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A Mistica Do Contestado PDF
A Mistica Do Contestado PDF
A MÍSTICA DO CONTESTADO
A mensagem de João Maria na experiência religiosa do Contestado e dos
seus descendentes
GILBERTO TOMAZI
A MÍSTICA DO CONTESTADO
A mensagem de João Maria na experiência religiosa do Contestado e dos
seus descendentes
Banca Examinadora
4
AGRADECIMENTO
São muitas as pessoas que contribuíram com minha caminhada e que eu gostaria
de manifestar meu sincero agradecimento:
- inicialmente e especialmente a meu orientador, Professor Dr. José J. Queiroz, meu
grande amigo e mestre na senda do conhecimento acadêmico. E com ele, agradeço,
também, aos demais professores que me acompanharam e auxiliaram com sua
sabedoria, amizade e apoio, dentre eles destaco os que participaram da banca da
qualificação e me ofereceram preciosas sugestões e observações: Dr. Enio Brito e
Dr. Fernando Londoño.
- a todos os amigos e amigas do Programa de Ciências da Religião e,
especialmente, aos que mais sofreram e se alegraram comigo neste processo de
aprendizagem: Helvânia, Cibele, Rodrigo, Juarez, Clodoaldo, Dirceu e Odêmio.
- à comunidade da Paróquia N. Sra. Mãe de Deus e ao padre Roberto Queirós que,
com carinho, me acolheram em São Paulo.
- ao Pe. Dr. Agenor Brighenti, reitor do Instituto Teológico de Santa Catarina, e aos
alunos(as), professores(as) e funcionários(as) do ITESC, que me apoiaram e
valorizaram a minha pesquisa e o meu trabalho enquanto docente e coordenador do
Departamento de Pastoral.
- às pessoas queridas, amigos e amigas, que fizeram e fazem história comigo. São
tantos, porém, quero destacar os que se fizeram mais próximos desta minha
caminhada e me apoiaram: Celso, Renato, Zani, Márcia, Janete, Pe. Lídio, Pe.
Roque, Pe. Vilmar, Pe. Moacir e aos seminaristas, que atualmente convivem comigo
e partilham companheirismo, amizade e compreensão: Edson, Miguel, Vilson, Lauro,
Lourenço, Gelson, Casara, Fabio e Lemos.
- ao Regional Sul IV, da CNBB, e especialmente aos membros das Pastorais da
Juventude de Santa Catarina, com os quais compartilhamos dificuldades, alegrias e
esperanças.
- aos educadores e educadoras populares, da região do Contestado, com os quais
ousamos sonhar e fazer acontecer.
- enfim, aos caboclos e caboclas do Contestado e aos seus descendentes, homens
e mulheres simples, lutadores, místicos e esperançosos que me ofereceram, pela
sua experiência e pelos depoimentos, sua preciosa sabedoria.
- à ADVENIAT e à Fundação São Paulo pela solidariedade e contribuição financeira.
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RESUMO
ABSTRACT
The Contestado is one of the greatest popular movements and armed conflicts
in the history of Brazil. It happened between 1912 to 1916 and embodied a region
equivalent to one third of the Santa Catarina territory and the southwest of Parana.
Not only the geographic amplitude and the long period of war but it is also
remarkable the involvement of some tens of thousands of people with great number
of deaths. The Contestado scarred and still influences the life, culture and
religiousness of the ones who survived and their descendents.
This dissertation studies and explains the Contestado mystics, from a
symbolic-cultural perspective and from the current reception and new significance to
João Maria’s words. This mystical experience and its message still lives in various
expressions and religious representations of the Contestado descendents. Retrieving
them, from their origins to the present days, is the path walked by this dissertation.
Around the Contestado and João Maria’s message, several myths, rites,
symbols, sacrifices and prayers have appeared, and are still kept in the popular
memory of the Contestado descendents and reinterpreted in their religious
experience. After almost a century, the Contestado itself has been given a new
significance in a way that the cabocla community finds in it a sense, an inspiration
and a mystical experience that allow them to live in the present in a sympathetic way,
with esteem and acknowledgement, facing the harsh reality in which they find
themselves, trusting in better days.
After a revision and bibliographical analysis, retrieving historical, geo-political,
social-economical and specially cultural and religious aspects of the Contestado, the
most precious information in this dissertation were borrowed, from the people’s
popular testimonies, who keep alive the memory of the message and the mystics of
João Maria. Thus, it was possible to trail a path for retrieval and valuing of the culture
and the religious and popular experience of the Contestado.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 10
CAPÍTULO I – ASPECTOS HISTÓRICOS, GEOPOLÍTICOS, SOCIAIS E ECONÔMICOS DO
CONTESTADO............................................................................................................................ 17
1.1. A mística do Contestado: abrindo o diálogo com outros pesquisadores ...................... 21
1.1.1 Conceituando a mística................................................................................................... 22
1.1.2 O Contestado: algumas interpretações ........................................................................... 32
1.2 Povoamento e geopolítica do Contestado ......................................................................... 56
1.3 Limites, economia e violência no Contestado ................................................................... 66
1.3.1 A questão dos limites ...................................................................................................... 67
1.3.2 Aspectos sócio-econômicos............................................................................................ 72
1.3.3 Outros aspectos correlacionados à guerra ...................................................................... 77
1.4 Aspectos da identidade cabocla......................................................................................... 95
Epílogo ......................................................................................................................................110
CAPÍTULO II - REFERÊNCIAS CULTURAIS E RELIGIOSAS PARA UMA LEITURA DO
CONTESTADO...........................................................................................................................119
2.1 A identidade, a mensagem e a mística de João Maria .....................................................122
2.1.1 A identidade ...................................................................................................................123
2.1.2 As andanças e os feitos do monge João Maria ..............................................................134
2.2.3 Personalidade, santidade e missão de João Maria ........................................................148
2.2.4 Dimensões política, religiosa e ecológica da mensagem de João Maria ........................173
2.2 O monge José Maria: a ressurreição de um mito .............................................................188
2.3 Mística e religiosidade do Contestado ..............................................................................208
Epílogo ......................................................................................................................................231
CAPÍTULO III - A RECEPÇÃO E A RESSIGNIFICAÇÃO ATUAL DA MENSAGEM E DA
MÍSTICA DE JOÃO MARIA .......................................................................................................238
3.1 A mensagem de João Maria na memória dos descendentes do Contestado, hoje........242
3.1.1 Histórias e a arte de conservar e ressignificar a mensagem de João Maria ...................248
3.1.1.1 Histórias sobre a identidade e a santidade ......................................................................251
3.1.1.2 Profecias, curas e respeito ...............................................................................................258
3.1.1.3 Histórias que falam da fé, das intuições, da sabedoria e das lições de vida...................268
3.1.1.4 Histórias que falam de mistérios, milagres, poder e encantamento ................................278
3.1.1.5 Artes populares que resgatam a mensagem de João Maria............................................292
3.2 Símbolos, ritos e orações que resgatam a memória de João Maria e do Contestado...305
3.2.1 Águas santas .................................................................................................................317
3.2.2 Cruzes e cruzeiros .........................................................................................................328
3.2.3 Batismos ........................................................................................................................333
3.2.4 Orações e benzimentos .................................................................................................338
3.2.5 Romarias e movimentos populares ................................................................................344
3.2.5.1 A memória de João Maria no MST ...................................................................................348
Epílogo ......................................................................................................................................351
CONCLUSÃO.............................................................................................................................360
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................................376
ANEXOS ....................................................................................................................................390
10
INTRODUÇÃO
personagem como João Maria, e sua "reconstrução" histórica feita pela tradição,
do Contestado. Entre as obras mais citadas pela maioria dos pesquisadores mais
Ribeiro, Nilson Thomé, Euclides Felippe, Paulo Pinheiro Machado e Ivone Gallo.
tema que se encontra diluído em boa parte das obras, mas em praticamente
ainda sobre aquela que foi sendo assimilada e ressignificada pela cultura e
será assim denominada neste trabalho. Além de parte do sul do Paraná, ela
abrange, em Santa Catarina, o meio oeste, o planalto norte e a região serrana. Além
memória dos descendentes dos que viveram a sua luta. Ele produziu uma mística
Mostrar como esta mística, que tem em João Maria uma referência central,
sobrevive nos mitos, nos rituais religiosos e na tradição oral dos descendentes do
surgindo símbolos, mitos, rituais e interditos. Foi sendo "construída" uma nova
descendentes.
12
Contestado, talvez seja não apenas um único personagem histórico, mas dois ou
mais. De qualquer forma, é apenas um personagem com este nome que, aos
Maria, não há consenso; a data varia desde meados do século XIX até o final da
história do Brasil e, até o momento, poucos espaços foram abertos para uma leitura
autêntica dos seus aspectos culturais e religiosos. Sabe-se que o mundo moderno é
Maria e a mística que este monge suscitou na população e ainda hoje contagiam
caminhos:
experiências religiosas, tais como batizados, romarias, bênçãos, rezas, etc., que
pesquisa. Além disso, far-se-ão também consultas a arquivos históricos, como livros
contos, ritos, histórias e rezas. Para a coleta destas informações serão utilizados
Maria hoje. Dito de outra forma, como João Maria está presente hoje, na memória,
mitos, ritos, símbolos, sacrifícios e rezas existentes em torno de João Maria, foram
procuram manter viva a memória de João Maria como um modelo de vida (por isso,
descendentes encontram nele uma direção, uma inspiração e uma mística que lhes
uma atitude mística, não de derrota nem de vingança, mas de resistência, esperança
mensagem de João Maria, tal como foi sendo ressignificada, continua sendo uma
ela foi produzindo, com o passar dos anos, uma mística e uma religiosidade,
região.
definições de Leonardo Boff e Frei Betto oferecem subsídios para entendê-las, sob
de Max Weber.
contidas nas mais diferentes obras existentes que tratam do assunto. Procurar-se-á
pesquisa. Por isso, tais questões, assim como a própria guerra do Contestado, serão
abordadas apenas nos seus aspectos mais relevantes; mas, não há como omiti-los,
Segundo uma leitura marxista, uma luta camponesa não teria condições de
se tornar uma luta revolucionária; poderia até ser “auxiliar” ou “parceira” num
18
1
processo revolucionário, mas não o “carro chefe” de uma revolução. Talvez, por um
lado, seja devido a esta leitura, que durante grande parte do século XX, uma luta,
academia, por causa desta certa desconfiança de que as mesmas poderiam não
revolucionário, que depois de alguns ataques dos oficiais eles resolveram radicalizar
2
modificação de toda a sociedade, ao ponto de que eles, “de uma altura em diante,
3
não queriam terra; queriam ir ao Rio de Janeiro, derrubar o governo.” Sendo assim,
ferocidade e a luta armada contra a exploração foi, no Contestado, uma das grandes
sobre o movimento do Contestado como uma “revolta alienada”, percebeu “as duas
Ele afirma que “os caboclos tinham clareza quanto às forças com as quais estavam
2 MOCELIN, R. Os guerrilheiros do Contestado. (1974), p.5-7, fala que o Contestado foi “uma
insurreição, uma reação dos sertanejos contra a ordem social injusta”. Ao relatar a forma de vida
nos redutos, baseada na divisão por igual dos alimentos e de outros bens de subsistência, ele
diz: “é evidente que uma sociedade desse estilo preocupava os poderosos da época. Era preciso
destruí-la antes que as multidões de oprimidos percebessem que era possível estabelecer uma
nova ordem social, mais justa, mais humana, rompendo com o capitalismo embrionário que se
estabelecia na região.” Porém, ele mesmo afirma que os camponeses não seriam vitoriosos, “já
que não possuíam uma teoria de classe, nem os necessários conhecimentos para sustentar uma
guerra.”
teorias ou relatos a priori, como por exemplo, o viés da sociologia política, a partir do
qual tem sido mais comum explicar os fatos e o desenrolar do Contestado, mas
cotidiano, da religiosidade e da cultura popular que, por sua vez, não deixam de
situado só na mente mas também no corpo, gravado não de forma “fixa”, mas
a disputa dos limites territoriais entre os Estados de Santa Catarina e Paraná. Tal
disputa só foi concluída em 1916, ano em que foi assinado o acordo definitivo sobre
rolado.
5 HALBWACHS, M. A memória coletiva. (1990), p. 51, afirma que "cada memória individual é um
ponto de vista sobre a memória coletiva” e “este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu
ocupo” e “este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios." Em
outras palavras, ele afirma que “a memória coletiva é a trama das identidades individual e
coletiva”, ela “depende do contorno social” e é “condição da identidade dos grupos e pessoas”.
Ele diz ainda que “na exclusão dela está a base da alienação”.
21
descendentes.
mística em si não é objeto desta pesquisa. Faz-se necessário deixar claro que a
torno de João Maria e sua mensagem. Ela é uma “experiência ocorrendo no íntimo
do espírito, de união beatificante com o princípio supra-empírico de todo o real”.6
Mas, como preliminar, ocorre indicar o que se entende por mística antes de se
abordar neste trabalho o objeto deste capítulo. E, para compreendê-la, ainda nesta
primeira parte, serão apresentados alguns conceitos de outras categorias que estão
7
trabalho.
no domínio das ciências, mas, antes de tudo, nos termos das tradições religiosas e
termos aparecem de forma fluida e sua abrangência conceitual varia muito. Desde o
significados.
Talvez isto ocorra pelo fato de que o discurso místico não pode ser
apreendido ou ao menos situado apenas dentro do discurso racional; talvez por ser
da observação, aquilo que sugere algo para além do atingível em termos científicos
e humanos, pois a mística remete mais para uma experiência subjetiva, pessoal,
reflexiva, “intuitiva” e de “sentido” do que para algo que possa ser observado e
9 Cf. ALVES, R. O enigma da religião. (1984), p. 172; OTTO, R. O sagrado. (1992), p. 42, afirma
que a mística se dá como um processo de resistência ao processo de racionalização e
moralização do sagrado. Para ele “o misticismo, seja qual for na sua origem histórica, é sempre,
na sua essência, a exaltação levada ao extremo dos limites não-racionais da religião.” Para ele a
mística é um dos elementos fundamentais da vida religiosa, é aquela experiência religiosa que
melhor caracteriza e expressa o sentimento do numinoso e ela não está reservada a apenas
alguns indivíduos ou grupos sociais, enquanto experiência religiosa excepcional, mas ao
contrário, ela está presente em todas as faces e elementos do numinoso, e o seu traço
fundamental é o próprio caráter misterioso do seu objeto, que nos remete ao elemento
fundamental do sagrado que é o irracional ou o não-racional. Segundo ele, o sentido do ser se
impõe ao homem como algo majestoso, tremendo, enérgico, misterioso, fascinante e augusto.
Eis, para ele, o traço fundamental da mística. Cf. SELL, C. E. A virada mística. (2004), p. 147,
151-158.
24
vertente mística por parte da Igreja Romana que, adepta e também agente no
dos antagonismos entre formas racionais e irracionais, nem entre formas religiosas e
não-religiosas da experiência humana. Porém não vem ao caso aqui discutir essas
questões, nem apontar para a hipótese de que a mística teria um caráter de primazia
caráter inefável12 e, sendo assim, essa experiência reconhece estar longe de ser
12 JAMES, W. As variedades da experiência religiosa. (1991), p. 237 e 238. Para este psicólogo,
além do aspecto da inefabilidade existe na mística uma qualidade noética, onde “os estados
místicos parecem ser também, para os que os experimentam, estados de conhecimento,
estados de visão interior, dirigida a profundezas da verdade não sondadas pelo intelecto
discursivo.” Também a sua afirmação de que “o místico tem a impressão de que a sua própria
vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e seguro por uma força
superior”, é importante para a compreensão da mística e dos místicos do Contestado. Eles
tinham uma profunda convicção de que quem os conduzia à luta não era a sua própria vontade,
mas algo superior, uma força superior.
25
experiência mística. Além disso, vale considerar que fazem parte da experiência
da própria vida, em busca de um bem maior, seja ele o bem estar espiritual do
A ciência, por um lado, fez uma crítica da religião denunciando seu caráter
ideológico, mágico e irracional mas, por outro, procurou suplantá-la com o mito do
progresso científico e tecnológico, sustentado pela crença de que este mito seria
Crespi, que a história não é um continuum em evolução, mas algo que precisa ser
mantém vivo um grupo ou uma comunidade humana é sua cultura, sua mitologia,
sua identidade, aquilo que os faz ser o que são. Esse nível simbólico, em vez de
14 Segundo o Mestre EKCHART, grande místico do século XIV, em O livro da divina consolação
e outros ensaios. (1983), p.193, assumir a pobreza significa caminhar no sentido da nadificação
do próprio eu, nada querer, nada saber e nada ter. Para ele, “um homem pobre é aquele que
sequer pretende satisfazer a vontade de Deus.”
que asseguravam a ordem e o controle social nas sociedades humanas. Ele restituiu
compreensão humana”.
18 Ibid., p.233.
27
também percebeu, na religião, um caráter duplo. Além de seu caráter opiláceo, ele
parecer uma volta aos tempos pré-modernos ou do romantismo, mas é sabido que
uma consciência crítica que lhes permite, com o tempo, vencer ambiguidades,
reais. Para o estudo do mundo popular, Enrique Dussel21 afirma que "devemos
possuir a simpatia ou intuição capaz de ‘re-viver’ um mundo alheio para, de dentro
desse horizonte, descobrir a significação de tudo aquilo que habita nesse mundo".
a “Mística do Contestado”. Esta pesquisa também não propõe uma teoria sobre esta
religiosa e espiritual, vivida em torno de João Maria, que, por irradiar confiança,
certa dose de mistério, reuniu, durante cerca de quatro anos, numa experiência
libertação. Sua concepção de mística será muito útil no desenrolar desta pesquisa.
22 ANTISSERI, D. A filosofia analítica sobre a religião, In. PENSO, G. & GIBELLINI, R. (Org).
Deus na Filosofia do século XX. (2000). Pierre Weil afirma que “todo o conceito separa e
fragmenta.” Para ele “se realmente entramos numa via mística, é preciso que transcendamos
toda espécie de conceito”. Cf. MOREIRA, A. & ZICMAN. R. Misticismo e novas religiões. (1994),
p.102.
e deixavam-se conduzir pelo coração e pela intuição, pelo espirit de finesse como
chamou Pascal; mais do que no poder dos humanos e nas armas de guerra,
que ele existe na face da terra” e que uma das razões para a emergência da mística
para explicar a razão ou o valor da mística. Ele afirma que “a mística só existe para
nos ensinar a lidar com o conflito e para fazer com que dentro dele, não sejamos
esmagados, mas estejamos sempre acima ou numa relação que não quebre a
Simone Weil, no seu amor pelos judeus perseguidos e queimados nas câmaras de
gás pelos nazistas, afirma algo que pode ser entendido como um dos seus conceitos
de mística:
sua mística insere-se nessa linha de criar espaços para que a voz do outro
seja ouvida, para que o drama do outro seja sentido, e culmina numa grande
mística da compaixão, a capacidade de sentir o outro e com ele se alegrar.
Eliminar a distância que nos separa do outro.
Finalmente, vale citar ainda Sell,27 para o qual a mística possui uma
sonhos, tornaram-se “militantes”, e essa militância não foi tão somente uma
militância política, foi mais do que isso, foi uma mística-militante. Foi a partir e por
derrota com honra antes que buscar a vitória com vergonha.” E, depois da derrota,
26 Ibid., p. 77.
27 Cf. SELL, C. E. A virada mística. (2004), p.179. Sell chegou a esta conclusão sobre a mística
após ter observado a concepção de mística dos respectivos pensadores: Max Weber, Rudolf
Otto, Henri Bergson, Ludwig Wittgenstein, Martin Heidegger, entre outros.
experiência do silêncio” ou, usando uma frase de José Martí, do “fechar os olhos
pessoas concretas. Com o passar dos anos essa experiência “fundante” vai
sendo assim, vários outros fatores influenciam e são influenciados por ela. Porém,
se algumas categorias que serão usadas ao longo do trabalho. Entre elas destacam-
se: cultura (religiosa e popular), memória coletiva, herança cultural, revolta popular,
experiência religiosa, profeta (ou líder carismático), ritos e mitos, pequenos relatos,
mesmo tempo como uma aprendizagem na arte de escutar o “outro” num mundo
que só quer falar, convencer e doutrinar. Para ele, “a mística não visa constituir um
verdade..., mas procura falar a linguagem comum, a que todos falam, não a
linguagem técnica das disciplinas”. Daí pode-se deduzir o caráter popular e até
numa dada sociedade. É nessa mesma perspectiva que se pode afirmar que há uma
os incluídos ou os “primeiros”.
em Ciências da Religião, ou seja, produzida por cientistas da religião, mas, sim, por
outros. Cada um, com maior ou menor formação acadêmica e providos ou não de
produção.
não foram feitas sob certo rigor científico, as contradições internas das mesmas são
constantes. Sendo assim, esta pesquisa não procurou, na sua revisão bibliográfica,
sem contar as páginas na internet, que são milhares. Pode-se afirmar que, dentro da
pouco foi escrito. A mística do Contestado não foi, até o momento, objeto de estudo
dos pesquisadores. É um tema que se encontra diluído em boa parte das obras, mas
Maria e menos ainda sobre aquela que foi sendo assimilada e ressignificada pela
cultura e religiosidade dos descendentes do Contestado. Eis uma das razões desta
pesquisa!
Maria serão “visitados” desde uma perspectiva mística e religiosa. Este olhar
epistemológico é que fará a diferença. Tudo o que já foi dito pelos militares, padres,
ainda que não foi e nem será escrito. A experiência vivida é sempre maior do que
parece, diferentemente de Canudos, que logo cedo entrou para a história do Brasil,
para o Contestado talvez tenha faltado uma obra monumental como Os sertões, de
porém, mesmo assim, ainda hoje o mesmo é um assunto muito mais catarinense
que brasileiro.
mágico e sacral era um dos grandes objetivos dos círculos intelectuais. O objetivo
erudita era construir um Brasil moderno, secular, científico e educado.31 Sua grande
meta era um humanismo leigo, logo a religião não poderia ser um fenômeno
era um trabalho inútil para as ciências, uma vez que a própria religião estaria
civilizados.
elevado número de mortos, assim como devido às suas vitórias em certos combates,
levou os seus comandantes a escrever, muitas vezes, longos relatos sobre a guerra.
sob o título: Os Fanáticos. Ao falar dos monges, este autor apresenta João Maria
como “um indivíduo de aspecto rude” e José Maria como um “certo monge
dos dois monges. Porém, por mais que os militares vissem com total desprezo e de
forma errônea as praticas “supersticiosas” dos seguidores dos monges, fato é, que
Frei Pedro Sinzig, sendo que este transcreveu as Reminiscências daquele, saído a
publicação da obra de nome Frei Rogério Neuhaus (1934); Geraldo José Pauwels,
(1933); Benno Brod S.J., autor de O Messianismo no Brasil (1974) e Frei Aurélio
destacam-se os escritos dos padres Thomás Pieters, que produziu muitos textos
33 Frei Rogério nasceu em 1863, na Alemanha, sendo ordenado sacerdote em 1890, vindo no
ano seguinte para o Brasil, ficando alguns meses na Bahia e em 22 de fevereiro de 1892
assumiu a paróquia de Lages, SC. Exerceu seu ministério, na região do Contestado, até o ano
de 1922, atuando também nas paróquias de Curitibanos, Canoinhas, Porto União/União da
Vitória e Palmas.
36
racionalidade.
anos da guerra, fala de “um tal José Maria, homem de pouca reputação” (...) que
assim, “a attenção do povo ignorante”. Ele também afirma que José Maria se dizia
monge João Maria e manifesta uma ruptura provocada posteriormente por José
que o povo era ignorante e por isso se deixava iludir por lobos vestidos com pele de
34 Cf. Relato anexo, 01. Vale dizer que não é objetivo desta pesquisa destacar o trabalho
missionário ou a atuação dos freis franciscanos junto ao Contestado. Para isso pode-se ver,
entre outras obras, a de MELIM, P. C. Símbolos e práticas religiosas no planalto catarinense.
(2002); a de SILVA, E. A. Identidades franciscanas no Brasil. (2000).
37
permanente por parte deles, dos missionários católicos, para evangelizar e educar
uma mística ou uma sensibilidade evangélica e por isso não puderam ou não
assim como, a sua mística como uma forma inculturada de vivenciar e experimentar
a própria mística cristã e católica. João Maria, tido como santo pelo povo, foi
tolerado, mas não foi bem recebido pela maioria dos freis que atuavam na região.
santificação, o qual passava necessariamente pelo culto popular. Não podia ser
elevado a santo quem não aglutinasse devotos que lhe prestassem culto.
Ao contrário, aqui João Maria foi julgado como causador de grandes males
encontraram de viver a religião católica. E que esta religiosidade não era desprovida
sua luta pela terra e por mais vida e dignidade. Segundo ele, foi essa mesma
Segundo Ribeiro,36
a força política dos monges e a profunda religiosidade do sertanejo caboclo
se fecundaram crescentemente. (...) Fundada em comportamentos
religiosamente intuídos, a fé popular daqueles homens e mulheres, ávidos do
divino, encontrava nas palavras, e sobretudo nas atitudes dos monges,
respaldo para suas vidas sofridas e marginalizadas.
Outros autores e obras que precederam Hélcion Ribeiro e que merecem
aberrações cometidos pelos caboclos fanáticos, assim como contra os seus líderes
João Maria e José Maria. Quanto a João Maria, ele percebe que a devoção do povo
para com ele é grande, ao ponto de levá-lo aos altares da canonização, porém,
do caboclo em sua religiosidade37 e isso permitiu que José Maria pudesse ser o
pueris”, etc., próprias do homem primitivo e que estão muito presentes na vida do
valorizar a luta dos “jagunços” em defesa de seu pedaço de terra, de sua linguagem,
de seus costumes, dos seus hábitos e da sua própria existência. Quanto ao monge
João Maria, ele avaliza aquilo que está na memória popular, colocando-o como uma
com relação aos monges que o antecederam, pois se aqueles eram santos este era
deixada por João Maria e com isso aglutinar muitas pessoas em torno de si. E esse
fato não foi concluído com sua morte, mas continuou mesmo depois de ter sido
sacrificado no primeiro combate no Irani. Pois, foi então que o bando de revoltosos
costumes e sua cultura. O autor julga ser esdrúxula a tese que considera o
Contestado como luta religiosa, porém também afirma que faltou uma ação capaz de
afastar o fator religioso da luta que se desencadearia. Como se isso fosse possível!
Para ele o perigo para a ordem pública não poderia residir nas práticas religiosas,
por mais absurdas que pudessem parecer, e sim no ajuntamento de pessoas, devido
aos vários problemas sociais que estavam enfrentando. Para o autor, o homem do
Com isso, parece que o autor entende o fator religioso como consequência
Pode-se deduzir disso que o ator entende que o “perigo” está nas condições sociais
desfavoráveis e violentas e não na mística que consola e pacifica. Ele esquece que
existem outras crises para além das condições materiais e sociais e objetivas, que
também podem vir a se constituir em “perigo” para uma determinada “ordem” social,
política ou econômica. Falta-lhe maior clareza sobre qual foi a função e a influência
39 Ibid., p. 341-348.
cultura popular e, por sua vez, a religiosidade passam a ser consideradas folclore,
É claro que isso não foi o caso dos estudos realizados sobre o Contestado,
entre as décadas de 50 e 60, por Maria Isaura Pereira de Queiroz e Maurício Vinhas
religioso irracional, como concebeu Aujor Ávila da Luz, e sim a força messiânica que
submetidos.
visão ampla dos movimentos messiânicos, onde realçam a importância política dos
reflexões dos autores, que o papel da religião é reduzido a uma espécie de canal de
enquanto movimento político religioso de tipo messiânico. Foi nesse sentido que
de Sorbonne, em Paris. Para ela, o Contestado foi uma guerra religiosa liderada por
Palmas, que os sertanejos chegaram a acreditar que o monge João Maria era o
próprio Deus na terra e que o drama vivido pelos sertanejos, no Contestado, podia
muitos depoimentos, e com isso ele ofereceu uma reconstituição minuciosa dos
43 Edênio Valle afirma que, ao tratar desse Reino Messiânico, Maria Isaura percebe nos
Movimentos Messiânicos, como é o caso do Contestado, que trata-se de “um reino celeste que
existirá neste mundo, dotado de atributos maravilhosos; lugar onde não se adoece, onde não se
precisa trabalhar, onde se é plenamente feliz, onde residem os santos.” Afirma ainda que “entre
o líder e os liderados dão-se uma empatia e um pacto silenciosos em torno de objetos e
objetivos, crenças, rituais e ambições de santidade e fartura material, cujo fundamento é
essencialmente místico-religioso.” VALLE, E. Medo e esperança: uma leitura psicosociológica do
milenarismo brasileiro. In. BRITO, E. & TENÓRIO, W. (orgs). Milenarismos e messianismos
ontem e hoje. (2001), p.76 e 77.
43
para ele o Contestado foi uma “revolta alienada”44 e isso especialmente devido ao
espantar com as mesmas. Nos passos, mas não exatamente na mesma direção de
o livro Os errantes do novo século (1977), defende uma tese de doutorado que
questiona as produções anteriores. Para ele, a expressão assumida pela guerra não
podia ser outra, senão a que lhes era dada pelas imagens religiosas. E não foi a
presença deste modo de expressão, mas as condições sociais e culturais gerais que
46
levaram os rebeldes à derrota. Para ele, a eclosão do movimento teria origem em
uma crise resultante de toda uma estrutura social, como foi o caso, na época, a
religioso”, a sua “dimensão religiosa pode então ser facilmente alijada como um
epifenômeno, uma capa que apenas esconde o que seria essencial.”47 Porém, para
desencantado.
eficácia e com isso evidenciou-se o lado cru das relações de dominação. Sendo
global, recolocou, dentro dos limites que lhe eram dados, os problemas
47 Ibid., p.12.
48 Ibid., p. 200.
45
não pode apenas ser vista em termos de polarização genérica entre padre-fiel,
sendo imposto pela sociedade global. Sendo assim, para este pesquisador, a
50
religião tem um papel importante e de estruturação da vida das comunidades.
Numa perspectiva “compreensiva”, Monteiro não viu no aspecto religioso
apenas “uma referência para a compreensão de crises sociais” e como algo “não
determinante da ação de reação diante das mesmas”, mas como algo que mostra
seu papel ativo na eclosão e evolução do movimento do Contestado, como algo que
seus adversários. Sendo assim a religião não se situa fora da luta de classes. E ela
que, neste caso do Contestado, coordena o protesto contra um mundo que tenta
49 Ibid., p. 10 e 11.
popular e dos movimentos messiânicos, percebe que o fato novo da religião, nesses
Contestado.
que eles eram pessoas que aos poucos foram se rebelando contra uma situação de
sofrimento, violências e injustiças e, motivadas por uma mística, aos poucos foram
comunista. Sendo assim, estavam dando início a uma nova ordem. Uma ordem,
onde “quem tem mói; quem não tem mói também e no fim todos ficam iguais.”
iniciava a partir da organização e vida nos redutos. Em suas obras, destacam o valor
Contestado.
irmandade cabocla, publicado no início dos anos 90, ela descobre no movimento
rebelde uma forma radical, não de adaptação, mas sim de dizer “não” ao avanço de
mínimas condições de sobrevivência. Auras afirma que sua opção foi trabalhar o
o prefácio de sua obra Lideranças do Contestado (2004), onde este historiador faz
religiosas.” Pinheiro destaca o papel do monge José Maria como a maior liderança
existência de duas faces: uma que passa pelo discurso religioso de “guerra santa”,
“monarquia celeste”, etc., e outra que, segundo ele, é paralela a esta, é aquela na
nas mãos dos “místicos” e depois das “lideranças de briga”. Porém, estas últimas
não abriram mão da dimensão religiosa que lhes servia como mecanismo que lhes
54
dava legitimidade.
Sem negar esta concepção, porém procurando não desprender uma face
da outra, poder-se-ia dizer que foi na medida em que os caboclos deram ênfase à
mística, gastando boa parte do seu tempo com rezas, cantos religiosos, etc., é que
então foi aflorando, a partir de dentro da própria mística, a sua dimensão guerreira
do poder avassalador que os perseguia e destruía, voltaram-se cada vez com maior
intensidade para a mística, como última arma que poderiam dispor e a ela se
apegar.
que teria sido justamente na medida em que a mística foi sendo deixada de lado,
mais na parte final da guerra, que a sua dimensão guerreira foi também se
sentido, como por exemplo, as atitudes do último grande líder caboclo chamado
Adeodato, que deu-se o direito de tirar muitas vidas dos seus próprios “irmãos” nos
cristã, foi em parte o que “permitiu” certas crueldades internas no próprio reduto e o
E, embora nenhum pesquisador tenha até o momento defendido esta tese, e sem
querer legitimar tudo aquilo que pertence à memória popular, parece ser justamente
mística como uma das faces do movimento do Contestado, pode-se perceber que
destacar o caráter político e revolucionário desta luta popular que teve os caboclos
fenômeno que se repete na história, quando o povo clama por justiça.” Ao observar
penetrar no universo cultural daqueles sertões caboclos assim como nas fontes
vão sendo gestados durante anos e que no seu seio vão sendo reproduzidas as
Nas vozes, nos símbolos, nas metáforas e no imaginário popular dos rebeldes,
percorrendo os seus caminhos desde o começo, isto é, desde os textos bíblicos. Ela
afirma que o que de mais precioso conseguiu extrair da história dos rebeldes
dos sonhos?” e sua resposta passa pelo valor das imagens oníricas, pois estas
delineiam-se como um duplo do concreto, e, se assim é, as utopias e os
sonhos são mais do que miragens que se desvanecem diante dos nossos
olhos. Eles são a leitura do mundo na sua lactência, aquilo que pode ser,
57
elaborado como crítica, perante aquilo que é.
Para ela, o “fanatismo” do Contestado consiste “naquela idéia obsessiva de
56 Ibid., p. 27.
57 Ibid., p. 27.
58 Ibid., p. 27.
51
acrescentar uma outra de Octacílio Schuler59, que afirma: “quanto mais expulsos,
É claro que não se tem como negar que no seio desta mística e desta
o trabalho aqui apresentado. Não poderia deixar de citar ainda alguns que
objetivo aqui não é citar todos, vale ao menos ainda lembrar o historiador
Contestado.
uma “luta pela terra”, entre outras. Ele afirma que “a Guerra do Contestado foi tudo
isso e foi muito mais que tudo isso.” Depois de escrever mais de duas dúzias de
livros e livretes, ele afirma que “a guerra foi só uma etapa do complicado
Canudos, apesar de ter sido muito maior, em todos os aspectos em que se analise
os dois fatos.62
depois da guerra. Com relação aos monges de nome João Maria, ele fala do
alguns de seus feitos, mas não reflete sobre as possíveis influências que este
destaca mais o seu aspecto místico. No próprio título, ele o nomeia de “São João
Maria”, e considera que este monge foi a figura mais venerada no Contestado, “é o
também, que ainda hoje uma parcela significativa da população é devota dele, e
manifesta isso por meio de diversos símbolos e rituais que conservam vivos em suas
63
casas ou em seu cotidiano.
De qualquer forma, por mais que este autor tenha intuído ou percebido,
durante as suas pesquisas de campo, que a mística é uma dimensão vital para os
como ele chama, puderam e continuam a exercer uma influência significativa nas
suas vidas, isso não tem sido nem o objeto nem o “olhar” ou o viés pelo qual segue
em suas pesquisas e análises. Como historiador e jornalista, ele segue por outros
caminhos.
que a guerra que ele está perdendo não será para sempre. Este pesquisador parece
negar quase toda a produção historiográfica posterior a Aujor Ávila da Luz. Ele
voltou a afirmar coisas que pareciam estar superadas a pelo menos meio século,
realidade, enlouquecem à beira dos precipícios e das grotas do delírio místico”. Este
autor afirmou ainda, sobre os jagunços do Contestado, que “seus pesadelos, dos
Sem comentários!
Enfim, sem menosprezar outras pesquisas e análises do Contestado que,
Sérgio Sachet sobre O Contestado, elaborada para o grupo RBS/TV (Rede Brasil
Sul de Televisão, afiliada da Rede Globo) e para alguns jornais de Santa Catarina,
projeto este executado entre os anos de 2000 e 2001.68 Esta produção aponta para
Enfim, concluindo esta breve introdução, vale dizer que muito daquilo que
para este trabalho. Além disso, esta pesquisa ouvirá e se referendará em outros
na sua grande maioria mal conseguem sobreviver diante da dura realidade que
“inculto”, etc., que ainda hoje sente as dores deste estigma, quiçá possa um dia
Sabe-se que desde o início do século XVI alguns viajantes europeus, como
mas nenhum deles deixou marcas significativas para a história da região. Não
Foi a partir do século XVIII, com o ciclo do ouro em Minas Gerais, que
começaram então a ser transportados para a feira de Sorocaba, São Paulo. Com
Sorocaba”.
70
Além dos indígenas das comunidades Kaingangs e Xoclengs da família
demográficas, a maioria do povo que habitava a região, até meados do século XIX,
era de caboclos, provindos principalmente da miscigenação entre indígenas destas
70 Segundo SANTOS. S. C. dos. Nova história de Santa Catarina. (1977), p.15, “os índios
Xoklengs mantinham uma disputa secular com os Guarani e os Kaingangs para o controle do
território que ocupavam. Os Guarani dominavam extensa faixa do planalto ao lado dos rios que
integram as bacias Paraná/Paraguai e o litoral; os Kaingang eram senhores das terras interiores
do Planalto; os Xoclengs tinham nas florestas que se situam entre o litoral e o planalto o seu
território de domínio e refúgio.” Diferentemente os demais, “os Xoclengs, que falavam a mesma
língua dos Kaingang, não cultivavam a terra, eram mais nômades, se deslocavam
constantemente de um lado para outro em meio às florestas, não formavam grandes
agrupamentos humanos mas viviam em pequenos grupos”. Cf. VINHAS DE QUEIRÓS, M.
Messianismo e conflito social. (1977), p. 19.
57
entre outros. Somente a partir de meados do século XIX é que começaram a chegar
índios kaingangs que eram inimigos ferozes dos guaranis e estes eram aliados e
os paulistas e estes, por sua vez, através das bandeiras, caçavam os guaranis,
mesmo entre os caboclos, talvez por serem descendentes destas etnias rivais. Ou
ao menos que se tornaram rivais desde a chegada dos europeus. Mesmo depois de
habitando a região.
dos seus alimentos principais era o pinhão da araucária, árvore frondosa e milenar
Devido aos vários dias que demorava a viagem, os tropeiros tinham seus
locais aos poucos foram se transformando em vilas e cidades, pois, além de serem
locais onde se fazia certos negócios, também, aos poucos, em muitos casos, os
tropeiros iam constituindo novas proles. Muitos dos seus filhos jamais vinham a
Dentre eles destaca-se Antonio Correa Pinto que é indicado, pela maioria
fundando uma capitania paulista que mais adiante se chamou Villa de Lages. Local
paravam alguns dias para descansar, alimentar o gado, fazer negócios... Segundo
Foi somente no final do século XVIII, em 1790, que foi concluída uma
73
pequena estrada que liga Desterro a Lages. Até então, conforme afirma Ávila da
74
Luz , “os indígenas eram os senhores absolutos da região e, em assaltos
que, segundo ele, em 1808 deu ordem de combate aos índios de Curitiba,
ainda não havia sido introduzida em larga escala a entrada de colonos alemães,
73 A primeira estrada de rodagem que liga Estreito a Lages só foi inaugurada em 1906. Uma das
grandes dificuldades encontradas para abrir estradas era a exuberância e a abundância de
milenares e formidáveis florestas de araucárias que se impunham majestosas na região.
excluíam os indígenas, seis mil habitantes, sendo que na sua quase totalidade era
constituída de caboclos.
de grandes fazendas de criação de gado, onde cada uma contava com algumas
famílias de caboclos que eram denominados de peões, por serem responsáveis pela
roças assim como criar algumas galinhas e porcos para o sustento da sua família e
76
das dos seus patrões .
75 A produção da erva-mate era muito trabalhosa, envolvia muita mão de obra para colhê-la no
mato, sapecá-la, secá-la, socá-la e transportá-la até os locais de venda. Normalmente era no
inverno o período mais apropriado para a confecção da erva-mate, não porque era o tempo em
que havia menos serviço com a pecuária e a agricultura, como afirmou MACHADO, P. P.
Lideranças do Contestado. (2004), p.133, mas porque é o tempo em que a erva-mate dá o
melhor chimarrão e porque podando a planta nesta época a brotação cresce melhor para novas
podas futuras.
76 Por mais que pareça estranho o termo "patrão" era e ainda hoje é muito empregado
especialmente nas fazendas da região. Tem um significado parecido com o de "doutor", muito
usado no interior do país. É um termo que ao mesmo tempo presta homenagem, manifesta certa
amizade, submissão e dependência por parte dos caboclos ou empregados. Cultiva-se na
tradição gauchesca a chamada missa crioula, onde usa-se uma linguagem teológica que
aproxima o patrão aqui deste mundo, das fazendas, com o Patrão lá de riba.
60
77
Horácio, ofereceu um depoimento onde conta algo de quando ele morava na
partir da segunda metade do século XIX e inícios do século XX. Foi à custa de muita
diversos serviços.
surgiram e pegaram fama alguns monges, místicos ou profetas, na região, entre eles
"monarquia teocrática" a ser resgatada e defendida. Esta era sonhada como reino
de amor, paz e justiça que nos espera no horizonte. Junto a este sonho foram
Contestado, não foi tão somente a existência de uma classe empobrecida, vivendo
ou profetas. Trata-se
de uma opção
preponderantemente
política, coronelista e
deixar vestígios.
Mas, por incrível que pareça, a coisa não foi tão fácil como o esperado.
também foram necessários quatro anos de intenso trabalho por parte do exército
pacífico, que vivia às margens dos rios Iguaçu, Timbó, Caçador, Jangada, Roseira e
do Peixe, entre outros, situados no planalto serrano, planalto norte e meio oeste
catarinense. Além disso, também foram necessários, muito trabalho e muito dinheiro
obra parece ter sido a companhia norte americana Southern Brazil Railway, empresa
79 80
concessionária da Ferrovia São Paulo – Rio Grande. Segundo Machado , o corpo
possuía, em 1910, que era de 280 homens, espalhados por todo o Estado.
governo tinha dado aquela terra para eles. Quando não expulsava os moradores, a
79 MACHADO, P. P. Lideranças do Contestado. (2004), p. 140 e 148, afirma que “entre 1908 e
1910, houve um violento processo de grilagem no vale do rio do Peixe. A Brazil Railway fez
cumprir seu domínio sobre os terrenos devolutos das margens de até 15 quilômetros de cada
lado do leito da sinuosa estrada de ferro. O objetivo era preparar este território adjacente para a
exploração de madeira e venda de terras a imigrantes estrangeiros ou a filhos de colonos já
nascidos no país. Para obter posse direta destes territórios, habitados por posseiros caboclos e
até por posseiros legitimados, ou por proprietários de terra diretamente comprada do estado de
Santa Catarina, a companhia valeu-se da força de um contingente armado, comandado pelo
coronel Pilhares, antigo oficial da polícia paranaense. Este coronel adquiriu fama pelas
violências praticadas na região.”
80 Ibid., p. 152.
63
Lumber simplesmente retirava a madeira sem pedir autorização e sem pagar (...) e
donos das fazendas como para os que a elas eram agregados, o espírito
era uma condição de sobrevivência de ambos. Ou, como afirmou Barrington Moore,
“em qualquer sociedade estratificada (...) há uma série de limites para que
mantidas apenas por concessão e proteção (...).” Para ele, existe uma série não
uma constante sondagem da parte dos governantes e dos governados para ver o
que podem fazer sem incorrer em sanções, para testar e descobrir os limites da
82 Esta tese foi defendida pelo professor Marcos Rodrigues da Silva, em junho de 1999, quando
deu, em Caçador, uma palestra para docentes de Ensino Religioso, num curso de Pós
Graduação, coordenado pela Diocese de Caçador em parceria com a Universidade do Oeste
Catarinense – UNOESC-Videira. Cf. Arquivo pessoal do autor, vídeo-documentário, nº 01.
obediência e da desobediência.
passagem do império para a república quando afirma que a república serviu para
de família.
municipais. Isso levou a uma canalização dos conflitos, a nível regional, a lutas
84
violentas e radicais. Com o advento da república o poder dos chefes locais
começa a ser cada vez mais utilizado como instrumento de poder público,
Paulo – Rio Grande, no trecho que liga União da Vitória a Marcelino Ramos.
Colonization Co., que compra 180 mil hectares de terra em área de jurisdição
Vitória, Rio Negro, Lages, Curitibanos e Campos Novos, abrangendo cerca de 28 mil
meio oeste e planalto norte, abrangendo também uma parte do Sul do Paraná, foi a
região onde ocorreu, na segunda década do século XX, um dos conflitos sociais
mais sangrentos da
87
mortos. Existem diversos cemitérios, em toda a região, que lembram esse conflito
município de Timbó Grande), no dia 5 de abril de 1915 “seis mil casas foram
mulheres e crianças”.
que o mesmo possa ser analisado em toda sua amplitude e fatores correlacionados.
Sendo assim, nesta seção serão apontados apenas alguns fatores considerados
vinham juntar-se as lutas entre os chefes locais.” Ele afirma ainda que
87 Cf. ALENCAR, F. (org). História da sociedade brasileira. (1985), p.207. Não é possível afirmar
com segurança o número de mortos no Contestado. Varia muito o número estimado de mortos,
para os diferentes pesquisadores. Isso se justifica pelo fato de que os mortos eram enterrados
em grandes valas, ou eram queimados em grandes fogueiras. Segundo GALLO, I. C. O
Contestado. (1999), p. 11, “os dados oficiais apontam para um efetivo das tropas legais de 6 mil
homens, além de mil vaqueanos, e um saldo final de 3 mil mortos, número batante discutível,
pois só no reduto de Santa Maria havia aproximadamente 5 mil revoltosos.” Também
MONTEIRO, D. T. Os errantes do novo século. (1974), P. 277, questiona a estimativa de Ávila
da Luz, de 3 mil mortos, como muito baixa e também considera demasiadamente exagerada a
estimativa, de Ferrante (em seu depoimento), de 8 mil mortos, só no Exército. Porém,
VALENTINI, D. J. Da cidade santa à corte celeste. (1998), p.183, afirma que “as somas apontam
para a morte de aproximadamente 8 mil brasileiros, na grande maioria sertanejos.”
alguns poucos fatores. Entre tantos outros fatores que compõe a complexidade do
parlamentares em
comarca de Curitiba
foi desanexada da
província de São
Paulo e elevada à
categoria de
província, com o
nome de Paraná.
Por não
estarem definidos os
limites territoriais
68
último quis firmar posse da região de Lages, Campos Novos e Curitibanos, que
lesados em seus direitos de fronteiras. Este Estado, que tinha em Desterro sua
Capital, também reivindicava para si toda a região situada ao sul do Rio Iguaçu, até
fazer divisa com a Argentina, acentuando assim os conflitos, já que Paraná entendia
que aquela região era sua. Cada Estado contestava para si uma quantia aproximada
de 20 ou 28 mil Km² além dos seus limites territoriais atuais, somando, ao todo,
90
48mil Km² de terras contestadas .
acirrou a luta no sentido de que cada Estado quisesse para si o seu domínio. Santa
Catarina tem sentença favorável em 1904. O Paraná entrou com recurso em 1909 e
o ganho de causa foi dado a Santa Catarina e, novo recurso do Paraná foi rejeitado
90 Antes de acirrar as disputas por limites entre Paraná e Santa Catarina, já vinha se arrastando
desde 1750 com o Tratado de Madrid, as questões limítrofes entre Brasil e Argentina. Em 1881,
a Argentina apresenta um reclame internacional pretendendo estender suas fronteiras até o Rio
Chopin e o Rio Jangada (onde estava a região das “missiones” e “Palmas”). Apenas em 1903 é
que definitivamente foram demarcados os limites, após um laudo favorável ao Brasil, do árbitro,
o presidente norte americano Grover Cleveland, em 6 de Fevereiro de 1895. Eram disputados
30.622 Km² de terra, no território que hoje pertence a Santa Catarina e Paraná, no sentido oeste.
Por causa dos índios Kaingangues o Brasil teve ganho de causa, mas logo as disputas foram
sendo travadas entre os dois estados. Cuja solução foi dividir praticamente ao meio. Porém até
se definir por esta divisão houve muita violência. As terras contestadas somavam 48 mil Km²,
sendo que somente após encerrada a guerra do Contestado em 20 de outubro de 1916, foi
definido que, destas terras, 28 mil Km² ficaria para Santa Catarina e 20 mil Km² ficaria para o
Paraná. Sendo assim definido pela interferência do presidente Venceslau Braz.
proposta. A questão dos limites não era para eles uma bandeira de luta. Esta
Por parte dos governantes, o abandono da região era total. A questão dos
limites entre Paraná e Santa Catarina, até o início da república, parecia não ter
conquista das matas com os ervais nativos não dependiam da definição destes
limites. Isso torna-se mais evidente na medida em que entre os chefes locais e as
92 De todos os entrevistados nesta pesquisa (Cf. Anexos), nenhum lembrou que a questão dos
limites tivesse interessado a população da região. Ninguém conta que alguém do povo tivesse
entrado na guerra a fim de defender limites territoriais.
94
na guerra.
deve ter sido escrita por José Maria ou algum de seus seguidores, oferece algumas
a necessidade do povo se reunir para lutar por seus direitos, que devem viver dentro
dos redutos como uma irmandade, que os comandantes devem agir como pais, que
que o Estado de Santa Catarina sairá vitorioso nas disputas em relação aos limites
territoriais.
O senhor reunirá toda a irmandade para em meu nome em uma forma geral e
fazer verem tenham todos saído fora da guia que eu como verdadeiro pae
desse povo que tem sido robado em seus intereces e nos seus direitos por
isso que até aqui em lugar de serem felizes estam sendo castigados todos os
dias e são tão cegos que mesmo castigados pelas formas mais dura como
tem sido parecem não acreditarem. Que bom seria que todos cumprissem as
ordens porque então estariam já coberto com o devino pano da bandeira da
misericórdia.
Guiará pela forma que lhe expliquei o modo como ade formar para forma
simples para forma de pulcissão e para forma de sahida de piquete. Não
esquecerão que nos lugares das forma é necessário que prantem um cruzeiro
e ensinará o modo de reconselvarem com todo respeito e asseio nas formas
dentro do acampamento. Quanto me doe dentro do coração ver nos
acampamentos não tem 10% de Irmão que tratem da boa fé, como deve ser
que rezem de boa vontade que forme com respeito que não se importem com
a vida alheia e que procedão bem que amem seus irmãos como a si próprio
que não pensem para o lado do roubo e da malvadez. Enfim, que não façam
tudo ao contrário do que deve ser.
Os comandantes que tratem todos com delicadeza como fais um bom pae
com seus filhos mas que nem por isso deixem de usar todas as enelgia
porque se na hora percisa deixarem de relharem ou castigarem ou exemplar
um irmão que abusa da sua vontade e boafé seria indigno de pertencer a
bondosa religião de Deus.
Precisa que a Irmandade saibam que esta guerra santa que é guiada pela
minha vontade não é a Guerra de S. Sebastião. A qual ainda falta muitos
anos para começar. Esta é a guerra que eu falava a 30 anos passados
daliquidação dos limites dos Estados de Santa Catarina e Paraná. Como
sabem todos aqueles que tiveram a felicidade de convelsar comigo que
sempre disse que havia de vencer Sta. Catarina pelo motivo seguinte:
1. porque tem o nome de uma Santa muito milagrosa e protegida de S.
Sebastião;
2. porque sendo menor em terras nem se pode nem se deve tirar de quem
tem menos para dar ao mais rico que este é o ponto principal da religião de
Deus;
3. porque foi no tempo da revorta para o sertão de Santa Catarina que eu
mandei a irmandade com ajutório desta santa; era o único lugar onde a
irmandade acharam sucego e agasalhos;
4. porque é onde se acha situado o divino encantado serro que se chama
Taió que eu pretendo repartir com todos os irmãos que até aqui tem
trabalhado com fé e corage e com resignação;
5. porque é enfim o único lugar onde a irmandade poderá escapar quando
começar a falada guerra de S. Sebastião e quem morar neste Estado ficará
livre das pestes e mais castigos horríveis que Deus mandará contra os
ereges. Espero tão bem a restauração da monalquia que já não veio devido
as faltas e pecados dos irmãos e fica revogada para vorta de Dão Luiz de
Bragança que foi a Jerusalém ao santo sepulcro visitar os sinais da
ressurreição de Jesus Cristo.
72
Santa Catarina e Paraná não se resolviam, aos poucos a região ia sendo ocupada.
gado de Lages, Campos Novos e Curitibanos e, mais ao norte e oeste, dos campos
97 Cf. MACHADO, P.P. Lideranças do Contestado. (2004), p.58 e 59; SANTOS, S. C. dos. Santa
Catarina no Século XX. (2000), p. 25 e 74; AURAS, M. Guerra do Contestado. (1995), p. 24;
ÁVILA DA LUZ, A. Os fanáticos. (1999), p.66; TONON, E. Ecos do Contestado. (2002), p.82.
Segundo CORRÊA, C. H. (org). A realidade catarinense no século XX. (2000), p.115, “sabe-se
que (em 1900) o extermínio dos Xokleng estava em pleno andamento. E os Guarani e Kaingang
estavam submetidos às mais diferentes violências praticadas pelos ‘brancos’.
73
lugar desabitado, abria-se uma clareira na mata, plantava-se uma roça, construía-se
pertencentes àquela terra e donos de si e dos seus poucos bens. Com a abertura da
Railway Company. Esta começou logo a desalojar todos os moradores que estavam
em sua faixa de concessão, assim como explorar a madeira existente nesta faixa, e
habitantes desalojados não tinham a quem recorrer nem com quem reclamar
fronteiras fixas, apenas acidentes naturais impunham certos limites para a pecuária
Até então a terra era, para os milhares de indígenas e caboclos que habitavam a
região, “um bem comum” e para os primeiros latifundiários era “terra de ninguém”.
fazendas dos mais variados tamanhos. Nesta época, apareceram aos olhos dos
99
1850 sobre a questão das “terras devolutas” , surgiu uma nova oportunidade para
muitos fazendeiros ocuparem estes campos, que lhes eram concedidos em troca de
favores diversos.
100
Paulo P. Machado afirma que
Uma nova Lei de Terras de 1854 ampliava o prazo para a legitimação de
posses, que acabou por tornar-se uma verdadeira “indústria” na época.
Muitas pessoas que dispunham de uma posição privilegiada nos diversos
escalões do Estado, principalmente tabeliães, agrimensores, advogados e os
próprios grandes fazendeiros, passaram a legitimar como suas regiões que
pouco ou nada conheciam, mas que, pela situação geográfica, seriam terras
valorizadas rapidamente, independentemente de quem de fato as habitasse e
cultivasse.
