou as características gerais dos becos e sua função de
repositório dos marginalizados na primeira metade do século XX.
A imagem do beco evidencia a consciência crítica da poetisa.
É o relicário da história e, por isso, os sentimentos provocados para
intitular seu primeiro livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. A
partir dos becos, Coralina construiu as outras estórias e histórias re-
velando Goiás – cidade e Estado – para além da Serra Dourada e dos
limites do Paranaíba.
Mais do que matéria para poesias, os becos sempre estiveram
presentes no cotidiano dos moradores da cidade de Goiás. A cidade
foi reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Mundial por repre-
sentar um testemunho da ocupação e da colonização do interior do
Brasil. Nos critérios apresentados na Proposta de inscrição da cidade de
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OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Goiás na Lista do Patrimônio Mundial (BRASIL, 1999), sua concepção


urbana seria um exemplo típico de cidade colonial adaptada às parti-
cularidades do ambiente com a utilização de materiais típicos da região
na formação um conjunto único. Traduziria o modo de vida adotado
pelos exploradores e fundadores de cidades portuguesas e seria o últi-
mo testemunho da ocupação do Brasil da forma praticada nos séculos
XVIII e XIX. Nesse entendimento, Goiás possui uma estrutura urba-
na e arquitetônica típica das populações da América do Sul, sendo o
primeiro núcleo oficializado e a primeira vila a se organizar a oeste da
linha demarcatória do Tratado de Tordesilhas, influenciando toda uma
região e constituindo testemunho de um período fundamental da his-
tória brasileira.
Segundo Coelho (1999), na estruturação da cidade de Goiás,
existem vários elementos que contribuíram para que o espaço se orga-
nizasse da forma como se encontra atualmente. Tais elementos seriam
característicos do modo habitual de organização das cidades no terri-
tório da metrópole, com influências de origem européia cristã e árabe.
As ruas teriam sido definidas a partir da construção dos edifícios de
parede-meia que acompanhavam as ondulações do terreno e forma-
ram uma organização própria com marcantes influências portuguesas.
Como conseqüência desse ordenamento ruas irregulares interligam
entre si por becos muitas vezes sem saída, geralmente atendendo à
parte posterior ou de serviço das residências.
Para o autor, o traçado de Goiás, apesar de irregular mantém
certa coerência e, definindo as prováveis influências arquitetônicas,
revela que os becos estão mais próximos da arquitetura árabe denomi-
nada adarve do que de qualquer elemento ocidental. Citando Goitia,
descreve que o adarve seria a negação da rua como valor estrutural,
visto que não tem saída, nem continuação, servindo apenas ao interes-
se privado, compreendido como o conjunto das casas em cujo interior
se penetra através de sua passagem. Originalmente os becos teriam a
função de atender um número restrito de residências como acesso de
serviço. Formados por detrás das ruas principais, funcionavam urba-
nisticamente como solução para a existência das extensas quadras e
entrada de serviçais e animais. Os becos ligavam ruas e eram ladeados
pelos muros dos quintais e, em algumas situações, possuíam a função de
escoamento das águas de rios e córregos (Cf. BRITTO, 2006 e 2007).
Todavia, os becos passaram a ter outra finalidade que superou
305
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a de simples acesso de serviço. A estagnação econômica em virtude


da decadência da mineração, da crise do sistema oligárquico e, poste-
riormente, da mudança da capital para Goiânia contribuiu para que a
considerada “boa sociedade” parcelasse seus terrenos. Pequenas casas
foram construídas no fim de alguns quintais onde havia apenas muros
e portões e lentamente se transformaram em locais dos marginaliza-
dos e destino de ações condenadas pela moralidade dominante. Os
becos que anteriormente serviam como meio de passagem e entrada
de serviço, com a construção das residências isoladas ou distanciadas,
tornaram-se locais de transgressão, conflito e desordem. Discorrendo
sobre as relações ocorridas no espaço da cidade de Goiás, Souza Filho
(1987) relata:
Beco este que terminava numa pequena praça, apelidada
de ‘Covil das Mariposas’. Todas as casas foram constru-
ídas por Dr. José Neto de Campos Carneiro, que as alu-
gava para soldados e mulheres de vida livre. Era reduto
das ‘prostitutas baratas’ e local de constantes desordens e
crimes (SOUZA FILHO, 1987, p. 116).
Em Do beco da Vila Rica, Coralina volta ao passado para re-
velar, nas origens, a função de preservar a intimidade das mulheres.
Observamos a existência de uma relação entre o sentido original do
beco e suas novas finalidades: serviam para esconder e segregar perso-
nagens considerados “inferiores” ou “secundários”.
Contribuindo para a segregação feminina, além dos becos e
dos portões, o xale e as janelas de tabuleta também “protegiam” a mu-
lher. As mulheres, quando obtinham a autorização para circular na ci-
dade, deveriam ser resguardadas pelo xale, escuro de preferência, que
dissimulava “o busto, as formas, a idade” e caracterizava a submissão:
Em colaboração com tais hábitos havia o xaile.
Indumentária lusitana,
incorporada ao estatuto da família.
Xaile escuro, de preferência.
Liso, florado, barrado, de listras.
Quadrado. Franjas torcidas. Tecido fofo de lã.
De casimira, de sarja, baetilha, seda,
lã e seda, alpaca, baeta.
Dobrado em triângulo. Passado pela cabeça.
Bico puxado na testa.
Pontas certas, caídas na cacunda.
306
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Pontas cruzadas na frente,


enrolando, dissimulando o busto, as formas,
a idade, a mulher (CORALINA, 2001a, p. 105-106).
Os relatos dos viajantes europeus no século XIX também
contribuem para a visualização dessas relações, a exemplo do que es-
creveu Auguste de Saint-Hilaire:
Durante o dia só se vêem homens nas ruas da cidade de
Goiás. Tão logo chega a noite, porém, mulheres de todas
as raças saem de suas casas e se espalham por toda parte.
Geralmente fazem os seus passeios em grupos, raramente
acompanhadas de homens. Envolvem o corpo em amplas
capas de lã, cobrindo a cabeça com um lenço ou com um
chapéu de feltro. [...] Algumas vão cuidar de seus negócios
particulares, outras fazer visitas, mas a maioria sai à pro-
cura de aventuras amorosas (SAINT-HILAIRE, 1975, p.
54).
O francês amplia as informações do texto poético relatando
que as indumentárias utilizadas pelas mulheres não serviam somente
para o recato, mas para manter o anonimato: “não serem vistas” em
seus “negócios particulares, visitas e aventuras amorosas”. Revela tam-
bém, assim como Coralina, que a noite era o horário preferencial de
saída das mulheres, cobertas pelo xale e pela escuridão das ruas.
A importância do xale remete às lições de Norbert Elias
(1994), em O processo civilizador, quando avalia a história dos costumes,
os comportamentos típicos do homem “civilizado” ocidental e a re-
lação entre personalidade e estruturas sociais. As mudanças da socie-
dade e da psicologia são analisadas a partir do estudo da evolução de
atividades elementares, nas lentas modificações das maneiras como
os indivíduos se comportam e sentem. O autor demonstra o rumo de
uma “civilização” gradual, a exemplo do papel que esse processo exer-
ceu nas transformações dos sentimentos de vergonha e delicadeza:
“muda o padrão do que a sociedade exige e proíbe. Em conjunto com
isto, move-se o patamar do desagrado e medo, socialmente instilados”
(ELIAS, 1994, p. 14).
De acordo com esse entendimento, a obrigatoriedade do uso
do xale teria sido abolida quando as mulheres conquistaram um pa-
drão mais elevado de controle de impulsos. Seria uma
relaxação que ocorre dentro do contexto de um padrão
307
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

‘civilizado’ particular de comportamento, envolvendo um


alto grau de limitação automática e de transformação de
emoções, condicionados para se tornarem hábitos (ELIAS,
1994, p. 186).
A poesia reflete uma temática constante na obra da poetisa:
o elemento feminino. Quando não renunciavam ao casamento para
cuidar dos pais, geralmente transferiam a dependência do pai ao mari-
do, tendo sua atuação pautada quase que exclusivamente no ambiente
doméstico.
Conforme afirma Perrot (1998, p. 10), o santuário masculino
era o público e o político, e para as mulheres o privado, caracterizado
por seu coração e por seu lar. Os homens tornaram-se “os senhores
do privado e, em especial, da família, instância fundamental, cristal da
sociedade civil, que eles governam e representam, dispostos a delegar
às mulheres a gestão do cotidiano”. Elas deveriam ser criadas para
o casamento e por isso privilegiava-se a educação formal masculina.
As mulheres que ousavam afrontar as regras sociais podem ser con-
sideradas mulheres públicas: “depravada, debochada, lúbrica, venal, a
mulher – também se diz ‘a rapariga’ – pública é uma ‘criatura’, mulher
comum que pertence a todos” (PERROT, 1998, p. 7).
Pinheiro (2000) equipara Cora Coralina às mulheres francesas,
na tentativa de resistência social à exclusão. Dialogando com autoras
referências na área da história das mulheres e resistência feminina, a
exemplo de Michelle Perrot, Ivia Alves, Clarissa Pinkola e Luíza Lobo,
enfatiza que Cora Coralina desconstruiu o discurso arraigado das mu-
lheres do século XIX e se tornou uma das precursoras da condição de
mulher pública. A pesquisadora aponta a ousadia da poetisa ao trocar
termos simbólicos do jardim (espaço doméstico) como rosas, violetas
e miosótis; pelos termos do pasto (espaço público) como pau-ferro,
aroeira, pau-brasil e cedro:
Cora Coralina fez parte do grupo de mulheres que se ba-
teram contra a postura hegemônica masculina e contra os
limites impostos pelo machismo. Como elas, criou estra-
tégias femininas para gerar possibilidades de resistência
social à exclusão e fazer mudar a História. Como as fran-
cesas, Cora percebeu sua exclusão do espaço público e ex-
plicitou, em suas obras, seu papel social, em que são plan-
teados problemas de práticas institucionais e da situação
da mulher na sociedade, de ontem e de hoje (PINHEIRO,
2000, p. 77).
308
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Segundo afirma Gonçalves (2004), no século XIX os valores


reinantes consideravam que pureza, docilidade, moral cristã e materni-
dade, deveriam ser os predicados vinculados ao sexo feminino, quali-
dades que simbolizavam a responsabilidade de impregnar a vida social
do bom e do belo. Para a autora, os argumentos médicos, teológicos e
jurídicos contemplavam a desvalorização feminina pondo-lhe interdi-
ções de toda espécie e os discursos idealizavam um perfil centrado na
docilidade, bondade e, principalmente, circunscrito ao espaço da casa.
Consagravam-se argumentos contrários ao trabalho fora do lar e em
prol do casamento como espaço para o exercício das funções femini-
nas e de uma sexualidade sadia:
Nesse processo de elaboração de padrões comportamen-
tais femininos, a religião teve um papel fundamental. Afi-
nal, o catolicismo, ao impor às mulheres o arquétipo da
virgem e mãe, solidificou idéias veiculadas pela cultura vi-
gente, instituindo como virtudes femininas a castidade e a
abnegação. De acordo com essas elaborações, construídas
pela sociedade e pela religião, a sexualidade feminina re-
presentava um grande perigo. Nesse sentido, a ideologia
de caráter religioso regrava a sexualidade feminina; o sexo,
para a mulher, tinha finalidade meramente reprodutiva, evi-
tando excessos prejudiciais à saúde e à própria espirituali-
dade. [...] A partir do século XIX, a problemática sexual foi
retomada em outro estilo e com novas finalidades. Trata-se
da ingerência médica higiênica, que continuou a reprimir o
prazer gratuito e irresponsável, mas passou a exaltar a se-
xualidade conjugal. [...] Nesse processo de ordenação, por
comparação entre as diferenças, construiu-se uma imagem
de fragilidade e delicadeza relativa à mulher e de vigor e
força quanto à natureza masculina. Estabelecido o pressu-
posto científico de que a natureza feminina era intrinseca-
mente afetiva, portanto, inferior, iniciou-se um processo
de caracterização sentimental da mulher, que resultou no
traçado de um perfil que aglutinava características como:
fraqueza, sensibilidade, doçura, indulgência, submissão,
imaginação viva, fértil, mas fugaz. [...] A participação da
mulher na vida pública era considerada incompatível com
sua constituição biológica. As autoridades criavam e repro-
duziam argumentos contrários à presença da mulher em
locais públicos. De fato, a mulher pública era associada à
imagem da prostituta (GONÇALVES, 2004, p. 114-121).
309
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Os poemas e contos de Cora Coralina testemunham e denun-


ciam a situação feminina na sociedade goiana do século XIX e XX,
descrevendo, por exemplo, a forma com que a arquitetura da cidade
refletia a clausura destinada às mulheres com as janelas de tabuleta:
Antigamente, as boas casas de Goiás tinham janelas de ró-
tulas como tiveram todas as cidades coloniais deste imenso
Brasil. Em Goiás sobreviveram por mais de dois séculos,
sobrevivem ainda com velhos costumes domésticos que
vão se diluindo através das gerações, ao tempo que as ro-
tulasse modificam sem desaparecer de todo [...] Foram elas
o documentário mais expressivo da segregação da fêmea
dentro da casa senhorial. As de Goiás eram chamadas ró-
tulas de tabuleta, de tabuinhas, de colocação horizontal,
grampeadas num pino, vertical, móvel, com trincos e tra-
melinhas laterais, para abrir e fechar à vontade. As paredes
onde se encaixavam essas janelas eram de notável espessu-
ra, como inda se vê em tantas casas. Comportavam inter-
namente, dos lados, assentos lisos ou com almofadas onde
as mulheres, mais comodamente, pudessem estar à rótula.
Movendo trincos, pinos e tramelinhas era que a gente da
casa via o pequeno mundo da cidade e tomava conheci-
mento de seus moradores (CORALINA, 2003, p. 85-86).
Da Matta, em Carnavais, malandros e heróis (1997), avalia que o
processo de identificação do brasileiro remete a dois domínios sociais
básicos: a casa e a rua. A categoria rua abarcaria o mundo com suas
paixões e imprevistos; já a casa representaria um universo controlado.
Enquanto a rua indicaria movimento e trabalho, a casa simbolizaria
harmonia e descanso. O mundo da rua se aproximaria ao universo ho-
bbesiano até que alguma hierarquização pudesse promover a ordem.
Esses espaços permitiriam leituras diferenciadas e complementares da
sociedade brasileira compreendida pelo autor como relacional. Cora
Coralina, ao descrever a mulher goiana no universo da casa, se apro-
xima da compreensão do pesquisador e a mulher, dessa forma, assu-
miria o aspecto relacional ao interagir com a rua através das tabuletas:
“viam sem ser vistas”, “a gente da casa via o pequeno mundo da ci-
dade [a rua]”.
A constatação realizada a partir da análise do texto poético
também é evidenciada por Da Matta, quando, em A casa e a rua (1997),
afirma que a mulher tornou-se ente mediador por excelência. São me-
diatrizes e meretrizes (mediadoras), ligando o interno ao externo:
310
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

a mulher é aqui fonte de elos entre os homens – todos os


tipos de homens: jovens e velhos, inocentes e devassos,
ricos e pobres. [...] Em outras palavras, a mulher é básica
porque ela permite relacionar e, quase sempre, sintetizar
antagonismos e conciliar opostos (DA MATA, 1997, p.
129-130).
O poema oferece um panorama da situação da mulher goiana,
no século XIX, como “uma vítima da dominação masculina e prisio-
neira da educação tradicional que mantém a dominação” (MACHA-
DO, 2002, p. 134).

Considerações finais

A partir de sua poética, Cora Coralina conseguiu revelar en-


traves acenados e negligenciados pela historiografia, descrevendo nas
tematizações e denunciando através dos personagens, cenas e bastido-
res significativos à compreensão da sociedade goiana. Além da obra
se constituir em representação da sociedade em Goiás entre os sécu-
los XIX e XX, a própria vida da escritora, seu compromisso com os
obscuros e sua crítica social, dentre outras características, justificariam
inúmeras abordagens testemunhadas em sua herança.
O beco, local contraditório, além de acolher o lixo e as boni-
nas da cidade, consiste em um lugar privilegiado na poética da autora
por representar um limite físico e social. Coralina construiu em sua
obra um canto de amor pelos marginalizados, característica que revela
a dimensão moderna de seu projeto literário. Sua estratégia foi recon-
tar a história de Goiás sob o olhar da periferia, do marginal. A autora
registrou as práticas de violência simbólica destinadas a controlar as
ações das mulheres de sua cidade. Mulheres que a voz de Cora Cora-
lina conseguiu retirar do anonimato, resgatando-as da memória dos
becos e inserindo-as na história do mundo.

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em novem-


bro 2007.

