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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 25: 39-45 NOV.

2005

A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE PARA O


DEBATE SOBRE SUJEITO E DEMOCRACIA
LATINO-AMERICANOS1

Carlos A. Gadea Ilse Scherer-Warren

RESUMO

O presente trabalho analisa diversas contribuições teóricas e analíticas do sociólogo francês Alain Touraine
em relação às realidades políticas, sociais e culturais da América Latina. Partindo da idéia de que as
principais preocupações desse autor fazem referência à dinâmica da modernidade latino-americana, pro-
cura-se compreender como esse tópico complementa-se com observações sobre a democracia e o sujeito
social. O que interessa destacar é como, para Touraine, a modernidade latino-americana caracteriza-se a
partir de uma inevitável tensão: a que se estabelece entre "universo instrumental" e "universo simbólico",
correlato de uma imagem dual que continuamente se faz presente, a racionalização e a subjetivação. A
partir disso, Touraine dedica-se a analisar a potencialidade política e social subjacente às idéias de
"sujeito" e "ator social". Por fim, interessa aqui destacar as contribuições que se pode perceber nas concre-
tas análises de movimentos sociais que hoje participam da heterogênea cena latino-americana, a saber, o
movimento neozapatista de Chiapas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra e, em um sentido
mais genérico, os movimentos urbanos, ecológicos, negros, jovens, de mulheres e de educação intercultural.
PALAVRAS-CHAVE: Alain Touraine; modernidade latino-americana; sujeito social; movimentos sociais;
democracia.

O sociólogo francês Alain Touraine deve ser esclarecer os diversos aportes de Alain Touraine
dos poucos pensadores contemporâneos europeus para a Sociologia em geral e o debate político con-
que pensaram a democracia, a modernidade e os temporâneo em particular, parece-nos oportuno
sujeitos sociais no contexto da América Latina. considerar a originalidade interpretativa do autor
Acostumados a observar como europeus e norte- para a análise da realidade latino-americana e, con-
americanos não parecem muito preocupados em seqüentemente, para a compreensão da dinâmica
“pensar” esta região do planeta, pelo menos na dos sujeitos pessoais e coletivos no nosso pre-
área da pesquisa sobre movimentos sociais, o tra- sente. Discutir a sua teoria poderia conduzir-nos
balho de Touraine apresenta-se altamente relevante a comparar a diversa gama de contribuições do
e bastante instigante. A sua extensa obra demons- autor com outros clássicos da Sociologia Políti-
trou inquietações não meramente teóricas ou de ca, combinar as suas reflexões com contemporâ-
caráter analítico, mas também uma evidente pre- neos como Habermas ou Giddens ou talvez o con-
ocupação com as diferentes dinâmicas históricas trastar com as teorias criticas e com os seus even-
e culturais das complexas sociedades latino-ame- tuais pontos de contato e discordâncias. Porém,
ricanas nos seus diversos contextos históricos e o presente trabalho insere-se em uma discussão
geográficos. Pode-se considerar, sem dúvida, que em que não se procura situar Touraine frente a
houve e há muito a aprender-se sobre a América pensadores e teóricos sociais contemporâneos
Latina, a partir do olhar e das reflexões analíticas particularizados, mas sim “re-situá-lo” em rela-
desse sociólogo. Por isso, em uma tentativa de ção às contribuições teóricas e analíticas acerca
da modernidade, da democracia, da política em
geral e das mudanças culturais no heterogêneo
1 Apresentado no XI Congresso Brasileiro de Sociologia,
contexto latino-americano.
realizado em setembro de 2003 na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Uma versão preliminar deste ar- Primeiramente, deve-se considerar que a di-
tigo foi publicado em Gadea e Scherer-Warren (2005). versidade de formas de como observar e analisar