Assim surgiram, na região, as primeiras grandes fazendas e também as
partir de 1873, quando foi aberta a estrada "Dona Francisca” que seguia desde
Porto União, Canoinhas pelo Planalto Norte Catarinense até o Litoral. Antes disso a
exportação se dava via Porto de Paranaguá-PR, que impunha pesada tributação aos
donos de engenho de beneficiamento. Sendo que por volta do ano 1900 a erva-mate
99 A Lei de Terras, de 1850, significou uma regularização e também uma restrição do direito à
posse da terra. Para esta lei só teria direito à terra quem as comprasse ou legalizasse as áreas
em uso nos cartórios, mediante o pagamento de uma taxa para a Coroa. A terra passou a ser
tratada como mercadoria e o direito a ela se tornou direito de poucos e revolta de muitos. Os
mais pobres não sabiam ler, nem eram informados desta lei, nem tinham dinheiro para efetuar a
legalização.
ocupava 31% do total das exportações catarinenses entende-se que aos poucos as
terras da região do Contestado, rica em ervais nativos, foram se tornando cada vez
muito sendo contratados como peões, numa condição miserável e num trabalho de
semi-escravidão nas fazendas. Essa é uma das razões pelas quais terá desfecho a
103
guerra do Contestado .
tornava menor o espaço que poderia ser ocupado pelos agregados expulsos do
contingente que se refugiava nas terras antes desocupadas, era agora delas expulso
pelos coronéis e sua clientela política, que as compravam por baixo preço. A
também o seu fruto, o pinhão, é para o habitante da região uma riqueza de valor
incalculável.
Southern Brazil Lumber and Colonization Co, operou normalmente. Ali eram
na Campanha do Contestado.
região, pelo potencial que o empreendimento oferecia, de vez que foi o maior e mais
107 SILVA, E. da. O desenvolvimento periférico e a formação da rede urbana de Santa Catarina.
(1978), p. 17.
77
Santa Catarina. Número este que dobrou durante os últimos 20 anos, antes do
109
recenseamento.
109 SILVA, E. da. O desenvolvimento periférico e a formação da rede urbana de Santa Catarina.
(1978). p. 16-17.
110 Procurar o patrão para ser padrinho podia significar que havia um sentimento de gratidão ou
um pedido de auxílio, proteção ou consideração por parte do pedinte, assim como pedia
significar uma exigência e necessidade de afirmação e de prestígio por parte do patrão.
78
111
escrever as primeiras letras, era igual para ambos , só não era igualmente
proprietários, com seus pistoleiros (ou jagunços) e com ajuda da força policial dos
suas fazendas mesmo depois da lei áurea e que inclusive consideravam as filhas e
violência, especialmente em relação à lida com gado, mas também nas relações
O chefe de uma grande família, que comandava uma vasta clientela, era
111 Segundo CABRAL, O. R, A Campanha do Contestado. (1960) p.88, havia uma espécie de
solidariedade mútua entre o patrão e o agregado. Sendo que este era tratado como alguém
pertencente à própria família daquele. Se a fortuna não era partilhada, mas os sofrimentos e
agruras eram sofridas em comum.
113 Mesmo sendo condenado o furto de gado, sabe-se que depois de acirrado o conflito do
Contestado e na medida em que acabavam os donativos que os que aderiam aos redutos
dispunham, passou-se a arrebanhar gado nas fazendas circunvizinhas. Essa prática já era
comum entre os fazendeiros, onde prevalecia a lei do mais forte e também os soldados
expropriavam as fazendas, bem como os tropeiros, a fim de encontrar mantimentos e animais de
carga. (Cf. Vida Franciscana, junho de 1979, p. 13.)
79
contra chefes rivais; a violência contra adversários políticos estava nos costumes.
Para ser líder não bastava ter (ou depender de) muitos súditos, era preciso também
ser temido e até venerado. Mesmo que fossem extremamente violentos, os coronéis,
114
os vaqueanos e outros grandes proprietários ou chefes políticos, apresentavam-
de São José Maria e de São João Maria e, aos poucos, aos milhares partiram para
114 A expressão “vaqueanos” tem pelo menos três conotações: uma se refere aos vaqueiros,
isto é, aos tropeiros, aqueles que conduziam tropas de gado de um lado para outro para fins
comerciais ou de negócio; outra se refere a uma categoria de “empregados” dos coronéis ou
fazendeiros, semelhante a jagunços, eram aqueles que ao mesmo tempo eram encarregados do
cuidado e ampliação das fazendas, do gado e da proteção do coronel, muitos destes eram
contratados pelas forças da legalidade para prestarem um serviço, quase que “policial”, em prol
das oligarquias econômicas e políticas locais. Estas oligarquias, davam-se o direito de ocupar o
serviço dos vaqueanos, também conhecidos por “capangas”, para os mais diversos fins,
inclusive o de expulsão de possíveis intrusos nas fazendas e a execução dos que os
desafiassem, questionassem ou “incomodassem”, isto é, estavam a serviço da suas próprias
leis; uma terceira conotação é a que considera o próprio fazendeiro, um vaqueano, acumulando
assim as funções de tropeiro, “patrão” e “jagunço”, entre outras.
modo de vida, as suas tradições, etc., para depois abrir, ou melhor, ampliar o
culminarem na guerra, era a terra. O próprio Capitão Matos Costa que era, na época
sertanejos espoliados das suas terras, dos seus direitos, da sua segurança”. Ele
116 Cf. MACHADO, P.P. Lideranças do Contestado. (2004), p.140, 148; TONON, E. Ecos do
Contestado. (2002), p.69.
117 AHEx, Ficha funcional do capitão João Teixeira de Matos Costa, elaborada pelo tenente-
coronel Fernando Lopes da Costa, p. 6. In. PEIXOTO, D. Campanha do Contestado.(1916), p.
94.
81
118
de Lacerda, que, por sua vez, provocou um debate na Câmara dos Deputados,
onde, entre outras coisas, ele afirmava: “quem não conhece a ínfima elevação
Por mais que a intenção deste debate, provocado pelo deputado Maurício
injustiças que estavam sendo cometidas contra eles, percebe-se que também aqui
“culpa” dos mais pobres e justificativa legitimadora dos massacres cometidos contra
os mesmos, e, voltando para o problema das terras, pode-se afirmar, este deputado
percebeu que uma das causas do conflito era a questão das terras, da grilagem e
Sendo assim pode-se afirmar que, por mais que alguns pesquisadores
118 Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, vol. 6. sessão
de 21/09/1914.
119 No próprio depoimento de Zeno de Souza Matos, oferecido a esta pesquisa, pode-se
perceber essa compreensão de que a guerra não tinha como causa o problema das terras. Ele
afirma que “naquele tempo ninguém valorizava a terra. 80% das terras eram do governo. Aqui,
quando eu vim em 1963, mais de 50% das áreas era de posse, havia gente que vendia 5 a 10
alqueires a troco de um boi gordo para comer. Eles iam demarcando de um rio a uma estrada e
estabeleciam a posse deles, tinha terra de sobra, muitos nem queriam por que daí tinham que
pagar imposto.“
82
120
altíssimos lucros, tanto explorando suas riquezas, como depois revendendo-as
aos "novos" colonos que, aos poucos, para lá se dirigiam afim de comprar terras e
Mas como os antigos posseiros eram expulsos de suas terras? Ao dar uma
122 123
entrevista para Paulo P. Machado, Gilberto Kopecki fala que
Em alguns lugares tiravam à força mesmo, com capangas. Em outras
situações eles obrigavam o pessoal a assinar um papel em branco. Quem fez
isto aqui foi o Nereu Ramos, que era advogado da Lumber. O Nereu, mesmo
novo, tinha muita autoridade sobre as pessoas, era filho do Governador Vidal.
Ele reuniu o pessoal dizendo que era para assinar em branco os papeis, que
todos iam ter suas terras regularizadas. Que nada! As assinaturas serviam
pras pessoas renunciar ao direito de posse. Isto minha mãe viu
pessoalmente, aconteceu mesmo.
Talvez, mais que grilagem e expropriações de terras, poder-se-ia dizer que
aquelas fatos poderiam ser parte de um projeto “limpeza de área”. E esta cena não é
120 Uma prova disso foi a empresa de colonização e serraria, subsidiária da Brazil Railway Co.,
a Sothern Brazil Lumber Co., que no ano de 1913 alterou o seu capital social de 100 mil para 12
milhões de dólares. Cf. AURAS, M. Guerra do Contestado. (1995), p.42.
122 MACHADO, P.P. Um estudo sobre as origens sociais e a formação política das lideranças
sertanejas do Contestado. (2001), p.433.
123 Gilberto Kopecki é morador de Irineópolis, filho de moradores da região, pesquisador auto-
didata sobre a história da região, e, tinha 73 anos quando deu esta entrevista, em 1999.
124 Ao que parece, o projeto de “limpeza de área”, era mais um projeto das empresas
colonizadoras e dos grandes fazendeiros e coronéis que estavam se instalando na região, porém
MACHADO, P. P. Lideranças do Contestado. (2004), p. 58, “amplia” esse projeto também para
toda a “população branca” ao afirmar que “normalmente, a população ‘branca’, procedia à
eliminação dos bugres das regiões recém-ocupadas, como forma preventiva de ‘limpeza de
terreno’. E, além da óbvia disputa por espaço, a população colonizadora não reconhecia os
indígena como gente. “
83
se tem registros sobre o que realmente aconteceu com os indígenas e outra é que a
século XX, a legitimidade de tal limpeza não podia mais se agarrar na lei do mais
forte, nem no entendimento que “o outro” não tem alma. Agora a única legitimidade
povo, pode-se afirmar que foi na medida em que este mesmo povo se armava para
lutar contra os seus opressores externos, que aqueles, mediante a força militar,
tiradas. E o sangue destas vítimas significou muito lucro para alguns empresários,
processo de colonização.
Não foi o povo que pegou em armas para defender seus direitos ou para
pôr fim aos seus opressores. Conforme é possível confirmar, através da memória
primeira alternativa foi esconder-se mata adentro, foi fugir. Aos poucos, porém, por
estarem cercados de todos os lados e por não terem mais para onde fugir, em
resposta à violência sofrida obrigaram-se a lutar. Esta hipótese também pode ser
verificada com o fato de que não houve combates nas cidades ou nas vilas, mas
125
somente nos lugares mais afastados e difíceis de se chegar.
Dando testemunho aos acontecimentos correlacionados ao primeiro
125 CONSORTE, J.G. A mentalidade messiânica. In. VVAA. A vida em meio a morte. (1983), p.
49, afirma que “de movimentos pacíficos, os movimentos messiânicos acabam tendo de
enfrentar, a seu modo, as consequências da sua ousadia, redefinindo-se neste processo e
transformando-se em movimentos que se armam para defender-se.”.
84
126
combate acontecido no Irani , próximo dos campos de Palmas-PR, tem-se uma
127
carta escrita por Maneco Lira de Jesus para ao seu compadre Duca Pimpão,
126 Hoje o município de Irani esta situado no oeste de Santa Catarina. Próximo do local onde
José Maria morreu, foi levantado um monumento, e duas placas em homenagem aos dois
líderes que se confrontaram no Contestado. As mensagem central do monumento é: “Irani, berço
do Contestado”; em uma das placas está escrito: “Neste local em 22 de outubro de 1912 ocorreu
a primeira batalha da guerra do Contestado. O ‘Combate do Irani’: soldados da força pública do
Paraná comandada pelo Coronel João Gualberto e os sertanejos liderados por Miguel Lucena de
Boaventura, o monge José Maria. Os primeiros cumpriram ordens, os demais lutaram pela
liberdade. João Gualberto e José Maria deixaram aqui suas vidas.”
Foram
cerca de 20 a 30
mil pessoas
que, acreditando
obedecer a
"ordens
superiores", que
vinham "do
além", se
juntaram em
diversos
128
redutos e
lutaram numa guerra que durou quatro anos. Falavam, agiam, viviam, matavam e
128 Não foi encontrado, neste trabalho, nenhum pesquisador que definisse o termo “redutos”.
Tudo leva a crer que esta denominação de “reduto” foi trazida das antigas aldeias Jesuíticas,
que também foram chamadas de “reduções”, mesmo não tendo como provar a existência de
nenhuma na região, pode-se afirmar que estava presente na memória de caboclos ou indígenas
que habitavam a região. Depois que os jesuítas foram expulsos do país, os caboclos e indígenas
que habitavam nas suas reduções ou aldeias, espalharam-se para lugares diversos, distantes da
perseguição e preação por parte dos bandeirantes. Foram dezenas de redutos que se
espalharam em diversas direções, sendo o de Santa Maria considerado o ajuntamento mais
célebre, donde partiam as ordens para os demais e viveram por mais tempo e em maior número
de pessoas e que também marcou o fim da guerra; hoje situa-se dentro do município de Timbó
Grande. Este reduto não era uma unidade só, tratava-se, na verdade, de um conjunto de
vilarejos que se sucediam formando uma larga curva de mais de 3 léguas. E, entre outros,
destacaram-se também os redutos de Irani, Taquaruçu, Caragoatá, Santo Antônio, São
Sebastião, Tamanduá, Pedras Brancas, Poço Preto, Reichardt, Raiz da Serra, Coruja, Traição,
Cemitério, Conrado Grober, Aleixo, Tapera, Perdizes, Butiá Verde, São Miguel, São Pedro,
Ferreiros e Pinheiros. Cf. QUEIROS, M.I.P. de. O messianismo no Brasil e no mundo, p.275.
Segundo MACHADO, P.P. Lideranças do Contestado. (2004), p. 306, “acredita-se que em 1915,
havia mais de 10 mil pessoas morando no reduto de Santa Maria.” Num depoimento concedido a
Machado (Tese, p. 451), por João Paes de Farias, nascido em 1901 e filho de um dos chefes
rebeldes, que diz ter ajudado contar “os homens que podiam brigar” e sem contar mulheres e
crianças, afirma que havia 10 mil no reduto de Santa Maria. Ele afirma que com as mulheres e
crianças passava de 30 mil pessoas.
86
morriam em nome de Deus, da virgem Maria, dos santos de devoção e dos santos
monges que por ali passaram recentemente e que, conforme a crença de muitos,
presentes em espírito ou por meio das mensagens deixadas outrora e que eram
recebidas por algumas poucas pessoas, tidas por videntes, que logo as repassavam
às demais.
com as mais
sofisticadas
armas da
época e
inclusive pelo
auxílio da
aviação, usado
pela primeira
vez na
América
Latina, para
56º. Batalhão Inf. General Setembrino, Janeiro de 1915.
esta
129
finalidade .
129 MITSUE, M. A história da luta pela terra e o MST. (2001), p.87, afirma que em 1915 os
líderes caboclos do Contestado “lançaram um manifesto monarquista e declararam a “guerra
santa” contra os coronéis, as companhias de terras e as autoridades governamentais. Acusaram
o governo de assassinar trabalhadores e entregar a terra aos estrangeiros. Atacaram fazendas e
cidades e controlaram partes da ferrovia. A luta prolongou-se até dezembro, quando um
contingente de 7 mil soldados do Exército, mil policiais e 300 jagunços iniciaram os ataques
contra uma população rebelada de 20 mil pessoas. Destas, ao final dos combates, sobraram
apenas 3 mil.”
87
se, porém, afirmar que possuem uma raiz cultural provinda dos bandeirantes-
guerras e mortes.
130
Além disso, segundo Eric Thompson, normalmente as revoltas não são
Deus e, além disso, indispor os governantes ou os ricos, dos quais acreditam poder
vir algum auxílio. É claro que isso não impede que eles venham a se rebelar e
mais óbvia forma de ação coletiva diante de uma crise. Pode haver outras
131
orações, inspeções até as casas dos ricos, entre outras.
outras coisas, dois outros aspectos importantes à historiografia: a inclusão dos “de
baixo” e a importância dos aspectos da “vida cotidiana”. Não que com isso
elites desde o século passado, tratou de empreender uma releitura dos documentos
da cultura a partir “de baixo”. No que tange ao campo teórico da cultura popular,
131 Ibid., p. 206 e 19. Nos seus estudos sobre a experiência da plebe inglesa no século XVIII,
Thompson aponta para o fato de que a classe operária inglesa aparece como resultado de uma
complexa trajetória que tem sua origem na tradição radical e não conformista, passa por
diversas formas de associações culturais, religiosas, de auxílio mútuo, desembocando em
movimentos propriamente classistas, nas primeiras décadas do século XIX. Para ele, os
movimentos populares não são apenas "reativos", gerados pela fome e pela opressão, mas
deitam raízes na reflexão de seus integrantes sobre sua própria experiência. Em suas análises
da cultura popular inglesa do século XVIII, ele percebeu nela um paradoxo: “é uma cultura ao
mesmo tempo tradicional e também rebelde.” Ou seja, “a cultura popular é rebelde, mas o é em
defesa dos costumes”. Estes pertencem ao povo e alguns deles apresentam um caráter
reivindicativo e de protesto.
132 Cf. VASCONCELOS, P. L. Terra das promessas, Jerusalém maldita. (2004), p.23.
89
133
Contestado partindo de uma justificativa descabível de "índole violenta" do povo.
É verdade que esse termo foi tomando, aos poucos, uma conotação mais positiva,
rota dos coronéis, vaqueanos e militares, o usaram, ou por ignorância ou com o real
"pistoleiros" que eram contratados pelos donos das fazendas para matar aqueles
134
que ousassem ocupar ou reocupar as terras de que estes se haviam apropriado.
133 Esta “índole guerreira” é defendida por THOMÉ,N. Sangue suor e lágrimas no chão
Contestado (1992), p.44. Ele diz: “Para se entender o Contestado, há de se considerar o espírito
guerreiro do sertanejo catarinense”. Um estudo antropológico mais aprofundado aponta, hoje,
não para uma índole guerreira dos descendentes das comunidade indígenas da região, mas sim
para um povo que tem na vingança um valor e na mentira um rechaço absoluto. A mentira era
motivo de pena de morte e a morte de um dos seus só podia ser paga com a morte do
assassino. Logo, como foram ludibriados, saqueados, perseguidos e massacrados, acabaram
por ter, como conseqüência, um desejo de morte do inimigo, do opressor. Por serem filhos de
mães índias, os caboclos aprenderam facilmente a se mover com rara destreza diante dos
perigos da mata. Herdaram o savoir faire e o conhecimento da geografia necessários às lides do
sertão. Também sabiam utilizar ervas terapêuticas com a desenvoltura de curandeiros; herdaram
o saber de técnicas de caça e de guerra, o conhecimento da língua "a mais geral falada na costa
do Brasil" e inclusive a capacidade de interpretar os desejos e os interesses do colonizador,
aprenderam a duvidar de seu discurso e a não cair em suas armadilhas. Os caboclos foram se
constituindo em termos de ambivalência cultural; meio índios, meio brancos, eram homens
culturalmente ambíguos, híbridos. Cf. Vainfas, R. A heresia dos índios. (1995), p. 142-145.
134 Junto com a instalação de uma fazenda costumava-se reunir, dentro da mesma, uma certa
porção de jagunços que aos poucos constituíam suas respectivas famílias e se tornavam peões,
agregados ou capatazes, súditos do fazendeiro ou coronel. Os jagunços eram pessoas
contratadas pelo fazendeiro ou coronel para matar ou morrer. Os demais, peões, agregados,
capatazes, deveriam trabalhar na fazenda ou administrá-la, sendo que, uma mesma pessoa,
poderia receber todas estas funções ou denominações.
90
Isso se confirma com o fato de que após concluída a guerra, pelo menos
por mais alguns anos, fôra "permitido" matar, sem nenhuma punição, quem quer que
fosse tido por jagunço, isto é, quem quer que tivesse lutado na guerra do Contestado
135
ou fosse seu familiar. Então o jagunço passou também a ser todo aquele que se
falar da guerra, lembrou que “por aqui passava muito o Pedro Ruivo, que lutava ao
lado do governo, mas era ladrão. Ele atacava as fazendas, roubava o gado e botava
a culpa nos fanáticos. Este era o golpe dele, já que estava em luta contra os
135 Miguel Correia de Souza (Cf. depoimento anexo nº 05) afirma que “depois que acabou a
guerra, durante 5 anos, continuaram matando os jagunços. Perseguiam e matavam. Podiam
matar e não tinham compromisso. Não tinham valor nenhum. Eram os do lugar mesmo que
matavam.” MACHADO, P.P. Lideranças do Contestado. (2004), p. 322, também afirma que “é
difícil determinar quantos rebeldes morreram efetivamente em combate e quantos foram
simplesmente executados quando se rendiam”. João Melo, um dos seus entrevistados, afirma
que “na guerra até não morreu muita gente, mas depois da guerra tinha muita gente sendo paga
para matar caboclos. Muitos correram por toda a parte para se esconder.” Ver Também
DERENGOSKI, P. R. Guerra no Contestado. (2000), p. 105 e 88. Este pesquisador fala que
“haviam misteriosas listas com nomes de jagunços que se fossem presos deviam ser
executados”. Segundo ele, “em Canoinhas, Pedro Ruivo costumava retirar presos das cadeias,
que estavam repletas, para praticar a degola (...), aproveitando-se, então, dos bens das vítimas.”
136 Apud., MACHADO, P.P. Um estudo sobre as origens sociais e a formação política das
lideranças sertanejas do Contestado. (2001), p. 432 e 433.
91
região. É comum ouvir dizer na região que grande parte das fazendas adquiridas na
humanas.
Os "jagunços" não tinham medo da morte. Para eles a morte não tinha a
última palavra. Ela praticamente não existia de fato na concepção cabocla de vida.
outra dimensão da vida, donde nenhuma força deste mundo era capaz de destruir.
Sabedores dos seus limites humanos e históricos, mas crentes numa força ilimitada
um morto, no caso o monge José Maria, liderou uma guerra por mais de 4 anos. E,
“bandidos” e “jagunços”. Claro que esta foi a versão militar e oficial, a versão das
elites de ontem e de hoje. Porém, depois de tantas pesquisas não se sustenta mais
essa tese. E o propósito desta pesquisa não é apresentar a versão oficial, mas dar
Porém, mesmo que este assunto seja objeto dos capítulos seguintes, vale
138
dar aqui algumas pinceladas. Segundo Paulo P. Machado,
“o movimento social do Contestado iniciou-se com um fenômeno religioso de
exaltação milenar com fortes características messiânicas, mantendo
basicamente estas características místicas, com maior ou menos intensidade,
até a sua liquidação final.”
Ainda segundo Machado “o próprio Adeodato, último comandante-geral,
além de assistido por ‘virgens’, era acompanhado pelo monge Maneca, o Pai Velho.”
Este Pai Velho era tido como uma espécie de sacerdote no reduto de Santa Maria.
139
Apresentado na peça teatral por Romário Borreli, Adeodato, último líder da
importante, esta decisão era anunciada como ordem de São José Maria. E todos
140
deviam acreditar . Por um lado sentiam-se frágeis diante do poder bélico e
Como tinham a firme confiança de que a vida não acabava com a morte,
em muitos casos, sequer choravam quando algum dos seus familiares morria, por
que entendiam que, este, apenas passaria para o “exército encantado de São
140 Talvez, menos os próprios líderes, de repente inventavam comandos, que só teriam
aceitação mediante esta atribuição a José Maria.
93
141
Sebastião” e logo voltaria para garantir a vitória definitiva do seu povo que aqui
atribuía mais poderes aos mortos do que aos vivos. Os mortos tinham maior
viam. Tinham o poder de destruir uma vida e também de devolvê-la. O morto vive no
âmbito do sagrado e ninguém o pode influenciar, pode porém invocar seu auxílio,
proteção e inclusive seu poder benéfico ou maléfico. Ele pode ser uma força
141 Pode-se afirmar que quando os sertanejos organizaram suas forças para combater os
militares, criaram o que denominaram "Exército encantado de São Sebastião", lembrando um
príncipe medieval de Portugal, tido por libertador e santo guerreiro de nome Sebastião. Porém,
parece mais convincente a idéia de que esta é uma referência única e peculiar ao movimento do
Contestado, conforme afirma MACHADO, P. P. Lideranças do Contestado. (2004), p.198.
Segundo ele, “não há qualquer indício direto que ligue o culto de são Sebastião no planalto
serrano à tradição ‘sebastianista’ portuguesa, relacionada à expectativa do retorno do rei dom
Sebastião, o último da dinastia Avis, que desapareceu em luta contra os mouros na batalha de
Alcácer-Quibir, em 1578. O santo cultuado pelos sertanejos é o santo guerreiro, padroeiro de
Perdizes (Comunidade que atualmente pertence ao município de Lebon Régis-SC, de onde, na
época, saíram diversas famílias para constituírem o reduto de Taquaruçu, onde esperavam o
retorno de José Maria ressuscitado, como foi o caso da família de Euzébio Ferreira dos Santos,
que liderou o reduto de Taquaruçu).” É interessante notar que, hoje, na região do Contestado,
não são poucas as comunidades e paróquias católicas que tem em São Sebastião o seu
padroeiro.
142 A noção de “exército encantado” se constrói como símbolo de um poder vingador que só um
messias pode outorgar aos homens. Esta noção supõe um inimigo, implica numa organização
efetiva de combate e atribui um caráter sagrado à ação militar dos sertanejos, lançando ao outro
extremo “os peludos”, seus inimigos dominados pelo “capeta”. Também se supõe, com este
entendimento, que existem mistérios e poderes mágicos que podem influenciar nos rumos da
história. Durante a guerra a noção de Exército Encantado “esperado”, confundiu-se com a de
Exército Invisível “já atuante, presente”, combatendo ao lado dos sertanejos e contra os peludos.
94
espírito dos ancestrais, aplacando a ira dos orixás, fazendo oferendas aos santos e
derrotas em princípio não eram lamentadas, porque caso não pudessem lutar "do
lado de cá" lutariam "do outro lado", ou seja, do lado de José Maria e do exército
encantado de São Sebastião e, por estarem convencidos que João Maria, José
Maria, São Sebastião, Jesus Cristo, a virgem Maria Santíssima, etc., combatiam
com eles, a sua guerra era santa e, assim sendo, não seriam definitivamente
derrotados.
uma necessária condição para se manterem crentes na luta e na vitória. Era também
uma forma de fazer com que a vida continuasse tendo sentido. Eles não queriam
em guerra, quando algum dos seus era morto, os demais sequer choravam, apenas
143 Para melhor compreender como os que morreram influenciam a realidade presente, pode-se
citar GEERTZ, C. Interpretação das culturas. (1999), p. 169, que, ao estudar sobre a cultura
Balinesa, afirma: “as pessoas, em Bali, sem dúvida estão diretamente envolvidas na vida uma da
outra, às vezes profundamente; elas sentem, certamente, que seu mundo foi moldado pelas
ações daquelas que chegaram antes dela e orientam suas ações para moldar o mundo para
aquelas que virão depois delas.
95
144
sonhavam com a sua volta, ressuscitado .
Clifford Geertz145 que, seguindo pelo caminho aberto por Max Weber, afirma: “o
cultura, para ele “são essas teias e a sua análise”. Ele prioriza a questão da cultura
instituições e processos podem ser vistos "com densidade". Ao estudar a cultura, ele
cultura não passa por uma “ciência experimental em busca de leis, mas sim uma
146
ciência em busca de significados”. Ele propõe que o conhecimento da religião não
seja um olhar, "de fora" mas um olhar a partir de dentro da própria perspectiva
religiosa, a saber:
144 VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p.161, afirma que o
Capitão Matos Costa, responsável para proteger a Ferrovia São Francisco, à esquerda do
Iguaçu, entre Canoinhas e União da Vitória, manifestava uma certa simpatia com a causa dos
jagunços. Ele tinha planos no sentido de conseguir uma pacificação. Entendia que era possível
desfazer a questão do Contestado “com um pouco de instrução e o suficiente de justiça”. Ao
enviar emissários de paz para o reduto de Bom Sossego, estes voltaram com as seguintes
“condições” para a pacificação: “Os redutos se dispersariam depois de liquidados os coronéis
Arthur de Paula, Fabrício Vieira, Chiquinho de Albuquerque, Amazonas Marcondes, Affonso
Camargo, entre outros, e ainda depois da restituição das vidas das mulheres e das crianças que
foram mortas pelas forças do governo no ataque a Taquaruçu”. Cf. PEIXOTO, D. Campanha do
Contestado. (1916), p.94 e 229.
algo que não é meramente receptivo e não está cristalizado. Ela percebeu que é na
maneira absoluta. Para que uma idéia se efetive no meio popular ela precisa passar
possui uma força vital capaz de resistir e sobreviver às ameaças impostas pelo
processo de modernização e globalização; e, por estar ameaçado, o futuro da
147 ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta (1985) Brasiliense, SP. p. 29. Zaluar, ao observar o
“pensamento” religioso-popular, junto à comunidade empobrecida da Cidade de Deus, concluiu
que “o desembaraço com que misturavam diferentes tradições religiosas sem o menor cuidado,
com a ortodoxia tão cara aos puristas, seja do candomblé, seja do catolicismo, a fim de
comporem a sua visão de mundo, só pode ser comparado com a facilidade com que lançavam
mão de inúmeras instâncias de mediação entre eles e o resto da sociedade, na defesa de sua
capacidade de sobreviver. Difícil, portanto, reduzir esse pensar a um sistema preestabelecido e
fixo de conteúdos culturais, explicados em uma instância pela sua posição subalterna ou
dominada no processo de produção ou como prisioneiros de uma prática vista na tradição
estruturalista, como mera execução de um código subjacente.”
97
e institucional.148
poderia ser classificado como um “tipo ideal” de caboclo brasileiro? Seria ele “um
provindas da língua Tupi caa-boc, que significa “aquele que vem da floresta” e
kari’boca, que significa “filho do homem branco”. É acima de tudo uma categoria
cultural, usada de norte a sul do país e serve para destacar tipos regionais,
150 Apud, LOCKS, G. A. Identidade dos Agricultores familiares brasileiros de São José do
Cerrito. (1998), p. 58-59.
98
para os residentes das periferias das cidades brasileiras, mais particularmente para
descendentes.
seus descendentes.
cristã.
Aos poucos construíam sua identidade vivendo numa região repleta de rios
151 Cf. Ibid., p. 58-59, Locks preferiu usar a denominação de “brasileiros” para os caboclos da
região Serrana, por entender que esta seria uma denominação que os caboclos dão ou aceitam
melhor para si mesmos.
canelas, ervais e outras tantas. Não havia necessidade de se fazer grandes roças
pois os peixes, os animais e aves do mato, assim como as frutas silvestres, eram
doce e algumas outras hortaliças ou leguminosas. Não faltavam uma vaca de leite e
galinhas no terreiro. Não havia fome. O povo era pobre mas não miserável, era
consumir, mas pouca coisa faltava: roupas, sal, utensílios para uso doméstico e para
o trabalho. Porém, também não existiam escolas, indústrias, estradas, luz elétrica e
as igrejas eram poucas e distantes, o mesmo se pode dizer das cidades e locais de
comércio.
o inverno, havia sempre um fogo aceso dentro de casa, para se aquecer do frio e
esquentar a água para o chimarrão, propiciando assim uma boa convivência familiar
ancestral e também pelo resgate daquilo que foi perdido no processo civilizatório,
que se instalou em nossa terra a partir do contato com o europeu ou com o norte
americano.
colonizada". A partir desse projeto, a terra deixou de ter um valor sagrado e místico
100
aqueles que não estivessem de acordo com essa lógica. Primeiro os indígenas e
depois os caboclos foram sendo, aos poucos, eliminados por não se submeterem ou
que houve não foi um encontro de culturas e muito menos um encontro pacífico,
mundo, aos poucos foi sendo reconstituído, a fim de gerar um novo equilíbrio vital,
153
psicossocial, antropológico e ligado aos valores supremos.
Os poetas Maias, em relação à invasão espanhola, afirmam: “Eles nos
ensinaram o medo, vieram fazer as flores murchar. Para que a sua flor viesse,
153 DURAND, Gilbert A imaginação simbólica (1993) p. 97-98, entende a “imaginação simbólica”
como “dinamicamente negação vital, negação do nada da morte e do tempo. O pensamento
simbólico é restabelecedor de equilíbrio. O símbolo surge como restabelecedor do equilíbrio vital
comprometido pela inteligência da morte; pedagogicamente ele é utilizado para o
restabelecimento do equilíbrio psicossocial. A simbólica estabelece, através da negação da
assimilação racista da espécie humana, a uma pura animalidade, ainda que racional, um
equilíbrio antropológico que constitui o humanismo ou o ecumenismo da alma humana. E, depois
de ter instaurado a vida face a morte, o bom-senso do equilíbrio face ao desregulamento
psicossocial, depois de ter verificado a grande catolicidade dos mitos e dos poemas e instaurado
o homem como homo simbolicus, o símbolo erige finalmente, face à antropia positiva do
universo, o domínio do valor supremo e equilibra o universo que passa, por um Ser que não
passa, ao qual pertence a eterna Infância, a eterna aurora, e desemboca, então, numa teofania.”
101
154
danificaram e engoliram nossa flor...” Semelhante à invasão Européia nas
humano foi, de alguma forma, colonizada. Quando se pergunta, por exemplo, sobre
155
a história de nossa gente, de nosso povo da região, são poucos os que fazem
tem o direito moral, de ter poder sobre os pequenos, os que por definição fazem
156 157
parte do passado atrasado. Nelson Werneck Sodré ao analisar a história da
154 LEÓN-PORTILLA, M. A conquista da América Latina vista pelos índios. (1987), p.60.
155 Desde os anos 1993 a Diocese de Caçador, composta de 23 municípios, todos situados
dentro da região do Contestado, vem insistindo em um projeto chamado “Resgate das raízes
históricas do povo”. A partir deste projeto foi possível coletar algumas informações importantes
sobre o Contestado, tais como alguns depoimentos citados ao longo desta dissertação, porém,
das 530 comunidades consultadas, apenas cerca de 5% manifestaram algum conhecimento com
relação às comunidades nativas.
157 SODRÉ, N.W. Síntese da história da cultura brasileira. (s.d.) p. 49, Apud. OTTEN, A. Só
Deus é grande. (1990), p.44.
102
cabocla.
sabedoria prenhe de muitos valores, herdada dos antepassados e que vai sendo
passada de geração a geração. Muito daquilo que foi sendo imposto pela cultura
"selecionado" pela cultura cabocla da região. Nem tudo foi aceito! A "alma ancestral
então ele mesmo se torna um outro povo, ou pelo menos entra em outra fase da sua
existência.”
159
Orlando Espin , ao estudar a religiosidade do povo latino do sul dos
"o desfalque e o ataque à natureza" e também "a posse violenta da mulher índia
pelo branco invasor", de cujo acasalamento resulta, - nas palavras de Darcy Ribeiro,
é, porque nem pai nem mãe lhe servirão de espelhos ou modelos de identidade".
O filho deste casal primordial é um produto híbrido, mestiço e bastardo,
incapaz de identificar-se quer com o pai quer com a mãe. Essa mãe índia
desfigurada e desonrada é o ventre que gerou o povo brasileiro. A Grande
Mãe do Brasil é uma índia mas a sua imagem não consta em nossas
representações coletivas. Não se fala nela, esse título não lhe é dado. Sua
imagem e sua memória desapareceram... Nosso povo mestiço é filho de uma
não-mãe e de um pai patogênico, porque autorizado pela própria religião, em
nome da qual foi usada a força e a violência da conquista, a liberar
160
impunemente sua sombra.
Chegou-se a afirmar, e o acima exposto permite concluir, que o caboclo é
distintas. Em primeiro lugar este “encontro” entre culturas fez com que, de ambas as
lugar, como é comum em muitas culturas e povos, também aqui “o diferente” era
casos os massacraram.
Não havia uma moral e uma religião popular bem definida e nem aquela
trazida da Europa, pela Igreja católica, era bem aceita. Estranha, talvez. Tentativas
de impô-la não eram bem sucedidas. Seus dogmas e suas doutrinas eram ouvidos
com atenção mas nada ou pouco alteravam no seu cotidiano. O povo ficava
indiferente diante das normas e regras da Igreja Católica. Isso pode-se verificar nos
manuscritos de Frei Rogério, que logo que chegou à região, mais propriamente em
161
Lages, percebeu que
a indiferença do povo em face da religião era enorme. Comunhão e confissão
mal eram conhecidas. Até os mais fiéis não se confessavam a doze anos,
quando o tinham feito nas missões pregadas pelos jesuítas. À missa de
domingo apareciam, às vezes, 3 ou 4 pessoas.
Em princípio, estavam dispostos a acolher quem quer que chegasse em
sua casa, fosse padre, político, andarilho ou algum conhecido; os ouviam com
atenção e aceitavam aquilo que consideravam ter algum valor. Logo, porém,
cultura, discriminados por causa de sua etnia, expulsos de suas terras, explorados
em seu trabalho, saqueados dos seus bens materiais e humanos, ludibriados na sua
gerações, diante de tamanha opressão, o único caminho era se armar e lutar, até a
povo, está vivo ainda, e que voltará a qualquer hora.” Segundo ela, “esse fenômeno,
um messias, aos poucos, faz com que um simples homem, chamado João Maria,
instaurar uma nova ordem.” Ao desenvolverem a idéia em que João Maria era tido
como um novo messias, passaram a chamar este seu exército também de "Exército
de São João Maria", homenageando assim, também aquele homem que lhes era de
feliz lembrança: João Maria. O primeiro a organizar esse exército foi José Maria,
166 MITSUE, M. A história da luta pela terra e o MST. (2001), p. 86, afirma que “no período entre
1888 até a década de 1930, em todas as lutas pela terra - entre elas cita o Contestado - havia
um líder messiânico. Isso significa que a fé era a ligação entre ele e seus seguidores. O líder se
colocava como um intermediário na comunicação de Deus com o povo. É por isso que alguns
pesquisadores chamam as revoltas camponesas do período de lutas messiânicas.”
107
167
milenarismos temos os messianismos e o escatologismo. Edênio Valle afirma
que,
a escatologia aponta para o fim último, para as coisas que levam ao fim dos
sofrimentos, à realização plena e terrível do que nos espera no fim; o
messianismo corporifica a expectativa do grupo por uma mensagem ou uma
pessoa dotada de força e ungida para encaminhar os fatos em direção ao
futuro definitivo; e o milenarismo não é outra coisa que a vivência grupal da
pulsão e da certeza escatológica in actu. Em seu sentido estrito, o
milenarismo é a crença segundo a qual Cristo estabelecerá sobre a terra,
após a sua segunda vinda, seu reino de mil anos, conforme uma
interpretação literal do Apocalipse.
O messias, segundo Mircea Eliade, “deve ser um ‘Filho de Deus’ ou
alguém externo à comunidade, que para ali se dirige e manifesta a vontade do além,
acreditar que os mortos vão e voltam e que em certas situações eles podem
do que os vivos.
especiais", - como foi o caso de Maria Rosa, reconhecida e lembrada como a mais
orientações.
Partindo desse fato, não fica difícil afirmar que realmente havia a crença de
que João Maria retornaria, ou que José Maria estaria de volta, um ano após sua
morte, como ele próprio prometera. Também não era difícil crer que, partindo da
hipótese que houve mais que um João Maria, o primeiro João Maria teria voltado no
segundo e que este teria voltado em José Maria, ou que os três fossem “um mesmo
personagem místico” ou seja, um mesmo São João Maria que encarnou as virtudes
167 VALLE, E. Medo e esperança. In. BRITO, E. J. da C. & TENÓRIO, W. (orgs). Milenarismos e
messianismos ontem e hoje. (2001), p.72.
108
168
dos três e que vai e volta com o passar dos tempos e também quando é invocado
amor, o ódio, a guerra, o prazer, a beleza, o perigo e a dor. Essas maneiras foram
169
sendo elaboradas, no Brasil, aos poucos. Segundo Gambini há uma alma
ancestral, que data suas origens em pelo menos cinco mil anos, que foi sendo
Mesmo não aceitando essa concepção de Gambini, por ser por demais
monolítica e por desprezar o fato de que muito da cultura indígena continua presente
e e influenciando a vida das gerações atuais, poder-se-ia assim mesmo dizer que
estavam convencidos de que aquela terra, enquanto fêmena e anima, estava ali
domador, ter algum cuidado, um pouco de prudência, certa paciência, boas armas e
vontade de trabalhar. A terra não era problema, mas nela habitavam “bugres”,
“seres” perigosos; com os quais, porém, João Maria deve ter tido um bom
170
relacionamento. Dois depoimentos desta pesquisa revelam a existência de
169 GAMBINI, R. Espelho índio. (2000), p. 159, afirma que o território brasileiro já estava
ocupado por seres humanos há 30 mil anos ou talvez 40 mil.
171
alguma relação entre João Maria e os assim denominados “bugres”.
lembrar que muito já se tem falado sobre as origens da cultura brasileira, são
comuns expressões que vão desde “encontro de culturas” até “genocídio cultural”.
soma, de alteridade, não deu certo. Esta alternativa, que inicialmente fora
encampada pelos indígenas de muitas comunidades deste nosso chão brasileiro, foi
e caboclos foram reduzidos a cinzas e assim, aos poucos, foi sendo imposto o
172
modelo capitalista, europeu e Norte Americano.
171 Segundo Sebastião, um morador de Porto União, que tinha 76 anos ao dar este depoimento
a OLIVEIRA,C.A. de. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus.(1992),
p.116, afirmou que “João Maria caçava com os bugre e eles dividiam as caça. Ele sempre dizia
que os bugre eram a melhor raça que existia, era só te amizade com eles, que eles era bom. Ele
e os bugre abriro um picadão de Rio das Antas, passando pelo Rio Preto e chegando em
Taquara Verde.” Não é muito provável que João Maria fosse caçador, já que nenhum
depoimento afirma que ele comia carne, porém que ele tenha convivido com alguma
comunidade de indígenas é bem provável, o seu amor pela natureza, a sabedoria em relação às
ervas medicinais que ele transmitia aos demais, provavelmente teria aprendido de alguma
comunidade indígena.
172 Ibid., p. 140. Quando se instalou a Brazil Railway Co., construtora da Estrada de Ferro São
Paulo - Rio Grande, propagou-se a idéia de que havia um "pequeno EUA" no Brasil. Uma das
grandes vitórias do Contestado talvez tenha sido impedir que esta idéia se materializasse.
110
EPÍLOGO
173
Nos primeiros tempos da guerra , a primeira atitude dos caboclos e
caboclas era fugir mata adentro e formar novos redutos, quando os anteriores eram
resumiram em contra-atacar e refugiar-se cada vez para mais longe das vilas ou das
174
estradas. Assim mesmo, pode-se dizer que, a contra gosto, a comunidade
cabocla do Contestado entrou na guerra e foi protagonista de uma luta por dias
comunidade cabocla ainda ignorasse os fatos que estariam por acontecer, pode-se
Porém, o que mais importa, aqui, não é responder à questão sobre quem
foi ou não sujeito ou vítima da guerra do Contestado e nem mesmo quem tomou a
que interessa, e isso será aprofundado nos capítulos seguintes, é como foi e é
pessoas que tiveram algum contato junto a estes. Mais do que de fatos históricos
173 Para melhor compreensão sobre os primeiros tempos da guerra, tem-se um importante
relato feito, antes mesmo de concluída a guerra, pelo Padre Franciscano Fr. Menandro Kamps,
que na ocasião era vigário da recém criada paróquia de S. Cruz de Canoinhas-SC. (cf. relato
anexo, nº 01).
174 Isso é verificável também pelo fato de que o último massacre dos militares contra os
caboclos do Contestado aconteceu no reduto de Santa Maria, um local muito distante e de difícil
acesso, ainda hoje; pertence ao município de Timbó Grande, e ainda hoje tal localidade fica
longe 50 quilômetros da estrada pavimentada mais próxima. Hoje Santa Maria é uma pequena
comunidade com não mais de 40 famílias, sendo que a maioria sobrevive em situação de
extrema pobreza.
111
176
geração a geração, desde João Maria e o Contestado.
pesquisadores terem feito um rápido vínculo, para não dizer uma relação de causa-
passaram pela região. Para fazerem esta ponte que liga os monges diretamente à
autores que seguiram nesta direção, pois praticamente todos os que são citados na
pessoas entrevistadas (cf. anexos) não permitem fazer esta ligação entre João Maria
177
e a guerra.
Diferentemente de João Maria é o que se fala de José Maria. Este sim
Maria, já na época era tido por muitos como impostor e a memória popular, hoje,
nega a hipótese de que ele também seria um santo ou, pelo menos, apresentou
176 THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna. (1990), p. 201, oferece uma concepção
oportuna, para o início desta pesquisa, sobre recepção de formas simbólicas. Para ele “o
processo de recepção não é um processo passivo de assimilação; ao contrário, é um processo
criativo de interpretação e avaliação no qual o significado das formas simbólicas é ativamente
constituído e reconstituído. Os indivíduos não absorvem passivamente formas simbólicas mas,
ativa e criativamente, dão-lhes um sentido e, por isso, produzem um significado no próprio
processo e recepção.”
177 Conforme afirma Frei Rogério Neuhaus, “as consequências de tal cega confiança por esta
pessoa deram na posterior revolução dos fanáticos, que sem um monge João Maria não surgiria
nem se sustentaria.” Cf. STULZER, Frei A. A guerra dos fanáticos. (1982), p.98.
113
mínimo uma falta de bom senso para com a realidade histórica ou uma falta de
178
objetividade para com os fatos.
relações sociais de produção. Por mais que o Contestado seja expressão da luta de
classes, não se pode negar que, de ambos os lados da batalha, havia interesses de
indignados com seus comandantes e suas ordens. Pedro de Oliveira constata que
180
178 Apenas para ilustrar cito duas expressões que confirmam esta afirmação: DERENGOSKI,
P.R. O desmoronamento do mundo jagunço (1986), p. 10, escreve que “quem acendeu o pavio
da guerra foi um dos discípulos mais ousados de "São" João Maria, o Josemaria, que depois de
muito perambular pelo sertão se estabeleceu nos campos do Irani e resolveu "proclamar a
monarquia" nos sertões de Taquaruçu.” Também se pode citar como exemplo a afirmação do
Padre Geraldo Pauwels que, em sua Contribuição para o Estado do Fanatismo no Sertão Sul-
Brasileiro, comenta sobre: “o grande, o enorme mal que João Maria causou, só Deus sabe, se
com ou sem culpa, foi duplo. Primeiro: dispôs o povo a aderir a qualquer explorador ou
embusteiro que se afivelasse a máscara de monge, como poucos anos depois fez o esperto e
duanesco (sic) José Maria, que levou a caboclada a revolta...” Apud, THOMÉ, N. São João Maria
na História do Contestado. (1997), p.23.
180 OLIVEIRA, P. Religião e dominação de Classe (1985), p. 267. Esse conceito de produção
religiosa é na verdade um conceito de Pierre Bourdieu, que por sua vez, neste caso, bebe na
fonte Weberiana, e propõe uma certa autonomia relativa para o campo religioso.
114
que dentro do grupo dos "pelados" não demorou muito para perceberem e/ou
por outro, foi uma guerra de extermínio. E, como a guerra traz consigo suas próprias
o exército fosse acionado contra a comunidade cabocla rebelada. Pode-se dizer que
ideologia de que o seu poder e as suas riquezas vinham da parte de Deus, que a
que qualquer rebelião deveria ser imediatamente combatida, justamente por não
181 Por mais que tenham feito uma pesquisa de campo, onde manifestam grande sensibilidade
para com o pensamento caboclo dos descendentes e remanescentes do Contestado, ao
pesquisar a realidade dos mesmos, em Taquaruçu, FILISBINO, P.A. & FELISBINO,E. Voz de
caboclo (2002), p.91, fazem um comentário ingênuo e positivista contra a cultura cabocla: "os
caboclos que hoje vivem no Taquaruçu perderam-se no tempo, ainda vivem tal e qual os seus
antecedentes. Moram em pequenas casas de madeira, plantam apenas para o consumo; caçam
e pescam para alimentar sua família; se mantêm crentes a orações, benzimentos e à imagem do
João Maria.
115
imagem do mundo que lhes era favorável. E esta imagem, projetada nos caboclos e
escritos de diversos pesquisadores. Mas já não são muitos aqueles que, desde a
citar, entre outros, Aujor Ávila da Luz com a obra Os fanáticos e Paulo Ramos
Da mesma forma como não se pode afirmar que a guerra foi apenas
afirmar que foi tão somente uma luta política, onde alguns defendiam a república e
outros a monarquia, e menos ainda que a guerra foi resultado de conflitos por
questões limítrofes entre Santa Catarina e Paraná. Não se pode descartar tais
econômicos e políticos, este trabalho, nos seus próximos capítulos, deverá contribuir
e as tradições lhes eram vitais e por isso precisavam ser conservados. Estes
bens materiais eles buscavam reconhecimento; mais do que um plano de ação com
gritos a Deus e deixavam-se conduzir pelo coração e pela intuição, pelo espirit de
finesse como chamou Pascal; mais do que no poder dos humanos e nas armas de
misterioso, do transcendente.
Faz-se necessário lembrar que, partindo de uma visão mais ampla do que
seu primeiro estágio, que culminou na guerra, ele foi aniquilado e com o uso das
Como a Fênix que ressurge das cinzas, sob as cinzas dos milhares de
poucos casos, considerados estranhos tanto pelas lideranças religiosas como pelas
elites diversas.
pastorais sociais. Com isso já estamos nos adentrando nos capítulos seguintes.
Diria Tomás de Aquino que “a realidade extrapola o conceito”, ela é mais complexa
para o fato de que “na produção religiosa, conta muito a espiritualidade e o carisma
185
do líder”. Alexandre Otten , partindo da análise antropológica de Alba Zaluar sobre
183 Ricieri de Melo e Aliriano dos Santos (Cf. anexos nº 02 e nº 04) defendem esta concepção.
184 OLIVEIRA, P. Religião e dominação de Classe (1985), p. 267. Esse conceito de produção
religiosa é, na verdade, um conceito de Pierre Bourdieu, que por sua vez, neste caso, bebe na
fonte Weberiana, e propõe uma certa autonomia relativa para o campo religioso.
185 OTTEN, A. Só Deus é grande. (1990), p. 136-137. Cf. ZALUAR, A. Os homens de Deus.
(1983) p. 104-106.
118
Ao lado da história escrita, há uma história viva que se perpetua e se renova através do tempo.
Maurice Halbwachs
não é uma tarefa fácil, talvez seja uma ousada pretensão desta pesquisa, porém,
monges, contidas nas mais diferentes obras existentes que tratam do assunto.
capítulo, faz-se necessário primeiro ir às suas fontes, e entre elas, certamente esta é
descendentes daqueles e daquelas que tiveram algum contato com João Maria ou
José Maria.
não é um continuum em evolução, mas algo que precisa ser visto na sua
186
local e normalmente estranhos para as demais. Dário Antisseri , ao analisar a
segundo este,
O místico, ao contrário do teólogo racionalista e do metafísico, está
convencido de que o mistério se anuncia e não se explica. A linguagem do
místico abre novas dimensões da realidade. As mensagens dos místicos
aparecem repletas de metáforas que são ‘instrumentos cognitivos’, são fortes,
vivas, transbordantes de verdade.
Falar sobre “mística”, “santidades”, “milagres”, "águas santas", etc., pode
parecer uma volta aos tempos pré-modernos ou do romantismo, mas é bom lembrar
que o próprio Antônio Gramsci abriu uma janela importante da ciência política
afirma que
Nas manifestações da vida social e espiritual do homem comum há uma
riqueza de ver, de pensar e de dizer, que nem a ciência e nem a política ainda
exploraram devidamente. Com isso podemos sair de um discurso sobre o
povo, sobre a cultura do povo, para um trabalho concreto de reconhecimento
187
do que é efetivamente o modo de viver ou ser do povo.
A partir de Gramsci, diversos outros cientistas políticos, antropólogos,
positividade. Entre outros, pode-se destacar Clifford Geertz, Renato Ortiz, Alba
Zahuar, que mesmo olhando a partir de várias direções compreenderam que para
um dinamismo no senso comum que tende para a mudança, que não é meramente
receptivo ou cristalizado, que faz com que ele tenha capacidade de ir filtrando as
cotidiano.
186 ANTISSERI, D. A filosofia analítica sobre a religião, In. PENSO, G. & GIBELLINI, R. (Org).
Deus na Filosofia do século XX . (2000).
187 Apud, QUEIROZ, J. J. & VALLE, E.(orgs) A cultura do povo (1979), p. 136.
121
que ele “é um intelectual orgânico da massa camponesa em crise, porque ele lhe dá
papel de intelectual orgânico, sendo que o mesmo poder-se-ia falar também de João
história, não tão distante, que recebeu este nome. No interior e também nas
188 OLIVEIRA, P. R. de. Religião e dominação de classe. (1985), p.244; Cf. OTTEN, A. Só Deus
é grande. (1990), p.81.
periferias dos grandes centros urbanos do litoral do Estado de Santa Catarina, ainda
hoje é comum encontrarmos pessoas que afirmam: "meu pai - ou minha mãe - lutou
guerra".
foi possível perceber que prevalece o discurso sobre o Contestado como sendo uma
Contestado foi uma guerra desprezível e inaceitável. E, a crítica mais radical foi, e
Contestado.
2.1.1 A identidade
apontam pelo menos para a existência real de dois homens chamados João
191
Maria . Um seria João Maria d’Agostini e outro João Maria de Jesus. Porém, na
grande maioria das pesquisas realizadas sobre João Maria, e sobretudo naquelas
190 Segundo FACHEL, J.F. Monge João Maria.(1995), p.36, João Maria "ainda continua vivo na
memória dos sertanejos, como o homem bondoso, amigo dos pobres, o curador dos males,
piedoso.(...). É ainda um santo para os homens do planalto, que o canonizaram, como faziam os
antigos cristãos aos seus santos, santo que não disputa um lugar nos altares porque o tem no
coração dos homens simples das zonas que palmilhou".
191 FELIPPE, E. O último Jagunço. (1995), p. 27 a 30, parece apontar para a existência de
vários monges com o nome de João Maria. Ele fala do "João Maria de Jesus", do "João Maria
'do Frei Rogério', o João Maria 'de Frei Oswaldo', Anastás Marcaf, o profeta João Maria que teria
vindo da Galiléia... na verdade este autor não está preocupado em apontar para personagens
históricos, mas para personagens que passaram a pertencer ao folclore do Contestado. THOMÉ,
N. Sangue, suor e lágrimas no chão Contestado, (1992), p.72, aponta para a existência de "pelo
menos três monges de nome João Maria". Além dos dois já citados ele fala de um São João
Maria, que em Pinheirinho, próximo a Encantado, aglutinou vários caboclos e colonos (que a
1870, em São Leopoldo, havia participado da guerra dos Muckers) em torno de si, fazendo surgir
a comunidade dos "Monges de Pinheirinho", liquidada pelos colonos de Encantado e pela polícia
gaúcha. Este "João Maria" era de estatura média, rosto queimado de sol, e usava na cabeça um
gorro de lã, levando na cintura uma adaga e uma pistola de dois canos. Dele, os gaúchos que o
conheciam como João Maria de Jesus, ou João Maria Francisco de Jesus, sabiam de lendas de
que tinha vindo ao Brasil em 1800 para penitenciar-se de seus pecados e que andava muito
pelos sertões brasileiros, pregando a paz, e dizendo que ninguém era proprietário de terras, que
elas eram de todos.
124
192
nome : O João Maria d’Agostini que também ficou conhecido, por algumas
Santo de nome João Maria que habitou ou passou pela região. Após fazer uma
apurada revisão bibliográfica, constata-se que não há dados suficientes para provar
que houve somente um João Maria, será necessário partir do princípio que este
193
homem teve uma vida centenária.
194
Vinhas de Queirós , oferece uma síntese sobre a vida do que ele
192 Com isso não quero me opor ou desprezar pesquisas interessantes como a de CABRAL,
O.R. apresentada na obra "A Campanha do Contestado", citada, creio que, por quase todos os
pesquisadores do Contestado posteriores. Apenas faço a opção de valorizar a cultura popular
que aponta para a existência de apenas um João Maria. Logo, algumas afirmações aqui
expostas em relação a João Maria d’Agostini podem na verdade pertencer a um possível e
segundo monge chamado João Maria de Jesus. Não se tem certeza nem clareza da distinção
entre ambos. A grande maioria do povo venera apenas um, que denomina João Maria, e
também a grande maioria dos pesquisadores confundem a ambos ou apontam para apenas um.