313
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O DISCURSO JESUÍTICO A PARTIR DO


BRASIL

Karem Fernanda da Silva Bortoloti1


97

Resumo: No presente artigo abor- Abstract: In this article we will ap-


damos o discurso jesuítico a partir do proach the Jesuit’s speech, analyz-
Brasil, analisando a correspondência e ing the correspondence and other
outros textos produzidos pelos padres texts produced by the priests and
e irmãos que trabalharam nos mo- brothers that worked in the initial
mentos iniciais da missão brasileira. moments of the Brazilian mis-
Ao resgatarmos o discurso dos jesu- sion. When  referring to the Jesu-
ítas dos primeiros tempos da missão its’ speech from the beggining of
brasileira observamos as mudanças the Brazilian mission, we observed
sofridas pelo discurso produzido pe- changes made in the speech pre-
los membros da Companhia de Jesus, pared by the members of Compan-
a partir do contato mais direto com a hia de Jesus, from the direct contact
sociedade colonial brasileira. with the colonial society of Brazil.
Palavras-chave: jesuítas, indígenas, Key-words: jesuits, degradation,
degradação. indigenous

Tomando como referência o discurso sobre o nativo brasilei-


ro e as formas que deveriam ser assumidas pelo trabalho de sua con-
versão, o artigo será desenvolvido a partir da análise da documentação
produzida pelos jesuítas nos momentos iniciais do trabalho da Com-
panhia de Jesus no território colonial brasileiro. Analisaremos os textos
produzidos pelos mais diversos membros da Ordem que chegaram ao
território brasileiro a partir de 1549, na missão que trouxe os primei-
ros jesuítas liderados pelo Padre Manoel da Nóbrega. As cartas e es-
critos de Nóbrega, de Anchieta, de Azpilcueta Navarro, de Cardim, de
Simão de Vasconcelos e de outros padres e irmãos que compunham
os quadros da Companhia no Brasil tratam dos mais variados assuntos
e são, dessa forma, significativos para caracterizar as primeiras impres-
sões desses homens quanto ao indígena, à natureza, à habitação, às
formas de ocupação do território, os impactos culturais e, principal-
mente, à transformação da figura do indígena, que, pouco a pouco, foi

1
Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Estadual Paulista UNESP –
Franca, mestre em História pela mesma instituição. Atualmente é membro do Grupo
de Estudos em História e Filosofia da Educação (USP Ribeirão Preto) e Professora
da UNICOC Ribeirão Preto – SP. E-mail: bortoloti@hotmail.com
315
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

se tornando o centro dos pensamentos e atitudes dos jesuítas.


De uma forma ou de outra, todos expressaram seus pontos
de vista, que ficaram cada vez mais parecidos à medida que o contato
com o indígena e seu cotidiano se tornava mais complexo. Apesar da
busca de uma convivência harmoniosa e do esforço despendido no
apostolado, os jesuítas mostraram-se homens de sua época, principal-
mente na mudança que ocorreu na forma de conceber o indígena e o
trabalho catequético.298
Para melhor compreendermos as posições adotadas pelos
jesuítas devemos considerar que seu pensamento em relação ao ho-
mem não europeu seguia os preceitos de Aristóteles, quando o mesmo
afirmava que alguns homens possuem uma humanidade inferior, que
são naturalmente bárbaros. A filosofia aristotélica impregnou o pensa-
mento de Tomás de Aquino, um de seus principais difusores durante
a Idade Média. Em virtude das leituras básicas para a formação dos
padres jesuítas, no mundo cristão; bárbaro passou a ser sinônimo de
pagão. A condição humana, portanto, estaria atrelada ao aspecto cul-
tural cristão.
Dessa forma, o jesuíta já migrava para o Novo Mundo com
uma visão preconcebida do índio, esse era um pagão que seria capaz
de ver a luz divina apenas por intermédio das palavras contidas nas
pregações jesuíticas (RAMINELLI, 1996, p. 55). O homem português
que chegava às novas possessões já sabia previamente que encontraria
bárbaros que necessitavam da presença da cultura dita “civilizada” e
que qualquer forma de resistência deveria ser vista como uma agressão
ao cristianismo.
A imagem dos nativos apenas em raros momentos foi vista de
maneira positiva pelos colonizadores, que, pelo contrário, os pintaram
mais como terríveis algozes do que como homens – mesmo homens
em potencial. Essa visão dos colonizadores em relação aos nativos
pode ser atestada pela própria vinda de religiosos para apresentar-lhes
o caminho da salvação. Os nativos eram descritos como selvagens que

2
Assim, a modificação apresentada pelo modo de pensar e agir aqui analisada é jus-
tificável, daí podermos afirmar que nosso trabalho tem como objetivo verificar como
a não aceitação da fé católica por parte dos nativos brasileiros fez com que a posição
dos jesuítas fosse mudando, cedendo lugar ao desânimo com o trabalho de conversão
e a detração da natureza desses homens.
316
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precisavam ser encaminhados a Deus e as descobertas foram, des-


sa forma, interpretadas como um sinal divino de que uma nova era
iniciava-se, daí a grande movimentação da Igreja.
Nos momentos iniciais do estabelecimento dos jesuítas, as
anotações por eles deixadas demonstram que estes acreditavam que
a aparente docilidade dos nativos facilitaria a obra de conversão. As
cartas evidenciam a vontade e a determinação que fizeram os missio-
nários aceitarem tarefa tão difícil e surpreendente. A religiosidade e a
moral católicas precisavam ser impressas nesse “papel em branco”,
como diria Nóbrega. Apesar do espanto, desde as primeiras horas de
estada no território brasileiro, a vontade de conhecer o indígena e de
catequizá-lo era grande.
No entanto, nos momentos de efetivação do trabalho, os jesu-
ítas passaram a descrever seus sentimentos sobre o indígena brasileiro,
demonstrando o desânimo quanto à obra de conversão e aculturação.
Se, primeiramente, a evangelização chegou a parecer fácil, aos poucos,
a prática da antropofagia, da poligamia, do nomadismo, da feitiçaria,
as incessantes nudez e embriaguez, enfim, a persistência dos antigos
costumes, começou a erigir uma barreira entre os jesuítas e os índios:
cruzar essa fronteira era aproximar os nativos do modo de vida cristão,
o que acabou se revelando possível, aos olhos dos missionários, ape-
nas através da erradicação dos costumes tidos como “abomináveis”.
Com o tempo e a convivência, o indígena passou a ser visto
de uma forma ainda mais degradante do que as impressas pela con-
cepção cristã européia de então, sendo concebido como um ser de-
moníaco e quase desprovido de caracteres humanos. Até meados do
século XVI, as crônicas escritas pelos portugueses não concebiam o
índio como demoníaco, mas apenas como um inocente que desconhe-
cia o verdadeiro criador. A concepção do índio demoníaco aparece,
no pensamento lusitano, apenas com os escritos jesuíticos, principal-
mente com o teatro de Anchieta (RAMINELLI, 1996, p. 154). Dessa
forma, os padres e irmãos, por vezes, duvidaram da capacidade de
converter o que já não era mais visto como inocente, perante tantos
impedimentos.

Os escritos jesuíticos

Dentre os vários escritos legados pelos membros da Compa-


nhia de Jesus, as cartas podem ser consideradas a parte mais significa-
317
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tiva, não apenas pela quantidade e conservação, mas, principalmente,


pela riqueza das informações. Esses documentos tinham para os je-
suítas, em primeiro lugar, o objetivo de transmitir aos superiores da
Companhia que permaneciam em Roma, Lisboa, Coimbra, Évora ou
outra localidade, informações sobre as características da nova terra e
as ações cotidianas dos missionários e catecúmenos.
Como destacam muitos autores, entre eles Serafim Leite, Ei-
semberg e Roberto Gambini, a maior riqueza de informações aparece
nas cartas que foram remetidas das localidades recém-descobertas, en-
quanto as cartas européias tinham antes o caráter instrutivo. Em vir-
tude da significação atribuída pelos jesuítas à epístola, inúmeras cartas
compõem o acervo deixado pelos padres e irmãos. No caso brasileiro,
entre 1549 e 1610, mais de 600 cartas foram escritas, por mais de 100
missionários, para os companheiros que ficaram na Europa ou ruma-
ram para outros lugares do mundo.
Como os primeiros viajantes, os membros da Companhia de
Jesus, tiveram impressões oscilantes quanto ao modo de vida e carac-
terísticas físicas dos ameríndios. Entretanto, buscaram, ao menos nos
primeiros momentos, ressaltar seus pontos positivos. Sabiam que o
trabalho seria árduo, mas a simplicidade do nativo facilitaria a conver-
são, fim último da estada no território colonial. A ausência de ídolos,
de leis, de um poder político centralizado, a crença na origem comum
da humanidade e o mito do homem selvagem contribuíram para res-
paldar a catequese e fortalecer a esperança de transformar os nativos
em fiéis seguidores do catolicismo.
No primeiro ano, o de estruturação da missão brasileira, os
jesuítas, mesmo percebendo qual seria a intensidade do trabalho ne-
cessário para a efetivação do ideal catequético, não tiveram grandes
manifestações de desânimo e degradação, principalmente porque,
naquele momento, pensavam que os ameríndios não apresentariam
grande resistência à aculturação que pretendiam impor pacificamente,
que eram apenas “crianças” que necessitavam do conhecimento cris-
tão. Assim, no momento de implantação dos trabalhos notamos uma
mescla de espanto, otimismo, vontade, capacidade de adaptação, que
não deve ser confundida com capacidade de aceitação do outro, da
diferença:
Dormem em redes d’ algodão junto ao fogo, que toda a
noite têm aceso, assim por amor do frio, porque andam
318
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nús, como tambem pelos Demonios que dizem fugir do


fogo. Pela qual causa trazem tições quando vão fóra. Esta
gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhece a Deus,
sómente aos trovões chama Tupane, que é como quem diz
cousa divina. E assim nós não temos outro vocabulo mais
conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus, que
chamar-lhe Pae Tupane (NÓBREGA, 1988, p. 99).
Em carta de 1550, o Padre João de Azpilcueta Navarro, tam-
bém expressa sentimentos semelhantes aos de Nóbrega:
No anno de quarenta e nove vos escrevi, Irmãos carís-
simos, e vos informei do fructo que se esperava nessas
terras do Brasil não só com os gentios, mas ainda com os
Christãos que aqui viviam em conformidade com elles e
talvez em piores costumes, como ovelhas que não tivessem
pastor que as pozasse no aprisco da vida chistã (NAVARRO
, 1988, p. 75).

Nos primeiros momentos, os jesuítas estavam bastante oti-


mistas quanto ao nativo e à sua conversão. O modo como viam os
nativos, como papel branco que tudo aceitaria, e o comportamento
imitativo dos indígenas, era o melhor sinal de que os mesmos seriam
moldados ao bel prazer dos religiosos. Os padres e irmãos enxergavam
os gentios como potencialmente cristãos, principalmente, por não se
recusarem a ouvir e aceitar, de certa maneira, a conversão imposta
através do batismo. Inicialmente a natureza dos nativos, ou a parte boa
que compreendiam dela, poderia conduzi-los aos caminhos do cristia-
nismo. A franqueza, a solidariedade e o desprendimento material dos
nativos incentivaram os primeiros passos missionários.
A convicção de que bastaria a substituição de certas práticas
para a conversão era parte do otimismo inicial que acompanhava os
jesuítas, se os “maus” costumes existiam deveriam ser eliminados para
a rápida concretização do trabalho de catequese. Quando os nativos
abandonavam alguns costumes, ou os jesuítas acreditavam que os ti-
nham deixado, os padres e irmãos se enchiam de esperanças com o
futuro da “cristandade brasileira”:
E quis Nosso Senhor que em essas aldeias se tirasse o cos-
tume da matança e das festas de suas comidas, e destas tres
ou quatro aldeias se escolheram alguns para se fazerem
christãos que mostravam mais fervor e vontade, dos qua-
es alguns tornaram atraz, outros com grandes tentações
319
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permaneceram, porque adoeciam muitas vezes e morriam-


lhes os filhos e outras provas que Nosso Senhor lhe fazia.
E succedeu uma grande mortandade destes que tornaram
atraz, por que assi pequenos, como grandes morriam e
muitos mais dos pequenos (NAVARRO, 1988, p. 142).
Todavia, ao perceberam as primeiras resistências à imposição
de novas regras sociais por parte dos indígenas, depositaram as suas
esperanças na conversão dos pequenos. Foi à educação das crianças
que recorreram ao notar que a tentativa de reeducar os pais através da
catequese não surtira os efeitos desejados. Acreditavam que as crian-
ças ainda não tinham sido corrompidas pelo ambiente pecaminoso de
seus pais. Construiu-se, dessa maneira, uma política relativa às crianças
que propagou ao longo do século XVI a idéia de que constituiria uma
“nova cristandade”. Os meninos seriam o “grande meio, e breve para
a conversão do gentio” (LEITE, 1954, v. 2, p. 293).
Como as tentativas de catequese através dos meninos não fo-
ram totalmente satisfatórias e a missão brasileira não tinha alcançado
os frutos esperados para o período, os jesuítas optaram por meios que
poderiam ser mais vagarosos, mas, conforme acreditavam, mais efica-
zes. Assim, apesar de afirmarem em alguns momentos que os nativos
tinham pouca notícia de Deus e, consequentemente, de suas leis para
a organização moral do cotidiano, buscaram semelhanças na religiosi-
dade e na cultura indígena, com o objetivo de facilitar a assimilação da
cultura católica européia, como uma espécie de catalisador.
Foi essa forma de apropriação da cultura desconhecida, sem
dúvida, a maior revelação da ousadia e da capacidade criativa dos je-
suítas para efetivar a conversão. Através da interpretação, mesmo que
precipitada, da cultura dos nativos – que os portugueses de maneira
generalizada chamavam de Tupi – os missionários conseguiram aí en-
contrar rudimentos da fé cristã, que, segundo eles, teriam sido apaga-
dos pelo tempo, mas que poderiam atuar como pontes para se chegar
até o índio. Daí, por exemplo, os mitos indígenas terem fornecido as
bases para as suas pregações:
Mas elles tienen tan poca noticia de Dios, que me parece
que se há de tener mucho trabajo, y una de las causas y más
principal es porque tienen rey, antes en cada Aldeia y casa
ay su Principal (LEITE, 1954, p. 231).

Nenhuma criatura adoram por Deus, somente os trovões


320
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cuidam que são Deus, mas nem por isso lhes fazem honra
alguma, nem comumente têm ídolos nem sortes, nem co-
municação com o demônio (ANCHIETA, 1933, p. 331).
As semelhanças encontradas e apropriadas foram: a crença na
imortalidade da alma, a oposição entre o bem e o mal e o medo que
tinham os índios de certas entidades tidas como demoníacas, a vene-
ração de Zomé, que os religiosos acreditavam ser São Tomé, santidade
que teria deixado marcas de sua passagem pela Bahia e histórias que
falavam de um dilúvio que, obviamente, foi associado ao Dilúvio de
Noé.
Todos os esforços na tentativa de uma aproximação cultural,
entretanto, não surtiram as reações esperadas, pois mesmo quando
pareciam aceitar a fé católica, os indígenas seguiam praticando seus
antigos costumes, julgados altamente pecaminosos pelos jesuítas. A
procura de semelhanças culturais foi uma tentativa de contornar os
primeiros fracassos e mascarar o desânimo presente desde o momen-
to em que perceberam que o trabalho tomava um rumo distinto do
planejado. Perceberam que nenhum dos outros povos com os quais
mantinham contato serviria como parâmetro para classificar o indíge-
na brasileiro – povos mais desenvolvidos, com maior aparato institu-
cional, que eram assimilados mais facilmente.
Diante de todos esses entraves, gradualmente, os jesuítas
perceberam a dificuldade de se ver efetivados a adoção do modo de
vida cristão e a inserção dos indígenas na sociedade colonial ainda em
construção. A constatação da impossibilidade em enquadrar o nativo
foi acompanhada de uma modificação do discurso catequético: gra-
dativamente, os escritos começaram a revelar um novo plano para a
conversão, centrado na sujeição física do nativo.
Os missionários, tomados por angústia, viram-se em uma
encruzilhada onde uma das alternativas era a desistência e a outra, a
mudança de estratégia. Apesar de todos os esforços e dos métodos
empregados no processo catequizador, os jesuítas sentiram necessi-
dade de uma ajuda externa e mais poderosa. Antes de demonstrarem
em seu discurso o desânimo em relação ao trabalho missionário e a
degradação da humanidade dos indígenas, os membros da Companhia
de Jesus buscaram nos aldeamentos mais uma alternativa para seu tra-
balho. Desejavam, como não conseguiram de outra forma, sujeitar
321
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

o nativo através da coação, do medo, nem que para isso tivessem de


utilizar, com o auxílio do exército português, a força. De acordo com
Anchieta (1933, p. 45), “certamente muito pouco fruto se pode colher
deles, se a força e o auxílio do braço secular não acudirem para domá-
los e submetê-los ao jugo da obediência”. Além disso, o autor afirma:
Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta capita-
nia para a conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor
quiser dar maneira com que sejam postos debaixo de jugo,
porque para este gênero de gente não há melhor pregação
do que espada e vara de ferro, na qual mais do que nenhu-
ma outra é necessário que se cumpra o compelle e o intrare
(ANCHIETA, 1933, p. 186).
Os jesuítas resolveram seguir Tomás de Aquino, para quem
os pagãos seriam convertidos através da persuasão, único instrumento
justo de conversão, pois a falta de fé era considerada um defeito da ra-
zão, que deveria ser corrigido de qualquer forma. Dessa maneira, com
o intuito de persuadir os nativos a adotarem um modo de vida total-
mente católico, o líder da missão brasileira, padre Manoel da Nóbrega,
apresentou, por volta de 1556, a política dos aldeamentos, como so-
lução para o problema da conversão, que ainda não tinha atingido os
objetivos idealizados.
As novas posições adotadas pelos jesuítas, que culminaram na
imposição dos aldeamentos como única forma possível para a concre-
tização do processo de aculturação, foi resultado direto de um proces-
so de racionalização (VAINFAS, 1989, p. 115). Os questionamentos
gerados pelas tentativas fracassadas, ou qualitativamente inexpressivas,
encaminharam para a tomada de posturas mais rígidas e pouco favorá-
veis à cultura nativa. A partir de então, os aspectos tidos como positivos
da cultura dos indígenas passaram a serem ignorados. As experiências
negativas convenceram os padres de que, para colher os resultados
esperados, seria útil isolar o nativo do colono e de sua ganância, valo-
rizando, mais uma vez, o exemplo dado pelos homens da Companhia de
Jesus (ABREU, 1976, p. 163). O plano dos aldeamentos foi, assim, um
plano político, pois visava à ordenação daquilo que impedia o trabalho
catequético e, consequentemente, segundo a perspectiva jesuíta, o de-
senvolvimento da sociedade colonial (ABREU, 1976, p. 114).399

