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Três visões atuais acerca do conceito de quilombo

Luana Teixeira

Nos últimos anos centenas de comunidades remanescentes de


quilombos têm despontado no cenário político nacional devido às
reivindicações relativas ao Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988. Momento ímpar na
história do país, esta situação traz a tona a pluralidade de trajetórias que os
descendentes de escravos tiveram que viver na busca por melhores condições
de vida e direitos de cidadania. Por outro lado, a visibilidade destes grupos
continuamente esquecidos pelos intelectuais e agentes do poder público tem
também muito a contribuir para a compreensão da formação da sociedade
brasileira.

As palavras, como tudo na sociedade humana, têm sua historicidade e


seu contexto de aplicação. Uma expressão que em um tempo e lugar busca
designar determinado objeto, em outro contexto pode referir-se a algo
completamente diferente. O mesmo fenômeno ocorre também dentro de um
mesmo tempo e lugar, quando atores de diferentes grupos sociais
compreendem de forma diversa a conotação de uma palavra.

Por isso uma questão primeira é estabelecer os significados que o termo


quilombo adquire hoje quando utilizado nas inúmeras situações em que é
acionado. Este texto busca fazer um breve apanhado das significações do
termo. De forma sintética e esquemática, pode-se dizer que são três os
principais sentidos que o termo quilombo adquire em análises acadêmicas e
institucionais: o histórico, o antropológico e o jurídico. A não distinção entre a
qual conceituação de quilombo se está referindo é causadora de uma
infinidade de divergências e mal entendidos que, intencionais ou não, acabam
levando discussões importantes a lugar algum.

O quilombo jurídico e o direito étnico reconhecido

Até a Constituição de 1988 o termo quilombo não configurava uma


preocupação no âmbito jurídico. A partir dele, através do artigo 68 acima
citado, o quilombo, compreendido na forma de comunidade remanescente de

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quilombo, passou a significar um direito constitucional. Como prevê o artigo:
“Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando as
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe
os títulos”.

Surge a partir desse texto um sujeito de direito constitucional, os


remanescentes das comunidades quilombolas. No entanto, muitos foram os
desencontros conceituais que surgiram neste momento. Uma das
características da forma jurídica a que se refere o texto constitucional é o fato
dele se referir aos ‘remanescentes’, o que remete a “algo que já não existe ou
em processo de desaparecimento” (Leite, 2000, pg. 9). Mas o próprio processo
político de reivindicação pelo território quilombola veio posteriormente a
demonstrar como esta questão era e é atualíssima na sociedade brasileira.

Outra característica implícita no texto constitucional diz respeito ao


caráter coletivo que a propriedade titulada para os quilombolas deve adquirir,
forma que será reiterada nas futuras regulamentações do processo fundiário.
Isto porque o sujeito de direito são os membros da comunidade. Nesse sentido,
é que se torna fundamental e imprescindível ao processo a criação da
associação de remanescentes de quilombos das diversas comunidades,
criando formalmente o sujeito coletivo que reivindica o direito constitucional.

Apesar de sucinto o artigo remete à categoria quilombo no sentido


de indicar populações afro-descendentes que tiveram relação com a opressão
escravista. Embora isto não esteja claro no texto constitucional o Decreto 4.887
de 2003 que fornecerá os parâmetros para a aplicação do artigo aprofundará a
definição no artigo 2:

“Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos


quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão
histórica sofrida.”

O decreto avança e muito na compreensão do que é o quilombo na


visão jurídica. Isto porque tão logo foi promulgada a Constituição havia duas
interpretações vigentes - de senso comum - sobre o significado de quilombos.
A primeira ligava-o ao movimento identitário que surgiu nos anos 1970,
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“fazendo referência à legislação e aos atos jurídicos que historicamente
impossibilitaram os africanos e seus descendentes à condição de proprietários
plenos” (NUER, 2006, pg. 10). Para os ativistas do movimento negro, o
quilombo e o quilombismo era uma forma de se organizar na luta pelas
reivindicações históricas desse grupo, que mesmo após o fim da escravidão
persistiu sendo marginalizado a partir da ascensão do preconceito e
discriminação racial.