Recebido em 15 de setembro de 2005


Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 25, p. 39-45, nov. 2005
Aprovado em 30 de setembro de 2005 39
A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE

a modernidade latino-americana, sem dúvida pa- Assim, Touraine assinala-nos uma modernidade
rece corresponder-se com a própria diversidade latino-americana que, a partir dos seus particula-
ou heterogeneidade sócio-cultural que a caracte- res e diversos ritmos sócio-culturais, parece ca-
riza. Se isso parece óbvio, devemos reconhecer racterizar-se por uma autêntica demanda de
os difíceis impasses modernizadores que atraves- subjetivação, de afirmação e reconhecimento de
saram as culturas latino-americanas, a difícil cons- aspectos culturais e de identidade pessoal e soci-
tituição de suas instituições políticas, jurídicas e al. Em definitivo, o autor contribui para constatar
econômicas, as “carências” muitas vezes marcadas uma grande característica dessa modernidade: sua
como simples dados de uma futura modernidade contínua tensão entre um universo instrumental
que ainda está por chegar. Na complexa tarefa (sob os contornos racionalizadores da sociedade)
para apreender aqueles traços que possam ser e um universo simbólico (caracterizado pelas ex-
definitivos desse processo histórico, têm-se esta- periências de produção e afirmação dos sujeitos
belecido discussões que transitaram desde outor- sociais). Os movimentos sociais estariam, dessa
gar certa centralidade à perceptível “dependência forma, dirigidos a aliviar essa tensão, assim como
econômica” e a uma defeituosa “modernização dirigidos para si mesmos e para o que se poderia
política” até chegar-se a uma preocupação acerca denominar esforço de subjetivação: definido como
das dinâmicas de “integração social” sob a pre- um sujeito com vontade de ser reconhecido como
missa da ampliação necessária dos processos de ator. Como forma de sintetizar o que Touraine
democratização política e social. O curioso tem parece propor, pode-se afirmar que ele situa-nos
sido que essas discussões negligenciaram, de uma frente a uma modernidade que não possui uma
forma ou outra, o caráter particular e específico imagem única, senão duas: a racionalização e a
de uma modernidade em tensão contínua, que se subjetivação, dedicando-se a analisar a
evidencia em um projeto elitista de racionalização potencialidade política e social subjacente na idéia
(entenda-se aqui também disciplinamento, de sujeito e ator social.
homogeneização e uniformidade) com uma dimen-
Pode-se perceber que as principais contribui-
são sócio-cultural que manifesta o “dilaceramento”
ções analíticas do sociólogo Alain Touraine sobre
e a fragmentação próprios de intensos processos
a contemporaneidade na América Latina referem-
de subjetivação. Com isso, estabelece-se uma
se, fundamentalmente, a três tópicos: a
ambigüidade que caracteriza, de maneira profun-
modernidade, a democracia e o sujeito social. Es-
da, a modernidade latino-americana.
ses componentes têm sido tratados a partir de di-
Se aderirmos, primeiramente, aos postulados ferentes pontos de vista e temas concretos, du-
de Foucault, a racionalização leva-nos ao fortale- rante toda a sua obra claramente dividida em três
cimento da lógica de integração social, do contro- etapas: uma primeira, baseada, fundamentalmen-
le e, assim, de uma multiplicidade de lógicas de te, nos estudos empíricos realizados na América
poder asfixiantes para o indivíduo. Não obstante, Latina, que se concentra na análise do trabalho e
isso não representa o desaparecimento dos atores na consciência política dos trabalhadores, etapa
sociais, pois eles “están impacientes por afirmarse marcada por uma especificidade dos ritmos urba-
y lograr el reconocimiento de su libertad de nos da vida social. Uma segunda etapa caracteri-
sujetos”, segundo afirma Alain Touraine (1997, p. za-se por um estudo concreto dos movimentos
307). A partir de diversas experiências políticas e sociais dos anos 1960 e 1970, particularmente das
culturais da América Latina, Touraine confirma- rebeliões na França de 1968 e dos golpes de Esta-
nos que a suposta experiência: “de la pérdida de do latino-americanos. Por último, uma terceira
identidad a la que nos resistimos dando tanta etapa que em suas inquietações viaja desde a So-
importancia a la autoestima, el auto desarrollo [...], ciologia até a Filosofia a partir do estudo da pro-
nos impulsa en primer lugar a tratar, no de supe- dução e do papel do sujeito dentro dos movimen-
rar las contradicciones sociales, sino de aliviar el tos sociais.
sufrimiento del individuo desgarrado, dado que
Para compreender a dimensão dos estudos de
éste no puede ya apelar a un dios creador, una
Touraine no contexto latino-americano, lembran-
naturaleza autoorganizada o una sociedad racio-
do especialmente seus trabalhos Crítica da
nal” (idem, p. 64).
modernidade (1994) e Poderemos viver juntos?