195
Segundo Ávila da Luz “em 1893, durante a Revolução, João Maria
d’Agostini, da qual era simpatizante, andava pelo Rio Grande do Sul.” Ele aponta
para a existência de apenas um João Maria que se chamaria João Maria d’Agostini e
que teria estado na região do Contestado no final do século XIX. Ele afirma que:
Era um monge de estatura meã, entroncado; os cabelos crescidos e
encanecidos e a barba cerrada e branca, trazia-as em desalinho; na face
enegrecida e tostada pelo sol, os olhos azuis tristes e fundos tinham
fulguração estranha de místico: um gorro felpudo na cabeça, umas calças
curtas que deixavam à mostra os cordões da ceroula e um paletó curto e
riscado, de algodão, constituíam sua modesta mas limpa indumentária.
Completando-a, umas alpercatas e um cinto de couro cru, fabricados por ele
mesmo. Ao pescoço trazia um colar de "lágrimas de Nossa Senhora", a
tiracolo uma guampa com água, às costas um saco com alguma roupa, uma
caneca, a cuia e bomba do chimarrão e uma lata que servia à guisa de
marmita. Carregava também uma caixinha, que à maneira de pequeno
oratório, encerrava uma imagem de Nossa Senhora da Abadia. ... aparentava
195 Para ÁVILA DA LUZ, A. Os fanáticos. (1999), p. 136 e 137, “sua existência é assinalada no
Paraná, durante a Campanha de Canudos. Então seu prestígio entre os sertanejos já era
enorme. Euclides da Cunha já vislumbrava o destino trágico de sua pregação: ‘A aura da loucura
soprava também pelas bandas do sul: o monge do Paraná, por sua vez, aparecia nesta
concorrência extravagante para a história e para os hospícios’. Enveredou novamente para o sul.
Então aparece, no estado de Santa Catarina, em Canoinhas, Curitibanos, Lages e Campos
Novos. E foi nesta fase crítica da alma sertaneja (quando o fanatismo dos sertões baianos
encontrava eco na alma do caboclo catarinense) que, aparecendo João Maria, exaltaram-se a
religiosidade e o fanatismo, potenciais do homem dos sertões catarinenses, que logo começou a
crer e a venerar o monge. Para ele, é natural que o mistério envolvesse o passado do monge
João Maria de Agostinho. Quando surgiu em Santa Catarina, já velho e bem identificado com
seu misticismo, já era monge feito. Sobre ele, então formavam-se lendas. Todas inverossímeis.
Aos curiosos que ousavam indagar de sua vida, dizia simplesmente: "Sou um homem com vocês
e ando cumprindo uma sentença!"... falava o português corretamente, mas tinha um ligeiro
sotaque castelhano, que fazia supô-lo nascido fora do Brasil.”
126
196
na época ter uns 50 ou 60 anos de idade.
Osvaldo R. Cabral foi um dos primeiros pesquisadores a defender a
197
existência, não de apenas um, mas de dois homens com o nome de João Maria.
Para ele, este, supracitado, seria um segundo monge, pois o primeiro, ao final do
século, deveria estar com quase um século de vida e não com 50 ou 60 anos como
afirmara Ávila da Luz. Mas isso, também, pode ser apenas um erro de interpretação
um segundo monge.
de um segundo João Maria, mas acabou por defender a sua existência histórica, e
assegurar, mesmo sem poder documentar, que o nome que ele próprio atribuiu a si
acréscimo "de Jesus" (ou substituição pelo “d’Agostini) pode ter sido criado ou pelo
196 Segundo VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p. 49, também
apontando para a existência de um segundo João Maria, dá as mesmas definições do que para
Ávila da Luz seria o primeiro: “O peregrino João Maria de Jesus, velho octogenário, monge e
profeta, era um tipo digno de detida análise. A sua barba branca era serrada e as respeitáveis
cãs, em completo desalinho; sobre a cabeça ele tinha sempre um gorro felpudo e, cobrindo o
corpo açafroado, as vestes, constituídas de calças muito curtas, deixando aparecer os cadarços
das ceroulas, camisa de meia e paletó de algodão; as plantas dos pés nus eram protegidas por
alpercatas. Em volta do pescoço trazia alguns rosários de lágrimas de Nossa Senhora. A sua
bagagem era simples e interessante: sacos de roupas, cuia e respectiva bomba de prata para
chimarrão amargo, uma garrafa cheia d'água e uma pequena lata, contendo um pouco de ervas
para a sua alimentação. Andava sempre arrimado ao bordão. Mais frequentemente ele
estabelecia seu pouso em baixo de uma árvore ou próximo de uma nascente, ali abria a caixa do
oratório que levava às costas, armava a sua barraca, e acendia o fogo onde ele próprio cozia os
seus alimentos e esquentava a água para o seu mate-chimarrão.”
197 CABRAL, O. R. A Campanha do Contestado. (1979), p. 108, afirma que "esse santo não foi
um homem. Foram dois, dois homens que confundiram suas vidas para se tornarem apenas um
santo."
127
monge do primeiro.
Paulo, onde dizia-se solteiro e de profissão "solitário eremita", tendo viajado para
198 Segundo Cabral (Ibid., p. 107), referindo-se a este João Maria, assim descreve: "Houve um
anacoreta de cabelos longos e grisalhos, a barba longa e o olhar manso, que desejava a solidão
e o isolamento, a quietude e as durezas da vida contemplativa, as horas longas passadas em
orações e em êxtases, tal como o havia feito muitos outros que fugiram ao convívio dos homens
para se aproximarem de Deus. Foi simples, foi bom, foi justo. Mais severo para consigo mesmo
do que para com o seu próximo. E, sendo indigente, repartiu com os seus semelhantes o único
bem que possuía: a sua fé."
Ë bem provável que João Maria d’Agostini, nos últimos anos de sua
existência ou talvez por algumas pessoas ou em alguma região por onde passou,
este são praticamente iguais às do anterior. É claro que com o passar dos anos
qualquer pessoa muda certas características. Mesmo sendo o mesmo João Maria,
E, além disso, como diz o ditado popular “quem conta um conto aumenta
ideologia e a metodologia dos pesquisadores, que também variam com o passar dos
200
tempos, tal como a cultura popular, que também vai ressignificando os
200 Segundo SAHLINS, M. Ilhas de História. (1990), p. 10, a ordem cultural não é estática mas
sujeita a riscos empíricos e alterada na ação (...) agindo a partir de perspectivas diferentes e
com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a
diferentes conclusões e as sociedades elaboram consensos, cada qual à sua maneira. A
comunicação social é um risco (...) e os efeitos desses riscos podem ser inovações radicais.
Partindo do pensamento de Sahlins pode-se afirmar que uma experiência vivida tende a mudar
de significado com o passar do tempo e dependendo dos seus diferentes interpretes. O
privilegiamento de determinadas práticas bem como o deslocamento da ênfase em certos
preceitos ou interpretações se traduzem num ato criativo. Ao falar de ressignificação, trata-se
portanto de um processo permanente de reinterpretação e particularização cultural e histórica de
idéias e práticas, que envolvem tensões, conflitos, disputas, negociações, desconstrução-
construção e busca de sobrevivência, entre pessoas e instituições.
129
ao seu cotidiano.
Fato é que aos poucos sua origem ou sua identidade, mesmo entre os
Segundo GEERTZ, C. Interpretação das culturas. (1999), p. 18, “no estudo da cultura, o passado
é reconstruído continuamente.” Pode-se afirmar que “ressignificação” é a habilidade que as
pessoas possuem de atribuir significados, para acontecimentos, de tal forma que lhes oferece
sentido para as suas vidas. Através dos sistemas simbólicos, ou seja, da religião, cada
sociedade representa os temas principais de sua visão de mundo e esta visão está permeada
pela memória, que ao mesmo tempo é ressignificada pelo presente. Desta forma, podemos
imaginar a mensagem atual de João Maria e do Contestado hoje como resultado de um
processo ou de um intrincado jogo de ressignificações e rearranjos, entre as memórias locais e
institucionais, sociais e individuais. Sendo assim, pode-se supor que tal mensagem, forjada
dentro dos redutos do Contestado, mesmo depois da dissolução destes, continuou sendo
preservada e sempre de novo ressignificada pelos indivíduos e comunidades da região.
201 THOMÉ, N. Sangue suor e lágrimas no chão Contestado. (1992) p. 72, sem citar fontes,
assim descreve este segundo João Maria: "Anastás Marcaf, ex-marinheiro cujo navio naufragou
em frente a Buenos Aires e que para pagar promessa dedicou-se à peregrinação. Vindo da
Argentina, entrou no Brasil pela região missioneira gaúcha, já com mais de 50 anos, ficando
conhecido como monge João Maria de Jesus. Monarquista, em 1983 declarava seu apoio à
Revolução Federalista, rogando pragas aos republicanos. Teve contato com o Frei Rogério na
região de Lages, em 1897, deixou marcas no Morro do Taió e no Morro das Cruzes, em Porto
União. Mesmo político numa época turbulenta, não era violento, mas sim pacificador. Ficou
famoso por suas profecias calamitosas e apocalípticas. Desapareceu entre 1908 e 1910,
também misteriosamente.
202 CABRAL, O. R, A Campanha do Contestado. (1979), p. 152, afirma que este João Maria
"nenhuma informação identificadora deixou de si. Apenas o Cel. J. O. Pinto Soares, em sua obra
'Guerra em Sertões Brasileiros', nos traz um subsídio, 'segundo pesquisas feitas', não indicando,
infelizmente, as fontes em que o obteve." Em que está escrito que "seu nome verdadeiro era
Anastás Marcaf, de origem Francesa".
130
passou a ser mítica. Alguns depoimentos de caboclos descendentes dos que viram
ou conheceram João Maria afirmam: “João Maria é alguém que 'desceu do céu' ou
'que vem da parte de Deus' ou 'é um apóstolo de Jesus' e, portanto, deve ser tido
sertão, no planalto, nos vales, nas coxilhas, todavia, São João Maria é um só. Não
houve dois.” Num dos retratos que corre como sendo do "santo", estampa-se a
legenda: "João Maria de Jesus, profeta com 188 anos”, como querendo a afirmar
que se houve dois agora já são apenas um, ou que “João Maria ainda está vivo,
mesmo com toda essa idade". A foto deste mesmo personagem também foi
primeiro. Tanto quanto o primeiro este também era itinerante e eremita, não gostava
oferecidos pela própria natureza. Dava bons conselhos e era respeitado por todo o
povo.
Quanto à sua morte permanece o mistério. Não se sabe onde nem quando.
Mas independente de como foi o seu fim histórico e real, o que vale aqui é
cultura popular do Contestado. Como e porque ele se tornou um mito para um povo
que outrora levantou-se contra a opressão e que ainda hoje continua entre os
203 Ibid., (1960), p.164. Vale dizer que observando atentamente a foto donde aparece este dizer
não há diferenças suficientes para se afirmar que seria outra pessoa. A foto é do mesmo
personagem donde noutras fotos aparece escrito "João Maria d’Agostini".
131
história passa a ser o mito.” A história se dilui no mito.205 De qualquer forma, João
motivos: porque ele mesmo assim denominou-se e porque, ainda hoje, ele é assim
Contestado e, também, do sul do país. João Maria é tido por muitos descendentes
Para dar cordas ao mito, pode-se afirmar que "há um antes e um depois de
necessário, ainda, uma ampla pesquisa empírica. Esta, que em partes será
205 Cf. ELIADE, M. O mito do eterno retorno. (s.d.), p, 17, 36, 20, 39 e 46, os “mitos e ritos” são
categorias que possuem os mais variados conceitos. Não há “consenso” sobre eles. Depois de
longos estudos sobre o “homem primitivo”, ele pôde concluir que “o símbolo, o mito e o rito
exprimem, em planos diferentes e com meios que lhe são próprios, um complexo sistema de
afirmações coerentes sobre a realidade última das coisas.” Segundo Eliade, “todos os atos
religiosos foram inaugurados pelos deuses, heróis ou antepassados míticos.” Da mesma forma,
os rituais e gestos profanos significativos, assim como toda a ação humana, só assumem ou
adquirem significado na medida em que repetem uma ação realizada no princípio dos tempos
por um deus, um herói ou um antepassado. Isto é, tudo o que não possui um modelo exemplar é
‘desprovido de sentido’. O poder do rito e da palavra - de um sacerdote por exemplo - depende
dessa repetição, da imitação de um modelo exemplar. O que importa, nos mitos e ritos, é a
legitimação dos atos humanos através de um modelo extra-humano.
132
simplesmente João Maria (de Agostini, de Jesus, ou de Santo Agostinho) são alguns
gente do povo, humilde, de pouca fala, só, alguém que sabe ouvir, que fala com
poder e a todos convence, que não é homem de duas palavras e anuncia o que está
por vir, que se compadece dos que estão doentes ou sofrendo de qualquer mal, que
governo dos homens, da república, alerta para o fim do mundo, para tempos difíceis,
devia ou não falar, adorar, esperar, plantar, batizar... quais e quando os santos
Enfim, foi sentido e recebido como um modelo de vida, experimentado como quem
João Maria foi reverenciado por muitos mas também criticado por alguns.
Estes últimos não foram muitos, entre outros estão alguns coronéis, governantes,
206
andarilho, alguém sem nome e sem ninguém por ele.
possivelmente entendia que, se assim fosse, a sua morte sequer seria conhecida. O
206 ÁVILA DA LUZ, Aujor. Os fanáticos. (1999), p.146, aponta para uma história, fato ou lenda,
que teria sido contada pelo coronel Caetano Costa, de Lages, num artigo do Jornal Guia
Serrano, de 28 de janeiro de 1940. Tal história visa questionar a santidade e a personalidade do
monge. Ei-la: "Eu conheci pessoalmente o João Maria. Seria ai por 1895, não posso precisar
bem. Eu morava na velha sede da fazenda Araújo. ...Nessa ocasião andava de muletas, por um
grande golpe de machado no pé. Adoecera, então, gravemente, de tifo, um rapaz de 18 anos,
que tínhamos criado, o Pedro, meu afilhado, filho de uma ex-escrava da fazenda e que fora
minha pajem. (...) Julgado caso perdido, pelo senhor Eduardo Rambusch, que naquele tempo
clinicava, o padrasto do rapaz, o velho Tio Adão, pediu-me permissão para que ele fosse visto
pelo monge João Maria, que ele sabia ter pernoitado e estar ainda na beira da estrada num
capão de mato vizinho. ...Condescendi com meu velho e inolvidável amigo Tio Adão. E veio o
suposto monge. Meio de estatura, com seu nodoso bordão, o seu boné de pelos, alforje a
tiracolo, mala de panos, alpercatas, roupas decentes, velho manto de pedaços de cobertor,
vestes comuns e limpas, cachimbo pendente da boca irônica, olhos claros e vivos, encravados
em órbitas fundas, nariz fortemente adunco, cavaignac fino, longos cabelos crespos, orelhas
atochadas de pêlos, dava no conjunto a impressão de tipo judaico. (...) Minha mulher, curiosa
como todas as filhas, quis também vê-lo. Fez as honras da casa, oferecendo ao "santo" um
vasto café com biscoitos, que ele saboreou, quase vorazmente, e repetiu chupando os bigodes.
Achou desnecessário ver o doente. Receitou um "cordeale" da tal famosa vassourinha de "São"
João Maria, infalível para todas as doenças.
Sabendo que ele era apologista da revolução, ao contar-lhe sobre a morte de Gumercindo,
exaltou-se, dizendo que ele não tinha morrido, e que marchava para Porto Alegre, tendo como
vanguarda um exército de anjos. Percebi aqui com toda a inteireza, a maciça e crassa ignorância
do lunático, errante... e é desnecessário dizer que o Pedro morreu logo no dia seguinte.
134
Visto que ele morou algum tempo em Sorocaba, destino de muitos comerciantes,
século depois somarem cerca de 100 mil muares ao ano; porém, talvez por causa da
instalação da rede ferroviária, ao final do século XIX a media anual declinou para 12
207
mil. Grande parte destes muares, que eram os melhores meios de transporte da
época, partiam do Rio Grande do Sul, dos campos de Vacaria, passando pelos
campos de Lages, Campos Gerais e Itararé. Esse foi o principal caminho que ligava
Afirma, também, que ele “vestia um hábito, talvez franciscano, sobre o qual caíam-
lhe os cabelos compridos e a barba longa.” E que “dormia sobre uma tábua e
alimentava-se de frutos e de algumas dádivas dos sitiantes próximos.” Diz ainda que
o eremita
tornou-se conhecido por ‘Monge do Ipanema’ e raramente descia à Vila da
Fábrica - onde se via cercado pelo respeito temeroso dos caipiras e pela
zombaria irreverente dos operários. Às vezes, na calada das noites, em sua
gruta, entoava, a plenos pulmões os seus salmos e as suas orações - dando
ensejo a que, cá embaixo, ouvindo-o todos, surgisse a galhofa dos operários
com o chiste de que "o bugio está roncando na serra".
209
Cabral afirma ainda que um sitiante das redondezas relata que
207 Estes dados encontram-se em COSTA, L. O continente das lagens. (1982), p.158.
209 Ibid., p. 109. Ver também: FACHEL, J.F. Monge João Maria.(1995), p. 16.
135
espirituais, aos poucos este homem solitário passou a receber inúmeros visitantes.
Junto à gruta do monge havia uma pedra donde vertia água. A gruta logo foi
simples, austero e com uma vida rigorosamente sóbria, com os olhos e o coração
inteiramente voltados para Deus, para o qual entoava muitos cânticos e dirigia
ele teria voltado para aquele lugar mais uma ou duas vezes e lá ficado por mais um
ou dois anos cada vez que retornava. Seu desaparecimento da Pedra Santa,
Rio Grande do Sul, em Santa Maria da Boca do Monte. É possível que sua fama
tivesse chegado antes que ele próprio, por meio do caminho das tropas e das
um general romano, mas a humildade serena dos mártires da fé. Entretanto, chegou,
211
viu e venceu” . Mas nem todos pensavam assim. O vigário José Soares de
210 Apud., FACHEL, J.F. Monge João Maria.(1995), p. 19. Ver também CABRAL, O. R. A
Campanha do Contestado. (1979), p. 117.
aparentando espírito religioso e vida austera, fizesse uma prática na capela, o Pe.
Vicente Zeferino Dias Lopes tece sobre esse homem, conhecido como monge, o
Também, no Cerro do Campestre, onde João Maria fez sua morada, havia
213
uma fonte de água cristalina , da qual os fiéis, especialmente os enfermos, se
utilizavam acreditando que seriam curados ou aliviados de seus males. Deste lugar,
situado a 300 metros de altura, João Maria só descia para pregar infindáveis
penitência. Próximo de seu pobre rancho, mais no topo do morro, com o auxílio de
diversos devotos, logo foi construída uma pequena capela, cujo padroeiro ficou
sendo Santo Antão. E uma imagem deste santo foi colocada sobre o altar.
214
Como cita Belém e Betrão , essa imagem teria sido trazida pelo próprio
monge, que foi buscá-la na região das antigas Missões Jesuíticas. Quando João
Maria teria ido pegar tal imagem, segundo o Jornal "A federação", de Porto Alegre,
consta um diálogo acontecido entre o monge e o General Andréa donde João Maria,
governa a Igreja.” E acrescentou ainda, "eu nada tenho a ver com estas coisas". Ao
215
inclinar-se para beijar a mão do general, este a retirou e lhe disse: “suma-se” .
rezavam o terço e, após isso, ouviam os seus sermões. Aquele lugar logo se tornou
próprio João Maria. O número de pessoas, que não tinham outra esperança senão
aquela, crescia dia após dia. Formavam verdadeiras romarias à procura da água
215 FACHEL, J.F. Monge João Maria. (1995), p. 25. Ver também em CABRAL, O. R. A
Campanha do Contestado. (1979), p. 114-115 e 120-121, que resgata um depoimento de
Felicíssimo de Azevedo que afirmou "que, por 35 dias, esteve no Campestre, assistindo às
práticas de João Maria, que eram diárias e nas quais se dizia inspirado por Deus. E, que, na
encosta do morro plantou o ermitão as 17 cruzes ficando ao alto a capela de Santo Antão, onde,
em altar bem preparado, jazia a bonita imagem do Santo." E, continua Cabral com o depoimento
de Felicíssimo que afirma "que a sua barba longa e o hábito atraíram os simples que o tomavam
por um novo Messias. Fazia prédicas ao povo todos os dias. Dizendo-se inspirado de Deus,
atraiu ao lugar uma multidão de crentes que o adoravam. Copiou as ações de Cristo. Fez de
uma vertente abundante dentro do mato a base de seu poder misterioso, de seus milagres.
Junto à primeira cruz, ao entrar-se na picada, depois do sol posto, quando desciam as primeiras
sombras da noite, era o povo, cerca de 200 pessoas, chamado à oração com o sinal de um tiro
de pistola. Ajoelhados todos frente àquele símbolo da religião cristã, rezavam o terço, depois do
qual, quando se achava presente o monge, havia a prática do mesmo, aconselhando o povo à
prática de todas as virtudes cristãs; que, com fé, pedissem a Deus e à Mãe Santíssima o termo
de seus males, com a aplicação daquela água milagrosa de que estavam fazendo uso. ...Ao pé
de cada cruz parava o doente, devendo ajoelhar-se para fazer a oração. Após chegar a
capelinha, onde se achava o Santo, tomava-se acento em um banco tosco, e daí descia-se para
o lugar onde estava a vertente que saia da rocha a um metro de altura. Havia um cepo, onde o
doente se ajoelhava para receber a água, que era despejada por qualquer pessoa com uma
caneca de metal aí existente, presa por uma corrente. Por sobre a cabeça do paciente
ajoelhado, despejava-se água com vagar, na proporção que cada um queria, mas sempre em
números ímpares. Acabada a operação, subia-se às pressas a fim de agitar novamente o corpo.
A roupa só era mudada depois de enxuta naturalmente."
138
216
milagrosa e também do barro santo, usado na cura de feridas entre outras mais .
procurar conhecer seus princípios. O médico enviado foi Thomaz Antunes de Abreu,
melhoras, das quaes muitas julgo aparentes, cento e trinta e trez longe de
217 Calcula o médico que no verão anterior o número de doentes teria sido de 8 a 9 mil.
218 AHRS: março A 20; A 21 - Correspondência do Governo do Rio Grande do Sul - março
Saúde Publica. FACHEL, J.F. Monge João Maria.(1995), p. 80.
passou a crer que quando uma cura acontecia, o que acontecia era na realidade um
220
milagre . Isso gerou uma irritação ainda maior no General Andrea que, também
presente" para Santa Catarina, sem esperar o relatório médico. Junto com o
“presente” mandou dizer que não tinha a menor indisposição contra o monge, mas
que o General Antero, poderia lhe “fazer agasalho” do que julgasse merecido.
com boas intenções" e por ser "uma medida de polícia", pediu que não mais o
deixasse voltar à província do Rio Grande do Sul "por entender que poderá ser
contrariado com o presente recebido, e, ao perguntar ao monge para onde queria ir,
de Porto Belo-SC. Com a seguinte frase: "peço que me mandem botar nesta ilha,
porque estando já aborrecido dos homens, quero viver em um canto retirado, onde
221
não veja mais ninguém" . Os pescadores que para lá o levaram, voltaram
uma água santa, que servia para curar toda a sorte de ferida. Logo, também ali, uma
grande procissão o procurava. Não se sabe quanto tempo ficou na ilha, nem como
saiu dela e para onde foi, mas acredita-se que ele voltou a Sorocaba ou para o
222
interior do Rio de Janeiro.
223
A segunda versão, é de Belém que relata a saída do monge do Rio
Grande do Sul, afirmando que João Maria já tinha fugido, quando perseguido pela
221 Segundo CABRAL, O. R. A Campanha do Contestado. (1979), p. 128, "não resta a menor
dúvida que o ciclo messiânico de João Maria durou muito pouco. Tudo faz crer que ele preferia o
isolamento à prédica, o esquecimento à popularidade."
Sendo correta esta versão, pode-se também afirmar que João Maria
permaneceu pouco tempo no Rio de Janeiro. Há indícios de que ele teria novamente
conhecimento de sua existência na gruta que hoje tem seu nome, por tê-lo ouvido
a água que ali perto corria, para todas as enfermidades e para todas as queixas. E,
como sempre, em toda parte havia os que saiam reconfortados e os que saiam
aceitava, salvo algumas ofertas de frutos e leite. Quando a ele deixavam outros
depois. A sua voz, também aqui, nas noites calmas, era ouvida cá em baixo, muitas
226
vezes, chegando aos ouvidos do povo que se edificava na sua piedade .
Conta Joaquim Borges, que o monge teria chegado à Lapa em 1845, vindo
de São Paulo (Tatuí) a pé. Ao prosseguir viagem, após pousar, acompanhado por
um dos seus parentes, Joaquim fala que "a João Maria foi cedido um cavalo, para o
levar até a cidade da Lapa (vindo de uma fazenda dos seus parentes), cavalo este
Segundo Cabral, foi em 1851 que ele teria se instalado numa gruta no
228
município da Lapa-PR . A gruta do monge é ainda hoje um lugar misterioso, de
oração e também um Parque Turístico, visitado por muitas pessoas. Sobre essa
229
gruta diversas histórias são contadas e recontadas de geração em geração . Uma
das pedras que servia de cama do monge foi adaptada tornando-se um altar onde
228 ÁVILA DA LUZ, A. Os fanáticos. (1999), p. 135, afirma que "nas proximidades da cidade da
Lapa, numa gruta natural existente, o monge fez sua iniciação e purificação. Aí, isolado,
esquecido do mundo, o eremita entregou-se ao seu misticismo... Vivendo ai anos, entre orações
e mortificações, num processo longo de recalcamento e lembranças perturbadoras, quando
atingiu o equilíbrio e a harmonia de sua psique desorganizada, dentro das condições anômalas
do misticismo, abandonou a caverna, desceu as escarpas e começou a peregrinar... deixou a
vida do anacoreta e foi fazer a do apostolo..."
229 Em OLIVEIRA, C.A. de. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus
(1992), p.123, temos a história do monstro da Lapa. Diz que em certa ocasião um homem foi até
a entrada da gruta da Lapa, com muita fé, para falar com o monge e saber sobre o motivo de
sua moradia ali. O bom santo, fitando-o nos olhos disse-lhe: “Meu filho, debaixo da terra
encontra-se um monstro grande de muitos metros de comprimento, cuja ponta da cauda está no
centro da cidade, em local que será a futura igreja e a cabeça está debaixo destas pedras onde
fiz minha morada. enquanto houver fé no coração destes homens o monstro será adormecido e
não se levantará para fazer mal a ninguém. É por isso que aqui estou, em perene oração para
que nada de mal aconteça a esta pobre gente.”
143
desta gruta tem uma grande quantidade de muletas, roupas, velas e retratos
Depois deste pouco tempo de parada na Lapa, afirma-se que João Maria
curta duração, depois disso, segundo Cabral, "que caminhos tomou ninguém sabe.
É provável que tenha se embrenhado pelas matas, indo sair em Lages". Cabral
acredita que depois de visitar Lages, João Maria teria voltado para Sorocaba, entre
os anos 1865 e 1870, onde viveu mais algum tempo, entregue sempre às suas
230 Segundo o Coronel MIRANDA, A. Contestado. (1987),p.1, que participou das operações
contra os chamados "fanáticos do Contestado", "a história do fanatismo no Contestado está
diretamente ligada à do aparecimento dos monges na terra das araucárias. De fato o mais antigo
monge de que há notícia escrita, chamava-se João Maria de Agostinho e surgiu na Lapa em
1842, habitando um alpendre natural de rocha, ao qual se deu desde então o nome de gruta do
monge, pouco distante da cidade. Até hoje nos dias festivos da igreja, há romarias a esse lugar,
dos moradores das circunvisinhanças, que vão acender lumes votivos ao pé da cruz aí existente,
encravada na pedra, em sinal de ingênua devoção”.
231 Segundo ÁVILA DA LUZ, A. Os fanáticos. (1999), p. 135-136, "quando, cerca de 1895,
apareceu, pela primeira vez, nos sertões do planalto de Santa Catarina, em suas constantes e
vagas peregrinações, o monge João Maria de Agostinho, a gente crédula e mística acolheu-o
como a um enviado do céu. Vinha do norte, do estado do Paraná. Dirigiu-se para o sul. Chegou
a freguesia do Rio Negro, nas margens do rio do mesmo nome, e aí, em um mato cerrado,
abrigou-se. aí esteve algum tempo pregando e aconselhando os moradores da incipiente
colônia. Depois, deixando levantadas, na estrada da mata, três cruzes de madeira, para livrar os
colonos da "peste, da fome e da guerra", partiu... Caminhou pelo estado do Paraná e Mato
Grosso durante muitos anos.
233
orações e devoções, até que (de lá) desapareceu para sempre .
seguintes.
o monge teria ficado até 1870 em Sorocaba e depois rumou para os sertões de
235
Araraquara, onde então, teria morrido, antes de 1889 . Hemetério Veloso da
236
Silveira data sua morte em 1906 ou 1907, em Araraquara . Outras suspeitas
afirmam que depois de ter passado por Lages, ele teria voltado para a Lapa e
terminado seus dias em Ponta Grossa-PR. Outro relato afirma que seu corpo foi
enterrado em Campos Novos e há ainda uma versão, que parece a mais provável,
237
de que fora assassinado em Lagoa Vermelha-RS .
de sua morte. Existem ainda outras versões sobre o seu desaparecimento. A mais
popular, na região do Contestado, afirma que ele teria findado seus dias no Morro do
235 Conta Aloísio de Almeida que pouco antes de sagrar-se bispo, o Frei Vital M. de Oliveira,
sendo ainda professor do seminário de São Paulo, visitou a gruta do solitário de Ipanema (1871-
1872) e não mais ali o encontrou.
237 Cf. FACHEL, J.F. Monge João Maria. (1995), p. 35. Davino V. R. Napomuceno, na sua obra
“História de Lagoa Vermelha” (2003 p.68), conta que em Lagoa Vermelha encontra-se uma
sepultura atribuída a São João Maria, que teria sido degolado por malfeitores em 1893. Ao
dialogar com Delmir Valentini que é pesquisador sobre história do Contestado e é docente na
Universidade do Contestado, em Caçador/SC, ele afirmou, em entrevista, que o segundo monge,
"o João Maria de Jesus" realmente foi assassinado em Lagoa Vermelha/RS. Segundo Valentini,
ele teria sido apedrejado por diversos homens que se encontravam bebendo em um bar. O
provocaram muito e ele não reagiu, então o apedrejaram até que caiu e ficou estendido ao chão
por um tempo, quando sentiu-se melhor levantou e tentou fugir então foi novamente apedrejado
até morrer.
145
238
Taió, lugar onde, segundo muitos moradores da região , o monge desejava
Assim aquele lugar é considerado sagrado. Aliriano Anacleto da Silva afirma que ele
240
está vivo e encantado no moro do Taiózinho. Segundo ele, não é fácil de se
chegar até o local. Diz que um amigo dele que conseguiu chegar lá somente depois
de 10 anos pedindo pelo poder de São João Maria, então este permitiu que fosse
241
visitado. Este assunto será retomado no capítulo seguinte.
238 Também escreveu-se no Jornal FC 1-10-1912, que João Maria teria dito: "Está perto de
terminar a minha promessa, e Deus já determinou que eu fosse para o Taió". Conforme VINHAS
DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p. 63, "em vida, João Maria relatara que
várias vezes fora ao cume do Taió, que os índios daquela zona o respeitavam e que não se
podia negar ali a existência de riquezas. Aqueles que acreditavam na imortalidade do monge,
julgavam agora que ele permaneceria encantado nesse lugar misterioso."
239 A afirmação que ele estaria encantado no morro do Taió é feita por quase todos os
entrevistados nesta pesquisa. Cf. Relatos anexos: nº 02 de Ricieri M. de Arruda, nº 04 de
Aliriano A. da Silva e nº 08 de Arnoldo Ferraz. É interessante notar que nos relatos aparecem
testemunhas de que existe a possibilidade de visitá-lo, porém apenas a alguns é dado este
poder ou este merecimento. VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977),
p.256, afirma que quando João Maria deixou de aparecer, “os sertanejos começaram a acreditar
que ele não havia morrido ‘porque um santo como aquele não morre’, que estava encantado no
morro do Taió e que um dia voltaria para livrar a sua gente dos sofrimentos.”
240 O morro do Taió situa-se num local de difícil acesso, dentro do Município de Santa
Teresinha, próximo de Rio do Sul-SC. Ali foi construída uma espécie de capela, sendo que o
estilo lembra uma gruta, aberta à frente e de aspecto arredondado. Além de uma Romaria que
acontece sempre no dia 12 de outubro, este local é diariamente visitado por grupos de pessoas
que acendem velas e elevam preces a São João Maria e Nossa Senhora Aparecida,
principalmente. Muitos procuram este lugar para se curar de doenças ou porque pensam na
possibilidade de encontrar João Maria retornando à terra ou que lá poderia estar ou se
manifestar ou revelar algo, de alguma forma. Neste local de oração, encontram-se duas imagens
de João Mria, além de outras imagens de Maria (N. Sra. Aparecida) e outros Santos e Santas
católicos, fixos nas paredes ou colocados no chão e nos fundos da casa.
242
Otacílio Costa acreditava que,
João Maria, vale destacar um documento, mesmo sendo um tanto mais difícil crer na
243
sua veracidade e historicidade, oferecido pelo padre Pauwels , cujo destinatário,
segundo ele, solicitou que não fosse revelado. A parte de tal documento assim
243 PAUWELS, Pe. G. Contribuição para o estudo do fanatismo no sertão brasileiro. (1933), p.
199-201. Sendo que aqui transcreve-se apenas alguns trechos considerados mais importantes.
Parece-me que o maior problema na aceitação deste texto seja quanto à data da morte de João
Maria, nele indicada para o ano de 1928. Pois sendo assim ele teria não somente 115 anos
como afirma o documento, mas 127 anos, conforme as informações supracitadas sobre o seu
nascimento.
para falar de um personagem que marcou profundamente, com seus feitos, palavras
isso preocupava as autoridades, estas, por sua vez, promoviam conflitos e até
245
mesmo guerras contra tais movimentos.
Como já foi afirmado anteriormente, João Maria, a cada lugar que passava,
logo era visto por muitos como um inspirado de Deus, talvez um enviado. Porém ele
próprio não se apresentava como um santo, nem trazia novas as doutrinas, não
Mato Grosso e Rio de Janeiro até o Rio Grande do Sul, Argentina e talvez outros
245 AURAS, M. Guerra do Contestado. (1995), p.48, fala que "por todo o interior abundavam os
"especialistas do sagrado": curandeiros, benzedores, puxadores de reza, capelães leigos, etc.,
mas nenhum deles fora tão venerado como João Maria, pois a figura do monge capitalizava a
representação da possibilidade da negação da realidade vigente, fortemente opressor. Ver
também QUEIROS, M.I.P.de. O messianismo no Brasil e no Mundo. (1977), p. 352.
Quando o monge chegava, o povo da redondeza logo acorria ao seu efêmero pouso,
ou junto a um córrego ou "olho d'água", que benzia ao partir, continuava a ser motivo
com água, eram tidos como remédios infalíveis para muitas doenças. E o lugar, que
era cercado e nele levantada uma cruz pelos crentes, passava a ser venerado como
Maria.
Como crescia a cada dia a fama de santidade de João Maria ou pelo fato
de somente ele ser ouvido e mesmo venerado pela grande maioria do povo da
esquizofrenias.
Um dos autores que assim o considerou foi o Padre Geraldo Pauwels, citado por
249
Nilson Thomé, que assim comenta:
O grande, o enorme mal que João Maria causou, só Deus sabe, se com ou
sem culpa, foi duplo. Primeiro: dispôs o povo a aderir a qualquer explorador
ou embusteiro que se afivelasse a máscara de monge, como poucos anos
depois fez o esperto e duanesco (sic) José Maria, que levou a caboclada à
revolta. Segundo: evitou em todos aqueles quatorze e tantos anos de sua
peregrinação pelo sertão, o contato com os legítimos dirigentes da
religiosidade do povo e representantes da igreja a que protestava pertencer
(...). Além do lado puramente religioso, teve esse procedimento um aspecto
social de alta relevância. Pois é sabido que o simples povo serrano possui
profundo sentimento religioso, de modo que, em vista de sua crassa
ignorância, não só da religião, senão também de todo mundo hodierno, é
imprescindível que haja uma autoridade bastante forte para impedir que o
caboclo se emaranhe nas teias da superstição e do fanatismo. João Maria
destruiu em boa parte esta autoridade - talvez sem querer - e a conseqüência
foi o que temos presenciado nos anos lutuosos de 1914/16.
Esse pensamento de Pauwels, registrado na década de 30, era o
João Maria, o definiu como aquele “importante personagem que vagou pelas matas
249 Cf. THOMÉ, N. São João Maria na História do Contestado. (1997), p.23-24
do Contestado”:
Era um homem de vida nômade, que vagava a 15 anos pelos matos,
distribuindo remédios, pregando àquele povo de natural religiosidade e
oficiando novenas. Usava de preferência o apocalipse de São João e de
acordo com ele profetizada os tremendos castigos de Deus, como guerras,
entre as quais a próxima e Santa Guerra de São Sebastião, além das pragas
de gafanhoto, fome, eclipses e outras coisas más, que atingiriam só os
ímpios, nunca os devotos servidores de Deus. Voltava-se também contra o
Governo da Nação, máxime por motivos religiosos entre outros. Profetizava a
próxima volta da monarquia, a saber, após a temida guerra de São Sebastião.
E assim falava de acordo com o sentir do povo, que debaixo do manso
regime do imperador quase não pagava imposto, enquanto naqueles tempos
a carga tributária mais e mais pesava. Por estas profecias, pela sua vida e
mais pelas suas muitas novenas parecia, aos olhos dos simples, um enviado
de Deus, e o povo o venerava como se fosse um santo. Quando seu nome é
proferido é sempre com respeito e descobrindo-se a cabeça. É expressão
usual do sertão: "se Deus quiser e nosso São João Maria". É supérfluo
penetrar nos grandes males que à Religião causou esse João Maria. A
Guerra dos fanáticos só foi possível na fé àquele mensageiro. Uma palavra
de sua boca valia e vale ainda hoje mais do que as verdades eternas do
Evangelho, do que quaisquer instruções de sacerdotes e bispos, e até o
santo padre só acerta ensinar a verdade, se esta confere com a pregação de
João Maria.
Ele continua relatando que, pelo fato de receitar remédios para toda e
qualquer doença, atacar a república, falar com amor sobre a religião, dar alguns
bons conselhos, levar uma dura vida de penitência, não pernoitar em casa nenhuma,
não carregar dinheiro consigo, etc., subiu a veneração para com este homem às
Cristo e sua igreja, e ainda hoje afirmam muitos, que voltará como prometera e que
é imortal, isto é, que não pode morrer. Segundo ele “as conseqüências de tal cega
confiança por esta pessoa deram na posterior revolução dos fanáticos, que sem um
251
monge João Maria não surgiria nem se sustentaria” .
preferindo apenas o contato com pessoas nos distantes sertões, onde os assistia em
suas necessidades, caso fosse solicitado. Não usava armas, era pacífico e jamais
Contestado, nutre uma esperança messiânica. Acredita que virá alguém que o
a existência de João Maria Agostini como um dos possíveis monges que passaram
pela região do Contestado, dando-nos apenas uma rápida síntese de sua vida,
Maria. Porém, para o povo, se é que se possa citá-lo a partir da revisão bibliográfica
e dos que foram entrevistados nesta pesquisa, essa expressão não é a que melhor
define João Maria. Chamar de monge para um homem que se tornou mito, para
alguém que se tornou sagrado, parece ser uma forma de diminuir a sua importância.
João Maria não foi apenas um homem religioso no sentido estrito do termo;
ele foi um homem que se preocupou com todas as dimensões objetivas e subjetivas
da vida humana. Não foi apenas um homem do “sagrado”. Por mais que pregasse a
mensagem dele, ao contrário, ele se dirigia ao seu mundo e lhe dava um sentido. A
vida material continha e era alimentada pela dimensão espiritual, e esta contemplava
a erva-mate, os negócios.
alguns dias tornaram-se sinônimo de romarias. Ainda hoje muitas delas, situadas em
lugares de difícil acesso, são visitadas constantemente por muitas pessoas.
afirmou-se que havia nela "livros santos", com os quais dirigia as orações, e tão logo
pessoas com as quais mantinha contato, na maior parte dos casos, sentiam-se
a uma obra, à qual não menciona, de Augusto Waldrigues, onde se dirige “a todos
os seguidores dos ensinamentos do 'grande eremita', que foi o profeta João Maria, o
qual, pelo espaço de mais de 40 anos percorreu vários estados, desde o Mato
Grosso até o Rio Grande do Sul.” Ele conta que, “segundo antiga lenda, João Maria
peregrino, com a promessa de percorrer o mundo mais 77 anos, por uma revelação
que tivera”.
257 FELIPPE, E. O último Jagunço. (1995), p. 19. Segundo a lenda - contada por Waldrigues -
(sem citar referência) o profeta vinha da Galiléia. Seu nome hebraico era Joannah Jeshona. Aos
20 anos teria raptado Aischa, uma jovem e linda muçulmana com quem se casou. Logo em
seguida teve que ir combater como soldado em Alexandria, contra o exército expedicionário
francês, onde foi feito prisioneiro. Ao ser repatriado recebeu a infeliz notícia de que sua formosa
esposa que tanto amara (sic), havia falecido. Estava Joannah com 33 anos. Sumamente
amargurado, resolveu empunhar o bastão de peregrino, com a promessa de percorrer o mundo
mais 77 anos, por uma revelação que tivera.
155
Mesmo que possivelmente seja apenas uma antiga lenda, talvez ela tenha
Teixeira D'Assumpção cita João Maria de Jesus como sendo o primeiro monge dos
sertões do Contestado. Conclui ele, “o velho asceta que errava pelo sul do Brasil,
258
depois de ter percorrido grande parte de seus sertões, curando doentes e
começo do ano de 1896, quando a sua fama começou a se divulgar pelos povoados
258 Para VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p. 49, os sertanejos
consideravam João Maria, antes de tudo, um grande curador. Pedindo remédio, moradores da
vizinhanças cercavam-lhe o pouso. A sua medicina era, porém, essencialmente mágica. Não era
indispensável que examinasse e visse o doente; bastava que algum parente o procurasse,
rezasse com ele e levasse a mezinha. Receitava normalmente o chá da vassourinha do campo.
260 E assim foi: em 1912 apareceu um homem que se auto denominou José Maria de Santo
Agostinho e afirmou que veio para dar continuidade à missão daquele. Ainda neste capítulo
falar-se-á desse personagem.
da zona, tendo ele passado por União da Vitória. Ele se pergunta: “não seria o
mesmo Monge da Lapa, ressurgido no Rio Grande do Sul? Pouco de admirar que
assim fosse...” Segundo Miranda, seu estilo era o de um grande pecador que
Era o tipo comum dos monges do sertão: sujo, barbas e cabelos longos e
que era um bom homem, caridoso e moderado, apenas imbuído de espírito divino e
com idéias monárquicas. Era nutrido, embora parco na alimentação. Vagando pelos
povoados, desde São Paulo ao Rio Grande do Sul, seguido até certo ponto pelos
apresentava, aumentada ainda por curas maravilhosas que fazia, ou pela sua longa
prática nesta área ou por efeito da poderosa sugestão que exercia. Predicava aos
inúmeros crentes, que acorriam em massa ao local em que se achava, como que
atraídos por poderoso ímã. Como mania, mandava que se erigissem cruzes nos
povoados.
262
Seguindo praticamente o mesmo pensamento de Miranda, Belém
consente que:
262 Apud., CABRAL, O. R. A Campanha do Contestado. (1979), p. 123. O adjetivo "Santo" tem
várias aplicações, empregando-se não apenas para aquelas pessoas canonizadas pela Igreja,
como também, por exemplo, a locais: cemitério (campo santo), igrejas (templos santos) ou a
momentos: celebração eucarística (santa missa). No caso da referência a João Maria como
santo, fica o entendimento de que o termo se aplica a quem está puro, isento de imperfeições,
que não tem culpas, que pode servir de modelo religioso, às pessoas virtuosas, respeitáveis, que
vivem de acordo com a lei de Deus, aos bondosos, aos que inspiram benevolência e compaixão,
a quem é digno de respeito e veneração pelas suas virtudes, e a tudo aquilo que é digno de
respeito, que não pode ser violado sem que se cometa uma espécie de profanação.
157
Catarina, João Maria permanece vivo no coração e na tradição oral do povo. Sua
grutas e nas cruzes. Ao lado de outros santos, continua a interceder junto a Deus
João Maria, que provavelmente não pertencia aos quadros da Igreja oficial,
aos poucos foi sendo aceito, respeitado, ouvido, valorizado e até mesmo venerado.
até o momento, não houve quem ousasse pesquisar nesta direção. Nenhum
João Maria era admirado praticamente por todo povo. Sua força milagrosa
se transmitia a muito do que era por ele tocado. Em muitos dos lugares onde
pousava erguia cruzes de cedros, das quais muitas brotaram, tornando-se árvores, e
263 Quanto a isso, vale lembrar que na igreja primitiva o santo precisava de culto para ser
reconhecido como tal, ou seja, era na medida em que crescia o culto em relação a alguém, que
este passava a ser beatificado, também oficialmente, pela Igreja.
158
264
isso era considerado um milagre. Muitos destes lugares tornaram-se sagrados,
esporadicamente nestes locais para rezar. Muitas cruzes foram por ele plantadas,
significando com isto, que toda a região que a pudesse avistar, ficaria protegida,
praticamente não havia lideranças religiosas, como padres, pastores, etc., que
esperança e que desse sentido às suas vidas, respondesse aos seus anseios, e
fosse para eles um apoio diante das suas dores, angústias, conflitos, pobreza e
mesmo diante da morte. Eram poucas as autoridades religiosas que, até o final do
antecederam, também afirmou que João Maria d’Agostini dedicava-se ao estudo das
que recebia dos moradores. Quando peregrinava, tinha o hábito de plantar cruzes.
Não estimulava atos que conduzissem à heresia, contra os dogmas da Igreja, nem
264 OTTEN, A. Só Deus é grande. (1990), p.97, afirma que “milagre é uma coisa corriqueira
para o povo. Ele convive com milagres, descobre-os por todo canto. Não há quem não saiba
contar um bom número deles... O milagre pode ser a recuperação da saúde, a solução de um
caso difícil, chuva em tempo de seca, boa colheita, etc.”
159
265
era revolucionário.
Qualquer presente que lhe fosse oferecido, como cavalos, porcos, vacas,
tudo era rapidamente distribuído entre seus afilhados ou para as pessoas mais
pobres. O monge falava uma linguagem simples, vestia-se da mesma maneira dos
caboclos, e como eles, não possuía propriedades. Mas deles se diferenciava por ser
um agente externo, vindo de fora, e, pelo seu poder religioso, que acreditavam tê-lo
pensamento dos sacerdotes católicos com o de João Maria. Ao que parece, essa
sacerdotes tinham certa estima para com João Maria e isso se confirma pelo fato de
que abriam espaços durante as missas para que ele pudesse comunicar sua
266
mensagem. Nem todos os sacerdotes procederam da mesma forma, mas alguns
conhecimento do evangelho e que seu trabalho era útil para atingir as almas dos
265 THOMÉ, N. Sangue, Suor e Lágrimas no chão Contestado (1992), p. 72. Quanto à
possibilidade de João Maria ser herético em relação aos dogmas católicos, CABRAL, O. R. A
Campanha do Contestado. (1979), p.112, observa que "a sua fé, ao que se depreende, poderia
ter sido um tanto exaltada, algo hipertrofiada. Mas, não cabe dúvidas, era pura, ortodoxa, sem
desvios que o tornassem alvo das censuras e sanções eclesiásticas."
267
reservadas aos clérigos ordenados. Passou sem ter feito qualquer coisa
nociva. Evangelicamente, dividiu o pouco que lhe davam com os mais
necessitados. Para si o pouco era muito e quase nada bastava às suas
necessidades. Nunca se rebelou, mesmo contra aqueles que usaram de
violência contra a sua pessoa. Submisso e humilde, conformou-se com a
injustiça, sacudindo o pó de suas sandálias. Buscou a solidão e não o atraíam
as glórias do mundo. Quando a multidão o cercava, sumia-se sem dizer para
onde ia, para que não o acompanhassem. Vivia interiormente para a
contemplação e para a prece. Quando elevava a voz era para louvar a Deus...
Não deixou a quem quer que fosse os seus restos, os seus ossos, para que
viessem a ser venerados como relíquias e sobre eles se levantasse a
268
heresia.
João Maria, mais do que uma figura lendária, tornou-se um mito, uma
Contestado. Era tido como imortal e cada família, por ele visitada, ficava esperando,
desejando e profetizando a sua volta, pois assim pensavam: "ele apenas se retirou
por algum tempo para as suas orações", que gostava de fazer sozinho.
269
Frei Rogério de Neuhaus, o mais afamado, reconhecido e até venerado
267 VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p.50, afirma que João
Maria não era apenas grande mago ou curador. Preenchia perfeitamente funções de sacerdote:
dirigia rezas coletivas e cânticos religiosos... Ele não só batizava; também casava e dava bons
conselhos.
269 Segundo o RÖWER, Frei B. ofm, A Ordem Franciscana no Brasil (1942), ao referir-se a
como o Frei Rogério era respeitado entre o povo serrano afirma: “tinham-no em conta de santo e
atribuiam mais de um fato, reputado milagroso, à sua intervenção. Depois de longos anos de
trabalho em Lages, Frei Rogério foi transferido para o Paraná. Entre quanto ali fez, avulta seu
esforço na pacificação dos fanáticos em 1914 e 1915. Conseguiu chamar ao bom caminho muita
gente rebelde nas margens do rio Iguassú, mas quando, a pedido do General Setembrino de
Carvalho, foi ao reduto de Bonifácio Papudo, teve hostil recepção. Uma forte fuzilaria dirigida
contra ele matou o cavalo do companheiro e, como as descargas não cessassem, retirou-se ele
para Canoinhas.”
161
270
Reminiscências , nos oferece "alguns esclarecimentos sobre um homem exquisito:
271
João Maria de Agostinho" . Ele, julgando ser um dever fazê-lo, assim descreveu
270 SINZIG, Frei P. Frei Rogério de Neuhaus. (1939), p.153-158. As Reminiscências de Frei
Rogério constitui, talvez, o documento que melhor expressa as representações dos franciscanos
sobre o Contestado. Ele foi o missionário que mais de perto acompanhou o conflito do
Contestado, envolvendo-se, inclusive em várias tentativas frustradas de pacificação. Nos
arquivos da sede da Província Franciscana de São Paulo este texto é encontrado na íntegra,
escrito pelo próprio Frei Rogério.
271 AURAS, M. Guerra do Contestado. (1995), p. 49, apenas aponta para o fato que existiram
dois João Maria mas não faz referência ao primeiro. ÁVILA DA LUZ, A. Os fanáticos. (1999), p.
139 a 143, copia este texto do diálogo praticamente na íntegra, porém acrescenta algo que ele
imagina ter sido a postura, a entonação de voz, a forma do diálogo, etc., entre ambos.
162
- Não sei, - respondeu João Maria; mas o povo me aperta muito e, então falo
assim.
- Anunciou o sr. - continuei, - que é preciso fazer velas, porque há de vir uma
escuridão de três dias, e que estas velas deviam ser bentas por mim ou pelo
senhor. Eu benzo velas, como a Igreja manda, mas não por causa de uma
escuridão que nunca virá!
- Ela virá, - objetou João Maria, - está na S. Escritura.
- Diz a sagrada escritura que há de vir uma escuridão no fim do mundo, mas
esta não é tão próxima.
- Está perto - respondeu - porque Jesus disse a S. Pedro que o mundo havia
de existir mil anos, mas não outros mil.
- Isto não está na S. Escritura.
- Na minha está, - replicou João Maria, - ela é boa; não é a dos
272
protestantes.
- Deixe-me vê-la, - disse eu.
- Não a trouxe, - respondeu João Maria - porque é pesada. Deixei-a numa
casa longe.
Conversando ainda, João Maria atacou um confrade, dizendo:
- Frei Redento mandou matar um bugre.
- Mentira! – respondi. – Frei Redento nunca deu ordem de matar um bugre.
Fiz em seguida algumas observações e proibí-lhe de batizar crianças, como
fazia, dizendo-lhe:
- Os padres estão encarregados de batizar as crianças, mas não o senhor. Se
encontrar uma em perigo de vida, pode batizá-la, como qualquer outro pode
fazer; mas, fora disso, o sr. não deve batizar.
- Deixe-me batizar, frei Rogério - pediu João Maria, - porque o povo tem muita
fé comigo.
- A Igreja não consente; por isso também não consinto.
Convidei-o então para assistir, no dia seguinte, à santa Missa, em casa do
Vuca. João Maria respondeu:
- Se o sr. quiser esperar até ao meio dia depois de eu ter despachado o povo,
eu vou, porque muita gente quer remédios e custa despachá-los.
- Virou-se então para o povo que o estava rodeando, dizendo:
- Não querem remédios, meus filhos?
Várias pessoas gritaram:
272 É interessante notar que ao ler esta afirmação de João Maria, alguns pesquisadores como
MACHADO, P. P. Lideranças do Contestado. (2004), p.169, se dão o direito de “interpretar” ou
“concluir” que ele teria afirmado que “a Bíblia usada pelos padres não era a certa”.
163
- Sim, seu João Maria, quero... Eu também quero! - era uma gritaria.
Respondi com toda a calma:
- Não posso esperar até o meio dia; tenho de voltar para a cidade, mas acho
melhor que o povo venha à sta. Missa.
João Maria exclamou:
- A minha reza vale tanto quanto uma missa!
- Impossível! - repliquei; - nem as orações de nossa Senhora tem o valor de
uma missa, pois nesta Jesus Cristo vem descendo sobre o altar.
João Maria, apontando para sua caixinha, respondeu:
- Para aqui também vem.
Fiquei indignado, voltando-lhe as costas para sair. João Maria então
prometeu:
- Está bem. Amanhã cedo, com todo o povo, vou para alí.
Retirei-me para a casa do Vuca; o povo, homens, mulheres e crianças,
ficaram toda a noite com ele. O povo, supersticioso, guardava as cinzas do
fogão de João Maria, usando-as como remédio, e, no lugar do pouso, faziam
um cercado, plantando nele uma cruz.
No dia seguinte, às 4:30h da madrugada, João Maria veio com o povo para a
casa do Vuca. Trazia um bastão na mão e um cachimbo na boca. Convidei-o
para entrar na casa. Quando já estava no quarto, eu lhe disse:
- Se quer ensinar ao povo, deve dar-lhe um bom exemplo. Tenha a bondade
de se confessar.
- Já faz onze anos, - respondeu João Maria, - que não me confesso, -
desculpando-se com a existência de maus frades que não lhe permitiram
confessar-se com eles.
- Se é por isso, não faltam bons padres e bispos para se confessar.
- Daqui a um ou dois anos, - volveu João Maria, - vou visitar a S. Cruz, na
cidade de Lages; então eu me confessarei com o senhor.
(mas quem não veio foi João Maria)
- Como vigário, tenho que vigiar sobre a doutrina. Quem lhe deu a missão de
ensinar ao povo? Donde vem?
- Eu nasci no mar, criei-me em Buenos Aires, e faz onze anos que tive um
sonho, percebendo nele claramente que devia caminhar pelo mundo durante
14 anos, sem comer carne nas quartas feiras; sextas feiras e sábados, e sem
pousar na casa de ninguém. Vi-o claramente.
