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A vingança de Angelique
traduçÃo :
William Lagos
Geração Editorial
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2012
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
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se deveria acordar Júlia e pedir que lhe aplicasse outra injeção. Ela
conservava o frasco com o medicamento sobre o tampo de seu tou‑
cador e teria prazer em ser acordada por ele, feliz por poder ajudá‑lo.
Seu olhar correu pelo quarto, em busca de segurança. Raios de
luz se refletiam vacilantes sobre a madeira da coluna da cama, os
entalhes da cômoda, o brilho do espelho. Do outro lado da janela,
os galhos do carvalho retalhavam a lua com suas sombras espessas.
Sentou‑se com dificuldade, movendo os pés para fora da cama, as
solas alfinetadas pela textura espinhosa do tapete grosso. Enquanto
contemplava a escuridão, as gavinhas do pesadelo retornaram ondu‑
lantes para sua mente. A mulher de seu sonho demonstrara avidez,
gemendo ao encontro de seu abraço, erguendo sua boca para en‑
contrar a dele, seu corpo cálido apertando‑se contra ele. Seus cabe‑
los eram fragrantes e sua pele recendia a almíscar e ele podia
recordar a pena que sentira dela, uma piedade que se formara tal
qual uma nuvem ao redor da fome que fluía através de suas veias.
Ele praticamente não a conhecia, era uma garota maltratada da Rua
do Rio e ele a havia encontrado como tinha achado todas as outras,
enquanto caçava durante as noites através dos bares mal ilumina‑
dos que se apertavam uns contra os outros na zona do cais. Quanta
confiança ela havia demonstrado quando se curvara para ele... Sua
mão se movera debaixo da capa que ela usava, subindo pela parte
mais funda das costas, onde podia sentir as costuras de seu vestido
ao redor da cintura dela. Ele sentia a dor de uma necessidade irre‑
sistível que lhe enfraquecia o corpo inteiro e sua boca se enchera de
amargor com a recordação de sua própria obsessão desprezível.
— Não consigo respirar... — sussurrou ela enquanto ele a aper‑
tava contra si.
Ele pretendera então, antes que fosse tarde demais, deixá‑la par‑
tir. Mas ela acariciara a parte de trás de seu pescoço com o toque
leve da ponta de seus dedos e ele estremecera. Ele podia ler os pen‑
samentos dela, do mesmo modo que seus movimentos lhe traíam
os motivos: sua capitosa incredulidade perante seus avanços, suas
fantasias dançando juntas em um amontoado de possibilidades:
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contas, para não ser mais do que uma criada, apesar de suas preten‑
sões à fortuna e nobreza. Nada havia neste pequeno quarto que fa‑
lasse de uma natureza aristocrática.
E contudo, ela estivera determinada a se tornar sua esposa, até
mesmo tentara forçá‑lo a se casar com ela. Ela havia retornado in‑
findavelmente, em cada uma de suas vidas, para zombar dele e
persegui‑lo com seus desejos insaciáveis.
Houvera ocasiões em que o rancor que sentira por ela fora tão
intenso, que ele chegara a planejar sua morte e outras vezes em que
ele ansiara por ela com uma luxúria incontrolável, feroz e incalcu‑
lável. Houvera ocasiões em que ele soubera no fundo de seu coração
que somente ela entendia o seu tormento, por ser a causa dele; e que
somente ela compartilhava com ele seus segredos desesperados e
seu profundo conhecimento do mal. Nesses momentos, ele se per‑
mitira um senso de unidade com ela e mesmo algo próximo de —
caso ele ousasse pensar em tal coisa — alguma coisa semelhante ao
amor. Se o amor é o primo do ódio, a única outra emoção capaz de
consumir tudo o mais, então era verdade que ele sentira por ela um
amor amargo, intenso e sem remorsos.
Ele estendeu as mãos para os postigos. O quarto de Angelique ficava
no lado da casa que dava para o mar e lá, bem distante, o luar ainda
flutuava, reluzente como um regato de prata, sobre a superfície das
águas. Barnabas começou a tremer, porque a casa estava prenhe de re‑
cordações assustadoras. Ele não mais possuía a força de seus vinte anos
ou o poder indomável de um apóstolo do Diabo. Era agora um homem
comum e tão vulnerável quanto qualquer outro, não somente a perigos
físicos, como à praga do terror. Cometera um grande erro em vir aqui.
Ficou parado junto à janela, com medo de se mover, embora a ânsia
que sentia agora de fugir dali fosse tão forte como uma dor física.
Novamente, uma brisa fria varreu o quarto. As páginas do livrinho
se moveram como antes e, inegavelmente, ele escutou um suspiro e
depois um leve gemido — como o gemido do prazer durante o amor
— seguido de outro longo suspiro. Os cabelos de sua nuca se horripi‑
laram e subitamente, teve plena certeza de que ela se encontrava ali.
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Ele se virou e a viu, seu sangue virando gelo em suas veias. Ela
estava deitada na cama estreita, que recém-estivera totalmente va‑
zia, suas roupas transparentes espalhadas ao redor dela como o te‑
cido do luar. Sob seu nevoeiro enfumaçado, ele podia ver a
respiração de seu corpo e as curvas graciosas de suas coxas. Ela lhe
estendia seus braços de marfim e ele contemplou de relance o brilho
de seu olhar e o convite em seu sorriso. Com um esforço selvagem,
ele recuou, girou nos calcanhares e se lançou em direção à porta.
Correu como um louco, tropeçando pelo corredor escuro, sem
parar até que chegasse à sala de visitas obscurecida. Ele mergulhou
em direção à lareira, suas mãos tremendo desajeitadamente por so‑
bre os fósforos espalhados, tateando, quebrando, amaldiçoando, até
que, finalmente, conseguiu acender uma chama minúscula. Ele a
segurou entre as mãos em concha, as palmas tremendo, caiu de jo‑
elhos e encostou a flama à fímbria da cortina mais próxima.
O veludo esgarçado pegou fogo imediatamente e reluziu, en‑
quanto uma corrente de fogo subia pela beirada do tecido e hesitava
por um momento abaixo da costura grossa da franja dourada, antes
de explodir em chamas. O fogo chiou até em cima, mais alto que as
janelas, empapando a sala com uma aura dourada, enquanto canta‑
va com o som de um incêndio. Ele arrancou fora a cortina e uma
parte dela caiu no chão, já em chamas, e ele a arrastou em direção a
uma tapeçaria desbotada que também começou a arder. Agora a
sala inteira reluzia com as chamas do Inferno e estava cheia do som
de um rugido, ensurdecedor e implacável. E depois, enterrado nas
profundas desse som — reverberando, pulsando, troçando dele —
escutou o eco do riso enregelante de Angelique.
Barnabas pulou porta afora, fugindo através da noite e só conse‑
guiu parar quando já estava em seu próprio quarto na mansão de
Collinwood. E lá, através da segurança de sua janela fechada, ele
pôde ver o brilho que rasgava a fímbria da noite, enquanto a Casa
Velha ardia como a tocha de um vulcão distante refletida contra a
escuridão do céu.
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O mar não tem fim. Infinito é o mar. As ilhas ficam muito distantes.
Começa com a maré. Enroscado dentro de mim, sem ritmo, apenas
um empurrão e um fluxo. As ilhas estão muito distantes. Outra e mais
outra. Algumas têm montanhas altas cujo topo chega até as nuvens.
Algumas são arredondadas como o corpo de uma mulher. Algumas
são planas, com as árvores todas inclinadas para o mesmo lado, seus
ramos se estendendo como dedos, esticando‑se para fugir do vento.
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A palavra “crioulo”, neste livro, não se refere a negros, e sim a descendentes de europeus
nascidos nos países hispano-americanos. (N. do E.)
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Não posso ver o vento, mas ele está aqui. O que se move com o vento?
Moinhos, pandorgas, guarda‑sóis, velas, páginas de livro, bandeiras,
saias, vestidinhos de algodão, chapéus, flores, cabelos, nuvens, nevo‑
eiro, brumas, fragatas, árvores, os ramos das árvores.
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O mar não tem ritmo. Mamãe fez uma janela de mar, um balde com
fundo de vidro e o colocou sobre a superfície da água. Quando eu
olhei por ele, pude enxergar outro mundo. Pude ouvir os estalos que
faziam os comedores de corais e sentir o movimento das marés. O
vento do mar é invisível, puxando, sacudindo, arrastando.
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trando pela janela que retirou o moreno de minha pele. Minha pele
ficou cor de arroz. Foi porque elas me enrolaram em roupas e me
deram doces. Meus pés ficaram macios. Eu já não conseguiria mais
caminhar sobre os corais.
Mamãe varre a poeira dos cantos da sala. Ela deixa uma tigela
com água junto à porta para capturar os maus espíritos. Não há espe‑
lhos aqui em casa. Por que ele veio me buscar?
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Seu pai era uma sombra negra contra o céu, uma peça talhada no
azul, como uma silhueta de papel, seus ombros altos e largos imensos
dentro da sobrecasaca negra, seu nariz um bico pesado, sua barba
parecendo alga de enguia ressecada. Mas ela podia ver claramente
que ele era um blanc, com a pele bem clara, embora os olhos fossem
cor‑de‑ébano e seus cabelos pretos como carvão. Era por isso que ele
nunca vinha ver a ela ou sua mãe. Porque elas eram gens du couleur,
gente de cor, e porque sua mãe tinha sido filha de uma escrava.
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Certa vez, ele viera, enquanto ela era ainda nenê e a colocara
sobre um joelho e a beijara e escutara o seu riso. Ela tinha brincado
com sua barba e tocado sua testa alta e suarenta.
— Você tem os olhos mais estranhos — ele dissera.
— Olhos tão mutáveis como o mar — respondera sua mãe, com
certo grau de orgulho. — Transparentes como a água da laguna.
Algumas vezes, ficam tão claros como as medusas na areia. Algu‑
mas vezes ficam da cor de turquesas ou de opalas. E em outras, se
tornam tão escuros como as nuvens de tempestade.
Seu pai emitira um som que vinha do fundo de seu peito. Segu‑
rara o pulso de sua mãe e a puxara para bem perto de si.
— De onde ela tirou esses olhos, Cymbaline? — ele sussurrou, sua
voz parecendo mais com um chiado de cobra. — Você me disse que
ela era minha! De onde foi que ela arranjou esses olhos verde‑mar?
Sua mãe, ainda em pé, olhara para baixo em sua direção sem de‑
monstrar o menor medo. Ela usava seus cabelos presos em um lenço
de um encarnado brilhante, formando o que chamavam então de
trunfa, uma ponta no alto de sua cabeça que parecia uma chama.
— Mas você não consegue notar? — respondera‑lhe sua mãe,
ofendida. — Ela nasceu de seu orgulho, sem a menor dúvida. Como
você ousa duvidar? Veja que ela traz a sua mesma marca!
Ela ainda estava sentada no seu colo e o pai levantara a barra de seu
vestido, olhando para a parte de trás de uma de suas pernas. Havia ali
uma marca de nascença escura — como um pingo de vinho tinto no
formato de uma serpente enroscada. Ele a esfregara com seu polegar e
dera de ombros. Depois, suspirara fundo e a colocara de volta no chão.
O vento soprava mais forte e a estrada estava cheia de buracos e
valas. As palmeiras ondulavam suas longas folhas como facas gigan‑
tescas. Seu pai suava sob a sobrecasaca pesada. Ela cheirava seu odor
mofado, não como o ar marinho, mas como alguma coisa trancada,
úmida e enxovalhada, igual ao interior de uma torre de pedra. Os sa‑
patos que sua mãe a obrigara a colocar, feitos de couro negro, tinham
começado a lhe arranhar os pés. Ela nunca se calçava e a sola de seus
pés era tão grossa e resistente como a casca de uma árvore e os sapatos
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machucavam sua pele nos lugares mais macios. Ela já parara de pensar
que suas fitas novas eram bonitas; agora era o seu cabelo que doía por
ter sido repuxado tanto. O que ele dissera para sua mãe?
— Eu quero que ela tenha o melhor — explicara. — Ela tem a
pele clara e pode passar por branca. Mas eu não quero que você
apareça por lá para estragar as coisas.
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A chuva começou a cair como lençóis. Era uma chuva cálida, mescla‑
da ao odor de plumérias. Ao longo da estrada, as flores batidas pela
chuva penduravam‑se molengas, como se tivessem sido pisoteadas e
suas cores pareciam ter sido lavadas até desaparecer. Ela imaginou se
a tempestade duraria muito tempo, como aquelas que arrancavam
árvores da terra, com raízes e tudo, e destelhavam as casas, lançando
os telhados pelos ares, voando como grandes pássaros. Eram aquelas
tempestades que espatifavam as escunas contra os recifes da baía e
que lançavam ondas da altura de casas contra os penhascos.
— Por que mamãe não pode vir comigo? — indagou.
— Ela... decidiu que chegou a hora de você morar comigo — dis‑
se ele, evasivamente.
A chuva continuava a cair firmemente, o céu de um cinza pálido,
a superfície do mar agitada e cheia de lugares mais fundos que pa‑
reciam ter sido atingidos por pedrinhas. Ela olhou para o porto en‑
quanto a carroça se movia lentamente atrás do pônei exausto,
seguindo a estrada da praia que levava até Saint‑Pierre.
Angelique estava ansiosa para ver os navios. Algumas vezes, che‑
gava a haver mais de cinquenta ancorados na baía, as velas pesadas,
as proas elevadas pintadas com tinta dourada e as bandeiras de co‑
res brilhantes. Mas hoje só havia uns poucos, encolhidos e empapa‑
dos pela chuva, protegidos pelo pequeno canal interior, alguns com
as velas rasgadas em farrapos, outros as trazendo enroladas e do‑
bradas como as asas articuladas dos grandes morcegos que se es‑
condiam no fundo das cavernas.
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negro por debaixo de sua pele branca. Ela não conseguira ver a luz
que pulsava sob o rosto das outras pessoas. Ela ficara pensando para
onde sua luz poderia ter ido e julgara que tinha sido chupada pela dor
que ele sentia. Estendera a mãozinha para encontrar a luz e seus de‑
dos lhe haviam roçado a testa. Ele suspirara tão profundamente, que
ela tirara a mão bem depressa antes que ele a tocasse.
— Nã‑ã‑ã‑ão... — ele sussurrara. — Toque minha testa de novo,
meu anjinho... — hesitantemente, ela tocara de novo em sua cabe‑
ça. — Aaaaah... sua mão é tão fresca e seus dedos... sim, é isso mes‑
mo... seus dedos empurram para longe a dor...
Ainda com hesitação, ela apertara suas têmporas cuidadosamen‑
te, movendo os dedos ao longo dos supercílios, para dentro dos ca‑
belos, depois acariciando‑lhe o pescoço, repuxando a pela macia,
escavando em busca da luz perdida. E, para seu espanto, com um
longo suspiro gutural, ele adormecera.
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Nós trou... trou... trouxemos os negros aqui para trabalhar para nós
e temos agora o de... de... dever de lhes salvar as almas.
Vamos lá, você realmente acredita que os negros têm alma? —
redarguiu seu pai, com um riso forçado e sem alegria.
— Se... se... sem a menor dúvida, todos os homens têm al... al...
almas. Eles nascem com uma pu... pu... pureza instintiva que lhes
permite conhecer di... di... diretamente a Deus.
— Se isso fosse verdade, então teríamos de fazer tudo o que esti‑
vesse ao nosso alcance para não deixar que eles O descobrissem!
— ele olhou em volta e chamou asperamente. — Ei, vocês? Onde
estão as minhas negras?
Duas escravas se aproximaram timidamente.
— Aqui, sinhô... — murmurou uma delas.
— Onde diabos vocês estavam, suas porcas ignorantes? Peguem
a criança agora mesmo e a preparem para a cerimônia. Pelo amor
de Deus, deem um banho nela. Ela está imunda!
Elas se adiantaram em sua direção, mas Angelique não se
moveu. Ela segurou a manga da sobrecasaca de seu pai e deu‑lhe
um puxão.
— O senhor está orgulhoso de mim? — perguntou. — Está?
Ele sacudiu a manga.
— Sim, sim, é claro que estou. Agora vá com essas mulheres.
Elas vão prepará‑la.
— Venha, minina... — sussurrou uma das mulheres. Alguma
coisa em seu tom de voz xaroposo fez com que Angelique se recor‑
dasse de sua mãe. — Vai ser uma grandi felicidadi pra você. Très
gentile. Très bonheur. É um jogo que nóis fazemu. Venha agora. Ve‑
nha cum nóis.
Relutantemente, Angelique acompanhou as mulheres. Olhou
por sobre o ombro para avistar seu pai uma última vez. Ele estava
conversando com os outros senhores de engenho. Naquele momen‑
to, sua alta estatura vestida com a sobrecasaca negra por baixo de
seu rosto barbado e cabelos compridos pareceu assumir o formato
de um tronco de árvore queimado e enegrecido pelo fogo. Seus
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— O que meu pai quis dizer quando falou que eu era a escolhida?
A mulher mais gorda e mais velha parecia de boa índole e mos‑
trava uma espécie de gentileza em que Angelique instantanea‑
mente confiou.
— Eles óia vocês por uma fresta no teiado, lá em riba da parede
— mais alto que o lugá em que os cachorro estava — disse ela, lan‑
çando um olhar para sua companheira.
— E por que eles olhavam?
— Ora, pra vê quem seria a deusa, minina — respondeu a mu‑
lher, sua voz trêmula e Angelique percebeu que ela estava fazendo
um esforço para se mostrar alegre, porque suas bochechas estavam
frouxas e seu corpo inteiro parecia estar carregando um grande
peso. — Agora vem cá tu, docinhu. Nóis temo de ti deixá bunita e
limpinha. Vai sê um bom banhinho para tu, vancê não acha?
Gentilmente, a mulher mais velha levou Angelique para uma
tina grande, redonda e esmaltada. Seu tom de voz era tranquiliza‑
dor, mas suas mãos tremiam quando ela derramava um óleo perfu‑
mado de uma garrafa verde sobre a água morna. Uma fragrância de
avencas surgiu com o vapor úmido. Ela retirou com cuidado o ves‑
tidinho de Angelique e a ergueu para dentro da tina. Angelique
nunca se banhara em água tão cálida e macia e se deixou mergulhar
de boa vontade em seu abraço líquido.
Mas elas não a deixariam gozar daquele conforto por muito tem‑
po. Murmurando alguma coisa em língua crioula, a escrava mais
moça se reuniu a elas e as duas a esfregaram com tanta força, que
ela pensou que sua pele fosse ficar em carne viva atrás das orelhas e
sob os cabelos. Ela se deixou esfregar como se fosse uma boneca de
trapo, completamente frouxa, concentrando‑se apenas nos dois pa‑
res de pés nus em tonalidades de castanho, que apareciam por bai‑
xo das saias de flores coloridas, pisando o chão molhado enquanto
se moviam ao redor da tina. Elas murmuravam uma para a outra
palavras musicais que Angelique reconhecia por haver escutado an‑
tes, mas que não podia compreender. Era tudo tão estranho e não
completamente desagradável, mais como um sonho em que ela fos‑
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— Não, Sinhô, pur favô, num faça isso. Eu não pude pará ela. Ela
corria muito! Pur favô, Sinhô, pur favô, num faça isso!
Angelique pulou até uma das janelas e conseguiu olhar para baixo.
O alto da torre ficava mais ou menos a uns seis metros acima do
nível do chão. O pátio estava vazio. As lajes estavam prateadas com
a água da chuva, enquanto riachinhos desciam pelas calhas para
formar pequenas poças e lançar borrifos ao redor. Havia um poço
de pedra e dois postes cravados no chão, um dos quais com três
cabras amarradas e parecendo inquietas.
Então seu pai e outro homem apareceram ao pé da torre, arras‑
tando a escrava Suzette. O homem desconhecido usava roupas de
trabalhar nos campos, mas era forte e claramente um blanc. An‑
gelique imaginou que fosse o capataz da plantação, porque carre‑
gava um chicote pesado e puxava Suzette por um dos pulsos.
Suzette cravava os calcanhares no piso e arranhava seu braço com
a mão livre, até que ele lhe agarrou o outro pulso. Ele a levou aos
puxões até o poste vazio, arrancou da cabeça dela o pano rasgado
de seu turbante e o amarrou ao redor de seus pulsos, atando‑a a
seguir no poste.
— Ai, pur favô, Sinhô, num bata numa pobri escrava! Num foi
minha curpa! Ela correu qui nem uma rata, mas eu acabei pur pegá
ela, o Sinhô sabe qui eu peguei! Nunca vai acontecê de novo, nunca,
nunca! Ai, pur favô, Sinhô, num faça isso, não! NÃO!