3
“O plano idealizado por Nóbrega marca uma série de alterações na política jesuítica,
sendo a primeira delas representada pela criação dos aldeamentos” (ABREU, 1976, p. 114).
322
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Após anos de trabalho, os religiosos concluíram que a cate-


quização pelo convencimento era totalmente inviável, ou seja, ape-
nas por intermédio da pregação os missionários não alcançariam seus
objetivos. A concretização do ideal missionário da Companhia de Jesus
se faria por duas medidas: repressão implacável aos costumes intole-
ráveis e concentração dos catecúmenos em aldeamentos organizados
pelos religiosos. Os padres e irmãos da Companhia de Jesus destacaram
a crueldade que viam nas reações do gentio não apenas porque não se
enquadravam ao modo de vida cristã, mas, também, para legitimar os
meios utilizados no trabalho de catequese:
Entendo por experiência o pouco que se podia fazer nesta
terra na conversão do gentio por falta de não serem sujei-
tos e ele ser uma maneira de gente de condição mais de
feras bravas que de gente racional e ser gente servil que se
quer por medo e sujeição (LEITE, 1954, p. 412).
A reclusão dos indígenas em um local organizado e adminis-
trado pelos homens da Companhia de Jesus atendia, ao menos no Brasil,
especificamente a três objetivos. Em primeiro lugar, isolar os índios
tidos como “mansos”.4100 Em segundo, os aldeamentos ampliavam a
área habitada, dificultando a fuga para a floresta dos escravos africa-
nos. E, por último, era interessante para as autoridades e a população
em geral a presença dessa mão-de-obra nas proximidades para atender
a qualquer eventualidade. No entanto, o maior propulsor para a ma-
nutenção dos aldeamentos era, sem dúvida, o religioso, uma vez que
a desestruturação da unidade sociocultural indígena tornava-os mais
permeáveis à catequese.
Consolidou-se, então, entre os jesuítas, a convicção de que
todos os impedimentos para a conversão seriam removidos se ocor-
resse a sujeição do gentio com a ajuda da força da Coroa. Os padres e
irmãos compreenderam que a catequização seria impossível e todo o
trabalho vão se os indígenas não fossem isolados do meio em que vi-
viam e rigorosamente orientados pelos jesuítas. Julgaram, enfim, que
a legitimação da autoridade, através do consentimento gerado pelo
medo, seria a melhor forma de “conduzir” os nativos a viverem sob
a lei cristã:

4
Mansos, como eram chamados os ameríndios, quer dizer “domesticados”.
323
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Gonçalo Alves: - Dissemos, isto, sou tão descuidado, que


logo me esquece que esperaes, como vos louvam, como
o fio quente, quando o batem; eu me guardarei de vos
dar mais martelada, porque me não queime, por amor de
Deus, que me digas algumas das razões, que os padres dão
para estes gentios virem a ser christãos, que alguns têm
acertado, que trabalhamos debalde, ao menos até que este
gentio não venha a ser mui sujeito, e que com medo venha
a tomar fé (NÓBREGA, 1988, p. 235).

Todos estes impedimentos e costumes são mui faceis de


se tirar se houver temôr e sujeição, como se viu por experi-
ência desde o tempo do governador Mem de Sá até agora,
porque com os obriga a se juntar e terem igreja, bastou
para receberem a doutrina dos padres e perseverar nela até
agora, e assim será sempre, durante esta sujeição, havendo
residencia de mestres com eles que os não deixem cair por
sua natural frieza (ANCHIETA, 1933, p. 333).
Os jesuítas agarraram-se tão firmemente ao projeto dos al-
deamentos e aos benefícios que viam nessa medida que enxergavam
um forte desejo de adesão por parte dos catecúmenos e afirmavam
que estes pediam para viverem sob a proteção dos padres e irmãos:

Da terra à dentro doze leguas desta povoação me vieram


pedir para se ajuntarem dose povoações em uma e man-
daram nesse entretanto aqui os filhos. Essa povoação, que
disse que está daqui oito leguas, sera logo junta com mui
pouco trabalho, por que daqui onde estou tenho que fazer
que se ajuntem, mandando chamar os principais (NAVAR-
RO, 1988, p. 323).

Nesta povoação há grande quantidade Indios, porém ainda


não estão todos juntos e portanto não se manda o numero
delles, porém são 13 ou 14 aldeias as que hão de ajuntar em
uma povoação. É para louvor do Senhor como se gosam
com a vida que se lhes propõe e com a doutrina que se lhes
ensina (NAVARRO, 1988, p. 326).
A proposta dos aldeamentos marcou definitivamente a polí-
tica de trabalho dos jesuítas no Brasil. Foi criado um espaço para a es-
truturação de uma nova cultura. Dessa forma, após a implantação dos
aldeamentos, os homens da Companhia envolveram-se intensamente
na administração desses novos locais de catequese, acreditando ser
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a melhor solução para os indígenas, os colonos e os clérigos, enfim,


para todo o corpo da sociedade colonial. Nessas localidades, os jesuí-
tas poderiam catequizar os nativos mais rapidamente, isolando-os dos
maus exemplos e exploração dos colonos, além de limitar o espaço
físico que ocupariam, liberando áreas para a agricultura e a expansão
de vilas e cidades, adequando-os às formas ditas “civilizadas” de eco-
nomia e convívio social.
Em suma, a última tática jesuítica de conversão impunha uma
nova organização social e territorial, e passava por uma nova atitude
em relação ao corpo e a habitação, como o uso de roupas, a proibição
dos adereços e a eliminação das antigas casas. Um novo entendimento
de Deus e uma nova sistemática de hábitos que conformariam outro
cotidiano eram colocados para os nativos. Impuseram, assim, regras
para os relacionamentos sexuais e matrimoniais, e desejavam também
uma nova sistemática para a educação das futuras gerações.
Um dos fatores utilizados pelos jesuítas para justificar a ado-
ção dessas táticas, foi o fato de que os maus hábitos, como um todo,
não seriam afetados, de acordo com os padres, pelas estratégias utili-
zadas até então. Os índios seguiam, mesmo diante de todas as proi-
bições, praticando seus antigos costumes – o que conduziu a um au-
mento dos comentários degradantes acerca dos nativos nos relatos
da Companhia. Os jesuítas começaram a não ter pudores em admitir
que os mesmos seres que concebiam como crianças “inocentes”, que
necessitavam de ajuda e educação, haviam se transformado em verda-
deiros monstros capazes de aliarem-se ao Demônio para impedirem
à expansão do catolicismo europeu (NAVARRO, 1988, p. 154).5101 O
agrupamento não afastou desses homens as tentativas de minar as
expectativas jesuíticas.
Mesmo após a sistematização dos aldeamentos e a imposição
de todas as modificações ao cotidiano indígena, os jesuítas prossegui-
ram na detração do nativo: a sua reclusão em um espaço de convi-
vência amplamente católico não afastou a imagem muito próxima da
animalidade presente, ha algum tempo, nos relatos jesuíticos. O rela-
tivo sucesso alcançado pela adoção de novas normas de organização

5
“Assim, o índio é inicialmente, um gentio, passadas algumas décadas do primeiro
contato, o índio é um pecador arrependido, em seguida, ele é representa Lúcifer, ser
demoníaco” (NAVARRO, 1988, p. 154).
325
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socioculturais, não fez os jesuítas abandonarem a figura do indígena


como ente inconstante, incapaz de compreender a religião católica, de
abandonar seus antigos costumes e de assumir a humanidade trazida
pelos ensinamentos cristãos:
D’este mesmo odio que se têm ao Gentio, nasce não lhe
chamarem sinão cães, tratarem-nos como cães, não, olhan-
do o que dizem os Santos que a verdadeira justiça tem
compaixão e não indignação, e quanto maior é a cegueira e
bruteza do Gentio e sua erronia, tanto se mais havia o ver-
dadeiro Christão apiar a ter delle misericordia, e ajudar a
remediar sua miseria quanto nelle fose, à imitação daquelle
Senhor (NÓBREGA, 1988, p.197).
Destarte, no final do século XVI, os jesuítas portugueses ha-
viam, majoritariamente, abandonado as posturas dos missionários que
os inspiraram nas décadas iniciais de sua expansão pelo mundo. O
cotidiano brasileiro colocou-os diante de situações – ocasionadas pelo
contato de culturas distintas – que não estavam previstas nas regras
de Loyola e nem faziam parte do campo de possibilidades do pensa-
mento jesuítico da época. As contendas do dia-a-dia, as desventuras da
conversão e a resistência indígena conduziram o missionário a cogitar
a inviabilidade da catequização dos ameríndios. Ocorreu uma verda-
deira alteração da moral jesuítica nas colônias e a missão em território
brasileiro foi obrigada, em virtude de certas peculiaridades, a adaptar-
se e a tornar-se um tanto quanto pragmática.
Esperamos, com esse artigo, ter demonstrado minimamente
como os impactos do ambiente sociocultural brasileiro promoveram
deslocamentos nas ações da Companhia de Jesus e na sua maneira de
enxergar o nativo do território brasileiro, bem como de conceber a sua
conversão à cultura católica européia.

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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em novem-


bro2007.

328
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O FAZER HISTÓRICO E A INVISIBILIDADE


DA MULHER
102
Losandro Antônio Tedeschi1

Resumo: Embora a historiografia Abstract: Even thought the official


oficial as tenha esquecido, as mulhe- historiography may have forgot-
res nunca estiveram ausentes da his- ten them, women have never been
tória. Não se trata agora de agregá-las absent from history. It is not about
ao ensino dessa disciplina como um adding them now to the teaching of
elemento que foi esquecido. O gêne- this subject as an element that has
ro como categoria de análise altera as been forgotten. The genre as analy-
inter-relações, introduzindo os con- sis category modifies the inter-rela-
ceitos do heterogêneo e do plural na tions, introducing the concepts of
complexidade das significações da heterogeneous and of the plural in
experiência humana, o que vai exigir the complexity of the significances
profundas alterações na forma como of the human experience, what may
nós educamos. require deep changes in the way we
Palavras-chave: história, gênero, in- educate.
visibilidade, poder, reconstrução. Key-words: history, gender, invis-
ibility, power, reconstruction.

O fazer histórico e a invisibilidade da mulher

Vivemos em um mundo em que não existem igualdades de


oportunidades para mulheres e homens. Ainda que em países como
o nosso esta igualdade está colocada juridicamente desde muitos anos
atrás.
A questão que se coloca é: como contribuir através do ensino
da história para promover a igualdade cidadã e a equidade de gênero
em nosso país? Nós professores de história trabalhamos muito próxi-
mos ao conceito de história como instrumento de conhecimento da
realidade humana, e em muitas vezes desenvolvemos ações sobre ela.
É nesse terreno prático de ensino-aprendizagem onde devemos con-
cretizar o questionamento do androcentrismo, desde a transmissão de
valores de conceitos sexistas até a renovação de modelos e formas de

1
Doutor em História pela UNISINOS, membro da REPEM (Red Educación popular
entre Mujeres en la América Latina) e coordenador do NAEI (Núcleo de Assessoria
e Estudos Interculturais) pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões – URI , campus de Santo Ângelo – RS. E-mail: naei@urisan.tche.br
329
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ensinar. Acredito que é no terreno cotidiano do ensino aonde reside


a maior possibilidade operativa de mudanças. Para isso é necessário e
possível que os professores possam incorporar a discussão do gênero
no ensino da história.
Integrar este conceito de análise ao estudo da história não sig-
nifica acoplar a questão feminina como questão exótica à parte. Não
interessa nessa perspectiva uma unidade sobre a condição da mulher.
Interessa é ver a mulher na história integrada ao processo histórico. É
preciso convencer que a marginalização da mulher nos estudos histó-
ricos não implica que as mulheres tenham sido excluídas do processo
histórico. Por questões de ética e de rigor histórico, resulta errôneo
ensinar a história dentro de uma perspectiva parcial, fragmentada, ig-
norando a experiência coletiva de mais da metade da humanidade.
A pergunta chave é: o que se constitui matéria da ciência his-
tórica? Como entender o processo pedagógico em sala de aula onde a
absoluta maioria dos educadores são mulheres e a escola permanece
solidificada em estruturas androcêntricas?
Para começar, o pensamento educacional na história brasileira
é inflexivelmente machista e patriarcal. Paradoxalmente, a docência e o
magistério de primeiro e segundo grau são atividades predominante-
mente femininas, mas o pensamento sobre a educação é hegemonica-
mente masculino. Basta percorrer o panteão das ilustres e venerandas
figuras pedagógicas brasileiras para perceber que as teorias educacio-
nais foram construídas pelo masculino.
O androcentrismo que impregna o pensamento científico é
um dos preconceitos mais devastadores e está instalado de maneira
tão arraigada em nossas concepções que nos torna incapazes de refle-
tir sobre elas e, assim, impede que a relação social homem-mulher se
transforme de maneira significativa. A visão androcêntrica do mundo
é compartilhada por todos, mulheres e homens, e nos passa desper-
cebida, pois tendo sempre estado nela submersos, encaramo-la como
natural, universal e imutável.
A linguagem oral reflete essa discriminação sexista e reforça o
modelo lingüístico androcêntrico. Existem palavras para denominar o
indivíduo do sexo masculino e outras para o sexo feminino, mas quan-
do por razões de economia é preciso utilizar uma forma comum para
se referir a indivíduos de ambos os sexos, a opção é sempre pelo ter-
mo no masculino - o homem, senhores pais, prezados alunos -; dessa forma,
330
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

a identidade sexolinguística feminina fica distorcida. A menina deve


aprender sua identidade sexolinguística para imediatamente renunciar
a ela. O mesmo ocorre nos estudos sobre educação que utilizam indis-
tintamente termos aparentemente neutros, masculinos ou femininos,
desconsiderando a distinção de sexo das (os) professoras (es), o que
pode ser utilizado para reforço de estereótipos e preconceitos de gê-
nero.
Por outro lado, a herança crítica na historiografia brasileira,
tanto do marxismo como do feminismo, houve a preocupação por
questionar relações desiguais socialmente construídas e reconstruí-
das em embates de poder (no caso do feminismo, entre os sexos e
pela institucionalização da supremacia masculina). Em ambos os co-
nhecimentos ressaltam-se o projeto por negação de propriedades,
expropriações e apropriações (no caso do feminismo, tanto do valor
produzido pelo trabalho das mulheres, socialmente reconhecido ou
não, como de seu corpo, voz, representações). Compartem também,
o marxismo e o feminismo, a ênfase na materialidade existencial (para
alguns feminismos, a vida cotidiana, para outros, a textual, e, para ou-
tros ainda, o cenário histórico, hoje, o capitalismo em formato neo-
liberal), considerando que essa materialidade se sustenta por práticas
em um real vivido e um real idealizado e ideologizado (em instituições,
no privado e no público, e na micropolítica das relações sociais).
Por outro lado, advoga-se, tanto no marxismo como no femi-
nismo, a possibilidade de mudanças acionadas por sujeitos, pautando-
se, portanto por investimento em realizar uma utopia humanista, vetor
que anima até as versões mais domesticadas (liberais) do feminismo
ainda que nelas se limite o horizonte da utopia a uma agenda de de-
fesa por diferenças, por igualdade de oportunidades e direitos para as
mulheres.
Nesse sentido, a tradicional perspectiva feminista em educa-
ção dirige-se, fundamentalmente, a questões de acesso e desempenho
das mulheres no sistema educacional. São importantes, nessa pers-
pectiva: as estratégias discriminatórias pelas quais as mulheres têm di-
ficuldades de acesso ao sistema educacional de forma geral e a certas
carreiras educacionais em particular; os preconceitos em relação a seu
cultivo de determinadas disciplinas (matemática/ ciências); o trata-
mento discriminatório que tende a favorecer os homens na relação
e na interação de sala de aula entre professor/a e estudantes. Outra
331
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