Mais ampla, por certo, era a compreensão de quilombo tendo como


parâmetro o Quilombo dos Palmares, forte movimento de resistência africana à
subjugação colonial ocorrido no século XVII. Em termos do artigo
constitucional, a associação direta entre quilombos e Palmares fortalecia o
caráter eminente de ‘passado’ que o termo remanescente também acionava.
Apesar de evocar a força simbólica do Quilombo dos Palmares, essa
associação nem sempre contribuiu para a compreensão do que na atualidade
eram as comunidades remanescentes de quilombos. Isto porque Palmares foi o
mais importante quilombo do Brasil, mas não pode ser tomado como modelo
geral e único desse movimento social.

Para definir com mais clareza o que significa no âmbito jurídico os


quilombos é que surge o artigo 2 do Decreto 4.887. Ao conceituar
remanescentes de comunidades quilombolas como grupos com “presunção de
ancestralidade negra relacionada com resistência à opressão histórica sofrida”
o Decreto amplia ao mesmo tempo que específica o sentido do termo
quilombo. Ele aproxima o conceito da realidade histórica brasileira, ao
considerar as múltipla formas de resistência que foram engendradas pelos
grupos afro-descendentes ao longo dos 500 anos de história do Brasil.
Também é significativo que o texto do decreto, ao tratar da opressão histórica
sofrida, não encerre esta opressão no período escravista, percebendo que
mesmo após o fim da escravidão, diversos mecanismos de exclusão foram
criados e recriados para manter a população descendente de africanos
excluída dos direitos básicos de cidadania, dentre os quais, a legitimação
diante do estado de terras que historicamente ocupavam.

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Por fim, o texto do decreto explicita o que a constituição já
considerava: a questão do direito étnico. Isso significa o reconhecimento por
parte do estado brasileiro de sua formação social diversa e desigual. E como
direito étnico, tornou-se necessário que os sujeitos de direito, as comunidades
remanescentes de quilombos, fossem compreendidas para além de um
aspecto jurídico formal, posto que etnicidade faz parte de um arcabouço teórico
estranho a maior parte da bibliografia jurídica. Por isso, desde a Constituição
de 1988 os antropólogos foram fundamentais no processo de aplicação da lei
constitucional, colocando questões e esclarecendo conceitos específicos de
sua área de estudo.

O quilombo do ponto de vista da antropologia

A definição do termo no âmbito da antropologia está profundamente


ligada à idéia de identidade étnica. Nessa perspectiva o quilombo, ou uma
comunidade quilombola, é antes de tudo um grupo étnico. Tratar identidade em
termo de grupos étnicos traz a tona uma das características mais marcantes do
conceito de quilombos na antropologia, qual seja, o fato de que o sujeito
quilombola não existe enquanto um ser desassociado de um grupo. Não
existem quilombos de um homem só. O quilombo é apenas compreendido
enquanto um conjunto de pessoas que sob determinadas circunstâncias se
reconhecem como integrantes de uma comunidade remanescente de quilombo.
Identificar a questão quilombola como uma questão de identidade também
implica diretamente a idéia de que não há identidades estáticas e permanentes.
A identidade de um grupo, a forma como o grupo representa a si mesmo e
atribui sentido a essa representação, é sempre relacional. Ele se modifica
conforme o próprio grupo - bem como as relações do grupo com aqueles que
não pertencem a ele - se transforma. Nesse sentido, o conceito de etnicidade e
relações étnicas tornam-se um importante elemento para a compreensão da
forma pela qual a antropologia percebe os quilombolas.

Em grande parte dos estudos sobre comunidades quilombolas atuais a


orientação teórica tomada por antropólogos e outros pesquisadores remete à
obra de Fredrik Barth. Nessa perspectiva teórica um grupo étnico não é
compreendido “em termos de conteúdos culturais que encerram e definem