Angelique se agarrou às barras da janela, tremendo. O calor su‑
biu até seu rosto. Nunca tinha visto antes um escravo apanhar no
tronco e nem ao menos acreditava que essa crueldade acontecesse.
Por um momento, a chibata se retorceu ao longo do solo como
uma cobra em areia quente e então se ergueu, pairou e cantou pelo
ar. Suzette engoliu em seco e quando o açoite a atingiu, arqueou as
costas e berrou como se sua voz tivesse sido arrancada de seu corpo.
Angelique fechou os olhos e virou a cabeça. Mas ainda podia
escutar os estalos do chicote e os uivos lastimosos, até que os gritos
se transformaram em gemidos, depois em silêncio, enquanto o
chiado e estalos da chibata prosseguiam. Quando o silêncio reinou
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novamente, Angelique criou coragem para olhar outra vez. Ela viu
o capataz desatar a tira de pano e puxá‑la. O corpo de Suzette es‑
corregou para o chão molhado.
O pai de Angelique avançou até ela e contemplou a escrava e
então, como se ele soubesse que ela estaria olhando lá de cima, er‑
gueu os olhos justamente para as barras da janela da torre em que
a menina estava.
Ela percebeu com um choque que ele havia querido que ela
assistisse a tudo e seu coração gelou no peito. Imagens relampeja‑
ram dentro de sua mente, recortadas da noite anterior, momentos
daquilo que deveria ter sido um pesadelo: escravos fazendo fila
no santuário escuro, silenciosos e obstinados, cada um parando
um momento diante do grande portal dianteiro. Então, um sa‑
cerdote de manto negro, ai meu Deus, era seu pai mesmo! Ele ti‑
nha administrado o sacramento, tocando em cada testa com
água-benta e colocando alguma coisa dentro de cada boca. Então
a longa linha de homens marchara para dentro da noite e a porta
tinha sido trancada.
Angelique esperou para ver se Suzette se levantava, mas ela per‑
manecia imóvel e frouxa sobre o pavimento. Finalmente, Thaïs se
esgueirou de uma porta, ergueu a escrava nos braços e carregou‑a
para dentro. Depois disso, o pátio ficou vazio de novo, salvo pelas
três cabras que baliam de vez em quando e empurravam umas às
outras como peixes presos em uma linha de pesca de corrico. A
chuva constante ainda martelava monotonamente a terra.
Angelique se moveu de volta para a cama ainda aturdida. Só en‑
tão percebeu que mordera os lábios até tirar sangue e que eles esta‑
vam inchados. Seu corpo estava pegajoso de suor. De repente, ela
percebeu como era quente na sala da torre, em que não chegava a
brisa do mar. Parou no meio do quarto, apoiando uma das mãos
em um poste tremendamente grosso que atravessava o pavimento.
Olhando para cima, ela percebeu que o poste não servia para
suportar o telhado, mas tinha no alto uma roda denteada que se
encaixava nas imensas engrenagens presas a um caibro horizontal
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— Você não iria preferir morar aqui? Pode ter tudo quanto dese‑
jar e as escravas cuidarão bem de você. Vai viver como uma prince‑
sa... — argumentou ele.
— E você vai mandar bater nas escravas que não me cuidarem
direito? — ela indagou, o rubor do desprezo colorindo‑lhe as faces.
Ele hesitou por um único momento antes de lhe responder:
— Sim. Caso você tente fugir.
Ela sentiu uma onda de pânico. Ele a havia enganado. Os sonhos
de sua mãe eram somente mentiras de seu pai. Ela se firmou no
encosto da cadeira para não vacilar enquanto lutava contra o calor
que subia de dentro dela e se esforçava para prender as lágrimas.
Mas seu pai parecia incapaz de entender o que se passava com ela e
um sorriso retorcido irrompeu através da carranca com que a havia
contemplado antes.
— Se ao menos você tivesse conseguido olhar para si mesma
a noite passada... — comentou em um tom de voz que quase pa‑
recia de reverência. — Eles ficaram escravizados por sua presen‑
ça. Eu mesmo mal podia acreditar. Realmente, penso que você é
um tesouro...
— Você prometeu uma boa escola! — ela gritou. — Disse que eu
ia ter a vida de uma filha de senhor de engenho. Você mentiu!
Seu pai suspirou profundamente e caminhou até uma das janelas.
— Eu sou... um senhor de engenho — declarou, olhando para
fora e soltando outro suspiro.
— Onde estão as suas plantações de cana? Onde está sua linda casa?
Ele riu de novo, um riso sem a menor alegria, quase uma tosse.
— Todas as manhãs eu me acordo pensando exatamente nisso...
Passou a mão pela boca e esfregou os olhos como se esti‑
vessem doendo.
— É um negócio amaldiçoado... — afirmou, inclinando‑se con‑
tra as barras. Falava em uma voz tão baixa, que parecia estar falan‑
do sozinho. — Tem sido uma luta difícil, diversas vezes pensei que
estivesse arruinado. Ano passado, um furacão destruiu a colheita.
Duas vezes os escravos conspiraram e iniciaram revoltas — fúteis,
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acreditarem que você irá aparecer perante eles, acho que irão se
contentar com seu trabalho e permanecer... manejáveis...
— Mas por que eles acreditariam em uma coisa assim?
— Porque eu mesmo contei para eles.
— Mas eles não vão acabar descobrindo?
— Essa é a dificuldade. A fim de que o ritual possa ser realizado,
você precisa permanecer escondida. Se eles a virem andando por aí,
percorrendo a terra, ou junto com sua mãe, iriam perceber que ti‑
nham sido enganados. A partir de então, eles ficariam ainda mais
inclinados a se revoltar contra mim. E quanto a você, bem, prova‑
velmente eles lhe cortariam a garganta. É muito importante para
eles crerem que você é... um espírito.
— Mas é um monte de mentiras. Eu não sou espírito nenhum.
Ele começou a caminhar pelo quarto. Parou diante do espelho
e olhou fixamente para sua imagem durante um momento, fazen‑
do uma careta e estreitando os olhos. Esfregou as mãos por sobre
o rosto.
— Venha se contemplar — disse ele, segurando‑a asperamente
por um dos braços e puxando‑a até o espelho. O toque de seus de‑
dos fez com que ela estremecesse. — Essa menina que você vê refle‑
tida ali... não é uma deusa?
Seus cabelos tinham secado em massas de cachinhos pálidos
que, mesmo naquela luz abafada pelas cortinas pareciam brilhar ao
redor de seu rosto. Seus traços eram delicados, mas dominados por
seus olhos espantosos, imensos e acinzentados. Ela sentiu fiozinhos
de suor escorrendo por seu corpo. Estendeu a mão para o pescoço e
sentiu o amuleto de sua mãe, que ainda estava pendurado por baixo
do vestido e tremeu de novo, porque o rosto de seu pai pairava no
espelho acima do dela. Seus olhos faiscavam enquanto ele lhe con‑
templava o reflexo.
— O que você está vendo — explicou, sua respiração opressa —
é um tipo de beleza. E beleza é coisa muito rara, embora seja um
talismã frívolo. Mas você possui um dom que é ainda mais raro.
Existe uma espécie de encanto em você. Você está acesa com um
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— Ela sabe que é seu destino. Que é forçada a concordar com ele.
— Mas não é verdade! Ela nunca teria deixado que eu partisse se
você não lhe tivesse mentido! Não era isto que ela queria para mim!
Não foi isto que você lhe prometeu!
Ele se inclinou para frente, agarrou‑a pelos cabelos e puxou‑a
para junto de si. Ela sentiu sua respiração quente quando ele baixou
o rosto em sua direção. Sua cólera estava misturada a um certo de‑
sespero, como se emoções conflitantes o estivessem empurrando à
beira da loucura e sua voz saiu furiosa e dura:
— Não me desafie, Angelique! Você já assistiu à minha cólera e
ao meu método de punição. O mesmo destino a espera se você in‑
sistir em sua teimosia!
Ele a empurrou com tanta força, que ela caiu no pavimento. Seus
olhos estavam arregalados enquanto ele a fitava, as pontas dos de‑
dos tremendo:
— Escute, minha menina, e escute bem! Você não é mais a filhi‑
nha da mamãe e nem tampouco minha filha, se quer saber! A vida
em Martinica é difícil para todos nós — falou incisivamente. — Por
que razão você deveria se furtar a essas dificuldades? E agora... —
ele respirou profundamente e forçou sua voz a sair mais tranquila.
— Agora eu preciso de você aqui. Desesperadamente. Você tem um
novo papel a executar em sua vida e pode desempenhá‑lo com or‑
gulho. Sugiro que o faça. Suplico‑lhe que o faça.
Caminhou até a porta e trancou‑a por detrás de si. Ela viu o fer‑
rolho baixar e escutou o clangor do ferro a bater nos encaixes.
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lágrimas escorriam por suas faces e ela gritava de agonia, até que,
finalmente, se afrouxava inteira, desmaiando de tristeza.
* * *
Certa manhã bem cedo, ela acordou com a cabeça bem mais clara
que de costume. Escutou Thaïs erguer o ferrolho cuidadosamente e
entrar em silêncio com sua bandeja de comida. A primeira luz da
aurora brilhava nas janelas e o céu estava da cor de lavanda. O can‑
to matinal dos pássaros ainda soava apenas fracamente através dos
ares. O vestido de Thaïs era feito de um pano cheio de florzinhas
desbotadas e seus cabelos estavam atados com um lenço azul. Ela se
voltou e sorriu meio nervosa, vendo que Angelique estava acordada.
— Bem, minina, vancê ti acordô? É manhã i hoje num vem chu‑
va ninhuma. Vancê vai comê bem agora e botá uma comida gorda
na sua barriga. Hoje vancê vai à cidadi. — Thaïs a contemplou ner‑
vosamente. — Vamo agora, quirida. Eu tem de ti botá no vestido di
rosa. Gosta dele? Vancê está um poco mais alertada hoje que de
costumi, né? Tu vai sê uma guria boazinha hoji, iscuitou?
Angelique empurrou o prato de comida para fora da mesa e ele
ficou girando e estalando contra o chão. Thaïs engoliu em seco.
— Ai, Deus. Pruquê tu feiz isso?
— Porque essa comida me deixa com sono o tempo inteiro.
Thaïs mostrou uma expressão culpada.
— Bem, né, isso pode sê verdade, docinhu — confessou. — Mais
é memo pru teu bem. Sapo dormino num sabe que a cobra tá che‑
gano. Mais vancê tem di cumê, sinão sou eu que vou tê de passá
mal, munto mal memo!
— Mas eu quero ficar acordada. Há quanto tempo estou dor‑
mindo? Semanas? Meses?
Thaïs sentou‑se ao lado de Angelique e passou um braço ao re‑
dor de seus ombros. Seu corpo pesado fez afundar o colchão e seus
olhos líquidos pareciam pendurados em seu rosto macio. Um chei‑
ro leve vinha dela, não de todo desagradável, parecia uma mistura
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mais escuro. Esperou, com medo até de respirar, mas a cortina foi
sendo entreaberta aos poucos e um raio de luz incidiu sobre seu rosto.
Ela estendeu o braço e fechou o cortinado bem depressa, mas no mo‑
mento seguinte, ela foi sendo aberta de novo, lentamente, e desta vez,
ela não tentou impedir.
— Alô... — ele cochichou de novo. — Eu só queria vê‑la...
Ele estava parado do lado de fora, mas muito perto dela, com
uma expressão impudente no rosto. Era um rosto maravilhoso, de
traços finos, porém másculos, seu olhar aguçado brotando de olhos
que pareciam negros sob as sobrancelhas grossas, uma porção de
sardas a recobrir‑lhe as faces e o nariz.
— Eu nunca vi uma deusa verdadeira antes... — disse ele, em
tom de brincadeira.
Ela ficou aterrorizada ante a perspectiva de que seu pai retornasse
a qualquer momento e ficou encarando o rapaz, sem saber o que fazer.
Ele sorria com dentes muito brancos, uma leve sugestão de buço em
seu lábio superior. Cachos castanhos com luzes douradas caíam‑lhe
frouxamente sobre a testa e seus olhos escuros cintilavam em seu ros‑
to como se ele estivesse olhando alguma coisa maravilhosa. Subita‑
mente, ele mostrou um sorriso que teria sido pecaminoso se não fosse
tão brejeiro. Finalmente, ela encontrou sua voz e sussurrou em inglês:
— O que é que você quer?
— Ora, conversar com você, é claro. O que mais ia ser?
— É proibido falar com a deusa.
— Mas você não é uma deusa de verdade, não é mesmo?
O calor subiu‑lhe ao rosto e ela se ruborizou, sentindo um for‑
migamento na ponta dos dedos. Suas palavras a deixaram zangada.
— Sim, eu sou! Eu sou Erzulie, a deusa do amor! — afirmou.
Ele jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.
— Mas que armação mais gozada! Melhor do que aquela do ho‑
mem que jogava fogo pela boca! Jeremiah disse que você era perigo‑
sa, que eu não deveria chegar nem perto... — comentou ele. — Então,
é claro, que eu não poderia resistir à tentação. Mas só de olhá‑la, sei
que não seria capaz de fazer mal a um coelhinho!
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dos barcos de seu pai estavam atopetados com a carga que fora con‑
tratada, barris de rum. Certa noite, durante a viagem de retorno a
Boston, ele e seus colegas tinham decidido abrir um dos barris e
beber como verdadeiros marinheiros, provando o elixir dourado
que derramava fortunas nos bolsos de seu pai. Fora nessa noite, de‑
pois que os outros haviam adormecido e sua cabeça rodava demais
por causa do rum ingerido para que ele próprio conseguisse dor‑
mir, que ele tinha descido às escondidas para baixo do último con‑
vés. Naquela escuridão úmida e tremulante, ele tinha visto dúzias
de escravos amontoados juntos e gemendo, todos os corpos negros
agrilhoados uns aos outros.
Uma batida leve em sua porta quebrou‑lhe o devaneio. Era Jú‑
lia. Rapidamente escondeu o diário sob outros livros em sua es‑
crivaninha e se levantou para saudá‑la no momento em que ela
abria a porta.
— Está na hora de irmos para Collinsport — disse ela firme‑
mente. — Já estacionei o carro lá na frente...
— Sim, é claro... Muita gentileza sua... — ele respondeu
com brandura.
Ela hesitou, examinando‑o cuidadosamente, sentindo algo de
diferente em sua atitude.
— Você está bem, Barnabas?
— Claro que estou! O que está pensando? — seu tom de voz
soou aborrecido, o que era muito pouco comum quando falava com
ela e os dois se surpreenderam.
— Eu só pensei que talvez nós devêssemos deixar para outro dia...
— Mas não. Nós temos de dar outra passada na Casa Velha. Ver
o que os demolidores estão fazendo. A essa altura, eles devem estar
bem adiantados — insistiu Barnabas.
— Eu mesma posso fazer isso, caso você queira — ofereceu‑se ela.
— Ora, pelo amor de Deus, não precisa ser tão solícita, Júlia.
Realmente, já estou ficando bastante cansado de ser tratado tão
bem. E de ver esse ar ansioso em seu rosto. Realmente, não lhe fica
bem, detrai um pouco de sua beleza...
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é que alguma vez ele vai amadurecer... Seja como for, você faria
muito bem em investigar todos os investimentos dos Collins e não
esperar que nada esteja garantido. Os tempos mudam. Temos de
garantir o futuro de Carolyn e de David; os investimentos não se
apresentam de vontade própria, requerem planejamento e um certo
risco. Portanto, o que você tem em mente?
Barnabas sobressaltou‑se com a pergunta súbita.
— O que quer dizer?
— Ora, o que tem em mente para fazer, Barnabas, o que quer fazer?
Sem dúvida, não pretende simplesmente desfrutar de sua fortuna, ou
antes, da fortuna da família Collins... que não é lá tão grande assim...
— Eu... bem, eu pensei, naturalmente, em ingressar na diretoria
e prestar minhas contribuições em nível executivo...
— Mas que tipo de contribuições? — persistiu Roger.
— Desculpe, não entendi bem.
— Quais talentos especiais você pensa possuir? Sei que já viajou
pelo mundo todo. Qual era a sua profissão em Londres, realmente?
Era advogado?
— Eu... bem... eu era negociante, suponho. De fato, nunca preci‑
sei trabalhar todos os dias. Eu tenho uma quantidade substancial
de propriedades — explicou Barnabas.
— Terras?
— Não... joias, antiguidades, móveis e tapeçarias...
— Você tem noção de quão rapidamente esses objetos, por mais
preciosos que sejam, perdem seu valor? Ou você fez investimentos?
— Ora... mas é claro... — subitamente, Barnabas sentiu‑se abor‑
recido. — Roger, eu me ressinto da implicação de que eu não sou
capaz de fazer a minha parte. Eu possuo uma fortuna bastante
grande na Inglaterra e não tenho a menor intenção de viver à sua
custa, como parece estar sugerindo.
— Ora, meu rapaz, acalme-se — disse o outro tranquilizadora‑
mente. — Eu não quero pressioná‑lo, mas não existe nada melhor
que um novo envolvimento para fazer correr o sangue, se é que me
entende. O que me diz então?
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— Não pode ser muito longe daqui — disse ela, com um tremor na
voz. — A polícia disse que era antes da encruzilhada, logo depois da pon‑
te coberta. Deve ser nesse trecho que vem logo à frente, você não acha?
Barnabas apertou os olhos e então ergueu uma das mãos para
cobrir a testa, escudando seus olhos do brilho.
— Não consigo evitar de pensar que, de alguma forma, isto foi
culpa minha — balbuciou.
— Barnabas, isso é absurdo!
— Eu sei, mas quem contratou a demolição fui eu e...
— Santo Deus! Não consigo ver nada! — gritou ela, freando o
carro quase até parar. A poeira acumulada no para‑brisa ampliava
a luz do sol poente, escondendo a estrada. Era como se estivessem
envolvidos em uma nuvem de fogo, um nevoeiro dourado pintando
o vidro. Avançaram metro a metro para frente e, tão logo a cintila‑
ção diminuiu, avistaram o desastre.
Havia dois carros da polícia com suas luzes vermelhas correndo
de um lado para o outro do painel instalado sobre o toldo e uma
ambulância. Diversos policiais estavam reunidos junto à margem
do rio. Júlia parou o carro e saiu junto com Barnabas.
A jamanta que transportava a escavadeira havia capotado para
dentro do rio, suas rodas viradas para o ar, lembrando um elefante
morto. A cabine era uma casca enegrecida, esmagada e achatada;
fora a água do rio que impedira que o fogo se espalhasse quando o
tanque de gasolina explodira. O trator estava caído de lado no meio
dos arbustos, um pouco mais acima, suas rodas retorcidas e a parte
traseira completamente separada, jogada além das árvores, como se
fosse um brinquedo de criança abandonado em uma caixa de areia.
— Mas quando aconteceu isso? — perguntou Barnabas.
— Hoje cedo — disse Júlia. — A polícia não sabia de nada até
uma hora atrás, mas quando chegaram, o metal queimado já estava
frio ao toque.
— Quer dizer que nós passamos diretamente por eles hoje à tar‑
de, quando nos dirigíamos à cidade e simplesmente não vimos
nada? — falou Barnabas, incrédulo.
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havia parado, ele relaxou. Percebeu que estivera ansioso para retor‑
nar ao diário desde que havia interrompido a leitura.
Ele descobriu que estava lendo uma lista de encantamentos
mágicos, feitiços e anotações para o que lhe pareceu serem
cerimônias africanas.
Para adormecer uma mulher de tal modo que você lhe possa co‑
nhecer os segredos:
Um sapo morto numa sexta‑feira.
Coloque a cabeça, o coração e o fígado sobre seu seio esquerdo.
Sussurrar:
“Oh, meu amor, meu amor, meu grande amor, paire junto de mim
e me murmure...”
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— Deixem sua cabeça para fora e vão buscar o mel! — agora era
a voz do capataz.
— Ai, não, Sinhô! Pur favô, num põe o mer, não! Pur favô, o mer não!
— Derramem o mel inteiro na cabeça dele e vão buscar um bal‑
de de formigas!
— Ai, não, Sinhô, as furmiga não!
— Derramem as formigas para que mordam ele bem, que mor‑
dam os olhos e as orelhas e o pescoço e entrem no nariz e mordam
lá dentro!