abordagem, agora também já tradicional, é aquela que focaliza os este-


reótipos em relação a papéis sexuais predominantemente em matérias
didáticas e livros-texto.
Embora essas abordagens continuem importantes e centrais
no projeto político de construir uma escola e um fazer histórico não
sexista, elas têm sido ampliadas por outras investigações e concepções
que contestam o caráter predominantemente masculino e patriarcal
do próprio conhecimento corporificado em sala aula. Aqui o conhe-
cimento e o currículo não são meramente contaminados e distorcidos
por certos estereótipos e certas concepções masculinas: as próprias
formas de conhecer, ensinar e aprender a história são problematizadas
expressando de forma privilegiada a experiência e perspectiva mascu-
lina. O conhecimento é masculino. O currículo é masculino.
Desde Aristóteles, um dos primeiros a escrever, entre outras
coisas, sobre as mulheres, que esta metade da humanidade é descrita
como alguém inferior, pouco digno de confiança, pouco desenvolvido,
pouco inteligente e assim por diante. As relações entre marido-mulher
e pai-filho diferem da relação amo-escravo, por que estes por natureza
não pertencem a si mesmo. Porém, a justificação da autoridade é base-
ada no principio de que o “macho é mais apto para a direção do que a
fêmea e o velho mais apto do que o jovem”, portanto, a mulher deve
ser governada como se governa um cidadão; porém, sem haver alter-
nância no poder, por que a mulher não tem autoridade (COLLING,
2002).
Com efeito, Platão, Aristóteles ou os Pais da Igreja não ti-
nha receios, em afirmar a desigualdades dos sexos. Para eles isso fazia
parte de um fato da natureza. Um exemplo do comportamento de
Aristóteles é o seu mal-estar diante de uma justificativa da escravidão,
cuja naturalidade lhe parecia incerta, enquanto a sujeição das mulheres
soava-se evidente (ARISTÓTELES, 1960, p.391).
A época moderna é, sobre este tema, bem interessante. O
sujeito cartesiano, unitário e centrado, que está na raiz mesma do pro-
jeto cientifico, é macho, branco e europeu. A “razão” que preside o
empreendimento científico, longe de representar um ser universal, ex-
pressa a experiência e a perspectiva do homem e de um homem muito
particular. O aparecimento do conceito de igualdade nesse período
ajuda a entender tantas reticências.
O Contrato Social de Rousseau parece ignorar o lugar das mu-
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OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

lheres numa futura república. Para Rousseau e Spinoza, a razão das


mulheres não pareceria lógica. Para faltar-lhes o controle, atributo do
homem moderno, sua razão era considerada fraca, frágil sem parâme-
tros, o que a torna obrigatoriamente à dependência da razão masculi-
na. Mais além, esta peculiaridade obrigava as mulheres ao aprendizado
das virtudes e as regras de conduta. Por não possuírem razão, as mu-
lheres seriam dotadas de paixões desenfreadas; paixões tanto como a
razão, sem limites. Dizia que a mulher só deveria cultivar a razão, se
essa faculdade pudesse lhe garantir o cumprimento de seus deveres
considerados como “naturais”, ou seja, obedecer e ser fiel ao marido e
cuidar dos filhos e da casa. Segundo esse autor, a mulher que ousasse
se dedicar à vida intelectual deveria permanecer solteira. Ela iria contra
a sua natureza, contra os seus deveres de esposa. Daí a educação moral
que, dos gregos a Rousseau, alimentará o discurso sobre as mulheres;
uma educação moral que segundo esses autores, as afastaria do acesso
ao saber e do exercício de sua razão. Educação que imprimia um limite
a vontade, sem freios, da criatura insatisfeita que era a mulher.
Paradoxalmente, como observou Michele Perrot (1998), cabe
à mulher, definida como “naturalmente” dotada de características vol-
tada aos cuidados (carinho, amor, preocupação pelos outros), a res-
ponsabilidade de desenvolver esse ser racional, lógico, cientifico – o
homem, naturalmente – através do processo de escolarização. O su-
jeito pensante, racional, é masculino. A mulher é apenas o seu outro,
o “outro” da razão. A educação institucionalizada através da história
atribui a mulher esse papel contraditório: o de produzir o homem ra-
cional a partir de sua suposta – feminina – irracionalidade.
Este marco científico e ideológico condicionou a construção
histórica da mulher. Durante muito tempo, as ciências naturais, como
também as ciências humanas, e nela a história, se concentrou no espa-
ço racional do lugar do público, e o espaço privado não se considerava
o espaço vital para explicar o acontecer histórico.
Mas a crítica feminista à educação e às ciências e o conheci-
mento nelas corporificado não se limita, naturalmente, ao seu compo-
nente cientifico. A história e as demais ciências refletem e expressam
basicamente o ponto de vista e a experiência masculina nos seus cur-
rículos e disciplinas.
Esse falocentrismo pedagógico tem implicações não apenas
para a formação da identidade feminina, como também é evidente,
333
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

para a produção da identidade masculina. Ao fixá-las às subjetividades


que lhes foram atribuídas pelo patriarcalismo dominante, um currícu-
lo escolar masculinamente organizado contribui, centralmente, para
reproduzir e reforçar o domínio masculino sobre as mulheres.
É importante colocar no próprio centro do estudo da história
uma visão que destaque o papel da linguagem e do discurso na pro-
dução de subjetividades particulares e identifique suas conexões com
desejos e vontades de poder – de indivíduos e grupos particulares:
Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de
vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-
as assim ser vistas como naturais. O que pode levar a uma
espécie de auto depreciação ou até de auto desprezo siste-
máticos, principalmente visíveis, na representação como as
mulheres fazem [...]. A violência simbólica de institui por
meio da adesão que o dominado não pode deixar de con-
ceder ao dominante quando ele não dispões, para pensá-la
e para se pensar, ou melhor, para pensar a sua relação com
ele mais do que instrumentos de conhecimento que ambos
tem em comum e que, não sendo mais a forma incorpo-
rada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista
como natural (BOURDIEU, 1999, p. 47).
Teóricos sociais como Joan Scott, Bourdieu, Foucault e his-
toriadores como Léfebvre, Hobsbawn, Thompson, Burke, romperam
com a exclusividade de uma análise historiográfica enrijecida, e, hoje,
a nova história, valorizam os estudos da vida cotidiana, das mentali-
dades, dos sentimentos, da sexualidade, dos medos criando uma nova
investigação e ensino no estudo da história.
A contestação feminina ao conhecimento, à invisibilidade na
história e à escola existente coloca uma série de dificuldades e dilemas.
O que considero importante é talvez aquela que se centra na análise
dos valores e características que refletem as experiências diferenciadas
de gênero. O ponto de vista e a experiência masculina são criticados
– do ponto de vista feminista – por enfatizarem o cultivo de uma
personalidade aquisitiva, competitiva, agressiva, individualista e domi-
nadora, e por expressarem visão fechada, determinada, fixa, totalitária,
previsível e idêntica (MURARO, 2002, p. 198).
Podemos tomar como exemplo a leitura a-histórica da sepa-
ração entre o masculino e o feminino, que foi historicamente datada e
ligada ao desaparecimento das representações médicas da semelhança
334
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

entre os sexos, substituídas pelo inventário indefinido de suas dife-


renças biológicas. A partir do fim do século XVIII, o “discurso do-
minante (que) via nos corpos machos e fêmeas um só e mesmo sexo
ordenado hierárquica e verticalmente” sucede “uma anatomia e uma
fisiologia sem medida comum” (LAQUEUR, 1992, p. 38).
Inscrita nas práticas e nos fatos, organizando a realidade e o
quotidiano, a diferença sexual (que é sujeição de umas e dominação
de outros), é sempre construída pelo discurso que funda e legitima.
É desta forma que a divisão do trabalho segundo os sexos é “produ-
zida” por todos os discursos - da economia política, das legislações
estatais, das demandas dos empregadores, das reivindicações sindicais
- que enraízam numa diferença de natureza a oposição entre atividade
doméstica e atividade pública, entre função reprodutora e trabalho
produtivo, entre o lar e a roça.
Para Joan W. Scott são estes discursos, essas representações
que provocaram “uma divisão sexual da mão-de-obra no mercado
de trabalho, reunindo as mulheres em certas atividades, colocando-as
sempre abaixo na hierarquia profissional, e estabelecendo salários a
níveis insuficientes para sua subsistência” (SCOTT, 1992). Longe de
ser o reflexo, ou a representação das evoluções econômicas, a noção
de divisão “natural” das tarefas segundo o sexo deve, então, ser con-
siderada como um fator do desenvolvimento industrial, como uma
justificação, em nome de uma definição ideal das tarefas próprias das
mulheres.
Um dos desafios para superar isso é tentar desprender-se de
um longo e eficaz aprendizado que ainda nos faz olhar os discursos
apenas como um conjunto de signos, como significantes que se re-
ferem a determinados conteúdos, carregando tal ou qual significado,
quase sempre oculto, dissimulado, distorcido, intencionalmente detur-
pado, cheio de reais intenções, conteúdos e representações, escondi-
dos nos e pelos textos, não imediatamente visíveis.
Para Foucault (1979), nada há por trás das cortinas, nem sob
o chão que pisamos. Há enunciados e relações, que o próprio discurso
põe em funcionamento. Analisar o discurso seria dar conta exatamen-
te disso: de relações históricas, de representações muito concretas, que
estão vivas nos discursos, e que invisibilizam as mulheres. Por exem-
plo: analisar os discursos históricos sobre as mulheres, suas histórias
de vida e luta pela cidadania, nessa perspectiva, significará antes de
335
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

tudo tentar escapar da fácil interpretação daquilo que estaria por trás
dos documentos, procurando explorar ao máximo os materiais, na
medida em que eles são uma produção histórica, política; na medida
em que as palavras são também construções; na medida em que a lin-
guagem também é constitutiva de práticas.
É nessa perspectiva que os discursos (no sentido Foucaultia-
no) e as representações (no sentido de Chartier) situam-se num campo
estratégico de poder no fazer histórico. Os discursos estão localizados
entre relações de poder que definem o que eles dizem e como dizem
e, de outro, efeitos de poder que eles põem em movimento.
Para reverter essa situação, é preciso considerar-se seriamente
formas de introduzir o ponto de vista e a experiência feminina na es-
cola e no currículo. Dada a rigidez e conservadorismo dos currículos
de história existentes é difícil ver como isso funciona. Certamente isso
deveria começar pela formação fornecida nas faculdades de educação
e nos cursos de magistério. Um exame do currículo dessas instituições
certamente mostraria a pouca ou nula atenção dada à questão do gê-
nero e do patriarcado e suas implicações para o ensino.
Isso permitirá uma visualização do problema que constituiria
um elemento provocador de debate do elemento público. Desde os
docentes em sala de aula, a homens e mulheres dedicados à inves-
tigação histórica, percebemos que é possível achar as vertentes para
visibilizar as mulheres na história. Percebemos uma preocupação para
a igualdade, mas esse reconhecer dados esquecidos, partem do pres-
suposto que a experiência histórica das mulheres seja igual necessaria-
mente a dos homens. Não se questiona sequer a possibilidade de uma
experiência diferente. Constitui um caminho de visibilidade que não
compartilhamos por entender insuficiente.
Além disso, é preciso inventar formas de intervir diretamente
no próprio currículo das escolas de 1ª e 2ª graus para criticar seu an-
drocentrismo e construir um conhecimento menos sexista. É preciso
examinar os currículos existentes para ver não apenas em que exten-
são a experiência e a perspectiva feminina estão excluídas, mas para
criticá-los naquilo que expressam, de forma privilegiada, a experiência
e o ponto de vista masculino. Temos que perguntar: a qual ponto de
vista e experiência está o ensino de história concedendo autoridade
e legitimidade? Quais as posições de poder – em termos de gênero
– estão sendo reforçadas com as experiências proporcionadas pelo
336
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ensino da história e pelos materiais existentes? Que materiais e recur-


sos – largamente existentes na literatura e historiografia em geral e na
comunidade – poderiam ser introduzidos para ajudar a rever tais ten-
dências existentes? Como envolver os/as estudantes ativamente nesse
processo de organização e criação de um conhecimento histórico que
subvertam as relações patriarcais existentes de poder e torne a história
da mulher visível?
É central uma perspectiva que subverta, conteste, desestabi-
lize os valores masculinos inscritos no fazer da história, uma compre-
ensão das formas pelas quais os mecanismos de produção de nossas
identidades sexuais se dirigem fundamentalmente ao corpo e a o físi-
co. Nossas análises do processo de formação têm sido, excessivamente
racionalistas e intelectualista. Mas se há alguma coisa importante que
nos foi ensinada pela literatura, pela historiografia recente em teoria
social é que a inscrição do social na produção da subjetividade esta
inextricavelmente ligada a sujeição de nossos corpos. Ainda temos
muito a aprender sobre noções como “biopolítica” e “poder” de Fou-
cault e de “habitus e simbólico” de Bourdieu. Se quisermos realmente
compreender todas as implicações sociais no estudo da história em
sala de aula, temos que deixar para trás a concepção idealista e racio-
nalista profundamente arraigada na análise e nas práticas educacionais.
Nossa produção como homens e mulheres, através do processo de
escolarização, passa fundamentalmente pelo disciplinamento de nos-
sos corpos. Uma perspectiva que pretenda ser subversiva dos arranjos
existentes não pode deixar de levar isso em conta.
Estas questões, esses comentários trazem a luz o debate sobre
a história das mulheres. A história das mulheres engloba, portanto, a
história de suas famílias, do seu cotidiano, de seu trabalho, de suas
representações na literatura, na mídia. A visibilidade da mulher é a his-
tória do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreu ou que
praticou, da suas loucura, de seus sentimentos, etc. Sua história é igual-
mente, a das representações que fazem odiar, como as que cercam as
bruxas, as lésbicas, as prostitutas, as rebeldes, as anarquistas, as loucas.
As mulheres aparecem de uma história ditada pelas fontes documen-
tais, fontes de mudanças estruturais no mundo político, econômico,
religioso. Elas circulam em documentos de toda a sorte: processos
de inquisição, greves, leis, livros, crônicas de viagem, atas de batismo,
diários, fotos, relatório médicos, jornais, pinturas, policias, etc.
337
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

No fazer histórico sobre a questão feminina há certos pro-


blemas. Um deles é a falta de historiadores, homens e mulheres, que
interpretem com maior frequência o estabelecimento, o início e a im-
portância dos fatos históricos que envolvem as mulheres, como falta
um maior número de pesquisas regionais ou sínteses, que nos per-
mitam resgatá-las de regiões onde o tema ainda não despertou voca-
ções. Faltam debates sobre a história das mulheres. E poderíamos no
perguntar: para que serve a história das mulheres? E a resposta viria
simples, para fazê-las existir, viver e ser. Esta é uma das funções pri-
mordiais da história.
São perguntas e tarefas difíceis. Elas apontam, entretanto,
para questões muito concretas e cotidianas. É freqüente cobrar-se às
perspectivas crítica em educação o fato de não apontarem soluções
concretas. A dominação masculina na sociedade, na escola, no ensino
de história é um fato muito concreto e cotidiano. Agir para contestá-la
não é nenhuma tarefa abstrata e distante. Pertence à própria esfera do
cotidiano e pode ser enfrentada logo na segunda feira pela manhã, em
nossas salas de aula. Mas pode ser iniciada mesmo antes – no domingo
à noite e na nossa própria casa.

Referências Bibliográficas

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BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand
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histórias: do reducionismo econômico ao reducionismo cultural: em
busca da dialética. Revista de pós-graduação em história da UFRGS, Porto
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FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FREITAS, César Marcos (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva.
São Paulo: Contexto, 1998.

338
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: o corpo dos gregos a Freud.


Paris: Gallimard, 1992.
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para o encontro da diferença. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente. Porto: Afronta-
mento, 1994. v. 5.
_____. Os excluídos da história. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992.
SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil de análise histórica. Recife:
SOS CORPO, 1991.
_____. História das mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da
história. São Paulo: Novas perspectivas, UNESP, 1992.
STREY, Neves Marlene. Mulher: estudos de gênero. São Leopoldo:
Unisinos, 2002.

Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em novem-


bro 2007.

339
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

REPENSANDO O FAZER HISTÓRICO: A


FOTOGRAFIA E O SEU PAPEL DIDÁTICO NA SALA
DE AULA
103
Bárbara Maria Santos Caldeira1

Resumo: O texto apresenta a relação Abstract: The text presents the


entre a História e a Fotografia com o relation between History and the
objetivo de discutir a importância da Photograph with the objective to
imagem, a exemplo da obra do artis- argue the importance of the im-
ta e antropólogo Pierre Verger, como age, for example of the workman-
documento e fonte histórica repre- ship of the artist and anthropolo-
sentante do século XX e, portanto, gist Pierre Verger, as document and
facilitador do processo ensino-apren- representative historical source of
dizagem na construção e identificação century XX and, therefore, facilita-
dos alunos como sujeitos histórico- tor of the process teach-learning in
culturais. the construction and identification
Palavras-chave: história, fotografia, of the pupils as description-cultural
ensino. citizens.
Key-words: history, photograph,
teach.