Celebrei a santa Missa, mantendo-se ele no meio do povo. Ao evangelho, eu
disse aos ouvintes que deviam ouvir os padres, por serem ministros de Deus;
- seguir-lhes os conselhos e ter por guia o catecismo; - que não deviam ouvir
outros, que ensinavam coisa diferente, mesmo que se tratasse de um anjo do
céu, como já prevenira São Paulo.
À narração deste episódio, as Reminiscências acrescentam:
164
O que fica dito é suficiente para formar a opinião sobre João Maria.
Infelizmente sempre há gente que parece ter mais fé num João Maria, do que
em Deus mesmo. (...) Muitas pessoas simples aceitam antes uma mentira
que julgam ser de João Maria, do que um conselho da boca do padre, que é
273
ministro do Senhor .
Esta conversa aconteceu em 1897, num lugar chamado Capão Alto,
íntegra ou ao menos parte deste diálogo entre Frei Rogério e João Maria, talvez o
façam por ser um dos poucos textos escritos que fazem memória de algumas
descrever esta narrativa, conclui afirmando que, da parte do Frei Rogério, “não foi
necessário tomar uma atitude que exigisse coragem, mas, de fato, como se vê por
entre as linhas, o fanatismo do povo era tão grande, que havia perigo em dizer uma
273 Segundo a versão de ÁVILA DA LUZ, A. Os fanáticos. (1999), p. 145, o final desta história
tem uma versão um pouco diferente. Vejamos: "Frei Rogério celebrou a Missa, que foi assistida
respeitosamente pelo monge que permaneceu, de pé, no meio do povo. Ao Evangelho, o padre
aproveitou a ocasião para exortar o povo que não dessem ouvido aos falsos profetas, mas tão
somente aos legítimos ministros de Deus e a terem, por único guia, o catecismo da Igreja. E o
padre acrescentou nas suas Reminiscências: "Infelizmente há sempre gente que parece ter mais
fé num João Maria do que em Deus mesmo; e que aceitam antes uma mentira que julgam ser de
João Maria do que um conselho da boca do padre, que é o ministro de Nosso Senhor." Também
CABRAL, O. R. A Campanha do Contestado. (1979), p. 111, ao se referir ao seu caráter e à sua
participação na missa, assim discorre: "Todos os depoimentos relativos à permanência de João
Maria nas proximidades de Sorocaba o apontam como homem piedoso, de costumes simples e
austeros, de vida rigorosamente sóbria e severa, humilde, na solidão do seu abrigo tinha apenas
os olhos e o pensamento voltados para Deus, em louvor de quem entoava os seus cânticos e
proferia as suas preces. Não desdenhava assistir ao sacrifício da Missa, aproveitando a
oportunidade para, depois dela, dirigir-se aos assistentes."
165
pesquisadores do Contestado, como o segundo João Maria. Sendo que uma das
primeiro tinha uma relação mais próxima e de aceitação do clero, este não era bem
274
aceito e, inclusive, era rechaçado como “um lobo em pele de cordeiro” ou como
“falso profeta”, por agentes do clero católico. O fato de este monge batizar, dizer que
sua reza “valia por uma missa” e por ser venerado pelo povo da região do
ou freis católicos. Para alguns, João Maria “era como um padre”; para outros “tanto
os freis como João Maria procuravam só fazer o bem”; alguns ainda afirmam que
deixa-se conduzir por intuições sobre o futuro tenebroso que os espera e pelos
que o monge não aceita ser humilhado e também que não quer provocar uma
ruptura total com a igreja, por outro, enquanto instituição católica, por parte dos
275
franciscano em relação à crença e a identidade religiosa do caboclo:
Ele crê em Deus, mas não crê que Deus é o único ser onipotente, que esteja
presente na sagrada hóstia. Se lho dizem, simula crer, porém no fundo d’alma
não crê ou, no mínimo, duvida. Entretanto tem medo de Deus, temendo a sua
vingança, procurando aplacar a sua ira por meio de promessas e orações
fortes. Por outro lado julga que Deus perdoa, tudo consente e permite, uma
vez que se lhe dê uma satisfação. O essencial é cortar a ira de Deus
desencadeada por um mal feito, antes que ela venha a explodir. Agora, com
os santos é outra cousa. Estes não se devem ofender e nem tão pouco
agravar. Eles são os poderosos bem-feitores e amigos, de todas as
aspirações e desejos, mas também terríveis vingadores em caso de agravo.
Impressionador é o seu culto das almas. Estas valem tanto quanto os santos,
mas com a diferença que as boas são as que estão no céu e as temíveis
andam errantes pelo espaço, são as almas penadas. Reza-se pelas almas,
faz-se-lhes promessas várias e pede-se-lhes arranjos disto e daquilo. Morre
uma pessoa à beira da estrada, marcam o lugar com uma cruz e nenhum
caboclo ali passa, sem fazer uma oração pela alma. Também nenhum passa
diante do cemitério sem fazer uma oração pelas almas, mas, depois que
passou, também não olha para traz, porque alguma alma errante pode vir
atrás dele... O santo que o caboclo adora, não é um ser espiritual que habita
as regiões celestes, é a imagem visível e palpável de tal ou qual santo. Deste
santo exige-se tudo: que cuide da saúde dos da casa, que traga riquezas e
bem estar, que guarde a casa contra malfeitores e que castigue os inimigos.
Para o missionário, essa forma de viver e compreender a religião denota
que aqueles pudessem tornar-se católicos de verdade. Com isso não significa que
também não houvesse troca cultural e interesse, por parte também dos
impulsionados pelo desejo de sacrificar-se por uma causa ou pela palavra de Deus,
275 Apud., SILVA, E.A. A Província da Imaculada Conceição. (2000), p. 303-304. Silva não
identificou o autor do artigo publicado na revista VIDA Franciscana, p. 26-29, dez. 1941; na qual
são citadas apenas as iniciais, H.P.Z, do autor.
167
não foi apenas um homem - dizem muitos filhos ou netos dos que o conheceram -
à moda dos santos da cultura popular. Ninguém possui dele uma imagem antiga,
seja de madeira, de gesso ou outros materiais, somente nos últimos anos é que
houve algumas tentativas de representá-lo em imagens, mas são poucos os que não
possuem uma foto sua e muito menos os que dizem nunca ter recebido uma graça
ou um milagre seu.
deduzir disso que, também, deve haver uma realidade de fundo ou uma mensagem
nelas impregnadas, que a cultura cabocla entende ser necessário preservá-la. São
símbolos não se limitam a um mero fenômeno reflexo de uma realidade vivida, mas
277
são parte fundamental desta realidade e, como tal, dotados de eficácia real.
remédios aos doentes, sabedoria aos incultos, coragem aos fracos, solidariedade
se alguém foi capaz de ser assim ou de fazer isso, outros também poderão e
deverão sê-lo.
Maria quando "morto”, ou antes, "desaparecido", porque era crença geral que não
castigos e do "fim do mundo" para breve, tempos estes, em que “o sangue ia correr
sobre a terra como rios”, porém a todos passava uma mensagem de solidariedade e
de paz. Até que ponto ele realmente teria anunciado catástrofes e a guerra que
estaria por acontecer pode ser questionado, mas o que importa aqui é perceber que
a importância de sua mensagem é tamanha que, mesmo sendo talvez apenas algo
que posteriormente fora atribuído a ele, ainda hoje isso é lembrado como mensagem
280 O Sr. Aparício Ferreira da Silva, residente em Lebon Régis SC, no depoimento concedido a
esta pesquisa, afirma ter carregado muitas vezes consigo o quadro com a foto de São João
Maria nas suas viagens. Conta inclusive que, “em certa feita, passando por um mato a cavalo,
um tigre parou na sua frente e não o atacou”. Depois acrescentou: “eu estava com o quadro do
santo”. (Cf. Arquivo pessoal do autor, pasta 3, fls. 01).
ou profecia sua.
Era humilde e por isso respeitado e estimado por todos. Ninguém ousava
monge é um tipo especial que convém ser conhecido. Ele conversa com os
moradores sem ostentação, sem impostura, sua conversa é calma, como quem fala
para si só, porém todos o ouvem, todos lhe obedecem; sua figura é humilde, porém
fontes. Uma das ervas que mais receitava, era uma "erva do campo", que depois foi
contra muitas doenças. Aconselhava aos que encontrava que deviam plantar
282 FACHEL, J.F. Monge João Maria. (1995), p. 50. Dourado era médico e coronel das forças
federalistas e teria conhecido pessoalmente o monge João Maria.
283 A partir da memória popular ouve-se dizer que era uma bandeira branca com um pomba
vermelha desenhada ao centro.
285
constituída sob a orientação do monge.
Retomando o que já foi afirmado, parece prevalecer a idéia de que sua
longínquos iam em busca de tais curas afamadas. Trazia junto ao pescoço alguns
era sinal de proteção, saúde, bênçãos e graças. Consigo trazia também a tradicional
cuia e respectiva bomba de prata para o chimarrão, para o qual também aceitava
permaneceu no coração dos excluídos de uma grande extensão do sul do Brasil. Foi
e ainda demonstra afeição, carinho, respeito e devoção. Sua memória não foi
A santidade de João Maria, que noutros tempos foi visto como “ignorância
286 VINHAS DE QUEIROZ, M. Messianismo e conflito social. (1977), p. 52. Cf. SINZIG, Frei P.
Frei Rogério de Neuhaus. (1939), p.153-158.
172
Observa-se que ‘São João Maria’ passou a integrar o rol dos santos mais
venerados pelos caboclos da região, inclusive sendo invocado nas rezas de terço e
(o padroeiro dos violeiros), de São Benedito (o santo negro), do Anjo Custódio (da
289
adaga inflamada), de São João Batista, entre outros. Aliriano Anacleto da Silva,
ao dar um depoimento para esta dissertação (cf. anexo nº 04), chegou a considerar
que “pra falá a verdade, Jesus deixou São João Maria no lugar dEle pra falar a
verdade, pra explicar tudo certinho, fazer cura, fazer beleza, fazer só o que é
preciso...”
permanecem tanto nas portas dos casebres, como nas casas mais abastadas de
guardadas em local apropriado. São orações, quantas vezes mal redigidas, que
288 São Sebastião era um dos santos realmente mais famosos na região do Contestado.
Segundo MACHADO, P. P. Lideranças do Contestado. (2004), p. 72, “uma imagem de tamanho
natural deste santo circulou pelas igrejas das ‘cidades santas’ de Taquaruçu, Caraguatá, Bom
Sossego, Caçador Grande, Santa Maria, São Miguel e Tamanduá.” Segundo Miguel Correia de
Souza, (cf. relato nº 5) “São Sebastião para nós era um santo poderoso. Para a força ele era o
chefe dos jagunços. Prenderam ele. O coitado sofreu com nóis, andou amarrado e puchado...”.
que consolava os aflitos lembrando-lhes a infalível justiça divina. Ele disse que a
sua existência cobriu-se com o manto da lenda, do mistério e do romance, na
voz do povo, nas trovas dos violeiros, nos prosas ao pé do fogo, nas rodas de
chimarrão. De boca pra fora é o seu João Maria, mas em seu coração, lá no
íntimo, arredado da curiosidade incrédula de estranhos, no altar da sua fé, é o
São João Maria.
Por mais que João Maria não tenha sido julgado, nem revolucionário, nem
pareça. Havia no seu discurso uma declarada aversão contra o governo republicano
e uma proposta não bem definida sobre um modelo de governo e de sociedade que
defendia.
muitos membros classe dominante ficavam inquietos com a sua presença. Algumas
classe, João Maria partia da Palavra de Deus que, por sua vez, chamava para a
Gumercindo Saraiva e, por sua vez, dos federalistas que se opunham aos
290 Cf. THOMÉ, N. São João Maria na História do Contestado. (1997), p58.
174
passou a combatê-la. Atribui a ela uma série de males que já estavam ocorrendo e
291
outros que estariam por acontecer. Percebendo que a república cometia maiores
prejuízos à população sertaneja que a antiga monarquia, ele passou a anunciar, por
onde passava, que haveria grandes calamidades e que, para se preservarem delas,
ameaça ao seu poder. Pelo fato de que alguns monarquistas tentavam manipular os
logo assumiu com João Maria a causa da monarquia. Porém, por mais que pareça,
governo, e sim uma monarquia utópica e sagrada: "a lei de Deus". De qualquer
forma isso favoreceu para que fosse colocado na boca e no discurso de líderes do
292
campanha política de caráter monarquista e anti-republicana.
o povo caboclo do interior do país foram consideráveis. Um deles foi o fato de que
passaram para o controle dos Estados e, assim, em muitos casos deixaram de ser
sido uma espécie de gatilho, um dos pontos de partida que desencadeou o conflito.
para os seus pais indígenas, o maior valor da terra é o simbólico. A terra não é para
292 Da mesma forma como os Canudenses foram tachados incultos, fanáticos e ameaçadores
da república, também em relação ao Contestado, especialmente a partir do Rio e de São Paulo,
os jornais excitavam os republicanos com notícias de que, apoiados pelos monarquistas,
fanáticos estavam se juntando aqui e acolá contra a república, e que teriam armas
moderníssimas e treinamentos e instruções comandadas por oficiais estrangeiros, com o fim de
restaurar a monarquia. Cf. ALENCAR, F. (org). História da sociedade brasileira. (1985), p.207,
“Os grupos dominantes necessitam criar justificativas para os atos destinados à consevação do
seu poder. Assim, os sertanejos do Contestado e de Canudos foram combatidos sob a acusação
de desejarem restabelecer o regime monárquico.”
293 Zeno de Souza Matos, um dos entrevistados desta pesquisa, afirmou que, na época, a
questão das terras não era um problema, pois quem quer que chegasse à região, de tanta terra
que havia, era só abrir uma clareira em meio a mata e ir fixando os limites de seu novo terreno, e
assim iam se edificando as novas propriedades (Cf. anexo, nº 03).
176
Para eles, a terra e também as matas possuem alma, espírito. É como uma mãe que
acolhe a todos os seus filhos e não permite que algum deles seja excluído de seu
seio. É o mesmo solo onde os inimigos de seus filhos, sequer devem ser nela
enterrados. Se não são seus filhos, também não serão bem vindos no seu seio. É
294
uma terra sagrada.
uma "limpeza geral" da região, já que a grande maioria do povo que ali habitava era
pessoas que habitavam a região, porém sem o título das terras, e por isso a beira da
exclusão.
Brasileiros dos terreno que pertence a nação e vende para o estrangeiro, nós agora
estemo disposto a fazer valer noço direitos.(...) Nóis não tem direito de terras, tudo é
295
para as gentes da Oropa". A partir disso, podemos entender a guerra do
Contestado como protesto, resistência e luta pela sobrevivência de um povo em vias
de ser massacrado.
295 STULZER, Frei A. A guerra dos fanáticos, (1982) p. 42; D’ASSUMPÇÃO, H. T. A campanha
do Contestado. (1917), vol.I, p. 245
177
296
Diabo". Não que ele tivesse um conhecimento científico e histórico da política
destes regimes nos diferentes países, mas o que é certo é que ele criou uma
No regime imperial, o povo não era reconhecido como cidadão e não era
beneficiado pelo governo, mas também não tinha deveres ou grandes obrigações
para com o mesmo. Por exemplo, os impostos, que no império eram irrisórios ou
tornando cada vez mais pesada. Também quanto ao controle das terras, que antes
era feito pela União. Com a proclamação da república tal controle ficou por conta do
Estado e, por sua vez, dos coronéis, que exploravam e escravizavam os demais.
mais que, em alguns momentos isso se parece mais como forma de legitimar a
república, do contrário seria mais difícil justificar a necessidade “de limpeza” da área.
De qualquer forma, tanto da parte dos coronéis e militares, quanto da parte dos
296 VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p.62, AURAS, M. Guerra
do Contestado. (1995), p.51, entre outros, afirmam que declarava sempre o segundo João Maria,
a quem o quisesse ouvir, que a República era a ordem do demônio, enquanto a monarquia era a
ordem de Deus. Monarquia esta que seria, segundo Vinhas de Queirós, um sistema de vida
oposto ao regime dos coronéis, mas que João Maria nunca se opôs ou confrontou radicalmente
os poderosos da área; e a república, segundo Auras, estava ligada a um contexto que espoliava
e, por esta razão, tinha que ser negado.
297 OLIVEIRA, F. O. de. O jagunço. (1978) p. 12, neste seu romance, coloca na boca do Seu
Morais, um lutador nos redutos do Contestado: "Qual República! São João Maria é que estava
certo. É pela vontade de Deus que os casais tem filhos e é por ordem divina que os filhos devem
obediência aos pais. É a vontade de Deus que faz o rei, que é o governo. Esses governos que
mudam a cada passo... se eles quiserem enriquecer não há terras que chegue. A palavra do Rei
é uma só, não muda. É como a palavra de Deus. Governo da República, esse é governo do
diabo, só engana. Cada vez que muda o governo, muda a palavra."
178
Sendo coisa do diabo, era preciso dar fim dela. Era preciso lutar contra ela.
E, entre outros, esse passou a ser um dos motivos pelos quais cada vez mais gente
corria para Taquaruçu, a fim edificar uma “cidade santa” e engrossar as fileiras
contra a República. E, como já foi afirmado, não precisava ter medo de entrar nessa
luta, pois caso não vencesse, quem estivesse na causa santa e fosse morto, logo
298
mais ressuscitaria no exército de São Sebastião.
João Maria tenha deixado uma mensagem em defesa da ecologia. Mais do que
vida do ser humano num sentido amplo. Para ele, a natureza era regida pelas suas
Entendia que a natureza era como um corpo humano. Caso algo desse corpo fosse
calamidades e destruição.
Bom Jesus. Neste local foi edificada uma pequena igreja onde eram realizadas duas
festas anuais em honra a “São” João Maria. Mesmo não citando o autor da poesia
299
que segue, parece que foi neste local, que ele a coletou .
...Sempre tinha suas resposta
Tudo certo respondia:
Se Deus fez os dias prós home
Não os home é que é pr'os dia!
Todos dia e hora é santa,
Santo é o dia que se trabáia:
O sór, a lua, a chuva, as pranta
Cresce e anda, nada faia!
por João Maria, nas suas conversas com os caboclos e caboclas da região do
Contestado. Nela pode-se perceber a importância que João Maria dava à natureza.
exploradores, com o passar dos tempos, teria tido uma postura mais "politizada" e
300
profética.
Mesmo sendo outra a fase de vida do monge, o que mais é lembrado hoje
é a valorização do aspecto religioso de sua missão. Porém, devido à devastação da
população, nos últimos anos a mensagem ecológica de João Maria está sendo cada
“folclore” sobre o Contestado. Entre muitas histórias e lendas que ele resgata da
300 Alguns pesquisadores mais recentes defendem a hipótese que não seria uma segunda fase
da vida de João Maria, mas sim um segundo João Maria, o João Maria de Jesus.
180
sobre religião, que dois homens que o conheceram, fizeram a ele e obtiveram as
Sendo uma mensagem que não foi escrita pelo próprio João Maria, deve ter certa
ressignificação, pelo fato de "ter sido ouvida daqui e dai" e então fôra escrita
302
sistematicamente. Ele assim nos fala:
No transcorrer dos festejos travamos conhecimento com o capelão Emídio
Conceição, afirmando que gostaríamos de conhecer mais de perto os
ensinamentos de João Maria, do qual nos declarávamos simpatizantes. Logo
nos perguntou se éramos católicos. - Bem, - retorquimos - consideramo-nos
apenas cristãos. A resposta satisfez. Prosa vai e prosa vem, o certo é que
saímos da festa mimoseados pela simpatia da Ordem. Passados alguns dias,
aparece-nos o Emídio com uma velha caderneta toda ensebada, contendo
respeitável receituário de benzimentos e simpatias (dos quais nos
arrependemos não haver copiado tudo) onde continha uma série de preceitos
que colecionara dos ensinamentos de João Maria: "os quais ouvira daqui e
dali". Um verdadeiro tratado de ecologia.
Mas antes de citar este interessante tratado de ecologia atribuído a João
deste monge não era defender a natureza em si mesma, mas sim defendê-la para
que o ser humano daquela geração e também das gerações vindouras, pudessem
destruí-las. Ele sabia que o problema não estava na natureza, mas em como melhor
de Erich Fromm ele entendia que “o homem é o único animal para quem sua própria
existência constitui um problema que tem que ser resolvido e do qual não pode
303
evadir-se.” Não pode voltar ao estado de plena harmonia e adaptação com a
natureza, se é que já ouve esta fase, mas também não sabe onde irá chegar se
humano, foi um dos aspectos que moveu João Maria em sua missão.
da ciência, dentro de uma filosofia positivista e utilitarista, aparecer um texto que liga
como um texto sagrado, por entenderem ter sido escrito “diretamente” por São João
serem respeitados por todos, ele insiste no cuidado para com a terra, a água, os
animais e toda a natureza, enfim, no cuidado para com a vida humana e a de toda a
Criação.
ensinamentos de João Maria que serviam como parâmetros para julgar se deveriam
Linhares lhe declamou e disse ter aprendido de seu pai. Essas décimas revelam
diversos valores aprendidos de João Maria, tais como o respeito, a defesa da vida,
O aleive é um crime
Quem comete tá ralado.
Avarento é réu de curpa
Já tá preso e condenado;
Avareza é loucura
Custa muito sê curado.
Não se perca o respeito
Às famíia de quem tem
Quem não qué que mar iê faça
Nunca faça pra ninguém.
Nem sonhando tire a vida
Por mau impre assassino;
Quem tirá o que não deu
Arrasô co seu destino.
Se arguém matá com raiva
Ave, bicho ou alimá,
Faz um crime, é réu de curpa
Lá no Grande Tribuná.
Tenha sempre tua famíia
Como santos do teu Lar
Pro seu bem trabaie sempre
Que Deus há de te pagar.
Ninguém força tu tê fiio
Mas se um dia fíios tivé
Eles são o resurtado
Doque deles tu fizé.
Premiado ou reprovado
Pela sua inducação,
O que deles tu fizé
Cedo ou tarde pagarão.
Se tu for um camarada
Zele tudo do patrão,
trabaiando com respeito
Cuide bem da obrigação.
Sendo dono ou encarregado
186
De fazenda ou de empreitada:
Operário é como fíio
Cuida bem dos camarada!
306
Segundo Paulo P. Machado, estes “mandamentos” ou décimas
atribuídas ao monge
procuram recuperar um tipo de sociedade que as pessoas, naquela época, já
não identificam como parte de seu mundo real, ou seja, os patrões não agiam
como pais e os camaradas, em contrapartida, não demostravam zelo nem
responsabilidade em relação a seu trabalho. Havia ódio e mentira entre os
homens, existia uma consciência de que a avareza dominava as relações e,
justamente por isto, os mandamentos eram difundidos como necessários a
uma vida justa.
Pode-se dizer que a mensagem e a prática de João Maria não difere
307
fundamentalmente da que atualmente é sugerida por Leonardo Boff: “que o ser
humano tenha os pés no chão e a cabeça aberta para o infinito; e o coração seja
aquele que une chão e infinito, abismo e estrelas, local e global.” Ele diz que “para
continuando com Boff, pode-se dizer que aquilo que ele sugere, enquanto caminho
anexo, nº 04), chegou a considerar que São João Maria “não deu ordem de judiar
nem de uma formiga.” João Maria dizia que “a arvore é quase bicho, bicho é quase
gente”. Além de insistir no cuidado para com as matas e animais, ele atribuía um
mais valorizados, deste santo popular, é sem dúvida nenhuma a água da fonte, a
água das nascentes, a água que nasce na rocha, a água fresca, limpa e cristalina.
Esta água era, para ele, um símbolo sagrado e, além disso, era também
um remédio usado para curar muitas pessoas das mais diferentes enfermidades. Era
através da água pura, ou, quando muito, misturada e fervida com algumas ervas
medicinais, que o Cristo sofredor se voltava para o enfermo e o curava. Sobre este
capítulo.
308
De forma semelhante à que atualmente o monge Marcelo Barros tem
falado sobre a água, outrora o monge João Maria também falava. Que se fazia
necessária uma nova experiência espiritual com relação à natureza, à água e aos
seres vivos.
Ao olharmos para o mundo, vemos que a sociedade é destruidora e
desrespeitosa com o ser humano, com a terra e com a água. Nossa vocação
humana e espiritual exige que trabalhemos para mudar esta situação. Para
isso, é preciso ir às raízes do problema. Não bastam campanhas sociais e
econômicas. Há também um elemento cultural a ser respeitado. Há povos
que tem o seu jeito tradicional de lidar com a terra e a água. Não será no
círculo dos grandes que se encontrará força para mudar o rumo do mundo. É
preciso desenvolver uma espiritualidade nova, um novo modo do ser humano
se relacionar com a terra e a água.
309
Enfim, vale afirmar ainda, que da mesma forma como Alves fala que
Marx sonhou com uma espécie de “Cidade Santa”, uma sociedade livre, sem
opressores e oprimidos, sem classes sociais, assim também se pode dizer que foi o
sonho de João Maria e de milhares que a ele se juntaram no Contestado. Claro que
religiosa e mística. Assim mesmo, este desejo de construir uma “cidade santa”, foi
originais pouco se sabe, mas sua autodenominação de João Maria e José Maria é
neste, e, este, por sua vez, também a ele(s) ofereceu sua vida e sua mensagem, a
monge com este nome. Há uma síntese ou uma ressignificação também das
mensagens originais dos monges, seja quantos forem, onde o que é específico de
cada um, deixa de existir, e aos poucos, resta apenas uma única e mesma
mensagem. E este santo, independente dos seus vários nomes de origem e de suas
Mas, haveria uma razão para o fato de, na atualidade, o verdadeiro e único
santo se chamasse João Maria, sendo que, durante a guerra do Contestado, quem
foi mais invocado e fez história, vivo ou morto, foi José Maria?
Contestado, foi um marco para a sua cultura e a sua vida. Depois de João Maria,
tudo consta que ele foi o líder carismático e místico mais importante da época.
310
Segundo Machado, “José Maria é mais uma figura de passado nebuloso, pouco
se sabendo sobre suas origens. Sua aparição pública na região contestada ocorreu
apenas no ano de 1912, quando se desencadearam diversos episódios que
seu nome original fosse Miguel Lucena de Boaventura. Ele próprio nunca o
reconheceu como seu nome próprio. Sendo, desta forma, duvidoso este nome,
optar-se-á aqui por falar apenas de “José Maria”, porque foi assim que ele se auto-
denominou e foi assim que se tornou conhecido e até venerado por muitos no
Contestado.
povo do Contestado, ele passou por uma certa metamorfose, donde seu passado,
pelos caboclos e caboclas do Contestado, que então esperavam pela volta de João
Maria e, pelo fato de este estar demorando para voltar, acreditar que Deus estaria
parte da população local, um novo messias era bem vindo. Fazia-se necessário
alguém que ouvisse o seu clamor, conhecesse o seu sofrimento, desse uma
que esperava o seu retorno, logo espalha-se a notícia de que o monge está de volta.
Está em Campos Novos e logo virá para a região de Taquaruçu. Só que desta vez é
o José Maria. Seria um irmão de João Maria? Muitos se faziam esta pergunta. E, ao
fazê-la para o próprio José Maria, este não afirmava nem negava.
Fortalecendo assim a crença de que era o mesmo profeta que voltara. Isso em
princípio gerava uma certa confusão entre aqueles que haviam conhecido o João
Maria, mas entre os demais era aceito o mito ou a crença que estava de volta o
costumava andar descalço; às vezes usava um calçado de couro, feito por ele
mesmo, e meias grossas que lhe prendiam a boca das calças. Gostava de fumar
cachimbo e, tanto quanto João Maria, tomar chimarrão. Usava um boné de pele de
191
jaguatirica adornado de penacho e fitas, muito parecido com o do velho João Maria.
José Maria fazia questão de se parecer com João Maria. Além de receitar
ervas, curava, benzia, batizava e dava bons conselhos. Pela atenção que dava ao
povo, pelo seu modo de aconselhar, pelas curas por meio dos remédios, fazia com
que o povo realmente lembrasse João Maria. Porém, ao contrário daquele, este
longas caminhadas.
311
Machado, ao analisar e comparar o conhecimento empírico dos monges
João Maria e José Maria, afirma que “ao que parece, José Maria possuía um
conhecimento empírico bem maior do que o seu antecessor, pois este aviava
Pode-se questionar esta afirmação de Machado por dois motivos, primeiro porque é
João Maria.
propôs a montar uma Farmácia do Povo e para isso pedia que, especialmente os
fato de pedir dinheiro para montar esta farmácia, futuramente passou a ser
entendido como oportunismo, já que a farmácia nunca existiu. Sabe-se porém que,
auxílio de algumas virgens fazia consultas e receitava chás e orações que deviam
Campos Novos, e o que tudo indica teria vindo da região do Irani. Isso se sucedeu
décadas, que esta figura emblemática, teria sido um desertor do exército do Paraná.
Suas andanças na região duraram pouco tempo. Andou pelas margens do Rio do
312
Peixe, alcançou as regiões de Lages, Curitibanos e Campos Novos.
perseguido por alguns coronéis de Curitibanos que, por sua vez, mobilizaram os
monge empunhou armas e não "desapareceu" sem deixar rastros. Foi morto no
312 THOMÉ, N. Sangue, Suor e Lágrimas, (1992), p.80, afirma que "aonde quer que fosse
acampar, à sua volta numerosas romarias formavam ajuntamentos. De estatura media, cerca de
50 anos de idade, gorro de pele-de-tigre na cabeça, cabelos longos e grande barba, sua
peregrinação levou-o a conhecer melhor a gente do Contestado, os males que a afligiam, as
esperanças que a animavam, os problemas que enfrentavam".
314 Os doze Pares de França era um grupo de “discípulos” formado por vinte e quatro homens
de fé, coragem e quanto possível armados. Segundo Sebastião Costa, em entrevista realizada
por MACHADO, P.P. Lideranças do Contestado. (2004), p. 201, “os Pares de França eram os
mais corajosos e melhor lutadores. Agora este pessoal era muito religioso também, tinha muita
fé em Deus, eles sabiam coisas da bíblia quem nem os padres sabiam direito.” E, conforme
afirma VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p. 185, “os pares de
França eram considerados ‘apóstolos’ e também ‘nobres cavalheiros de São Sebatião’. levavam
consigo, dentro de patuás, orações que julgavam fortíssimas para fechar o corpo. Tais orações
parece que não só defendiam das balas inimigas...”.
193
Logo que foi morto, muitos dos que o seguiam começaram a anunciar que
expectativa de esperar o seu prometido retorno. E ele não retornaria sozinho, mas
o seu povo, contra os grandes males que os contagiavam e estariam por vir.
Por mais que os pesquisadores nos dessem “certezas” sobre a sua origem,
a única coisa que sobre isso é verdadeiramente certa é que ele, ao ser indagado
sobre isso, desviava o assunto ou respondia com metáforas. A suspeita de que seria
primeiros tempos a devoção era tamanha que nada se podia sequer suspeitar que
315
pudesse desabonar José Maria.
Aos poucos, milhares de pessoas foram se juntando em torno de José
Maria. No início da guerra, juntaram-se nos redutos grande parte dos oito mil
316
trabalhadores que haviam sido despedidos em 1910, da construtora da Estrada
de Ferro, sem direitos e sem receber os últimos salários, e não foram levados de
volta para suas cidades de origem. Somam-se a estes, outras centenas ou talvez
milhares que haviam sido expulsos por empresas de colonização existentes na
315 A devoção a José Maria e a de João Maria era de igual importância para os sertanejos
durante a guerra do Contestado. Evidentemente que de município para município, de localidade
para localidade, e conforme a época, variavam tanto em termos de extensividade como de
intensidade, tanto na amplitude das homenagens a eles prestada como nas diferentes formas de
expressão e rituais. Não havia uma homogeneidade mas sim uma pluralidade de manifestações
e experiências ou vivências que, com o passar do tempo foram culminando numa espécie de
mito, agora vinculado apenas a João Maria. Hoje trata-se de um santo equiparado aos demais
santos Católicos de devoção popular.
316 Estes trabalhadores, na sua grande maioria, teriam vindo do Rio de Janeiro, Santos,
Salvador e Recife, onde, segundo MONTEIRO, D. T. Os errantes do novo século. (1974), p. 43,
foram recrutados mais ou menos à força e, terminada a construção, não foram recambiados para
os pontos de origem. Conta que no ano de 1909, o número de trabalhadores variou entre 8 a 10
mil, conforme o pesquisador.
194
região onde foi construída a estrada de ferro, próxima do rio do peixe e do rio Timbó,
forçado a fugir para o Irani, José Maria foi recebido com foguetórios e vivas na festa.
dentre o povo, a ele recorriam pedindo perdão dos seus pecados, outros pedindo
Um dos grandes feitos de José Maria, que logo lhe deu fama de milagreiro
médicos. Fala-se que o rico fazendeiro ficou tão agradecido que lhe ofereceu muitas
terras e certa quantidade de ouro, sendo que, para espanto geral, ele recusou tudo
isso. Com isso e também com a notícia de que teria ressuscitado uma jovem,
identificação com João Maria se tornou tão próxima, a ponto de ser com ele
confundido.
317
menino Manoel Alves de Assunção Rocha, denominado de “menino Deus” .
Porém, possivelmente este foi apenas um motivo apresentado por alguns coronéis
uma grande irmandade, coordenada pelo próprio José Maria e denominada ‘quadro
Assim mesmo, não é falso afirmar que José Maria, seguindo o pensamento
Para ele a República era o então atual sistema de governo considerado perverso e a
monarquia seria o nome dado para o governo de Deus na Terra; isso não significava
Diz a história que, certa feita, o monge não quis atender ao chamado do
republicano Coronel Francisco de Albuquerque, que dizia ter uma pessoa enferma
José Maria teria dito que "a distância entre ambos era a mesma". E com isso teria
provocado a ira por parte deste, que na época era superintendente de Curitibanos-
317 Até hoje a coroação do Imperador faz parte de uma tradição popular, quando dos festejos
da Folia do Divino. É uma festa que tem como momento importante a coroação do imperador,
que passa a ser o Imperador festeiro, uma espécie de dono ou de responsável pela festa. Não
há qualquer conotação política contra a república nem em prol da monarquia. A acusação feita
por cononéis da região, de que os caboclos haviam restaurado a monarquia, é um fato que não
pode ser ignorado, nem minimizado. Foi um dos principais argumentos usados contra os
caboclos rebeldes. E como “o fantasma de Canudos” era uma questão que ainda continuava
viva e não estava resolvida entre os republicanos, ao ouvirem que um novo Canudos surgia no
Sul do Pais, trataram logo de enviar todas as forças possíveis para acabar com o movimento.
196
se aguçou quando o mesmo coronel soube que José Maria estaria hospedado na
hospedeiro, por parte deste mesmo povo. Conta-se que a reação do Coronel
imediatamente, pediu ao governador, o Coronel Vidal Ramos, seu compadre por três
preocupou alguns coronéis locais, que logo procuram dar fim àquele agrupamento
para defender as terras que consideravam estar dentro de seu território. Mesmo não
se interessando pelas disputas dos limites territoriais entre Paraná e Santa Catarina,
José Maria “foi levado” para dentro deste conflito.
fanáticos catarinenses havia invadido a zona litigiosa de sua jurisdição, o que foi
território.
homens bem armados, comandada pelo coronel João Gualberto Gomes de Sá.
de Santa Catarina por questões limítrofes, José Maria, ao perceber que ainda assim,
320
realmente seriam atacados, pouco antes do combate, disse :
Agora é a polícia do Paraná contra a força do mato. Não temos nada contra
Santa Catarina e de lá fomos expulsos. Nada temos contra o Paraná e o
governo quer nos dar guerra. Vocês se acodem comigo para conseguir a cura
de suas doenças, uma idéia, um conselho para os seus padecimentos. As
320 FILIPPE, E. O último Jagunço, (1972), p.169; Há também outras versões sobre as causas
de sua mudança para o Irani. Entre elas prevalece a que José Maria teria sido informado que
militares de Florianópolis e de Curitiba se encaminhavam em direção ao quadro santo de
Taquaruçu. Essa explicação vem acompanhada do fato de que um dia, pela manhã, ainda
sonolento, ele falou para os que o acompanhavam: “Chii, que barulho de telegramas!” E garantiu
ao grupo que forças da Polícia e do Exército já estavam a caminho do reduto. E continua:
“Vamos embora para o Irani, no Paraná, onde já estive e onde tenho muitos amigos.” Também
teria dito: “Não quero que ninguém me siga”. Fato é que, segundo diferentes pesquisadores,
foram 20 ou 40 ou 60 homens fortes, valentes e armados, que decidiram seguir o monge,
mesmo sem o consentimento do mesmo. Alguns ainda afirmam que o monge teria profetizado
três coisas: o começo da guerra, a sua morte e o seu retorno: “Lá no Irani eu vou começar a
Guerra de São Sebastião, com meus homens que lá me esperam. Marquem bem o dia de hoje.
No primeiro combate, sei que morro. Mas no dia em que completar um ano, me esperem aqui
em Taquaruçu, que eu venho com o grande exército de São Sebastião”. Instalado nas
proximidades de Irani, Zémaria volta a proclamar: “Apesar de não ter questão com o Paraná,
nem com Estado nenhum, não vim aqui com o intuito de brigar. Mas se for atacado, eu me
defendo. Brigo e dou prejuízo.” Cf. OLIVEIRA, C. A. de. A construção e a permanência do mito
de João Maria de Jesus. (1992), p. 48-50.
198
autoridades não fazem nada e não querem que ninguém faça. Nós só
queremos paz e uma terrinha para plantar o feijão e o milho, para poder
manter nossa criação. Onde ninguém venha nos incomodar, onde os políticos
não cobicem. Eles têm cobiça por terras, por gentes, por amigos e por
compadres. Os mandões estão trazendo gente de fora e dão tudo aos
estrangeiros. Esta gente que está chegando saiu de sua terra, não foi para
mandar nos brasileiros. Fazem cerca, vendem as águas e obrigam a sujeição
de nosso trabalho.
No afã de cumprir rapidamente sua missão, o Coronel João Gualberto
lidera o início da primeira batalha, de uma guerra que duraria cerca de 4 anos. A
aos golpes do facão foi morto João Gualberto e, por uma bala, José Maria. Curto foi
o tempo em que este monge viveu junto aos caboclos do Contestado, não mais que
meio ano.
de José Maria, boa parte dos duzentos homens que o acompanhavam foram
322
mortos.
profetizado que morreria no primeiro combate no Irani, mas prometeu também que
considerado um grande herói pelas elites paranaenses e pelos militares, sendo hoje
facilitassem a sua volta. Alguns pedaços de xaxim e galhos de árvores com folhas
sobre o seu cadáver eram suficientes. Para alguns dos seus “discípulos” ou
“devotos” ferrenhos não havia dúvidas de que passado um ano de sua partida, ele
322 Alguns pesquisadores afirmam que ele teria rumado para o Irani com 60 homens. Porém
afirma-se também que, no momento do combate, já seriam seiscentos os homens reunidos em
torno de José Maria.
do movimento que ele lidera, mas não foi isso que aconteceu com José Maria. A sua
morte no Irani não significou derrota, para os seus seguidores, mas sim martírio e
heroísmo. Repercutiu na região a compreensão de que ele teria doado sua vida na
defesa dos seus “filhos” ou “irmãos”. E isso serviu de inspiração para muitos. A
"aparecer" para algumas pessoas em Taquaruçu, que o viam, ou seja, que tinham
326
visões dele e também recebiam mensagens suas. A notícia de sua volta,
especialmente em "ordens" sobre como enfrentar a guerra que estava por se iniciar.
Apenas alguns ou algumas virgens podiam receber suas mensagens que, somente
325 Segundo MACHADO, P.P. Lideranças do Contestado. (2004), p. 189 e 191, o que houve foi
um processo de “reelaboração mística” ou “reelaboração religiosa” onde se processou uma
transformação da figura de José Maria de simples curandeiro a líder santificado, com qualidades
proféticas.
326 A parapsicologia explica que podem existir visões sem a ajuda dos olhos. São imagens que
aparecem na mente humana, como sinais desordenados, e que somente aos poucos tendem a
certa ordenação. Seria uma espécie de clarividência ou de visão no sentido da imaginação ou da
percepção de objetos ou de mensagens invisíveis aos olhos ou ouvidos “biológicos”.
que Euzébio, juntamente com Chico Ventura e Manuel d'Assunção Rocha, com seus
de que José Maria havia “voltado” e os convocava para construir a “Cidade Santa”
facínoras.
José Maria. Esta atitude de Euzébio bastou para que, a cada dia que passava, mais
e mais pessoas também sonhassem ou acreditassem nos sonhos e visões que lhes
eram comunicados e também se dirigissem para Taquaruçu, a fim de, junto aos
328
demais, esperar a volta ou a ressurreição de José Maria.
Diferentemente do que se pode constatar em muitas outras tradições
328 OLIVEIRA, F. O. de, O Jagunço. (1978), p.16s, conta a história de um tal de Seu Morais que
"estava abichornado e, pior ainda, em pouco tempo de sono, sonhou com o monge São João
Maria, que o chamava para Taquaruçu. Contou para Dona Edite e esta também se
impressionou. O monge aparecia, e ele o via, bem claro, e ouviu que lhe disse que abandonasse
tudo e seguisse com os outros para Taquaruçu. Era a única solução...".
202
329
homens e especialmente as mulheres mais idosas , no Contestado os “primeiros
anos, tido por vidente e mediador entre o monge e os seus seguidores. Este foi
novamente ativados.
anunciava: "Os velhos vão ficar jovens. Todos vão ser felizes".
Manuel "se encontrava" diariamente com José Maria, a fim de receber suas
329 ESPIN, O. A fé do povo. (2000) p. 31, afirma que “o catolicismo popular latino depende
especialmente das mulheres mais velhas das famílias, consideradas sábias. Elas são o centro e
o esteio das famílias e o catolicismo popular latino dá a elas maior ênfase. São elas as
hermeneutas culturais e religiosas de nosso povo. São ministras e portadoras de nossa
identidade.”
330 Segundo ALBUQUERQUE, M. M. de. Contestado. (1987), p.72, "ali, com sua mente tomada
pelas alucinações de seu filho Manoel, que se tornou vidente, e de sua neta Teodora, a virgem
que via o monge surgir do mato e conversava com ela, deu início a sua funesta carreira de
fanática." OLIVEIRA, F. O. de. O Jagunço, (1978) p. 17, conta que após sua morte no Irani,
"menos de um ano, foi o prazo para o "monge" manifestar-se. Uma de suas virgens, Teodora,
teve uma visão: José Maria esperava apenas a reorganização de seu exército. Queria a
reedificação do acampamento de Taquaruçu. Todos acharam normal a ordem. Afinal Teodora
era a virgem preferida do 'monge'".
203
ordens. Este moço não ficou muito tempo na liderança porque, certa vez, voltou de
seu encontro com José Maria trazendo a seguinte ordem: deveria dormir com três
virgens, durante trinta dias, a fim de receber por intermédio delas a mensagem
divina. O povo aceitou, mas logo ficou escandalizado por saber que as jovens
331
haviam sido seduzidas.
Manuel, em quem deu uma surra, com vara de marmelo, para tirar-lhe de vez a
santidade. Joaquim, também ordenou bater em sua avó e pôs o avô de castigo por
eram realmente de José Maria, mas o que não se pode negar é que foram as
ousar resistir e guerrear até a morte, por seus direitos, desejos, sonhos e
convicções.
exterminado, como havia profetizado Joaquim: "A Cidade Santa será destruída".
Isso aconteceu nos primeiros dias de fevereiro de 1914, quando Taquaruçu foi
332
montanha e um esquadrão de cavalaria, arrasaram Taquaruçu.
333
Segundo conta Alves Cerqueira, “fazia pavor e pena o espetáculo que
humanos, pena das mulheres e crianças que jaziam inertes por todos os cantos do
Antes, porém, que os soldados chegassem, grande parte dos que estavam
atacar, fugiram para Caraguatá, onde já havia outro reduto. Ao que tudo indica,
agora sim é que verdadeiramente a guerra teve início. Até agora eles procuravam
fugir, doravante, como resposta à violência sofrida, eles passaram a ansiar por
vingança.
Taquaruçu, depois em não menos de quinze redutos, para “vingar-se”, ou seja, para
333 Cf. PEIXOTO, D. Campanha do Contestado. (1916), p.159. Cf. VINHAS DE QUEIRÓS, M.
Messianismo e conflito social. (1977), p.129-131.
334 STULZER, Frei A. A guerra dos fanáticos, (1982) p. 43; D’ASSUMPÇÃO, H. T. A campanha
do Contestado. (1917), vol.I, p. 245; LEMOS, Z.A. Curitibanos na história do Contestado. (1977),
p.36.
205
que teria sido feita a Frei Rogério, por Praxedes Gomes Damaceno, quando o visitou
em sua casa, em 1912, numa de suas visitas pastorais a Taquaruçu. Praxedes que
foi um dos “apóstolos” de José Maria, tendo-o seguido e sendo ferido no Irani, falou-
335 O Marechal Hermes da Fonseca foi o presidente do Brasil nos anos 1910 a 1914, período
em que estouraram três grandes revoltas: a da Chibata, liderada pelo marinheiro João Cândido;
a de Juazeiro, liderada pelo Padre Cícero e a do Contestado.
Machado sobre este discurso, parece deturpar o que realmente o mesmo afirmou.
impor. O comando lá era dado pela virgem Maria Rosa, uma menina vidente, filha de
337 338
Elias de Souza, lavrador da Serra da Esperança . Maria Rosa era considerada
uma menina normal como as demais, mas de quando em vez, trancava-se em seu
quarto e ficava até dois ou três dias em oração. Ao voltar para a vida normal, trazia
que José Maria foi morto, a jagunçada se espalhou pelo sertão e, passado um
tempo, “quem levantou de novo o fanatismo, foi a Maria Rosa no Taquaruçu.” Assim
ele comenta:
Aquele pessoal começou a fazer festa e reza a noite inteira. Daí teve uma
noite que a Maria Rosa acordou, pulou da cama e começou a gritar: Viva a
guerra santa! Viva a monarquia! Viva São João Maria! Viva José Maria! Viva
São Sebastião! Eles vão nos ajudar a tocar a guerra! Daí aquela jagunçada
toda se colocou de joelhos na beira da cama de Maria Rosa e cismaram que
ela era uma santa de Deus. E ela deu ordem para o pessoal ir se
apresentando, para se preparar para a guerra santa.
E falando de um combate do exército, liderado pelo Capitão Vieira da
337 Serra da Esperança é hoje uma pequena comunidade que pertence ao município de Lebom
Régis-SC. São cerca de 30 famílias de pequenos agricultores e de peões das grandes fazendas
de criação de gado e de plantação do Pinus Ilhote, lá instaladas.
338 Segundo VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p.151, Maria
Rosa era uma adolescente dos seus quinze anos, loura, cabelos crespos, pálida, alegre, de
extraordinária vivacidade, não sabia ler nem escrever, mas falava com desembaraço. Andava
com um vestido branco, enfeitado de fitas azuis e verdes e de penas de pássaros. Nas
procissões ela marchava à frente, carregando uma grande bandeira com um cruz verde.
339 MACHADO, P.P. Um estudo sobre as origens sociais e a formação política das lideranças
sertanejas do Contestado. (2001), p.421.
207
Rosa, contra o reduto comandado por Maria Rosa, Miguel C. de Souza diz que ela
“tinha voz de comando, toda vestida de branco, segurando uma bandeira. Brigaram
o dia inteiro (...) até que o capitão mandou os soldados se retirarem.” E continua
naquele tempo tinha proteção, não aconteceu nada com a virgem Maria Rosa, que
340
ficava na frente dos jagunços, eles estavam protegidos, era como um milagre.”
que envolvia o povo dos primeiros redutos e o destaque a Maria Rosa como líder e
santa. Sabe-se porém, que Maria Rosa liderou o reduto de Caraguatá e não o de
mensagem do monge aos demais, aqui, ao que tudo indica, era ela própria quem
lideranças caboclas do Contestado, que não tivesse alguma relação com as “ordens”
de São José Maria. Talvez fosse tão somente uma estratégia de luta o fato de
submeterem o processo da guerra a um poder transcendente, mesmo assim, não se
pode negar que era por causa da crença em São José Maria ou em sua mensagem,
340 Miguel Correia de Souza (Cf. depoimento nº 05, anexo) também fala de Maria Rosa como
uma menina que tinha um poder extraordinário. Ele lembra que “Maria Rosa passeava com um
cavalo branco na frente da força que brigava com os jagunços. E era metralhadora e tiro daqui e
de lá, e nem nela e nem no cavalo nunca pegou uma bala.”
341 Diversas outras lideranças místicas surgiram nos redutos durante toda a guerra. Já existe
cerca de uma centena de obras que exploraram o processo da guerra. Por este motivo, não é
objetivo deste trabalho tomar conhecimento das mesmas, assim como dos demais místicos que
atuaram na guerra, como possivelmente já estaria sendo do interesse do leitor.
208
sobreviveu, pelo menos durante os anos da guerra, depois da derrota sofrida pelos
seus seguidores, aos poucos ele foi desaparecendo. Poder-se-ia dizer que ele
morreu uma segunda vez juntamente com aqueles e aquelas que o veneravam e
guerra, os descendentes do Contestado que até então tinham José Maria como
líder, resgataram uma das chamadas profecias de João Maria, que é ainda hoje
muito repetida na região. João Maria avisou que atrás dele, viria um que tomaria o
seu nome, mas que não era para ir na conversa dele porque acabaria em revolta, e
342
que este seria um falso profeta.
343
Vinhas de Queirós , referindo-se “às formas” do reduto de Caraguatá,
relata que:
Quanto às formas, de manhã e à tarde, e às procissões em que se
carregavam bandeiras brancas com cruzes no centro ou bandeiras escarlates
do Divino com a pomba do Espírito Santo, não há grandes mudanças a
registrar em relação ao que já sabemos de Taquaruçu. Acreditam que José
Maria, transformado numa pequena nuvem branca, protege o acampamento.
E que, no momento oportuno, aparecerá em toda a sua glória, não mais à
frente apenas dos guerreiros que tombaram no Irani, mas de um exército de
3000 mil homens, para conduzi-los a vitória.
342 Cf. Depoimento anexo nº 05, de Miguel Correia de Souza. Cf. MACHADO, P. P. Lideranças
do Contestado. (2004), p. 175.
344
grandiosidade, complexidade e harmonia do Universo.
O Contestado pode ser entendido não somente a partir de suas causas
além das causas políticas e econômicas, o Contestado foi também uma luta mística
submeterem ao poder bélico dos militares e dos governos deste mundo, levantaram
a bandeira do divino, de uma “terra sem males”, de uma “cidade santa” e preferiram
para “legitimar” o poder político, nos redutos, dos “comandantes de briga”. Segundo
‘sonhos’, ‘visões’ etc., com o monge José Maria e com a contínua assistência de
foi um dos aspectos que moveu todo um povo à luta por direitos, reconhecimento,
religiosa”, mais do que isso, eles tinham uma vivência ou uma experiência religiosa,
isto é, uma mística que dava sentido às suas vidas e às suas lutas. E, pode-se ainda
em João Maria.
explicar, justificar e, de algum modo, controlar uma realidade social que parecia
346
perigosa demais para ser enfrentada por outros meios, além do simbólico.
E como não julgaram necessário “inventar” novos símbolos e ritos
religiosos, diferentes daqueles que conheciam da tradição religiosa católica, partiram
347 BRANDÃO, C. R. Os deuses do povo. (1980), p. 204-205, afirma que “situado do lado de
fora da vida cotidiana da Igreja, mesmo quando se considera submisso a ela, o agente popular
esquece a história de uma instituição de que, na verdade, não participa, ou participa pelas
beiras, e reinventa a história da religião comunitária: as sagas míticas dos seus heróis humanos
ou santificados, as narrativas de casos de prodígio nas trocas entre o povo e o sagrado, a
descrição e as crônicas sobre os rituais e as festas camponesas de devoção. Aqui se recria uma
história-sendo-feita entre pessoas..., onde ela havia sido esvaziada como história de sujeitos
subalternos...”
211
Até então a Igreja católica praticamente não havia tido grandes influências
nascidos da miscigenação entre estes que viviam na região. Mesmo sem tanta
348
influência da Igreja, o seu mundo estava repleto de símbolos e ritos católicos,
lutas, as derrotas e vitórias que iam sendo contadas de pai para filho e que se
ideologia. É algo mais complexo do que aquilo que se pode responder à pergunta:
Percebe-se hoje, que questões como esta não conseguem mais que
jamais ser captada na sua totalidade e menos ainda quando tem como ponto de
348 Os primeiros padres franciscanos a atuar no Planalto serrano de Santa Catarina, fixaram-se
em 1891 em Lages, em 1900 em Curitibanos, em 1903 em Palmas, em 1912 em Canoinhas e
em 1914 em União da Vitória, onde foram criadas as respectivas paróquias.
349 ESPIN, O. A fé do povo. (2000), p. 120-122, trabalha o conceito de “intuições cheias de fé”
do povo, como aquela intuição encontrada, principalmente, no plano experimental ou vivencial
da comunidade dos fiéis. Ele afirma que é esta intuição que faz o povo sentir que algo é ou não
verdadeiro, ou que alguém age ou não de acordo com o evangelho cristão. Esta intuição “cheia
de fé” do povo, se origina do Espírito Santo, e, sendo assim, ela é tida como infalível. Isso não
significa que essa intuição possa ser encontrada em estado puro, já que a própria revelação
divina sempre reserva para si algo “ainda não revelado”, subsistindo o mistério.
212
apenas entre dois polos da guerra, mas também no interior dos próprios redutos, da
rechaçar ou eliminar tudo o que não coubesse dentro dos seus princípios ou
patamares "sagrados".
época. Com isso, juntamente com a morte de muitos caboclos e caboclas, muita
riqueza cultural também foi destruída. Por ter sido considerada "estranha",
Mas quem eram esses homens, mulheres, crianças, jovens e idosos que
351 ÁVILA DA LUZ, A. Os fanáticos. (1952) p. 157. Apud., RIBEIRO, Pe. H. Religiosidade
popular no Contestado. (1989), p.11.
213
religiosidade de segunda categoria. Sua religiosidade deve ser entendida como uma
sentido e não havia outro, ao menos não havia outro que lhes interessasse. A
religião era o que dava sentido à sua vida, nela estavam o consolo diante do
realidade presente não haveria de ter a última palavra, pois há outra a ser buscada e
ordem econômica, como política e social, entre outras. Vale assinalar que a
também uma luta mística. Era uma visão de Deus e uma concepção de mundo que
queria sobreviver.
transformou em fanatismo. Afirmar isso, não significa o mesmo que afirmar que foi
354
este mesmo fanatismo religioso que os levou à guerra. O misticismo, ainda hoje
tão pejorativamente compreendido, foi o que lhes permitiu sonhar com um mundo
354 MIRA, C. "terra catharinense" (1920), p.53, afirma que "não foi o fanatismo religioso que
criou a situação tão diffícil, quanto amarga, do Contestado pois, embora adorando como a um
santo, monge João Maria, que palmilhava os sertões praticando o bem, ora com medicamentos,
ora com conselhos, nunca os cortejos que o acompanhavam, commetteram o menor acto de
depredação e, tão pouco, era o trabalho abandonado por muito tempo.