Chloé parecia possessa e retorcia o rosto em uma máscara cruel
quando pretendia ser o capataz. Então Angelique entrava na brinca‑
deira e fingia ser o escravo:
— NÃO! NÃO! As formigas estão me mordendo! Elas vão comer
toda a minha cara! — ela gritava, excitada por uma mistura de hor‑
ror e fascínio. Ela nem sequer era capaz de imaginar como seriam
umas torturas tão cruéis. Ela pensava que Chloé inventava esses
dramas e ficava encantada com a imaginação da outra.
Foi ideia de Chloé fazer as bonecas. As duas eram marrons, porque
a argila era marrom, mas uma trazia o cabelo louro de Angelique e a
outra tinha a carapinha preta e curta de Chloé. Elas haviam cortado
um pouco de seus próprios cabelos. Até mesmo as roupas tinham sido
feitas com tiras de seus próprios vestidinhos, costuradas ao redor da
argila, para serem mais autênticas. Os olhos eram feitos de pedrinhas
e as bocas outras tantas fileiras de sementes enfiadas cuidadosamente
na argila ainda mole e elas discutiram sobre quem tinha feito a curva
mais perfeita de uma boca sorridente. Fingiram que as bonecas eram
irmãs e lhes fizeram camas com travesseirinhos e cobertas, para que
elas pudessem dormir lado a lado. Mais adiante, chegaram a erguer
uma tenda com lenços de seda e pareus de algodão e as duas se deita‑
vam ao lado das bonecas e as acalentavam com melodias que suas
próprias mães haviam cantado para elas, até que conheciam bem as
canções uma da outra e eram capazes de cantar todas de cor.
Durante o dia, Angelique lia seu livro. Ela recordava também mui‑
tas coisas que sua mãe lhe havia ensinado e também parte das rezas
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das freiras na escola, mas queria saber muito, muito mais. Certa vez,
ela perguntou a Chloé se ela sabia alguma coisa sobre os loás.
— Loás? Ah, terem muitos, muitos loás mesmo! — falou, cheia
de importância.
— Ah, por favor, diga‑me os nomes deles! — pediu Angelique.
— De todos eles? Bem, existe o Brava Guede, que é o melhor de
todos os loás, é ele que vem cuidar das crianças. Mas tem o Guede
Ratalon. Ele cavar os túmulos — explicou a outra.
— Eu me lembro de Legbá. Quem é ele? — quis saber Angelique.
— Papá Legbá é o mesmo Maître Ka‑Fu. É ele quem abrir os
portões para que todos os outros loás possam entrar! — disse Chloé,
abrindo seus braços delicados e então disse: “A‑a‑a‑a‑abra!” e fez
uma curvatura até o chão. — Mas quando eles chamar o Guarda do
Portão nessa capela aí do lado, eles dizer... “Kalfu...”
Angelique percebeu que ela estava fazendo um grande esforço
para dizer “Carrefour”, que era “encruzilhada” em francês.
— Sim! Eu já os ouvi dizendo isso! — exclamou Angelique. —
Por que é diferente aqui?
— Porque o vodu daqui é ruim... é angajan! — sussurrou Chloé.
— O que você quer dizer com angajan? — falou Angelique, tam‑
bém baixinho.
— É o baká daqui... alma penada... espírito mau... ele pegar a ti‑
boangue, a alma da gente! — falou Chloé, assustada. — Ele é como
o Cochon Gris — come o porco e bebe o sangue dele!
A imaginação de Chloé ultrapassava as fronteiras do fantástico.
Enquanto a escutava, Angelique pensava nos caranguejinhos ver‑
melhos que entravam e saíam de seus pequenos esconderijos, difí‑
ceis de se ver e ainda mais difíceis de pegar.
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Mas a única coisa que pôde fazer foi olhar agoniada para o bu‑
raco aberto. Escutou um grito agudo vindo lá de baixo e viu a vi‑
bração da corrente ao ser atingida, enquanto ela gritava: “Chloé!”
de novo, seus gritos ecoando os da menina que tombava, reverbe‑
rando, ressoando como dentro de uma caverna — como o croci‑
tar distante de corvos quando voavam sobre as árvores da floresta
— seguindo‑se um silêncio completo.
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espírito. Quando ele se aproximou dela, viu que seus olhos tinham
rolado para dentro de suas órbitas e ele a encarava com fendas de
um amarelo cremoso. O sangue escorria por sua testa lustrosa e lhe
descia até a boca macia, enquanto a pasta branca se amolgava com
o suor descendo em torrentes pelo seu peito.
Subitamente, ela teve um sobressalto quando uma pedrinha
tombou sobre a plataforma à sua frente. Instintivamente, ela es‑
tendeu um dos braços e a segurou. A pedrinha estava quente, era
cor de cobre e, embora os olhos do homem estivessem vazios e
agora parecessem tão amarelos como uma ferida cheia de pus e
ainda que seus lábios não se movessem, ela o escutou sibilar:
“Chloé, Chloé, Chloé...”
Um suspiro pareceu ser emitido em coro por todos os outros
adoradores. Eles recuaram, como se o companheiro fosse uma
criatura maligna e o medo era palpável no ar, como um cheiro
real. Ele ondulava e estendeu os braços para ela, seu rosto uma
máscara sem olhos. Um som como o coaxar de um sapo abriu
passagem pela sua garganta e seus longos dedos tocaram de leve
suas pernas. Mesmo ao se afastar de seu contato, ela sentiu uma
espécie de comichão viajar por todo o seu corpo, como se peque‑
nos insetos estivessem caminhando por debaixo de cada centíme‑
tro de sua pele.
Subitamente, ele estremeceu e pulou sobre o altar e os tambores
trovejaram como ondas de tempestade a se quebrar contra os pe‑
nhascos e a penetrar pelas grutas submarinas, ecoando, enfraque‑
cendo e, no momento em que ele se inclinou sobre ela, seus olhos
ainda cegos, como se fosse um namorado a ponto de beijá‑la, de
seus lábios brotaram chamas!
Ela engoliu em seco e recuou, sentindo inesperadamente que as
chamas eram frias, como fitas, fragrantes de perfume, envolvendo
‑a em vagas de carmesim e ouro. Eram folhas — pétalas — em tal
profusão, que ela pensou que sufocaria sob a massa de botões cas‑
cateantes. Então riu, erguendo‑se da pilha de delicados odores. Es‑
tendendo os braços para baixo, ela apertou braçadas de pétalas
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contra o peito e as lançou como chuva pelo ar. Ela viu que as pétalas
flutuavam no ar e caíam sobre os adoradores amontoados, que esta‑
vam agora totalmente passivos e a encaravam, enquanto ela notava,
de repente, que cada rosto era belo e elegante, tal qual tivessem sido
todos esculpidos em madeira de ébano.
O rufar dos tambores entrou em seu corpo e ela começou a dan‑
çar, primeiro do jeito que havia dançado com Chloé, balançando
lentamente como uma criança a brincar de dançarina, depois mais
sensualmente, convidativamente, como se, pela primeira vez em
sua vida, ela percebesse as curvas de seus quadris e os pequenos
botões de seus seios. Ela estava dançando sem tirar o tecido frouxo
de seu vestido, mas era como se estivesse nua diante deles.
Nesse momento, o espírito entrou nela, enrolando‑a em um ne‑
voeiro cintilante. Erzulie cantou sons estranhos com sua boca e An‑
gelique se retorcia e tremulava, esfregando seus próprios seios e
soluçando com uma tristeza profunda enquanto caía, tremendo
sob o poder da loá. Um a um, os adoradores se aproximaram e se
inclinaram sobre ela, debruçados sobre a plataforma, tocando‑a,
beijando‑a, seus lábios percorrendo os arcos de seus pés e suas per‑
nas tensas, suas mãos a lhe acariciar as coxas.
Ela não era mais a Angelique adolescente, pouco mais que uma
criança, mas efetivamente se tornara a própria deusa Erzulie, que
recebia ansiosamente suas bocas macias e as línguas que entravam
nela. Sobreveio um silêncio espiritual, enquanto os amantes encan‑
tados provavam sua inocência exuberante e eram escravizados pela
fonte da vida. Ela erguia os quadris e gemia, ansiando por alívio,
mas estava presa entre a possessão da deusa e as devoções dos ho‑
mens e o movimento de suas línguas e as leves mordidas apenas a
tantalizavam ainda mais.
Finalmente, com um grito de angústia, ela juntou os joelhos ou‑
tra vez, seus punhos se cerraram e seu rosto se contorceu com uma
dor tão aguda como punhaladas. Ela chorou baixinho, como uma
criança de colo, as lágrimas escorrendo‑lhe dos olhos extremamen‑
te apertados e seu corpo se retorcendo de tormento. Os adoradores
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no sol. Havia agora uma figura, com formato humanoide, mas não
feminina, certamente não era Erzulie, que oscilava na obumbração,
a silhueta de um homem, usando uma longa vestimenta e ao mes‑
mo tempo desnudo, magro e musculoso, seus tendões e músculos
protuberantes ensombrecidos, cintilando como uma chama negra,
mas denso, com aspecto plenamente corpóreo: braços e pernas e
uma face tão lisa quanto alabastro. Cabelos cor de ébano desciam
em ondas por sua testa e pela nuca, recobrindo‑lhe os ombros.
Ele estava parado dentro de uma carruagem oscilante, as pernas
abertas, segurando as rédeas com as mãos, enquanto, flutuando
diante dele como se fossem arcos voltaicos, cavalos aveludados,
musculosos e tão escuros quanto o mar à meia‑noite, pareciam su‑
bir e descer como num carrossel. A visão piscava, assumia uma for‑
ma nítida, depois desaparecia, somente para retornar uma vez mais.
Angelique sussurrou:
— Quem é você? Por que foi você quem veio?
Sua voz ressoou como o vento correndo sobre as águas.
— Porque tu me chamaste. Tu me arrastaste de meus sonhos
após séculos de sono. Mas tu ainda és uma criança, Angelique, jo‑
vem demais. Vejo como teu talento floresce e anseio para capturá‑lo
e trazê‑lo para dentro de mim até o centro do mundo, mas não ain‑
da, menina, ainda não.
E ele subia e descia enquanto falava, no mesmo ritmo criado pe‑
los cavalos, sua voz escovando‑lhe o interior dos ouvidos e então se
dissipando nos canais da escuridão.
— Quem é você? — ela perguntou de novo, mas sabia, dentro da
parte mais profunda de si mesma, com um conhecimento que per‑
tencia à carne e ao sangue e não à sua mente, que ele era Lúcifer ou
algum outro Deus do mal e que ela o invocara por engano.
— Tu não te lembras? — sussurrou ele, sua respiração como fios
de fumaça.
— Não! Não foi você que eu invoquei! — disse ela, num mur‑
múrio. — Por que você veio? Eu não quero você aqui! — protestou,
tomada de pânico.
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lhe fez um sinal de que desceria a escada até o térreo. Segundos de‑
pois, estava no pátio.
— Césaire? — indagou em um cochicho abafado.
— Tô aqui!
Ela olhou para a extremidade do pátio calçado, onde ele era in‑
terrompido pela mureta que o separava do rochedo que descia ver‑
ticalmente até o mar. Ele estava sentado no alto da amurada.
Ela correu até ali e afundou no chão a seu lado.
— Eu não posso ficar — disse‑lhe. — É perigoso para mim
falar com você.
— Olhe! — disse Césaire, apontando para uma pequena en‑
seada diretamente abaixo deles. A noite estava quente e as estre‑
las do céu tão luminosas, que pareciam uma nuvem de vapor. Ela
se arriscou a ficar em pé e olhou. Dali ela enxergava toda a exten‑
são do mar. Uma península longa e estreita se esticava como um
braço ao redor de uma curva, mantendo uma laguna em seu
abraço. Mesmo à luz das estrelas, ela podia ver as ondas batendo
e rebentando no recife exterior, mas o pequeno porto estava cal‑
mo junto dos penhascos que mergulhavam diretamente nas
águas profundas.
— Olhar o quê? — sussurrou.
— Lá embaixo — disse o rapaz. — Lá está a tua escuna do Maine.
Ela apenas conseguia divisar uma forma na escuridão, o sufi‑
ciente para reconhecer que era um barco ancorado, com duas pe‑
quenas luzes de bordo acesas, brilhando como estrelas que tivessem
caído nas profundezas.
— Tem certeza?
— Ah, sim. Eu conheço todos os barcos. Nenhum deles aporta
sem que eu saiba.
— Mas por que esse está aqui? Por que não está no porto de
Saint‑Pierre?
— Ora, porque tá escondido. Esta enseada é boa ancoragem para
esperar durante a maré alta, que vai ser de manhã cedo. Ele atraves‑
sou a Passagem e agora tá esperando a hora de voltar ao mar com a
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baixa‑mar. Nenhum dos navios grandes vem aqui. São fundos de‑
mais e teriam um baita pobrema para cruzar aquele recife lá adian‑
te. Mas esse barco tem fundo raso e veleja fácil com o vento. Ele
corre por cima das ondas que nem um passarinho!
— Gostaria de estar nesse barco — disse Angelique, com
um suspiro.
— Não, tu não gostaria de estar a bordo dele — contestou Césai‑
re. — Esse barco é roubado e mesmo que se mova que nem uma
guria inocente, é de fato uma puta velha.
— Por que você diz isso? — quis saber Angelique.
— Porque transporta escravos escondidos no porão — respon‑
deu o rapaz, com a maior naturalidade.
Angelique se esticou por cima do parapeito, olhando para baixo.
— Eu não me importo — disse ela. — Eu também não passo de
uma escrava.
— Guria, tu não sabe o que tu tá dizendo. Um dia desses tu sai daqui.
— Meu pai não vai me deixar sair nunca. Além disso, não tenho
mais nenhum lugar para ir. Não sei o que aconteceu com minha
mãe, nem onde ela está.
Ela encarou o rosto de Césaire, cuja testa estava franzida.
— E... e eu nem tenho com quem conversar — disse ela,
abaixando‑se novamente, seu coração doendo enquanto olhava em
volta. — Se meu pai nos encontrasse conversando deste jeito, ele
iria... — interrompeu‑se com um estremecimento. — Você lembra
a menina no poço?
Césaire assentiu, seus olhos brilhando.
— O nome dela era Chloé. Nós brincávamos juntas, mas em se‑
gredo. Uma noite, o pai nos pegou e ele... e ele...
Ela se ergueu de repente.
— Não posso mais ficar aqui, Césaire. Eu nem devia ter descido...
— Espera — disse ele. — Eu tenho uma coisa para te contar. Tu
sabe o que vai acontecer? Tu pode sentir no ar? Escuta...
As ondas se quebravam contra os penhascos e mais longe, na
mata e nos banhados, ouvia‑se o flautear dos sapos e das rãs. Bem
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mais longe, ela escutou o som de tambores, mas isso não era nada
fora do comum. Rara era uma noite sem tambores.
— Está falando dos tambores?
— Sim. Os tambores tão cantando todas as noites. Sobre a revolta.
— Revolta?
— Têm escravos fugidos morando nas cavernas da montanha,
chamam eles de maruns e eles ganham força da cratera do Mont
Pelée. Eles descem às escondidas para as senzalas de noite e di‑
zem aos escravos: “Revoltem‑se!” Eles dizem que devem lutar
pela liberdade.
— Liberdade?
Ela amava o som dessa palavra: era a mais bela que conhecia.
— Quando chegar a revolta, todos os blancs vão ser mortos. Eles
vão queimar as casas-grandes — todos os prédios — até os alicer‑
ces. Foi mais por isso que eu vim te contar.
— E os amos não suspeitam de nada?
— Quando a raposa não consegue saltar e pegar as uvas, diz que
tão verdes. Escute! São tambores Ibos. Os escravos do teu pai são
todos Ibos. Tu sabe de onde eles tiram esses olhos amarelos deles?
Angelique recordou‑se de Chloé, sua pele acobreada e seus olhos
de um amarelo‑esverdeado e assentiu com a cabeça.
— Aqui eles são gente tímida, melancólica, porque se sentem
desolados por terem sido arrancados para longe de casa. Mas na
África? Eles são canibais!
Ela estremeceu e ele riu ao ver como ficara assustada, seus dentes
brancos ao luar.
— E você é... Ibo?
— Não, guria! — disse ele, orgulhosamente. — Eu sou Mandin‑
go! Veja o meu cabelo, como é macio e sedoso. Claro que não, eu
não sou Ibo de jeito nenhum!
— Então você não sabe o que dizem esses tambores...
— Sei o suficiente — contrariou‑a. — Escuta o que te digo. É a
história deles. Eles se levantam uma noite e tocam os fogos. Quan‑
do o tempo chega, eu te conto. Aí tu pode avisar o teu pai, e...
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Ela olhou para o céu e viu uma longa coluna de fumaça escura
subindo de um dos galpões. Através das janelas da casa do engenho
ela enxergou as chamas refletidas nos fundos arredondados de
imensas caldeiras de cobre. No excitamento daquele primeiro dia
da colheita da cana, ela havia sido completamente esquecida.
Finalmente, já no fim da tarde, Thaïs apareceu com uma bande‑
ja de comida. Ela parecia exausta, suas roupas estavam imundas e,
depois de lhe entregar a bandeja, ela desabou em um banquinho
que encontrou num dos cantos do quarto, deixando cair a cabeça
contra o peito.
— Thaïs? O que aconteceu com você? — indagou Angelique.
— Elis mi mandô cortá cana, minina, i isso acabô comigu.
Ela ergueu as mãos inchadas com cortes e vergões rubros de san‑
gue coagulado. Angelique prendeu a respiração.
— Mas por que você foi mandada para os campos? Sua função
não é cuidar de mim?
— Tudo nóis fumo; tudo nóis tá imbaixo du chicoti agora... —
explicou ela, erguendo um olhar triste para Angelique.
Angelique percebeu então que as exigências da colheita consu‑
miriam todo o tempo e energia de todos os moradores do canavial
e que ela seria ignorada durante esse tempo.
* * *
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— Mas por quê? Por que ele fez isso com você?
— Elis deu orde pra pará as caldera, mas era tardi dimais. O
xarope ficô duro qui nem pedra e si estragô. Bem qui eu dizeu, tá na
hora de fechá us fogo, mas u homi encarregadu, o Lazaire, eli tinha
a várvula nas mão e eli dizeu num tá na hora ainda. Sim, eu diz
preli, tá na hora, sim! Agora! Mais o Lazaire mi mandô calá minha
boca preta i num feiz! Aí as ispuma ficaro tão arta di fervê, qui sai‑
ro por fora das caldera i eu miscapei, mas o Lazaire ficô todo que‑
mado! I u Sinhô mandô batê em mim pur estragá a fervura!
O coração de Angelique sentiu uma piedade indizível e ela foi até
Thaïs e se sentou no chão ao lado dela, colocando a cabeça no seu colo.
— Pobrezinha da Thaïs — disse ela —, estou com tanta pena de
você! Ele é um homem duro e cruel e eu tenho ódio dele!
Um pensamento percorreu sua mente e ela achou que poderia
servir de algum modo para consolar Thaïs.
— Thaïs, você sabe que há revolta no ar? O som dos tambores...
A escrava não lhe deu resposta; mas ela sentiu como seus múscu‑
los se enrijeciam e viu como ela prendia a respiração. Angelique a
contemplou em expectativa, mas Thaïs apenas soltou o ar dos pul‑
mões e deu um longo suspiro.
— Num, minina, num tem revolta ninhuma. Us escravu si rebe‑
la, uns morre a tiro, otrus são inforcado ou coisa pior. Quando us
iscravo de Trinité si rebelaro, elis chamaro as milícia. Num tem es‑
perança contra us backrá. Num tem orguio mais forti que mosque‑
tis. Tá tudo mortu agora, vinte iscravo corajosu, tudo massacradu.
I us úrtimo marum qui elis pegaru, vancê sabe u qui fizeru? Pusero
elis pindurado numas gaiola até secá no ventu.
— Mas os tambores? Você não sabe o que eles dizem? Eu os es‑
cutei de novo durante toda a noite passada.
— Tambores canta como a montanha pelada resmunga, fala
muito i num isplodi. Minina, us iscravu tá tudo condenado a tra‑
baiá inté morrê i fica tudo interradu nu meio dus pé di cana.
Angelique ficou ali sentada, seus braços estendidos sobre o colo
de Thaïs e sentia seu coração encolher aos poucos. Ela teve uma
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* * *
Certa manhã, Angelique escutou seu pai sair a cavalo pelo portão
bem cedo e, imaginando porque o dia estava tão quieto, ela correu
para a janela e viu que a porta da moenda estava fechada e que as
pás estavam girando lentamente no ar parado. Os escravos estavam
sentados em grupinhos, pelo pátio ou encostados nas paredes,
exaustos e desanimados. Àquela hora, já estava mortalmente quente
e ela se sentia inquieta e ainda mais aborrecida que de costume.