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Iguais e diferentes (1997), tem-se que se fazer A partir de tais postulados é possível, por exem-
referência àqueles debates que se situam em tor- plo, observar o surgimento, as identidades e as
no da questão do sujeito e da democracia. Assim, estratégias do movimento neozapatista do Méxi-
a dimensão que se relaciona com a particular co, mais conhecido como Exército Zapatista de
modernidade latino-americana funciona como telão Libertação Nacional (EZLN), surgido publicamen-
de fundo para esses debates centralizadores nas te nas montanhas do estado de Chiapas e da Selva
análises do dito autor. Isso significa que um diálo- Lacandona, no dia 1° de janeiro de 1994. O
go parece estabelecer-se entre democracia e su- neozapatismo parece confirmar, por um lado, a
jeito social, já que a ampliação de um é também a posição de Touraine acerca da perversa relação
ampliação do outro. A idéia de democracia, para que pode existir entre exercício da democracia e
Touraine, não se materializa unicamente no con- lógicas institucionais de participação e decisão
junto de garantias institucionais e formais, mas política. Touraine afirma que quanto mais um par-
sim representa a luta dos sujeitos, na sua cultura e tido político considera-se portador de um modelo
sua liberdade, contra a lógica dominadora dos sis- de sociedade (observe-se a história dos diferentes
temas sociais. Nessa concepção, resulta impor- modelos político-institucionais latino-americanos),
tante que os sujeitos protejam sua memória e que mais se enfraquece a democracia e mais subordi-
possam combinar o pensamento racional, a liber- nados estão os cidadãos aos poderes dos dirigen-
dade pessoal e a identidade cultural. Dessa manei- tes políticos. No caso do México, que se deparou
ra, a democracia deve tratar de seguir dois cami- com o movimento neozapatista, o Partido Revo-
nhos: por um lado, criar espaços para a participa- lucionário Institucional (PRI) tinha-se assentado
ção cada vez mais perceptíveis e, por outro lado, no imaginário e na prática social dos mexicanos
garantir o respeito às diferenças individuais e ao ao longo dos seus 70 anos no poder de um Estado
pluralismo. que concentrava, institucionalmente (assim como
em relações típicas de clientelismo político), to-
Essas idéias parecem ser conseqüência de um
dos os canais de demandas e reivindicações
diagnóstico particular sobre as condições atuais
surgidas da sociedade. Que aconteceu? A apari-
da América Latina, que se diferencia notoriamen-
ção de um sujeito social que, profundamente visí-
te daquelas condições “objetivas” para a
vel para o México contemporâneo, persistente ao
mobilização política e social típicas dos anos 1960
longo do tempo, fez de suas demandas por demo-
e 1970. Não aconteceu, segundo o próprio
cratização e afirmação da sua identidade indígena
Touraine manifesta, uma ruptura revolucionária
a principal ferramenta de transformação política e
sob aquelas condições, visto que hoje se conhe-
cultural. O neozapatismo conseguiu transcender
cem atores sociais limitados mais do que forças
a lógica institucional e política do México moder-
revolucionárias globais. Esta necessária mudança
no, inaugurando uma nova etapa política que se
da análise sugere que a formação de movimentos
vê acompanhada pela derrota nas últimas eleições
sociais depende menos de situações e condições
do PRI e a subida no governo federal de um par-
“objetivas” do que de elementos formadores de
tido relativamente novo, o Partido Ação Nacional
atores definidos ao mesmo tempo por um deter-
(PAN).
minado conflito social e por uma vontade de par-
ticipação social, assim como conseqüência das Mas uma faceta dos indígenas neozapatistas
relações entre demandas e exigências sociais e o permanece sem o devido reconhecimento. Trata-
sistema político. Assim, para Touraine, o sujeito se daquele aspecto que se refere à defesa de uma
social a analisar na América Latina é o movimento identidade cultural lesionada historicamente: a iden-
social, já que o conceito de classe social apresen- tidade indígena. O caráter étnico do movimento é
ta-se com escassa verificação empírica e de pou- indubitável e, assim, um novo terreno inaugura-
ca utilidade para compreender as lutas atuais no se nos conflitos e nas lutas estabelecidas. Esse
espaço político e social. Segundo parece, o que terreno é o cultural, o simbólico, o que se estabe-
se sugere é um marco de análise que navegue a lece como conseqüência de uma pluralidade cul-
partir da combinação entre movimento social e as tural ocultada e negada (vide GADEA, 1999).
questões próprias da diversidade cultural, entre Dessa maneira, as referências à diversidade cul-
mobilização e identidade pessoal e social. tural e aos processos de subjetivação, que menci-