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suas diferenças” (O’Dwyer, 2002, pg. 15). Ou seja, a identidade não é
compreendida a partir de características culturais permanentes, fixas e
determinadas. A questão central é, esta sim, a relação, bem como a definição
das fronteiras entre um “nós” e um “eles”. Nessa compreensão “o princípio
classificatório que fundamenta a existência do grupo emana da construção de
um repertório de ações coletivas e de representações em face de outros
grupos” (Almeida, 2002, pg. 74). É nesse sentido que os critérios de auto-
atribuição se tornam importantes para a compreensão dos limites de um grupo
étnico. Estes não são definidos por caracteres culturais estanques, fixos e
comumente aplicados por aqueles que olham de fora. Estes elementos podem
ser importantes para se compreender a relação (muitas vezes estigmatizada)
construída no bojo das relações sociais, mas não explicam, tampouco tem
utilidade para a compreensão das características étnicas que constituem o
grupo. Conforme O’Dwyer:

“Em vez de emitir uma opinião pré-concebida sobre os fatores sociais


e culturais que definem a existência de limites, é preciso levar em
conta somente as diferenças consideradas significativas para os
membros dos grupos étnicos, como adverte Barth. Assim ‘apenas os
fatores socialmente relevantes podem ser considerados diagnósticos
para assinalar os membros de um grupo’, e a característica crítica é a
‘auto-atribuição de uma identidade básica e mais geral’[...]” (O’Dwyer,
2002, pg. 16)”

A partir de critérios de reconhecimento internos ao grupo, portanto, é


que são definidos os parâmetros de quem faz parte ou não de um a
comunidade quilombola. O que traz por conseqüência também a amplitude de
nomeações que os grupos podem vir a ter, sendo por vezes reconhecidos
como quilombos, mas também como mocambos, terras de negros e outras
denominações utilizadas por grupos em todo o Brasil. Independente de qual
designação é auto-atribuída, todas elas se conformam ao instrumento jurídico
conceitual de quilombo, proposto na constituição e acima analisado.

Assim, “mais do que um tempo/espaço do passado, do que a cor da pele


ou o fenótipo africano, o conceito quilombo diz respeito a uma forma
organizativa” (NUER, 2006, pg. 12). Conforme Arruti:

“As comunidades quilombolas constituem grupos mobilizados em


torno de um objetivo, em geral a conquista da terra, e definidos com
base em uma designação (etnônimo) que expressa uma identidade
coletiva reivindicada com base em fatores pretensamente primordiais,

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tais como uma origem ou ancestrais em comum, hábitos, rituais ou
religiosidade compartilhados, vínculo territorial centenário, parentesco
social generalizado, homogeneidade racial, entre outros. Nenhuma
destas características, porém está presente em todas as situações,
assim como não há nenhum traço substantivo capaz de traduzir uma
unidade entre experiências e configurações sociais e históricas tão
distintas” (Arruti, 2006, pg. 39).

Esta re-semantização do termo quilombo proposta pela antropologia nas


últimas décadas, bem como a demanda das comunidades remanescentes de
quilombos foram fundamentais para que a história, disciplina que originalmente
tinha quase um monopólio de sua significação, também repensasse o conceito.
Com base em novos referenciais teóricos da disciplina associados a pesquisas
densas em arquivos, historiadores passaram a perceber que mesmo aquilo
considerado o “quilombo histórico” possuía diferentes formas de compreensão.
A existência, a organização e a importância dos quilombos na história do Brasil
também passaram a serem repensados, assunto tratado a seguir.

Os problemas do presente criando questões para o passado: o quilombo


histórico

É muito comum nas discussões sobre os quilombos brasileiros fazer-se


uma distinção entre o quilombo antropológico e o quilombo histórico, no sentido
de explicitar quando se trata de uma situação atual e quando se refere ao
passado. No entanto, muitas vezes também visa marcar uma diferenciação
entre a complexa dinâmica das atuais comunidades com um certo modelo
estreito de quilombos na história, associado justamente a uma resistência
militarmente organizada ou a um isolamento em relação a sociedade. Se esta
foi a percepção durante anos nos estudos históricos, é importante destacar que
a visão histórica, assim como os conceitos, também passa por transformações,
e hoje, com novas metodologias e baseadas em pesquisas muito mais amplas
muitos historiadores têm demonstrado que a perspectiva tradicional de
quilombo na história deve ser repensada e que este fenômeno foi muito mais
amplo do que até então se pensava. Para esta nova abordagem certamente
concorreu a emergência dos pleitos e a visibilidade das diversas comunidades
remanescentes de quilombo. Contando a história dos quilombos pelo ponto de

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vista daqueles que os formaram, essas comunidades permitiram que
historiadores fizessem a crítica à noção tradicional de quilombo histórico,
percebendo que esta visão tinha sido construída tão somente a partir da ótica
de uma elite colonial e imperial preocupada unicamente em destruir e subjugar
os quilombolas.