Ela decidiu aproveitar a oportunidade para vaguear pelo castelo e,
depois de procurar por mais ou menos uma hora, descobriu que esta‑
va diante da porta que dava para os aposentos de seu pai. Tentada pela
possibilidade de descobrir alguma pista quanto ao desaparecimento
de sua mãe, ela empurrou a porta pesada, que se abriu facilmente.
Viu um quarto grande e escuro com uma imensa cama de dos‑
sel. Lençóis sujos e amontoados se enroscavam sobre o colchão e,
chegando perto, viu que o cortinado era de veludo esgarçado, pen‑
durado em um ângulo frouxo da armação superior. Uma poltrona
estava enterrada sob uma pilha de roupas imundas e o casaco mal‑
cheiroso que seu pai costumava usar estava colocado no seu encos‑
to. Mas havia uma escrivaninha imponente, coberta de papéis.
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— O que foi? O que aconteceu? Mas por que diabo ele fez isso?
— Sinhô, ele tá preso! Nóis tem de separá as roda!
— O quê? Mas não! — decretou furiosamente. — Eu não vou
deixar pararem a moenda! Continuem trabalhando, seus imbecis
amaldiçoados! Achem um machado! Cortem fora!
O moinho continuou trovejando e as mós guinchavam, mas os
uivos do escravo se escutavam ainda mais alto e Angelique viu através
da porta aberta o machado subir e descer. O coto ensanguentado
sacudiu‑se para os lados e pareceu golpear o ar em vão, enquanto o
homem em agonia apertava o braço contra o peito e caía ajoelhado,
seus companheiros reunidos a seu redor em um bando aterrorizado.
Angelique ficou olhando enquanto carregavam o mutilado e,
quando retornou para sua cama, permaneceu horas acordada, sua
mente um delírio de terrores entrecortados. O ar vibrava com o
calor e o som agudo das pás do moinho ou cavernoso da moenda,
como uma enorme prensa roçando em escamas aguçadas, parecia
arranhar‑lhe a pele e esmagar seus próprios ossos.
Subitamente, ela escutou alguém caminhando pelo corredor em
direção à sua porta e seu coração deu um pulo. Alguma coisa estava
arranhando a madeira do assoalho, deslizando e se movendo para
frente e ela conseguia escutar sua respiração fraca e laboriosa. Ela
caminhou em silêncio até a porta e encaixou a tranca na alça de ferro
aparafusada na parede do lado oposto da porta, depois se deitou no‑
vamente, louca de medo, olhando para a porta trancada, sem se mo‑
ver ou ousar emitir o menor som, até que seus músculos contraídos
doessem sem alívio. A respiração parecia fanhosa e o trinco externo
foi sacudido por mão invisível. Pela primeira vez desde que fora apri‑
sionada, ela estava feliz por estar trancada, porque a porta não cedeu
e, após um longo momento, ela escutou o som de passos afastar‑se.
* * *
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Por mais que o capataz não lhes poupasse a chibata, parecia que
toda a sua energia tinha sido esvaziada. Eles se moviam lentamente,
arrastando os pés e as pilhas de cana‑de‑açúcar se acumulavam
contra as paredes, sem serem moídas. Os tambores palpitavam até
antes da aurora, só parando quando a lua se punha e o céu assumia
aquela escuridão mais profunda que vem antes do amanhecer.
Houve uma ocasião em que, por volta da meia‑noite, ela foi acor‑
dada por uma cavalgada furiosa; o portão foi aberto e seu pai entrou
às pressas no pátio, acompanhado por um grupo de outros senhores
de engenho. Foram até uma peça por trás da sala das caldeiras, cuja
porta de metal ela sempre vira trancada com cadeados e correntes
grossas e, quando saíram, cada um deles trazia um mosquete e um
saco de munição, berrando uns para os outros, sem tentar manter
controladas suas vozes enlouquecidas de rum e de raiva:
— Eles mataram a família inteira!
— Sua mulher e as três filhas!
— Cortaram‑nas em pedaços!
— Tocaram fogo no canavial!
Entre pragas terríveis e o tinido dos cascos sobre as lajes do pavi‑
mento, eles partiram novamente, outros tantos trovões estrada abaixo.
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apoiada nos corrimões e saindo para a noite. Era a primeira vez que
ela se aproximava da moenda e ficou abalada pelo tamanho da má‑
quina e o ruído que ela produzia. Escravos exaustos, nus até a cin‑
tura, músculos tremendo de cansaço, enfiavam as hastes frouxas
entre os cilindros e o suco escorria para um cano de chumbo que o
conduzia até a sala das caldeiras.
— Vem cá! — gritou Césaire, puxando‑a para a sala das caldei‑
ras. Thaïs e outra escrava ainda mais velha estavam debruçadas so‑
bre uma grande caldeira de cobre, mexendo o xarope dourado com
longas pás de madeira grossa. Estavam tão amortecidas pelo cansa‑
ço, que nem sequer ergueram as cabeças. Bolhas subiam e estoura‑
vam na superfície do melado e uma espuma branca se amontoava
em um círculo ao redor das beiradas. O ar estava pingando vapor.
Césaire olhou em volta e finalmente conduziu Angelique até o can‑
to mais distante.
— A rebelião está começando! — disse ele, com um olhar selva‑
gem e ela podia ver o suor se acumulando em sua testa.
— Meu pai saiu para se reunir às milícias — respondeu ela. —
Ele veio buscar mosquetes e a munição que tinha escondido.
— Não, não, isso não é nada — disse ele. — Aqueles escravos
idiotas de Sainte‑Marie planejaram tomar o canavial de lá. Tavam
loucos de ódio. Que nem idiotas, eles foram em frente! Invadiram a
casa‑grande para roubar a prataria! Ah, sim e vão pagar por ela com
suas vidas, as pobres almas!
— Eles vão morrer todos?
— Sim, é claro, todos, até o último. Mas foi um golpe de sorte.
Os soldados vão massacrar eles e pensar que apagaram o fogo.
— Mas então não haverá revolta alguma...
— Ai, guria, mas tu nem sonha como vai ser essa! Os maruns da
montanha estão armando escravos pela ilha inteira. A conspiração
ronca fundo, que nem o fogo no coração de Mont Pelée. Amanhã de
noite, eles vão incendiar Saint‑Pierre! Vão matar centenas, milha‑
res, talvez todos os grands‑blancs. Chegou a hora do homem negro.
Ele finalmente vai ganhar o que é dele!
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que está vendo! — seu rosto foi dividido por um sorriso de satisfa‑
ção maligna. — Você sabe o que é isto? É morte, menina, morte de
gente! Estas mãos é que causaram!
— Não me toque — disse ela, com nojo. — Nem chegue per‑
to de mim!
— Ora, Angelique, meu anjo — protestou ele —, por que você me
odeia tanto? Eu não fui bom para você? Não lhe dei uma porção de coi‑
sas bonitas? — queixou‑se, seu estado de ânimo mudando rapidamente.
Ela não respondeu, mas encolheu‑se no canto mais distante da
cabeceira da cama, abraçando os joelhos em posição fetal e o en‑
carou. A única coisa de que tinha consciência era das ondas de
rancor que fluíam através dela, que a enchiam como uma poça
escura da água que escorria para fora de uma gruta quando a maré
baixa recuava.
— Eu só queria te dizer, bonequinha, que salvei tua vida esta
noite. Isso não faz com que você goste um pouco mais de mim?
Aqueles bastardos iam vir te pegar, mas eu interrompi a marcha
deles — eu e meus homens — e torci os pescoços dos desgraçados
com as mãos nuas. Deus, que coisa excitante é matar um homem,
sentir seu coração parar abaixo de teus pulsos!
Ele baixou os olhos para as próprias mãos, girando‑as no ar
diante das vistas, maravilhado pelo poder que haviam demonstra‑
do. Depois riu de novo para ela.
— Venha me dar um beijo pelo meu esforço — disse ele, dando
um passo em sua direção.
— Fique longe de mim! — sua voz saiu sibilante, tão mortal que
ele gelou onde estava.
— Mas o que te deixa tão rigorosa? — indagou ele, meio surpre‑
so. — Ah, mas... eu sei! É que você tem meu sangue e com ele her‑
dou a minha raiva! Mas por Deus, eu gosto desse temperamento!
Ele me enraivece, mas também acende um fogo dentro de mim, ah,
acende! Vamos, lute comigo, minha bela, quero sentir você lutar!
Ele mergulhou em direção dela e agarrou‑lhe um dos braços,
puxando contra ele o corpo que se debatia, rindo e mergulhando a
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na moenda. Ele lhes disse que, caso não o defendessem, você es‑
taria condenado!
— Você escutou tudo isso? — indagou ele, o efeito da be‑
bida subitamente escorrendo de seu rosto, sua expressão dura
e ansiosa.
— Amanhã de noite — disse ela, calmamente. — Os escravos de
toda a Martinica vão incendiar Saint‑Pierre!
Sentiu uma grande satisfação ao ver como o rosto de seu pai em‑
palidecia ao ouvir suas palavras e seus lábios tremerem. Ele a enca‑
rou por mais um momento e então girou nos calcanhares e saiu do
quarto aos tropeções.
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uma das traves que sustentavam o teto. Suas asas enrugadas esta‑
vam dobradas às suas costas, sua pele reluzia à chama da vela e seus
olhos vermelhos como duas contas de coral a encaravam com um
reconhecimento tranquilo. Estremecendo, ela deixou o animal
onde estava e saiu do quarto sem fazer ruído.
* * *
Mais tarde, nesse mesmo dia, quando ela escrevia em seu diário,
alguém lhe bateu à porta. A chave girou e, quando a porta se abriu,
seu pai estava parado ali. Seus músculos se contraíram, mas para
sua surpresa, a atitude de seu pai era contrita, até mesmo demons‑
trando remorso. O inferno que fervia nas profundezas de seu peito
parecia estar tranquilo agora e ele estava em pé diante dela com os
ombros erguidos como para proteger a cabeça e suas mãos imensas
balançavam frouxas de seus lados.
— Posso falar com você, Angelique? — ele pediu.
— Eu não vou representar essa cerimônia hoje — disse ela, sem
rodeios. — É uma coisa estúpida e falsa e eu estou completamente
enjoada disso. Nem pretendo fazer mais nada por você, nunca, ja‑
mais em minha vida.
— Eu decidi deixar você partir — foi a resposta dele.
— Como assim? — ela redarguiu, estupefata.
— Você tem toda a razão — prosseguiu ele. — Eu a tratei muito
mal e realmente estou arrependido. Você tem toda a razão do mun‑
do para estar ressentida comigo. Mas eu tenho muita coisa a temer
hoje e só lhe peço que me ajude mais uma vez.
— Não! — recusou‑se firmemente. — Eu o odeio! Você é cruel e
não passa de um assassino! Você não pode me obrigar.
— Escute, Angelique. Eu descobri o paradeiro de sua mãe. Ela está
trabalhando em um canavial de Trinité, como médica no hospital
dos escravos. Prometo que a levarei amanhã até onde ela se encontra.
Angelique mal conseguia crer nas palavras dele. A alegria corria
por todo o seu corpo.
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em uma súplica que mais parecia uma prece dirigida a eles. Angeli‑
que ficou espantadíssima ao ver as lágrimas que lhe escorriam dos
olhos. Sem largar seu braço, seu pai recuou no ar um pé calçado de
bota e acertou um pontapé violento na cabeça do padre, atirando
no chão o pobre homem. Sua lanterna saltou e se quebrou contra as
pedras e a chama se apagou.
— Pai! — gritou ela, assombrada com sua crueldade, enquanto
fiapos de medo começavam a se estender ao redor de seu coração.
Mas ele levou Angelique aos puxões através do pátio escuro e em
direção à capela.
Os adoradores já estavam imersos na cerimônia e ela foi assalta‑
da pela onda de calor que emanava de seus corpos retorcidos e da
ressonância dos tambores, que dentro daquele espaço fechado pare‑
ciam lhe amortecer os próprios ossos. Os corpos negros e desnudos
dos dançarinos a envolveram num casulo escuro e ela tremeu com
o poder de sua adoração. Ela sentiu uma lascívia controlada ema‑
nando deles, mais fria e mais assustadora do que jamais sentira an‑
tes. Seu pai arrastou‑a até o altar e obrigou‑a a se encostar nele.
O fogo estava reduzido a carvões brilhantes, o prato de porcelana
postado a seu lado, limpo e brilhante e ela pensou no bode que deve‑
ria estar atado ali à espera de ser sacrificado, mas que não estava lá.
Ondas de pânico começaram a adejar em seu peito. A cantilena se
ergueu numa dissonância lamentosa, as melodias melancólicas e re‑
petitivas. As chamas de mil velas lançavam sombras nas paredes. Su‑
bitamente, seu pai agarrou‑lhe as mãos e puxou‑lhe os dois braços
para as costas. Ela gritou de dor enquanto ele lhe amarrava os punhos
com uma rápida volta de corda, dando um nó seguido de outros.
Um cálice foi erguido até seus lábios, mas ela apenas provou e
cuspiu de volta o líquido escaldante para dentro do recipiente. Ela
não queria ser drogada. Estremeceu, sentindo os nós se apertarem
mais e mais. Por que ela estava assim atada? E então, com um estre‑
meção que a sacudiu até a alma, ela finalmente entendeu. Um medo
mais frígido que qualquer coisa que sentira até então a prendeu en‑
tre seus dedos gélidos.
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Ela nadou, puxando Césaire com uma das mãos. Ele cuspia água:
— Ainda bem que tu nada bastante pra nós dois!
E eles flutuaram numa corrente invisível, protegidos pelas ma‑
rolas, enquanto as luzes de bordo da escuna balouçante subiam e
depois desciam, desaparecendo da vista por alguns segundos.
Eles nadavam um pouco, depois flutuavam abraçados, até o mo‑
mento em que finalmente tocaram a madeira coberta de cracas
do casco da escuna. Exaustos, encontraram uma escada de corda
e subiram a bordo.
A quietude do tombadilho era inesperada.
— Onde está todo mundo? — cochichou Angelique.
Césaire estava atirado nas tábuas do tombadilho, respirando
com dificuldade. Então eles escutaram risos grosseiros subindo do
refeitório do barco.
— Eles estão jogando com o Velho Papai Rum — resmungou o
rapaz. Finalmente, ele sentou no piso, olhou para ela e viu que esta‑
va tremendo, seu vestido arrancado pelas vagas. — Olha, é melhor
tu botar estas roupas — falou, retirando as suas e ficando desnudo.
— Melhor eu ficar pelado do que tu. Os marinheiros não gostam de
mulheres a bordo, para um marinheirinho experiente feito eu tá
tudo bem, mesmo que seja preto. Esconde o teu cabelo pra tu virar
rapaz — completou, estendendo‑lhe a touca de lã tricotada que
guardava no bolso.
Ela tentou não olhar para o pequeno pênis de Césaire, encolhido
e acinzentado pela água, mas ficou surpreendida ao ver como era
magro o resto de seu corpo, tremendo na brisa enquanto esperava
em pé ao lado dela.
— Vem logo! — disse ele, e a moça se levantou para acompanhá
‑lo ao longo do tombadilho até que encontraram uma pequena es‑
cotilha que dava para o convés inferior.
— Entra aqui! — disse ele, baixinho. — Vou ver se encontro o
capitão. Ele estava esperando que eu chegasse num bote, com uma
lanterna na proa e escutaria teu pai gritando um “Ô de bordo!” bem
alto. O teu velho ia pagar pela travessia dele.
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— Venha comigo...
— Diga‑me quem você é... — sussurrou em resposta.
Um riso paciente e sem alegria, que poderia ser o som dos elos da
corrente da âncora se esfregando uns contra os outros, ecoou em
seus ouvidos, enquanto ele murmurava:
— Mas você sabe quem eu sou. Você sempre soube, minha linda.
Então, por que pergunta? Se quiser, posso dar‑lhe um nome, mas
isto a satisfará?
— Sim...
— Eu sou Aquele que Vive para Você, que anseia só por você, o
Deus de Chifres...
Ela estremeceu.
— Obscuro, deixe‑me.
Sua respiração era como os gases sufocantes do vulcão Mont Pe‑
lée, que às vezes a atmosfera carregada impelia para as praias, oleo‑
sa e pungente, e agora ela podia vê‑lo, enquanto aquele mar de
veludo preto se transformava em vestes esvoaçantes e seus braços
possantes abraçavam as tábuas que firmavam a carena. Seus olhos
eram carvões em fogo e sua pele tão macia quanto obsidiana polida,
mas sua voz era o flutuar espumante da escuna enquanto a maré se
esbatia contra seu casco.
— Fui eu que lhe dei o poder. Você agora é minha serva. Mais
uma vez.
— Não foi você. Fui eu mesma que fiz aquilo — insistiu Angelique.
— Como você conseguiu matar seu pai?
— Eu senti o poder dentro de mim. Eu mesma fiz a escolha.
— De me usar.
— Eu sei quem você é de verdade! O Mal personificado! Te esconjuro!
O barco estalou e estremeceu como se tivesse batido em um ban‑
co de areia e o casco se encolheu às proporções de antes. A forma
musculosa e brilhante se misturou às tábuas da carena e era agora
novamente o gemido dos escravos, retorcendo‑se em suas cadeias.
Mas a voz chiou novamente em seus ouvidos:
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que não iam mais poder comerciar ali por uns tempos. Eles não
podiam mais descarregar e vender o tabaco que trazem a bordo
no porto grande da cidade e então decidiram levantar âncora e
partir para o outro lado do Mar das Caraíbas... Eles querem pe‑
gar mais escravos por lá, os que já têm não acham suficientes para
pagar a viagem. Eles discutiram durante horas e finalmente se
decidiram a velejar.
— Mas quando você conversou com o capitão? — indagou An‑
gelique, enquanto via outra madeixa de seu cabelo cair em seu colo.
Césaire estava agachado junto dela e esfregava a lâmina em seus
cachos como se estivesse serrando madeira.
— Uau, essa foi a parte mais assustadora. Eu tava lá agachadinho
na janela, escutando tudo e pensando em qual seria o melhor plano
a tomar, quando um marinheiro me apareceu por trás e me agarrou
pela orelha! “O que é que tu tá fazendo aqui, guri? E nu em pelo,
ainda por cima?”, ele gritou, como se tivesse pegado uma cabra da
montanha e pretendesse enfiar num espeto para assar. Aí eu disse:
“Eu tenho permissão para subir a bordo, senhor!”, e ele diz: “De
quem?” E eu digo: “Do capitão”. E aí ele me arrastou, pelado como
um urubu, escada abaixo e até o alojamento do capitão. Ele disse ao
capitão que eu era um clandestino!
— Deus do céu! O que eles fazem com clandestinos? — inter‑
rompeu Angelique.
— Bem, o capitão já estava pensando em mandar me jogar pela
amurada, quando eu disse: “Senhor Capitão, eu teria o maior pra‑
zer de subir pelo seu mastro principal e consertar aquela vela real
que tá rasgada, patrão!” Eu nem sabia se havia alguma vela rasgada,
mas achei que podia tentar a sorte, porque... Ora, sempre tem uma
vela rasgada! — explicou Césaire. — Ele não acreditou que eu pu‑
desse subir até lá em cima e disse que os rapazes de cor têm medo
das alturas e aí eu disse: “Experimente pra eu ver!” Assim que a luz
se abriu, todos vieram ao tombadilho para me ver tentando, ou pro‑
vavelmente para me ver cair, o que seria um baita divertimento
para eles. Eles mal sabiam que eu trepo nas escadas de corda melhor
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Ele tinha lutado com bravura? Acreditava que sim, porém te‑
merária e desajeitadamente. Guardava uma lembrança feroz de
ter feito um talho na cara de uma das bestas e escutar seu uivo de
surpresa. O combate era uma mistura incompreensível de espa‑
das e cutelos cintilando, gritos de dor e sim, naturalmente, ele
recordava de haver pensado que os bucaneiros não eram cava‑
lheiros, porque não ficavam em pé para combater como soldados,
mas atacavam pela frente só como distração, enquanto um de
seus camaradas depravados se esgueirava por trás e apunhalava
um honesto marinheiro pelas costas. Ele recordava o tombadilho
traiçoeiro, feito escorregadio pelo sangue derramado e um braço
cortado, e depois... será que tinha sido mesmo verdade? Uma ca‑
beça cortada rente por um único golpe de uma lâmina prodigio‑
sa. Ele permanecera determinado a manter as costas coladas ao
mastro principal, para proteger‑se de um ataque por trás e se de‑
fender melhor dos rufiões. Também recordava talhar o ar à sua
frente com sua espada, em suas fúteis tentativas de repelir aqueles
experientes lutadores.