355 STULZER, Frei A. A guerra dos fanáticos, (1982) p. 42; D’ASSUMPÇÃO, H. T. A campanha
do Contestado. (1917), vol.I, p. 245
215
356
Segundo Monteiro , "o valor mais alto dos rebeldes era a defesa dos
ideais da Santa Religião", era ocuparem-se com a sua devoção. A “Santa Religião”,
verdadeiros rebatismos, inclusive com a troca de nomes. Era preciso ter nome de
santo para se tornar irmão. Havia inclusive pessoas “ordenadas” para executar os
tradição indígena, portuguesa e africana. Uma côrte de santos, dentre eles São
escudo mágico contra todo e qualquer perigo, por isso era difícil um lugar, uma casa,
um cabo de arma, uma porta de casa, próximo ou dentro de um templo, onde não
pudesse ser encontrada. Havia também diversas orações "fortes", milagrosas que,
357 Num depoimento oferecido em 1998 a Paulo P. Machado, (tese, p. 475), Maria da
Conceição Correia, nascida em 1901, com 97 anos, diz que “outra coisa que a mãe contava é
que tinha um jagunço, Bastião Romão, que tinha roubado uma batina de um padre, e ficava
rezando no reduto, fingindo que era padre.” Também lembra que, “mamãe diz que São João
Maria não morreu, vive ainda no morro do Taió, tem uns 190 anos.”
359
análise de Hélcion Ribeiro, a afirmação: "muita reza e pouca missa; muito santo e
pouco padre". Aí não existia reza sem festa. Ao contrário do que propunham os
Reza sem festa não era reza completa. Assim as rezas comunitárias, como
que incluía música, desafios, bailes, foguetórios, tiros para o ar, carreiradas, etc.
que era preciso prezar por uma moral mais rigorosa. O religioso-festivo porém
continuou. Os depoimentos obtidos, nesta pesquisa, afirmam que nos redutos não
desta pesquisa afirmam que o próprio Adeodato era um cantor famoso. Miguel
360
Correia de Souza afirma que o “Adeodato cantava que dava gosto. Não vi melhor
tocador de violão e viola e cantador. Toda gente deles era tocador e cantador. O
359 RIBEIRO, Pe. H. Religiosidade popular no Contestado. (1989), p.13. Esta definição citada
por Ribeiro está entre aspas, porém não cita o autor da mesma. Ouve-se dizer que seria uma
afirmação de um bispo do século XIX. Para RIBEIRO, H. Da periferia um povo se levanta.
(1988), p. 94, “a religião do caboclo é cheia de procissões e de santos, de velas e de vivas, de
danças e leilões, de cores e bandeirolas, é cheia de rezas e penitências, promessas e cantos
graves e/ou saudosos.” Ele diz ainda, “sua religião é de muita reza, mas de pouca missa; muita
penitência, mas pouca confissão com padres para quem é severo e exigente, mas terno e
condescendente com os ascetas, monges e penitentes.”
361
Nas “formas”, os vivas aos santos e também aos fatos marcantes e
361 As “formas” dos caboclos eram um espaço físico amplo, aproximadamente do tamanho de
um campo de futebol, situado ao centro ou próximo do reduto onde se realizavam os rituais
religiosos, as grandes assembléias, os treinamentos para a guerra, etc. Segundo Miguel Correia
de Souza, que participou da guerra, “as formas aconteciam num campo grande, como um de
futebol, com cruzeiros de cedro nos cantos. Quando tocava as cornetas tudo tinha que correr
para o quadro, para fazer a forma, rezar e gritar vivas. Os homens tinham comandantes e as
mulheres também tinham suas comandantes. Rezavam tudo quanto era reza, tudo rezava.
Cantavam que dava gosto. O santo que vinha na idéia de alguém, tinha que gritá e tudo
respondia.” (Depoimento na íntegra, anexo nº 05)
362 VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p. 192. A oração foi por ele
colhida de um depoimento de José Luiz Siqueira.
218
ritmo da vida nos redutos, capaz de reunir e igualar os homens e as mulheres num
obedecer muitas normas e regras, muitas leis e conselhos. Era preciso fazer
mundo. Havia leis e normas que todos eram obrigados a obedecer; quando tocava a
corneta todos eram obrigados ir para a forma, exceto os que estivessem doentes;
A primeira foi o tempo dos monges, desde meados do século XIX até 22 de
outubro de 1912, com a morte de José Maria. A segunda fase foi desde as primeiras
363 RIBEIRO, Pe. H. A identidade do brasileiro (1994) p.132, afirma que “o festivo, tão do
espírito popular de nossa gente, é um jogo de quem se ri desde a miséria, fazendo crer que a
vida é muito mais que a miséria. Festar desde a miséria é afirmar – desde o reverso social – que
algo está profundamente errado: é um protesto profundo e cheio de humor. Só não entende
quem é pobre de espírito, reduzido ao poder, ao prazer ou ao ter”.
um grande leque de ritos, cerimônias, orações, cantorias; foi um tempo onde reinava
ataques do exército e não matavam ninguém. As pessoas aderiam aos redutos por
livre vontade, porque acreditavam que ali se dava um novo tempo, começava uma
vida nova, fraterna, solidária e justa. Os que possuíam bens os disponibilizavam aos
demais membros do reduto, não havia compra e venda dentro do reduto, tudo era
partilhado, exceto bens pessoais como armas e cavalos. Houve algumas tentativas
de cultivar a terra e criar animais, mas não deram certo. Quando previam ou eram
lugar, onde constituíam novo reduto. Neste tempo o caboclo deu asas à imaginação
sincretismo religioso favoreceu, nesta fase dos redutos, a edificação de uma espécie
Ainda nesta segunda fase, foi sendo resgatada e construída uma certa
João Maria e José Maria, tendo como agentes dessa mediação, alguns meninos e
eram os locais sagrados. Alguns horários durante o dia e alguns dias durante o mês
João Maria havia profetizado e ensinado ou o que José Maria revelava para
220
estes(as) virgens. Além do uso da bíblia sagrada, também havia outros textos,
atribuídos a João Maria, que eram considerados sagrados e eram lidos em certas
365
cerimônias religiosas . O “pai velho” era considerado um homem de Deus, era tido
próprio quadro santo, que era o espaço campal, no qual, aos quatro cantos plantava-
quadro santo, também foi edificado o primeiro reduto Taquaruçu, também conhecido
semestre de 1914. Nesta fase, também chamada de fase do fanatismo religioso, foi
"chamavam" para a guerra. A crença de que estes monges voltariam com o exército
365 Alguns dos quais serão publicados no decorrer deste trabalho. Mais do que textos escritos,
eram consideradas sagradas “as ordens” ou os dizeres de João Maria. Tanto quanto os textos
escritos, eram respeitados os textos de tradição oral. Algumas pessoas idosas, entrevistadas,
falam que os textos atribuídos a João Maria eram recebidos com total respeito, eram tidos por
dogmas de fé. Nos tempos mais difíceis da guerra, qualquer um que questionasse estas
“ordens” ou estes “dizeres” de João Maria, e também de José Maria, seria castigado.
João Maria, José Maria e São Sebastião, assim como pelo próprio Deus. Seus
mortos.
A última fase foi o tempo da derrocada final com a violência interna do ano
dentro e por fora" sobreveio a fome, onde primeiro morriam as crianças e os velhos,
mas também pessoas adultas adoeciam e morriam por causa da fome, e junto à
passavam para o lado das forças do exército e, enfim, a decomposição dos redutos,
369
romana, em toda a sua extensão . Teve ela seus limites, nos condicionamentos
culturais próprios daquele povo, assim como os tem a religiosidade oficial ao se fixar
voz de uma instituição estranha - que, saindo de sua rede paroquial, situada numa
vila ou cidade, também percorria o sertão, o monge vivia no sertão. Se o padre era
também o eram, e o último, se não havia nascido fora do Brasil, como seus
369 Também VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p. 50, afirma que
"no tempo de João Maria, não se poderia falar de nenhum conflito aberto e generalizado entre o
catolicismo rústico praticado pela gente de Serra-Acima, fortemente impregnado de práticas
mágicas de origem medieval européia, indígena ou africana, e a doutrina oficial da Igreja
Católica, mesmo porque raros eram os sacerdotes regularmente ordenados que havia na
região."
e manifesta-se ainda hoje, se bem que em menor grau, por intermédio de práticas
grande devoção", fazia "batizar seus filhos e consagrar o casamento." Mas, "uma
vez ausente o padre, qualquer velho caboclo fazia o serviço divino, batizava,
371
abençoava, esconjurava os espíritos maus."
adversas, seja dos militares, dos colonizadores, dos coronéis e outros mais. Não é
Também não foi somente dentro dos redutos e durante a guerra que foram
"instituídos" novos "ministros" para a “Santa Religião”. Isso já era praxe popular
desde muito tempo, quando na falta de padres e bispos católicos, e não somente por
da ladainha aos santos, eram as mais comuns. Havia também inúmeros outros tipos
No caso de João Maria, não se pode afirmar com segurança que ele tenha
"nomeado" pessoas para dar continuidade a certos serviços religiosos que realizava.
Assim mesmo, é sabido que muitos foram os que, em nome dele, exerceram
armados. Este secretário fala que essa gente praticava um culto descrito como
Formara-se ali, pelas bandas do rio Negro, por iniciativa de Francisco de Paula
Pereira, uma comunidade de base religiosa, da mesma natureza das que, mais
372 No relato de Miguel Correia de Souza (Cf. relato anexo, nº 05) pode-se constatar que, nos
redutos, “aparecia padre dizendo missa, coisa feita por eles. Era uma crença impossível.”
373 Hoje, um dos distritos do município de Canoinhas recebe o nome de Francisco de Paula
Pereira em homenagem a este homem religioso que executava diversas tarefas de caráter
religioso na região, ao ponto de ser conhecido e respeitado como "bispo". Algumas pessoas do
lugar afirmam que ele teria sido "ordenado" bispo pelo próprio povo que o seguia.
volta dos governos anteriores à república, mas sim, como numa espécie de mágica,
Deus.
É claro, também não se pode negar que a edificação desse sonhado reino,
não era para eles uma simples ilusão, uma utopia totalmente impossível de se
375
realizar. Segundo Monteiro, o ponto de referência central da ação política dos
denominaram de monarquia.
caráter político e ético, o que na verdade os conduzia à rebelião era uma referência
ritos e símbolos católicos, como o batismo, a cruz, a bandeira do divino, etc., assim
diante do poder ou das estruturas que os oprimiam, e crentes na luta por dias
melhores.
tidos como enviados de Deus, na fase final alguns líderes se tornaram temíveis e
havia uma mística e um imaginário que lhes ofereciam um sentido para a luta e uma
os “inimigos” fossem tidos como verdadeiros “demônios” e por isso precisavam ser
377 MONTEIRO, D. T. Os errantes do novo século. (1974), p. 122, citando vários autores e
depoimentos lembra alguns fatos que justificam esta sua defesa: "a vila santa seria para os
rebeldes como o lugar dos que, crendo, poderão livrar-se do "medonho castigo"; "agora os
velhos vão ficar novos, vem a guerra de São Sebastião, vamos ser muito felizes"; Adeodato era
um "crente fervoroso e convicto", nas procissões "...com uma mão carregava a imagem de S.
Sebastião enquanto com a outra empunhava seu afiado facão. Quando preso, ele fala da sua
experiência sobrenatural que o investiu da missão; também Francisco Alonso substituiu as
virgens como porta-voz do mundo espiritual. Nas fileiras há um caso de Benedito Gralha,
"homem abastado e extremamente trabalhador", que levou para os redutos "a família e cerca de
100 pessoas, amigos e agregados, todos bem armados e municiados", bem como uma
prisioneira, viúva de 60 anos, "de compostura e respeito e regularmente bem trajada", que se
recusou a informar sobre os redutos, dizendo que “preferia fugir e morrer entre os irmãos, a viver
bem tratada entre os ‘peludos’ pecadores".
227
"pés redondos", fazia parte do imaginário religioso popular que concebia o demônio
do mal" acontecida em um animal muito forte e violento, que vagava pelas florestas
e atormentava a vida dos seres humanos, soltava fogo por onde deveria ser a
O desfecho final da guerra é um fato controverso. Foi esta fase final a que
exceções, pela “demonização”. Pode-se dizer que ele se tornou uma espécie de
bode expiatório. Ele precisou ser projetado como “modelo e catalisador do mal” e
378
sua morte foi tida como uma espécie de “alívio” ou “apaziguamento” geral. É
demônio para junto de si e deixado agir nele. Conta-se que, logo que ele assumiu a
liderança do movimento, teria afirmado "na guerra o demo é mais homem que
religioso dos presentes, ao ponto de traçarem várias vezes o sinal da cruz sobre o
corpo e passarem a olhar este líder, não mais com “devoção”, mas a partir daí, com
379
temor, tremor e pavor.
Contestado, a idéia de que Adeodato pudesse ter sido um defensor da causa dos
caboclos que lutaram no Contestado. Ele foi tido e continua sendo compreendido
como o principal inimigo interno dos caboclos que lutavam no Contestado. Ao citar
bandido. Ele tinha dez mulher e comandava doze Par de França, que eram os
383
carrascos.” E Miguel Correia de Souza afirma que “o Adeodato conseguiu pegar a
vez da Maria Rosa, ele tomou conta. Pegou o poder da Maria Rosa. Maria Rosa
nunca mandou matar ninguém. Enquanto não tinha o Adeodato também não tinha o
379 É impressionante o fato de que, diferentemente do que a maior parte dos pesquisadores
recentes propõem, nenhuma das entrevistas ou depoimentos desta pesquisa consideram
positiva a liderança ou o líder Adeodato, no máximo o consideram ambíguo, a exemplo de
deuses da antiguidade, que eram “portadores do bem e do mal”.
banditismo.”
384
Justina Caetano da Silva faz uma crítica ainda mais dura contra
Adeodato, falando de uma crueldade que ele teria praticado contra as crianças do
criado pelo povo que condena Adeodato; por outro lado, ao desconsiderar esse mito,
cai-se num outro, comum em diversos pesquisadores que, devido a uma ideologia a
Adeodato, da forma citada nos depoimentos. Logo, para não se cair num dos mitos,
talvez seja oportuno citar o que o próprio Adeodato teria afirmado sobre sua
conduta. É verdade que também as décimas citadas a seguir podem não ser do
385
próprio Adeodato, mas a ele atribuídas.
1. Trinta ano vô cantá
Relatando as travessura,
Que aqui neste Processo,
Acoimaro de diabrura,
Me acusaro de mir morte
385 Estas décimas teriam sido cantadas por Adeodato após ouvir a sentença de prisão, sendo
condenado à pena máxima da época que era de trinta anos. Cf. FELIPPE, E. O último jagunço.
(1995), p. 199.
230
que ele realmente pensava ou ainda se ele estava fazendo seu, o pensamento da
EPÍLOGO
386
Marx percebeu, na religião, um caráter duplo. Além de seu caráter
coração de um mundo sem coração, é o espírito de uma situação sem espírito”. Este
abordar e valorizar a experiência religiosa num sentido mais vivencial, como algo
justamente aqueles em que ocorreram as batalhas. Com João Maria e depois José
realidade vigente não era portadora da última palavra e que era possível negá-la e
considerados santos, como João Maria e José Maria, eram-lhes muito próximos.
sua maioria, e entre eles pode-se citar alguns dos mais respeitados, como Oswaldo
que foram pessoas extremamente sensíveis aos problemas do povo daquela região
estima e reconhecimento.
para esta mesma perspectiva. Mário M. de Albuquerque, por exemplo, afirmou que
389
havia uma ruptura radical entre João Maria e José Maria. Para ele
O sentimento dos que conhecem essa história, conviveram com testemunhos
oculares e dos que participaram nos acontecimentos, é razão suficiente para
desmentir o exagero e a deturpação, inclusive a de misturar o inofensivo e
bondoso monge João Maria, que vivia isolado peregrinando como itinerante,
desaparecido em São Paulo em fins do século passado, com José Maria e os
acontecimentos do Contestado.
390
Albuquerque afirma que, aos poucos, os pesquisadores foram
obras, em grande parte, aos poucos foram deixando de ser propriamente suas e
passaram a ser atribuídas a João Maria. A "santidade" de José Maria foi se diluindo,
naquele santo, que aos poucos foi ganhando mais poder e prestígio, e os aspectos
vieram a tona.
Maria e José Maria careça de comprovação, parece que é justamente esta tese que
Ricieri, que apontam para José Maria como alguém que “iludiu o povo”, alguém que
“se fez de profeta mas era falso”, “não era enviado de Deus”, ou como Manoel dos
Santos, que lembra: “bem que o João Maria tinha avisado que vinha uma ilusão no
povo e que iam chamar muito por João Maria mas João Maria não iria valer”. Ele
391
disse também, “vai vir outros dizendo ser eu, mas vocês não devem ouvir” .
obtidos nesta pesquisa – ao olhar para os fatos passados, ter reinterpretado José
Maria ressignificando a sua mensagem, outrora aceita como dogma de fé pelos seus
392
antepassados, e agora é denunciado como falso profeta? Ricieri oferece algumas
início e outra no final da guerra. Alguns afirmariam que isso se dá devido à sua falta
de memória, porém não é demais afirmar que, no seu imaginário, foi exatamente
isso que aconteceu. José Maria que chamou para a guerra foi morto logo no primeiro
combate, porém “ressuscitado” continuou a lutar junto aos caboclos e finalmente foi,
mais uma vez morto ou derrotado, pelo fato de que seus seguidores também o
foram. Talvez seja porque depois de muitas dores e mortes sofridas, tendo-o como
líder, José Maria devesse deixar de ser seu líder, ou seja, seu modelo de vida.
espaço na grande maioria da obras sobre o Contestado. Uma que eleva José Maria
um lado, altos elogios pela sua sabedoria e capacidade de lutar pelos seus sonhos,
manipuladores.
Partindo da compreensão de que a cultura popular possui ambiguidades, e,
apenas para citar um exemplo, não parece ser mais aceitável defender uma linha de
393 ALBUQUERQUE, M. M. de. Contestado. (1987) p. 55-56, por exemplo, afirma que "José
Maria, aproveitou-se do rastro de bondade deixado pelo monge que o havia precedido" e, que
"tratava-se de um indivíduo ignorante, sem ocupação, sem trabalho ou outra coisa útil para a
sociedade..."
236
Maria, para o povo da região, ainda não foi suficientemente compreendido. Sua
morte no Irani pode ou não, ter sido o marco inicial da Guerra do Contestado. Pode,
violência. E, talvez não, pelo fato de que somente depois de um ano começou a
fenômeno digno de maiores pesquisas, o fato de José Maria, depois de morto, ter
intuições, que os tornam capazes de gestar uma consciência crítica que lhes
para não desesperar, agarrando-se numa esperança. Acredita que virá alguém,
394 DUSSEL, E. Oito ensaios sobre a cultura Latino-Americana e libertação. (1997), p. 103.
237
liberta”, no qual encontrarão razão para viver e morrer, que lhe oferecerá consolo
diante da morte, lhe devolverá o sentido da vida, ensinará o caminho que o libertará
Hoje tudo se embaralha, uma confusão. Talvez a necessidade de mistério e grandeza tenha me
levado a acreditar nos santos e heróis, que se desenvolveram simultaneamente.
Graciliano Ramos
Maria. Esta meta será buscada, neste capítulo, partindo da hipótese de que esta
vida dos descendentes do mesmo; assim como, de que haveria uma afinidade e
uma convergência grande entre a mensagem original de João Maria, com aquela
ponto de tornar João Maria um líder religioso “poderoso”, capaz de, com sua força e
do Contestado, hoje. Mais do que falar de como era João Maria e qual foi a sua
sua mensagem atual, isto é, como é João Maria e qual é sua mensagem atual e
395 Halbwachs (Ibid., p. 157) afirma que “a religião se expressa sob formas simbólicas que se
desenrolam e se aproximam no espaço.” Segundo ele, “é sob essa condição somente que
asseguramos que ela sobreviva.”
239
são estas pessoas que fazem a “ponte” entre os acontecimentos passados, em torno
Contestado.
dos “discursos populares”, mesmo sabendo das ambiguidades neles inerentes e que
se pode perceber neles mais aspectos subjetivos que objetivos, faz-se necessário
história oral. Em muitos casos, os contos ou depoimentos das pessoas mais idosas
sociedade e a realidade presente. Neles a “palavra falada” deixa de ser “letra morta”
e passa a ter sentido, especialmente no que tange ao cotidiano, pois ela pode ser
398
considerada história do tempo presente ou história viva. Segundo Bom Meihy ,a
diversos contos, lendas, poesias, desafios, orações e histórias sobre esse tema.
Além disso, também são citadas, nesta pesquisa, uma peça teatral que está sendo
normalmente tem sido a experiência mística dos pobres da América Latina, como
portadora de uma grande riqueza antropológica. Ele constata que “o povo brasileiro
é um povo religioso e místico”, é um povo que não passou pela crítica do iluminismo
e, assim, não submete a religião a todo o tipo de objeção. Ele afirma que “é um povo
místico porque possui uma experiência direta do sagrado e do numinoso.” Ele possui
“não um saber mediado pela razão e codificado em doutrinas, mas um saber feito de
povo nasce e é construída a partir de uma profunda experiência mística. Boff diz que
esta mística “se nutre de rezas fortes, devoções a santos e santas poderosos,
família.”
parece possível captar a sua mensagem fora dessa mediação, pois a sua linguagem
assim a define:
a religião é um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens, através da
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas
concepções com tal aura de fatualidade, que as disposições e motivações
parecem singularmente realistas. (...) Na crença e na prática religiosa, o ethos
de um grupo torna-se intelectualmente razoável porque demonstra
representar um tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas atual
que a visão de mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se
emocionalmente convincente por ser apresentada como uma imagem de um
estado de coisas verdadeiro, especialmente bem arrumado para acomodar tal
tipo de vida.
E como este capítulo procurará se adentrar no aspecto da recepção de
402
Contestado, faz-se oportuno o conceito de John B. Thompson, segundo o qual as
formas simbólicas
são recebidas por indivíduos que estão situados em contextos sócio-
históricos específicos, e as características sociais destes contextos moldam
as maneiras pelas quais as formas simbólicas são por eles recebidas,
entendidas e valorizadas. O processo de recepção não é um processo
passivo de assimilação; ao contrário, é um processo criativo de interpretação
e avaliação no qual o significado das formas simbólicas é ativamente
constituído e reconstituído. Os indivíduos não absorvem passivamente formas
simbólicas mas, ativa e criativamente, dão-lhes um sentido e, por isso,
produzem um significado no próprio processo de recepção.
403 De acordo com a concepção de ELIADE, M. Imagens e símbolos. (1996), p. 53, “um mito
narra os acontecimentos que se sucederam in princípio, ou seja, ‘no começo’, em um instante
primordial e atemporal, num lapso de tempo sagrado. Ao narrar um mito, reatualizamos, de certa
forma, o tempo sagrado no qual se sucederam os acontecimentos de que falamos.” Eliade
também afirma, na obra: O sagrado e o profano. (1996), p.88, que “o homem religioso assume
uma humanidade que tem um modelo trans-humano, transcendente. Ele só se reconhece
verdadeiramente homem, quando imita os deuses, os heróis civilizadores ou os antepassados
míticos”.
243
procuram apontar nesta direção, dando uma ênfase maior a José Maria, mas, como
respeitado e estimado por todos; que não era muito comum ele passar duas vezes
pelo mesmo lugar, sumia sem dizer quando voltava nem para onde ia, não gostava
que o acompanhassem e nem que se reunisse muita gente ao seu redor; que ele
lutava pela justiça e peregrinava motivado pela compreensão de que “Deus havia
404
mandado que se sofresse com os que sofrem.” Quando era chamado por algum
doente, receitava ervas, águas das fontes, e outros remédios, que em muitos casos
aspecto digno de ser lembrado por ser muito citado pelos descendentes do
Contestado. João Maria não aceita dinheiro e contenta-se com a oferta de algumas
uma panelinha.” Fala também que, em sua missão, o monge “pouco se demora nas
localidades e aconselha que o povo tenha bastante crença em Deus e que trabalhe
406
para desviar as tentações.”
404 Cf. FACHEL, J.F. Monge João Maria: Recusa dos Excluídos. (1995), p. 50
406 A isso se pode acrescer o que afirma Pauwels: “Perambulava sem fim visível, o sertão,
desde o sul do Paraná até o norte do Rio Grande, aparecendo inesperadamente ora neste ora
naquele lugar, carregando uma simples barraca, que continha uns utensílios, remédios
populares e santinhos. (...) distribuía remédios gratuitamente, rezava sobre os doentes e dava
bons conselhos, ensinava também sobre como deveriam plantar essa ou aquela espécie (...).”
Apud, Ibid., p. 51.
244
preparação de chás da miraculosa ervinha, a utilização das cinzas das suas antigas
fogueiras, os diversos tipos de bênçãos, o uso das águas das fontes para diversos
407
fins, a devoção à cruz de cedro , certas orientações sobre plantações e sobre
408
lugares onde se poderia viver melhor. A caixinha ou oratório que ele carregava
com "livros santos" e outras coisas mais, constituía parte do mistério que o envolvia.
Era incapaz de praticar o mal e seu coração estava sempre aberto para quem
ele desapareceu sem deixar vestígios”, mas, de alguma forma, continua vivo. E,
Percebe-se assim, que ele é alguém que merece todo o respeito, devoção e afeição,
água, arvoredos abençoados, grutas e fotografias com sua imagem. Ainda hoje pode
nas casas, a foto de "São João Maria" ao lado de imagens de santos católicos.
407 Na memória popular do Contestado aparece tanto a versão de que João Maria plantava as
cruzes em diversos locais por onde passava, como também a que ele pedia aos outros que
plantassem cruzes. Segundo o relato de Arnoldo Ferraz, (anexo nº 08), o profeta João Maria
disse pro povo: “eu mandei vocês plantar um cruzeiro onde eu pousei, mas daí ficou por sistema,
onde eu pousar todo mundo planta uma cruz.” Tereza Iankoski (anexo nº 09), afirma que ele
próprio tinha o hábito de plantar cruzes e que, no seu relato, lembra ter demorado três dias para
deixá-la pronta e plantá-la.
inclusive o tenha desprezado, sem dúvida João Maria foi elevado a santo por muitos
até a veneração ao
"santo". Ao lado de
outros santos
recorrem em momentos
de aflição. Na sua
religiosidade, mantendo
"homem do Contestado"
defende a santidade do
conhecido e considera
manifestam este
Contestado.
Observa-se que São João Maria passou a integrar o rol dos santos mais
venerados pelos caboclos da região, inclusive sendo invocado nas rezas de terço e
nas ladainhas pelos ‘puxadores de reza’. É verdade que para muitos descendentes
do Contestado há que se considerar que ele próprio disse, quando lhe perguntaram
se era santo: “eu santo não sou, mas aquele que percisá, e tiver fé em mim, reze um
409
padre nosso e uma Ave Maria pra mim e acenda uma vela, que eu hei de valê.”
confiança dos “rudes sertanejos”, daqueles que “ainda não estavam à altura da
“havia uma necessidade de invocar ‘São João Maria’ para que interceda junto a
acentuados fazem com que, para muitos, não reste outra coisa, além do divino, a
410 Cf. OLIVEIRA, B. de. Planaltos de Frio - os fanáticos do Contestado: o meio, o homem, a
guerra: ensaio de história. (1985). p. 76. Afirmações como esta justificam a ideologia que crê
serem os mais pobres também mais ignorantes. Vale dizer que essa ideologia não foi somente a
ideologia dominante daquela época, basta ver os autoritarismos, imperialismos e neo-
colonialismos, presentes ainda hoje, sob tantas formas de violência pelo mundo afora.
pregadas à porta ou guardadas em local apropriado. São orações muitas vezes mal
lado, ele possuía uma linguagem metafórica, simbólica, de compreensão difícil, que
afirmações como esta, a ele atribuída: "o povo deve fazer penitência porque os
castigos de Deus se aproximam(...)"; por outro, também é verdade que o povo vai
413 Ibid.
414 Apud, THOMÉ, N. São João Maria na história do Contestado. (1997), p. 58.
248
Maria seja a “Carta celeste”, que é a ele atribuída. É muito comum encontrar esta
415 Cf. No anexo nº 08, a íntegra da carta, cuja cópia foi oferecida por Arnoldo Ferraz.
249
sabedoria e que as pesquisas empíricas ainda não esgotaram aquilo que os mais
que algumas dúvidas surgiram logo que foram coletados os primeiros relatos: seriam
menino, ao ouvir as histórias que lá no interior o povo contava, dava para perceber
porque as coisas eram ditas a fim de construir objetos que podiam ser belos,
não pretendem ser factuais ou científicas, mas, por estarem presentes no cotidiano
popular do Contestado e por terem sobrevivido por várias gerações, elas devem
fazer sentido para aqueles que as contam e insistem em não deixar que se percam
Poder-se-ia perguntar, até que ponto alguns poucos relatos, oferecidos por
memória coletiva e popular sobre João Maria. Para isso faz-se oportuno lembrar
417
Halbwachs , para o qual não há memória individual independente, a fonte de toda
seja, dignos de lembrança, ela demonstra os critérios que o grupo utiliza para
memória particular de cada indivíduo que dela participa. Logo, mesmo sabendo que
há outras “memórias” diferentes das aqui citadas sobre João Maria e o Contestado,
isso não diminui o valor e a importância destas, já que estas memórias não são
memória coletiva sobre os fatos pesquisados, mesmo assim, pode-se perceber que
há uma lógica e uma espécie de consenso de fundo entre a maioria dos relatos,
menor relevância.
418
Para dar início à parte que segue, vale citar o que Arnoldo Ferraz disse,
Cabe dizer, de João Maria, aquilo que Frei Betto e Leonardo Boff dizem a
para a humanidade. Ávila da Luz relata que a fé dos sertanejos, pelo João Maria, era
imensa. O lugar onde ele passava, a água que abençoava, as cinzas das suas
fogueiras, as cruzes por ele erigidas, etc., tudo se impregnava de sua santidade.
420 ÁVILA DA LUZ, A. Os fanáticos: crimes e aberrações da religiosidade dos nossos caboclos.
(1999), p. 139.
252
que o aproximam de Deus, ao ponto de dizer que “Jesus o deixou no seu lugar”,
para que continuasse sua obra, “fazendo o bem e aconselhando.” Como afirma
421
Aliriano A. dos Santos: “pra falar a verdade Jesus deixou São João Maria no lugar
dele pra falar a verdade, pra explicar tudo certinho, fazer cura, fazer beleza, fazer só
Porém, não é preciso explicar que esta mesma afirmação traz consigo uma
seres humanos e de falar algo mais do que à primeira vista parece dizer. É como ele
próprio teria afirmado sobre si mesmo: “santo eu não sou, mas quem tiver fé em
423
mim, eu hei de valer.”
Essa insistência de “torná-lo humano” traz consigo a ambiguidade de que
ele já não parece ser tão somente humano assim, ou seja, ele já não é um simples
ser humano como os demais. É por isso que, ao mesmo tempo em que se ouve a
afirmação, “ele era gente como nós”, também se acrescem outras afirmações
João Maria, é o seu estilo de vida errante, o seu aspecto de peregrino. À diferença
de Antonio Conselheiro, que buscava edificar uma cidade santa, João Maria dirigia-
se mais às pessoas acreditando que cada uma poderia se tornar santa e, com isso,
toda a sociedade também viria a se tornar santa. É claro que, de certa forma,
cidades santas. De qualquer forma, pode-se dizer que é nessa perspectiva da busca
“bugres”, e que ele não queria ser chamado de santo, “porque ele não se achava
santo”, apenas aceitava ser visto como “uma pessoa que fazia o bem para os
outros” e que “era um homem mandado por Deus para a terra para falar das coisas
ao ponto de, inclusive, caçar e dividir a caça com eles. Ele lembra que João Maria
“sempre dizia que os bugre eram a melhor raça que existia, era só ter amizade com
eles que eles eram bom.” E, que “ele e os bugre abriro um picadão de Rio das
Antas, passando pelo Rio Preto e chegando em Taquara Verde.” Sebastião também
426 Morador de Porto União, tendo 76 anos, quando deu este depoimento a OLIVEIRA, C.A. de.
A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus. (1992), p.116 (O autor não cita
seu sobrenome, nem a data precisa em que coletou tal depoimento).
427 Cf. Depoimentos anexos: nº 02, de Ricieri M. de Arruda, nº 04 de Aliriano A. dos Santos, nº
08 de Arnoldo Ferraz.
254
um dia João Maria conversava em uma casa, sobre um menino que tinha
desaparecido, e ninguém tinha mais achado ele. Depois que eles terminô de
conta a história, João Maria falô: o menino é capitão dos bugre, ele tá lá, mais
bão do que tá.
428
Ismênia conta que “o profeta João Maria parava nos matos, no meio das
árvores era onde ele se instalava, a maior parte ao redor dos pinheirais.” Ela lembra
que um dos seus costumes era “ficar sempre de pernas encruzadas, tomando seu
chimarrão.” E, que ele “era uma pessoa alegre, só que não era de levantar a cabeça,
tinha barba cumprida, andava sempre com uma bolsa para colocar as comidas que
ele ganhava das pessoas.” Ismênia diz que “o Profeta João Maria sempre escolhia
lugares muito bonitos para ficar; as pessoas iam buscar ele para pousar e comer em
região três monges, porém “só um era verdadeiro”. Era conhecido como o “Santo
pregava o catolicismo e ouviu-se até dizer que fazia milagres.” Ela também afirma
que “o monge rezava e cantava” e logo que ele chegava em uma localidade, “muitas
pessoas iam ao seu encontro para escutar as suas palavras e a ele levavam seus
presentes, especialmente peixe e couve.” Ela fala inclusive de uma tradição na qual,
“se a pessoa ao plantar couve, oferecer a São João Maria, ela terá essas verduras
430
sempre viçosas e bonitas.”
428 Ismênia tem 80 anos, mora em Urubici. Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O
Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do Instituto Teológico de Santa Catarina, (2001), p.9.
429 Carmita de Souza é liderança da Igreja Católica e coordena o Grupo de reflexão “São José”,
da Paróquia São João Batista de Três Barras. Depoimento oferecido em dezembro de 2002.
Fichário de entrevistas, pasta nº01, p. 03.
430 A couve é o alimento mais citado nos relatos sobre o aspecto alimentar de João Maria.
Arnoldo Ferraz (Cf. anexo nº 08) conta uma história de um “coval” que teria sido plantado por
João Maria e que “sobrevive” depois de um século”.
255
431
Hidalci T. Ghizoni lembra que “o Profeta São João Maria foi o verdadeiro
milagroso que apareceu nos campos de Lages.” Porém, “muitas pessoas não
queriam acolher o Profeta São João Maria, por causa das suas roupas esfarrapadas
e sua barba cumprida.” Segundo ela, “em todos os lugares que ele passava,
abençoava as vertentes de água, cuidava dos leprosos e levava eles nas vertentes
pelos bisavôs.” Entre elas, destaca-se uma “linda história real de São João Maria”
Ela diz que, estas histórias “nós não nos cansamos de lembrar em nossas
comunidades.” Diversas pessoas, como Tereza, contam histórias que, entre outras
coisas, lembram a fé, as orações e o poder de João Maria, assim como a devoção
que o povo tinha para com ele. Algumas destas histórias falam do conhecimento e
mesmo quando estivesse cheio, não era problema para ele. Outras histórias
lembram que ele carregava consigo uma barraquinha que armava para se proteger
Tereza lembra também que um dos hábitos de João Maria era fabricar
sobre como João Maria se defendia da chuva e do frio e que onde pousava deixava
plantada uma cruz de cedro, Tereza afirma que a partir daquele dia (ou daquele
431 Hidalci tem 49 anos e mora em Bom Retiro. Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O
Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do Instituto Teológico de Santa Catarina, 2001.p.10.
432 Conferir na íntegra, relato anexo nº 09. Tereza é Agente de Pastoral da Igreja Católica, da
comunidade de Passo Ruim, de Papanduva, SC.
256
A partir daquele dia a fé das famílias aumentou mais ainda, João Maria
passou a ser um santo em espírito para eles. Todas as orações voltavam-se
para João Maria e o Divino Espírito Santo e eles não tinham dúvida que
aquele homem era um enviado de Deus, e a passagem dele por este local, foi
um presente para a comunidade. No terceiro dia João Maria terminou de fazer
a cruz e quando anoiteceu se ouvia seus cantos em louvor a Deus Pai. E ao
amanhecer plantou a cruz e foi embora sem ninguém ver. Quando foram
olhar por ele, só encontraram a cruz plantada, então os joelhos se dobraram
diante dela e muitas orações ali passavam a ser feitas, e milagres
aconteciam, tudo o que era pedido ali era recebido.
433
Jandira Moreira de Sá lembra uma história de São João Maria, que sua
avó Maria José de Freitas, que era também comadre dele, contava. Sua avó pediu a
ele se usaria uma roupa se ela lhe desse. Como ele afirmou positivamente, ela fez
uma roupa para ele e lhe deu. Sua avó contava que, a roupa com que ele está
vestido na foto, foi ela que lhe deu. “Era uma calça xadreizinha e uma camisa de
chita branca, de raminho preto, e uma cirola de algodão.” Ela conta que ao dar-lhe a
roupa “ele pegou e vestiu e muito agradeceu, pois São João Maria e minha avó
eram cumpadre de estimação.” Ela também lembra que o seu pai Fermino Moreira
Branco, que era natural de Lages, com 13 anos ele acompanhou São João Maria.
433 Jandira tem 75 anos,16 filhos, mora em Lages. Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D.
O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do Instituto Teológico de Santa Catarina. (2001),
p.4.
257
434
João Moreira Leite, de Antinhas, é citado por Felippe como alguém que
supõe que “João Maria foi um homem mandado por Deus, para encaminhar o povo
dos sertões no caminho do bem.” João Moreira era compadre de João Maria e
afirma que "o monge impunha muito respeito e confiança e as coisas que ele falava,
eram sempre acertadas.” Segundo ele, “João Maria só aconselhava para o bem.” E
amar a natureza e o próximo era, para ele, o mesmo que amar a Deus. Este
mandamento era para João Maria tão importante que ele acreditava que, “no dia em
que todo o povo o entendesse e o praticasse, não era preciso mais haver delegados,
entre todos os pesquisadores e depoentes, é o fato dele não pernoitar nas casas.
435
Esta afirmação é negada por Elvira Fiólek, quando diz que, em seu trajeto (pela
região), o monge passava por São João dos Cavalheiros, seguia o Rio da Ponte e ia
para Arroio Fundo onde pernoitava na casa da senhora Alice que, por sua vez, o
esperava com as comidas que ele mais gostava: virado de feijão, couve frita, ovos e
chá com leite. Ela diz ainda que, “em nossa região, existe uma forte crença no
monge João Maria, chamado por muitos de São João Maria.”
E para concluir esta seção, vale citar uma história de João Maria, contada
436
por Arnoldo Ferraz , que fala dos “vestígios do santo”:
Eu sei de três pousinho dele, lá no são Sebastião, no tal Serelepe e lá na
Campina dos Borges. Lá me contaram que tem um perau, que tem um
varandão naquele perau, coisa mais linda do mundo, e faz aquela canhada
pra lá e daí tem aquele perau forte.
Hoje diz que tá muito zelado lá. Aquela água no canto daquela pedra, uma
435 Elvira é liderança católica da Paróquia São João Batista de Três Barras. Cf. Fichário de
entrevistas, pasta nº 02, p. 01. Relato de dezembro de 2002.
436 Cf. Relato anexo nº 08. Arnoldo é casado com Adélia Rocheski, tem 84 anos, nasceu e
sempre residiu em Timbó Grande, SC, atualmente mora na comunidade Amador.
258
vida marcados pelo sofrimento e pela cruz. Diante da pesada cruz colocada nos
constituem um dos seus sustentáculos, é a própria vida deste povo que é ocultada e
silenciada.
de Medellín em 1968 e Puebla em 1979, fez a sua opção pelos pobres, ela revelou
com isso que não somente deveria ser anunciadora de uma nova sociedade, como
sinal do Reino definitivo, mas que precisava também resgatar, desde o sensus
isso, ela abriu-se para ouvir o clamor dos oprimidos e com eles assumiu uma
437
“O profeta é, antes de mais nada, um interprete.” A profecia de João
Maria não era simplesmente uma espécie de visão misteriosa sobre acontecimentos
futuros, mas sim algo que brotava de uma observação, uma vivência e uma reflexão
Deus. É possível afirmar que ele “não dizia muito mais do que as pessoas queriam
438
ouvir” ou que ele “falava de acordo com o sentir do povo” e também que, de certa
profética, por isso os seus descendentes, mesmo submetidos ainda hoje a regimes
437 GALLO, I. O Contestado. (1999), p.177, afirma que “a autoridade adquirida pelos monges,
como intérpretes, cuja confiabilidade é incontestável, provém do seu modo de vida despojado,
ao lado dos humildes, e da fidelidade aos rituais de reza populares. Nos seus discursos e nos
seus procedimentos é que se estabelece, entre estas figuras e o seu auditório, uma comunhão
em torno de certos valores. O público, nesta relação, não está submetido ao profeta, mas o
profeta mistura-se com sua platéia, para cumprir o seu papel na reunião do povo.”
438 De acordo com um relato do Frei Rogério de Neuhaus, transcrito por SINZIG, Frei P. Frei
Rogério de Neuhaus. (1939), p. 154 e 155, numa conversa entre Frei Rogério e João Maria, este
último ao ser questionado sobre certas afirmações que fazia, disse: “não sei, mas o povo me
aperta muito e, então, eu falo assim.” Em um outro momento desta mesma conversa João Maria
pediu ao frei que o deixasse batizar, “porque o povo tem muita fé comigo”. STULZER, Frei A. A
guerra dos fanáticos. (1982), p. 31, afirma também que, “por suas profecias, pela sua vida e
mais pelas suas muitas novenas, parecia aos olhos dos simples, um enviado de Deus, e o povo
o venera como se fosse um santo. Quando seu nome é proferido, é sempre com respeito e
descobrindo-se a cabeça. ‘Se Deus quiser e São João Maria’, eis a expressão usual do sertão.”
260
que, para muitos, profeta é uma pessoa que anuncia a vontade de Deus, que dá
futuro. Profeta é também aquele que coloca a responsabilidade da história nas mãos
do ser humano, sem menosprezar a graça e a ação de Deus nesta mesma história.
outros inclusive afirmaram que ele sempre falava como se estivesse possuído pelo
escatológicos e apocalípticos.
definitivo entre o Anticristo e São Sebastião, este tendo José Maria como seu
e o rádio, são alguns dos acontecimentos futuros anunciados por João Maria,
440
segundo Arnoldo Ferraz.
É comum, por exemplo, ouvir entre os habitantes de Joaçaba-SC que João
Maria profetizou que o morro mais alto situado a oeste daquela cidade, iria desandar
na direção do Rio do Peixe, isto é, cairia sobre a cidade. Há uma fenda numa rocha
seus avós e que aprendeu algumas coisas deles. Wilson também lembra de uma
igrejinha, um poço, uma cruz de cedro e um cemiteriozinho que foi construído onde
havia um poço dele em Painel, próximo da casa de seus avós. Ele conta que quando
ele ainda era piazote (adolescente), João Maria “chegou na casa dos meus avós, foi
bem recebido, bebeu café e chimarrão, posou, e daí seguiu viagem.” Diferentemente
do que costumam afirmar os pesquisadores que João Maria não aceitava uma
reunião muito grande de gente em torno de si, Wilson lembra também que em certa
ocasião,
no dia das almas, finados e semana santa, se reunia umas cem a duzentos
pessoas, daí acontecia uma coisa que quem não acreditava, ia pegar água e
ela sumia. Nós fumo com um companheiro lá, ele disse: que nada, esse aí
não é profeta, é um nada na vida. Então eles preparam uma taquara lascada
pra fazer tipo uma calha, tava escorrendo água porque a pedra era grande, o
camarada levou aquela taquara e quando ele levou a boca na água, ela
secou de vereda e eu cutuquei um tio e disse: esse não tem fé.
Olha, o senhor sabe, aquilo ali, nem em dia de festa nas nossas províncias
não igualava tanto de povo que dava lá, nós era novo e gostava de ir lá, só
que depois um fazendeiro, dono das terras, cercou e deixou mais ninguém
entrar lá, o pessoal se revoltou.
Semelhante a esta história da água que sumia, para quem não acreditasse
442
no profeta, porém num sentido oposto, é a história contada por Arnoldo Ferraz.
Ele diz que um amigo dele chamado Chiquinho Marculino, afirma ter visto “com os
seus próprios olhos” um milagre de João Maria. Lembra que, em certa ocasião, tarde
da noite, estava proseando com o seu João Maria, quando resolveu ir buscar água
no rio paciência, para esquentar, mas o rio ficava longe do lugar onde se
encontravam, então João Maria indicou-lhe um local bem próximo dali, onde poderia
encher as vasilhas de água; este, conhecedor do lugar, sabia que naquele local não
441 Wilson tem 78 anos e mora em Bocaina há 53 anos. Depoimento colhido por CRUZ, A. &
SÁ, D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do Instituto Teológico de Santa Catarina,
2001.p.3.
havia qualquer nascente de água, mas confiando na indicação do seu João Maria,
foi, e realmente encontrou água. Porém no clarear do outro dia voltou ao local pra
averiguar e não havia água nenhuma naquele lugar. Logo, concluiu que aquela água
pessoas têm nele, até agora, uma fé muito grande. No cemiterinho tem a foto dele.
“Tudo o que falou está acontecendo.” Segundo Assink, “ele falou que ia chegar um
tempo que os carros iam puxar os bois. E, naquele tempo, os bois puxavam os
carros.” Ele disse também que “ia chegar um tempo que Pai ia matar filho, filho ia
443 Celso tem 74 anos, nasceu e se criou em Bocaina. Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ,
D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do Instituto Teológico de Santa Catarina,
2001.p.5.
O homem disse: eu vou lá perguntar prá esse homem, ver se ele sabe algum
remédio.
O cara foi lá: escuta sô, o senhor não sabe um remédio pra dor de dente, que
a minha mulher tá variada de dor de dente, não tem mais o que faça bem.
Ele disse: eu sei, sei o remédio. E só tem esse remédio que vai curar ela. É
sair e achar um bode tirar um fio da barba e por no buraco do dente, que ela
sara.
Então daí ele fez aquilo e a mulher sarou.
Isso porque ela tinha chamado São João Maria de barba de bode.
445
Sebastião lembra diversas profecias de João Maria, umas falam de dias
como o próprio se via. Faz também uma espécie de síntese em relação a diversas
profecias do monge, que ele conhecia. Estas profecias indicavam tempos difíceis e,
445 Sebastião era morador de Porto União, tendo 76 anos quando deu este depoimento a
OLIVEIRA, Célio Alves de. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus.
(1992), p.116 (O autor não cita seu sobrenome, nem a data precisa em que coletou tal
depoimento).
446 José Euzébio morava em Caçador e tinha 87 anos quando deu este depoimento a
OLIVEIRA, Célio Alves de. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus.
(1992), p.128.
264
mandava rezar e fazer penitência, pedindo a Deus para evitar os castigos que
447
haviam de vir, como a guerra, os gafanhotos, a peste de toda qualidade,
em muitos lugares os campos haviam de ficar desertos, doenças no povo,
que os remédios muito custariam a ser descobertos. Disse mais, que as
guerras vindas do sul seriam passageiras, mas as vindas do norte seriam
terríveis, e que somente o povo poderia modificar isto fazendo penitência.
Dizia a muitos que ele não era santo e sim um homem como todos os outros,
mas que andava cumprindo uma penitência, que um dia terminaria.
É interessante notar como a última profecia citada, a seguir, por Carmita de
448
Souza , aparece invertida em relação ao modo como outros a contam. A mais
original e repetida por muitos seria: “Haverá muito pasto e pouco rastro” e com esta
afirmação julga-se que ele estaria apontando para os tempos de guerra, quando
sobraria pouca gente ou poucos animais nas fazendas. Há uma outra versão desta
frase, que sugere que em certa ocasião João Maria a utilizara para indicar uma
futura destruição da cidade de Canoinhas. Ele teria apontado para o fato de que em
Canoinhas muita gente, naquela época, deixava o seu rastro, porém, logo mais,
447 Segundo alguns contadores de histórias do monge, os gafanhotos seriam de aço e que era
difícil imaginar a devastação que eles fariam. Alguns falam que de fato os gafanhotos
apareceram, a começar por Três Barras e depois foram se estendendo em toda a região. Foram
as motoserras e os serradores da Lumber e muitos outros, e em consequência disso, dizem que
além da devastação das florestas, especialmente das araucárias, vieram também longos tempos
de seca e muitas epidemias.
449 Cf. OLIVEIRA, C.A. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus. (1992),
p.127.
450 Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do
Instituto Teológico de Santa Catarina, 2001.p.5.
265
gravou na sua memória e nunca esquece, foi-lhe contada pelo seu avô em forma de
conselho:
Vai chegar um tempo que, feliz de você se estiver mais arretirado da cidade,
não é muito bom morar na cidade; vai vim um capa preta, o asfalto, vai vim
uma estrada encapada e vai ser muito perigosa, evite o capa preta. Na cidade
haveria muita maladragem, era para não estar muito no meio das multidões,
das festas.
E, Ribeiro acrescentou: “Eu acho que é uma verdade, hoje as festas dá
perverso.”
Diversas histórias que o povo conta, podem não ser científicas e, muitas
vezes, nem verdadeiras o são. Para os que as contam, talvez não seja isso o que
importa. Entre elas destacam-se aquelas que insistem no cuidado com as Fontes de
São João Maria. É interessante notar que aparece um “pinheiro sagrado”, na história
451
a seguir, contada por Noel do Nascimento . Ele fala da importância do cuidado e
intermédio do Profeta, com orações que ele ensinou e rezava.” E cita um exemplo:
“Um curandeiro de Porto Alegre curou uma senhora que estava a seis meses
acamada com sarampo recolhido, com a oração de São João Maria.” Segundo
451 OLIVEIRA, C.A. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus. (1992), p.
126.
452 Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do
Instituto Teológico de Santa Catarina, (2001), p.9.
266
cumpridas, e outras com roupas muito curtas. Que chegaria ao ponto de não
ser possível distinguir quem seria homem e quem seria mulher.
453
Hidalci Terezinha Ghizoni lembra de uma profecia, do profeta João
Maria, sobre o fim do mundo. Segundo ela, enquanto ele andou pelo mundo, entre
seus filhinhos, Deus jamais acabará com o mundo.” Disse também que “chegaria um
dia em que Deus não precisaria acabar com o mundo, mas que o próprio ser
453 Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do
Instituto Teológico de Santa Catarina, (2001), p.10.
minha conta, que passa o 23 vai saí uma rapa de arma geral, pelo dizer de
seu João Maria, porque deu certo. Tinha que entrá o comunismo. É a lei do
Fidel Castro, governa ao menos 90 dias, daí vem a lei do império.
Ele (João Maria) não disse que era contra o comunismo, ele disse que a lei
depende, né. Depende do cuidado.
Me disse um sujeito ali de Canoinhas: Eu sou comunista até debaixo da água.
Eu fui lá em Cuba, vi o comunismo lá, é uma santidade daquele povo que vou
te dizer. Aquele povo tudo trabalha, você não vê um grito, você não vê um
bar, você não vê um roubo, nada(...) Tudo aquelas casa tem o alimento que
precisa, tem roupa, tem calçado, se tem a criança doente, tem o médico. Bem
cedo as mulher põe as criança nas creche e as 8 horas trais as criança pra
casa. Um povo que é uma maravilha do mundo. Médico especialista(...)
João Maria disse que a pessoa de 60 anos em diante, não todos, mas já tem
poder de fazer milagre. E na verdade tem mesmo. Eu não quero falá mas eu
tenho benzido e curei muita gente. A gente tem poder né, que Deus dá pra
gente. Até vou rezar uma oração de benzimento, pro senhor vê. Essa também
foi o seu João Maria que ensinou, mas ele não deu cópia. Ele ensinou uma
velha chamada Tuca. E a velha me queria muito bem, ela era pobrezinha, eu
era piazinho, eu ia la ajudar ela, puxava água pra ela, uma leinha pra ela, eu
agradava essa gente véia, dava atenção, ela me dava uma cuia de chimarrão,
então ela me ensinou essa oração. Então a gente conta essas coisas pra
essas pessoas que acreditam. Porque o que eu sei eu provo, né. (segue com
a oração, Cf. relato anexo nº 08).
Depois de ter feito a oração, Arnoldo lembrou dos irmãos de João Maria e
de outras profecias que ele fez em relação “ao fim dos tempos”, quando aconteceria
o combate definitivo entre o Anticristo e São Sebastião. Novamente ele faz uma
Manoel que seria um dos irmãos de João Maria, Arnoldo disse que “tem umas
histórias bonitas de milagres que ele fez”, e que ele poderá contar noutro dia,
quando eu lhe procurar e dispor de mais tempo. Quanto ao José Maria, que seria
455
outro irmão dele, ele afirma que “o José Maria ainda não saiu da casa do Pai.
455 Também Manoel Batistaafirma que João Maria teria anunciado que tinha um irmão com o
nome de José Maria. Cf. Relato anexo nº 07.
268
3.1.1.3 Histórias que falam da fé, das intuições, da sabedoria e das lições de
vida de João Maria
Eu disse: bem, eu sei porque quem conheceu o mundo me explicou certo, que foi o São João Maria,
que explicou para meus pais e padrinhos.
Aliriano A. dos Santos
456
Wanderley afirma que o povo “sabe acumular historicamente, que ele
tem sua sabedoria, suas formas de expressão próprias, sua lógica do mundo
cotidiano, sua simbologia e sua linguagem." Do meio deste povo, algumas pessoas
456 WANDERLEY, L. E. Apontamentos sobre educação popular. In. QUEIROZ, J. J. & VALLE, E
(org.). A cultura do povo. (1979), p. 70 a 75.
269
demais. João Maria é um destes casos. Ele possuía uma sabedoria e uma grande
palavras que ele dizia não eram esquecidas facilmente ou não eram esquecidas
jamais. Seu trabalho gratuito e solidário, fazia com que muitos conflitos, dores e
procuravam.
457
Angelo Dourado, ao conversar com João Maria, percebeu nele um
grande amor pela justiça e um carinho especial pelos doentes e pobres. Dourado era
doentes, João Maria aproximou-se dele e pediu que deixasse tocar nos doentes com
sua bandeira. Ao permitir que ele o fizesse, disse-lhe que “sabia que ele advogava a
nossa causa.” Então João Maria respondeu que “não era por nós, mas pela justiça e
que Deus mandou que se sofra com os que sofrem." Esta afirmação de João Maria
apresenta uma grande abertura para o transcendente e denota uma sabedoria que
em atitudes de solidariedade.
457 Apud, FACHEL, J.F. Monge João Maria: Recusa dos Excluídos. (1995), p. 50
sua compaixão pelos que sofrem. Sua sensibilidade solidária, tornava-o capaz de
inclusive de salvar vidas. Edgar Morin diz que, “a compreensão humana nos chega
quando sentimos e concebemos os humanos como sujeitos; ela nos torna abertos a
459
seus sofrimentos e suas alegrias.”
Esta sabedoria transmitida por João Maria aos que o conheceram foi, por
estes, retransmitida aos seus descendentes. É uma sabedoria de vida que foi se
acumulando e sendo ressignificada com o passar dos anos. Logo, as histórias que
hoje são contadas sobre João Maria, podem não ser tão originais quanto se poderia
almejar, porém, o seu valor maior consiste no “sentido” que hoje elas dão à vida dos
descendentes do Contestado.
uma sabedoria popular, e isso se dá, antes de tudo, em pequenas comunidades, por
460 Afirmação de Miguel Correia de Souza, referindo-se a algo profundo e motivacional que
movia os caboclos durante a guerra. Cf. Relato anexo nº 05.
meio de uma história, cujo título é “Tio Eugênio”, mostra a importância de acreditar
nas orações e na palavra de João Maria, assim como no seu poder de mediação
campo:
O Manoel Justino, da Costa do Rio Canoas, queixava-se a João Maria que
estava enjoado de morar no sítio. Família grande, muita trabalheira para
pouco resultado. Como correligionário do Intendente, este, a pedido, lhe
prometera um empreguinho na vila. Lá, no limpo, com um servicinho mais
leve, empregaria as filhas nas casas, os rapazes aprenderiam um oficiozinho,
e quem sabe(...) até alguma leitura?