Uma das primeiras obras de história do Brasil, no tempo em que ele


ainda era América Portuguesa, já tratava dos quilombos. Rocha Pitta, em 1730,
não muito tempo após a vitória sobre Palmares dedica algumas páginas aos
eventos do conflito (Pitta, [1730] 1950, pp. 24-47). Mais de um século depois,
em meados do século XIX Varnheigen também escreveu na sua história do
Brasil sobre os fatos relativos à “conquista e sujeição de Palmares” mais um
“heróico feito dos paulistas” (Varnhagen, 1950, p. 256-257). Mas é importante
notar que não foi apenas de Palmares que o autor tratou. Ele também faz
referência aos mocambos do Rio de Janeiro, onde afirma que durante uma
crise no período colonial:

“muitos pretos dos engenhos, agora mais ociosos, se haviam


rebelado, formando nos matos quilombos que assaltavam as
propriedades e as fazendas. A Câmara fez organizar tropa contra
eles” (Varnhagen, 1950, p. 200).

A fórmula que Varnhagen utiliza para se referir aos quilombos (preto


igual a escravos igual a ociosos igual a criminosos) adéqua-se perfeitamente
ao conceito jurídico-formal de quilombos que, segundo Almeida, esteve
presente nas perspectivas de Perdigão Malheiros (1866) a Clóvis Moura (1996)
(Almeida, 2002). Segundo Almeida a origem deste conceito “frigorificado” é a
resposta do Conselho Ultramarino ao Rei de Portugal, datada de 1740 e que
define quilombo como:

“toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte


despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se
achem pilões nele” (Almeida, 2002, p. 47)

Como analisa o autor, esta definição carrega elementos fundamentais


que se propagaram na idéia sobre quilombos no Brasil, quais sejam: a) a idéia
de fuga de escravos para um lugar geograficamente isolado, mais perto de um
mundo selvagem que da civilização; b) a inexistência ou não necessidade de

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trabalho, a vadiagem. De uma forma geral essa perspectiva sobre quilombo o
coloca para fora do mundo da produção e do trabalho. É uma perspectiva que
não compreende os escravos como sujeitos de ação própria, que, além de
resistir através da fuga a uma situação de opressão, também elaboravam
projetos de vida diferenciados e próprios. De modo geral, essa idéia traz
consigo uma percepção reativa das ações dos sujeitos, destituídas de projetos
e propostas que visassem sociabilidades diferenciadas dos padrões
estabelecidos pelos povos europeus ou europeizados. E por isso, nesta visão,
sua existência na história do Brasil apenas teria sentido através dos esforços
mobilizados para destruí-los, pois eles em si não seriam portadores de uma
significação histórica que tivesse contribuído na formação da sociedade
brasileira. Por fim, posto que somente existiram enquanto associação de
escravos fugidos, sem projetos, sem sociabilidade própria, sem singularidade
específica, sem portar uma significância histórica em si, a conclusão deste
pensamento leva a inevitável constatação que após o fim da escravidão, os
quilombos teriam também deixado de existir.

No entanto, nos últimos anos, influenciados pelas novas


perspectivas da disciplina, muitos autores vêm buscando redimensionar a visão
sobre os quilombos durante a escravidão. Uma das principais revisões em
relação à idéia ‘frigorificada’ relaciona-se à perspectiva de que os quilombos
não estavam isolados do todo social e sim fizeram parte deste todo,
conformando-o e transformando-o. Como afirma Gomes: “ao contrário do
isolamento, os mundos criados pelos quilombolas acabaram por afetar e
modificar os mundos dos que permaneciam escravos e toda sociedade
envolvente” (Gomes, 2005, p. 30).