Eles tinham sido numerosos demais, lançaram longe sua espada
e o amarraram ao mastro, de onde ele foi forçado a assistir enquan‑
to seu capitão arguto e cheio de recursos, aquele mesmo cavalheiro
corajoso que perdera três dedos para outro bando de flibusteiros e
mesmo assim vencera aquela outra batalha, era desta vez massacra‑
do pelos bastardos sedentos de sangue, como um touro sacrificado
em um antigo holocausto.
Inicialmente, ele não tivera qualquer explicação para o fato de os
piratas se decidirem a poupá‑lo. Mas depois que o barco fora toma‑
do e a maioria de seus camaradas estavam mortos, ele escutou os
fora da lei discutindo entre si. Um de seus companheiros oficiais se
havia rendido após negociar seu resgate, somente para perder a vida
logo depois, porque não havia honra entre esses ladrões, por meio
da informação de que havia a bordo o filho de um rico negociante,
que pagaria uma bela soma por ele, caso fosse poupado e entregue
ileso. Alguns deles tinham acreditado no que ele lhes dissera.
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— Você o queimou?
— Não. Fiquei com medo de queimá‑lo — confessou Júlia.
— Então, onde ele está?
Ele mal se podia controlar. Incrivelmente, ela fincou o pé.
— Não tenho a intenção de lhe dizer.
— Mas você não entende? Eu tenho de saber!
Uma frustração, totalmente desproporcionada com a situação, o
envolveu. Subitamente, estava tão enraivecido, que se descobriu de‑
bruçado sobre ela, seus dedos cravados em seus ombros, sacudindo
‑a e apertando cada vez mais forte.
— Onde é que está? Onde?
— Barnabas, pare! Por favor...
Abruptamente, ele a soltou, estupefato com sua própria reação.
O que estava acontecendo com ele? Contemplou suas mãos com
incredulidade.
— Júlia — ele falou com voz trêmula —, sinto muito, sinto
muito mesmo. Não sei o que deu em mim, porque eu me zan‑
guei tanto...
Caminhou de volta para a cama desarrumada e sentou‑se, dei‑
xando pender o rosto entre as mãos. Quando ergueu os olhos nova‑
mente, sua expressão estava faminta e miserável.
— É só porque eu... por favor, entenda... eu preciso dele de vol‑
ta... por favor... Perdoe‑me.
Júlia suspirou.
— Está certo — confessou. — Já que precisa tanto saber, eu lhe
direi. Eu enterrei a coisa, lá no cemitério, sob a lápide dela.
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seu ser era pela bondade, a paz que somente um coração livre de
remorso poderia conceder.
Que fique aí mesmo! Subitamente, um sentimento de grande alí‑
vio lhe percorreu o corpo inteiro e uma onda de pura felicidade
inundou‑lhe o peito. Tremendo em consequência de sua decisão,
careteando ao sentir nas mãos a terra pegajosa, limosa e fria, ele
colocou a lama e as pedrinhas de volta em cima do livrinho e as
cobriu com a touceira de capim que havia arrancado outra vez. En‑
tão ele se ergueu, apertou a terra firmemente com a sola de suas
botas, girou nos calcanhares e, seu passo incerto mas determinado,
caminhou para fora do cemitério.
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Eu lhe disse:
— Ensine‑me a fazer fogo.
Ele me perguntou por que eu pensava que ele deveria me ensinar.
O que eu havia visto. E eu lhe contei tudo o que sabia. Eu lhe falei de
Chloé e de Erzulie e da última cerimônia em que eu tinha revirado a
faca nas mãos de meu pai. Recitei‑lhe os cânticos do livro de despa‑
chos e relatei quais feitiços já dominava. Ele escutou em silêncio até
que eu terminei. Então me disse: “Você não sabe nada, criança. Seu
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Ele me disse que o vodu veio da África, mas que os franceses o chamam
de voire — ou seja, “ver” e Dieu, “Deus” — “voir Dieu” ou “ver a
Deus”, mas eu lhe disse que já escutara dizer “voir dans”, que significa
“ver dentro”. Pensei que era muito importante saber qual era o verda‑
deiro significado, mas ele disse que não tinha a menor importância. Ele
me perguntou por que eu tinha decorado as invocações africanas.
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adoram ser invocados. A não ser, é claro, que sejam zumbis. Então
você consegue um escravo que nunca se revolta”.
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Barnabas não lhe falara uma palavra racional desde sua discus‑
são; ele estivera tão doente, que tudo quanto dizia era efeito da
febre. Ele parecia oscilar entre uma culpa penitente e uma determi‑
nação furiosa. “Nunca mais! Nunca mais!”, ele gritava, ao sair de
um sono agitado. Ou ele tomaria uma de suas mãos nas dele e com
olhos esgazeados lhe suplicava que o perdoasse, dizendo: “Júlia, fi‑
que comigo, não me abandone!”. Momentos depois, ele olhava fixa‑
mente para o ar e berrava o mais alto que podia: “Saia de perto de
mim! Fique longe de mim!”. Ela se encolhia de medo, certa de que
ele manifestava a raiva que estava sentindo dela.
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mãos eram visíveis sob a pele. Suas unhas eram longas e amareladas
e era realmente possível cheirar o odor de guano de morcego que ema‑
nava de seu corpo. Seu casaco estava coberto de terra e seu colarinho
em forma de rufo pregueado cheio de mofo e de manchas de ferrugem.
Estava dormindo tão pacificamente, que eu até mesmo senti uma cer‑
ta relutância em lhe fazer mal.
Os huncis se aproximaram. “Hoje você vai matar a própria Mor‑
te.” Eu coloquei a ponta da estaca sobre o peito dele e pensei somente
em como eu era magra, imaginando de onde tiraria a força para o
perfurar e cravar a estaca em seu coração. Eu só dispunha do peso de
meu próprio corpo e assim me ergui e empurrei com toda a força a
ponta de madeira aguçada, sentindo que ela perfurava o tecido de seu
casaco e as diversas camadas de pele, cada seção dando passagem
com um pequeno estremecimento. O monstro gemeu. A estaca bateu
em uma costela e eu a desviei para encontrar uma entrada onde o
tecido fosse mais mole.
Nesse momento, o vampiro abriu os olhos. Seu olhar hipnótico
provocou um tremor aterrorizado através de meu corpo. Podia sentir
como ele drenava minha força com o poder de sua vontade, enquanto
seus olhos me queimavam até a alma e então ele ergueu as mãos po‑
derosas para segurar a estaca. Sua boca se abriu para proferir as pa‑
lavras que me fariam parar e seus lábios se arreganharam para
mostrar as presas, ao mesmo tempo brilhando de brancura e cobertas
de uma espécie de lodo. Eu não conseguia mais empurrar a estaca.
Então o Bokor pulou‑me nas costas e todo o ar saiu de meus pul‑
mões, enquanto ele punha todo o seu peso no cabo da estaca. Nossos
corpos se chocaram com o cadáver vivo do vampiro e quando a estaca
lhe atravessou o coração, o sangue jorrou em jatos e me cobriu. Eu caí
sobre ele, minha face junto de seu rosto, minha respiração sugando o
estertor prolongado de uma traqueia afogada em sangue.
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fraco pela perda de sangue. Ela teve medo que a mordida do vampi‑
ro lhe causasse uma recaída, pois Barnabas parecia estar travando
uma batalha interior entre demônios opostos, suas emoções em um
torvelinho, sua própria natureza se alimentando de si mesma.
A maior parte do tempo, ela tinha certeza de que ele não sabia
quem era ou onde estava, e delirava a respeito de um navio atacado
por piratas e dele próprio deitado em um porão, onde fora posto a
ferros. Em outros períodos, ele parecia mais calmo e falava com al‑
guém em um tom de voz gentil, alguma pessoa a quem amava.
Incapaz de se impedir, Júlia continuou a secar e a ler parte do diário.
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se tornar mambô. Você é uma jovem branca. Como poderá olhar para
dentro da alma africana? Você simplesmente quer fazer a sua vonta‑
de, como todas as mulheres vaidosas. Você quer truques, encanta‑
mentos simples e bobos. Você quer brincar com os outros como se
fossem bonecos de trapo. Isso não é poder, é apenas uma interferência
tola, uma baboseira infantil.
— Eu vou lhe confessar por que tenho tanto medo. Tenho começa‑
do a pensar que estou presa ao Diabo.
— O Diabo?
— Sim.
— E você se quer ver livre dele.
— Sim... livre...
— Mas o Diabo é somente outro loá e nem ao menos é muito in‑
teressante. É só um outro espírito luminoso. Os loás nunca lhe farão
mal algum, a não ser que você lhes permita. Alimente‑os e dê‑lhes
bebida e eles nunca a incomodarão. Bata sobre o vevé com o asson e o
loá é obrigado a descer. Você sabe disso. Todos os deuses são somente
o resultado de nossa própria imaginação e o Diabo não é diferente.
— Tem certeza disso?
— Eu nunca tenho certeza de nada.
— Mas eu já o enxerguei e já falei com ele.
— Eu nunca disse que ele não existia.
— Então, como é que eu posso me libertar?
— Tudo bem, responda‑me isto: o que é a feitiçaria, se é que já sabe?
— Você sempre me disse. É interferência, transformação.
— Como é que funciona?
— Encontra‑se o ponto mais fraco e é nesse lugar que se lança o poder.
— Bem, você acabou de responder sua própria pergunta. É assim
que você poderá se libertar seja do que for.
— Mas o Diabo tem um ponto fraco? E qual é?
— Mas ele não é o Deus de Chifres?
O Bokor deu nova risadinha infantil, seu corpo de pepino‑do
‑mar, sacudindo‑se todo com o seu divertimento.
— Mas o que quer dizer isso?
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Tudo o que eu lhe disser, você esquecerá, porque não vai conseguir
entender nada. Mas eu vou lhe dizer de qualquer maneira, porque
talvez um dia consiga lembrar. A Morte é o único poder e o Diabo é a
morte. Todo o vudum gira ao redor da morte. A morte é o centro do
vudum. Quando você aceitar a morte e não se prender a nada mais
na vida, então o seu poder emergirá e o vudum a guiará.
“Você é capaz de fazer isso agora? Consegue alcançar a indiferença?
Eu penso que não. Eu acho que você vai passar a vida inteira obcecada
por alguma coisa. Você não tem o caráter de uma mambô. Você irá
prender‑se à vida e ignorar a morte de onde ela provém. Você buscará o
amor e ele se transformará em ciúme e o ciúme em rancor e este busca‑
rá vingança, porque por baixo de todas as suas cores do arco‑íris existe
uma poça escura de desespero e porque o seu caminho é o caminho do
desejo. Você diz que Erzulie é sua deusa, mas o seu lado especular é a
Erzulie Rouge. Qual o lado que você escolherá? O lírio ou a rosa? A
perfeita inocência ou a profunda compreensão? A grande deusa do
vodu tem a Morte sentada do seu lado. O momento que cerca o mo‑
mento. A magia que está dentro da magia. O poder que está no reflexo
do espelho. Muitos anos se passarão até que você perceba, se é que um
dia perceberá, que está condenada por sua obsessão e que o maior de
todos os poderes consiste em não se querer mais nada.”
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ngelique estava tão imunda que parecia impossível que por baixo
da sujeira tivesse pele clara. A imundície tinha entrado em seus
poros e sua pele inteira se tornara cor de cinza. Havia fuligem alojada
sob suas unhas e seus cabelos amarelos estavam bem escondidos, en‑
rolados em um pano esfarrapado e oleoso. Ela estava tão magra que se
dobrava ao se deitar no chão de terra, seus ossos soltos, quase balan‑
çando dentro de seu vestido de algodão esfiapado e cheio de buracos.
Césaire jamais a teria reconhecido se os seus olhos não tivessem dar‑
dejado em sua direção, como opalas de fogo cintilando na poeira.
— Eles me disseram que eu te encontraria aqui — disse ele,
franzindo o nariz por causa dos cheiros de fumaça e de ervas quei‑
madas. — Eu não queria acreditá neles.
— Que mais eles lhe contaram?
— Que eles treme de medo por causa do teu hounfort. Que tu
não é cruel, mas que tu é cruelmente boa. Que tua magia é como o
relâmpago, nunca se sabe quando chega, nunca se sabe qual o alvo
que irá atingir. Dizem ter visto centelhas saltando de teus dedo e
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que tuas poções não são segura, porque algumas vezes curam e ou‑
tras vezes aleijam.
— Erzulie dorme comigo agora, Césaire — revelou ela. — A cor
de minha pele não é mais uma barreira para sua vinda. A loá entra
dentro de mim quando eu respiro.
— A Erzulie? A deusa amada por sua pureza?
— Ah, não, a outra Erzulie. A sua imagem no espelho. Erzulie
Rouge, que é muito mais poderosa e se alimenta de almas humanas.
Césaire franziu a testa e caminhou para mais perto de onde ela
se assentava.
— O que tu tá fazendo no meio dessa gente toda, Angelique?
— O que quer dizer? Eu moro aqui.
— Por quê?
— E aonde mais eu iria? Eu cuido dos houncis e eles cuidam de
mim e me trazem comida.
— E é tão importante pra ti sê uma pequena deusa? Vivê neste
lugar imundo? As maçãs podre de um barril não deixam escolha
para as sãs.
Seus olhos cintilaram ante seu insulto.
— Você pensa que eu sou vaidosa e orgulhosa. Você não sabe de
nada! Não é por essa razão que eu agora sou a Bizangô. Erzulie Rou‑
ge me protege dele.
— De quem? Do Bokor?
— Não, não é do Bokor — disse ela, com desprezo. — É do outro!
Angelique se ergueu e caminhou até o altar. Rolos de fumaça
subiam de suas roupas, como se elas fossem feitas de cinzas. Ali fi‑
cou ela, seu corpo esguio como um salgueiro, embora com um as‑
pecto estranhamente real, olhando para a mesa sagrada. Uma
comprida cobra cor de cobre ondulava lentamente ao redor dos po‑
tes de argila e panelas de barro cheias de comida azeda ou transfor‑
mada em pó, seu corpo sinuoso circulando sem tocar as velas acesas
e fluindo sobre pilhas de ossos secos.
— Eu lhe farei um amuleto, Césaire, um uangá de amor — disse
ela. — Se você quiser, é claro. Esta manhã eu peguei um beija‑flor e
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tocar nela para realmente crer que a filha estava ali. E suas lágri‑
mas lhe escorriam pelas faces sem parar.
— Ai, como você está encantadora! — sussurrou finalmente.
— Tão alta, magra, mas com o corpo tão forte — você já virou
mulher, posso ver.
— Estou só com quatorze anos, mamãe — contestou Angelique.
— E já aprendeu muitas coisas a respeito da vida?
— Sobre a vida eu ainda sei muito pouco, mamãe, somente o
que você mesma me ensinou — disse ela. — Mas estive em Port‑au
‑Prince, na Hispaniola — e lamento dizer que por lá só aprendi os
segredos da morte.
— A Ilha do Diabo. Lá os espíritos são muito poderosos. Mas
sente‑se aqui, o mais perto de mim que puder e me conte tudo —
pediu a mãe. — Eu quero escutar. Só sei que você fugiu de Basse
‑Pointe durante a rebelião...
— Mamãe, meu pai tentou me matar durante a cerimônia. O
tempo todo era para fazer isso que ele me levou. Ele lhe mentiu. Ele
jamais pretendeu me criar como filha dele.
— O bastardo me enganou. Ah, como eu fui idiota em acreditar
nele! Lamento muito, lamento tanto por tudo o que você sofreu!
— Eu o matei com sua própria adaga.
— Isso é verdade?
— Sim.
— E então você navegou para Hispaniola?
— Dez dias em um navio mercante — relatou Angelique. — Na
metade da travessia, fomos abordados por esses mendigos do mar,
que chamam de piratas, ansiosos para saquear nosso barco. Suas
roupas tinham manchas de sangue e traziam facas e cutelos. Ma‑
mãe, eles mataram quase todos a bordo — oficiais, marinheiros, até
o cozinheiro! Eles só pouparam meu amigo Césaire porque ele é
negro e sabia governar o navio...
— Como você conseguiu escapar?
— Eles só me deixaram viva porque eu trabalhava como auxiliar
do cozinheiro, estava disfarçada de menino e eles queriam alguém
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de prazer até que o veneno correu por dentro dele. Eu o escutei ui‑
vando de agonia enquanto estertorava até morrer.
— E eles acusaram a senhora do assassinato?
— É isso que torna tão injusto aquele tribunal corrupto. Eles não
me acusaram de matar, disseram que eu era culpada por não tê‑lo
salvo. Eu não podia ter feito isso de qualquer modo, mancenilha
não tem cura que eu saiba, mas eles sabiam que eu não lhe daria
nenhum remédio, mesmo que houvesse. Tu sabes, eles querem me
ver morta. Por uma porção de razões.
— E qual foi a sua sentença?
— Ah, minha doce querida, você não queira saber!
— Qual foi? Diga‑me!
— Tudo pensado, não foi tão ruim assim. Eles me sentenciaram
a uma morte rápida e praticamente indolor, por causa dos serviços
que eu havia prestado...
— Qual foi?
— Enforcamento.
Angelique sentiu o sangue rodando dentro da cabeça.
— Quando?
— Daqui a dois dias.
— Ai, mamãe...
Angelique prendeu a respiração, incapaz de falar, mas seus
olhos chamejavam. Cymbaline a abraçou novamente através das
barras da cela.
— Angelique, minha querida, não fique assim tão triste. Eu não
poderia pedir nenhuma bênção tão grande quanto esta, de poder
vê‑la de novo antes de morrer...
Embora seus olhos estivessem marejados de lágrimas, ela sorria
e agarrou uma das mãos da menina, segurando‑a bem firme. O
peito de Angelique doía com uma pressão surda, como se ela esti‑
vesse prendendo a respiração embaixo d’água por um tempo longo
demais. Ela hesitou e depois falou, com uma voz trêmula.
— Mamãe, eu trouxe comigo um pó secreto, lá de Port‑au‑Prince.
Se eles soubessem que eu havia pegado um pouco, teriam me matado.
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Cymbaline anuiu.
— Eu fiquei andando um pouco pela praia, mas estava difícil encon‑
trar siris, porque todas as conchinhas brancas da praia tinham ganhado
vida e estavam se movendo — prosseguiu ela. — Então eu vi a grande
tartaruga, muito verde e malhada, como um animal marinho subindo
à praia durante o dia. Ela tinha aberto ali o seu buraco, em plena luz do
dia, numa hora que ela não devia estar ali, porque não havia lugar ne‑
nhum para se esconder e eu cheguei perto e vi que estava soltando seus
ovos redondos e perolados por uma abertura abaixo de sua cauda. Ela
se virava para cá e para lá, para cima e para baixo, sacudindo a cauda e
esfregando as patas e eu soube na hora que era um feitiço.
— O que aconteceu?
— Ora, sem a menor dúvida, um homem saiu da água — doura‑
do como um deus, seus olhos pareciam caquinhos do céu.
— Então, foi ele?
— Ele ficou comigo cinco dias. Nós fizemos amor, amor de ho‑
mem com mulher, muitas vezes. E quando ele partiu, você estava
dentro de mim.
Angelique fechou os olhos e imaginou uma visão de sua mãe
caminhando através da espuma e usando um pareu de tecido floral
— esguia, cabelos longos, lisos e escuros, corpo ágil e curvilíneo, o
vestido grudado a seu corpo, como se ela fosse uma corbelha de
flores. Acima de tudo, ela percebeu sua timidez e seus movimentos
desajeitados de menina, a mulher que um homem veria, não a sua
mãe, tão sábia e amorosa, que a amamentara em seu peito, mas a
garota ondulante caminhando sobre a areia, recatada, mas sorri‑
dente, sorrindo como sorriria para um amante, movendo‑se como
se tivesse música nos ossos.
* * *
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que ela colocou o crucifixo contra o coração! Ela merece ser enter‑
rada no campo santo!
— Essa bruxa tem de ser é queimada! Senão, vai “envivescer”
de novo!