Seu Justino - interrompeu o monge - sua cabeça é seu mestre. Entretanto lhe
contarei um fato que se deu nas cabeceiras do Rio Canoas.
463 Ibid., p. 56. Felippe diz ter colhido a mesma nas suas andanças pela região do Contestado,
onde exerceu por mais de 40 anos a profissão de topógrafo.
272
Havia lá uma vara de tatetos. Bicharedo chucro e valente. Eles viviam livres e
independentes, fuçando banhados, catando corós e pinhões, raízes e
sementes. Não dava de engordar, mas não passavam fome. Se onças ou
caçadores se aproximassem, eles sabiam onde se esconder nas entranhas
da serra e lá dentro eram eles o dono do rodeio.
Um dia, apareceu um caçador de fora. Era especializado em armadilhas.
Começou por espalhar tratos num carreiro duma lomba muito limpa que
encontrou nas proximidades e deu em cevar os tatetos com milho e outras
rações. Enquanto se acostumavam na ceva e iam engordando, foram
mandriando e se esquecendo de fuçar banhado e comer corós.
Neste meio tempo, o caçador ia erguendo uma trincheira ao redor do rodeio,
sem ser notado. Na boca da trincheira armou um alçapão. Os animaizinhos
agora gordos e preguiçosos nem deram pela armadilha.
Certa noite os tatetos se empanturraram de milho e deitaram a dormir.
Valendo-se da ocasião, o caçador desceu de uma árvore onde estava
escondido, desarmou o alçapão(...) e o resto você imagina.
Não gostei da comparação - comentou com os amigos o Manoel. Não sou
bicho do mato pra me comparar com porcos. Sei me virar!
E lá se foi seu Justino para a Vila. Deram-lhe um emprego e uma foice pra
roçar as ruas, um ordenado mixuruca, um rancho apertado pra morar
azucrinado com a família. Voltar pro sítio não dava mais: tinha vendido a
posse.
Com isso os filhos foram se espalhando, as filhas se "ajuntando"(...) e lá está
o Justino, velho, triste a suspirar com saudade das larguezas que perdeu.
“O destino” é o título de uma história contada por Juventino Rodrigues
464
França . Nesta, pode-se verificar mais um aspecto da sabedoria de João Maria
que consiste no fato de ele colocar a responsabilidade da construção da história nas
se entender. Ele não se colocava como alguém que dava respostas certas e
objetivas para tudo, porém sua maneira simples de falar e sua preocupação em
população, como se pode perceber também na história supracitada, fazia com que
aquilo que ele comunicava, permanecesse na memória popular por muito tempo.
Juventino Rodrigues França conta que seu pai, residindo num sítio próximo à
Água Santa, numa bela noite de luar foi visitar 'seu' João Maria, que
acampava por lá. Com ele havia mais uns três ou quatro vizinhos. Lá numas
alimentares de João Maria. Este hábito, com pequenas diferenças, é citado por
relacionadas à sexualidade.
465 Cecília tem 79 anos e mora em Urubici. Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O
Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do Instituto Teológico de Santa Catarina, 2001.p.10.
274
466
Carmita de Souza lembra diversas histórias, que sua vovó Joana
contava, sobre muitas passagens de João Maria. Nesta seção citar-se-á apenas
no caso desta história, ele aproveita para dar uma lição de vida a uma família de
como alguém que, além de dar lições de vida, fazendo as pessoas refletir sobre
questionar certas atitudes e elogiar outras, fazendo com que cada um refletisse
466 Já citada. Cf. Fichário de entrevistas, pasta nº01, p. 05. Relato de dezembro de 2002.
467 Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do
Instituto Teológico de Santa Catarina. (2001), p.3.
275
lembra das ofertas que eram levadas a João Maria. Diz que ele sabia se lhe eram
doadas de bom coração ou se, por algum motivo, não devia aceitar. A história da
oferecida não foi aceita pelo monge. Quanto às mulheres, da história a seguir, há
quem conta que eram simplesmente “duas mulheres”; outros, porém, contam que a
que levou a galinha era rica, e a outra, que levou ovos ou alho ou outras coisas de
Gramado. Esta é uma das poucas histórias onde aparece uma mulher idosa que se
dizia ou aparece como irmã de João Maria e, de alguma forma, o substituía nos seus
afazeres. Ela tinha praticamente os mesmos hábitos de João Maria e era capaz de
469 Cf. Depoimento anexo nº 06, Justina Caetano da Silva, onde esta mesma história é contada
com algumas nuanças.
470 José tem 58 anos e vive em Lages. Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O Monge
São João Maria d’Agostini. Arquivo do Instituto Teológico de Santa Catarina. (2001), p.7.
276
curá-las. Não é possível afirmar que esta mulher realmente existiu ou que uma irmã
(de sangue) de João Maria habitou a região, de qualquer forma, muitas mulheres
irmão, à irmandade. Sendo assim, pode-se afirmar que esta mulher, poderia ser uma
irmã de João Maria, mas num sentido religioso e simbólico. De qualquer forma, a
história que segue destaca o papel de uma mulher que se afirmava irmã do monge
ou que foi tida como tal. Ela tinha hábitos parecidos com os do monge e era capaz
de realizar milagres e fazer outras coisas grandiosas, semelhantes às que fazia João
Maria’” que, em parte, resume este capítulo. Revelam-se aqui, aspectos importantes
473 Numa entrevista oferecida por Valdir Rodrigues Mafra, ao Padre Thomas Pieters, relata-se
um milagre de João Maria que era contado por diversas pessoas como verdadeiro: “minha
bisavó, batizada por João Maria, dizia que o monge praticou um milagre alimentando doze
pessoas com apenas dois pratos de couve.” Apud, MACHADO, P.P. Um estudo sobre as origens
sociais e as lideranças políticas sertanejas do Contestado, 1912-1916. (2001).
278
possível afirmar que se realmente houve uma dose de fanatismo religioso e até de
caboclos e caboclas que entraram nos redutos e lutaram na guerra, seja mística.
Claro que é difícil delimitar até onde vai a mística e onde começa a loucura
abalado, foi a crença na força ou no poder humano como capaz construir o paraíso
ainda nesta história. Intrinsecamente ligada a essa, estava a crença que atribuía ao
Talvez seja devido a isso que, ainda hoje, descendentes do Contestado sentem uma
milagres e curas de todo tipo. Essa crença foi praticamente a única arma da qual
abalada, pois o próprio Deus parecia ter decepcionado a muitos, com a derrota
sofrida na guerra.
certeza de que os milagres estão acontecendo é um dos aspectos que fazem com
que os excluídos deste mundo não desesperem. Para isso, e por meio deles, criam
sofrimento.
milagre pode ser a cura de uma doença, uma tempestade que não caiu, um grande
Uma das alternativas que restou, depois da derrota sofrida com a guerra,
sentido.
eles não cabem nesta seção porque o enfoque aqui é outro. Aqui, destacam-se
aspectos de caráter espetacular, como o que afirma que João Maria tinha o poder de
475
“caminhar sobre as águas”. Carmita de Souza lembra que sua vovó Joana
contava que
estando João Maria no povoado de Três Barras, desejava seguir a São
Mateus do Sul – PR. Mas, para isso, teria que cruzar o Rio Negro. Chegando
à margem do rio, de madrugada, o balseiro estava quase chegando ao lado
oposto e gritou que não voltaria para passar mais ninguém, pois já era tarde e
iria para casa dormir. Porém ao apontar nas margens do Paraná, o balseiro
encontrou João Maria que já estava lá. Contaram que o homem ficou tão
impressionado que acabou falecendo dias depois.
476
Arnoldo Ferraz também lembra de uma história semelhante, onde João
Maria afirma que a sua leveza possibilita que o vento o carregue até o outro lado do
475 Já citada. Cf. Fichário de entrevistas, pasta nº01, p. 06. Relato de dezembro de 2002.
Passado um tempo ele varou lá, e perguntaram: mas como o senhor passou
lá, aquele dia? Ele disse: não, eu sou levianinho, eu sou como uma pena,
então quando eu quero passar, dá um ventinho e me leva; me deu um
ventinho e me passou pro outro lado lá.
477
Célio de Oliveira relata outra história parecida com estas, que é contada
em Porto União, por pessoas que moram às margens do Rio Iguaçu. Eles afirmam
que certa vez São João Maria, estando naquele lugar, queria atravessar o rio.
Porém, buscou ajuda junto aos pescadores que ali se encontravam e nenhum deles
se prontificou a atravessá-lo.
Então o monge esticou um lenço sobre o rio, subiu nele e atravessou, mas
478
antes ele rogou várias pragas aos pescadores e disse que dentro do rio a
partir daquele dia haveria um monstro que iria comer aqueles que ali
tentassem atravessar.
Os moradores falam que naquele lugar ninguém mais atravessou o rio nem
pescou, com medo do tal monstro.
A santidade de João Maria é, ainda hoje, realmente reconhecida ao ponto
de se construir histórias que, além de lhe atribuir um grande poder sobre as forças
atribuído, como vimos acima, até mesmo "o poder de atravessar sobre os rios, sem
servia de barco para João Maria, era vermelho e não foi um rio e sim um lago onde
ele passou; e que não foi por motivo de não ter sido atendido ou acolhido pela
477 OLIVEIRA, C. A. de. A construção e a permanência do mito de São João Maria de Jesus.
(1992), p.116.
478 Não é o objetivo desta pesquisa aprofundar aspectos teológicos, assim mesmo, vale apontar
para o fato que a imagem de um Deus vingador é muito forte, um Deus que pune os maus e
recompensa os bons, um Deus que castiga. Por isso, desagradar a Deus e aos seus enviados
pode resultar em problemas sérios contra um povo ou contra pessoas em particular.
480 Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do
Instituto Teológico de Santa Catarina, (2001), p.5.
282
comunidade, mas porque ele queria “mostrar o poder que tinha e queria pousar do
481
outro lado do lago.” Jandira Moreira de Sá também lembra que seu Pai contava
que ninguém conseguia passar o rio Pelotas e o Canoas e “São João Maria passava
e ele tava do outro lado de lá e do outro lado de cá. E ninguém via ele passar e ele
passava.”
482
Semelhante a estas histórias, Felippe registrou uma na qual João Maria,
ao passar sobre uma pinguela, no Rio da Barra, quando este estava “espumando de
uma cachoeira, quando o milagroso passageiro sai calmamente pelos ares, pousa
acontecido.”
Não é muito comum ouvir histórias nas quais João Maria joga pragas
contra os que não o ouvem, não são solidários ou o perseguem. Porém muitas
contra ele ou contra alguém teria como consequência um dano ou um castigo contra
483
si mesmo. Como exemplo, tem-se uma que Felippe registrou, quando certa
cinzas.”
484
Jandira conta também que João Maria aparecia em certos sonhos das
pessoas para lhes tirar dúvidas a seu respeito. Diz que o seu pai não acreditava que
era dele aquela foto do “santo” que muita gente possuía em suas casas, até que
482 FELIPPE, E. O último Jagunço. (1995), p.20, encontrou e registrou pelo menos 32 lendas ou
histórias presentes na cultura popular, relacionadas a João Maria, quando por durante 40 anos
exerceu a profissão de topógrafo nos sertões do Contestado.
484 Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do
Instituto Teológico de Santa Catarina. (2001), p.4.
283
certa vez, em sonho, São João Maria disse-lhe: “Fermino você não acredita, mas é
ainda de servir aos seus interesses escusos e propagandistas. Certa ocasião ele foi
procurado por alguns políticos que queriam ser fotografados ao lado do monge. “Ele
não se fez de rogado, porém ao ser a chapa revelada, só ele apareceu. Os políticos
485
haviam desaparecido.”
486
Hidalci Terezinha Ghizoni conta que o profeta João Maria teria
transformado areia em açúcar e em café, em prol de uma mulher pobre que não os
possuía e assim não poderia oferecer o café ao profeta, que lhe havia pedido. Ela
também conta que o Profeta curou uma criança “desenganada” pelos médicos. Ela
diz que, para curá-la, “ele rezou e abençoou a criança, assim a criança ficou curada
487
e nunca mais teve problemas de saúde.” Felippe relata uma na qual Joãozinho
uma forte dor de dentes “ao molhar o rosto e a cabeça na aguinha de São João
Maria e ao tomar dela alguns goles, sarou repentinamente.” Diversas outras histórias
batismo nas águas de São João Maria e especialmente um fato milagroso que
486 Depoimento colhido por CRUZ, A. & SÁ, D. O Monge São João Maria d’Agostini. Arquivo do
Instituto Teológico de Santa Catarina, (2001) p.10.
nome a criança, mas batizá na água de São João Maria e em nome de São
João Maria. Então, se a criança era muda, ela falava, se era aleijada, ela
sarava, se era doente, ela sarava. Então nessa época, fizeram uma romaria
tão grande, tão grande que todo mundo acudia lá prá Santa Emídia, prá
batizar as crianças, né. Como nós morava perto, a gente sempre tava ali. Nós
era criança, a gente sempre se juntava em bastante crianças e ia lá, né.
Então minha mãe convidou uma pessoa e levou para batizar o meu irmão:
compadre João e o Ouride. O Ouride já era batizado, mas batizaram de novo.
E o compadre João não falava e não caminhava. (Mas) Só num tempo (de
repente) ele falou e caminhou de verdade. E (assim acontecia com) muitas
crianças!
Mais do que para mostrar o poder miraculoso do santo, talvez fosse para
demostrar que, quem é solidário, nada perde ao doar do pouco que tem. Nesse
sentido tem-se uma história que é muito contada, na qual aparece João Maria como
alguém que oferecia almoço para diversas pessoas, tendo apenas uma panelinha de
couve. É tido como milagre, não apenas o fato que ele dava de comer a muitos com
apenas uma panelinha de couve, mas, também o fato que a quantidade de comida
contarem esta história, às vezes acrescentam que havia também um pouco de feijão
489 490
ou farofa junto à couve. Sebastião conta da seguinte forma esta história:
Teve um dia que João Maria tava junto com uns vinte home conversando. Daí
eles falaro que iam armoçá; mais ele falô pra eles armoçá com ele. Mas todo
mundo ficaro assustado, porque ele só tinha uma panelinha de couve, era só
o que ele comia. Daí serviu todos, e todos comero bem e ficaro satisfeitos.
É claro que maior parte dos milagres atribuídos a João Maria são de curas
que ele teria realizado. Mas como este aspecto já foi citado numa seção anterior,
citar-se-á aqui apenas um exemplo destes milagres de João Maria. Ao que parece,
491
no contar de Justina C. da Silva, este milagre teria sido realizado por um
“velhinho” que, no entender dela, é o João Maria, mas pelo fato de não o citar
enquanto tal, pode-se deduzir ou que a mulher curada não o conhecia ou que ele
489 Cf. Relatos anexos, nº 04 e nº 06, de Aliriano A. dos Santos e Justina C. da Silva.
490 Morador de Porto União, tendo 76 anos quando deu este depoimento a OLIVEIRA, Célio
Alves de. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus. (1992), p.116.
492 Num outro momento do relato, Justina fala que João Maria disse: “eu venho visitar meus
cruzeiro mas ninguém vai me ver.” Neste caso este velhinho que estava indo visitar o cruzeiro de
João Maria seria o próprio, porém não era reconhecido.
286
Ele disse: e o que a senhora fez que está sem o bastão e sarou a perna?
Ela se assustou: minha Nossa Senhora! Veio um homem aqui e fez uma
simpatia e disse que depois de 5 dia eu ia me esquecer do bastão, pois daí
eu vim atender o senhor e me esqueci do bastão.
E sarou a perna da veia, engordô de novo.
Como já foi possível perceber em algumas histórias acima, João Maria é
poder, este poder ele deixou para algumas pessoas e estas pessoas podem ou
devem repassá-lo a outras. Este poder continua sendo exercido pelo próprio João
Maria, especialmente pelo fato de que “ele não morreu”. Estando encantado ele
pode continuar a oferecer seu poder aos que ele deseja oferecê-lo e aos que o
que dele receberam, o pode de curar, de afastar perigos e males. Este poder nem
dele para recebê-lo, mas no seu caso, ele aprendeu o ensinamento dele em sonho.
Um dos ensinamentos que dele aprendeu foi curar “ofensa de cobra.” Ele
afirma que “no ensinamento dele e com o poder dele, eu curava ofensa de cobra pra
criação e gente, toda a semana.” Ele disse ainda: “Eu pedi os poder dele pra fazer
uma defesa e aprendi uma defesa pras cobra não morder ninguém e faz trinta anos
que acabou a força das cobras. O que era mais venenosa apareceu morta e as
protege o seu devoto contra acidentes e doenças. Ele entende que foi o próprio
Deus que deu todo aquele poder a São João Maria. Ao procurar se tratar da saúde,
Anacleto fala que o poder de São João Maria é fundamental. Ele afirma: “eu já tive
494 Ibid.
287
nunca me aconteceu
batizar uma criança mesmo antes dela nascer. Ele afirma que “se uma mulher tava
pra ganhar uma criança e fazia a intenção de levar pra ele batizar e ser padrinho,
subiu 148 degraus de joelhos para pagar uma promessa.” A graça que ela alcançou
foi a cura do seu filho Gustavo, de 3 anos, que “tinha problema no coração e o
médico falou que ele precisava passar por uma cirurgia”. Ela diz: “depois de eu fazer
a promessa, ele ficou bom e não teve mais de ser operado; só pode ter sido um
milagre.”
comum ouvir dos descendentes do Contestado que João Maria “não tem morredô” e
que ele estaria morando “na cidade encantada”, situada no morro do Taió ou no
Taiozinho. E, ainda, que um dia retornaria. Em torno desse fato, várias histórias são
contadas. Algumas falam de como ou quando ele anunciou que se retiraria para o
morro do Taió e outras falam de como foi ou é possível visitá-lo. Justina C. da Silva,
que foi durante “uma derradeira missa que ele disse lá em Canoinhas, onde existe,
meio retirada da cidade, a igrejinha do São João Maria e as água dele.” Arnoldo
conta que
Ele ficou oito dia lá. Um derradeiro dia ele batizou oitenta criança lá. Ele
rezava missa. Era uma festa, aquele povo, barracas pra todo lado(...) Daí ele
despediu-se do povo. Ele disse: agora vou cumprir minha missão, vou
descansar, eu vou ficar no Taiozinho, porque lá é uma cidade encantada,
então vou ficar lá com os bugre, mas mais tarde vocês saem daqui e vão
assistir uma missa lá no Taiozinho, vai ficar bem pertinho.
Eles ficaram bobo, né. Mas ficou pertinho, pois agora tem os carro né. Ele
possível visitar o “Seu” ou o “São” João Maria, que estaria encantado no Morro do
que, quem teve acesso a este lugar encantado, onde mora João Maria, eram
muda consideravelmente de uma para outra história. A primeira, citada a seguir, fala
de uma “cidade encantada” e a segunda fala que “João Maria está encantado” no
morro. Outra diferença importante é que a primeira história fala de dois homens e
não apenas um, como na segunda, que tiveram acesso ao local; falar de dois
homens significa dizer que não foi alguém que tirou o fato da sua própria
imaginação, mas que havia outra testemunha. Porém, há outra variante no que
tange ao acesso ao local. Na primeira história, uma pessoa encontra o local, mas
sozinha não pôde entrar, só conseguiu depois que voltou com um amigo. Já na
segunda história, o local que dá acesso ao João Maria está sendo cuidado por
que conduz. Ele vai à frente, e mostra o caminho para aquele que pretende chegar
até o santo. É verdade que, na primeira história, também existe alguém à porta,
porém este alguém, que também indica o local onde está João Maria, não é
segunda história, além de uma escada, existem certos animais, nos dois lados do
caminho que dá acesso ao santo, que são as duas onças e as duas cobras. Já na
primeira, há apenas um grande perau (paredão de pedra) e nele uma porta fechada;
é preciso passar por ela para chegar à cidade encantada e passar por dentro desta
cidade, para chegar ao profeta. Ambos “proseiam” bastante com João Maria, mas,
na hora de voltar, os da primeira história são conduzidos pelo profeta para a mesma
497 A primeira história citada encontra-se no relato anexo nº 08, de Arnoldo Ferraz e a segunda
encontra-se no relato anexo nº 04, de Aliriano A. dos Santos.
290
porta que eles entraram. Já o da segunda história, é guiado pelo santo para outro
caminho, sendo que, seguindo por aquele caminho, ele retornaria ao lugar de onde
veio. Vale destacar ainda que, na primeira história, o homem renuncia a uma festa e
sai disposto a encontrar-se com o seu padrinho João Maria. Já na segunda, antes
do homem dirigir-se até João Maria, ele se perde no mato, anoitece, tem que subir e
repetido nas duas histórias, é o fato de que ele prometeu voltar um dia. Para isso,
ambas apresentam alguns motivos que farão com que ele volte, como o
cuidados que o povo deve ter para não tardar o seu retorno, como o fato de não
história.
Primeira:
E tinha um rapaz, que o seu João Maria era padrinho desse rapaz, ali em
Papanduva, por ali, mas isso faz muitos anos.
Ele levantou bem cedo e disse para a mãe: mãe me mate uma galinha e faça
um revirado dessa galinha, que eu quero visitar meu padrinho, João Maria.
Ela disse êh meu filho!
Eu vou, vou visitar ele sim, minha mãe!
Quando fez nove dia ele chegou de vorta.
Ela disse: viu teu padrinho?
Vi!
Onde é que ele está?
Tá lá na cidade do Taiozinho. Tive lá com ele. Tá lá, uma cidade muito bonita,
uma igreja que representa ser de ouro por dentro.
Ai ele contou, e ficou uma história.
Ali em baixo do Taió tinha uma povoação. Fizeram uma festa, o rapaz não
quis ir na festa. Disse: eu vou caçar. Matou uma paca, e tal, de repente, uma
porta no perau. Chegou lá, bateu, e veio uma voz lá de dentro: vai-se embora,
pegue a tua cacimba e vai-se embora! Ele foi, chegou na casa, o outro rapaz
que não tinha ido, foi proseá com ele.
Disse: rapaz, eu vi uma porta lá no perau, que até dá pra duvidá.
No perau? Disse: vâmo vê.
Chegaram lá, acharam, bateram na porta e veio aquela voz: mas você ainda
291
498
Enrique Dussel é alguém que destaca o valor, o sentido e a potência
América Latina, ele afirma que “no fundo desse messianismo (com seus santos e
criativa, também artística, que nos revela o potencial libertador histórico dos pobres.”
do Contestado, sobre João Maria. Com certeza, centenas de outras histórias são
contadas aqui e acolá, a seu respeito, e também sobre o Contestado. Para o povo
da região, estas histórias são guardadas e cuidadas como sagradas, pois as suas
verdade que muitas das histórias que o povo conta, não são propriamente de João
Maria, mas são a ele atribuídas, para que assim as mesmas mereçam crédito e
499
respeito. Como afirma Zeno de Souza Matos: “hoje em dia, acontece qualquer
coisa e se diz: bem que o São João Maria dizia que ia acontecer. Muita gente que
textos acima citados são considerados sagrados. Testemunha disso é o fato de que,
em muitos casos, quando existem por escrito, são guardados em locais seguros,
onde poucos têm acesso e estão protegidos para não se corromperem. São textos
mais importantes da herança cultural que possuem em suas casas. Eles contam os
"feitos" dos monges e fazem refletir sobre as mais diversas situações do cotidiano.
Muitos deles ainda estão sendo repassados de geração em geração apenas pela
tradição oral, sendo portanto mais facilmente ressignificados com o passar dos anos.
498 DUSSEL, E. Oito ensaios sobre cultura latino-americana e libertação. (1997), p. 159.
várias músicas e inclusive fez uma peça de teatro que procura resgatar essa
memória. João Maria e José Maria recebem uma posição de destaque. A primeira
“razão do Contestado” e de não contestá-lo sem saber sua razão. Ele concebe o
que “foram mais de 20 mil jagunços nos redutos, bem armados, combatendo inté a
morte, é o famoso Contestado.” Sendo que o refrão repetido várias vezes é, “não
502
pessoas a cada apresentação assistiram ao espetáculo.
Na peça, em uma das falas de João Maria, ele aparece, não como
que fala palavras agressivas e apocalípticas, arrancando assim, soluços dos que o
ouviam. Ele anuncia tempos difíceis, tempos de guerra e destruição, que convoca a
fazerem penitência e a que tomem providência, diante da triste realidade que está
por vir. Antes de o monge fazer esse discurso, citado a seguir, os atores e os
músicos, cantam:
O pai véio João Maria
Não qué pôso nem esmola
Afasta a agonia
Batiza, benze e consola.
/: lá vem João Maria, a bença, a bença :/ (6 vezes)
O sol preparou o dia
Nem mesmo pediu licença.
/: lá vem João Maria, a bença, a bença :/ (6 vezes)
O povo corre prá estrada
Prá ver João Maria que vem
Lenda veio antes dele
Pelo atalho da crença
/: lá vem João Maria, a bença, a bença :/ (6 vezes)
502 Cf. Fichário de entrevistas, pasta 06, p. 01. Esta mesma peça já havia sido encenada em
1980, em Curitiba, pelo Teatro Paranaense de Comédia, sob a direção de Emílio Di Biasi. As
músicas do espetáculo, “O Contestado”, foram editadas em disco em 1979 pelo Museu da
Imagem e do Som. A gravação foi feita pelo SIR – Laboratório de Som e Imagem, sendo as
letras e músicas de autoria de Romário J. Borelli.
296
que o mundo ia exitir mir anos, mais que não ia passá disso. E Deus disse:
“faze que eu ajudo...” E o que é que vanceis estão fazendo? Nada! Tão aí
sem tomá providência. Tão aí como os bicho. Mais eu aviso: a cidade de
Porto União vai desaparecê nas águas do Iguaçu! A cidade de Curitibano vai
virá tapera. Logo, logo vanceis vão tê treis dia de escuridão completa. O sor
não vai passá no céu. E vejo muita desgracia diante de vanceis. Guardem
velas pros dias de escuridão!
Dentre os projetos artísticos de grande repercussão em Santa Catarina
vale destacar, além do disco e a peça de teatro de Romário Borelli, outros dois
filme dirigido pelo cineasta Sylvio Back, em 1971, chamado “A guerra dos pelados”,
Zumblick. Ele foi um dos poucos pintores que registrou nas telas os episódios do
Movimento do Contestado. Essa produção artística foi por ele iniciada em 1956,
totalizando onze
tela e em grandes
dimensões, onde o
bélica do Contestado e,
destaca o messiânico e
místico do caboclo em
503 Foto do quadro pintura em tela de Willy Zumblick, que destaca José
torno do monge.
Maria reunido com seu conselho de guerra.
503 Cf. Anexo duas pinturas de Zumblick sobre o Contestado. In: Site: O Motin,
http://members.tripod.com/~omotim/pintor.html
297
arte, das quais terão destaque aqui, algumas nas quais João Maria é citado. É um
Contestado.
504
A presente décima, por ele colhida, foi fornecida por João Maria
Linhares, residente nos campos de Palmas e que se dizia afilhado de São João
sensibilidade e o cuidado para com os animais e para com toda a natureza. João
cultivo correto da terra-mãe, o zelo pela pureza das águas e a preservação dos bons
costumes.
antropologia, sociologia, política, ética e outras. A poesia que segue, narrada por
506
Felippe , revela um pouco isso:
Em virtude dos ensino
Paz e amor que instruía,
Cada um amasse a Deus
conforme entendia.
Sendo Deus o Pai de tudo
É que tudo Ele amava;
As Suas Lei, pra tudo iguar
Ter temor não ensinava,
Inimigos Deus não tinha
A ninguém Ele odiava,
Singeleza de Suas Leis
A natureza demostrava,
Quarqué um dos fíio Dele
Só por si, representava,
505 THOMÉ, N. Os iluminados. (1999), fala de pelo menos sete monges que atuaram ou
passaram pela região do Contestado, antes da guerra, e de vários outros, que atuaram depois
da guerra.
gente. Todos queriam ouvir seus ensinamentos. E por causa de seus ensinamentos,
as autoridades maiores ordenaram ao delegado que prendesse o tratante. Sete
naquela Igreja, foi organizada uma “Ordem” denominada por Felippe de “Sociedade
entre outras coisas, faz referência aos foguetórios, às velas acesas, à estampa de
“São” João Maria, ao capelão que puxa a reza do terço, com persignações, preces e
cantos sacros à moda cabocla e à memória dos ensinamentos do monge, que era
transmitida dos mais velhos para os mais novos, logo após a reza e no pátio da
capelinha. Diz ele que, “ao par dos folguedos, o assunto principal é em torno de 'seu'
João Maria.” E que, nestes relatos, “não há quem não tenha uma maior pra contar,
508 Este local situa-se a mais ou menos 1,5km do centro da cidade, ao lado sul. Foi construída
sobre uma vertente de água potável. Conta a tradição local que junto da qual o monge João
Maria pernoitou por três vezes.
vangloriando-se do prestígio que goza junto ao santo.” São “causos” nos quais João
510
Maria aparece como pau prá toda obra. Nestes, afirma Felippe, pode-se conhecer
onde “se aboletaram sobre o coreto” Manoel Lima e Herculano França, e entre eles
511
o gaiteiro. O mesmo é assim relatado :
LIMA – 1
Tô aqui neste salão, prá cantá um desafio
Cumprimento nhô Frorêncio, por respeito, é meu tio:
Adispois todo este povo, moradores do rocíio.
HERCULANO – 2
Tio Frorêncio é meu padrinho, a sua bença eu li peço
Mais a bença da madrinha, eu suprico nestes verso:
Pra honrá toda famíia, as palavra eu não meço.
LIMA – 3
Tua metrage é meio curta, seja parmo ou polegada
Seja arquere, quarta ou litro, é escassa tua roçada:
Quemas campo só com chuva: não tem cinza a sua quemada.
HERCULANO – 4
Oi qu'eu roço, quemo e pranto, chego terra, carpo e côio,
Mas vancê, seu mandrião, tem coati, fica no môio:
Vem o tempo das coiêta, toma ferro, cóie joio.
LIMA – 5
Tu t'engana véio amigo, vá la em casa e vê o paió
Atuiada estão as borsa, com atíio de cipó:
Minha casa é de fartura, onde escorre o meu suó.
HERCULANO – 6
Se confiá no teu suó, tua famíia passa fome,
Se desperte camarada, me enfrente se é home:
Te debruce nesta gaita, vem honrá teu sobrenome.
LIMA – 7
Sempre honrei meu sobrenome, com corage e muita garra,
Festejando João Maria, aqui canto só por farra:
LIMA – 17
Veio ao mundo João Maria, percorrê nosso sertão,
Ajudando nóis na vida, e nos dando mir lição:
Ensinô nóis tê respeito, e zelá das criação.
HERCULANO – 18
Bem por isso nesta data, não é dia de provocá,
Já que tudo semo irmão, vamo tudo se abraça,
Esperá ano-que-vem, pr'os festejo renová.
LIMA – 19
Que São João Maria dos França, como aqui é conhecido,
Abençoe esta famíia, e este povo tão querido:
Festejando para sempre, este dia nunc'esquecido.
HERCULANO - 20
A famíia nunca esqueça, esta nossa tradição,
Que em todo o mês de junho, bom Jesus e São João,
Sejam sempre festejados, com churrasco e com leitão!
E, para concluir esta seção e ao mesmo tempo dar abertura à seguinte,
vale dizer que há uma riqueza imensa de formas e expressões que os descendentes
Contestado, que fala dos inúmeros milagres de João Maria e do final de sua vida.
João Maria ao se acordá
Deu por si cá na froresta,
Passarinho e bicharada
Ao redó fazendo festa.
Como fíio de perdiz
Se alevanta e sai andando;
Assistido por São João
Lá o povo abençoando
Os milagre que ele feiz
Inda tão por si contá,
Escrevendo em doze livro
Só em mais doze caberá.
Muito longa a caminhada
Que levô cumprindo a sorte,
Quando um dia, chegando a hora
512 Ibid., p.18 e 19. Não aparece o nome do autor deste poema apresentado por Felippe.
305
totalidade, pois um símbolo dirige-se ao ser humano integral, e não apenas à sua
514
inteligência.” Para ele,
o pensamento religioso é uma área consubstancial ao ser humano. Ele
precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos
da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de
conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações
irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem
uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser.
Ao estudar os povos primevos, Durkheim percebeu que nos símbolos
sagrados existe um "mana", que é a força que o símbolo exerce sobre quem o
respeita. Desta forma, poder-se-ia dizer que os caboclos que têm em sua casa uma
venerar. Entendem que não cuidar ou fazer pouco caso da mesma, é agredir e
homem precisa antes despojar-se de tudo o que considera profano. Talvez fosse
possível afirmar que esse fenômeno existe em todas as culturas. No Contestado, por
Também João Maria, mesmo não sendo criança, foi interpretado como
quem de tudo se despojou, para servir a Deus e àqueles que encontrava pelo
caminho. Ele não tinha família, nem dinheiro, nem casa, nem conforto, etc., além
Contestado. Vários dos símbolos por eles utilizados foram considerados amuletos,
515 Um exemplo disso são as cinzas e o carvão que restavam das fogueiras de João Maria. As
pessoas as recolhiam não apenas para fazer chás ou remédios, mas também os usavam como
patuás, os guardavam em casa como “símbolos”, e com isso sentiam-se protegidos contra
muitos males.
516 Nilson Thomé arriscou-se defender esta tese na sua obra Os iluminados (1999) p.123, 226.
307
males, até da morte. É possível que o próprio João Maria, e outros líderes místicos
vida, o povo busca na magia um apoio, uma proteção, uma defesa e um certo
517
otimismo para não desesperar. Segundo Alexandre Otten, “também a magia e a
rústico”, vivido pelos sertanejos na sua luta pela sobrevivência, contra as doenças e
a miséria, e também na sua resistência contra a opressão dos mais fortes, ele afirma
uma oração milagrosa, contida na “carta celeste”, ensinada pelo seu João Maria, e
com isso cura muita gente. Ele afirma ter usado a oração para curar da loucura um
vizinho seu. Ele fala também do poder desta carta, de inclusive, em proteger contra
tiros:
O Chico Grein atentou-se, perdeu a cabeça, pastava como cavalo. Enloucou-
se. Ele é um homem rico, alemão. Não é querer falar, mas o Deus deles é o
dinheiro. Não rezava, nem nada. Daí levaram ele lá prá Florianópolis, lá
ensinaram ele rezar, ai veio-se embora e enloucou de novo.
Ai eu disse pra comadre Vitória (esposa do Chico): copie esta oração, põe
embaixo do travesseiro desse louco e nunca mais o diabo atenta ele!
Ela disse, pois se for, eu faço.
Daí a nora dela escreveu (copiou) mas não escreveu tudo(...) E ela colocou
debaixo do travesseiro e ele não enlocou mais.
Porque esta oração atropela o que é de mal, na boa fé nada atenta. Esses
antigo às vezes brigavam e um descarregava o revolver no outro e não
acertava nenhum tiro, porque eles usavam essa oração. Ter essa oração com
fé não abala ninguém. A bala não chega no corpo da pessoa, né.
519
Alves entende que, um povo, sempre que deseja, apela para a magia,
solidão e da impotência, o ser humano agarra-se à magia e, por meio dela, procura
encontrar um mundo que possa ser amado, mesmo que apenas nos símbolos. Este
é um caminho que o homem toma ao procurar criar um mundo que faça sentido.
Desta forma, pode-se afirmar que, ao plantar cruzes e abençoar as fontes de água,
ou a história, em torno de João Maria, de “mística”. Era uma mística que consistia
o uso de uma pequena cruz que carregava consigo, batizar utilizando-se da água e
de algumas orações e preces, acender um fogo para se aquecer nas noites frias,
permitindo ou sugerindo que o carvão fosse usado com remédio, utilizar-se de uma
Não eram muito mais do que esses os objetos que eram utilizados por
João Maria e que compunham os principais símbolos de sua mística. Por meio
deles, João Maria falava das coisas invisíveis e imagináveis que dessem sentido à
vida daqueles e daquelas que, em muitos casos, já haviam perdido tudo, ou seja,
tudo lhes tinha sido tirado, inclusive o respeito, o reconhecimento, a dignidade e até
a vida.
em algo mais.
Esta pesquisa não pretende fazer uma análise aprofundada dos símbolos
do Contestado a partir das concepções supracitadas. Talvez isso possa ser objeto
de um estudo posterior, pois aqui o objetivo não é fazer uma análise exaustiva dos
hoje, um grande poder de atrair, estimular e manter a coesão dos descendentes dos
Contestado a um alto grau da realidade, ao ponto de, talvez, sem eles ou sem a
e sem sentido.
Sendo assim, eles não foram gestados durante o Contestado, mas talvez lá
521 AZZI, R. O catolicismo popular no Brasil. (1978), p. 11, afirma que “o catolicismo popular
esteve sempre bastante próximo dos cultos africanos e ameríndios, gerando não poucas vezes,
expressões religiosas que podem ser consideradas como verdadeiro sincretismo religioso.”
310
símbolos, como a terra, rochas, cachoeiras, nascentes, fogo, árvores, animais, etc.
Alguns destes símbolos são “humanizados”, e o culto já não é mais prestado a uma
522
“coisa”, mas à “mãe”, ao “espírito” que vive naquela realidade.
foi afirmado, mais do que uma explicação possível, ampla, objetiva e racional, o
jamais isto seria possível, pois, se assim fosse, ele deixaria de ser símbolo. “A
explicar ou analisar a todos e com profundidade, propõe-se citar tantos quantos foi
possível mapear, e a aprofundar algumas reflexões em relação a cinco deles,
apenas alguns aspectos serão citados. São eles: “as medidas do Monge”, “o
bastãozinho”, “os oratórios”, "os lugares de pouso", "cinzas", "a vassourinha", "a
medida", "as fotografias", "as profecias", "os ensinamentos", "as bandeiras", "a cuia
de chimarrão" e "as erveiras", que também possuem certa importância ou são até
duas. Eram cordões, fitas ou tiras de pano, uma com 1,68 ou 1,70 metros, que
ele, amarravam essas medidas nas suas grutas, nos poços de água que ele teria
abençoado, ou em outros locais onde ele poderia “estar ou por ali passar.” As fitas
524
são ali colocadas juntamente com um agradecimento ou pedido feito ao santo.
Durante a guerra do Contestado, era comum usar fitas no chapéu ou junto aos
arreios do cavalo. Acreditavam, com isso, que estavam protegidos contra os perigos
e os inimigos.
525
- O bastãozinho. Frei Rogério encontrou-se, em certa ocasião, com
João Maria. No seu relato, ele conta que João Maria “trazia um bastão na mão e um
uma bengala. Segundo ele, “se você colocava esse bastãonzinho numa roça, nada
mexe na planta. Ele abençoava aquele bastãonzinho e também servia para remédio,
era raspado e, com a raspa, feito um chá pra qualquer doença.” Também Justina C.
527
da Silva fala que, se alguém pedisse para fazer um remédio pra uma criança, ele
ia até a porta e não entrava. Segundo ela, ele dizia: “só quero que me dêem ordem
524 Cf. Anexo, foto da gruta de Santa Emídia, situada no município de Irineópolis, Comunidade
de Bom Sossego, onde João Maria teria passado alguns dias. Muitas pessoas para lá se dirigem
para fins diversos como batizar, procurar curas, agradecer e pedir graças ao santo. Neste local,
como pode-se conferir na foto, estão fixas junto a uma árvore muitas fitas ou medidas de São
João Maria.
de dar três bastãozadas aqui na porta. Daí ele pedia uma faca e raspava aquele
bastãozinho e mandava ponhá numa caneca e ponhá água quente em cima e dizia
as palavra dele.”
couro ou madeira, eram guardados em casa e eram consumidos aos poucos, sendo
(sacolinha de couro) que João Maria tinha e, em certa ocasião, ao encontrar-se com
seu pai,
Ele deu um pedacinho pro pai e disse: quando tiver um doente que não
pegue remédio, é esse aí o remédio. Você pegue uma água bem limpa e
ponha a ferver na chaleira, daí ponha essa sola no copo e despeje a água
quente ali e deixe pará um pouquinho. Dê dois dia pro doente. Durante o
tempo que o doente toma esse remédio ele não pode comer carne e os
outros não podem dizer nome. Se disser, nada feito. O pai não tirava esse
coro da guaiaca. Um dia ele pinchou a guaiaca com tudo. Já tava bem
piqueninho aquele courinho, pois ia gastando.
- Os oratórios domésticos. São um componente a mais dentro das casas,
imagem de Nossa Sra. Aparecida ou outra imagem de Maria. Uma prática frequente
ritual quando precisam fazer uma viagem, uma cirurgia, diante de uma doença
528 Segundo AZZI, R. Catolicismo popular no Brasil. (1978), p. 25, “depois da cruz o oratório
constitui outra expressão bastante singela da devoção popular e tradicional do Brasil. O oratório
é um nicho que abriga um crucifixo ou uma imagem de santo de peculiar devoção. Os oratórios
são conservados tanto em casa como fora dela, e algumas vezes transportados por pessoas
devotas em suas peregrinações religiosas.”
313
que esta tradição continua viva. João Maria continua presente nos oratórios das
São pequenos cercados de ripas de madeira, com uma pequena cruz em seu
interior. Eles marcaram os locais onde João Maria teria feito parada, em
- As cinzas. São as que resultaram das fogueiras feitas por João Maria
serem usados como "patuás", para proteção pessoal ou como remédio curativo.
"vassourinha de São João Maria". João Maria a usava para fazer chá por infusão e
“ao ser apelidada, tal raminha perde o efeito.” Ele lembra de como São João Maria
aparece em três poses, duas sentado e uma em pé. A mais conhecida em toda a
região e reconhecida como sendo a verdadeira foto de São João Maria, é uma em
que ele aparece sentado e com as pernas cruzadas. Especialmente esta foto atrai
muitas preces e orações dos devotos. Ela não é considerada apenas uma imagem
do santo, mas é o próprio santo que, por meio da sua imagem, convive junto àquela
pessoas, ao saírem para viajar, carregam consigo o “quadrinho” com sua foto, em
sinal de proteção.
habitavam a região e tinham a tradição de usar suas folhas para fazer o chimarrão.
por respeito ou pelo temor de que algo de ruim pudesse acontecer, foram cuidadas e
não só dos caboclos e caboclas, mas de grande parte dos habitantes do planalto
as pessoas tornando-as mais amigas e solidárias. Talvez seja por isso que sempre
levava consigo a cuia de chimarrão e oferecia o chimarrão aos que iam ao seu
comum ouvir as histórias sobre João Maria e os conselhos que ele dava, assim
315
quilômetros da cidade, existe um “morro da água santa”, santificado por João Maria.
Lá existiu também uma erveira de São João Maria, que desapareceu de tanto os
Elas variam conforme o rezador. Cada um reza as suas orações da melhor maneira
bandeira do divino, de cor branca com uma pomba vermelha ou vermelha com a
pomba branca, e outra era uma bandeira branca com uma cruz verde ao centro.
Sabe-se que João Maria teria usado uma bandeira como remédio. Ele a encostava
no doente a fim de curá-lo. Nas “formas”, os que iam na frente sempre carregavam
grandes bandeiras, a fim de manifestar que à frente de sua luta estava o Divino
Espírito Santo, Jesus Cristo crucificado e o desejo de paz. Eles simbolizam a força e
Contestado, ainda hoje estas bandeiras são esteadas em dias de festa e, em alguns
e abençoadas por ele. Elas se constituíam nos locais preferidos pelo Monge para
morar. Grande parte das suas noites ele teria repousado em alguma gruta. Ao
algumas destas grutas, normalmente situadas em locais de difícil acesso, até hoje
fazer suas orações e preces. Atualmente muitas destas grutas estão sendo cuidadas
Lurdes.
perceber que muitos se orgulham em poder mostrar algum símbolo que “ganhou” de
João Maria ou de alguém que dele havia ganho. Para muitos, são verdadeiras
Maria ao passar pelas redondezas sempre deixava algo como um pedacinho de uma
317
cruz que havia plantado e brotado, uma amostra de “vassourinha”, uma fita
correspondente à sua altura, e muitos outros amuletos, bentos por ele, que eram
usados para combater ou espantar os males. Quem quer que guardasse algum
daqueles amuletos estaria livre dos males, doenças, pestes, fome, guerra, etc.
ao menos cinco deles, sendo que alguns não são somente símbolos mas
João Maria a ser considerado santo pelos caboclos do Contestado. Entre eles,
animais, enfim com toda a natureza e com o ser humano. Também é memorável sua
532
desprezados e empobrecidos. João Batista, entrevistado por Célio de Oliveira,
afirma que
São João Maria foi um profeta e, para muita gente, um santo que fazia
milagre. Os milagre que ele fazia era curar as pessoas e também onde ele
acampava nascia água e essa água curava as pessoas(...) e ele ficou
conhecido como o santo das águas, que com a fé das pessoas elas se
curavam, tomando ou se lavando com esta água.
Num texto citado no capítulo anterior, atribuído a João Maria, estão
533
relatados 29 "Mandamentos da lei da natureza". Era uma espécie de manual do
santo. Este texto, além de apontar para valores religiosos e princípios éticos a serem
respeitados por todos, insiste no cuidado para com a terra, a água, os animais e
toda a natureza. Dos 29 "mandamentos", dois fazem referência direta à água. São o
preferidos e mais usados por ele é, sem dúvida nenhuma, a água da fonte, a água
das nascentes, a água que nasce na rocha, a água fresca, limpa e cristalina. Esta
água não era, para ele, apenas um símbolo sagrado e que merecia o máximo de
cuidado da parte dos seres humanos. Ela era também um remédio usado para curar
muitas pessoas das mais diferentes enfermidades. Era através da água pura, ou
quando muito, misturada e fervida com algumas ervas medicinais, “que o Cristo
onde o santo se saciou, ou ainda, batizar as crianças nas águas do santo, é ainda
532 Morador de Lebom Régis-SC, com 85 anos de idade. In: OLIVEIRA, Célio Alves de. A
construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus. (1992), p. 129
divinas. Ainda hoje, muitas pessoas saem de seus lares e caminham diversos
quilômetros ou viajam de uma cidade para outra à procura de uma fonte benzida por
João Maria, para batizar seus filhos, para beber ou à procura de cura para os mais
espalhadas, não somente em boa parte do território catarinense, mas também nos
outros estados do sul do país. O lugar preferido de João Maria, para pousar, eram
as grutas donde houvesse uma nascente. Esta era logo cercada de cuidados e
João Maria teria dito que quando algum animal bebesse na fonte de água
534
abençoada, esta perderia o efeito curativo ou medicinal. Neste sentido, vale citar
535
o depoimento de Aliriano A. da Silva que, ao falar das curas oferecidas pelas
águas, lembra de um cuidado que São João Maria pediu que tivessem, afim de que
relata que
o mui falado profeta João Maria, 'São João Maria' como costumam os
sertanejos dizer (...), costuma pousar à beira dos caminhos, procurando local
de boa água. Depois que o profeta deixa o pouso, os moradores da
vizinhança fazem um cercadinho ao redor da fonte, que se torna, daí em
534 Justina C. da Silva oferece uma outra versão sobre o cuidado que se deve ter para que a
água de João Maria não perca o efeito curativo. Ela afirma que ele teria dito que “a água dos
poços é remédio, só não se lave o corpo inteiro, só se molhem, mas se lavar direto, como vocês
se lavam em outras águas, não.” Cf. anexo nº 06.
diante, para eles, milagrosa, pois piamente acreditam ser João Maria um
santo.
Vale citar pelo menos um fato marcante acontecido em meados do século
de água que João Maria utilizava e que o povo considerava santas. Realmente elas
Pedro, designou o médico Tomaz Antunes de Abreu para fazer uma pesquisa e
verificar se a água de uma fonte situada em Santa Maria da Boca do Monte (RS)
pois eram iguais às demais águas existentes na região. Mas a pesquisa também não
deixou de relatar que, ao menos alguns dos doentes que para lá se dirigiam,
537
realmente voltavam curados. Diz o médico que, “dos duzentos doentes que foram
relata que,
Junto à bica havia um cepo, onde o doente ajoelhava, despejava-se a água
com vagar, na porção que cada um queria(...) e havia ainda o barro santo;
este barro consistia na lama que se juntava em torno do cepo em que se
ajoelhavam os doentes para receber a água na cabeça. Este barro fazia
milagres na cura de feridas de todas as espécies. (...) Pela manhã, formigava
morro acima uma legião de enfermos, e, a muito custo, atingindo à Ermida,
suplicavam ao santo, alívio para suas dores, descendo após, para abeirar-se
537 Apud, FACHEL, J.F. Monge João Maria: Recusa dos Excluídos.(1995). p. 80.
539
à Fonte Milagrosa, a fim de tomar a água curativa ou lavar suas feridas.
O relatório feito pelo médico aponta para um conflito ou uma tensão entre
"significado" que a ciência não podia nem devia explicar ou procurar compreender,
não era o seu objetivo. A fé nos elementos curativos da água e do barro, não pode
ser analisada ou dissecada como uma coisa qualquer. O seu sentido sagrado ou o
seu poder de curar ou gerar vida, não podia ser objeto da ciência.
540
Segundo Cassimiro dos Santos , as águas de João Maria eram
miraculosas, contadas hoje, podem até ser lendas, mas é interessante observar
mesmos lhes dêem um sentido de vida, lhes ofereçam uma sustentação para sua
É claro que a crença nos “olhos d’água” de São João Maria, como
miraculosos e curativos, varia de um lugar para outro. Isso se percebe no fato dos
cuidados para com eles também variarem muito. Alguns permanecem cercados e
cuidados, outros foram abandonados, alguns apenas lembram João Maria, outros
541
são até objeto de romarias.
A água e os rituais feitos com ela ou em torno dela, entre eles destaca-se o
batismo, o qual será citado a seguir, servem também como meio para manter viva a
mística da vida. É uma mística que exige uma verdadeira conversão pessoal, um
criada para dar lucro a ninguém e, muito menos, para dar lucro a alguns poucos.
João Maria já dizia que, quando a água fosse comprada e vendida, então
estaríamos perto do fim. Com isso, ele não estava necessariamente falando do fim
dos tempos, mas sim condenando uma prática e uma concepção capitalista,
predatória e consumista, que cada vez mais contagiava os seres humanos. Entender
541 OLIVEIRA, Célio Alves de. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus.
(1992), p.110, nos oferece uma entrevista que fez com Antônio Cardoso, de 84 anos, morador
em Campos Novos, que lhe disse: “ói, o fato é que antigamente, quando eu era criança, meus
pais buscava água no oio d’água de São João Maria, ali naquele mato, por que nóis não tinha
água mais perto e eles sempre nos dizia que aquela água que a gente bebia e tomava banho,
era uma água santa, benzida pelo monge. Mas com o tempo, meu pai encanô a água e não
precisamos mais buscá lá na fonte. Só de veis em quando, quando precisava fazer algum tipo de
remédio pra mordida de bicho, minha mãe buscava água lá. Mais a fontezinha tá ali, caso o
senhô queira conhecê.” Ao visitar o local, Célio diz que realmente estava abandonado e que
havia algumas madeiras velhas ao lado da fonte, demostrando que aquele poço realmente fôra
cuidado, cercado e procurado. Aquele local não é mais considerado sagrado, porém preserva-se
a memória de que aquela fonte de água foi objeto de devoção e considerada sagrada noutros
tempos.
323
quando realizou sua pesquisa sobre o mito de João Maria de Jesus, ele afirma que
542 Ibid., p. 121-122. O poema foi escrito pelo desembargador Manoel Lacerda Pinto, em 1923,
devoto do monge.
324
543
Em cumprimento de promessa ao Padre monge,
Cujo espírito anima a gruta silenciosa.
É interessante notar neste poema a intensa busca da fonte milagrosa e por
meio dela a busca da saúde. E como resposta desta busca, penduram-se, pintam-se
sempre esteve mais presente, parece ser o da doença/saúde. Nele e por meio
abençoada por João Maria serve também para proteger contra tormentas e para
544
regar as plantações que assim cresceriam mais belas e viçosas. Maria Cecília ,
quase bicho” e isso significava que era preciso ter um cuidado especial para com
toda a natureza. E, depois de um século, apenas para fazer uma conexão com a
atualidade, pode-se dizer que aquilo que outrora João Maria falara, de alguma forma
543 Outro aspecto curioso neste poema, é o fato do monge ter sido chamado por três vezes de
“Padre monge”. Realmente houve suspeitas de que, especialmente o “primeiro monge”, como já
foi comentado no capítulo 2, pudesse ter sido um padre católico. Também numa das entrevistas,
Arnoldo Ferraz (Cf. Relato anexo nº 08) afirma que João Maria rezava missas e, em algumas
delas, também fazia batizados.
Católica, do ano de 2004, que teve como tema “Fraternidade e água” e como lema
546
“Água, fonte de vida”. Com essa campanha a CNBB , perseguindo a sua lógica de
constatação de que há uma “crise planetária da água” e que, a cada dia que passa,
Quanto a isso, vale destacar aqui uma reflexão feita por Gilberto
547
Tomazi, autor desta dissertação. Ele diz
546 CNBB é a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Para ver a reflexão da Campanha da
Fraternidade sobre a água, consultar: CNBB. CF 2004: Fraternidade e água. (2004) Texto base.
547 TOMAZI, G. Mística da água e cidadania: uma análise a partir das águas santas de “São”
João Maria, no Contestado. Encontros Teológicos, Florianópolis, n. 37, p. 19-33, 2004:1.
328
Ao nome do
território brasileiro,
incluída a cruz.
Inicialmente chamado
e depois Terra de
Santa Cruz. Na
medida em que ia
sendo construída a
história da civilização
brasileira, as cruzes e
Cruz de “São” João Maria plantada no alto de um morro da cidade de Lages
os cruzeiros
329
cristã, tendo como referência simbólica fundamental a cruz. Dentre eles, o monge
548
João Maria é uma figura notória. Muitos cruzeiros e cruzes erigidos na região do
Contestado e mesmo no Sul do Brasil e São Paulo, desde meados do século XIX até
início de suas peregrinações, o Monge tinha o hábito de plantar cruzes por onde
passava. Inúmeras cruzes e cruzeiros foram erigidos por ele. Quando, em meados
Araçoiaba e Tatuí, existiu um cruzeiro, ereto por ele. Uma espécie de via-sacra (14
549 AHEx, comando de colunas. Ordem do dia 18/04/1915, relatório de combate a Santa Maria
do general Fernando Setembrino de Carvalho. Apud, MACHADO, P.P. Lideranças do
Contestado. (2004), p. 342.
330
550
cruzes) fôra levantada pelo solitário, com auxílio dos sitiantes da região.
deixou-se cercar de crentes e pregou a sua palavra com mais frequência. E, como
551
afirma Cabral ,
já é um inspirado de Deus, talvez um enviado. Não é um santo novo, não são
novas as doutrinas, não é uma palavra de subversão a que profere, mas a
doutrina da Igreja(...); procura ser um apóstolo humilde que não ameaça mas
aconselha, que não se rebela mas se humilha, que não comanda mas serve.