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A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE

ona Touraine, adquirem singular centralidade. Para operária nos trabalhadores de carvão e de meta-
Touraine, o movimento neozapatista estaria defi- lurgia no Chile e no operariado de São Paulo. No
nido como uma formação político-social própria livro A sociedade pós-industrial, iniciou a transi-
de momentos posteriores à União Soviética, sem ção para conceber os movimentos sociais para
a influência do “castrismo revolucionário” e pró- além das lutas de classe.
prio do esgotamento das guerrilhas de esquerda.
Assim, no segundo período, Touraine desen-
O movimento neozapatista tem expressado com
volveu sua obra-mestre sobre os movimentos so-
transcendência mundial a união sui generis da de-
ciais (A produção da sociedade), dialogando ten-
fesa de uma identidade particular com um pro-
samente com a teoria sociológica em um sentido
grama de democratização nacional, quer dizer, a
mais amplo, especialmente com as teorias da ação
aliança de uma luta cultural com um processo
e das instituições políticas, tendo como pano de
democratizador, em que, ao combinar o fato de
fundo o debate sobre a democracia. Face à tradi-
“viver juntos” com “nossas diferenças”, renova a
ção sociológica, estabeleceu um espaço privilegi-
figura moderna da democracia, ao reconhecer o
ado de análise – o da historicidade – cuja dinâmi-
pluralismo e manter regras universais de Direito.
ca associa-se à ação dos movimentos sociais, que
Chegamos assim a reconhecer um traço inte- necessitam de contextos de relativa abertura de-
ressante nas contribuições de análises de Touraine mocrática para desenvolverem-se. Em relação à
para as realidades latino-americanas: a idéia de que América Latina, refletiu sobre as relações entre as
a racionalização, acompanhada e iluminada pelas raízes institucionais autoritárias (caudilhismo,
aspirações universalistas e seu correlato de su- clientelismo, populismo, paternalismo) e os po-
posta convivência social, deve combinar-se com tenciais de lutas dos atores dominados (dos
a idéia da defesa do sujeito, entendida como um comunitarismos aos movimentos históricos), o que
“desejo” que atravessa o político, o moral e o éti- sintetiza em uma obra maior, denominada Pala-
co em indivíduos e culturas. Com isso, a tensão vra e sangue (1989).
parece irresolúvel, constitutiva da modernidade
Será, portanto, no terceiro período, amplian-