Mas o padre Le Brot impôs sua autoridade e o corpo de Cymba‑
line foi erguido e carregado de volta para a prisão. Lá dentro, ela foi
envolta em uma mortalha limpa e colocada no último ataúde vazio,
ainda em pé contra a parede, sob a arcada da galeria. Lençóis de
chuva estouravam contra as pedras do calçamento da praça.
A procissão funerária começou lentamente, seguindo pelas ruas
curvas e estreitas até a beira da cidade. Os caixões foram empilha‑
dos em um pesado carroção puxado por dois cavalos de tiro e An‑
gelique pôde notar que havia muitos pranteadores, a maioria das
famílias dos condenados que haviam sido executados, alguns cho‑
rando, outros caminhando pesadamente, um remorso baço evi‑
dente em seus olhos. Ela olhou com o maior cuidado e teve certeza
de que o caixão de sua mãe era o último a ser colocado na traseira
do carroção, ainda melhor identificado porque o padre Le Brot ti‑
nha amarrado o crucifixo à corda que prendia a tampa do caixão,
já que nenhum deles fora pregado ou aparafusado. Angelique ca‑
minhava logo após o veículo, algumas vezes estendendo a mão
para tocar no ataúde de madeira áspera, como para se assegurar de
que tudo estava bem.
A chuva incessante caía como em cortinas, impulsionada agora
por um vento traiçoeiro que parecia não brotar de direção alguma,
mas soprar de todas ao mesmo tempo, impulsionando a chuva de
lado através da estrada, dobrando as árvores quase até o chão e de‑
pois girando e arrancando o capim do chão em feixes enovelados.
O rugido que descia do céu se tornara constante, agora acompanha‑
do por um estrondo que subia do mar e Angelique percebeu que a
maré estava sendo reforçada pelo vento e que ondas de grande altu‑
ra se atiravam com grande violência contra a praia.
Angelique observou enquanto o ataúde era baixado até o fundo da
cova escura, que parecia cheia com a água que fluía de mil riachinhos
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Não! Mas como podia ser isso? Onde ela estava? Cambaleando
através do cemitério, tropeçando, caindo na lama e se erguendo no‑
vamente, ela saiu em busca de outro túmulo cavado recentemente,
mas os detritos soprados pela tempestade cobriam cada centímetro
da terra e não havia nada senão lama embaixo dos galhos arranca‑
dos e destroçados. Ela gritou: “Mamãe!” mais de uma vez. Mas o
vento arrancava os sons de sua garganta antes mesmo que pudes‑
sem sair e a única resposta eram os rugidos do furacão. Ela caiu de
joelhos, soluçando.
— Em algum lugar... por minha culpa... em algum lugar nessa
escuridão amarga... ela vai se acordar e terá de morrer... uma segun‑
da vez... e deve estar sofrendo agora, deve estar gritando por mim
para me avisar... e eu não consigo escutar‑lhe a voz... Eu não consigo
encontrá‑la... não... ai, meu Deus, por favor... não!
Ela ergueu os braços histericamente para os uivos do vento e seu
grito saiu tão agudo, que superou o rugido da tempestade.
— O que você fez comigo? Você me traiu! Responda‑me! Diabo!
Atormentador! Assassino!
Os uivos da ventania foram sua única resposta, mas ela conse‑
guia percebê‑lo em algum ponto do ar turbulento, tão seguramente
como conseguia escutar dois corações batendo dentro de seu peito
e ela soube que ele descobrira a maneira de destruí‑la para sempre.
Ela olhou para o céu tumultuado e o invocou com toda a sua força:
— Salve‑a! Mostre‑me onde ela está, Demônio! Satã! Onde es‑
tás? Por que me abandonaste? Vem para mim!
E finalmente, a voz lhe respondeu dentre o rugido anestesiante.
— Aqui estou...
Ela girou e esquadrinhou a escuridão em busca dele, mas só con‑
seguiu divisar o dilúvio furioso que a cercava.
— Salve‑a!
— Você é um desapontamento para mim, Angelique — disse a
voz, em seu tom monótono, rascante e profundo. — Não fui eu que
roubei o corpo dela. Foi o carcereiro caolho quem fez isso. Você
sofre por causa de seu orgulho e dos medos que a aleijam. Você
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— Sim? Quem é?
— Sou eu, Barnabas. Posso entrar?
Ela correu para abrir a porta.
— Barnabas, você não devia ter saído da cama!
Ele estava encostado no marco da porta, sorrindo, e ela percebeu
que seu rosto já adquirira alguma coloração.
— Ah, Júlia, eu estou chateado. Queria te perguntar se eu podia
sair para dar um passeio e se você estava disposta a caminhar comi‑
go. Eu não acho que vá precisar que empurre minha cadeira de ro‑
das — brincou. — Mas talvez eu tenha de me apoiar no seu ombro...
Ela se ruborizou levemente.
— Mas é uma ideia encantadora! — ela exclamou. — Vou com
você agora mesmo!
Enquanto ela pegava seu casaco, ele divisou o livro sobre a escriva‑
ninha, brilhando à luz do abajur. Ele franziu a testa inicialmente, mas
quando percebeu o que de fato era, pareceu ficar bastante perturbado.
— Júlia... que negócio é este aqui em cima?
— Ai, Barnabas! É... é o diário de Angelique...
— Mas... você o havia enterrado!
— Eu sei que o enterrei. Lamento tanto... Foi uma ação egoísta
e estúpida...
Ele ficou olhando para ela, mais espantado que reprovador e
ela prosseguiu:
— Eu estava planejando devolvê‑lo a você, Barnabas. Estive traba‑
lhando nas páginas. Salvei delas o quanto pude. Mas... temo que toda
a parte central esteja perdida, salvo por trechos e frases isoladas...
Ele caminhou até a superfície em que jazia o livro e o contem‑
plou como se não pudesse acreditar que estivesse ali.
— Você esteve lendo o diário?
— Sim... E devo admitir que ela teve uma infância fascinante. Mas
tão envolvida com o sobrenatural. Definitivamente, ela era uma feiti‑
ceira, uma feiticeira treinada, tornara‑se uma sacerdotisa vodu já aos
quatorze anos. As partes que eu li foram muito perturbadoras.
— E você ainda acha que seja... maligno?
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Mais tarde, nessa mesma noite, como acontecia quase sempre com
ele, Barnabas não conseguia dormir. Bateu de leve à porta de Júlia,
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salientes como as de uma cobra e seu nariz era aquilino com nari‑
nas grandes. Seus olhos de um castanho-escuro fixaram‑se desde‑
nhosamente sobre Angelique e ela apertava os lábios ao falar.
— Angelique, é o seu nome? — comentou ela sem a menor sim‑
patia. — Mas você não passa de uma criança malvestida, sem graça
e desinteressante. Por que eu iria querer contratá‑la? Obviamente
você é uma filha de camponeses e não tem nada para me oferecer.
Quem é sua mãe?
— Ela está morta, Madame. Mas trabalhava no hospital dos seus
escravos. Seu nome era Cymbaline — respondeu Angelique.
— Ah, sim, eu me lembro dela, foi condenada por ser bruxa —
disse a senhora, suas sobrancelhas se apertando no meio da testa.
— Você é que nem ela?
— Oh, não, Madame...
— Você não mexe com venenos ou pratica bruxaria?
— Não, Madame. Essas coisas me assustam.
— Não, é claro que não. Você é ordinária demais para se meter
com qualquer coisa que se refira ao oculto...
— Mas eu trabalho com afinco, Madame. E aprendo depressa.
— Não, não, a questão não é essa. Eu preciso é de uma moça
que possa fazer companhia à minha sobrinha em seus estudos.
Você não serviria de maneira alguma. Garanto que nem sequer
sabe escrever!
— Mas eu sei, Madame e posso declamar Shakespeare de cor.
— Realmente? Você recita Shakespeare? Acho muito difícil acre‑
ditar nisso.
— É verdade, Madame.
— Sem dúvida... Declame alguma coisa para mim.
Angelique pensou por um momento.
— Qual é a sua peça favorita?
— Está tentando pretender que conhece todas? Ou está ganhan‑
do tempo porque mentiu?
— Vou dizer‑lhe alguma coisa de A Tempestade, se a senhora
gosta dessa...
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— Vá em frente.
Angelique respirou fundo e começou a recitar baixinho, sua
voz assumindo a cadência melodiosa à medida que sua cora‑
gem aumentava.
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que era dispensada de seus deveres, ela descia a pé pela praia que
saía de Saint‑Pierre e andava muito além do porto atarefado para
ir nadar no mar. Ela despia suas roupas e se dirigia novamente aos
recifes, mergulhando nas lagunas mais profundas para explorar
os horizontes misteriosos do fundo do oceano. Os corais pare‑
ciam ainda mais belos do que nunca, em miríades de formatos,
chifres‑de‑veado, dedos‑de‑afogado, cérebro, estrela e flores, em
suas ricas nuances de cobre e ocre, malva e marrom-claro. Ela re‑
descobriu as correntes submarinas, respirando e mergulhando de
novo, girando em torno, as marés puxando e curvando os póli‑
pos, as anêmonas e as algas e os recifes de coral curvos que se er‑
guiam quase até aflorar à superfície, arredondados em colônias de
um verde‑acinzentado, como se tivessem sido esculpidos em mi‑
núsculos labirintos.
Ela descobriu uma ponta de terra larga e arenosa que se projeta‑
va mar adentro, coberta de uma multidão de estrelas‑do‑mar en‑
carnadas, milhares e milhares delas, espalhadas até onde sua vista
alcançava, ventosas como pérolas vermelhas e delicadas pontilhan‑
do seus braços pontudos. Nadou de permeio a um cardume de tan‑
gues, peixes espinhosos e azuis com olhos falsos nas barbatanas,
como se troçassem dela enquanto se esfregavam em sua pele. Sentiu
um anseio doloroso no peito enquanto vigiava as criaturas vivazes
e livres, que pareciam acariciar os corais de que se alimentavam e
novamente recobrou sua antiga felicidade.
Havia uma praia oculta em que nadava algumas vezes, na qual
um canal profundo se abria entre a margem e os recifes. Se ela
quisesse chegar aos canteiros de coral, partindo dessa praia, era
obrigada a nadar por este braço vazio do mar, por onde passava
uma forte corrente. O fundo descia rapidamente e ela contempla‑
va as águas turvas, que pareciam estender‑se para sempre, com
somente pequenos redemoinhos e marolas junto à superfície a re‑
fletir a luz do sol. Ela precisava de longos minutos para cruzar o
canal, o negror aumentando progressivamente à medida que as
águas ficavam mais profundas, cada vez mais escuro e cheio de
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varas, rolos de linha, redes, agulhas longas para costurar velas, pe‑
sos usados como boias, outros maiores que talvez servissem como
âncoras improvisadas, chamarizes esculpidos manualmente. Na
cozinha havia algumas panelas de cobre, frigideiras de ferro pendu‑
radas em pregos às paredes e latas de biscoitos ou de carne salgada
colocadas sobre a mesa. Roupas de homem — um casaco e diversas
camisas simples — estavam penduradas em uma cadeira de encos‑
to reto. Surpreendeu‑se ao ver uma prateleira com alguns livros e
papel para escrever em um canto da mesa.
Quando ela saiu de novo pela porta da frente e olhou para o mar,
viu o pescador. Ele tinha puxado seu barco para a praia e estava
agora dobrando a vela, que ainda drapejava e ondulava ao vento. Ela
ficou parada ali, admirando, enquanto ele amarrava a vela ao bota‑
ló e cuidava de suas linhas, enrolando‑as e retorcendo as pontas
para firmar os rolos por meio de movimentos fluidos. Então ele se
inclinou por baixo da barra do leme, puxando uma corda grossa,
enquanto a enrolava ao redor do ombro esquerdo. Era uma linha de
corrico, e presos a ela estavam três ou quatro tarpões, seus lados
prateados refletindo a luz do sol da tarde como se fossem realmente
feitos de metal. O pescador estava descalço e de peito nu e, quando
se aproximou dela, a jovem se espantou ao perceber que ele só tinha
um ano ou dois mais do que ela.
Ele se interrompeu quando a viu parada junto de sua porta e
olhou para cima e para baixo ao longo da praia para ver se ela es‑
tava sozinha. Convencido de que ela não tinha acompanhantes,
cumprimentou‑a de cabeça e se aproximou da casa. Soltando sua
pesca dentro de um balde de água salgada, ele lavou o sal de suas
mãos em uma bacia.
Ela percebeu que ele era forte, seu corpo esguio e bem formado.
Sua pele era escura, mas dava para ver que estava queimada de sol e
deveria ter sido branca. Ele estava coberto com leves restos de espu‑
ma da água do mar e seus músculos eram fluidos e definidos. Seus
cabelos eram louros como a areia, seu rosto bronzeado pelo sol e
finamente cinzelado e seus olhos, quando ele finalmente a olhou
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— Mas por que você o matou? Você não tem coração, é malig‑
no... totalmente cruel...
— Para salvá‑la — voltou o som gotejante. — Para salvá‑la das
fraquezas humanas.
— Assassino — retrucou num murmúrio. — Demônio!
— Eu a escolhi para ser minha noiva — respondeu‑lhe. — Como
você pode denegar o seu destino? Um talento como o seu apenas
surge após séculos de espantalhos e charlatães. Por meio de você, eu
serei reverenciado e adorado e as almas dos homens ambiciosos cai‑
rão todas sob o meu poder.
Ela se ergueu com um grande esforço e olhou através da água.
— Eu nunca irei para você! Eu o odeio! — ela gritou.
O Diabo se ergueu do mar no flanco de uma onda enorme. De suas
narinas imensas como as de um cavalo brotava a espuma. O barqui‑
nho percorreu a onda, pairou por um momento em sua crista e depois
caiu com um estremeção. Ela se agarrou nas amuradas enquanto o via
descer de sua carruagem e cruzar a pé sobre as águas, seu manto e
túnica flutuando sobre as ondas, seus cabelos enroscados de salsugem.
— Deixe‑me em paz! Eu te esconjuro! — gritou ela, em desespero.
Ele estendeu‑lhe os braços e seu rosto de mármore era gentil e
formoso, como fora o de Thierry, mas ela sabia que era somente
uma ilusão, uma artimanha e se encolheu enquanto ele a recobria
com sua forma congelante.
— Minha garota escorregadia e cintilante — murmurou‑lhe aos
ouvidos. — Você é um rebento da raça mais antiga. Adore a Deusa
da Terra e viva uma existência ordinária. Sentirá as dores do parto
e as humilhações da velhice. Ou então, venha comigo e seja minha
consorte e voaremos juntos através das noites escuras.
— Eu não quero você! — ela exclamou, empurrando‑o, mas
suas mãos somente penetraram nas superfícies moduladas de sua
forma. Ferventemente, ela lhe disse:
— Todas as forças de meu poder pertencem somente a mim
mesma! Fui eu que me instruí. Meus conhecimentos não são prove‑
nientes de você. E nem você é capaz de tirá‑los de mim.
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a direção oposta, caso contrário vai descobrir que ficou sem parte‑
naire! E aí não fará a menor diferença quão bonito é seu rosto, por‑
que vai ficar vermelho de vergonha!
Ele se ergueu para demonstrar, assumindo o papel feminino e
erguendo a mão de pulso lânguido para que Angelique a tomasse.
— E dum, ti, dum — falou em falsete, tornando‑se o som de seu
próprio harpicórdio e marcando o passo da quadrilha com estilo e
elegância. — Titi dum, titi dum, titi dum, dum, dum!
Ao som da palavra “titi”, Josette explodiu em gargalhadas, tom‑
bando em uma poltrona, seu vestido amassando‑se em mil pregas.
— Ah, Monsieur Beauregard, por favor, dê-nos um descanso!
Essa dançaria toda me deixa com a cabeça rodando!
— E se mademoiselle não tiver aprendido os passos até a noite
de sábado, como é que vai ficar? — indagou ele, mordendo as
palavras ferozmente.
— Ora, estamos em Martinica, monsieur. Ninguém vai conhe‑
cer os passos certos. Além disso, eu sei que todo mundo quer dan‑
çar é a calendá!
— Ai, mademoiselle, que coisa mais escandalosa! — gritou ele,
seu pomo de Adão subindo e descendo no seu pescoço fino, como
se estivesse fazendo força para engolir alguma coisa desagradável.
— Essa dança vulgar estaria muito abaixo do nível desta distinta
família, espero eu.
— Por quê? Você não sabe que até as freiras católicas foram vis‑
tas dançando a calendá! Não é verdade, Angelique?
— Justo na capela e na véspera de Natal — confirmou Ange‑
lique, sem erguer a voz. — As coitadas ficaram muito envergo‑
nhadas. Contudo, mademoiselle — avisou‑a discretamente —,
muitos dos convidados serão gens du couleur, pessoas já nascidas
aqui na ilha e eles certamente vão evitar a calendá e dar prefe‑
rência à quadrilha.
— Ora, eles são tão pretensiosos, esses nouveaux‑riches! —
riu‑se Josette. — As mulheres deles vão usar ainda mais joias
que a condessa!
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Um quarto de hora mais tarde, ela seguia Nicaise pelas ruas es‑
curecidas de Saint‑Pierre, tendo somente uma lanterna de óleo
trazida pelo menino para lhe iluminar o caminho. Depois de ca‑
minharem por uma certa distância, ela viu um grande edifício à
direita com muitas janelas, todas iluminadas e, quando se apro‑
ximaram mais, ela escutou música e gargalhadas. Era o bairro em
que ficavam os quartéis e os jovens soldados ficavam acordados
até tarde, bebendo na taverna da esquina. Através de uma das
vidraças, ela avistou três dos soldados, que estavam sentados ao
redor de uma mesinha muito perto da janela e usavam as casacas
escarlates que ela sempre tivera esperança de avistar novamente.
Enquanto passava, escutou trechos de sua conversa, as vozes rou‑
cas pelo efeito do rum.
— Ah, la belle affranchie, La Martiniquaise (a bela liberta marti‑
nicana) — entoava um deles, desafinadamente. — As garotas da
ilha, doces, maduras, prontas para serem apanhadas!
Angelique se surpreendeu ao escutar o sotaque norte‑americano
e hesitou por um momento, olhando através das vidraças.
— Martinica é famosa por suas mulheres — concordou outro.
— Decerto havia alguma tribo de gente bonita na África e todas
elas são descendentes dela.
Gargalhadas rudes e palmadas sobre o tampo da mesa aborrece‑
ram Angelique e Nicaise a puxou pela manga.
— Ai, vamo, senhorazinha, temo de andá depressa!
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sido corridos da taverna para que o dono a pudesse fechar por den‑
tro, suas risadas ecoando pela rua vazia.
Seu caminho ia naquela direção e havia um lampião ainda aceso
na esquina quando ela passou pelos oficiais embriagados, seu cora‑
ção batendo apressado dentro do peito, não de receio, mas impelido
por alguma emoção inexplicável, e no momento em que passou por
baixo do círculo de luz do lampião, ela se voltou de passagem para
eles. A luz lhe recaiu em cheio no rosto.
Ao enxergá‑la, Barnabas interrompeu seus passos trôpegos, pren‑
deu a respiração e a fitou diretamente nos olhos, como num transe,
cheio de confusão, como se ela fosse uma visão inesperada que lhe
fora trazida pela alta madrugada. Olharam um para o outro por um
longo momento antes que, incapaz de respirar, ela se escondesse nova‑
mente na escuridão. Porém, mesmo enquanto ela se retirava para den‑
tro da noite, sem olhar para trás, podia sentir que seus amigos não
conseguiam puxá‑lo consigo. Ela sentia seus olhos cravados em sua
nuca, seguindo‑a fixamente, como o reflexo da lua sobre a água segue
um viandante solitário em sua marcha ao longo da areia da praia.
* * *
A manhã seguinte estava linda, aquecida pelo sol que se erguia aci‑
ma do Mont Pelée, enquanto Angelique iniciava suas rondas através
do mercado. Os odores de flores, doces, frutas e pão recém‑saído do
forno perfumavam o ar enquanto os vendedores montavam suas
barraquinhas. Carroças de hortaliças e legumes, porcos e galinhas,
jumentos carregados de achas de lenha e seus condutores desciam
continuamente para o interior da praça.
Angelique, satisfeita com o movimento, foi indo de tenda em
tenda, uma das primeiras a fazer suas escolhas. Ela demonstrava
uma atitude cortês e uma graça incomum para uma criada. Sentia
uma exuberância pouco familiar e estava consciente de que o corte
de seu vestido simples cor de alfazema favorecia seu corpo esbelto
enquanto se movia pela praça.
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— Além disso, estou sempre curiosa para saber quais são os na‑
vios que chegaram ao porto no decorrer da semana.