O conhecimento das imagens, de sua origem, suas leis


é uma das chaves de nosso tempo. [...] É o meio tam-
bém de julgar o passado com olhos novos e pedir-lhe
esclarecimentos condizentes com nossas preocupações
presentes, refazendo uma vez mais a história à nossa
medida, como é o direito e dever de cada geração.
Pierre Francastel

Considerações iniciais

Walter Benjamin, filósofo alemão que marcou a aura intelectu-


al do século XX, afirmou que a “névoa que recobre os primórdios da
fotografia é menos espessa que a que obscurece as origens da impren-
sa”. Essa diferença relativa à densidade que remonta ao nascimento da

1
Doutoranda em História pela Universidade de Burgos – Espanha. Coordenadora de
Projetos, Programas e Conselhos - Secretaria Municipal de Assistência Social de Ala-
goinhas - BA. Integrante do NPEJI – Núcleo de Pesquisa e Estudos sobre Juventude,
Identidade, Cidadania e Cultura. Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea/
Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Licenciada em História pelas Faculda-
des Jorge Amado. E-mail: barbaracaldeira@yahoo.com.br
341
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

fotografia, segundo o autor, foi caracterizada pelo iminente objetivo


comum aos pesquisadores da área: o de fixar as imagens desejadas que
pertencessem à câmera obscura nas primeiras décadas do século XIX
(BENJAMIN, 1994, p. 91).
Após a superação desse desafio enfrentado por Joseph Ni-
céphore Niepce e Louis Jaques Mandé Daguerre, o Estado assume o
papel de interventor diante das tentativas frustradas dos criadores em
patentear o invento.
O governo francês, orientado pelo político e cientista Fran-
çois Arago, adquire o processo da daguerreotipia e torna-o público em
1839, decidindo também estendê-la ao domínio público, depois de ter re-
munerado financeiramente seus criadores. A invenção do termo daguerre-
ótipo, assim denominado pelo próprio Daguerre, representava o processo
de recobrimento de uma placa de cobre por uma fina camada de prata e
que, de tão polida, sua superfície se assemelhava a um espelho.
Segundo Boris Kossoy, “a imagem obtida diretamente sobre a
lâmina de prata já era o produto final: o positivo. Isto significa que essa
imagem era única, não podendo ser multiplicada como no processo
negativo/positivo” (KOSSOY, 2004, p.16).
Em uma de suas falas sobre a nova criação que encantou ime-
diatamente a cultura ocidental nas décadas iniciais após seu nascimen-
to, inclusive a figura ilustre e enigmática de D. Pedro II, primeiro ad-
mirador do protótipo daguerreótipo e exímio fotógrafo dos trópicos
brasileiros, Daguerre nos permite afirmar sua capacidade em perceber
o sentido que essa linguagem traria ao mundo moderno:
A descoberta que anuncio ao público faz parte do peque-
no número de invenções que, por seus princípios e resulta-
dos, e pela influência benéfica que exercem sobre as artes,
contam-se entre as mais úteis extraordinárias. Consiste na
reprodução espontânea das imagens da natureza recebidas
na câmara escura, não com suas cores, mas com uma gra-
dação muito fina de tonalidades [...]. Qualquer um, com o
auxílio do daguerreótipo, poderá obter uma vista de seu re-
banho ou sua casa de campo: as pessoas farão coleções de
todos os tipos [...]. Serão feitas até mesmo retratos, embora
a instabilidade do modelo apresente, é verdade, algumas
dificuldades (que precisam ser superadas) para um perfeito
sucesso (SCHWARCZ, 1998, p. 346).
A (re) produção da imagem inicia uma nova fase no âmbi-
342
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

to artístico e cultural das sociedades ocidentais e a representação de


elementos cotidianos e simbólicos da vida pública e privada da época
assume características até então exclusivas das artes plásticas.
Além disso, a técnica daguerreótipa possibilitou uma maior
acessibilidade e uma considerável velocidade na confecção dos retratos
do dia-a-dia das pessoas. A fotografia permitiu o nascimento de um
novo fetiche entre os sujeitos: o de registrar e preservar memórias
individuais e desejos pessoais convertidos em imagens reais e fiéis à
verdade tão buscada pelos princípios civilizatórios da época e pelo
imaginário evolucionista e positivista que definiu a segunda metade
do século XIX. A fotografia acompanhou o ritmo acelerado das má-
quinas, invenções e dos meios de comunicação que se mostravam em
crescente transformação, fato que irá redimensionar a pesquisa docu-
mental do século XX.
Desde então, as técnicas fotográficas ganharam rápido desen-
volvimento, principalmente no contexto industrial de fins do século
XIX. No mundo moderno, a atenção da historiografia é voltada para
novos objetos de estudo que se caracterizam como fonte documental,
a exemplo da literatura de Victor Hugo e de Machado de Assis, da po-
esia de Bertolt Brecht e de Carlos Drummond de Andrade, do samba
de Noel Rosa e da Bossa Nova de Vinicius de Moraes, da pintura de
Tarsila do Amaral, para não esquecermos das contribuições do cinema
e da produção da Art Nouveau como crítica às conseqüências sociais
trazidas pela industrialização.
A prática pedagógica e docente não ficaria à margem das crí-
ticas ao ensino de história como disciplina que se desenvolvia no país
desde a década de 60, sobretudo, no tocante à organização curricular e
a construção do conhecimento histórico em sala de aula. Apesar das
censuras de historiadores e pesquisadores da área acadêmica no país,
as orientações e sugestões relacionadas ao saber e fazer histórico nas
escolas oferecidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1997
continuam servindo como suporte teórico e do conhecimento da ro-
tina de educadores (SCHMIDT; CAINELLI, 2004).
Dessa forma, os caminhos percorridos pelo ensino de História
e o trabalho historiográfico com documentos são marcados na atuali-
dade, por discussões realizadas no âmbito revisionista de metodologias
e opiniões sistematizadas sobre a função social da História, apoiada nas
novas tecnologias e no uso de linguagens contemporâneas.
343
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Entretanto, vários problemas, a exemplo da ausência de le-


gendas com a identificação da autoria, tempo e espaço, do significado
construído pelos livros didáticos ou até mesmo a falta de qualificação
dos professores ao analisar as imagens que o material didático traz,
comprometem o trabalho com fontes visuais no cenário educacional,
complicadores que rondam uma “educação histórica renovada que
promova o desenvolvimento do raciocínio histórico” (SIMAN, 2005,
p. 355).
Em consequência, encontramos questionamentos que ainda
rondam o conceito de documento e a afirmação da fotografia na ca-
tegoria de fonte histórica. Como trabalhar imagens fotográficas em
sala de aula? A fotografia é um suporte didático ou uma fonte visual?
Como podemos acreditar nas imagens que a fotografia reproduz? Po-
demos considerá-la como instrumento da interpretação historiográfi-
ca? Quais os caminhos teóricos e metodológicos para introduzirmos a
fotografia no dia-a-dia da disciplina História?
O objetivo desse texto é propor uma discussão acerca da
relação entre História e Fotografia e, ao mesmo tempo, mostrar as
possibilidades do “fazer histórico” em sala de aula a partir do trabalho
interpretativo dos contextos sociais e dos sujeitos trazidos pela ima-
gem que a fotografia brinda à memória e à formação de identidades,
como tentativa de responder ou chegar mais próximo das dificuldades
enfrentadas por alunos e professores no âmbito escolar.

A imagem fotográfica: “obra humana” da produção cultural


moderna

Assim como os demais elementos histórico-culturais que in-


tegram a produção do conhecimento, a fotografia se constitui hoje
como “obra humana” produzida em diversos contextos sociais e que
objetivam variavelmente representar ou retratar imagens e memórias
individuais ao longo do processo de diálogo entre presente e passa-
do.
Assumindo um caráter documental, a fotografia traz em seu
corpo o significado “do termo latino documentum, que deriva do ver-
bo docere, ao permitir o ensinar no sentido de transmitir e de comu-
nicar informações já consolidadas” (PCNs, 1997, p.84).
A fotografia, ao possibilitar múltiplas simbologias à arte da
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OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

conversação, adquire um caráter que redimensiona o ofício do histo-


riador, o papel de professor e de pesquisador. Ao contrário da histo-
riografia estruturalista ou pós-estruturalista que defende uma história
concentrada no texto e dependente do discurso, os estudos contem-
porâneos ganham outro fôlego durante o século anterior, ao estabele-
cer relações entre textos e contextos.2 104
Por outro lado, nas palavras dos historiadores Ciro Flamarion
Cardoso e Ronaldo Vainfas, o que se propõe na interpretação e valida-
de de novas linguagens apontadas pelos estudos de Michel Foucault e
Hayden White trata-se de
buscar os nexos entre as idéias contidas nos discursos,
as formas pelas quais elas se exprimem e o conjunto de
determinações extratextuais que presidem a produção, a
circulação e o consumo de discursos. Em uma palavra,
o historiador deve sempre, sem negligenciar a forma do
discurso, relacioná-lo ao social (CARDOSO; VAINFAS,
1997, p.377).
Nessa perspectiva, considerando o equilíbrio entre os dois
pensamentos teóricos aqui apresentados, a fotografia como documen-
to amplia sua função e utilização ao se eleger a categoria de fonte his-
tórica e dessa forma ser caracterizada como registro de imagens que
oferecem indícios de modos de fazer, de viver e pensar dos homens.
Não somente as análises dos fatos históricos durante o pe-
ríodo inicial do século XX sofreram transformações metodológicas,
mas também as explicações históricas a partir de imagens e de outros
objetos. Tanto a fotografia como os conhecimentos passam a serem
questionados a partir de problemas, de situações que permitam a con-

2
A construção social procurada pela teoria pós-estruturalista está centrada na lingua-
gem, ou seja, uma discussão produzida pela interação e resultante, pois, dos pressu-
postos lingüísticos, discursivos e textuais. Nesse caso, a análise da fonte visual estaria
preocupada com a “fala” da imagem, ou melhor, as formas da prática e das ações
dos elementos textuais. Apesar de se propor uma interpretação mais abrangente do
processo social, esses pressupostos teóricos minimizam e radicalizam os “Estudos
Culturais” e os elementos da análise social clássica que consideram não somente a
estrutura social, mas, sobretudo, a importância de aspectos como as mentalidades,
dos formatos da sensibilidade e das configurações dos sentidos e significados dos
indícios culturais. Michel Foucault discute a teoria pós-estruturalista acerca da “fala”
da sexualidade contemporânea em História e sexualidade I: a vontade de saber. Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
345
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

frontação de informações e idéias à medida que se considera o docu-


mento como parte histórica que é sempre portador de um discurso
que, assim considerando, não pode ser visto como algo transparente.
Afinal de contas, “sabemos que os materiais didáticos são expressões
de representações e em cada um deles devemos adotar um procedi-
mento especifico específico para analisá-los” (ZAMBONI, 1998).
A função social do historiador determina novos horizontes,
ganha espaços e uma atmosfera temporal contínua de atuação, sentido
e significado da historicidade na vida cotidiana dos sujeitos:
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos
sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gera-
ções passadas – é um dos fenômenos mais característicos
e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens
de hoje crescem numa espécie de presente continuo, sem
qualquer relação com o passado público da época em que
vivem. Por isso os historiadores, cujo oficio é lembrar o
que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que
nunca no fim do segundo milênio (HOBSBAWM, 1995,
p.13).
A observação reflete uma preocupação constante das discus-
sões historiográficas atuais. A preservação da memória histórica se
constitui como um dos principais objetivos e trabalho árduo de pro-
fessores de História e pesquisadores. O presente contínuo não pode
e não deve ser ignorado pelos sujeitos, porém, a História Temática
proposta nos atuais projetos curriculares não pode ser apresentada
em “migalhas” aos alunos (LE GOFF, 1991). A história imediata pre-
cisa ser entendida como uma tentativa da historiografia de estabelecer
constantemente as continuidades e as rupturas nas relações temporais
e espaciais.
A construção da memória social pelo ensino de História está
intimamente ligada às representações e à aprendizagem de identidades
e produção da cidadania no processo ensino-aprendizagem da educa-
ção formal e informal (SCHMIDT; CAINELLI, 2004).
Os problemas enfrentados no tempo presente por alunos,
professores, amigos e familiares integram o cotidiano dos sujeitos
históricos que participam ou sofrem influências das transformações
socais, econômicas e políticas (NADAI, 2000).
Na tentativa de aprender a conhecer e se compreender melhor,
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OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

o resgate de conteúdos históricos nas dimensões das mentalidades, do


pensamento político e das idéias, os historiadores se debruçam sobre
a análise da forma textual. No caso da fotografia seria uma “crítica
centrada no objeto” que “leva em conta os fatores visuais, as formas
prescindindo dos conteúdos ou dos temas apresentados na imagem”
(BONFIM, 2004, p. 01).
O diálogo proposto pelo trabalho interdisciplinar entre Histó-
ria, Antropologia e Sociologia, ultrapassa a crítica formal das imagens
e apostam em uma análise que ora transita pela “crítica semiológica”,
ora passeia pela “crítica das motivações”.
No primeiro caso, o conhecimento referente ao documento é
relacionado à preocupação com os modelos de representação e signi-
ficado como processo de “expressão e de conteúdo”. Seria então um
modelo de interpretação do mundo, da construção de “visões de mun-
do” e da articulação de signos que caracterizam a narrativa histórica.
Em uma situação de ensino-aprendizagem é essencial o pro-
fessor saber escolher o momento ideal para o trabalho com imagens.
Para tanto, as orientações didáticas deveriam ser conduzidas pelo tema
abordado no projeto pedagógico, levando em consideração os obje-
tivos e a problematização selecionada de acordo com o diagnóstico
inicial da turma: faixa etária, maturidade emocional e intelectual, além
do conhecimento prévio que os alunos trazem.
Ao trabalhar com documentos, os alunos poderão perceber
que “ele(s) não fala(m) por si mesmo(s), isto é, ele precisa ser interro-
gado a partir do problema estudado, construindo na relação presente-
passado” (PCNs, 1997, p.86).
Por isso, as orientações didáticas se aproximam mais dos alu-
nos ao serem precedidas por algumas perguntas: para que estudar, por
que estudar e como estudar. Ao apresentar um documento, o pro-
fessor pode eleger quais os aspectos atendem melhor à proposta de
trabalho do planejamento: contexto da imagem, identificação de idéias
centrais, objetivos do autor, quais os temas abordados, identificação
dos autores e legendas, etc.
Assim, “é preciso considerar, ainda, o fato de que as primei-
ras impressões de quem lê um texto ou observa uma gravura estão
impregnadas de idéias, valores e informações difundidas no senso co-
mum” (PCNs, 1997, p. 86).
Não podemos esquecer que o conhecimento trazido pelos
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OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

alunos gira em torno de algumas questões importantes: primeiro, as


opiniões e definições que o aluno “já sabe” pode estar mais próximo
de “construções pessoais” e as idéias acerca de determinado aconteci-
mento ou conceito terminam por se relacionar a elementos individu-
ais, significado e sentido particulares.
Ainda que os aspectos citados acima componham o perfil da
maioria da turma, há a predominância da “significação individual”. No
caso da História como disciplina temos que lembrar que a mudança de
concepções é um passo muito difícil a ser alcançado pelos alunos gra-
ças à abstração dos conceitos e interpretações, além da natural relutân-
cia dos indivíduos em “alterar” respostas já construídas anteriormente
em outro contexto (CARRETERO, 1997).
Na segunda situação, o processo analítico envolve um modelo
de crítica voltado para a sociologia,
onde ver é solicitar a outrem a produção de um discurso
[...]. A imagem pode revelar uma luta de classes, reflexo es-
pecular de infra-estruturas, homologia de relações sociais,
em que se passa a imagem, é o que se passa na coletividade
(BONFIM, 2004, p.03).
Dentro desse conjunto, outra questão merece a atenção do
docente na preparação do plano de aula: as interpretações que a pala-
vra documento provoca entre os alunos. Ela pode se reportar a duas
idéias: uma identidade voltada para uma concepção ligada ao “suporte
informativo”, utilizada no cotidiano da maioria dos educadores, e que,
segundo a definição de Schmidit e Cainelli, se configura no “material
usado para fins didáticos, como livro didático, mapa histórico e filme
com objetivos educacionais”. O outro significado corresponde à pró-
pria definição de “fonte histórica”, ou seja, “fragmentos ou indícios
de situações já vividas, passíveis de serem exploradas pelo historiador”
(SCHMIDT; CAINELLI, 2004, p.90).
Em ambos os casos, o professor necessita ter um conheci-
mento mais aprofundado e estar seguro acerca das informações sobre
o documento, sua tipologia e outras características. Ademais, os co-
nhecimentos já construídos sobre o mesmo também são importantes
para a discussão de informações.
Caso contrário, seu planejamento não trará objetivos coeren-
tes e claros à proposta, além de provocar equívocos ao que está sendo
solicitado entre os alunos. Ao diferenciar o documento histórico entre
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material didático e fonte, o educador media a transformação da infor-


mação em conhecimento e auxilia a construção do saber e fazer histó-
rico ao mostrar aos alunos, novas possibilidades da arte de historiar:
A imagem é de fato um consolo para o olho. Mesmo o
mais pavoroso deixa de infundir pânico à medida que se
adequa a uma imagem. [...] Por isso a domesticação do
olhar sempre foi anunciada entre homens, no horizonte
da linguagem. Olhares têm que ser discutidos (KAMPER,
2003, p. 60).
Tomemos como exemplo, a obra do fotógrafo e antropólogo
Pierre Verger: ao estudar a distribuição dos papéis entre mulheres,
crianças e homens, bem como as imagens e representações que esses
sujeitos históricos trazem às sociedades, é possível trabalhar uma te-
mática específica e associá-la, por exemplo, ao corpo fotográfico do
álbum Infância, produzido a partir da década de 30 do século passado
(VERGER, 2002).
Em uma turma do Ensino Fundamental, à primeira vista, os
alunos terão impressões iniciais ligadas ao senso comum e, por isso,
uma percepção limitada ao personagem central do objeto, as crianças.
Porém, depois de orientados por métodos de observação e crítica, os
alunos tendem a identificar outros personagens presentes na imagem,
suas ações, vestimentas, calçados e adornos, [...] o cenário,
o tipo e o estilo de edificações ao fundo, o tipo de calça-
mento do ambiente, se há presença de vegetação, o que
está em primeiro plano e ao fundo da gravura, sobre o que
ela fala no seu conjunto e detalhes (PCNs, 1997, p.87).
Os professores podem considerar a idéia de levantar as repre-
sentações – imagens e idéias que habitam o senso comum dos alunos
acerca de determinado fato histórico, contexto social ou de grupos
sociais. Nos situando em um plano de aula, seria interessante antes de
iniciar a abordagem sobre o conceito de fonte e documento histórico,
uma discussão sobre o conhecimento que a turma traz referente ao
tema e personagens da aula: qual a imagem dos alunos sobre as crian-
ças asiáticas ou africanas? Como seria o modo de vida dos meninos
e meninas em uma cultura oriental (família, trabalho, brincadeiras)?
Com o intuito de registrar o momento inicial, os professores podem
solicitar aos alunos que desenhem e dêem um título ou frase ao retrato
que fizeram.
349
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Ao iniciar a descrição das fotografias, caberá ao professor