Em todos os lugares onde passava, o Monge plantara ou pedia que
vezes de velas a queimar, até hoje. Quase sempre estas cruzes são chamadas de
"cruz do Monge" ou "cruz de São João Maria.” Mesmo quando houve substituição
das antigas por novas cruzes, este fato da “substituição” logo entra no
cruz, mesmo que substituída várias vezes, é a verdadeira cruz de São João Maria,
feita e plantada por ele. Assim como o santo “não tem morredô” também as suas
cruzes permanecem para sempre. É como se a cruz de São João Maria tivesse uma
Rio Negro haver sido flagelada por uma epidemia de varíola, João Maria foi
solicitado. Então, ele pediu que plantassem cruzes. Hermelindo afirma que “pode-se
estando incomodado com a cruz que ficava na praça Hercílio Luz, no centro da
municipal. Porém conta-se que a cruz permaneceu apenas uma noite onde fora
transportada. No outro dia, foi levada, por uma multidão de pessoas revoltadas com
o fato, de volta ao local onde João Maria a plantara. Fala-se também que foi uma
553
noite de tormenta, que abalou e destruiu boa parte da cidade.
Ainda hoje, depois de súplicas e orações, pedindo a proteção e a
intercessão de São João Maria, o povo acende velas e coloca flores aos pés
554
daquela cruz. Também sobre a Cruz de Mafra, o Coronel Miranda afirma ter
ouvido uma lenda na qual "um prefeito entendeu de retirá-la da praça pública, mas
553 Esta história foi contada por uma professora de nome Roseli, durante uma palestra proferida
para os professores do Colégio Coração de Jesus, em Florianópolis-SC, no dia 26 de fevereiro
de 2004, quando eu falava sobre a mística da água e fazia menção às águas abençoadas por
João Maria. Há uma outra versão na memória popular que afirma que a cruz simplesmente
reaparecera no lugar de origem, após a tormenta. Há uma terceira versão que aponta para duas
ocasiões, nos anos de 1919 e 1926, quando tentou-se retirar esta cruz da praça para colocá-la
junto ao cemitério da cidade, sendo que após uma grande aglomeração popular e manifestações
de repúdio a tal atitude, a cruz foi recolocada no local, onde permanece até hoje.
normalmente eram de cedro, madeira que facilmente brota, e assim muitas delas
cruzes eram plantadas no alto dos montes e, para isso, a explicação mais comum é
protegida, especialmente da peste, das guerras e das tormentas. Ela era erigida no
proteção.
desenhadas, invocando a
proteção de Deus e a
A devoção à cruz foi muito incentivada pelos monges. Assim como Jesus
foram se identificando com a cruz, com os crucificados deste mundo. É possível que
crucificado, lembrem seus pais que foram mortos ou que carregaram pesadas
cruzes no Contestado. E essa identificação com o Cristo morto na cruz e com João
3.2.3 Batismos
Toda a criança gosta e é muito bom ter padrinhos e madrinhas. São pessoas muito importantes na vida dos
afilhados. Os pais não devem tomar alguém para compadres, por interesse. Mas escolher pessoas amigas e de
bons costumes, que possam imprimir estima e respeito aos afilhados, dando bons exemplos.
João Maria
João Maria, seguido pelo de José Maria e aquele batismo que era realizado nos
“irmãos” nos redutos, quanto para afastar o mal de sua vida e se tornarem devotos
sedimentava uma aliança na qual os que aderiam a essa causa, obrigados ou não,
passavam a comungar, como pares e como irmãos de idéias e bens. Segundo ela
esse assunto assumiu uma importância fabulosa entre os rebeldes, pois o
simbolismo presente neste ritual, já adquirira, para o catolicismo, um
significado muito profundo, marcando um renascer do indivíduo, um vir à luz.
A purificação do corpo e da alma, operada pelo batismo, se faz com água,
que é usada como um elemento indispensável na efetivação e na
confirmação da regeneração espiritual do iniciado.
para tal. A própria Igreja católica, em casos especiais, como no perigo de vida,
uma madrinha entre os parentes mais próximos e, como sempre, alguém dentre os
João Maria, parece ter surgido uma terceira forma de batismo e que continua até
eram dois batismos que os caboclos realizavam para os seus filhos, mas sim três.
cabocla da região, como afirmara Machado. Porém este autor não percebeu que
havia também uma terceira modalidade de batismo, que era o das “águas de São
João Maria”. Este batismo é, ainda hoje, muito comum na região. Talvez fosse este
batismo, e não um segundo, como afirmou Monteiro, que apresentava uma ruptura
permitido e daquele feito na Igreja, que era o batismo “oficial” dos Católicos, este
pela Igreja, mas a tinha do próprio João Maria. Nos redutos, é bem provável que o
significado deste batismo fosse realmente de oposição à ordem social vigente, além
recebidas por intermédio de João Maria, mediante promessas feitas durante este
batismo. Em princípio, era o próprio monge quem batizava e daqueles que ele
batizava também se tornava padrinho. Alguns pais esperavam anos para batizar os
seus filhos, quando João Maria demorava a voltar. Porém, quando entenderam que
a volta de João Maria demorava demais ou que já não era mais possível, outros
558 Já citada. Cf. Fichário de entrevistas, pasta nº 01, p. 01. Relato de dezembro de 2002.
336
559
Frei Rogério Neuhaus diz que encontrou dificuldades em batizar rapazes
de 10 e 12 anos de idade, que "nem sequer tinham sido batizados em casa, porque
Esta forma de batizar, talvez não fosse propriamente uma ruptura com as
demais formas, mas era a maneira mais procurada e aceita pelos caboclos do
Contestado. O rito era praticamente o mesmo da tradição cristã. Sendo assim, pode-
convidados dirigiam-se até uma das fontes abençoadas pelo monge e pegando
desta água, com alguma vasilha, a mesma era derramada sobre a cabeça do
também o nome de São Sebastião e/ou todos os santos e santas de Deus. Ainda
hoje, na região, inúmeras famílias preservam estas três formas de batismo. Segundo
Almir José Ramos, “o batismo nas águas de São João Maria não tem pressa, batiza-
se quando puder, enquanto que o batismo em casa não pode passar de sete dias
559 Arquivo da Província Franciscana de São Paulo, manuscritos pessoais do Frei Rogério. Cf.
MONTEIRO, D.T. Os errantes do novo século. (1974), p.59.
560 Segundo VINHAS DE QUEIRÓS, M. Messianismo e conflito social. (1977), p. 50, e também
AURAS, M. Guerra do Contestado. (1995), p.49, João Maria preenchia perfeitamente funções de
sacerdote; dirigia rezas coletivas e cânticos religiosos. Muitos sertanejos deixavam os filhos anos
a fio sem batismo, à espera que um dia aparecesse o monge. Ele não só batizava, como
também casava e dava bons conselhos. Benzia as roças e o gado.
337
561
após o nascimento e, por fim, faz-se também o batismo na Igreja...”
aceitavam esta forma de batismo nas águas de João Maria. Hoje, o entendimento
oficial da Igreja considera-o válido. Porém, assim mesmo, àqueles que procuram
também o batismo na Igreja, este lhes é oferecido, especialmente no que tange aos
"ritos complementares" com o uso dos óleos sagrados e ao registro nos livros
canônicos.
antes de tudo, a teimosia dos fracos e pequenos que insistem em permanecer firmes
nas tradições de seus antepassados.” Ele diz ainda que “muitos ‘caboclos de
561 Segundo RAMOS, A. J. Contestado: batismo nas águas de São João Maria. (2002), p. 23-
24, “o ritual do batismo acontecia em lugares diversos, nas casas, ao ar livre, próximo das
fontes, poços, cruzes, etc. Hoje ainda é comum a realização do batismo nestes lugares,
geralmente não acontece em Igrejas.” Segundo ele, para o batismo “usa-se água como na Igreja
católica. Não há a prática da imersão. Geralmente o batismo acontece junto a um poço de São
João Maria e, na impossibilidade de se chegar até um, busca-se a água e batiza-se em casa. Ele
afirma que a forma do ritual é “pega-se um galho de vassourinha de São João Maria, arruda ou
alecrim, coloca-se em um copo ou outra vasilha com a água, acende-se uma vela, a madrinha
pega a criança no colo e, de joelhos (se for adulto, o próprio batizado se ajoelha diante dos
padrinhos) e começam o batismo. Primeiro o padrinho pega o galho e por três vezes passa na
testa do batizando com as palavras “eu te batizo (nome) em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo. Amém. Em seguida a madrinha repete o mesmo gesto. Quando tem ‘apresentadeira’, é
ela quem segura a criança. No final rezam várias orações, e entre elas, a oração ensinada pelo
monge para ser rezada em tempos de perigo.” A oração é assim: “Meu Senhor crucificado, Filho
da Virgem Maria, me guardai por esta noite e amanhã por todo o dia, não quero meu corpo
preso nem meu sangue derramado, nem com faca e nem com chumbo, meu Senhor
crucificado.” Então os padrinhos abençoam o neo-batizado e assim termina o ritual. Em seguida
a madrinha (ou a mãe) joga a água em cruz no terreiro, porém não a joga com muita força para
que a criança não fique assustada.”
Deus atende a toda a oração feita com boa intenção, boa fé e sinceridade. A melhor das orações é aquela mais
simples que sai do coração. Não é o muito pedir que dá direito a muito receber. É o merecimento!
João Maria
rezou ou ouviu uma oração entendida como de autoria do próprio João Maria.
Existem muitas orações que continuam sendo ensinadas de geração a geração e
são atribuídas a João Maria. Ele próprio é respeitado como um homem de oração.
impulsionava à missão. Esse mistério era denominado por João Maria de Deus. A
partir dele, João Maria articulava a composição de sua consciência, construía sua
valores. Ao que parece, eram as suas orações as fontes donde alimentava o seu
a receitar chás, remédios, fazer curativos, consertar ossos quebrados, etc. Esses
rituais religiosos.
339
Uma das cartas mais famosas e que é também uma oração considerada
milagrosa, foi oferecida a esta pesquisa por Arnoldo Ferraz, que diz ter decorado há
uns quarenta anos e que a reza diariamente para não esquecer. Ele afirma ter
ensinavam as orações dele. Afirma que João Maria deixou por escrito esta oração,
não para todos, mas para certas pessoas. Disse que levou um ano para decorar a
devotos, foi escrita pelo São João Maria d’Agostini, aproximadamente em 1880. A
carta está bastante desgastada por causa do tempo, sendo impossível compreender
certas palavras ou frases e, além disso, parece ter sido perdida a parte final da
563 Cf. FELISBINO, P.A. Voz de Caboclo, (2002), p. 25. Estes autores apresentam uma cópia
fotografada da carta (que possivelmente também não seria a original) em sua obra.
340
mesma. Esta, porém, possui um acréscimo não citado por Arnoldo Ferraz. Este
castigos que sofrerão os que não acreditarem na carta ou não ensinarem os demais,
e de alguns outros sinais que aparecerão, como gafanhotos e outros, além disso
contra os inimigos, etc. Algumas orações também são feitas para “benzer Plantas”,
para que a pessoa acredite que está curada, para “soltar as pessoas” e “o que
houve uma benzedeira chamada D. Virgilina. Viveu até 1999 e de tudo ela benzia,
curava doentes e protegia as lavouras das pragas. Vale citar aqui alguns exemplos
Maria:
Rendidura. O que eu benzo? Osso quebrado, carne rasgada, nervo torcido.
Se fecahis, a carne da rendidura como fechou a carne de Nosso Senhor
Jesus Cristo (3 vezes). Quando é com capim, benze três vezes. Reza três
Ave Maria a Nossa Senhora.
Mau Olhado. Nossa Senhora benzeu o seu filho com o rosário para ser
Santo, eu benzo de inveja, mau olhado e quebranto, com o nome do Pai,
Filho e Espírito Santo. Rezar Salve Rainha.
565
Reza de defesa de um Par de França. “Espada liserna! Aqui está o
apostolado Jerônimo António Pereira, o belo cavaleiro de São Sebastião!
Quem atirar no seu corpo atira na hóstia consagrada porque entre a pólvora e
a espoleta Jesus Cristo fez morada. Deus adiante, paz na guia de Jerônimo
António Pereira. Encomendo a Deus e à Virgem Maria que seu corpo não
seja preso nem atado e nem do demonio atentado e seja guardado por São
Silvestre com 47 anjos 7 quebra pedra 7 quebra ferro e as armas e a faca que
apontarem no seu corpo e os ferros que apontarem em pedações ficará. Os
seus inimigos conhecerão que Deus é Vivo. Pater, Filho, Espírito Santo. Pela
Ostia Consagrada, Amém Jesus (seguem-se sinais: B+H+B+D, etc).
566
Arnoldo Ferraz afirma saber várias orações de benzimento. A abaixo
citada foi por ele rezada, dizendo que a mesma é feita pra qualquer tipo de doença.
Citou um exemplo: “pessoa que não pode morrer, rezou essa oração, descansa já.”
O que que te puseram, que as três pessoas da divina Santíssima Trindade te
tire o ar quente, ar de quebrando, de olhado, lombriga assustada, lombriga
desejosa. Se te puseram este mal pela cabeça, que São João te tire. Se te
puseram este mal pelos olhos, Santa Luzia que te tire. Se te puseram este
mal pelo peito, Santa Margarida que te tire. Se te puseram este mal pelos
pés, pelas pernas, Santo Amaro que te tire. E Deus e o sol e a lua que tudo
isso não é nada pelo sumo da verdade sendo suspensão de ventuosidade,
que os poder do belo claro e Deus nosso Senhor Jesus Cristo e de nossa
senhora Maria Santisssíma do Januário, nos livrai dos inimigos vivos e dos
inimigos invisíveis e de Cristo vencerei contrário, tabe larábio, sem eu li minha
anunciação de Maria e fé barbetume invitáve ave Maria. Saia todos os mal
que estiver neste corpo, saia o ar quente, ar frio, ar do sol, ar da luz, ar do
vento, fraqueza, ar cúrtico, ártico, ar no sangue, ar de gangrena, febre
maligna, espantai todas as doenças que estiver neste corpo. Peço pras sete
óstias consagradas que consagre essa pessoa e cure, peço pra sete cálice
bento que derrame essa benção benta nesse doente e cure, peço pra sete
anjo bendito que acompanhe esse doente e tire esses mal, peço pra sete livro
missal que abençoe essa oração e seja remédio pra esse doente, peço pra
sete missa cantada que foi dita hoje nesse dia pela Santíssima Trindade seja
remédio e que cure esse doente pelo amor de Deus. Amém. Em nome do Pai
e do Filho e do Espírito Santo. Amém.
A reza do terço. A reza do terço está entre as orações mais comuns dos
oração do terço e passou a ser apenas rezada, como na tradição católica. Porém há
a habitar nas periferias das grandes cidades, como a de Florianópolis, que ainda
É uma prática na qual, indo de casa em casa, dia após dia ou em intervalos
terço invocam-se alguns santos e, entre eles, São João Maria não pode faltar. Sua
onde se reúnem para, de joelhos, rezar o terço, possui um pequeno altar ou oratório
onde são colocados, uma cruz ou um crucifixo, uma vela acesa e diversas imagens
cantado pela Senhora Sebastiana Ribeiro dos Santos. Ela fez questão de convidá-
los, não para conhecer o terço cantado, como ele sugeriu, mas para que ele e outro
filhos e netos, que então foi por ela conduzida. Foi cantada uma dezena do Terço e
dona Sebastiana colocou sobre um altar que preparou para a reza, era a de Nossa
Senhora da Rosa Mística, que ela a denominou de Santa Maria Rosa. E, segundo o
567 IUNSKOVSKI, R. Migrantes caboclos em Florianópolis. (2002), p.47-50, afirma que “essa
oração era a base de praticamente todos os momentos de reza da família e da comunidade,
quando o padre não estava presente. Nas festas, novenas, procissões e velórios, estavam
presentes os Capelães que puxavam a reza. Eles podiam ser tanto homens como mulheres.”
Sebastiana, ao oferecer esta oração, tinha 83 anos, e residia em Ponte Alta do Norte-SC.
343
que pareceu para o autor, “isso poderia demonstrar a permanência da virgem Maria
de fazer:
Oferecemos esta dezena do terço e estas oração que rezemo neste
momento, oferecemo pra Santa Maria Rosa, Nossa Senhora, Santa Ana, São
Joaquim, Divino Espírito Santo, e oferecemo pra todos os santos, todos os
apóstolos do céu. Pedimos que vocês nos ajudem, nos favoreçam, e prá
Nossa Senhora da Boa Viagem, prá São Cristóvão, que acompanhe esses
abençoado que vieram aqui pedí prá nóis rezá a oração do terço antigo.
Então pedimos que vocês nos dê vida e saúde, uma boa sorte, uma boa sina,
que nóis seja feliz em toda parte do mundo que nóis andá, livre de pecado,
livre de desastre e livre de todo o mal e de todos os perigos deste mundo, que
nos pode acontecê. E muito obrigado e peço que vocês ajude e acompanhe
essas gente abençoado que procuram nóis, porque eles tinham percisão,
tinham percisão de aprendê a religião velha que Deus, nosso Senhor, deixou
prá nóis.
568
Oliveira nos conta que uma das senhoras que sempre participou dos
oração, pedindo a proteção do monge: “Santo monge, santo forte, santo imortal;
livra-nos João Maria da peste e de todo o mal, que nossas famílias sejam
protegidas, das tempestades, do fogo e das brigas. São João Maria cuide de nossas
vidas.”
568 OLIVEIRA, C. A. de. A construção e a permanência do mito de João Maria de Jesus. (1992),
p.114.
344
569
João Maria. Ricieri M. de Arruda diz saber uma porção de orações do São João
rezava. Porém ao solicitar se ele poderia rezar algumas delas, ele parou, pensou um
pouco, e não rezou. Talvez não lembrou ou aquele não era o momento ou aquelas
orações não podiam ser contadas, mas somente rezadas e não em qualquer
solicitada por alguém em vista de uma cura que esteja procurando. Então ele
continuou
A primeira, se for preciso, daqui eu mando lá em Curitiba, ainda mais a essa
hora, essa hora é a hora própria (18 horas). Não me admiro que hoje não tem
gente aqui pedindo cura porque é domingo, no domingo só faço cura pra anjo
com menos de 7 ano, os outro tem que ser dia de semana. É o mesmo que
tirar com a mão a esta hora.
parte da tradição religiosa do povo brasileiro. Ao Brasil elas chegaram por meio da
fato de ele estar pedindo uma graça, um favor, agradecendo por favores recebidos
festa popular e não poucas vezes, feira livre.” Ele afirma ainda que,
é provável que essas manifestações de fé tenham muitas vezes o valor de um
diamante que ainda não foi lapidado. Não se trata de rejeitá-lo ou lançá-lo
fora, mas simplesmente tirar os obstáculos para que possa luzir em todo o
seu esplendor.
Na região do Contestado, diversas pequenas romarias foram acontecendo
com o passar dos anos, desde que João Maria passou pela região. Normalmente
são romarias de nível local, que estão diretamente vinculadas a uma festa
Maria e do Contestado.
572
Apenas para citar três exemplos atuais: O Padre Valcir Baronchello , que
homenagem à Santa Cruz, caminharam até um poço de São João Maria que fica a
ano, acontecem pelo menos quatro festas também em homenagem à Santa Cruz,
sendo que se faz uma caminhada com cantos e orações até um poço de “São” João
Maria. Ele conta que há inclusive na Comunidade Paciência das Neves, uma
Igrejinha de “São” João Maria, para lá muitas pessoas se dirigem e manifestam sua
572 Entrevista concedida em novembro de 2004. Fichário de entrevistas, pasta nº 03, p. 01.
573 Entrevista concedida em dezembro de 2004. Fichário de entrevistas, pasta nº 04, p. 02.
346
do Taió. Ela fala de uma romaria anual, que acontece sempre no dia 12 de outubro,
neste morro. Segundo ela, que também participou da última romaria, em 2004,
“devem ter participado bem mais de quatro mil pessoas.” No topo do morro existe
uma pequena capela, e entre as diversas imagens presentes no seu interior, existem
Distante uns três quilômetros da Cidade da Lapa-PR, está uma das mais
famosas grutas de João Maria, conhecida como Gruta do Monge. Em torno dela, no
início da década de 1960, foi criado um parque, que possui uma área de 55
hectares. Esta gruta teria sido abrigo do ermitão João Maria D'Agostini, em meados
do século XIX. Segundo a guia turística da cidade, Rosângela B. Pinto, “no Paraná,
muitas pessoas afirmam conhecer alguém que já foi curado de algum mal pelo
monge”. A cada mês, entre duas a quatro mil pessoas visitam a Gruta. Na gruta
Pastoral da Terra de Santa Catarina – CPT, que mais mobiliza pessoas. Todos os
católica celebra o dia da Santa Cruz, reúnem-se em romaria, entre dez e cinquenta
João Maria. Um grande estandarte com a imagem de João Maria não falta, a cruz de
574 Entrevista concedida em janeiro de 2005. Fichário de entrevistas, pasta nº 05, p. 03.
347
cedro que, entre outras coisas, lembra o Contestado é o grande símbolo de todas as
desafios, teatros, etc., que lembram esta grande luta dos pobres, do passado e do
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Este não possui uma compreensão única e
Matos Costa e Lebon Régis-SC, foi possível observar uma ambiguidade ou uma
Para alguns líderes do MST, não cabe, por exemplo, a palavra “espiritualidade”
578 Refere-se ao Concílio Vaticano II, acontecido na década de 60, que proporcionou uma
ampla reforma da Igreja.
349
Assim, pode-se afirmar que muitos dos membros do MST da região, que
terra. E isso se deve muito ao próprio João Maria e ao Contestado. Esta mística se
este substituído. É comum haver uma ou mais Igrejas no centro dos assentamentos,
também uma cruz, normalmente de cedro, é plantada e com o tempo ela brota. Esta
trabalhadores e entre elas a do Contestado.” Esta autora, sem citar nomes, oferece
Entre elas, destacam-se aqui duas que revelam a importância do resgate da história
terras que haviam sido tomadas pelo exército que, por sua vez, naquela região,
581
construiu o seu campo de treinamento. Valmor Schiochet , que acompanhou esse
Cruz”, no qual, segundo a tradição da região, o monge João Maria havia passado,
feito profecias e milagres. Faz parte da mística histórica dos desapropriados e seus
Culturais que incluíram o Contestado nos seus nomes. Entre elas, apenas para citar
EPÍLOGO
O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que
conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro.
Simone Weil
voz das angústias dos caboclos do Contestado. Aos poucos, João Maria foi sendo
recebido e divulgado como um homem de Deus. Ele foi sendo associado ao próprio
Cristo e aos santos e com isso continua, ainda hoje, a exercer grande influência
para outro, a renúncia aos bens materiais e o rigorismo moral, fazem dele símbolo
messianismo do Contestado, de qualquer forma vale dizer que João Maria, ainda
lembrado como alguém que se parecia com Jesus Cristo, como alguém que vivia
segundo o evangelho que, também, anunciava. Muitos descendentes do Contestado
de Jesus, tais como o seu total despojamento, certo tom apocalíptico e profético em
584
popular ou coletiva, sobre o que ele fez e disse, a forma como agia e suas
atitudes diante das mais diferentes circunstâncias. Esta mensagem está impregnada
de inúmeros símbolos que ele tocou, abençoou ou que a ele são atribuídos.
Maria.
585
Sem falar propriamente de ressignificação, Halbwachs , ao aprofundar o
presente não possui a última palavra e que existe um “paraíso” a ser buscado e que
este passa pela edificação de uma nova sociedade justa, fraterna e solidária, estava
586
presente na sua mensagem e na sua mística. Ele e, por meio dele, tantos outros
584 Cf. HALBWACHS, M. A memória coletiva. (1990), p.14 e 15, Jean Duvignaud, no prefácio à
obra, afirma que em Halbwachs, há uma notável distinção entre “memória histórica” e “memória
coletiva”. Segundo ele a primeira “supõe a reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da
vida social e projetada no passado reinventado”, e a segunda é “aquela que recompõe
magicamente o passado”. Para ele, “entre essas duas direções da consciência coletiva e
individual, desenvolvem-se as diversas formas de memória, cujas formas mudam conforme os
objetivos que elas implicam. Isso não significa, certamente, que os espíritos estejam, entre si,
separados uns dos outros, mas que a combinação dos grupos coletivos, onde estão engajados
esses espíritos define múltiplas experiências do tempo.”
do tempo presente consiste em não entrar no seu jogo, pois quem entra no jogo da
587
violência, está cedendo ao seu poder e sendo devorado por ela. René Girard ,
depois de observar a prática de Jesus, afirma que é mais fecundo deixar-se excluir
pelas forças da violência, do que entrar no seu jogo para tentar destruí-la.
Pode-se afirmar que houve e ainda há, por opção da comunidade cabocla
profecia, no anúncio de castigos de Deus e que o fim do mundo está próximo e outro
mundo é possível.
Maria (de Agostini, de Jesus, ou de Santo Agostinho) são alguns dos muitos nomes
Contestado, como homem bom, do bem, pessoa simples, gente do povo, humilde,
de pouca fala, sózinho, alguém que sabe ouvir, que fala com poder e a todos
convence, que não é homem de duas palavras e anuncia o que está por vir, que se
compadece dos que estão doentes ou sofrendo de qualquer mal, que tem poder
homem pacífico, busca o governo de Deus para a terra e condena o governo dos
587 Segundo GIRARD, R. A violência e o sagrado, (1990), p. 13, "fazer violência ao violento
significa entrar no jogo dele, legitimá-lo, deixar-se contaminar por sua violência."
355
588
desgraças, catástrofes ou misérias, ainda teriam que ver com os seus olhos. É
alguém que não quer dinheiro, nem gente reunida em torno de si, vive em grutas ou
ao relento, conversa com cada um como seu irmão, ou seu filho, aparece aqui,
desaparece lá, não se sabe de onde veio, nem seu paradeiro, só se sabe que um
dia ele está aqui, outro dia ninguém sabe para onde foi, e, ao desaparecer, todos
afirmam que não morreu, "encantou-se" e logo voltará para colocar tudo em ordem.
como o messias, continua em aberto. Tudo indica que ele seria o messias esperado
quando voltasse para restaurar o que havia sido destruído, levando o povo a um
589
mundo harmonioso e livre de todas as opressões .
devia ou não falar, adorar, esperar, quais e quando os santos deviam ser invocados
recebido como um modelo de vida, modelo que deveria ser seguido e respeitado.
A grande maioria das casas possui, ainda hoje, algum objeto que lembra
João Maria, entre eles, os mais encontrados, são fotos, pedaços de carvão e rezas
589 Ibid., p. 352, Queirós, ao analisar e classificar os movimentos messiânicos em sua estrutura
e organização, percebe que em todos se repete um fenômeno semelhante “a crença de que,
neste mundo terreno, se pode organizar uma sociedade perfeita, sem injustiças, sem
sofrimentos, sem doenças e sem morte. Associada a ela, a fé no regresso de uma divindade, de
um herói, dos antepassados, ou então de um emissário dos deuses, que vem oferecer ao povo
os meios de instalar na terra o paraíso.”
356
este, por sua vez, tem em torno de si um grupo que lhe corresponde. Em torno do
profeta com seus discípulos, há uma coletividade mais ampla dos adeptos, que pode
alerta, ânimo, conforto e esperança. Não tinha em mente conduzir o povo a uma
si; mantinha distância das vilas e cidades, preferindo apenas o contato com o povo
mas sendo chamado; não usava armas, era pacífico e jamais admitiu ou induziu os
caboclos do Contestado a práticas de violência. Foram os seus modos de pensar,
590 WEBER, Max. Dominação carismática. (1994), p. 127-128, ao fazer referência à questão do
“profeta” ou do “líder carismático” aponta para o mesmo como alguém que é “portador por
excelência do carisma pessoal, pois apóia sua autoridade numa revelação pessoal divina,
confirmada pelo prodígio.” Porém o carisma pessoal profético estará sujeito a desaparecer, caso
não seja reconhecido por um grupo de fiéis”.
591 Cf. QUEIROS, M.I.P. de. O messianismo no Brasil e no Mundo. (1977), p. 352.
morrer. E este, que poderá ser um profeta ou um enviado de Deus, lhe oferecerá
consolo diante da morte, lhe devolverá o sentido da vida, ensinará o caminho que o
qual vive o homem do Contestado. E esse universo inclui, além de uma linguagem
de imaginação poética, uma variedade de ritos, mitos, artes e religião que tecem o
um sentido para a existência. Assim como qualquer outro ser humano, também este
do Contestado, vive não em um mundo de fatos nus e crus, mas antes, em meio a
ressignificados com o passar dos anos. Em torno ou por meio deles toda uma
mais difícil ainda é fazer uma análise aprofundada sobre os mesmos, até porque,
por mais que se pretendesse, um símbolo sempre tem algo mais a dizer do que a
rituais e símbolos são muitos, nesta pesquisa apenas alguns deles foram
teve um ponto final, mas continua aberto, possibilitando assim novas pesquisas e
reflexões. Estas romarias, assim como outros eventos religiosos e celebrativos desta
no meio oeste e planalto norte catarinenses, foi possível perceber uma religiosidade
situação e sendo herdeiros de uma luta inglória, há algo que os move, que faz com
que continuem confiando na vida, que oferece um sentido à sua história e não os
CONCLUSÃO
cabocla do Contestado, pode-se dizer, como Jean François Lyotard, que vale a pena
que deve-se prestar atenção “a certas notas mais novas e observar a fusão de
Brasil. Mais do que da guerra do Contestado, que poucos descendentes dos que
popular do Contestado.
uma motivação profunda que os move e dinamiza sua ação na busca de uma vida
das formas de linguagem, entre outros aspectos. A partir de dentro dessa complexa
trama da vida, nasce e se manifesta a mística que, entre outras coisas, é o seu
sentido.
mística. Ainda hoje, João Maria é lembrado nos mais diversos tipos de conversas,
histórias, contos, metáforas, assim como, com diversos símbolos e rituais. Dentre
Em torno delas, ou seja, deste santo, foi sendo construída uma mística que serve de
referência fundamental para suas vidas. Muitas pessoas ainda hoje continuam a
possível que muitos pesquisadores tenham ficado intrigados com o fato de que, em
pleno século das luzes, uma multidão de pessoas tenha se insurgido contra um
regime que os oprimia, numa luta tenaz, que durou não menos de quatro anos,
sendo que, não poucos deles, eram também iletrados, pobres, mulheres,
João Maria foi um dos líderes leigos que marcou profundamente a vida, a
festivos e outros rituais religiosos. Ele foi recebido como intérprete autorizado e
dirigente das comunidades por onde passava. O seu trabalho, mais do que feito de
personalizado.
antes de qualquer outra coisa, do seu modo de vida despojado, ao lado dos
sofrimentos, misturando-se com a multidão dos que, aos poucos, passavam a ouvi-
profético e outros mais. Esta pesquisa não optou por seguir ou apontar para apenas
Contestado deixou-se guiar por convicções morais, como a espera do triunfo do bem
outros valores, dos quais o próprio João Maria deu testemunho e que os redutos do
“cidades santas”, onde se assume a “lei de Deus”. Sem sombra de dúvida, esta
Contestado, ao contrário, foi percebido como quem estava do seu lado. Porém,
os santos de devoção não são somente aqueles erigidos ou aprovados pela Igreja
Católica, como foi o caso de São Sebastião, o santo guerreiro, muito lembrado e
comunidade cabocla, porém, com o passar dos anos, apenas um, o João Maria, é
comunidade dos redutos como "santa". A guerra era santa, não tanto por se
sentirem um “povo escolhido”, mas porque acreditavam que esta era a guerra de
São Sebastião, anunciada pelo profeta João Maria, a guerra do fim dos tempos,
onde aqueles que não se deixassem seduzir pela besta, ou pelo Anticristo,
que se acirrou a guerra, essa mística aflorou de tal forma que chegou a ser
palavra mais adequada para definir aquilo que envolveu profundamente o povo do
uma guerra, não pode ser denominado de fanatismo, mas sim, de mística. Como
não havia ciência que respondesse às suas perguntas e muito menos que
profundamente a Deus, colocaram sua confiança nos santos, e nos seus líderes
crença, vivenciada enquanto mística, praticada por meio dos mais diversos rituais e
outras expressões religiosas que fomentou, para muitos, a firme convicção que nem
tudo se exauria nos fatos deste mundo e que, apesar de tudo, a vida ainda tinha um
sentido.
profundamente a comunidade cabocla em guerra. Entre eles, José Maria, tido por
alguns pesquisadores como "o terceiro monge", parece ter sido o discípulo principal
de João Maria e primeiro grande líder da guerra. Ainda vivo liderou o primeiro
combate no Irani e, sendo morto nesse mesmo combate, passou a ser um líder
365
misterioso que enviava mensagens e dava comandos para alguns dos seus
Durante a guerra, mesmo depois de morto, era José Maria o líder mais
dar sentido a tudo o que os rodeia e de conduzi-los a uma luta de vida ou morte. A
mística é uma força poderosa que merece respeito e cuidado. Ao mesmo tempo em
que pretende garantir a vida e defender princípios e valores sagrados, essa mesma
mística, ao dar-se conta de que a realidade presente não é querida ou aprovada por
Deus, permite aflorar sua dimensão guerreira, e isso pode levar muitas pessoas à
morte.
apenas para citar algumas definições, para muitos permanece até hoje.
que, numa guerra, esse imaginário é construído por ambas as partes em luta, os
inimigos dos redutos também foram tidos como “peludos”, isto é, como bestas.
mechas do paraíso na terra. Não se poderia esperar que neles tudo fosse perfeito.
fixo, mas dinâmico. A experiência vivida pela comunidade cabocla dos descendentes
relação aos seus líderes místicos. Adeodato, que na última fase da guerra, foi
temido e adorado com um Deus, logo em seguida passou a ser interpretado como
modelo do mal. José Maria, que também foi invocado e reverenciado durante a
Contestado, foi possível perceber que, muito do que em princípio caracterizava José
Maria como um homem do bem, um profeta ou mesmo um santo, aos poucos foi
ou para o mundo dos que não servem como modelo a ser seguido.
Contestado, podem ser vários. Um deles pode ser o fato de que algumas das
atitudes de José Maria não foram bem aceitas, pela comunidade cabocla do
Contestado, por não corresponderem com os seus princípios e valores. Outro, talvez
com apenas um. Outro ainda, talvez seja o fato de que parte das profecias ou
aquelas que anunciavam a vitória na guerra e o seu retorno futuro, com o exército
encantado, para combater ao lado dos seus seguidores e lhes garantir a entrada
367
ressignificação, é que tudo o que faz sentido à vida ou à cultura popular dos
passou a ser atribuído a um só modelo de vida e santidade, que é João Maria. Isto
é, com o passar dos anos João Maria foi herdando sabedoria, valores, princípios,
atitudes, enfim, uma mensagem-modelo que servisse de guia ou que desse sentido
bombardeados e "caíram". Isso não foi o caso de João Maria. Este continua sendo
lembrado e, mais do que isso, venerado por muitos. A sua mensagem é transmitida
reconhecimento e estima.
modelo de vida, um modelo de conduta, alguém que ofereceu uma nova visão de
mundo, uma cosmovisão e, com isso, abriu “as picadas” para um novo modo de
vida. Seu primeiro objetivo talvez não tenha sido o de oferecer-lhes caminhos que
de vida; baseada não na idéia de consumir, ter e acumular, mas na de ser, crer e
compartilhar.
sujeitos ou protagonistas de uma nova sociedade, pois sua mensagem não propõe
americano que se alastrava na região, mas sim, como alguém que por valorizar a
mentalidade cabocla também foi capaz de provocar uma mudança na mesma. Assim
Isso não levou a uma acomodação com o seu modus vivendi. É claro que
foi possível aprofundar este aspecto. Foi possível perceber que a realidade sócio-
territoriais entre Paraná e Santa Catarina, também criavam conflitos. Mais do que as
sertão, foram os problemas derivados desse próprio modelo que causaram maior
indignação e revolta.
da mística e da mensagem de João Maria. Por mais que hoje João Maria seja um
gerações. Isso também é verdade, mas é mais que isso. João Maria foi um homem
concreto (ou mais do que um), que marcou profundamente a experiência religiosa, a
suficiente para que sua mensagem pudesse ser recebida, aceita, assumida e
ressignificada por muitos. Suas marcas foram deixadas em diferentes locais e, aos
desta unidade coletiva e mística, em torno de João Maria, em princípio parecia ter
sido a própria guerra, porém, com o passar dos anos essa compreensão foi
João Maria. E, se alguns líderes místicos da guerra foram, aos poucos, relegados ao
como o verdadeiro profeta, enviado de Deus e santo. Procurar compreender isso, foi
Antes disso, no segundo capítulo, foi possível perceber que, como a cultura
pessoa e da mensagem de João Maria. Por mais que haja certo consenso em torno
de sua santidade, não se pode negar que ele foi um sinal de contradição. Houve
modo, constatou-se, nesta pequisa, que São João Maria foi e continua sendo
promessas, visitas aos lugares sagrados, romarias, entre outros tantos rituais e
Com o passar dos anos a “imagem” ou melhor, o imaginário sobre João Maria
acumulou novos significados. Se nos primeiros tempos ele era tido basicamente
como um homem do bem e conselheiro, hoje, ele situa-se no mesmo nível de outros
todo o Estado de Santa Catarina, para não dizer no sul do país. É claro que esta
sua mensagem.
pode ser verificada especialmente na maneira como o povo “vive” a sua experiência
371
Por meio desta mística, há todo um empenho dos “sem poder”, dos “sem-
terra” e dos “sem-direitos” para explicar, justificar e, de algum modo, controlar uma
realidade social, que parece perigosa demais para ser enfrentada por outros meios,
além do simbólico. Isso não significa que este povo viva a sua mística de tal forma
e católica. Aqui, porém, esta mística foi coordenada por líderes leigos e
especialmente por mulheres. A legitimidade dos seus rituais não vinha da hierarquia
povo e que traz as marcas de uma história de sofrimento e de escravidão, traz uma
mística pode ser retratada como a linguagem duradoura de um povo que nunca se
vida diante de um poder que os oprime, persegue e mata. Tanto nos termos de sua
fundamentais encontram espaço nela, sendo ela um meio de difusão dos mesmos.
continua sendo hoje aquela onde o nível ou a qualidade de vida da sua população é
a mais baixa do sul do país. Timbó Grande, Matos Costa, Calmon, e Lebon Régis,
Contestado e também onde se sucederam a maior parte dos combates, estão entre
desenvolvimento social. Só para citar um exemplo: Timbó Grande possui hoje 60%
da sua população não alfabetizada. Logo, não tem sentido falar de recuperação da
mística do Contestado, se esta não estiver voltada para um compromisso com a luta
dos pobres pelo direito e acesso à terra, moradia, saúde, escolaridade, participação
sobre a mesma, pode-se perceber que a população daquela região continua sendo
"vagabundos", ainda hoje continua a propagar essa concepção, por diversos meios.
turísticos, mercadológicos e
de Deus".
e valorizadas e, por outro, que eles são credores de uma dívida social que precisa
seus sonhos e crenças, violentados e explorados. Entre eles, como já foi dito, em
Por mais que o objetivo desta pesquisa não tenha sido refletir sobre a
pela comunidade cabocla do Contestado não era tão somente algo nascido do
598 Um exemplo disso, é o fato de que está sendo construído um parque turístico “em cima” dos
mortos do maior cemitério do Contestado, situado na comunidade de Santa Maria, em Timbó
Grande-SC.
374
atribuídos a João Maria, são expressões de uma história vivida que continua
Para finalizar, faz-se oportuno dizer que esta pesquisa procurou dar à
tenham primazia sobre as demais, mas sim, porque sobre elas há uma lacuna que
perspectiva. São sendas cuja riqueza está à espera de outros estudos mais
e o simbólico não foram relegados a meras notas de rodapé, nem como ocorrências
passou por uma perspectiva dinâmica onde não somente as análises dos
espaço privilegiado. Mais do que uma explicação dos eventos históricos em torno do
aspecto, esta pesquisa tem suas limitações. Devido a várias dificuldades tanto
pesquisas.
versões oficiais e oficiosas da república ou das elites da época, eles não eram
guiar por uma experiência mística, como foi o caso da comunidade cabocla do
porém, uma brasa acesa sob as cinzas! E esta brasa acesa foi demonstrada por
representa consolo diante dos sofrimentos, ela é também uma chama profética e
rebelde, que não aceita a ideologia de que a última palavra da história é a realidade
consideração.
rastro de cinzas deixadas pela modernidade, foi a memória de João Maria como um
assim como uma atitude mística, não de derrota, nem de desejo de vingança, mas
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ANEXOS
Sem dúvida, é preciso então apoiar-se em depoimentos antigos cujo rastro subsiste nos textos oficiais, jornais da
época, nas memórias escritas pelos contemporâneos.
Maurice Halbwachs.
Do dia sete de janeiro até doze de fevereiro do ano de mil novecentos e quatorze o
Administrador da parochia fez a primeira visita de todas as capellas e estações desta vasta
parochia de S. Cruz de Canoinhas, visita cheia de difficuldade e desgostos e de pouco
proveito da parte dos fieis. O motivo disso foi um bando de fanáticos de Taquaruçu e
Gragoatá na parochia vizinha de Curitybanos, contra a qual o governo federal e estadual
tinha mandado as suas forças a fim de espalhar estes sertanejos fanatizados. A história
desta revolta é a seguinte.
Nos meses de outubro e novembro de 1912 reuniu-se um grupo de homens e
mulheres em Taquaruçu cujo chefe era um tal José Maria, homem de pouca reputação que
nos últimos dias de sua viagem no estado do Paraná foi encarcerado na cidade de Palmas.
Sacundindo o pó dos seus sapatos deste estado, chegou primeiro na estrada de ferro S.
Paulo - Rio Grande e pouco depois em Campos Novos, onde com reclames de médico e
remédios infallíveis chamou a attenção do povo ignorante dizendo ao mesmo tempo, que
era José Maria, irmão de João Maria, monge que há annos fez as suas peregrinações por
todos os sertões, fazendo, como elle diz, a penitencia, dando bons conselhos ao povo,
fallando muito da Religião em seus discursos religiosos, occupou-se das palavras da
Sagrada Escritura e com preferência das profecias do Apocalypse de João Apóstolo.
Em Campos Novos porém encontrou alguns adversários, que desde o princípio
conheceram o procedimento perverso e turbulento deste José Maria e por isso elle dirigiu os
seus passos a Taquaruçu, onde achou um povo mais apto e dócil para suas idéias
nefandas. Rodeado ahi por uma grande turba de sertanejos que com confiança absoluta
executava os seus avisos, proclamou a Monarchia alludindo o pobre do povo com rezas
frequentes feitas na capella deste logar. Para imitar a vida de Jesus, escolheu doze homens
para ser os seus Apóstolos, que foram com mais outros doze armados com espadas (de
pau). O governo, recebendo informações deste acontecimento, mandou grande força
estadual e federal para Taquaruçu a fim de espalhar os fanáticos. Com a chegada desta
força José Maria despediu a maior parte dos seus adeptos promettendo voltar logo e na
companhia dos seus 24 Apóstolos marchar para Rio de Janeiro, onde tencionava comprar
um Pharmácia com o dinheiro espontaneamente offerecido pelo povo, chegou afinal só até
Irany, município de Palmas, onde fizeram accampamento e recebendo novos adeptos do
povo do mesmo logar ahi em Irrany houve o primeiro combate da força paranaense
commandada por João Gualberto com os fanáticos, em que pereceram José Maria com 12
dos seus Apóstolos, outros ficaram feridos, mas maior era o estrago entre os soldados, tinha
muitos mortos e feridos e também o seu comandante João Gualberto estava entre os
599 Padre Franciscano Fr. Meandro Kamps, autor deste relato, recebeu provisão de primeiro Vigario da paroquia
de Santa Cruz, de Canoinhas - SC, em 24 de dezembro de 1913, e em junho escreveu este relato, no livro
tombo da paróquia. Onde há reticências é devido ao fato que algumas palavras não foram compreendidas.
391
mortos. Com este sanguinolento combate parecia por alguns tempos acabada a história de
José Maria; mas qual mais sangue haveria de tingir a terra brasileira nesta história. Pois os
sobreviventes dos fanáticos raciocinavam assim: Reunimo-nos a fim de procurar remédios,
sarar nosso corpo doentio e cumprir a nossa devoção, porque somos devotos e não fizemos
mal nem roubando, nem matando, nem forçando a ninguém de nos acompanhar, quem
queria abraçar a causa de Deus era acceito... vivíamos das offertas espontaneamente
offerecidas, não eramos rebeldes ... mas nos mandou, a autoridade do Paraná uma tropa
para nos atacar. Fizemos um acordo que no prazo de três dias iríamos nos dispersar, porém
violado foi este contracto por João Gualberto e a força delle, que já no segundo dia
concedido nos atacou e rodeou, dando-nos só a possibilidade e a obrigação de morrer todos
ou fazer resistência. No fim do cálculo o caboclo chegou ao ponto de si perguntar: Qual era
o motivo do governo para nos matar; qual era o nosso crime, e não achando resposta jurou
vingança. Assim foi que um dos apóstolos de José Maria chamado Euzébio Ferreira de
Souza no fim do anno passado pregou vingança dizendo: que o espírito de José Maria tinha
apparecido ao seu filho lhe mandando continuar a sua obra e realizar as suas idéas; e por
isso este moço figurou pois o monge pois o José Maria fallava pela boca delle e seu pai
Euzébio deu autoridade ao seu filho mandando ser necessário a cada um beijar o pé do
novo monge. Já no princípio desta reunião de gentes que houve no mesmo logar da
Taquaruçu, o zeloso Coadjutor da parochia de Curitibanos P. Rogério Neuhaus OFM. Muito
conhecido e venerado, como grande benfeitor deste povo do campo e do sertão durante 17
annos, appareceu no accampamento de Taquaruçu, aconselhando o povo e pedindo para
abandonar estas idéas perversas e perigosas para os seus bens e a própria vida; mas tudo
debalde, não querendo reconhecer o seu filho por monge e não beijando o pé delle, Euzébio
enfureceu, ameaçou e tirou a espada contra este abnegado sacerdote. Batalhões inteiros
foram mandados contra os fanáticos. No dia 29 de Dezembro atacaram os fanáticos em
Taquaruçu porém com plena vitória delles, ficando 3 soldados mortos e uns feridos. Depois
deste ataque tão vitorioso aos fanáticos augmentou a fé do pobre povo na causa santa de
Deus, fallaram da grande guerra de S. Sebastião predita por João Maria e mesmo desta
parochia de Canoinhas muitos homens deixaram a sua família para tomar parte desta
guerra santa, os outros que ficaram, estavam com grande medo da força do governo
estacionado em todos os pontos estratégicos também nesta villa de Canoinhas. Peiorou-se
a situação nesta parochia no fim de janeiro, apparecendo um tal Venuto Bahiano na costa
do Paciencia buscando em nome do Monge a criança de Cezário genro de Euzébio. O povo
d'ahi mostrou agora abertamente o seu appoio...
O governo antes de fazer nova mortandade experimentou o modo pacífico, afim de
accabar a história dos fanáticos mandando o secretário do Estado de Santa Catarina
Gustavo Lebon Regis para combinar com os fanáticos as condições de paz, mas esta
expedição não tinha resultado nenhum. Dia 8 de fevereiro houve portanto um sanguinolento
combate em Taquaruçu entre as tropas federais e fanáticos. Uma notícia officializou de 48
fanáticos mortos e 92 feridos, ao passo que as tropas tiveram um morto e três feridos. 90
casas e choupanas entre ellas a capella foram destruídas pelo fogo da artilharia de
montanha e incendiadas. Chegando esta notícia entre o povo do nosso sertão, a
peregrinação para Gragoatá, para onde os fanáticos vencidos se tinham retirados, era geral.
O caboclo queria tomar parte na grande guerra de S. Sebastião, predita já pelo monge João
Maria, e lutar para a honra e glória de Deus afim de desapparecer a lei ímpia da República
do casamento civil, assim é que raciocina o nosso sertanejo. Até este dia os fanáticos eram
atacados mas nunca atacavam. Mas no dia 10 de março os fanáticos atacaram de
emboscada uma divisão das forças legaes que se achavam em reconhecimento da região.
A lucta numa distância de cerca de 5 quilômetros em Gragoatá durou de 9 até 16 horas e foi
tremenda. A triste prova disso é a morte do capitão Francisco Alvez Pinto; do 1º tenente
Belizário C. Ferreira Leite e do 1º sargento Carlos Finkensieper e de 124 soldados, sendo
135 o número de feridos. Dos fanáticos morreram 66 homens. Os fanáticos feridos e mortos
foram por elles mesmos retirados para um... Depois desta lucta perto de Gragoatá os
fanáticos mudaram o seu acampamento mór deste lugar para Tamanduá, d'onde se
espalharam para todos os lugares desta comarca de Canoínhas, tornando impossível toda a
392
600
02 - Ricieri Melo de Arruda
600 Ricieri, também chamado de Gauchinho, afirma ter 120 anos de idade. Nasceu em Passo Fundo, e de lá
saiu com 18 anos, quando foi morar em Santa Maria, Timbó Grande-SC. Lutou na Guerra do Contestado quando
já era adulto. Quando ofereceu este depoimento, morava em Caçador - SC num barraco onde sequer há luz
elétrica e água encanada. O seu depoimento nos foi oferecido mediante uma longa entrevista gravada em vídeo,
no dia 20 de abril de 2004. Estando ele fraco de memória, foi preciso fazer inúmeras perguntas pois suas
respostas eram sempre curtas e objetivas. As primeiras coisas que falou ao lembrar o Contestado foram:
“desastre, morte, judiação, injustiça”. Nota: Após ter sido publicada esta entrevista, no Jornal Fonte, da Diocese
de Caçador-SC, em julho de 2004, o barraco onde Ricieri e sua companheira moravam ardeu em chamas,
ambos morreram incinerados. Suspeita-se que foi um incêndio criminoso.
394
tinham devoção. Não ligavam para Deus nada. Era tipo um banditismo. Eles não chamavam
os santos nada. O quadro santo era um terreno grande que tinha os cruzeiros nos cantos.
Ali eles guardavam armamentos tudo. Até hoje tem arma guardada lá.
Quem venceu a guerra foi o exército. Venceu por que eles brigavam com artiharia,
jogavam uma bomba lá de cima e caia no meio do povo e o povo foi se acabando. E dai o
povo voltou pra casa. Eu entrei pra guerra já era gente grande.
O frei Rogério dava bom conselho, ele não queira que o povo fosse na guerra. Todo
mundo, a maior parte gostava dele. Tinha uns que não gostavam por que ele só queria o
bem. Ele trabalhou em Lages, depois em Curitibanos.
O João Maria fazia as coisas igual um padre. Era como um padre. Ninguém sabia de
onde ele veio. Ele ia passando. Não ficava muito tempo no mesmo lugar. Ele benzeu muitas
fontes de água. Lá no Morro do Taió ele benzeu lá. Essa água é remédio. O povo procura
muito.
Sei uma porção de oração do João Maria. Quando você vai deitar, quando tem
algum perigo, o senhor deita e reza: “Corpo de Cristo deitou sobre mim, sangue de Cristo
jorrou por mim, coração de Cristo protegei-me contra os inimigos.” Aí o senhor pode ficar
descansado, pode ficar tranquilo.
João Maria sempre falava de Cristo, carregava de tudo quanto era imagenzinha
assim, santinho ele dava para as criança. Ele pedia pra plantar cruz. Tinha a bandeira do
Divino Espírito Santo que tinha muito valor. O povo viajava com ela. Tinha bandeira era
vermelha e tinha uma pomba. Os jagunço tinham raiva da bandeira, mas o povo tinha muita
fé na bandeira. Eu não era jagunço, eu não fui incorporado. Eu era militar e sô até agora.
Aquela história da monarquia era bobagem do jaguncismo, decerto era a devoção
deles. Eu defendia a república. Essa luta foi em 1914. Nessa época eu já tinha vinte e
poucos anos. Agora já tenho 120 anos. Eu sou de 1884 por ali. Eu mais me defendia do que
atirava. Atirei mas não acertei nos inimigos. No combate tinha 9 mil de cada lado. Os corvo
já não caminhavam mais, não podiam vencer as carniça. O povo ficava tudo jogado.
Quando era muito ele amontoavam tudo e queimavam.
Os índios deram prejuizo no pessoal, tinha uma quantia muito grande. Os outros iam
lá e matavam eles. Eu sempre me cuidava deles. Eles não entraram na guerra. Eles
atiravam com flecha, eram certeiras. Eles ficavam bravo se chamassem de bugre. Brigavam!
Tinha que chamar de compadre. Para quem não era mal com eles, eles ajudavam.
Eu sei uma oração pra queimar as vista. (para espantá o mal olhado) Era o João
Maria que ensinava essas reza. Tinha o Ze Maria mas esse não vogava nada: Salve a mim
salve o meu Jesus, há de tirar todos esses mal. Os meu direito há de vortar em nome de
Deus, virgem Maria e o Espirito Santo...
(Mostrou um quadro do João Maria e um crucifixo que ganhou do João Maria e
carrega no pescoço e disse:) Isso aqui é a minha sarvação.
A comida de João Maria era três foinha de cebola e três foinha de couve. Na época
ele tinha 85 anos. Eu ainda era novo na época.
O povo para se defender do exército tinha que fugir pros mato. Entocá não
adiantava, não adiantava fugir ou se esconder. Eles jogavam uma bomba atômica que
explodia e tudo e o que está por perto morria tudo. Eles eram poderoso.
Terminaram com os pinheiros, eles levavam pra longe. Hoje nem pinheiro não tem
mais. Quem morava perto da estrada de ferro eles mandavam embora. Os donos da estrada
de ferro também ficavam donos das terras. Quem não saia eles mandavam matar.
Depois que acabou a guerra começou encher de gente, antes não tinha quase
ninguém. Eles vinham de outros países, de tudo os países, da Europa, dai foi enchendo.
Quando eu cheguei aqui em Caçador não tinha uma meia dúzia de morador. As casa eram
cobertas de costaneira.
No rio correntes, onde tem um pezinho de araçá, um poço fundo, e um perau, ali ele
enterrou dentro da pedra uma caixa de dinheiro. O Adeodato que colocou lá e chamou o
capeta pra cuidar. É perigoso, ninguém chega lá. O capeta tá lá cuidando.
No reduto todo mundo vivia bem. As vezes passava fome também. No final deu
muita fome. Morriam de fome e de sede. Eu não gostava dos jagunços eles só faziam o mal.
395
601 Zeno tem 76 anos e mora em Timbó Grande-SC. Sua esposa Maria Joana também contribuiu com esta
entrevista.
396
Tinha um primo da mãe que era fazendeiro também, ali no São João de Cima, ele ia
fechar as vacas e tirar leite pra levar no acampamento, e os soldados bateram duas vezes lá
e mataram os companheiros dele e ele.
Eles queriam o regime monárquico, não a república, mas sobre conflito de terras eles
não falavam, não sei se eles não sabiam. Naquele tempo ninguém valorizava a terra. 80%
das terras era do governo. Aqui quando eu vim em 63 mais de 50% das áreas era de posse,
tinha gente que vendia 5 a 10 alqueires a troco de um boi gordo para comer. Eles iam
demarcando de um rio a uma estrada e estabeleciam a posse deles, tinha terra de sobra,
muitos nem queriam por que daí tinha que pagar imposto. Aqueles que trabalhavam na
estrada de ferro daí eu não sei.
Aqui na BR 116, ali perto de Santa Cecília é que eles consideravam a divisa do
Paraná com Santa Catarina.
Na serra da Santa Maria eu conheci imbuas que com tiro de canhão atoravam as
árvores, aqui foi o fim. Conheci muitos lugares onde elas explodiam. Tinha a família
Fabricíco de Melo, ali eles acharam muitos objetos de guerra. Não sei a quantia de gente
mas tinha bastante. Tinha os Par de França que eram os corajosos que enfrentavam e
matavam os contrários. De cima da serra de Santa Maria a Força bombardeava lá em baixo.