latino-americana, segundo a qual as categorias que
do o leque de suas reflexões, incorporando deba-
se manifestam nos movimentos sociais definem-
tes contemporâneos da Filosofia Política e da Psi-
se cada vez menos por uma atividade ou pelo lu-
canálise, que construiu uma teoria mais abrangente
gar que os sujeitos ocupam na estrutura de pro-
sobre a liberdade do sujeito e o sujeito da ação,
dução e cada vez mais por uma origem ou perten-
pessoal e coletiva. Mas, como bem diz Touraine,
ça cultural. Segundo Touraine, a categoria “sujei-
o sujeito não é o indivíduo (no sentido liberal do
to” aparece, então, cada vez mais central e
termo), pois “ser sujeito” significa ter a vontade
determinante para a análise dos movimentos soci-
de ser ator, isto é, atuar e modificar seu meio so-
ais atuais.
cial mais do que ser determinado por ele. Portan-
Será, pois, a respeito da sociedade contempo- to, a liberdade do sujeito será construída em sua
rânea que o sujeito assume prioridade na análise relação com o outro, na alteridade, mas não na
sociológica de Touraine. O próprio autor define a subjugação, não na integração sistêmica acrítica,
existência de três fases sucessivas em sua traje- mas na busca do reconhecimento, na sua univer-
tória intelectual, às quais atribui centralidade a um salidade e na sua particularidade. Por isso, os te-
tipo de sujeito-ator privilegiado da ação em cada mas do multiculturalismo, do dilema entre igual-
momento histórico: 1. da industrialização e do dade e diferença e da educação intercultural tam-
movimento operário tendo a classe como ator bém assumem relevância em seus debates, tendo
central; 2. os movimentos sociais propriamente como lastro social a condição democrática, sob a
ditos (enquanto atores coletivos) no coração da premissa de que o sujeito possa tornar-se ator em
vida societária e na historicidade; 3. a compreen- seu destino pessoal e coletivo. Conforme afirma:
são do sujeito e sua transformação em ator social. “Uma sociedade democrática é uma sociedade que
reconhece o outro, não na sua diferença, mas
Suas análises sobre a América Latina, e seus
como sujeito, quer dizer, de modo a unir o univer-
focos de interesses, acompanharam a vitalidade
sal e o particular [...], uma vez que o sujeito é ao
dessa trajetória intelectual. Dessa forma, na pri-
mesmo tempo universalista e comunitário e ser
meira fase, bastante influenciado pelo debate mar-
sujeito é estabelecer um elo entre esses dois uni-
xista, pesquisou a formação de uma consciência