oferecer informações sobre aspectos relevantes para a crítica da docu-
mentação, à medida que os alunos participam e os registros são feitos
no quadro-negro. O jogo de luzes e a técnica de contrastes entre as
cores pretas e brancas, tons cinzentos, sombra e claridade que Verger
utiliza em suas obras permite não somente uma interpretação do texto
(criança), mas, sobretudo, do contexto que caminha entre a singulari-
dade da imagem e a diversidade de uma linguagem plural. As formas
geométricas que caracterizam linhas, dimensões e movimentos tradu-
zem as técnicas, material e conhecimento cultural que foi impregnado
na produção da foto.
Ao aliarmos a história de vida do fotógrafo e os princípios
que dirigiam seu estilo profissional, os alunos se voltam para o mundo
em que vivem e acompanham diariamente através do noticiário da te-
levisão, das notícias dos jornais e das rádios, as constantes mudanças e
elementos que permanecem nas suas vidas privadas e públicas. Assim
como Verger, os meios de comunicação nos informam e transmitem
imagens, ideologias e maneiras de refletir sobre algum acontecimento
ou sobre as pessoas.
O plano de aula precisa, portanto, dedicar um momento des-
tinado a informar dados relevantes da biografia do autor para que a
turma busque estabelecer ligações entre o documento que é apresen-
tado e as observações já registradas sobre a imagem apresentada; o
ideal é que esse tipo de intervenção esteja localizado logo após a etapa
do levantamento do conhecimento prévio dos alunos e da amostra
das fotografias.
Ao seguir o roteiro de aula, mais do que a observação da téc-
nica ou da crítica denominada “externa” pelos historiadores da arte, os
alunos podem também aprender a identificar a que fato ou aconteci-
mento histórico se refere à imagem (se for o caso), a escolha do tema
e dos personagens relacionadas ao objetivo do fotógrafo, a destacar os
países considerados subdesenvolvidos ou em fase de desenvolvimen-
to, de acordo com as classificações geopolíticas atuais, que contextua-
lizem a origem das crianças (Brasil, Cambodja, Benin, entre outros).
É perceptível o objetivo do autor em mostrar ao mundo a
diversidade sócio-cultural entre as crianças africanas, asiáticas e latino-
americanas que aparecem nas imagens, como também entre as crian-
ças de outras sociedades. Destacamos a importância de se deixar clara
350
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

a informação de que o fotógrafo traz consigo uma série de significa-


dos (imagens e palavras) e significantes (representações), ou seja, há
uma ordem simbólica presente na produção da imagem, que se inicia
desde a organização do equipamento (marca da máquina, tipo de fil-
me, asa) até a escolha dos locais, situações e personagens que serão
referências para interpretações diversas e que dialogará com inúmeras
identidades.
Para as fotografias do álbum Infância, percebemos que as pri-
meiras sempre aparecem em um cenário ou em contato com algo ou
alguém que evidencie o contraste intenso entre as cores negra e bran-
ca. As demais figuram entre tons diferentes e variáveis de branco e
cinza. Além disso, em algumas imagens o artista brinca com a técnica
da sombra, causando confusão sobre o que é real (clareza) ou suges-
tivo (escondido). Essa característica do trabalho de Verger sugere a
intenção de dar à imagem, uma visão intimista do que está sendo re-
presentado, onde ao professor é ofertado o momento de trabalhar
com o contraste sócio-cultural das crianças retratadas e da própria
vida particular do autor.
Localizando essas informações no processo educativo é pos-
sível aprender a compreender e associar o cotidiano das crianças e
personagens secundários, a exemplo da figuras sugestivas maternas e
paternas, ao dia-a-dia dos próprios alunos ou ao conhecimento prévio
a partir de noticiários, textos ou matérias de jornais com a mesma te-
mática que eles já tiveram contato. O trabalho com dossiê onde reúna
as memórias de família é um forte recurso didático que tem como
finalidade a aprendizagem de conceitos como diferença, diversidade,
memória e cultura entre as infâncias nele representadas. Do mesmo
modo, o documento visual assume no cotidiano das seqüências di-
dáticas novas possibilidades de trabalhar conteúdos procedimentais
históricos ao resgatar a memória através da história de vidas, historia
temática do bairro ou até mesmo da escola.
Além disso, o momento da associação e comparações é ideal
para que o professor desconstrua o mito de que a fotografia traduz a
realidade, como um espelho que reflete, de forma unívoca e verdadei-
ra, expressões e dimensões da sociedade em sua volta.
No contexto da sala de aula, professores desenvolvem assim,
a perspectiva epistemológica presente na construção do conhecimen-
to histórico, a conquista de problematizar representações sociais até
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OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

então abraçadas como ícones da verdade absoluta da história político-


econômica tradicional, destronando a linguagem dicotômica e precon-
ceituosa do mundo ocidental.
Para os alunos do Ensino Médio, o mesmo conjunto icono-
gráfico ganhou outra função no planejamento didático: o “breve sé-
culo XX” como se refere Hobsbawm (1995), pode ser vislumbrado,
em uma interpretação subjetiva, por alguns aspectos das imagens: a
problemática da fragmentação e fragilidade de identidades, a queda
do eurocentrismo, o fim do modelo civilizatório francês e a idéia cres-
cente entre historiadores, sociólogos e cientistas políticos de voltar à
atenção das Humanidades para os sujeitos até então negligenciados
e marginalizados pela sociedade e historiografia: crianças, mulheres,
trabalhadores e negros.
A vida social representada pela infância dos personagens pro-
voca interrogações e a própria escolha do artista nos faz pensar sobre
o que seu trabalho nos diz ou significa para a sociedade contemporâ-
nea, e, se podemos estabelecer relações culturais, econômicas e políti-
cas entre presente e passado. Ao responder essas questões, o professor
estará contribuindo para que o ensino de história ofereça caminhos
para a formação do aluno como cidadão, com habilidades e compe-
tências que o levem a compreender a história de seu país e do mundo,
como herança das múltiplas memórias que foram produzidas a partir
da diversidade das ações humanas e de sua capacidade de interação.
Caminhando pela análise do material didático-pedagógico,
nos deparamos com as representações iconográficas trazidas pelos
livros didáticos, imagens que em sua maioria, carregam estereótipos
e valores que muitas vezes deixam dúvidas sobre sua função: elas for-
mam ou somente informam?
O tradicional embate entre o discurso político pedagógico e
historiográfico enfrentado pelos professores necessita ainda enfrentar
a tarefa complexa de trabalhar com restrições em sala de aula. Para a
maioria das escolas da rede pública, o livro didático continua sendo o
instrumento centralizador do processo de ensino-aprendizagem. Den-
tro desse contexto, vale considerar que os autores dos livros didáticos
já seguem diretrizes estabelecidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
e pela Lei 10.639.3105

3
Apesar dos Parâmetros Curriculares Nacionais já apresentarem sensibilidade às
352
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Para fugir da condição de refém do livro didático, o profes-


sor tem a opção de torná-lo aliado de seu planejamento: ao invés de
trabalhar com a história política tradicional, que perdura nas coleções,
os alunos podem aprender a desconstruir imagens e questionar pre-
conceitos no texto e contexto do objeto iconográfico, percorrendo os
trilhos aqui descritos com as representações trazidas pelo livro, o que
implica por sua vez que haja uma análise prévia dos livros adotados
pelas escolas, não apenas no momento da escolha do material ou da
jornada pedagógica, mas ao longo do ano letivo, haja vista os inúme-
ros problemas pertinentes ao discurso defendidos pela escrita e pela
iconografia.
A memória e os testemunhos vivos lembrados por Marcos
Napolitano se tornam não apenas peças do oficio do historiador e do
professor, como também um árduo trabalho de diferenciar concei-
tos epistemológicos e metodológicos como identidade, memória ou a
própria história.
Dentro dessa perspectiva, desenvolver algumas habilidades se
torna fundamental para os objetivos de um planejamento didático:
ao se defrontar com alguma situação-problema e apresentada em de-
terminada linguagem, que comumente é a escrita, por exemplo, saber
articulá-la com outra linguagem, no caso da fotografia a visual; ou
então, simplesmente “reconhecer os códigos da linguagem artística e
suas relações com o contexto histórico” (PCNs, 1997, p.13).

Considerações finais

Vimos que a pobreza e o registro de gestos simples fotografa-


dos por Verger possibilitam uma reflexão sobre a história particular de
sua infância e talvez reflita o desejo individual de apresentar ao mundo
uma nova realidade e perspectiva da produção humana, diferentemen-

questões decisivas para a construção do conhecimento histórico baseado na compre-


ensão da diversidade das culturas e sociedades, com argumentos favoráveis ao com-
bate à história positivista centralizada no princípio eurocêntrico, não trazem de forma
concreta métodos e orientações didáticas relacionadas ao ensino da História da África
e dos Afrodescendentes através dos temas transversais. Somente a partir da criação da
Lei 10.639 pode-se dizer que há um movimento mais intenso e produção acadêmica
mais acirrada no que concerne à pesquisa e discussão historiográfico-pedagógica acer-
ca do material didático e da prática de ensino.
353
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

te da condição de marginalizado ou dos estereótipos criados ao longo


da história sobre homens, mulheres e crianças, personagens que sem-
pre figuraram no trabalho das representações do imaginário visual e da
realidade social de qualquer grupo cultural e político.
A fotografia articula conteúdos e temas transversais para o
ensino de História que favorecem o aprender a conhecer e entender
“as diferenças culturais, étnicas, etárias, religiosas, de costume, gênero
e poder econômico” (PCNs, 1997, p.48).
Nesse sentido, o trabalho com documentos históricos se
apresenta como um método didático que media a dialética da prática
pedagógica, da problematização e do crescimento dos alunos como
sujeitos históricos e responsáveis pela preservação da memória so-
cial.
E a preservação da memória social implica a formação do
cidadão contemporâneo, função essa delegada aos professores de His-
tória, que tem como função mediar a construção do conhecimento
histórico, a comunicação entre as representações sociais e o mundo
imagético que invade o cotidiano dos alunos, em um movimento ve-
loz e constante da globalização de informações e da reafirmação de
identidades.
Por fim, recorro mais uma vez a Walter Benjamin, que em
1931 já se mostrava inquieto e propunha novas formas de enxergar e
sentir a contribuição que a fotografia traz a luz dos debates e das tro-
cas que a tese e a antítese historicista possibilitam ao historiador:
Já se disse que “o analfabeto do futuro não será quem não
sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar”. Mas um
fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é
pior que um analfabeto. Não se tornará a legenda a par-
te mais essencial da fotografia. Tais são as questões pelas
quais a distancia de noventa anos, que separa os homens
de hoje do daguerreótipo, se descarrega de suas tensões
históricas. É a luz dessas centelhas que as primeiras foto-
grafias, tão belas e inabordáveis, se destacam na escuridão
que envolve os dias em que viveram nossos avôs (BENJA-
MIN, 1994, p.107).
Espera-se, assim, que o aluno-cidadão seja um fotógrafo de
suas memórias, de seu cotidiano, construindo significados e signifi-
cantes de sua história, ao realizar leituras e interpretações de textos e
contextos, de símbolos e signos da cultura que pertence e produz.
354
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Referências Bibliográficas

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In: _____. Domínios da história. São Paulo: Campus, 1997.
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São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Artigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em novembro


2007.

355
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

ASSUNTOS LEVANTADOS E REGISTRADOS:


INFORMAÇÕES E IMAGENS EM TRÊS JORNAIS DE
PORTO ALEGRE SOBRE O PRIMEIRO CONGRESSO
NACIONAL DO NEGRO REALIZADO NO ANO DE 1958

Arilson dos Santos Gomes1


106

Resumo: Este artigo pretende abor- Abstract: This article intends to


dar e levantar, através de informações approach and to raise, by means
localizadas em fontes jornalísticas, of data gathered in press sources,
como foram registradas as reporta- how were recorded the news arti-
gens sobre o Primeiro Congresso Na- cles about the Black’s First National
cional do Negro realizado na cidade de Congress realized in the city of Porto
Porto Alegre entre os dias 14 e 21 de Alegre between the september 14th
setembro do ano de 1958. Esse encon- and 21th in 1958, together with mu-
tro foi realizado na Câmara Municipal nicipal government in the headquarters
e na sede social da Sociedade Beneficente of the Beneficient Society Floresta Au-
Floresta Aurora. rora.
Palavras-chave: imprensa, história, Key-words: press, history, Ben-
sociedade Floresta Aurora, Congresso eficient Society Floresta Aurora,
Nacional do Negro. Black’s First National Congress.

Este artigo pretende abordar e levantar, com a utilização de


fontes impressas, como foram registradas as reportagens sobre o Pri-
meiro Congresso Nacional do Negro realizado na cidade de Porto Alegre
entre os dias 14 e 21 de setembro do ano de 1958. Esse encontro foi rea-
lizado na Câmara Municipal de Porto Alegre e na sede social da Sociedade
Beneficente Floresta Aurora (SBFA).
Por ocasião desse importante acontecimento, a capital gaú-
cha recebeu delegações dos estados do Paraná, Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Distrito Federal e interior gaúcho,
contando com a presença de estudiosos, pesquisadores, intelectuais
brancos e negros e a comunidade. Durante as atividades do encontro
foram debatidos três temas centrais: primeiro, a necessidade de alfabeti-
zação frente à situação atual do Brasil; segundo, a situação do homem de cor na
sociedade; e em terceiro, o papel histórico do negro no Brasil e em outros.

1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS sob orientação
da Prof. Dra. Margaret Marchiori Bakos. Bolsista CAPES e membro do GT Negros/
ANPUH-RS. E-mail: arilsondsg@yahoo.com.br
357
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Em pesquisas realizadas até o presente momento, em jornais


localizados nos acervos do Museu de Comunicação Social Hipólito José da
Costa e no Centro de Pesquisas do Correio do Povo, pode-se destacar a im-
portante repercussão obtida por esse congresso através dos ‘veículos
jornalísticos’ da cidade de Porto Alegre entre setembro e outubro do
ano de 1958.
Os jornais que servirão de fontes para o desenvolvimento de
nosso trabalho são o Diário de Notícias, A Hora e o jornal Correio do
Povo, sendo que este último mantém um relacionamento antigo com a
comunidade negra porto-alegrense em especial com a Sociedade Benefi-
cente Floresta Aurora. Utilizaremos também as atas de reuniões localizadas
no acervo da entidade (SBFA).
Na intenção de apontar algumas “balizas” norteadoras do
artigo, serão levantados questionamentos para respondermos e, con-
seqüentemente, localizarmos informações de como a Floresta Aurora
conseguiu fazer com que a repercussão, por ocasião da organização do
Congresso Nacional do Negro, atingisse jornais locais e nacionais.
Portanto, pergunto: como se estabeleceu à relação entre o
jornal Correio do Povo e a comunidade negra? Ocorreram contatos an-
teriores à realização do Congresso entre a Sociedade Floresta Aurora
e este jornal? Como os organizadores obtiveram recursos financeiros
para a realização do encontro? Qual o sentido dos organizadores do
Congresso buscarem apoio na mídia jornalística? Como os jornais Diário
de Notícias, A Hora e Correio do Povo acompanharam o encontro e como
eles divulgaram as atividades? Quais matérias/informações tiveram
maior destaque nesses jornais? Como esse congresso teve repercussão
nacional?
A Sociedade Beneficente Floresta Aurora nasceu no dia 31 de de-
zembro de 1872. É a sociedade negra mais antiga do Brasil fundada
por Polydorio Antonio de Oliveira, negro forro, na cidade de Porto
Alegre entre as atuais ruas Barros Cassal e Cristóvão Colombo. Tinha
como objetivo zelar pela comunidade negra materialmente e social-
mente, auxiliando inclusive na realização de enterros dignos para os
negros porto-alegrenses.2107

2
A Sociedade Beneficente Floresta Aurora foi fundada em 1872 a partir de dissidentes da
Irmandade do Rosário de Porto Alegre. É a sociedade negra em atividade mais antiga do
Brasil. Para saber mais da Floresta Aurora ver Muller (1999).
358
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