Corvo eles não deixavam vir, porque morria muita gente de doença e eles matavam
porque eles diziam que era espião. Tinha um cemitério ainda tem ali perto da Santa Maria,
eu conheci. Agora o terreno é do atual prefeito, ele comprou um terreno ali por perto. Aqui
foi onde foi terminada a guerra, foi quando o Adeodato era o comandante.
Tinha o tal de pai velho que comandava as coisas, tinha também as virgens. O
Adeodato mandava matar aqueles que tinha desconfiança. Todo dia ele colocava tudo em
forma e aquele que ele tinha desconfiança que era contra ele, ele mandava matar, tanto
homem quanto mulher, e arrastava do outro lado do rio e enterrava o que morria de doença,
o que morria matado não enterrava.
No final não tinha mais o que comer. Antes eles passavam nas fazenda e levavam
tudo, mas no final não tinha mais.
Tem muita distorção.
Jagunço era devido a crença, não sei o porque, uns diziam fanático outros diziam
jagunço. Eles botavam em forma aquela turma e diziam que enxergavam por baixo das copa
dos pinheiros que tinha que ver o exército de São Sebastião, e quem não enxergava eles
diziam que ia aparecer uma cruz na testa deles. As mulheres usavam um pano na cabeça
de medo que aparecesse a cruz na cabeça.
O meu pai contava que a guerra era mais por causa do regime monárquico e pela
religião e as profecias de José Maria que era um falso.
O João Maria, eu não sei a vida dele, mas ele nunca foi pelo mal e aconselhava pelo
bem e mandava rezar, que se não rezasse acontecia coisas de mal. Esse José Maria era
bem diferente, a profecia dele era bem diferente.
Esse José Maria morreu no primeiro combate, no Irani. O João Maria ninguém sabe
onde morreu. Ninguém perseguia ele, ele foi embora... quando começou a guerra ele já não
estava mais por aqui. Depois apareceu esse que disse que era irmão dele. Ele já não era
novo. Na época eles batizavam em casa, minha mãe foi batizada por ele. Já era costume do
povo batizar em casa. Eles diziam que ele benzia aquelas vertentes e daí o povo ia batizar
lá. Tinha uma crença que era remédio aquela água. Hoje em dia acontece qualquer coisa, e
se diz: bem que o São João Maria dizia que ia acontecer.
Meu avô era fazendeiro, ele mandou fazer uns armário bem bonito e levaram pra ele,
ele pegou agradeceu, agradeceu, barbaridade, pediu por Deus, rezou, e disse: dê para um
pobre.
Eles diziam que comia só couve, feijão..., carne não. Uma vizinha contava que ele
tinha uma panelinha assim (mostrou com as mãos um tamanho pequeno) e quando dessem
carne ele agradecia. Nas casas ele não dormia.
Naquela época em Curitibanos era o frei Rogério, ele convidou ele para confessar e
ele disse que não tinha um padre para confessar ele, então a igreja desconsiderou ele, mas
eles não brigaram. Ele ensinava remédio... Tinha aquele grupo que acreditava tanto na
397
602 Aliriano A. da Silva tem 90 anos e mora em Timbó Grande-SC. Identificou-se como sendo descendente dos
índios Botocudos.
398
trabalhando ai no timbozinho fazendo erva, era um homem bem intriguero, bem grande, com
o cabelo meio amarrado, daí cheguemo lá, mais ou menos nessa hora, em baixo de água,
toda vida, home do céu, e de a pé. Eu falei com ele. Nóis era muito amigo.
Eu tava com esse meu filho mudo e surdo, e ele disse, vocês tão viajando junto com
um santo, ele regula a santo. É de nascença. E prozeamo até meia noite.
Uma visita a João Maria
Ele disse: eu te conto bem certinho o que vocês vão precisar. Faz 10 anos que eu
falei com o compadre João Maria pro mode ir lá onde ele mora, eu agora o ano passado ou
atrasado uma coisa assim, eu tava colhendo uma roça de mato, eu acabei anoitecendo e
perdi o rumo de volta pro rancho, então eu subi numa árvore das mais altas e com a
espingarda.
Quando clareou o dia, ele enxergou um serrinho e diz que enxergou uma grelha na
ponta do serro, e disse é lá que morra o meu compadre. Marcou bem o rumo, e atorrou pelo
mato, toda a vida. Quando ele não esperava chegou em baixo do serro. Havia um toldo de
índio e forje, e disse que tinha só um carrerinho pra vará por dentro. Em baixo do cerro tava
um índio sentado numa cadeira de cipó e a par dele tava uma escada de cipó pra subi.
Ele chegou ali e falou pro índio véio, não podia compreender mas não demorou e ele
se comprenderam, e era um guarda de São João Maria, daí ele pediu socorro. Disse: é
facinho, o senhor pode vir de ao par de mim, onde eu piso você pisa também naquela
escada e não espie pro lado. Naqueles vãos de pedra tava cheio de vela e santo.
Lá no fim da escada era chão gramado, daí o índio disse, agora o senhor vai
sozinho, que eu não tenho ordem de ir lá. Daí ele foi, numa alturinha, tava um tigre deitado,
um de cada lado. Pensou o compadre: tá experimentando minha coragem, e eu cruzo
mesmo, pois ele me deu o poder! Daí lá numa altura, duas cobras, rodeada nesse tipo
(mostrou como elas estavam postas), daí o São João Maria veio encontrá ele.
Voltaram juntos, chegaram lá e prosa e prosa, daí umas horinha ele convidou o
compadre Pedro pra ir ver o jardim dele. Diz ele que as qualidade de flor que existia no
mundo tinha ali. E tinha três pé de couve, ele tirou uma folha de cada pé e, rasgada aquelas
folhinha de couve, colocou pra cosinhá num caldeirãozinho de feijão. Daí, ao meio dia, ele
tirou da mesa um litro de farinha de biju, comeram e encheram bem a barriga e não faltou
farinha naquele litro e o caldeirãozinho também bem cheinho. Senhor, veja o poder dele.
Daí o compadre disse: agora vou embora compadre. Ele: o senhor pode ir, o senhor
veio de cá, agora tem que ir pra cá (do outro lado), o senhor não pode voltá por aqui, disse,
e o que o senhor viu pra cá (do lado que veio) o senhor vai vê também pra cá (do outro
lado).
Mas antes dele sair de lá ele perguntou quando é que ele voltava pra aconselhar os
católico de novo. Ele disse: não é fácil, porque quando eu saí de lá tinha só uma religião que
Deus deixou, mas vai ficar assim de religião.
Já que o senhor é católico eu vou lhe contá, porque pra quem é de outra eu não
posso. Não sei quando vai dar certo mas eu vou dar um sinal quando for pra mim ir, no vão
dos três cruzeiro que nós tamo aqui, vai sobrá 10% só, e daí me esperem por que eu vou lá,
falar a verdade de novo, e pra fora, vai sobrar só pó. (Decerto vai ter uma guerra, tem que
ser né!). Daí vai ter só uma religião, daí me esperem.
O poder da oração e algumas histórias relacionadas a João Maria
O senhor qué vê o poder dele? Eu sei 12 oração que ele rezava. A primeira, se for
preciso, daqui eu mando lá em Curitiba, ainda mais esta hora, essa hora é a hora própria
(18 horas). Não me admiro que hoje não tem gente aqui pedindo cura porque é domingo, no
domingo só faço cura pra anjo com menos de 7 ano, os outro tem que ser dia de semana. É
o mesmo que tirar com a mão a esta hora. Veja a natureza que Deus me deu, eu tenho
curado centena de gente. Espiando na mão de muita gente eu não tenho visto esta natureza
(mostrou sua mão).
Antes de eu nascer homem do céu, pro senhor eu conto porque to vendo que o
senhor é de toda confiança. Antes de eu nascer eu chorei na barriga da minha mãe e teve
muita gente que escutou. Minha mãe era muito curandeira também.
O São João Maria rezava até meia noite, onde ele posava ficava um olho d’água.
399
Aquele olho d’água era remédio pra tudo o que era doença. Ele fazia um cercadinho e
encomendava que cuidasse, para que as criação não bebesse, que se elas bebesse a água
não servia mais para remédio.
E no mesmo tempo ele guiava assim, ói, tem essa raminha do campo e não tem
doença que não cure, mas isso é antes de apelidarem a raminha. No que eles apelidem
dando o nome do remédio, ela perde a força. Então, ele ensinava tudo o que era perciso,
mas só o que era perciso.
Daí uma muié ia indo, não tinha estrada naquele tempo, e ela ia levando uma galinha
preta, e a galinha sujou o vestido dela. Ela disse um nome pra galinha e deu pro inimigo.
Mas pra que, quando ela foi entregá a galinha ele disse, essa galinha tem dono! Se lembra
pra quem que você deu? Não posso pegar! Teve que levar de volta a galinha.
E outra coisa, se uma mulher tava pra ganhar uma criança e fazia a intenção de levar
pra ele pra padrinho, não é que a criança nascia batizada! Pra vê o poder dele. Então ele
dava o nome de João se era homem e Maria se era mulher. Por isso que quando eu batizo
eu não ponho outro nome. Teve semana de eu fazer 5 batizado. O pessoal ria de mim
porque eu tenho fé no São João Maria e agora home do céu eu não sei se nos temo 30% de
católico aqui. Não sei.
João Maria disse, olha a pessoa que for bem católico não tem perigo de deixar da
religião, mas se não for bem católico ele resvala e troca, e feliz daquele que não deixar da
religião que Deus deixou. Esse nunca se arrepende e aquele que deixar amanhã ou mais
despois se arrepende.
Quando eu fui 30 dias na aula, o professor me disse no final daquelas aulas: comé
que pode, o senhor só com 30 dias de aula sabia muita coisa que eu não sei sendo
professor. Eu disse, bem eu sei porque quem conheceu o mundo me explicou certo, que foi
o São João Maria, que explicou para meus pais e padrinhos. Daí ele perguntou, mas o
senhor teve alguma aula antes dessa? Eu disse: eu tive. Daí perguntou aonde. Eu disse: foi
entre o sol com a lua. Ele, mas como o senhor me diz isso, que eu não posso compreender?
Eu disse: veja quando a lua tá cheia pra ver, no anoitecer, se ela não tá pra cá e o sol está
descendo. Onde é que nos tamo se não é entre o sol e a lua?!
Eu já tive 93 viagem para Curitiba consultando e, com o poder de São João Maria de
Agostinho, nunca me aconteceu nada. Ele é tão poderoso porque Deus deu o poder pra ele.
Quando Deus subiu pro céu, Ele disse: vocês fiquem aí, mas com toda a liberdade; o que
quiser ser meu é de livre vontade, mas vocês façam o que der na idéia. Porque é que tem
poucos católicos?
Pra falar a verdade Jesus deixou São João Maria no lugar dele pra falar a verdade,
pra explicar tudo certinho, fazer cura, fazer beleza, fazer só o que é perciso, não deu ordem
de judiar nem de uma formiga. Ele batizava pra mode livrá do mal. Quem pedisse ele
batizava e ficava padrinho. Naquele tempo os home véio era tudo compadre dele.
Ele tá vivo, não tem morredô, agora tá parado na igreja lá no Taiozinho. Ta
encantado, pelo ouro. Como é que pode, home do céu, o senhor não viu falar que os padres
jesuítas tavam fazendo uma torre pra chegar no céu, daí Deus cortou as asas deles pra não
chegarem no céu. E daí ficou apontado. Os lados é de ouro e as parede é de prata. O São
João Maria tá lá.
Não é fácil de chegar lá. Percisa pedir o poder dele 10 anos pra chegar lá. Ele disse,
pro meu compadre, que quando ficar 10% de católico então ele ia voltar. Encantado é
porque os índios estão em roda dele, são tudo afilhado dele, são os guarda dele. O índio
véio que foi na frente do meu compadre Domingos e conduziu ele pra visitar o São João
Maria. E pra chegar lá teve que ter coragem por causa dos tigre e das cobras. E a pessoa
tem que pedir 10 anos o poder dele para chegar lá.
Nos somos dos índios botocudos. De começo o Brasil era tudo deles, dos índios.
Eu tinha o bastãozinho dele, era mais de meio metro e menos de um metro. Aquele,
se você colocava numa roça, nada mexe na planta. Ele abençoava aquele bastãonzinho e
também para remédio era rapado aquele bastãonzinho e feito um chá pra qualquer doença.
A água que ele benzia também era remédio pra qualquer doença, antes das criação
bebê.
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Hoje é poco que segue os ensinamentos dele, e muito pouco, então quando eu faço
uma defesa, guiado por ele, eu faço alto pros vizinho escutá, para ver se algum se interessa,
até hoje teve só um que se interessou. No ensinamento dele e com o poder dele, eu curava
ofensa de cobra pra criação e gente, toda a semana.
Eu pedi os poder dele pra fazer uma defesa e aprendi uma defesa pras cobra não
morder ninguém e faz 30 anos que acabou a força das cobras. O que era mais venenosa
apareceu morta e as outras dão e eram o bote.
Então o ensinamento dele eu aprendi em sonho, ele me explicou, o senhor reza três
oração, na sexta da minguante, as seis horas da tarde, e não aparece mais nada de cobra,
não tem mais perigo. Pra ver o poder que tem.
603
05 - Miguel Correia de Souza
Fomos levados para o reduto de Santa Maria. Naquele tempo a comandante era
Maria Rosa. Maria Rosa nunca mandou matar ninguém. Até aí não havia banditismo. Depois
veio o Adeodato. Então, os que estavam no reduto não podiam sair. Só com ordem do
Adeodato e dizendo o tempo que iria ficar fora. E tinha que chegar um dia antes do prazo.
Tinha que aparecer senão ele matava.
Nos redutos nada custava dinheiro. Os jagunços arrebanhavam 40 ou 50 rês e
matavam e todo mundo comia. No início, na forma todos tinham uma bandeira branca no
facão de pau e uma fita verde como forma de uma cruz. Aos poucos foram se armando. Os
jagunços queriam a monarquia, trocar de rei. Eles foram iludindo o povo. Aparecia padre
dizendo missa, coisa feita por eles. Era uma crença impossível. Eles queriam dizer que era
o seu João Maria que estava comandando a guerra. Chegou um ponto que nem as
mulheres não choravam quando os maridos morriam. Não choravam. Eles diziam que
ninguém morria, só passava para o exército sagrado. Aparecia uma bandeirinha branca lá
longe e alguém gritava “olha lá o exército sagrado”. Nada, era eles que faziam confusão.
Nem que as pessoas não enxergassem nada, não podiam dizer que não viam. Se dissesse
“eu não enxerguei”, então eles mandavam matar. Esse não era bom da fé. Era uma crença
miserável, que não tinha jeito.
Seu João Maria, antes de formar o fanatismo, ele andou por aqui. Quando ele andou
por esse mundo ele aconselhou muito o povo. Ele dizia: “Não se iludam com gente
nenhuma. Vão se estabelecer no meu nome mas eu não tô lá.” Eles começaram o negócio
no nome do José Maria, depois começaram por São João Maria...
Um dia Adeodato disse: “amanhã não sai ninguém, porque vamos esperar o seu
João Maria. Seu João Maria chega amanhã aqui para terminar a guerra. Então no outro dia
fez uma forma do povo, para esperar. Era homem de um lado e mulher do outro. Lá assim,
apareceu um piquetão do Adeodato, que vinha lá... vinha um veinho na frente num cavalo
branco enfeitado de fita que era um colosso. Tinha uma garrafinha branca numa mão e um
maço de flor. E entrou no meio daquele povo e recebia louvado de todo lado, dos dois lado.
E desapareceu...
No outro dia já não era o seu João Maria, era o Pai Véio, tinha também a mãe véia,
uma mocinha... O pai veio era o Manoelzinho Morais, de Lageadinho. Ele veio como o seu
João Maria, na frente do piquetão do Adeodato. O Pai Velho nada fazia, nem curas nada.
Era um coitado de um homem, benzia. Fazia uma micagem que benzia.
Tinha três virgens o Adeodato. Matou até a mulher para ficar com a comadre.
603 Filho de Constantino Correia de Souza, natural de Tijuca, que guentou 115 anos, e Francisca Gonsalves de
Araujo, que guentou 120 anos. Esta entrevista foi feita por Eduardo Góis de Oliveira e Delmir Valentini, em 1996,
quando Miguel, residente em Lebom Régis, tinha 92 anos. Miguel Correia de Souza, viveu quando criança nos
redutos do Contestado juntamente com seus pais e familiares. Dois anos antes de falecer ele concedeu este rico
relato que segue. De um rico relato de duas horas de conversa descontraída selecionei algumas partes que
considerei mais próximas da minha intencionalidade em relação a esta pesquisa.
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Colocaram uma lei que todos tinham que levar o seu dinheiro, ouro ou prata que aquele pai
véio ia benzer. Dizia que ia benzer. ...tirou todo o dinheiro que tava na mão daquele povo,
muitos começaram a esconder o dinheiro. Tinha gente muito rica lá. Quem não queria deixar
para venzê eles depois matavam e vinha o dinheiro para o pai velho. O Adeodato ideiô de
tirar os armamentos. Encheu um galpão de armas e ninguém sabe para onde foi aquelas
armas. Adeodato cantava que dava gosto. Não vi melhor tocador de violão e viola e
cantador Toda gente deles era tocador e cantador. O povo escutava, mas não tinha baile,
nada disso.
São Sebastião para nós era um santo poderoso. Para a força ele era o chefe dos
jagunços. Prenderam ele. O coitado sofreu com nóis, andou amarrado e puchado... Desceu
uma força de São Sebastião ali na Santa Maria e brigaram 18 dias e 18 noites, na guerra. A
força do exército jogava canhão que não caia no acampamento, saia de uma serra e ia cair
na outra, até que desacorçoaram. Um dia se perderam e vieram vindo arrodiando até chegar
no reduto, então os jagunços mataram todos.
As formas era num campo grande (como um de futebol) com cruzeiros de cedro nos
cantos. Quando tocava as cornetas tudo tinha que correr para o quadro, para fazer a forma,
rezar e gritar vivas. Os homens tinham comandantes e as mulheres também tinham suas
comandantes. Quando alguém se negava ir para a forma, porque tava fraco aborrecido, se
tava doente eles deixavam ai e se não tava eles levavam abaixo de coice e arma “marcha
seu cachorro” e tinha que ir. Rezavam tudo quanto era reza, tudo rezava. Cantavam que
dava gosto. O santo que vinha na idéia de alguém, tinha que gritá e tudo respondia.
Ninguém tinha medo, por que ninguém morria, só passava para o exército sagrado. Não
havia medo.
Nem corvo podia comer carniça. Adeodato dizia que era bombeiro. Derrubava com
um tiro. O Adeodato conseguiu pegar a vez da Maria Rosa, ele tomou conta. Pegou o poder
da Maria Rosa. Maria Rosa nunca mandou matar ninguém. Enquanto não tinha o Adeodato
também não tinha o banditismo. Maria Rosa passeava com um cavalo branco na frente da
força que brigava com os jagunços. E era metralhadora e tiro daqui e de lá, e nem nela e
nem no cavalo nunca pegou uma bala. O Adeodato tinha um espírito que não sei se era
bom ou mal que avisava ele.
Muitos jagunços que fugiram de lá, depois voltaram junto com o governo e com os
vaqueanos. E o governo foi cercando, em cada carreiro tinha uma guarda...
No reduto não era só dez mil pessoas, era muito mais. Tinha muita gente estranha,
de fora, nos redutos. Quem vinha não podia voltar. Muita gente rica também vinha.
Chegava, gostava, achava bonito e voltava buscar a família. Se iludiam. Tinha dia que
sepultavam mais de 40 criança. Hoje não dá gosto lembrar, nem dá gosto de ir em muitos
lugar. Foi matado muita gente. Depois que acabou a guerra, durante 5 anos continuaram
matando os jagunços. Perseguiam e matavam. Podiam matar e não tinham compromisso.
Não tinham valor nenhum. Era os do lugar mesmo que matavam. E, havia piquetes de gente
braba que saía para roubar, que não eram dos jagunços.
Até pouco tempo eu tinha foto do São João Maria, não sei o que foi feito, foi levada
para renovar.
(Indicou com o dedo um local próximo da casa e disse:) Logo ali tinha um cruzeiro
dele, que ele pousou ali, tinha uma bica, onde muita gente foi curada. As mães levavam as
crianças com varicela e outras doenças e eram curadas. Agora tem uma placa lá.
Eu tenho uma fé em João Maria, uma barbaridade. Tudo o que ele contou quando
ele andou por este mundo aqui, foi visto.
402
604
06 Justina Caetano da Silva
604 Justina Caetano da Silva tem 76 anos e sempre morou em Lebom Régis –SC. É casada com Carlos
Caetano da Silva.
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Daí ele contou onde é que ele ia, ele disse que ia vir visitar os cruzeiro dele, mas que
ninguém ia ver ele. Dizem que lá no rio novo foi visto ele. Ele nunca quis ir lá no Timbó.
Perguntaram pra ele porque ele nunca ia lá no Timbó.
Ele disse: não, lá vai se torná um assogue que nunca vai ter fim. Assogue no povo.
Vai vim com meu nome, mas o nome dele não é João Maria, o nome dele é Joaquim. Daí foi
o fanatismo... O Adeodato tinha um palanque. Eu conheci o palanque do Adeodato (o
Joaquim). Um dia ele mandou pegar uma vaca pra carneá, ele disse piquem de meio quilo e
quando picarem me avisem.
E fizeram aquele monte de carne e as coitadinhas das crianças ali, tudo morrendo de
fome.
Foram lá e contaram pra ele: o cavalo tá encilhado lá na mangueira.
Era um cavalo preto, diz-que.
Daí ele disse: saiam aí a reunir as criança, pra cada uma levar um meio quilo de
carne pra fazer uma sopa.
Mas ele fez a sopa das crianças, matou tudo, não sobrou uma. Quando a criançada
choveu em roda daquele maldito coro ali (sobre o qual estava a carne picada), ele montou a
cavalo na mangueira e veio e arrojou em cima das crianças, e foi de destripar as criança.
Ele arrojava o cavalo, e as que não morriam ele jogava pra cima e pegava com a espada,
dava um golpe e matava.
Daí ele mandou o povo se escapá. A minha avó morreu lá, fraca de fome, dor de
barriga... Ela não conseguiu sair pro limpo. O tio José era companheiro do Adeodato. Ele
pegou a mulinha, encilhou, e colocou minha avó em cima, pra sair, mas caminhou um pouco
e ela já ia caindo. Daí ele desceu ela, ponhô dois guariba no chão, travesseiro, deixou ela
deitar ali, cobriu e morreu ali. Depois que acabou a guerra, ele pegou um revirado, ponhô
nas costa e disse: até que eu não achar os osso dela eu não venho. Ele achou, fez a
sepultura, uma catatumba de pedra e enterrou os osso dela lá.
João Maria não entrava nas casas. Um dia ele tava fazendo o pouzinho dele, num
lugar onde tinha uma gente bem pobrezinha que trabalhavam prum ricasso. Eles se
conservavam com a água de um caixãonzinho de salmora que tinham, e algum passarinho
que ele matava. Daí a mulher saiu, um dia de tardinha, pra pegar uma água e viu ele
arrumando a barraquinha perto dali. Ela falou pro marido e ele disse: eu vou lá.
E foi ajudar armar a barraca. Daí, quando ele tava saindo pra ir pra casa, ele disse:
vamos pousá lá em casa, o senhor vai se molhar aí.
Ele disse, não se incomode eu não me molho.
E o foguinho lá no chão, pra fora da barraca.
Ele tinha um caldeirãonzinho pra fazer a comida. O caldeirão era pequeno, mas na
verdade ai comia todo mundo e ainda sobrava. Todos os que iam comer, lá com ele,
levavam comida: couve, feijãonzinho... Depois de pronto eles iam tirando nos prato.
Ele dizia: podem comer, vocês não vão vencer comer tudo.
E eles enchiam a concha e colocavam no prato e todo mundo comia e olhavam no
caldeirãonzinho e tinha lá o mesmo tanto. Não sei como ele fazia aquilo.
E o outro foi embora. Começou chover, e chuva de pedra, e ele espiava da sua casa.
E o fogo não apagou e três metro em roda da barraca não caiu um pingo de água. No que
passou aquele barbulismo o homem foi lá de novo.
Disse: não se molhou seu João Maria?
Não, disse, to bem enxutinho. Amanhã vou almoçá lá com você.
E ele chegou lá e contou pra mulher dele.
Ela disse: minha nossa senhora, o que vou fazer pois não temos nem sal!
E trabalhavam direito, mas os patrão não davam dinheiro pra eles.
João Maria não ia na casa dos patrão, só ia na casa dos pobres, onde não negavam
a comida. Mas o rico ofertou, viu aquela situação do pobrezinho, chegou lá, de tardinha e
disse: ô, seu João Maria, eu vim aqui convidar o senhor pra ir almoçá amanhã com nóis.
Ele disse: Eu vou.
Daí foi, no outro dia, mas tarde já. Tinha que chegá na porteira e gritá, porque tinha
um cachorro. Ele chegou lá na porteira e dizia: ô de casa, ô de casa.
404
Tenho contado para muita gente que Seu João Maria quando andava no mundo
disse que vinha uma ilusão no povo que “iam chamar muito por João Maria mas João Maria
não iria valer”. Ele disse “vai vir outros dizendo ser eu mas vocês não devem ouvir”. O
jagunço começô no nome de Seu João Maria. João Maria contou que tinha um irmão com o
nome de José Maria... João Maria quando era procurado ele batizava. Na Serra da
Esperança tinha uma grota... colocaram uma bica. As mães levavam lá as crianças doentes
e elas eram curadas.
Na forma o povo tinha que gritá viva treis veis, de manhã, ao meio dia e à tarde.
Tudo começou lá por perto de Lebom Régis. Foi uma mulher que tinha uma ilusão
que via o Seu João Maria. O pessoal tinha muita fé nele. Tudo o que o seu João Maria falou,
605 Esta entrevista foi feita por Eduardo Góis de Oliveira e Delmir Valentini, em 1996, quando Manoel, que
morava em Timbó Grande, tinha 92 anos.
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que minha mãe contava, tamo vendo. Dizia: “o longe vai ficar pertinho” Veja a televisão, ta lá
em São Paulo e tá aqui pertinho.
Nunca vi Adeodato matar uma criança. Mas homem e mulher sim. Ele matava. Matou
eu acho que uns 50 homens ou mais. O corvo que vinha voando ele matava com um tiro,
dizia que era bombeiro dos peludos. Durou uns dois ou três anos esse fanatismo do
Adeodato. Quando prenderam o Adeodato eles levaram ele para Canoinhas, depois para
Florianópolis. Um soldado matou ele lá. Adeodato não era cantador, ele andava rezando e
gritando com uma bandeira na mão.
Todos os jagunços eram irmãos. Tinham uma fita branca no chapéu...
O “Pai Véio” era o Manoel de Morais, do Lageadinho. A batida da força aqui foi no
dia 17/12/1915. Baliaram o Pai Velho, dois dias depois ele chamou o Adeodato e mandou
despachar o pessoal. “Eu te chamei para você despachar esse pessoal que nois tamo com
a alma no inferno por estar judiando desse pessoal.” Só disse isso e morreu.
Criança deste porte prá baixo (aproximadamente um metro) morreu tudo de fome.
Comia-se miolo de xaxim e broto de samambaia. Foi muito triste... Quando acabou o
pessoal ia se apresentar em Canoinhas, depois voltava para as suas casas onde moravam.
606
8. Arnoldo Ferraz
606 Arnoldo tem 83 anos – 01/01/1822 – nasceu e sempre residiu em Timbó Grande-SC, Comunidade do
Amador, e é casado com Adélia Rocheski.
607 Mais tarde ele falou que isso Deus já revogou.
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Conjuro todas as armas e armamentos, pelo vivo Deus Pai, do Filho e do Espírito,
assim como por todos os santos, para que nenhuma arma mortal me possa ferir ou matar.
Deus Filho esteja comigo, Deus Espírito Santo esteja entre todas as balas. Amém.
Efeito da oração (Exemplo ou explicação da oração, da importância da oração)
O Conde Felipe de Flandas que passou fidalgo cavalheiro, a quem por causa de
roubo quis mandar cortar a cabeça, sucedeu que isso não conseguisse e o seu carrasco
visto que não pôde ferir nem decapitar. Este fato causou grande admiração ao conde e aos
que se achavam presentes. O Conde mandou que trouxessem o fidalgo à sua presença e
conseguiu que lhe confessasse qual o motivo. Por que não conseguia a tentativa o fidalgo
em resposta mostrou esta carta com as seguintes letras: B + R + D + D + D + W + R. Todos
os criados se admiraram e o Conde mandou copiar incontinente esta carta.
Se alguém deitar sangue pelas narinas ou estiver ferido de outra forma, basta
colocar esta carta por cima do ferimento e o sangue se estancará.
Aquele que não acreditar, escrever estas letras na lamina de uma faca e fira com ela
um animal, que este com certeza sangrará (...).
(...) Maria e José esta oração fará a gente forte e salutar.
A oração foi no ano de 803 quando sobre a sepultura de nosso Salvador o papa
remeteu ao imperador Carlos da França, que mandou imprimir com letras de ouro sobre o
seu escudo. Quem diariamente rezar ou ouvir rezar esta oração, juntando a ela o padre
nosso, os padecimentos de Jesus não o destruirá de morte desnatural, nem morre de horror.
Quando uma mulher estiver para dar a luz, se o marido colocar esta carta ao lado
direito dela, ela terá um parto fácil e estará livre de perigo.
Também aquele que trazer esta oração consigo não será acometido de nenhuma
enfermidade.
Quem levar esta oração de casa em casa será abençoado, mas aquele que dela
escarnecer será amaldiçoado.
Também será preservado de tormentas, em casa que ela se achar.
Por fim quem rezar ou ouvir esta oração, verá nos dias antes de sua morte um sinal
no céu.
Chico Grein
Arnoldo afirma que aquilo que ele fala, antes ele prova. Em seguida contou um fato
relacionado a um vizinho dele chamado Chico Grein:
O Chico Grein atentou-se, perdeu a cabeça, pastava como cavalo. Enloucou-se. Ele
é um homem rico, alemão. Não é querer falar, mas o Deus deles é o dinheiro. Não rezava,
nem nada. Daí levaram ele lá prá Florianópolis, lá ensinaram ele rezar, ai veio-se embora e
enloucou de novo.
Ai eu disse pra comadre Vitória (esposa do Chico): copie esta oração, põe embaixo
do travesseiro desse louco e nunca mais o diabo atenta ele!
Ela disse, pois se for, eu faço.
Daí a nora dela escreveu (copiou) mas não escreveu tudo... E ela colocou debaixo
do travesseiro e ele não enlocou mais.
Porque esta oração atropela o que é de mal, na boa fé nada atenta.
Esses antigo às vezes brigavam e um descarregava o revolver no outro e não saia,
não acertava nenhum tiro, porque eles usavam essa oração.
Ter essa oração com fé não abala ninguém. A bala não chega no corpo da pessoa.
História do Tonico Hipólito
São João Maria ele foi um profeta.
Meu avô contava - não sei se o senhor ouviu falar na história do Tonico Hipólito.
Esse Tonico, o pai dele era o homem mais rico do Brasil, ele era dono da cidade de
Juazeiro do Norte. A cidade inteira era dele. Isso a muito tempo atrás. Então esse velho só
tinha um casal de família. Tonico e uma irmã. O Tonico ele mandou estudar num país
estrangeiro.
Ele era dono da cidade, tinha a casa cheia de moeda ouro. Naquele tempo achava
uns montão no mato. Porque o ouro escondeu-se depois, pela ambição do povo. Então ele
saiu e de cada tempo em tempo ele vinha.
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Um homem deste só tinha que ser um profeta de Deus, né. E despois o senhor note.
Esse homem viajar no Brasil inteiro, no campo, posando no campo, chegava numa casa e
tal, as prosa dele e tudo, mas ele não chegava na casa para posar.
Ele chegou num lugar e diz que tava se aprontando uma tromenta das mais grande
do mundo.
O visinho disse: chegue senhor, vamos pousar aqui que senão o senhor se molha.
Não, vou achar uma árvore bem enfoiada, uma árvore bem enfoiada rebate a chuva.
Tinha uma lomba assim, diz que eles viram até quando ele acendeu um foguinho, e
baixou aquele temporá.
Aí, no outro dia, cedo, disseram: vamos lá vê como é que o veinho passou.
Chegaram lá ele tava fazendo um foguinho, tinha juntado um braçado de graveto, de a par
lá, tudo enxutinho.
E disseram pra ele, mas não choveu aqui seu João?
Não, choveu mas eu gosto de me acomodar debaixo de uma árvore bem enfoiada,
porque daí não passa a chuva.
O senhor carcule que fôia de árvore; não passava porque era um milagre dele.
E aqueles gravetinhos tudo enxuto e aquelas leinha também.
O senhor carcule que ele era um homem de poder né. Tem muitas curas que ele fez
e cura de milagre. É o que o povo conta.
A gente reza, oferece pra ele. Porque ele disse: eu santo não sou, mas aquele que
percisá, reze um padre nosso e uma Ave Maria pra mim e acenda uma vela, que eu hei de
valê.
O senhor não viu falar no Taiozinho?
Uma derradeira missa que ele disse foi lá em Canoinhas. O senhor não conhece lá
em Canoinhas? Conhece a igrejinha do são João Maria, as água dele?
É retirado da cidade, as pessoa mais velha sabe.
Ele ficou oito dia lá. Um derradeiro dia ele batizou oitenta criança lá. Ele rezava
missa. Era uma festa, aquele povo, barracas pra todo lado... Daí ele despediu-se do povo.
Ele disse: agora vou cumprir minha missão, vou descansar, eu vou ficar no Taiozinho,
porque lá é uma cidade encantada, então vou ficar lá com os bugre, mas mais tarde vocês
saem daqui e vão assistir uma missa lá no Taiozinho, vai ficar bem pertinho.
Eles ficaram bobo, né. Mas ficou pertinho, pois agora tem os carro né. Ele não
declarava as coisas.
Para visitar o Seu João Maria
E tinha um rapaz, que o seu João Maria era padrinho desse rapaz, ali em Papanduva
por ali, mas isso faz muitos anos.
Ele levantou bem cedo e disse para mãe: mãe me mate uma galinha e faça um
revirado dessa galinha, que eu quero visitar meu padrinho, João Maria.
Ela disse êh meu filho!
Eu vou, vou visitar ele sim, minha mãe!
Quando fez nove dia ele chegou de vorta.
Ela disse: viu teu padrinho?
Vi!
Onde é que ele está?
Tá lá na cidade do Taiozinho. Tive lá com ele. Tá lá, uma cidade muito bonita, uma
igreja que representa ser de ouro por dentro.
Ai ele contou, e ficou uma história.
Ali em baixo do Taió tinha uma povoação. Fizeram uma festa, o rapaz não quis ir na
festa. Disse: eu vou caçar... Matou uma paca, e tal, de repente, uma porta no perau. Chegou
lá, bateu, e veio uma voz lá de dentro: vai-se embora, pegue a tua cacimba e vai-se embora!
Ele foi, chegou na casa, o outro rapaz que não tinha ido, foi proseá com ele.
Disse: rapaz, eu vi uma porta lá no perau, que até dá pra duvidá.
No perau? Disse: vâmo vê.
Chegaram lá, acharam, bateram na porta e veio aquela voz: mas você ainda voltou e
trouxe mais um éh?
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Disse: nóis queria muito proseá com seu João Maria, que ele disse que ele mora
aqui numa cidade encantada.
Então vou abrir a porta.
Abriu a porta, tinha uma igreja mais linda do mundo, uma cidade das mais lindas do
mundo. Aí disque ele olhou assim e perguntou: e o seu João Maria?
Ele disse: ele tá pra trás daquele prédio lá. Ele fez um foguinho, tá se aquentando lá.
E aquele batalhão de polícia lá. Diz os rapaz que pra eles era o são Sebastião
pegando no cabo de um fuzil e aquele povo tudo deitado de bruço.
E foram lá, e ele veio encontrá eles. Aí prosearam bastante com ele.
Agora vocês vão embora e não procurem de vir aqui, porque aqui vocês vem só
quando nois chamar, e assim, por conta, vocês não venham mais, que não é bom pra
vocês.
E agora como é que nóis vamos sair?
Ele disse: não, eu vou sortá vocês.
Abriu o portãozinho, se despediram dele e o seu João Maria falou mais umas coisa
pra eles.
Quando eles saíram, pisaram fora, olharam era só o perau. Não tinha protãozinho
nada, não tinha nada.
Isso não é história, isso é coisa que aconteceu. Ele disse que ia morar nessa tal
cidade encantada do Taiozinho. Ele mora lá. Esse caçador achou a porta, decerto é porque
eles mereciam né, daí entraram. Vamos dizer, era uma serra como esta daí. Mas ninguém
vê lá, é encantado, não dá pra ver. E o que andou de gente campiando a cidade encantada
do taiozinho...
Ele disse vai ter um tempo, chegando esse tempo, daí desencanta. Ele prometeu
voltar. Aí no Tamanduá tem um cemitério, ele pousou lá. Aí disse pro povo: eu mandei
vocês plantar um cruzeiro onde eu pousei, mas daí ficou por sistema, onde eu pousar todo
mundo planta uma cruz. E vocês não sepultem gente onde eu poso, porque eu vou voltar. E
se vocês sepultarem gente, é capaz que eu demore mais ainda pra vortá.
Chiquinho Marculino viu com os seus olhos!
Seu João Maria pousou no São Sebastião dos Ferreira. Eu proseei com um velhinho,
um tar de Chiquinho Marculino. Não sei como é que viram ele posando lá, tiveram uma
informação foram todo mundo lá.
E ele me disse: aquele milagre eu vi.
E o Rio Paciência era mais longe que aquela casa (mostrou uma casa ao longe), era
alto.
Então, já era umas horas da noite o seu João Maria disse: Chiquinho, vão-se
embora, que já proseamos bastante. Eu to cansando, tenho que descansá, que amanhã eu
tenho que sair bem cedo.
Mas o véio quis por água pra esquentá. Disse: eu vou lá no Rio Paciência pegar
água. E diz o veinho: pois eu me criei naquele lugar.
O seu João Maria oiô assim, disse: vai pra trás daquele pé de erva ali, que tem um
despejinho de água, você vai e pega água ali.
Ele disse: eu fui, mas eu sabia que não tinha. Fui lá, o buraquinho de água tava
mesmo ali, e enchi as vazilhinha d’agua.
Clareou o dia, eu fui lá. O gramado limpo, pareio, rapaz. Aquela água só apareceu
naquela hora.
Esse milagre eu vi com meus olhos, como é que pode!
Leve como uma pena
E o tar de João Arti morava no outro lado do Iguaçu, no Paula Pareira. Ele (João
Maria) era compadre do pai desse João Arti. Tava proseando diz que dava uns 500 metro
do rio, bem de tardezinho.
Ele disse: venho outro dia, que eu quero posá lá pro lado de Santa Catarina, hoje.
E naquele tempo o porto era varado com canoa. As veis a canoa tava no porto ali e
as veis tava pra baixo num outro lugar.
O véio gritô pros fio: vocês vão passar o compadre lá, porque é capaz que a canoa tá
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pra baixo, naquele passadô de vocês, daí ele chega lá como é que ele vai passar.
E eles saíram correndo, diz que viram até quando ele desceu chegando no rio.
Chegando ali, diz que viram o bonezinho dele lá pro outro lado, malemalzinho indo, olharam
e a canoa amarrada pra baixo.
Chegaram e contaram: pois o seu João Maria varou sem condução o rio.
Passado um tempo ele varou lá, e perguntaram: mas como o senhor passou lá,
aquele dia? Ele disse: não, eu sou levianinho, eu sou como uma pena, então quando eu
quero passar, dá um ventinho e me leva; me deu um ventinho e me passou pro outro lado
lá.
Você carcule! Tem gente que debocha. Veja se um home desse não era poderoso,
né.
Ele disse: eu santo não sou, mas a pessoa que tiver fé ne mim, eu hei de valer.
A gente conta os conto dos antigo, né.
Aqui ele passou o Caçador Grande, carçado de chinela e não molhou a chinela. Ele
usava umas paragatinhas.
Vestígios do santo
Eu sei três pousinho dele, lá no são Sebastião, no tal Serelepe e lá na Campina dos
Borges. Lá me contaram que tem um perau, que tem um varandão naquele perau, coisa
mais linda do mundo, e faz aquela canhada pra lá e daí tem aquele perau forte.
Hoje diz que tá muito zelado lá. Aquela água no canto daquela pedra, uma água que
parece que ta tremendo aquela água.
Contaram que aparecia o lugar do foguinho dele e aonde ele escorreu a sopinha do
feijão, que ele tinha um cardeirãozinho e aparecia o sinal ali nas pedras, tava a tinta ali
ainda, aquelas pedras queimadinhas ali.
Quantos anos né!
Aquele perau lá, eu vou lhe dizer, é como uma casa de morar. E como é que ele
sabia que tinha aquela casa ali? Ele deixou também aquela água pra remédio.
Hoje uma firma comprou lá. Hoje fizeram barbaridade, escada de cimento pra descer
lá, até uma Igreja, muito bem preparado. Tem muito milagre lá, aquela água lá.
Traziam aquele carvaozinho pra remédio. O povo garrou aquela fé.
O coval
Eu proseei com um homem la de Guarapuava, que veio e comprou essa será aí, veio
trabalhar aí. E tinha um chinês, e tal, e passemo a preseá com ele.
Ele me disse: seu Arnoldo do céu, eu até queria que o senhor fosse lá pra não dizer
que é mentira e se informá.
Disse: hoje está muito zelado, mas ficou abandonado muito tempo.
Levaro, que ele (João Maria) gostava muito de couve, daí diz que levaram uma
porção de couve lá no pouzinho dele, ele tirou aquelas foinha preparou e plantou aqueles
broto de couve.
Seu Arnoldo do céu, eu queria que o senhor fosse lá pra vê, pra não dizer que é
mentira minha, o senhor acredita que lá tem couve até hoje, ta lá o coval.
No campo brotava e a criação comia tudo e agora a criação não vem mais. Está lá o
coval até hoje, o senhor imagina!? Hoje tá formado e cercado aquele coval. O senhor
carcule se não era o poder dele, né.
Sobre a guerra e outras profecias
O seu João Maria falou da guerra dos jagunço. Chamavam ele lá mas ele tava longe
de lá. Pediam por ele, mas ele avisou antes: vai dar uma ilusão falsa e vão gritar por mim,
mas o João Maria vai tá longe de lá, e feliz daquele que não for lá.
Um veio me falou: e não sei porque a gente ia lá, se o seu João Maria tinha avisado
isso.
Ele dizia: mais tarde vocês vão carpir roça e na cabeça de um toco vocês escutam
uma missa.
Mas como é que pode, não veio o rádio!?
Dizia: vai vir um aparelhinho que vocês acordam a hora que quer.
E não veio o despertador!?
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Ele dizia vem os castigo pra riba de castigo, daí vai e vai, de repente entra um
presidente. Ai ele vai abrir exportação do Brasil pra todos os paises do mundo. E vai pra lá e
vem de lá, e é exportação pra todo lado.
Mas o Brasil foi criado pela lei do império e tem que terminar com a lei do império. A
república é uma coisa boa mas é lei do coisa ruim. É a lei do dinheiro, uma lei que o dinheiro
paga. Quem tem dinheiro hoje não deve crime, não deve nada. Vai, vai, daí de repente esse
presidente põe uma ordem - não é que aconteceu? - do desarmamento. O povo tudo, tem
que entregar as armas. Vai ter um prazo. Dentro desse prazo não pode ficar arma na mão
do civil. Daí chega esse prazo, e não vai ficar arma, não fica. Vocês conte 90 dia que vocês
tão com o comunismo no Brasil. Tem que entrar o comunismo pra daí entrar o império. Nem
que seja 90 dia, o comunismo tem que governar. 90 dia! Daí derrubam o comunismo pra vim
o império. Porque a lei do império é uma lei de Deus, santa. A pessoa deveu pagou, não
pode dever, porque se dever para mesmo. É a monarquia.
Pois é, o senhor note como é que esse homem sabia, e não deu agora? O lula
entrou e abriu exportação pra toda parte e não deu porque o presidente tem que tirar a arma
da mão do civil pra não ter perigo, que se ele não desarmar o civil ta feita a guerra. Tirou as
arma, daí o sujeito desarmado como é que vai. Mas vamos vê agora dia 23 é o último
prazo, mas eu na minha conta, que passa o 23 vai saí uma rapa de arma geral, pelo dizer
de seu João Maria, porque deu certo. Tinha que entra o comunismo. É a lei do Fidel Castro,
governa ao menos 90 dias, daí vem a lei do império.
Ele (João Maria) não disse que era contra o comunismo, ele disse que a lei depende,
né. Depende do cuidado.
Me disse um sujeito ali de Canoinhas: Eu sou comunista até debaixo da água. Eu fui
lá em Cuba, vi o comunismo lá, é uma santidade daquele povo que vou te dizer. Aquele
povo tudo trabalha, você não vê um grito, você não vê um bar, você não vê um roubo,
nada... Tudo aquelas casa tem o alimento que precisa, tem roupa, tem calçado, se tem a
criança doente, tem o médico. Bem cedo as mulher põe as criança nas creche e as 8 horas
trais as criança pra casa. Um povo que é uma maravilha do mundo. Médico especialista...
Eu gosto de proseá com as pessoas que dão atenção, que essa gente nova hoje,
dizem esse véio é um bobo véio... e a gente não mente conta história que aprendeu né e
histórias bem ajeitadas, que não é história né é acontecimento.
João Maria disse que a pessoa de 60 anos em diante, não todos, mas já tem poder
de fazer milagre. E na verdade tem mesmo. Eu não quero falá mas eu tenho benzido e curei
muita gente. A gente tem poder né, que Deus dá pra gente. Até vou rezar uma oração de
benzimento, pro senhor vê. Essa também foi o seu João Maria que ensinou, mas ele não
deu cópia. Ele ensinou uma velha chamada Tuca. E a velha me queria muito bem, ela era
pobrezinha, eu era piazinho, eu ia la ajudar ela, puxava água pra ela, uma leinha pra ela, eu
agradava essa gente véia. dava atenção, ela me dava uma cuia de chimarrão, então ela me
ensinou essa oração. Então a gente conta essas coisas pra essas pessoas que acreditam.
Porque o que eu sei eu provo, né.
Oração de benzimento
O que que te puseram, que as três pessoas da divina Santíssima Trindade te tire o ar
quente, ar de quebrando, de olhado, lombriga assustada, lombriga desejosa;
Se te puseram este mal pela cabeça que São João te tire,
Se te puseram este mal pelos olhos Santa Luzia que te tire,
Se te puseram este mal pelo peito Santa Margarida que te tire,
Se te puseram este mal pelos pés, pelas pernas, Santo Amaro que te tire,
E Deus e o sol e a lua que tudo isso não é nada pelo sumo da verdade sendo
suspensão de ventuosidade, que os poder do belo claro e Deus nosso Senhor Jesus Cristo
e de nossa senhora Maria Santisssíma do Januário, nos livrai dos inimigos vivos e dos
inimigos invisíveis e de Cristo vencerei contrário, tabe larábio, sem eu li minha anunciação
de Maria e fé barbetume invitáve ave Maria.
Saia todos os mal que estiver neste corpo, saia o ar quente, ar frio, ar do sol, ar da
luz, ar do vento, fraqueza, ar cúrtico, ártico, ar no sangue, ar de gangrena, febre maligna,
espantai todas as doenças que estiver neste corpo. Peço pras sete óstias consagradas que
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consagre essa pessoa e cure, peço pra sete cálice bento que derrame essa benção benta
nesse doente e cure, peço pra sete anjo bendito que acompanhe esse doente e tire esses
mal, peço pra sete livro missal que abençoe essa oração e seja remédio pra esse doente,
peço pra sete missa cantada que foi dita hoje nesse dia pela Santíssima Trindade seja
remédio e que cure esse doente pelo amor de Deus. Amém. Em nome do Pai e do Filho e
do Espírito Santo. Amém.
Essa oração é feita pra qualquer tipo de doença. Pessoa que não pode morrer, rezou
essa oração, descansa já. A gente sabe outras orações de benzimento também, de
confissão pra si mesmo e outras.
Os irmãos de João Maria
Tem mais um irmão do seu João Maria que também andou no mundo, o senhor já
ouviu falar? É o Frei Manoel. Tem umas história bonita de uns milagres que ele fez. Ele
apareceu na foz do Iguaçu, num cemitério, daí foram descobrir ele era irmão do seu João
Maria.
Eles são em três irmão. João Maria, o Frei Manoel e o José Maria.
O José Maria ainda não saiu ainda da casa do Pai. Não veio.
João Maria disse: poderá que Deus não revogue; é pra dá a guerra de São
Sebastião. O São Sebastião já guerreou com o Anticristo e perdeu a guerra. Agora ele vai
guerreá de novo e vai ganhá.
Então, antes da guerra o meu irmão José Maria vem, vem encaminhar o povo, todos
voceis. Neste tempo muita pouca casa recebem ele, ele é um mendiguinho. Mas é fácil de
vocês reconhecer, se vier um viagerinho com um bonezinho, uma boininha de coro de
tamanduá é o meu irmão, o José Maria. Ele chega em tudo o que é casa. Aí ele chega pra
ensiná as pessoas como é que vai se defendê do Anticristo.
O Anticristo sai a cavalo, e me faz lembrá um político, dando dinheiro pro povo.
Mas só que ele fura o dedo mingo da mão esquerda da pessoa e tem uma peninha e
moia no sangue e a pessoa tem que assiná num livro pra ele com o sangue do dedo mingo.
Então esse é o Anticristo. E daí ele dá esses montão de dinheiro pras pessoas, e na casa
que não pega ele vai ali nos gramado e deixa aquele montão de dinheiro.
Você carcule na precisão que o povo tá hoje, se um homem desse vier, um político
desse, quem que escapa!? Daí ele disse: mas tem que assinar o nome com o sangue do
dedo do mingo da mão esquerda.
Então o José vem pra ensinar o povo a se defender.
Essa guerra é uma espécie de um castigo. Vem o Anticristo, dá as voltiada dele, daí
marcam o dia do combate.
Daí no dia do combate o São Sebastião dá três brado. O que tiver força e correr pro
lado dele, ele acode; mas ao que não tiver poder de ir, daí Deus abre as cataratas do céu, e
aí vem raio corisco, aquele fogo que queima tudo. Escapa só os que tão com São
Sebastião. Aqueles que pegaram o dinheiro do home, se foi-se embora tudo.
As vezes eu pego a pensá nesses políticos que vem dando dinheiro pro povo... e a
gente mesmo as vezes fala: há eu não vou votar pra aquele político porque ele não dá nada
pra gente! É como eu digo né. Mas é muita pouquinha gente que sabe.
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9. Tereza Iankoski
Contava o Sr. Joaquim Semões que ele era um menino quando ali mesmo moravam
em uma casa de pau-a-pique, quando viu um senhor já com uma certa idade passar pelo
atalho e se acomodou no meio do mato, então ele foi contar para seus pais que viu um
homem com um rosário no pescoço e um livro na mão e com uma trouxa de pano nas
costas. Ele se chamava João Maria e armou uma cabana com pau e capim, e o tempo
estava se arrumando para chover e a mãe de Joaquim com pena daquele velhinho foi até a
608 Tereza é coordenadora de Grupo de Reflexão e Agente de Pastoral da Igreja Católica da comunidade de
Passo Ruim, capela do Divino Espírito Santo, de Papanduva. Depoimento oferecido em 2003.
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cabana e o convidou para passar a noite em casa, junto com eles, pois podia chover muito e
ele ia se molhar e assim não passaria a noite sozinho, pois ali era um lugar muito perigoso.
E ele, um homem simples mas de grande fé, disse: não se preocupem comigo eu
preciso ficar sozinho para fazer as minhas orações e nada aqui vai me acontecer. Joaquim e
sua mãe voltaram tristes para o rancho.
No lado de fora da cabana, perto da porta, ele fez uma fogueira para clarear a noite.
Da casa do Joaquim dava para ver o clarão. A mãe de Joaquim passou a noite na janela, do
céu caía uma chuva forte e se ouvia cantos de louvor a Deus como se fossem anjos que
cantavam na noite e era João Maria que, com sua voz suave, enfeitava a noite, e o clarão
da fogueira brilhava sobre os pingos da chuva. Altas horas da noite tudo ficou quieto e
silenciou. E mesmo com toda aquela chuva a fogueira não se apagou. Amanheceu acesa.
João Maria ficou três dias neste local, fazendo uma cruz de cedro, rezando e
louvando a Deus. No segundo dia, ao amanhecer, o sol apareceu brilhando triste e
avermelhado, e o dia de luta começava para as famílias que aqui moravam, em busca de
comida para sobreviver fazendo plantações.
Neste dia mais ou menos as três horas da tarde, começou a escurecer, ameaçando
chuva; uma nuvem muito escura cobria o céu como se fosse anoitecer, o gado solto no mato
começou mugir, as galinhas se aconchegando nas árvores junto com os pássaros, os galos
cantavam tristes e só se ouviam os fortes trovões e relâmpagos; parecia que vinha uma
grande tempestade que ia acabar com tudo, aqueles viventes jamais viram um tempo assim.
Então Joaquim e sua mãe foram até a cabana daquele senhor convidá-lo para que
fosse com eles para o rancho. Lá estava João Maria cantando fazendo a cruz sem a menor
preocupação com o tempo. Estava lá com um livro na mão, um rosário no pescoço, uma
trouxa de roupa, cabelos e barba brancas, vestes simples e pobres e de sandálias; quando
viu Joaquim e sua mãe contemplou o tempo e a mãe de Joaquim o convidou para ir com
eles para o rancho pois poderia dar vento forte e muita chuva e o seu coberto poderia ser
derrubado.
Ela disse: vamos para o nosso rancho e ficaremos juntos, assim podemos rezar o
terço que sempre rezamos e o senhor pode ficar melhor com nós.
João Maria olhou para eles e foi acender o fogo que estava na direção da porta
como da outra vez. E olhou para a nuvem e olhou para eles e disse: não se preocupem não
vai chover. A senhora não precisa ter medo, pois o que for acontecer na minha cabana
acontecerá também no rancho de vocês.
E olhou mais uma vez para a nuvem e para eles e disse: não vai acontecer nada, só
vai cair uns pingo de chuva.
E João continuou fazendo a cruz e rezando.
Eles voltaram para o rancho e em poucos minutos a escuridão passou e se fez um
grande clarão no céu como num dia normal de sol, e só caiu uns pingos de chuva.
A partir daquele dia a fé das famílias aumentou mais ainda, João Maria passou a ser
um santo em espírito para eles. Todas as orações voltavam-se para João Maria e o Divino
Espírito Santo e eles não tinham dúvida que aquele homem era um enviado de Deus, e a
passagem dele por este local foi um presente para a comunidade.
No terceiro dia João Maria terminou de fazer a cruz e quando anoiteceu se ouvia
seus cantos em louvor a Deus Pai. E ao amanhecer plantou a cruz e foi embora sem
ninguém ver.
Quando foram olhar por ele só encontraram a cruz plantada, então os joelhos se
dobraram diante dela e muitas orações ali passavam a ser feitas, e milagres aconteciam,
tudo o que era pedido ali era recebido.
A cruz brotou e virou árvore e certo dia um homem contrariou as famílias porque na
demarcação das terras a árvore caiu nas terras dele e ele derrubou a árvore, mas no
mesmo tronco plantou mais uma cruz de cedro e assim sempre era feito e sempre brotava e
virava árvore. A conclusão que tiramos é que a cruz brotava para que o povo não deixasse
de ter fé.