Pesquisas atuais começam a perceber que os quilombos não foram


apenas uma ação reativa que se localizaria para fora do sistema (Ramos,
1996; Funes, 1996; Gomes, 2006). Como afirma Gomes, “os quilombos
forjaram-se modificando e sendo modificados no interior da própria escravidão”
(Gomes, 2006, p. 308). Outro aspecto notável que as novas pesquisas têm
iluminado é a capacidade produtiva que as organizações quilombolas tiveram.
Mesmo em assentamentos não duradouros, ranchos e roças comumente foram
encontrados pelas forças repressivas quando lá chegavam para destruí-los e

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aprisionar seus construtores (Gomes, 2005; Volpato, 1996). Ou seja, cada vez
mais os autores têm buscado demonstrar que, de forma geral, os quilombos na
história do Brasil não estavam fora do mundo da produção e do trabalho, e sim,
ao seu modo e pela sua ação, se integravam a ele.

Ao contrário do conceito de quilombo em termos jurídicos e


antropológico, que se baseiam na realidade viva, o conceito histórico funda-se
em pesquisas sobre documentos do passado que muitas vezes não existem
mais. Mas ainda assim, mesmo com toda a dificuldade, na medida em que os
historiadores se aprofundam no tema, eles vão percebendo que havia ao longo
de toda história do Brasil grupos de escravos, ex-escravos e mesmo de outros
setores marginalizados que buscaram formas alternativas de sobrevivência em
relação ao estado colonial e imperial. E por buscar formas alternativas, eram
em si uma ameaça à ordem social. Por congregarem escravos fugidos, um
atentado á economia senhorial.

Outra consideração importante que os novos estudos históricos têm


trazido é o fato que diante de um quilombo nem sempre o Estado era capaz de
organizar-se para destruí-lo (Teixeira, 2008). E mesmo quando o faziam, os
homens e mulheres que ali habitavam se deslocavam para outra localidade e
voltavam a estabelecer seus ranchos, suas roças e sua sobrevivência. Essa
forma de organização própria, que nasceu dos projetos dos próprios
quilombolas, não dizia respeito apenas ao fim da escravidão, mas envolvia a
luta por condições de vida que na sociedade brasileira era negada, não apenas
aos escravos, mas a todos aqueles que não faziam parte da elites, ou seja, os
trabalhadores de uma forma geral. Nesse sentido é que se pode compreender
a continuidade dos quilombos mesmo pós o fim da escravidão. Pois, se os
quilombolas buscaram terras para plantar sem ter que obedecer a um senhor,
por que eles com o fim da escravidão iriam querer obedecer a um patrão? Se
eles buscaram formas próprias de se organizar, por que eles as abandonariam
se a sociedade pouco mudou com a Lei Áurea?

E nesse contexto da Lei Áurea permaneceu uma das principais


formas de desigualdade social brasileira: a dificuldade de legitimar a terra
diante do Estado. Diante da complexidade que esse processo implicava e que

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de forma geral era só acessível à elite (conhecedora dos códigos jurídicos e,
principalmente, alfabetizada), mesmo que permanecendo em suas terras, os
quilombolas não as puderam legitimar. Daí o longo processo de luta e exclusão
que atravessou o século XX, e agora, no século XXI continua em andamento.
O artigo 68 da Constituição é hoje um importante mecanismo de busca pelo
direito historicamente negado. Uma nova significação de uma luta que já tem
mais de quatrocentos anos, e que, como historiadores tem percebido, se
destaca pela impressionante variedade de formas e estratégias que ela tomou
ao longo do tempo em todo território brasileiro.

Essa sintética apreciação sobre o conceito de quilombo buscou


marcar algumas diferenciações sobre o seu uso. No entanto, embora devam
ser diferenciadas, no processo de luta pela terra empreendidos atualmente
pelas comunidades remanescentes de quilombos, todas as formas estão
acionadas. Elas não são excludentes, mas cabe sempre saber ao que se esta
referindo quando se fala em quilombo. Foi no sentido de trazer elementos
dessa discussão nos três principais campos e usos atuais que esse artigo se
propôs. No entanto, cabe destacar que internamente a cada um desses
campos existem discussões que divergem sobre a própria conceituação. De
uma forma geral, esse artigo adotou determinada visão dentro de cada um
deles, não marcando as dissensões internas.

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