O jornal Correio do Povo foi fundado em 1º de outubro de 1895


por Caldas Júnior. Breno Caldas, diretor em 1975, em um artigo pu-
blicado por ocasião das comemorações dos 80 anos de fundação do
jornal, explica as dificuldades enfrentadas por Caldas Júnior para fun-
dar e manter o jornal. Segundo Breno Caldas:
O Correio do Povo nascera em prédio alugado, pobre de
recursos e desprovido da sofisticação técnica de que dis-
punham, na época, os grandes jornais. Por isso, Caldas lhe
comprou linotipos, farta provisão de tipos novos, uma máqui-
na impressora rotativa da marca da moda – Morinoni- e uma
casa na rua da Praia [...] precisou tomar empréstimos e altos
investimentos simultâneos [...] (Correio do Povo, 1975, p.20)
Com o pseudônimo de “Léo Pardo”, o jornalista negro José
Paulino de Azurenha (1861- 1909), era um dos principais redatores
do jornal Correio do Povo, “tendo chegado a participar da fundação do
jornal junto com Caldas Júnior em 1895” (LAZZARI, 1998).
Nesse sentido são observados alguns “laços” entre o funda-
dor do periódico e Paulino Azurenha. Mas a nível coletivo podemos
destacar outro acontecimento envolvendo o Jornal e a comunidade a
organização do Primeiro Congresso Nacional do Negro, realizado na cidade
de Porto Alegre no ano de 1958.3108
Antes de “descortinarmos” o Congresso do Negro, contextuali-
zaremos brevemente período, sobre os seguintes aspectos: desenvol-
vimento industrial do eixo Rio-São Paulo, quadro político nacional,
ideologias da época, influências do desenvolvimentismo na territoria-
lidade negra de Porto Alegre e a situação administrativa da Sociedade
Floresta Aurora.
No quadro econômico e industrial, as cidades do Rio de Ja-
neiro e de São Paulo por contarem com um maior volume de capital e
a existência de um mercado consumidor crescente, se tornam líderes
de lucros e de empreendimentos, com a posição de frente no processo
cultural e político do período desenvolvimentista.
Na política, o governo de Juscelino Kubistschek (1956-1961)
lança o arrojado Plano de Metas expressando o desejo de modernizar
o país nos aspectos sócio-economico cultural (BRUM, 1984).
No campo ideológico, o nacionalismo difunde-se entre am-
plos grupos sociais, surge a consolidação de um “sistema ideológico”

3
Para saber mais ver Gomes (2006).
359
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

com múltiplas vertentes interligadas: neocapitalista, liberal, nacionalis-


ta, sindicalista, desenvolvimentista, marxista, etc.
No sentido de realização do Congresso, a ideologia presente é
a nacionalista, o que devemos aprofundar. Mas em virtude do encontro
ter em sua nomenclatura o adjetivo de nacional significa que seja possí-
vel fazer esse apontamento.
Em Porto Alegre, nos anos 50, a comunidade negra vivia um
período de transformações, iniciam-se as obras de urbanização advin-
das com as políticas desenvolvimentistas do período, bairros tradicio-
nais negros são desterritorializados entre eles o Areal da Baronesa e a
Colônia Africana, espaços simbólicos para os negros porto-alegrenses
que, após este período, tornam-se espaços valorizados do ponto de
vista imobiliário; a Rua dos Andradas passa a ser o referencial simbóli-
co e identitário para a comunidade negra.(CAMPOS, 2006, p. 43).
Além dessas mudanças territoriais, o período possibilita a ação
coletiva da comunidade negra. Surge, diante de tantas possibilidades,
“campo fértil” para as propostas de elevação cultural, política e social
desse grupo, ainda estigmatizado e carente socialmente.
Nesse contexto, quais foram os administradores da entidade
organizadora do conclave? A Sociedade Floresta Aurora representa, por
ser organizadora desse Congresso, a possibilidade de um coletivo negro
desenvolver, planejadamente, alternativas para a organização da co-
munidade negra porto-alegrense, certamente ansiosa com as transfor-
mações do período.
A sociedade tinha como presidente anterior Heitor Fraga. Em-
possado Valter Santos, em 1958, a sua administração passa a fazer con-
tatos em outras esferas da sociedade gaúcha e do eixo Rio-São Paulo. A
entidade tem as suas relações alargadas, o que possibilita a sua contribui-
ção na situação político-social e cultural, não somente da comunidade
negra porto-alegrense, mas dos negros gaúchos e brasileiros.
Valter Santos contava nos quadros administrativos da so-
ciedade com os conselheiros Julio Soares, ex-presidente nos biênios
1954-1955, 1960-1961 e 1968-1969, Rio Grandino Machado, Dalmiro
360
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Lemos, ex-presidente da sociedade entre os anos de 1942 a 1945, Rui


Santos, Eurico Souza, também ex-presidente da sociedade no ano de
1950; além dos conselheiros: Flávio Silva, Edson Couto e Armando
Temperani, deputado estadual pelo PTB e Presidente da Comissão de
Justiça da Assembléia Legislativa do Estado.4109
Eles iniciam uma nova etapa florestina tendo como principal
meta o ressurgimento material, social e político da então octogenária
Sociedade. Antes e após a posse a atual diretoria encontra uma socie-
dade em crise.5110
Abaixo, dirigentes da sociedade no período e integrantes da
comissão organizadora do Congresso.

Imagens, da esquerda para a direita, de Valter Santos e Eurico Souza: fonte MCSHJC, F22 E1
B3, jornal Folha da Tarde de 19/09/1958 p.35. Imagem de Armando Temperani Arquivo de
Dep. da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.

4
As datas referentes à legislatura de cada presidente são localizadas na atual sede da
Sociedade Floresta Aurora, situada na Av. Cel. Marcos nº527, na cidade de Porto Alegre.
Na entidade existe uma galeria de fotos com os respectivos presidentes e os anos dos
mandatos, a partir de 1932 até os dias atuais. Já as informações sobre o Deputado
Armando Temperani são localizadas no Arquivo da Assembléia Legislativa do Rio
Grande do Sul.
5
Para saber mais ver Gomes (2006).
361
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

A partir desses e de outros homens iniciam-se as ações para


a realização do Primeiro Congresso Nacional do Negro. Como realizar um
evento de tal “envergadura” sem dinheiro?
Utilizando-me de atas das reuniões localizadas no acervo da
Sociedade tornou-se possível localizar indícios de como surgiram as
possibilidades de acontecer o encontro.
Através de relacionamentos e contatos com políticos, em-
presários, setores da imprensa local e nacional e entidades negras do
estado e do Brasil, além de uma ampla campanha arrecadatória entre
os membros-sócios da entidade, lideradas pelos conselheiros Julio So-
ares, Dalmiro Lemos, Edson Couto e Flavio Silva, buscam alternativas
para viabilizar o Congresso.
Consta em ata que o conselheiro Eurico Souza propõe que
fosse oferecido, por parte da entidade, um coquetel ao Prefeito de
Porto Alegre Leonel Brizola (1922-2004) e a sua esposa, além da re-
alização de um torneio de futebol entre as organizações negras do
Estado do Rio Grande do Sul como forma de manter entrosadas as
associações negras regionais (Ata 248, 20/05/1958).
Após contatos com o Prefeito da capital gaúcha, no mês de
junho, o Presidente da SBFA, Sr. Valter Santos e o conselheiro Eurico
Souza viajaram para o Rio de Janeiro no intuito de conseguir apoio do
Presidente da República Sr. Juscelino Kubistschek, para a realização
do congresso. É importante salientar que o PTB, Partido Trabalhista
Brasileiro era o partido Juscelino, de Leonel Brizola e do conselheiro
da sociedade, deputado Armando.
Quanto ao auxilio financeiro, como vimos, um dos maiores
problemas para a realização do evento, foi resolvido por parte dos
apoios dos Governos estadual e municipal, que assinaram decretos
para a liberação de verbas para a SBFA em virtude da preparação das
atividades do Primeiro Congresso Nacional do Negro.
O apoio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul ocorre
mediante decreto nº 327, do dia 20 de agosto de 1958, assinado pelo
então Governador do Estado Ildo Menegetti, no qual autoriza a libe-
ração de 60.000 cruzeiros para a entidade (Ata 251, 08/06/1958).
Outra fonte “informante” sobre a liberação de recursos, além
desse decreto estadual, localiza-se na ata de nº 262 encontrada no
acervo da Sociedade Floresta Aurora, no documento consta à capitação
de 70.000,00 cruzeiros doados da Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
para a organização do conclave.
362
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

Nas atas pesquisadas, também foi possível encontrar apoios


de empresas privadas ao Congresso dos quais cita-se: Rede Mineira de
Aviação, Rádio Farroupilha, indústria de refrigerantes Pepsi Cola. (Atas da
SBFA 255 e 263, 06/07 e 12/10/1958).
Em reuniões na sede da sociedade ficou firmado o apoio en-
tre a Empresa Jornalística Caldas Júnior e os organizadores do Primeiro
Congresso Nacional do Negro. Como consta em atas registradas e locali-
zadas no acervo da entidade. (Ata 252, jul. 1958).
Portanto, através do apoio dos jornais Correio do Povo e Folha
da Tarde, ambos em 1958 faziam parte da Empresa Jornalística Caldas
Júnior, a Sociedade Floresta Aurora conseguiria fazer com que o congresso
obtivesse repercussão nacional, já que a empresa tinha escritórios nas
duas principais cidades brasileiras do período, São Paulo e Rio de Ja-
neiro.
As sociedades negras de Porto Alegre Satélite Prontidão e Clube
Náutico Marcílio Dias, a Sociedade Renascença Club, da cidade do Rio de
Janeiro, a Sociedade Laços de Ouro, de Uruguaiana, a Associação José do
Patrocínio; de Belo Horizonte, a Sociedade Estrela do Oriente, de Rio Gran-
de e a Sociedade Sírio-Libanesa, receberem agradecimentos pelo apoio
prestado à realização do Primeiro Congresso Nacional do Negro (Ata 263,
12/10/1958).6111
Contando com os apoios políticos e financeiros dos Governos
Federal, Estadual e Municipal, contatos políticos com o PTB, empresas
privadas de alto porte, a Empresa Jornalística Caldas Júnior, organizações
negras do interior do estado e de outras sociedades do Brasil, estavam
dadas as condições para a execução do encontro de Porto Alegre.
Mas após contextualizarmos aspectos políticos, ideológicos,
territoriais da comunidade negra e questões internas da SBFA, bem
como de seus apoiadores, não podemos deixar de entender que esse
congresso deva ser pensado à luz dos encontros que já ocorreram em nosso
país anteriormente, dos quais cita-se: Primeiro Congresso Afro-Brasileiro,
de 1934, Segundo Congresso Afro-Brasileiro, 1937, Primeira Convenção Na-
cional do Negro, 1945, Segunda Convenção Nacional do Negro de 1946, Con-
ferência Nacional do Negro de 1949 e Primeiro Congresso do Negro Brasileiro

6
Localizam-se essas entidades devido à relação de correspondencias que deveriam
ser enviadas, em forma de agradecimentos, as sociedades presentes ao Congresso de
Porto Alegre.
363
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

de 1950, todos propondo, em determinado momento histórico, ações


em torno da comunidade negra, cada um com uma proposta diferente,
mas todos importantes.7112
Retornando à ligação existente entre a Floresta Aurora e o jornal
Correio do Povo, é importante destacar a legitimação do congresso através
da divulgação impressa. Os intelectuais dirigentes da sociedade porto-
alegrense, diferentemente dos intelectuais negros pelotenses que fun-
daram o Jornal Alvorada, não tinham o seu próprio jornal para divulgar
o evento. Como divulgar o congresso? Como legitimá-lo? Como di-
fundi-lo e fazer com que amplos setores da sociedade tivessem ciência
do mesmo? Qual empresa jornalística apoiaria o encontro?8113
Em reuniões na sede da sociedade ficou firmado o apoio en-
tre as empresa jornalísticas Caldas Júnior e os organizadores do Pri-
meiro Congresso Nacional do Negro. Como consta em atas registradas e
localizadas no acervo da entidade:
Prosseguindo, o Sr. Presidente (Valter Santos) falou sobre
o apoio do vespertino Folha da Tarde. Julio Soares fala
do apoio dos jornais Correio do Povo, Folha da Tarde e
sucursais do Rio de Janeiro no Congresso do Negro a ser
realizado por iniciativa desta sociedade o jornalista Adil
Silva, dará apoio e cobertura no Rio de Janeiro. (ATA 252,
jul. 1958).
Conforme o discurso proferido por Valter Santos, Presidente
da SBFA no ano de 1958, na abertura do Primeiro Congresso Nacional do
Negro, a ligação entre o Correio do Povo e a SBFA tem inicio no ano de
fundação do jornal em 1895 quando, por meio de um convite feito por
Caldas Júnior, a banda da sociedade tocou na inauguração da empresa.
Naquela época, a sociedade ainda era banda musical, e posteriormen-
te, tornar-se-ia entidade social. As palavras de Valter Santos impressas
no jornal Folha da Tarde evidenciam essas informações e a relação exis-
tente entre a Sociedade e o jornal:
A banda que se celebrizou – frisou o orador – ao ser es-
pecialmente convidada pelo Jornalista Caldas Júnior para

7
Para saber mais dos organizadores, participantes e locais de realizações dos Con-
gressos e Encontros que antecederam o Primeiro Congresso do Negro de Porto Alegre,
ver Gomes (2007).
8
Para Santos (2003) o jornal A Alvorada, provavelmente, seja o periódico de maior longevidade
desta fase denominada de imprensa negra. Para saber mais ler Santos ( 2003).
364
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abrilhantar os festejos de fundação do Correio do Povo, a


1º de outubro de 1895. Desse dia em diante, até ser extinta,
a lira da Sociedade Floresta Aurora, anualmente, compare-
cia ao “Róseo”, para levar-lhe a sua homenagem na data de
sua fundação. Vem daí a amizade existente entre os jornais
da Empresa Jornalística Caldas Júnior e a nossa sociedade.
(Folha da Tarde, 15/09/1958/ p.14)
Nota-se uma questão a ser investigada após constatar-se a li-
gação entre a individualidade e comunidade negra com as origens do
Correio do Povo. Será que Paulino Azurenha, além de co-fundador do
jornal também era integrante ou membro da sociedade Floresta Auro-
ra? Será que ele tinha relação ou conhecia os fundadores da entidade
lá no distante 1872?
Voltando à participação do Correio do Povo e a sua parceira com
a SBFA, por ocasião do Congresso, foi possível identificarmos um dos
palestrantes do evento que confirma, através das imagens, a atuação
efetiva do jornal no encontro. Na imagem abaixo vemos o jornalista
Archymedes Fortini, palestrante de encerramento do encontro.

Archymedes Fortini aparece à direita da imagem, de pé, em


frente ao ventilador. Notamos, pela imagem, ser um senhor de idade
avançada, calvo e de óculos. A mão esquerda segura um material de
apoio, provável discurso datilografado. Na mesa todos ouvem com
atenção seu discurso.
Quando iniciei as pesquisas sobre o Primeiro Congresso Nacional
do Negro já tinha localizado o palestrante Archymedes Fortini, já sabia
inclusive que ele era jornalista. Mas descobri, há poucos dias, que ele
não era um jornalista distante ou de fora do Estado, ele era um dos
homens mais importantes da Empresa Jornalística Caldas Júnior, confor-
me escreveu Breno Caldas no encerramento de seu artigo elaborado
365
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

por ocasião dos 80 anos de fundação do jornal Correio do Povo datado


de 1975. Segundo Breno Caldas:
Por hoje, a título de Resumo de uma vivência quase cin-
qüentenária, direi apenas que o Correio do Povo aqui está
presente, atuante – uma tradição viva do Rio Grande do
Sul – pela força impulsora de três razões dinâmicas funda-
mentais, que eu desejo simbolizar em três nomes: Caldas
Júnior – o programa, o exemplo de independência e cora-
gem. Dolorez Alcaraz Caldas – a tenacidade, o espírito de
luta. Archymedes Fortini – a operosidade, o afã e dever.
(Correio do Povo, 01/10/1975, p.20)
Esse artigo de Breno Caldas alusivo aos 80 anos do jornal é
revelador quanto à importância de Archymedes Fortini para o Correio
do Povo. Nota-se que o primeiro agradecimento de Breno é ao parente,
e fundador do jornal Caldas Júnior. O segundo agradecimento é para
a senhora Dolores Alcaraz Caldas, viúva de Caldas e a que assumiu as
dívidas da empresa após a morte do marido, e por último, pensamos
que não menos importante é o agradecimento a Archymedes Fortini.
Ou seja, o apoio não estava somente na impressão nas páginas do Jor-
nal Correio do Povo e dos veículos da Empresa Caldas Júnior, o apoio ao
Primeiro Congresso do Negro era humano, ativo e de “corpo presente”.
Nesse sentido, as informações localizadas nos jornais da Em-
presa Jornalística Caldas Júnior foram diárias. Em especial, no jornal Cor-
reio do Povo a divulgação foi emblemática. As duas reportagens que
saíram foram a da abertura do encontro e a de encerramento. Contando
com páginas centrais, o evento foi registrado em matérias de pratica-
mente uma página inteira, o que contribuiu de maneira eficaz para os
organizadores do Congresso, que conseguiram atingir amplas camadas
da sociedade. As informações diárias do encontro saíram no outro
veículo da empresa.9114
Passaremos a abordar as informações registradas e levantadas
em dois jornais com circulação diária na cidade de Porto Alegre em
1958, o jornal A Hora e o Diário de Notícias. Como esses jornais acom-
panharam o encontro e como eles divulgaram as atividades?