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versos, ensaiar viver o corpo e o espírito, emoção projeto da Teologia da Libertação, combina a
e razão” (TOURAINE, 1994b, p. 1-2). racionalidade da luta pela terra com a simbologia
da memória de lutas camponesas históricas, de
É nessa direção que Touraine destaca a
reconhecimento das diversidades regionais e cul-
centralidade do feminismo2 e das minorias étni-
turais, com o ideário da solidariedade e com a
cas enquanto sujeitos de transformação da
mística em suas expressões artísticas (cf. PIANA,
historicidade contemporânea. Os movimentos de
2001; SCHERER-WARREN, 2002).
reconhecimento das minorias indígenas do Méxi-
co, da Guatemala, do Equador, da Bolívia e de Em relação aos contextos urbanos, os movi-
outros países latino-americanos, são considera- mentos societários combinam a luta contra a ex-
dos pelo autor como momentos democratizantes, clusão e a privação de identidade com aspirações
os quais, ao reivindicar uma especificidade cultu- democráticas, transformando-se em movimento
ral indígena, estão ampliando os sistemas demo- social quando articulam história de vida pessoal e
cráticos. A democracia não será, assim, só um coletiva como, por exemplo, no Movimento dos
conjunto de instituições, mas, antes de tudo, uma Sem-Teto. Entretanto, com apoio em Touraine,
luta das minorias contra o poder e a ordem podemos compreender a intrincada ambigüidade
estabelecida: é a luta contra sua redução à condi- dessas ações coletivas em relação à questão de-
ção de mero trabalhador, de integração acrítica ao mocrática, especialmente aquelas relacionadas aos
sistema. temas da pobreza ou das carências nas cidades:
“Não é o papel dos pobres como trabalhadores,
Portanto, a democracia tem que ser pensada
como cidadãos ou como membros de uma co-
para além de sua institucionalidade: tem que ser
munidade que dá a este tema a importância que
pensada como uma das dimensões da constitui-
tem; não é o que fazem, mas o que sofrem; não é
ção do sujeito em ator social – sempre se levando
o que possuem, mas aquilo de que são privados
em conta o cenário histórico, isto é, examinando
[...]. Sua miséria, a exclusão e a repressão que
se vivemos a emergência de um novo tipo de so-
eles sofrem é que dão ao seu protesto um valor
ciedade, com a definição de novos problemas,
fundamental. Porque é quando os problemas da
novos conflitos, e, portanto, novos atores. Para a
vida privada e os da vida pública se unem da for-
América Latina, a partir de uma perspectiva
ma mais intensa para dar origem a um protesto
touraineana, podem-se destacar elementos para a
cujo objetivo é a defesa da vida” (TOURAINE,
análise dos movimentos dos sem-terra, dos mo-
1989, p. 276).
vimentos urbanos, do movimento negro, dos jo-
vens, do ecologismo, do feminismo e dos movi- É por isso que em movimentos como o dos
mentos por uma educação intercultural, além dos sem-teto, a presença das mães e das crianças evi-
movimentos indígenas, que são emblemáticos para dencia a busca de um reconhecimento na esfera
a América Latina e que já foram mencionados an- pública, durante as negociações e na afirmação
teriormente. Esses movimentos permitem-nos dos direitos fundamentais da pessoa humana. Seu
pensar a partir da premissa de Touraine de que o interlocutor será muito mais o Estado do que uma
sujeito está presente em todos os lugares em que categoria social, o que, partindo-se de Touraine,
se revela a vontade de ser, ao mesmo tempo, me- poderia vir a explicar o seu radicalismo conserva-
mória e projeto, cultura e atividade (cf. dor, que mistura os discursos mais extremos com
TOURAINE, 1997, p. 303), e poderiam ser acres- o clientelismo mais utilitário.
centados: racionalidade e subjetivação, ou univer-
O movimento ecológico também pode ser ana-
so instrumental e universo simbólico. Essas duas
lisado a partir da multidimensionalidade analítica
dimensões das ações coletivas podem ser apreen-
touraineana. Uma aplicação desse enfoque foi re-
didas nas diversas experiências dos movimentos
alizada por Castells (1997), com a elaboração de
sociais na América Latina.
uma tipologia dos movimentos ambientalistas (a
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem- partir da identidade dos sujeitos-atores, da defini-
terra (MST), no Brasil, na sua continuidade ao ção do adversário da luta e dos objetivos da ação
– projeto-utopia). O autor conclui que, especial-
mente na América Latina, grupos ecologistas es-
2 Sobre este ponto, vide maiores detalhes em entrevista tão articulando-se com grupos de direitos huma-
concedida a Miriam Adelman (2004). nos, de mulheres, organizações não-governamen-