— Você estava procurando por minha escuna? — indagou ele.
Ela teve um momento de susto. Como ele poderia saber que era
o seu veleiro que ela sempre ansiava por ver de novo?
— Mas e por que eu faria isso? — indagou calmamente. — Eu
não sei qual é a sua escuna, meu caro Monsieur.
— Bem, você é de Martinica?
— Vivi aqui toda a minha vida... — concordou ela, examinando
‑o melhor. Conseguiu perceber que aquele colarinho engomado lhe
sufocava um pouco o pescoço e que o tecido de gabardine vermelha
de sua casaca apertava seu peito musculoso. Ele se tornara um ho‑
mem fisicamente poderoso, alto, de ombros largos, vigoroso e enér‑
gico. Seu olhar era tão intenso, que a fazia sentir‑se desconfortável
e, para evitar enfrentar‑lhe os olhos, ela colocou uma das mãos so‑
bre a superfície lisa do tronco grosso e de coloração negro
‑acinzentada da figueira e olhou por cima da cabeça dele. Ele seguiu
seu olhar para as massas de folhas verdes na parte de cima e mais
claras do lado inferior, onde se achavam os veios.
— Ei, olhe só, repare onde nós estamos — disse ele, fingindo sur‑
presa, inclinando‑se contra ela, sua respiração soprando sobre seu sem‑
blante. — É como se fosse o interior de uma caverna, um esconderijo
secreto em que poderíamos viver juntos, ocultos do mundo inteiro...
A sugestão de intimidade era clara e ela deveria ter se sentido
ofendida, mas de algum modo aquele início de namorico parecia
suficientemente inocente, uma coisa totalmente momentânea,
agradável demais para ser cortada.
Uma brisa ergueu os galhos e uma nuvenzinha de folhas enros‑
cadas se desprendeu e flutuou pelo ar, redemoinhando até o solo.
— Ah, sim — ela murmurou, sentindo um pouco de tontura
e um leve delírio. — Um lugar muito seguro, até que venha a
primeira tempestade...
— Mas veja só como os galhos estão carregados! — disse ele, ti‑
rando uma folha de seu ombro. — Esta árvore é muito antiga, é
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Ele estendeu a mão para a maçã, tirou‑a dela e levou‑a até a boca.
— O que foi que lhe perturbou o sono? — perguntou, enquanto
mastigava lentamente o pedaço que tirara da maçã.
— Eu... eu não acho que lhe interessaria.
— Mas por que diz isso?
— Porque... não foi por qualquer motivo frívolo.
— Estou ainda mais curioso.
Mais uma vez, ela sentiu uma vaga de confiança cálida.
— Muito bem, cavalheiro, eu lhe direi, se quer saber. Eu... fui cha‑
mada para visitar uma garotinha que estava muito doente. Fiquei
metade da noite com ela e cuidei dela e eu... eu acho que fui capaz de...
— Salvar‑lhe a vida.
— Sim.
— Você é feiticeira?
— Está troçando de mim, Monsieur.
— Perdoe‑me, eu me expressei mal. Quero dizer, você tem habi‑
lidades médicas?
— Minha mãe é que tinha o talento da cura.
— E você? Pode curar... com um toque de sua mão?
— Eu não sei. Quem sabe você mesmo me diz... — sugeriu An‑
gelique. Hesitou por um momento, achando que seria uma impru‑
dência, então colocou a mão sobre uma de suas faces. — Está
sentindo alguma coisa estranha? — perguntou. Sua mão tremeu ao
sentir as pontas dos fios de sua barba começando a crescer.
Ele fechou os olhos, o mesmo sorriso delicioso brincando em
suas feições e esticando‑lhe os lábios. Depois disse:
— Ahhhh! Muito mais do que estranha... Sua mão está fresca,
mas onde toca, me sobe um calor... Estou certo de estar sentindo
um formigamento...
Ela puxou a mão depressa, novamente ruborizada. Ele era mais
vaidoso do que ela pensava e, pior ainda, também era desonesto.
Mas ele apenas sorriu seu sorriso terno, obviamente encantado.
— Eu sempre ouvi dizer que as mulheres de Martinica eram for‑
mosas — sussurrou, tocando‑lhe de leve no braço. — Mas nunca
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soube, até agora, ao ver como você é linda, até que ponto isso podia
ser verdade.
Inclinou‑se para ela.
— Você me permitiria dar‑lhe um beijo?
Ela sentiu em seu hálito o odor adocicado da maçã e ansiou por
erguer seu rosto para ele. Mas se conteve e recuou.
— Está troçando de mim, cavalheiro, mais uma vez — afirmou.
— Além disso, o senhor já beijou a palma de minha mão.
Para sua surpresa, ele lhe estendeu a sua, com a palma para cima.
— Então, você deve pagar minha transgressão — declarou.
Ela se espantou com o tamanho da mão dele, seus dedos lon‑
gos e esguios.
— Minha mão é sua para fazer o que quiser...
Ela colocou sua própria mão sob as costas da dele e abriu‑lhe os
dedos completamente. Percebeu que estava prendendo a respiração
por mais de um minuto e teve a impressão de que seu corpo pegaria
fogo caso se movesse. De alguma forma, conseguiu dizer:
— Talvez... eu pudesse ler sua mão... dizer qual seria sua fortuna...
— Por favor, faça‑o...
Ela olhou fixamente para baixo, os pensamentos girando ao re‑
dor de sua mente. Sua visão se embaciou e ela não conseguia ler a
verdade expressa nas linhas. Mesmo que achasse que quiromancia
era coisa de crianças, ela queria falar o que lhe surgiu ao coração.
— Eu vejo um barco no mar distante — começou — e um
grande torvelinho a bordo. Você foi ameaçado de morte e arriscou
várias vezes a vida para salvar seus camaradas. Você sofreu gran‑
demente, mas nunca abandonou sua coragem e nunca foi menos
do que valente e ousado.
Ele olhou para ela, meio atarantado, mas então seu rosto se
obscureceu:
— Ora, você poderia dizer tais coisas a respeito de qualquer ma‑
rinheiro e possivelmente seriam verdadeiras.
Ela franziu a testa enquanto lhe contemplava a palma da mão e
então sacudiu a cabeça.
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— Minha cara senhora, por favor, não creia que eu quis ser in‑
grato. É somente que... por favor, por favor, perdoe‑me. Eu sou...
um tolo desajeitado! — afirmou e, após uma pausa, prosseguiu:
Meu mais profundo desejo é visitá‑la e conhecer sua família.
Seu coração se encolheu ao ouvir‑lhe o pedido.
— Isso é impossível — declarou em um tom que pretendia ser
desdenhoso. — Lamento que você tenha exaurido qualquer opor‑
tunidade que pudesse ter tido de me visitar.
Ela se virou para ir embora, mas ele se interpôs em seu caminho.
— Mademoiselle, você precisa acreditar em mim quando eu dis‑
se que não pretendia em absoluto ser grosseiro consigo. Eu estava
apenas fingindo que minha sorte fora lida incorretamente. De fato
foi... foi muito mais exata do que eu estava disposto a admitir. Eu...
eu sei que tudo isso é um truque, mas — para falar a verdade — eu
não sei de que maneira você foi capaz de enxergar tão claramente
no fundo de minha alma. Por favor, me permita acompanhá‑la, a
fim de que eu possa demonstrar, deste momento em diante, a mais
absoluta civilidade.
Ela olhou seu rosto, mostrando uma expressão tão ferventemen‑
te sincera enquanto aquela mistura absurda de palavras tombava de
sua boca, que percebeu precisar arrancar‑se imediatamente daquele
lugar, antes que ela beijasse aquela boca e se humilhasse além de
toda possibilidade de salvação. Ela deu‑lhe as costas e correu, o saco
de maçãs balançando contra suas coxas.
Ele a viu partir e desta vez não a seguiu.
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Foi neste momento que ela percebeu quão profundamente ela in‑
vejava Josette, que nunca parecia notar quando alguma coisa era fina
ou preciosa. Não era absolutamente de admirar que Josette fosse tão
encantadora, já que ela se movia em um mundo sem faltas, nunca
passara a menor necessidade, nenhuma de suas ações jamais tivera
consequências. Mesmo que ela ainda fosse invariavelmente generosa
e delicada, sempre fora protegida por sua condição social e se movia
com a arrogância inconsciente das classes superiores, aquela certeza
de que seus privilégios eram naturais e nunca passariam.
Inicialmente, as lágrimas de Angelique somente arderam nas
comissuras de seus olhos e formaram‑lhe uma bola na garganta,
mas enquanto ela passava as mãos carinhosamente sobre a tampa
da caixa de joias, ela viu os pontos escuros brotando um a um no
cetim rosado que fora aplicado com o maior esmero para recobrir
o cofre metálico.
Sentiu‑se irritada por sucumbir à pena de si mesma. Ela tentou
convencer‑se de que essas joias não passavam de objetos sem vida,
mas ela sabia perfeitamente que não sentia desejo de sua posse, mas
sim daquilo que eles representavam, as coisas que ela realmente de‑
sejava desde o centro de seu ser: conforto, futuro prometedor e, aci‑
ma de tudo, afeição.
Já fazia cinco anos que ela trabalhava para a família du Prés
como a dama de companhia da condessa e tinha a impressão de que
esta seria sua vida para sempre. Ela vivia um dia de cada vez, da
aurora ao crepúsculo, lutando para experimentar um certo conten‑
tamento e buscando esquecer seu passado. O encontro com Barna‑
bas na praça do mercado só servira para inflamar seu apetite por
mudanças. Sua aparência, seus galanteios, tudo lhe prometia um
êxtase inalcançável e só lhe restara a insatisfação. As alegrias do
amor lhe seriam negadas para sempre?
Ela dobrou a camisola de seda que Josette usaria essa noite após
retornar do baile e colocou‑a sobre o travesseiro. Josette se precipi‑
tava sobre a própria vida cheia de entusiasmo. Cada dia lhe trazia
novas delícias inesperadas, enquanto a vida de uma criada consistia
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temos uma criada com cabelos claros, a Angelique, mas ela não nos
acompanhou ao baile.
Ao ouvir esta sentença condenatória, Angelique sentiu seus joe‑
lhos enfraquecerem.
— Uma criada... — escutou Barnabas murmurando.
Bem, esse era o final de seu pequeno estratagema, ele agora havia
desvendado o seu mistério. Ela disse a si mesma que não se impor‑
tava. Fora ela que o rejeitara, mais de uma vez até, que o impelira
para longe dela em seu terror. Mesmo que ela não o tivesse feito, ele
provavelmente se teria aproveitado dela, apenas tirado vantagem —
era o que esses rapazes ricos costumavam fazer sempre — e depois
a descartaria “igual uma luva usada”, como se costumava dizer. Era
uma sorte que ele tivesse ficado sabendo de sua posição social ver‑
dadeira antes que ela enfraquecesse e sucumbisse a novos avanços
da parte dele. Ela continuou a escutar a voz de André, agora marte‑
lando o assunto dos canaviais.
— Nós necessitamos de um estoque inexaurível de maquinaria
humana para a colheita da cana‑de‑açúcar...
Escravos, pensou ela. Necessários para criar a tessitura das belas
vidas de seus senhores... Indispensáveis e invisíveis. E entre os es‑
cravos e seus amos havia um oceano que não poderia jamais ser
cruzado. O rancor pela sua situação, mesmo que fosse uma criada
livre, ardeu como uma ferroada em seu coração e a antiga cólera
cresceu como chamas dentro de seu peito. Se ela tivesse aquela for‑
tuna e usasse aquele sobrenome, teria marchado abertamente para
a sala de visitas e se regozijaria com a expressão de espanto no rosto
de Barnabas quando ele a visse.
— Quanto mais tempo se irá passar antes que vocês sejam força‑
dos a libertar seus escravos? — inquiriu Barnabas.
— Quem sabe? — respondeu André. — Esse rio de sangue negro
é muito fundo e se alarga nesta ilha a cada dia que passa. Há certos
momentos, meu rapaz, em que eu me desespero. A vida me parece
uma mercadoria perecível que é concluída violentamente ou que, ao
se prolongar, fica envolvida em dores...
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Tenho ânsia de saber mais coisas a seu respeito. Se não pode ir hoje à
noite, então amanhã. Pode me encontrar em uma taverna ou no teatro
ou até mesmo na catedral, se preferir! Não importa onde. Só me diga
que eu poderei vê‑la de novo!
Ela hesitou e pressentiu que sua resolução estava se abalando.
— Angelique... Por favor, diga que vai me encontrar...
— Na praça, então, junto da fonte — disse ela, com um suspiro.
— Eu estarei lá amanhã à tardinha, pelas seis horas.
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— Eu irei conhecê‑lo?
— Espero que nunca seja forçada a encontrá‑lo. Você não gos‑
taria dele.
Barnabas sentou‑se de novo e tomou‑lhe as mãos outra vez; pa‑
recia se sentir agora mais à vontade com seus sentimentos.
— Eu aprendi a avaliar mais as coisas sutis — prosseguiu, com
grande urgência na voz. — Jurei para mim mesmo que teria amor
em minha vida. Quero uma mulher que seja a companheira de
minha alma e creio firmemente que essa mulher é você. Caso você
me aceite, Angelique, voltarei daqui a um ano, quando entrarei
em posse de minha fortuna pessoal. Então eu a levarei para a
América do Norte comigo.
— A América do Norte! Um lugar tão distante... talvez seja segu‑
ro... Eu nem sei o que dizer.
— Então diga que sim.
Por um momento ela se sentiu transfixada, sua cabeça dando
piruetas com as emoções conflitantes que experimentava. Ele disse‑
ra que a amava, logo este homem que ela adorara a distância por
tanto tempo. Ele lhe pedira para casar‑se com ele. Mas ele era irre‑
fletido e impetuoso e talvez não soubesse exatamente o que queria.
As velas do candelabro ressaltavam os planos e sombras de suas fa‑
ces e supercílios e seus olhos profundos a investigavam em busca de
uma resposta. O que ela poderia fazer? Seria possível que ela pudes‑
se escapar das forças cruéis que lhe controlavam a vida? Onde an‑
daria o espírito maligno que possuía sua alma? Teria se afastado
dela para sempre? Já se haviam passado tantos anos... Seria possível
que ela tivesse sido finalmente alforriada?
Recordou‑se da aurora sobre o oceano, quando o nevoeiro mati‑
nal obscurece o horizonte e o grande abismo é cercado de brumas.
Como o mar parecia protegido e próximo a ela quando ainda en‑
volto na luz prateada do luar. Certa vez, quando estava mergulhada,
ela ficara por baixo de um imenso cardume de mães‑d’água, aque‑
las bem redondas que chamavam de “medusas da lua”, seus corpos
transparentes flutuando acima de sua cabeça, mil discos azul‑claros
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feliz demais. Ela ergueu os olhos para ele através das bátegas de chu‑
va e ele lhe sorriu, seus olhos rebrilhantes de sua vitalidade feroz.
Tentado por seu olhar, Barnabas parou diante do muro alto do
jardim de uma rua deserta. Sua mão a segurou pela cintura e a
puxou para si.
— Só mais um beijo... — disse‑lhe mansamente.
Sem mais pensar nas possíveis consequências, ela se soltou con‑
tra ele em total abandono, o medo se dissolvendo em seu próprio
ácido. Ele a apertou contra as pedras do muro e ela tomou coragem
e respondeu com a mesma ânsia. Ele beijou‑lhe a liquidez da boca,
bebendo a chuva que escorria de seus lábios. Beijou‑a ritmicamente,
empurrando‑se contra ela, sentindo as formas de seu corpo por
baixo da saia e das anáguas saturadas de água. Ela sentia seu cora‑
ção pulando dentro do peito, enquanto deliberadamente punha de
lado todas as precauções e lançava um repto ao Diabo, como se
soubesse que ele não se atreveria a se apresentar.
Barnabas ergueu‑a em seus braços e a carregou por um breve
trecho até o lugar em que o muro se erguia entre o jardim e a rua.
A água pingava de seu rosto enquanto ele a esmagava contra o
peito e ela podia ouvir o trovejar de seu coração — não aquele
baixo profundo, mas um tamborilar furioso, tão brilhante e duro
quanto a chuva. O som a assustou e ela se recordou da ocasião em
que a arrebentação a varrera contra um recife e ela temera que os
corais lhe rasgassem a pele.
Lutou para se libertar, mas agora ele a apertava contra si com tal
ferocidade, que ela chegou a ter medo de que lhe quebrasse o corpo
com a força de seus braços. Ele procurou até achar uma brecha no
muro e a carregou para dentro até o jardim abrigado.
Então, como se estivesse em transe, ela descobriu que estava dei‑
tada em um degrau coberto de musgo, uma corrente de água pas‑
sando por baixo dela. Barnabas a apertava contra si, ainda a
beijar‑lhe o rosto molhado. Percebeu que suas costas estavam nuas
contra o martelar da chuva e que seus seios escorregavam agora
diretamente contra o peito dele. Ele esticou uma das mãos por bai‑
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O vestido era sedoso contra sua pele quando ela saiu pela porta
do quartinho com uma vela na mão e desceu as escadas silenciosa‑
mente. Já passava das onze horas e a casa estava escura e tranquila
quando ela chegou ao vestíbulo enegrecido pela noite. Tropeçou em
uma pilha de casacos e botas que fora amontoada junto à porta.
Sem dúvida, André participara aquele dia de alguma expedição de
caça pelas redondezas com alguns dos senhores de engenho seus
amigos. Parou ao notar o estojo de couro que continha suas pisto‑
las. Hesitando, ajoelhou‑se, prendeu a vela no chão com uma gota
de cera e abriu a valise.
As duas pistolas jaziam sobre um fundo de veludo, coronha con‑
tra cano, encaixadas uma contra a outra como dois amantes. Inca‑
paz de resistir, ela segurou uma das armas e sustentou‑a na palma
da mão. Era pesada e fria e o cano refletiu o brilho da vela. A bala
ainda estava na câmara. Num impulso, ela prendeu a pistola sob seu
xale e abriu a porta para a rua.
A noite estava embalsamada, o ar espesso e cálido e uma brisa
gentil abanava as longas frondes das palmeiras. Passando a fonte
em que a água ainda fluía do cálice de Dioniso, ela pensou em sua
primeira noite com Barnabas e seu coração se endureceu de raiva
outra vez. Se não conseguisse nada mais, ela pelo menos teria uma
satisfação. Encontrou a hospedaria e suportou o olhar salafrário do
porteiro, que apontou para a porta do quarto de Barnabas. Então,
prendendo a respiração, ela caminhou até a porta e bateu de leve.
— Sim? — sua voz revelava irritação com o visitante inesperado.
A porta se abriu e ali estava ele, seu rosto inclinado em sua dire‑
ção. Usava um chambre de seda e por sobre a gola ela avistou os
músculos de seu peito, cobertos de pelos negros. Ela já esquecera de
como ele era alto e de como seus ombros eram maciços. Seus olhos
se arregalaram de espanto quando a viu parada junto à porta.
— Angelique!
— Sim... Barnabas. Você pensou que eu não viria, no final
das contas?
Ele tentou esconder seu embaraço.
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— Sim...
— Então... adeus, Barnabas.
Ela se moveu lentamente em direção à porta. Podia sentir‑lhe a
fome a segui‑la como se ele a segurasse com a própria mente. Colo‑
cou a mão na maçaneta e se voltou para ele uma última vez, fitando
‑o diretamente nos olhos, pensando no êxtase que sentiria ao toque
renovado de sua boca sobre a dela. Sabia perfeitamente que ele viria
abraçá‑la caso ela quisesse. Sentiu a chama crescendo dentro de seu
peito enquanto seus olhos permaneciam fitos uns nos outros e um
sentimento de poder irradiante fluiu de dentro dela.
— Angelique — murmurou ele, sua voz um sussurro esfarrapa‑
do. — Por favor... Por favor, não vá embora...
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oston era, sem a menor dúvida, o lugar mais espantoso que ela
podia imaginar. As ruas eram apinhadas de gente e de carrua‑
gens. Muitos prédios encantadores se alinhavam ao longo das ave‑
nidas ensombreadas por árvores antigas. Os mercadores vendiam
de tudo no mercado, desde prataria até hortaliças e Angelique não
pôde deixar de notar que as distinções de classe eram muito me‑
nos importantes aqui do que em Martinica. Os escravos eram ra‑
ros, embora a pobreza de muitos brancos fosse mais aparente.