9
As informações no jornal Correio do Povo são localizadas na folha do dia 16 de setem-
bro de 1958, página 13 e no dia 20 de setembro de 1958, página 07. Ambos localiza-
dos no MCSHJC, F1 E2 B2. Já as informações diárias do Congresso são localizadas no
jornal Folha da Tarde dos dias 11, 13, 15, 17, 18 e 19 de setembro de 1958. Localizados
no MCSHJC, F6 E1 B4 até B8.
366
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O jornal A Hora, fundado em 30 de novembro de 1954, era


regional, sem sucursais em outros estados brasileiros, diferentemen-
te dos jornais da Caldas Júnior. Em contrapartida, o Jornal A Hora,
dirigido por Nelson Dias, ostentava na sua ‘folha de rosto’ a frase:
“vespertino de maior penetração no interior”, ou seja: a matéria que
ganhava as páginas desse jornal teria uma forte repercussão no interior
do estado do Rio Grande do Sul.
Depois dos jornais vinculados a Empresa Caldas Júnior, nota-
mos que o jornal que mais divulgou o encontro foi o A Hora. Localiza-
se em suas páginas quatro matérias sobre o Congresso Nacional do Negro,
todas no centro do jornal. A primeira matéria é encontrada na página
5 do dia 15 de setembro; a segunda, na página 5 do dia 18 de setembro;
a terceira localizada na página 6 do dia 19 de setembro; e a última é
um editorial, localizado na página 4 também no dia 19, com o seguinte
título: “Êxito do Primeiro Congresso do Negro”. As quatro matérias
totalizam 285 linhas impressas com 2 fotos.
O jornal é o único que traz dados estatísticos sobre o nível de
estudo do negro brasileiro, dando um destaque especial para um dos
temas do Congresso, a alfabetização. Além dos elogios destinados aos
“excelentes resultados produzidos pelo congresso”, são localizados os
seguintes dados no jornal referente ao grau de ensino do negro nas
regiões do país. Abaixo, a matéria:
Dados estatísticos manejados pelos congressistas apresen-
tam um quadro relativamente favorável ao grau de alfa-
betização do negro no sul do país, enquanto no norte a
situação é bastante mais grave.
SITUAÇÃO NO SUL SITUAÇÃO NO NORTE
Analfabetos...............70% Analfabetos...............75%
Cultura média............20% Cultura média............15%
Cultura superior.........10% Cultura superior.........10%
(A Hora, 18/09/1958, p.5)

As estatísticas demonstram que o negro sulino é mais alfa-


betizado do que o negro da região norte do Brasil. Deve-se ressaltar
que, embora existisse uma ligeira melhora na região sul, o congresso
propunha a alfabetização e a elevação cultural do negro em todo o
país, conforme matéria registrada abaixo:
Alfabetização intensiva do homem negro brasileiro é o
caminho para a sua total integração na sociedade. Esta a
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principal conclusão a que levou o Primeiro Congresso do


Negro, que se realiza nesta capital desde o dia 14 do cor-
rente e que hoje chega ao seu final. (A Hora, 18/09/1958,
p.5)
O terceiro, e último jornal abordado, é o Diário de Notícias.
Nesse periódico, saiu uma matéria sobre o Congresso, no dia 18 de se-
tembro de 1958. Localizada na página 11 e distribuída em 56 linhas, à
matéria destaca-se pelas informações sobre a educação. O jornal en-
fatiza trechos de um dos palestrantes da noite do dia 15 de setembro;
Sr. Laudelino Medeiros:
Em 1950, crianças de menos de dez anos atingem 65% de
alfabetizados. Quanto aos elementos de cor, apresentam
no momento um bom sintoma de alfabetizados. Quan-
do do último censo, a população negra no Estado era de
440.000 almas. De cada cem alunos, nas escolas primárias
11% eram elementos de cor que alcançavam concluir o
curso [...] (Diário de Notícias, 18/09/1958, p.11).
Para concluir, acreditava-se que, através dos três jornais pes-
quisados (Correio do Povo, A Hora e Diário de Notícias) pudessem ser res-
pondidos os questionamentos de nosso artigo. Mas tivemos que, por
falta das imagens localizadas no jornal Correio do Povo, apoiar nossas
respostas em mais dois periódicos, que já dispomos das imagens sca-
neadas; nesse caso, foram 15 utilizados os periódicos Revista do Globo e
Folha da Tarde, o que não prejudicou e sim contribuiu para aumentar a
visibilidade em torno de nosso objeto de pesquisa.
A utilização da fonte jornalística possibilitou dar visibilidade
aos acontecimentos do Primeiro Congresso Nacional do Negro. Acredita-
se que os assuntos registrados e levantados sobre esse acontecimento
nos jornais contribuem como ‘indícios’ importantes para reconstruir
uma melhor compreensão e entendimento desse acontecimento.
As relações existentes entre as Empresas Jornalísticas Caldas Jú-
nior e a comunidade negra merecem um maior aprofundamento, já
que a maior quantidade de informações e imagens foram localizadas
nos periódicos ligados à empresa, inclusive com a participação do jor-
nalista Archymedes Fortini, um dos homens mais importantes desse
‘veiculo jornalístico’, conforme Breno Caldas salientou, em uma das
mesas de conferência do conclave.
Mas esse relacionamento, como foi observado, não foi so-
368
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

mente no Congresso, mas desde a fundação do primeiro jornal do gru-


po, o Correio do Povo, sendo a comunidade negra representada naquela
ocasião individualmente por Paulino Azurenha e coletivamente pela
Banda Floresta Aurora.
Nesse sentido, como as demais empresas jornalísticas não
anunciariam um evento que contava, além desse apoio, também com
a parceria dos governos estadual, municipal e empresas privadas de
alto porte? Eis que as informações e imagens se difundem pelos ou-
tros jornais e periódicos porto-alegrenses como o A Hora e Diário de
Notícias, além de jornal do centro do país, como o periódico Correio da
Manhã da cidade do Rio de Janeiro.
No jornal carioca que circulou no dia 1º de outubro de 1958,
na página 03, foi publicado editorial de seguinte título: Preconceitos. Na
ocasião, foi dado destaque ao resultado proposto pelos participantes
do Primeiro Congresso Nacional do Negro: “Alfabetização intensiva do ho-
mem negro brasileiro”. O periódico enfatiza que o preconceito no
Brasil não é racial, mas cultural. Conforme registrado no editorial do
jornal:
A ausência de conflitos raciais no Brasil inspira certa pre-
ocupação em face de uma iniciativa como o I Congresso
Nacional do Negro, em Porto Alegre [...] Encarado assim,
aquele congresso impõe atitude de reserva. Mas também
há outra perspectiva, mais positiva: o Congresso Nacio-
nal do Negro pode contribuir para despertar a consciência
moral dos brancos [...] A cultura é, para o individuo, meio
de aperfeiçoamento espiritual e profissional. Ou deveria
ser. Mas em nosso ambiente a cultura é, muitas vezes, re-
baixada a meio de ascensão social. O diploma de bacharel
ou outro, equivalente, é o bilhete de ingresso para aquilo
que se chama, com algum exagero, a elite do país. É um
ídolo falso; às vezes o diploma é mesmo falso. Não serve
para distinguir o portador. Mas serve para fazê-lo, como
se diz, distinto. Esse preconceito de cultura é ruinoso, no
Brasil, para quase todos os pretos; mas também para mui-
tos brancos. (Correio da Manhã, 01/10/1958, p.03).
Apoiado por outras “ferramentas” pretende-se contribuir ain-
da mais para atualizar as informações e imagens referentes ao Primeiro
Congresso Nacional do Negro, procurando acabar com o silêncio histórico
em torno desse importante evento social, cultural e político proposto
pelos integrantes da sociedade negra mais antiga do Brasil em parceria
369
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com a imprensa porto-alegrense e ‘amplos’ setores da sociedade gaú-


cha e brasileira.

Arquivos pesquisados

Arquivo Particular do Sr. José Domingos Alves da Silveira, coleciona-


dor de periódicos.
Arquivo da Sociedade Beneficente Floresta Aurora, atas 234 a 262, de Janei-
ro a outubro de 1958.
Biblioteca da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
Centro de Pesquisas Correio do Povo.
Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Localizações dos pe-
riódicos no museu:

JORNAL ANO FILA ESTANTE BANDEJA


FOLHA DA
SET 1958 F22 E1 B3
TARDE
CORREIO DO
SET 1958 F1 E2 B2
POVO
A HORA SET 1958 F4 E4 B2
DIÁRIO DE
SET 1958 F9 E7 B4
NOTÍCIAS
REVISTA DO
OUT 1958 F6 E1 B8
GLOBO

Periódicos

A HORA, Porto Alegre, dia 15/09/1958, p.5.


A HORA, Porto Alegre, dia 18/09/1958, p.5.
A HORA, Porto Alegre, dia 19/09/1958, p.4-6.
CORREIO DO POVO, Porto Alegre, dia 16 setembro de 1958,
p.13.
CORREIO DO POVO, Porto Alegre, dia 20 setembro de 1958, p.7.
CORREIO DO POVO - Caderno Especial - 1º seção / Porto Alegre,
01 de outubro de 1975, p.20
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Porto Alegre, dia 18 de setembro de 1958, p.11.
370
OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

FOLHA DA TARDE, Porto Alegre, dia 15 setembro de 1958, p.14.


FOLHA DA TARDE, Porto Alegre, dia 18 setembro de 1958, p.40.
FOLHA DA TARDE, Porto Alegre, dia 19 setembro de 1958, p.35.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, dia 01 de outubro de 1958, p.03.
REVISTA DO GLOBO número 727, outubro de 1958, p.86-87.

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OPSIS, vol. 7, nº 9, jul-dez 2007

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Mestrado) - Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
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Atigo recebido em agosto 2007 e aceito para publicação em novembro 2007.

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Resenha
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Memória e mercado: o relato do outro

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Emerson Dionisio Gomes de Oliveira1

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subje-


tiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das
Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

Se como nos avisou Jorge Luís Borges, a memória e o es-


quecimento são igualmente inventivos, Tempo passado, o novo livro da
intelectual argentina Beatriz Sarlo, merece atenção na medida em que
as memórias sobre os difíceis anos do Regime Militar argentino (1976-
1983) instituíram para si uma certa supremacia do relato confessional,
criando um ambiente político propício a determinados apagamentos,
não tão inventivos como vislumbrou Borges.
Sarlo parte da premissa de que em qualquer ponto de vista
sobre o passado, a manipulação da memória, por parte daqueles que
se entregam ao relato biográfico, nunca se é inocente ou imparcial. Tal
premissa parece às discussões contemporâneas sobre o fazer histórico
um tanto atrasado ou óbvia. Contudo, Sarlo, de imediato, nos adverte
que as narrativas sobre o passado que circulam na sociedade – em
especial na América Latina – não são exclusividade dos discursos uni-
versitários. Pelo contrário, a premissa tem uma função mobilizadora
e política, pois a história realizada pela universidade vem perdendo
influência na sociedade por não querer responder a uma história mais
comercial, que se torna cada vez mais popular por meio da prolifera-
ção das grandes exposições temáticas ou dos best-sellers e dos filmes de
época. Os historiadores acadêmicos, segundo ela, têm dificuldade para
escrever uma história que seja ativa na esfera pública.
Quem ocupou esse espaço, quando o assunto é a ditadura
argentina, foram os relatos em primeira pessoa, confeccionados por
uma legião de vítimas (e familiares) dos abusos do regime, que em
poucos anos instaurou um ambiente de violência ao gosto do terro-
rismo de Estado. A autora, que viveu aqueles anos conturbados, sabe

1
Doutorando em História pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Histó-
ria da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-
mail:emerson_dionisio@hotmail.com
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que “o passado é sempre conflituoso” e não existe o lugar confortável


da “verdade” ao tratá-lo, ainda mais quando se trata de um passado
recente e traumático.
Essa constatação de imediato confere o tom político de que
seu trabalho se reveste nas páginas seguintes. Certamente, segundo
a autora, a memória tornou-se um dever para as nações que viveram
as ditaduras, pois o esquecimento seria um crime e também um erro.
No entanto, no contexto argentino, o mercado, a universidade e os
estudos intelectuais teriam feito um movimento quase exclusivo em
direção ao testemunho que privilegia a primeira pessoa, a experiência
direta.
Tal modo de “narrar” o passado construiu algumas armadi-
lhas, cuja maior é justamente evitar análises mais distanciadas que fo-
ram sendo desautorizadas por não conter a experiência do “vivido”.
Isso foi possível graças ao chamado giro subjetivo que tomara conta das
Ciências Sociais e que deixou como um dos legados interpretativos a
dimensão de que a experiência narrada por quem a viveu está acima
das demais possibilidades narrativas.
Em diferentes autores, inclusive da literatura, Sarlo busca des-
naturalizar essa leitura que tem na memória a primazia da experiência.
Ao fazê-lo, traz-nos uma surpresa: não desautoriza tais relatos. Tam-
bém não os critica de forma a retirar a importância política e ética da
memória. Pelo contrário, Sarlo reconhece a dimensão testemunhal, a
beleza de sua natureza incerta e movente. Restitui à memória o seu
lugar de seleção e de construtora de uma aparente totalidade narra-
tiva, tão cara para a reconstituição daqueles sujeitos que tiveram suas
cidadanias roubadas.
No outro lado da moeda, a autora lança-se contra certa tra-
dição de memória instaurada como soberana. Ela lembra-nos sobre
o peso do presente, que não pode ser descolado da lembrança; o tes-
temunho está carregado do presente que deve ser contrastado com
outras fontes escritas que permitam submetê-lo à crítica. Algo que
toda uma “indústria cultural da memória” evita, alerta a autora, pois
prefere agir de modo repetitivo, disseminando simplificações e luga-
res-comuns, na medida em que sua demanda está diretamente ligada a
fatores políticos precisos e que, por fim, pode acabar apagando outros
trabalhos históricos.
Tempo passado nos mostra os motivos pelos quais essa dimen-
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são política e mercadológica optou pelo testemunho: uma necessidade


premente de garantir à redemocratização uma legitimidade que contra-
põe o poder do presente com o poder daqueles que comandaram no
passado. Nos primeiros anos após o fim oficial do terrorismo de Esta-
do, a memória e o discurso testemunhal obviamente assumem tanto o
papel de lembrança obrigatória quanto de guia histórico-jurídico.
O perigo reside no fato de que, após duas décadas de teste-
munhos necessários, ocorre uma rarefação de estudos baseados em
outras fontes e outros métodos. Sarlo pede uma nova postura, mais
crítica e mais ampla, perante eventos traumáticos que levaram à morte
mais de trinta mil pessoas só na Argentina. É justamente na dimensão
do trauma e em sua implicação política frente à memória e à história
que reside um dos pontos altos de Tempo passado.
A autora lembra que há certa herança do discurso moderno
– evidenciada a partir do filósofo Walter Benjamin –, que, ao declarar
a impossibilidade de construir a experiência traumática por inteiro,
acabou dando força para o relato que, na atualidade, tomou fôlego e
fez ocultar suas fragilidades. Lembrado por ela, o tema do Holocausto
continua, assim, sendo o divisor de águas dessas questões políticas
entre o narrar e o calar (o silêncio como forma de resistência).
Para não se entregar apenas à crítica fácil, a autora nos apre-
senta exemplos possíveis que constituem alternativas para uma narra-
tiva mais consciente de si e das armadilhas do fazer histórico. Dentre
os citados, o estudo de Pilar Calveiro em seu Poder y desaparición: los
campos de concetración em Argentina, tese defendida no México, em 1998,
merece atenção do leitor. Sarlo vê no trabalho de Calveiro uma pos-
sibilidade de narrar uma experiência a partir da análise histórica que
toma como fonte os depoimentos de outros e fontes documentais.
Exilada, ex-miltante política de esquerda que foi seqüestrada, tortu-
rada e confinada, Calveiro parece oferecer, segundo a autora, um dos
raros movimentos narrativos desviados do mero testemunho. Pouco
conhecido, o caso de Calveiro apenas alimenta a velha polêmica sobre
a falta de comunicação do universo acadêmico.
O livro também alerta para o perigo das últimas modas, como
a noção de pós-memória que não encontra legitimidade num jogo de
remissões e transmissões narrativas. Da mesma forma, Sarlo opera
contra a imanência da “supermemória”, que às custas da acumulação
e da circulação incontrolável e instantânea das narrativas em primeira
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pessoa, atinge rapidamente a saturação, criando um campo de sentido


pretensamente unívoco.
Pretensão que age sobre o “esquecimento” de modo não in-
ventivo, pois diminui sua potência, induz a memória a uma repetição
não criativa, incapaz de gerar diferença. Na necessidade de guardar
todos os relatos, corre-se o risco de passarmos a não diferenciá-los.
Tempo passado não poupa críticas ao uso político às avessas dessa esto-
cagem da memória e sua “disfarçada” antipatia pelo relato do outro.

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Normas para o envio de artigos para Revista OPSIS


- Todos os artigos serão submetidos à apreciação do Conselho Edi-
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selho Editorial e, caso haver um parecer contrário à publicação, enca-
minhados a um consultor;
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tipo de letra 11, e vir acompanhadas da referência, como no exemplo
acima;
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dução e, as fotografias, em branco e preto;
- Todas as citações do texto deverão ser elencadas nas “Referências
Bibliográficas”, em ordem alfabética, com dados completos de acordo
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com as normas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técni-


cas, cf. NBR 6023. Ex:
. Livro: COSTA, Cristiane. Pena de Aluguel: escritores jornalistas no
Brasil – 1904 a 2004. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
. Capítulo: ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História.
In:PINSKY, C. B. (org.) Fontes Históricas. 2ed. São Paulo: Contexto,
2006. p. 155- 202.
. Artigo de periódico: VECCHIONI, Roberto. Poesia e comunicação.
Opsis – Revista do Curso de História/UFG/CAC, Catalão, v. 7, n. 8, p.
203- 216, jan/jun. 2007.
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do trabalho resenhado. O título da resenha deve ser seguido de um
asterisco que, no rodapé da primeira página indicará todos os detalhes
bibliográficos do trabalho que está sendo resenhado. Resenhas não
devem ultrapassar quatro laudas;
- Os artigos deverão ser revisados antes de enviados para publicação;
- A posteriori poderão ser feitas alterações nessas normas desde que o
Conselho Editorial assim o decida no sentido de acrescentar ou alterar
algum item.

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