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A CONTRIBUIÇÃO DE ALAIN TOURAINE

tais, formando uma coalizão que não ignora a po- vimento societário (cf. TOURAINE, 1997, cap.
lítica institucional mas vai além dela. Dessa for- III), isto é, associando um chamamento moral a
ma, conectam movimentos de base com mobili- um conflito diretamente social, que opõe um ator
zações simbólicas em nome de uma justiça a outro, a um adversário, que pode vir a ser defi-
ambiental, ou seja, Realpolitik e utopia, cepticismo nido a partir de um tipo de orientação “classista”
e esperança (idem, p. 133); em outras palavras, (cf. WELLER, 2002, p. 11-18).
razão instrumental e razão simbólica.
Por fim, em relação às experiências de educa-
No campo dos movimentos identitários, o fe- ção intercultural, poderíamos perguntar com
minismo, os movimentos étnicos e os movimen- Touraine: como combinar a liberdade do sujeito
tos jovens assumem relevância na esfera pública, pessoal com o reconhecimento das diferenças
na contemporaneidade latino-americana. Para o culturais e as garantias institucionais que prote-
movimento feminista, pode-se destacar sua capa- gem essas liberdades e essas diferenças? Para o
cidade de associar vida profissional (racionalidade) autor, a Escola do Sujeito (TOURAINE, 1997, cap.
e vida afetiva (subjetivação), com o desejo e a luta VIII) deve visar a compreender o outro em sua
para ampliar a sua participação na esfera pública, cultura, isto é, em seu esforço por ligar identidade
ampliando a democracia3. e instrumentalidade, ou seja, racionalidade e
subjetivação. Denise Cogo, em pesquisa sobre
Quanto à etnicidade, para Touraine não há de-
espaços educacionais interculturais, segue essa
mocracia sem o reconhecimento da diversidade
orientação: “Busco compreender [...] as dinâmi-
entre as culturas e da dominação que existe entre
cas identitárias que colocam em relação alunos e
elas. O sujeito deve combinar instrumentalidade e
professores a partir de suas múltiplas posições
identidade. Dessa forma, pode-se observar que,
identitárias de classe, de etnia, de gênero, de ida-
no Brasil, o movimento negro vem combinando
de, de origem, de imigração, de trabalho, do naci-
lutas pela ação afirmativa, na esfera das políticas
onal, do regional etc. Posições que concorrem para
sociais, com as lutas contra a discriminação raci-
a constituição de complexos cenários de
al e o reconhecimento de suas raízes históricas e
multiculturalidade nesses espaços, permitindo cul-
especificidades culturais.
minar com a reflexão sobre as possibilidades da
Os movimentos jovens emergentes, tais como comunicação intercultural nos espaços educativos
o hip hop, por meio de práticas político-culturais pesquisados em termos de uma Escola do Sujeito
artísticas, constituem-se em sujeitos-atores de como aquela concebida por Alain Touraine para
resistência no plano das desigualdades econômi- definir relações educativas que se movem pelo
cas e das discriminações culturais. Nas palavras desejo de corrigir as desigualdades de situações e
de Weller (2002, p. 1), “ao mesmo tempo em que oportunidades, a formação e a reafirmação do
os jovens negros em São Paulo (grupos de rap) Sujeito pessoal e a importância atribuída à diver-
estão fortemente constituídos em torno de práti- sidade histórica e cultural dos Sujeitos educativos”
cas culturais e de lazer, convertem-se por outro (COGO, 2000, p. 18; grifos no original).
lado em redes de articulação das experiências co-
Podemos concluir que a Sociologia de Touraine
tidianas, elaborando orientações coletivas de vida
– na constante busca explicativa das interfaces e
e formas de enfrentar as diferentes experiências
tensões entre modernização versus desmoderni-
de marginalização e discriminação”.
zação; universo instrumental versus universo sim-
Esses movimentos acabam, muitas vezes, as- bólico; racionalização versus subjetivação; domi-
sociando um movimento cultural a um novo mo- nação-subjugação dos indivíduos versus liberdade
do sujeito; enfim, totalitarismo versus democracia
– apresenta-se como um referencial relevante para
analisar-se os dilemas da modernidade e da de-
3 Sobre a difícil luta dos sujeitos feministas face à tradição mocratização em cenários latino-americanos con-
estatal autoritária brasileira, vide Alvarez (1990). temporâneos.

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Carlos A. Gadea (cgadea@unisinos.br) é Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de


Santa Catarina (UFSC) e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universida-
de do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Ilse Scherer Warren (ilse@manezinho.com.br) é Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris X
(Nanterre) e Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).

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História Oral, realizado na Universidade de São
do MST. Florianópolis. Dissertação (Mestrado
Paulo, de 28 de abril e 1º de maio. Digit.

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