Mas o mendigo e o artesão pareciam misturar‑se sem problemas
pelas ruas com os membros da classe média e os verdadeiros opu‑
lentos e havia energia no ar, um senso de promessa.
André desejara tirar umas últimas férias junto com sua filha e nave‑
gara com ela primeiro para Nova York. Era lá que comprariam a maior
parte de seu enxoval e depois ele lhe mostraria a cidade e viajariam um
pouco para o sul para que ela visse o Capitólio da jovem nação.
Certa de que Josette já deveria estar em Collinswood, mesmo que
não houvessem recebido qualquer mensagem a respeito, a Condessa
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meigos por força de seus anseios. Ela sentia todos os seus senti‑
dos estremecendo, sua necessidade dele era quase uma dor físi‑
ca, ardia pelo seu toque, pela calidez de seu corpo em que se
derretera tantas vezes.
Sentou‑se na beirada da cama estreita e enrolou os braços contra
a coluna de torneado simples, encostando o rosto contra o mogno
macio. Depois, deixou que sua mente brincasse com as imagens de
sua última noite juntos em Martinica, com as águas da cachoeira,
com os borrifos e a névoa que subia dela, com a escuridão da caver‑
na, com a água de sabor doce que bebera de seus lábios, com a chu‑
va fina e cálida que molhara seus rostos e suas bocas, com a
interpenetração de seus corpos sobre o riachinho que descia pela
escada durante sua primeira vez e sentiu uma pulsação irresistível
em suas partes mais íntimas.
Quando, finalmente, a hora foi ficando tardia e os trovões ri‑
bombavam através do negrume da noite, enquanto a chuva batia
contra sua janela entre a cintilação dos relâmpagos, Angelique não
pôde mais suportar a espera e desceu pé ante pé pelo corredor. Ela
subiu pela longa escadaria e algum tipo de instinto a conduziu até a
porta de Barnabas, ou talvez fosse simplesmente pelo fato de que
era a única em que uma faixa de luz aparecia pela fresta da porta
junto à soleira. Ela bateu de leve na madeira com a ponta das unhas.
— Quem é? — indagou a voz dele. Passou‑se um longo momen‑
to antes que ele a abrisse e ela se jogou para dentro do quarto.
— Um fantasma do seu passado! — exclamou, enquanto se jogava
em seus braços. — Ai, meu querido! Esperei que descesse para me
ver... Não consegui aguentar mais! Estava rebentando de saudade!
— exclamou, enquanto o beijava, seus olhos sorridentes. — Por que
você não foi me ver? É orgulhoso demais? Não sabe quanto o amo?
Inclinou‑se contra ele, apertando‑se contra seu peito, seus mús‑
culos frouxos de alívio, suspirando, murmurando sem parar.
— Depois que você saiu da ilha, eu sonhei com você todas as
noites, eu escutava sua voz a me chamar pelo nome... Estava tão
ansiosa para ficar com você de novo... abrace‑me!
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casarmos. Eu sei que a levei a entender que isso poderia ser possível,
porém meu pai...
— Seu pai! E desde quando você gosta de seu pai? Ele... não
é você!
Ela se atirou contra ele novamente, segurando‑lhe os braços e
olhando para seu rosto.
— Onde está o homem que eu amei? Um rapaz tão rebelde e
apaixonado? Nunca esperei... que mostrasse tanta fraqueza! Não é
possível que não tenha a coragem de dizer à sua família o que real‑
mente deseja da vida! Você sabe que me ama!
Barnabas virou‑lhe as costas.
— Não, você está errada — disse, após uma pausa. — Sim, eu a
amei. Você é uma mulher linda... fascinante mesmo, mas... talvez re‑
almente eu não tenha o seu tipo de coragem. Tenho outras coisas a
considerar, coisas que são mais importantes. Eu sei que é difícil para
você entender isso... mas o meu dever é para com... minha família.
Ela o contemplou sem saber como reagir, sem compreender, en‑
quanto ele lutava por encontrar as palavras certas e não achava
nada. Então, ele pareceu tomar uma resolução e voltou‑se para ela,
com os olhos apertados.
— A verdade é que... eu acabei me enamorando de Josette. Agora
eu a amo com todo o meu coração. E se você dá valor ao poder do
amor tanto quanto diz, respeitará meus sentimentos. Agora por fa‑
vor, lamento muito, não quero ferir os seus, mas... tenho de lhe pe‑
dir para sair daqui.
— Sair? — disse ela, implacavelmente. — Antes que você se ar‑
rependa de todas essas palavras tolas que acabou de pronunciar?
Houve uma longa pausa, antes que ele murmurasse:
— Sim.
— Você não me quer mais.
Seguiu‑se outro longo minuto de silêncio.
— Não.
Seus olhos se encheram de lágrimas e, orgulhosa demais para
deixar que ele as visse, ela correu para a porta.
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teria sido tão simples... Ah, mas como isso era tentador! Ela tinha
de quebrar a resolução de Barnabas de alguma forma. Decidiu‑se
a ser paciente. Com este plano florescendo em sua mente, ela fi‑
nalmente adormeceu.
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Ela lhe manteve o olhar. Ele era o perfeito joão‑bobo. Mas seu
papel seria mais tarde. Por enquanto, a única coisa de que ela
precisava era do bonequinho, caso ela se decidisse a usá‑lo, para
causar a Barnabas mais dor e sofrimento que ele jamais experi‑
mentara em toda a vida.
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os olhos, que queimavam como carvões e ela podia ver pela manei‑
ra como se postava diante dela, a cabeça inclinada para frente, as
pernas separadas, que estava tentando apresentar‑se com uma es‑
pécie de atitude fria.
— Posso entrar? — disse baixinho. Ela deu um passo para o
lado e permitiu‑lhe a entrada com um surto de esperança. Ela sabia
que ele viria, mais cedo ou mais tarde. Ela não precisava de encan‑
tamentos, quando ela própria possuía tanto poder sobre ele.
— Eu quero lhe dizer como lamento tudo isso — começou ele — e
que estou profundamente arrependido pelo que ocorreu entre nós.
Angelique esperou, sem dizer nada, sentindo a pulsação latejar
‑lhe na garganta.
— Eu admito que possa ter tirado vantagem de você e a tratado
com menos respeito do que lhe devia. Mas... seguramente eu não
fui seu único amante, e Martinica é... um lugar encantado. Um lu‑
gar de sonhos. Eu... o que eu vim aqui para lhe dizer é que... não há
razão para que não possamos ser amigos.
— Apenas amigos? — ela murmurou.
— Sim e por que não? Você é devotada a Josette e ela também a
adora. Tudo que eu desejo é... que todos fiquemos satisfeitos. Você
não percebe, o nosso... caso de amor em Martinica será sempre uma
lembrança acalentadora. Eu jamais deixarei de pensar em você com
afeição. Porém agora, nós dois temos papéis diferentes na vida.
Você tem um novo papel a executar em sua vida, dissera‑lhe seu
pai. Uma função que você pode desempenhar com orgulho. Sugiro que
o faça. Suplico‑lhe que o faça. Eram palavras que ela nunca esquece‑
ria — palavras que a haviam mergulhado em uma vida de desola‑
ção para cumprir os caprichos de um homem sem coração.
— E qual é o meu papel? — indagou amargamente. — O de
criada da condessa?
Barnabas a contemplou, com uma dor indescritível em seus olhos.
— Angelique...
— Eu sou sua serva — disse ela, simplesmente.
— Não.
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cumprir o seu dever. Minha patroa chegou para preparar seu ca‑
samento. Mas não vai haver casamento algum, não é mesmo?
Cuidadosamente, ela passou o baraço ao redor do pescocinho.
— Apenas uma leve pressão — disse ela. — Vamos somente
apertar levemente seu colarinho... Só um pouquinho...
Como ela ansiava estar presente para observar, mas isso não era
necessário: podia imaginar perfeitamente a cena em sua mente. En‑
tão ela respirou profundamente e invocou a pulsação do fogo. Ela
estremeceu de imediato enquanto o calor corria através de seu cor‑
po, como uma serpente de chamas, dançando por seus braços e des‑
cendo até as mãos. Como era simples!
Pronto! Estava acontecendo! Ela soube com os olhos da mente.
Barnabas beijava Josette na sala de visitas quando parou, confuso,
sentindo um desconforto inesperado, depois seus olhos mostrando
pânico ao sentir‑se engasgado, levando as mãos à garganta.
— Barnabas, o que foi? — gritou Josette, assustada, depois his‑
térica, enquanto Barnabas caía sobre uma poltrona, abrindo o cola‑
rinho, os dedos segurando o pescoço.
— Eu não consigo respirar...
Angelique apertou o nó só mais um pouquinho. Sorriu en‑
quanto sentia a força correndo através dela, uma sensação física
e agradável, o prazer aumentando, quase como se ela estivesse lá,
junto com ele, abraçando‑o, sentindo seu membro viril dentro
de seu corpo.
— Eu... alguma coisa está me sufocando... a sala... está ficando
mais escura... Josette... onde está você?
Ele gemia, tentou se erguer, mas caiu no chão, derrubando a pol‑
trona. Josette gritou, atordoada, completamente incapaz de fazer
outra coisa a não ser chamar os criados. Vários apareceram e Bar‑
nabas foi levado para seu quarto. Mandaram chamar um médico.
Diversas horas se passaram e Angelique decidiu ir ver como es‑
tava Barnabas. Josette estava sentada em uma poltrona ao lado de
sua cama, chorando de fazer pena. Ela ergueu os olhos avermelha‑
dos pelo pranto.
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olhos remelentos, lutando para falar. Então ela lhe perguntou, com
uma calma que espantou a si própria.
— Há alguma coisa que deseje me dizer?
— Estou morrendo — disse ele, num estertor, sua voz fraca e
dificultosa. Angelique sentiu um espasmo de medo. Mas não, ele
não podia estar para morrer... Era ainda cedo demais e o lenço não
fora apertado tanto assim. Ela começou a se recordar de alguma
coisa, uma memória angustiante e enterrada no poço das lembran‑
ças e, de repente, seu coração começou a bater mais depressa.
— Eu estou morrendo... — repetiu ele, tão baixinho que ela mal
conseguia escutá‑lo. — Sinto a morte pairando a meu redor...
— Não! Não, você não pode morrer! — disse ela, aproximando
‑se o mais perto que pôde dele, sua respiração misturada à dele.
— Angelique... por favor... me ajude...
— Eu te amo! Se você morrer, não terei mais ninguém no mundo!
Então a lembrança subiu de onde estava enterrada e a atingiu
como um golpe de adaga.
Chloé!
Ela se ergueu de um salto, disparou pelo corredor até seu quarti‑
nho, o coração saltando pela boca. Suas mãos tremiam quando ela
foi buscar o soldadinho do fundo da gaveta.
Chloé!
Ela puxou o lenço fora, mas descobriu que estava tão apertado
ao redor do pescoço do bonequinho, que não o conseguia desatar!
Mas não tinha apertado tanto, pensou, um pânico gelado a lhe
percorrer as veias, revivendo o pesadelo de tantos anos antes,
afogando‑se em sua autorrepreensão. Ela matava as pessoas a quem
amava. Ela mesma destruía suas chances de felicidade. O que ela
faria se ele morresse? O que ela faria se o perdesse? Ela ficaria sozi‑
nha, completamente sozinha!
Desesperadamente, ela remexeu nas gavetas de seu toucador,
procurando uma tesoura, um canivete, nada! Repuxou o nó mais
uma vez. Tinha de se afrouxar! Era preciso! Seguiu‑se um momen‑
to doentio de impotência, as pontas de seus dedos cravando‑se no
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— E depois?
— Depois, veremos — disse ela, ardilosamente.
Ben engoliu o elixir sem hesitação, piscou os olhos e ficou olhan‑
do para ela em uma estupidez apatetada.
— Como se sente?
— Estranho.
— É porque não tem mais sua força de vontade — disse ela, se‑
veramente. — Minha vontade é a sua vontade. Você fará tudo quan‑
to eu lhe disser: doravante, será meu escravo.
Ele tentou se sacudir para se livrar do que lhe parecia ser apenas
um capricho bobo de mulher, mas ela podia discernir o embaça‑
mento em seus olhos que indicava como a poção estava progressi‑
vamente a fazer efeito. Ele balançou nos pés, levemente estonteado,
segurou‑se no braço da poltrona velha, encarou o assoalho por um
momento, como se estivesse tentando recordar de onde se encon‑
trava, depois ergueu os olhos para ela, preocupado e imbecilizado.
— Agora que você bebeu a poção, está em meu poder — disse
ela, em voz baixa. — E eu o protegerei de todos os maus espíritos,
até mesmo da própria morte! — proclamou, segurando sua mão
imensa, quase uma pata de animal. — Suas mãos serão as mãos que
eu usarei quando as minhas forem pequenas demais, seus braços
empregarei quando os meus forem fracos demais — continuou, en‑
trelaçando seus dedos delicados entre seus dedos grossos. — Dora‑
vante estaremos unidos por cadeias invisíveis que jamais poderão
ser quebradas — concluiu.
Então ela retirou a mão e andou até o toucador, pensou por um
momento e se virou. Ben permanecia parado no mesmo lugar,
contemplando‑a em total estupor.
— Eu preciso de uma teia de aranha retirada de um carvalho
vivo. Nem sequer um fio da teia pode ser partido. Vá buscar para
mim. Agora vá. Tenho coisas importantes a fazer.
Ben girou nos calcanhares e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Quando retornou, bastante tempo depois, tinha recuperado a voz; sua
atitude era cautelosa, mas demonstrou uma certa curiosidade.
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Mais tarde, naquela noite, ela se sentou diante do fogo e ficou olhan‑
do para a figurinha de argila parada sobre sua mesinha.
— Sim, Miss Josette. Não, Miss Josette — proferiu amarga‑
mente. Seu coração estava frio como pedra e ela inteira se sentia
cheia de ressentimento.
— Ela pensa que pode me dar ordens o dia inteiro — murmurou
Angelique para si mesma. — Mas dentro deste quarto, sou eu que
lhe dou as ordens e ela vai ter de me obedecer.
Ela recordou a alegria que sentira ao chegar a Collinswood.
Como ela fora tola, tão absurdamente ingênua. Quando ele cessara
de amá‑la e por quê? Seus próprios sentimentos de amor também se
haviam modificado. O que tinha sido uma devoção cálida e alegre
que lhe percorria o corpo inteiro agora se transformara em uma
fixação torturante. Seu amor fora empenado, retorcido, corrompi‑
do até mostrar uma forma totalmente diversa, mais cortante e mais
oblíqua. Era como se uma semente se tivesse virado dentro da terra
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e mostrado seu lado mais escuro para o sol, antes de brotar como
uma erva daninha pior que uma urtiga.
Talvez ela sempre tivesse sido assim e apenas houvesse reprimido
sua verdadeira natureza até este momento. Ela pensou em seus lindos
recifes de coral junto às praias de Martinica e naquela espantosa va‑
riedade de vida que se desenvolvia junto aos corais. Ela recordou ago‑
ra de que os naturais da ilha, quando lançavam as redes para capturar
os peixes maiores, nunca comiam nenhum dos peixes brilhantemen‑
te coloridos que nadavam entre os recifes, caso estes lhes ficassem
presos nas redes. A carne daquelas criaturas lindas e cintilantes,
cheias de barbatanas ondulantes, em determinadas épocas do ano,
nunca se sabia bem quando, se tornava extremamente venenosa.
Quando ela aprenderia afinal que nada lhe cairia no colo sem
esforço, que nada era realmente previsível. Segundo todas as apa‑
rências, Barnabas se cansara dela. Ela poderia ser capaz de seduzi‑lo
a outras horas roubadas de carinho e de prazer, mas quem ele agora
realmente desejava era Josette, com toda a sua inocência e vulnera‑
bilidade. Aquele seu olhar familiar, aquela afeição profunda que ela
enxergara no fundo de seus olhos, aquele sorriso encantador, tudo
aquilo seria agora concedido somente a Josette, como se ele estives‑
se executando um papel em uma peça de teatro, já tivesse decorado
suas falas e agora as repetisse, sem dar a mínima para o fato de que
outra jovem atriz a substituíra no papel de ingênua.
Ela tinha de admitir que ele agora demonstrava uma atitude
constante e determinada para com Josette, de fato, agia com ela de
uma forma muito mais séria do que jamais se portara consigo mes‑
ma. Ai, como ela lamentava agora ter ido ao seu quarto na noite em
que usara seu vestido de cetim dourado pela primeira vez! Se ao
menos ela tivesse deixado as coisas como estavam, ela o poderia ter
reconquistado depois de seu casamento com Josette. Mas sem ter o
menor direito sobre ele, ela lhe dera tudo quanto ele desejava.
Ela certamente não era como Josette. Ela nunca experimentara o
luxo de passear por jardins bem cuidados, rindo das tolices que lhe
diziam os jovens cavalheiros que a cortejavam, confiante de que
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Depois que Ben lhe trouxe o anel e o cacho dos cabelos de Jeremiah,
sem que se desse ao trabalho de indagar como os conseguira, Angeli‑
que dispunha de tudo quanto necessitava para seu feitiço. Ela envol‑
veu a boneca com um lenço de Josette e repassou a madeixa de
cabelos escuros através da argola do anel a fim de distribuir e mistu‑
rar os óleos. Era a mais simples das bruxarias, todavia, enquanto ela
começava a entoar as velhas palavras, fórmulas criadas desde o início
dos tempos, ela sentiu‑se subitamente enfraquecer. Uma sombra lhe
percorria a mente e ela parecia estar girando em um redemoinho.
Ela segurou a beirada da mesinha para se firmar e, tão logo seus
pensamentos clarearam, ela começou de novo. Quando falou, as
chamas do fogo por detrás dela, pularam para cima, como se fos‑
sem um eco despertado por sua voz para lhe responder. Ela sentiu a
pulsação familiar adejar por seus ombros e pescoço e as palavras
começaram a nadar no mesmo ritmo do latejar de seu cérebro e ela
farejou aquele odor acre que recordava de tanto tempo atrás.
— O óleo do anel de Jeremiah prenderá os cabelos em um cinto
para a teia do amor.
Ela colocou a delicada teia de aranha com o máximo cuidado
para que não se rompesse sobre a cabeça que recentemente moldara
e os fios ondularam e se grudaram na argila fresca.
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Que coisa bem triste, pensou ela, já que André, na verdade, possui
muito mais propriedades e dinheiro vivo.
Mas André era “rico como um crioulo” conforme corria o dita‑
do, e o dinheiro proveniente do açúcar não era considerado na épo‑
ca “dinheiro antigo”, não da mesma forma que a riqueza derivada
dos estaleiros e do comércio mercante. De acordo com Joshua
Collins, os senhores de engenho caribenhos eram gentinha da Eu‑
ropa que tinha conseguido superar suas origens inferiores. Contu‑
do, pensou Angelique amargamente, Joshua por certo não se
opunha àquela união que traria uma riqueza incontável para a fa‑
mília Collins, mesmo que não lhe aumentasse o prestígio.
André percebeu imediatamente que sua filha estava insegura.
Ele não poderia se demonstrar mais compreensivo e solícito ao
pressentir a situação e mais uma vez Angelique invejou Josette por
possuir um pai tão amoroso que lhe demonstrava uma afeição tão
doce e permanente.
Naquela noite, enquanto tomavam uma bela garrafa de vinho
francês, a condessa entreteve uma longa conversa com o irmão e lhe
contou tudo o que havia ocorrido desde sua chegada a Collinsport,
inclusive o comportamento inesperado e inaceitável de Josette. Os
dois se sentiam muito à vontade um com o outro, afetuosos e felizes
de poder trocar confidências novamente e Angelique foi enviada
para buscar outra garrafa na adega de Joshua. Sorrindo para si mes‑
ma sobre a reação a ser manifestada pelo patriarca ao descobrir a
perda inesperada, ela atiçou o fogo da lareira e acrescentou dois to‑
quinhos, garantindo‑se uma desculpa para permanecer por mais
algum tempo no salão luxuoso.
— Deus que me perdoe se eu deixar que ela se case com um ho‑
mem que não ama! — explodiu André. — Qual desses fulanos ela
realmente quer?
— André, escute‑me — pediu a condessa. — Eu cheguei à con‑
clusão, por mais ridículo que possa parecer, que Josette se encon‑
tra sob algum tipo de encantamento, que... existe uma bruxa
nesta casa ou algum demônio cruel, forçando Josette a cair nos
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totalmente atraído por ela. Ela era, bem... irresistível, como se não
fosse uma mulher real, mas uma visão que eu precisava confirmar
antes de me animar a lhe dar as costas. Foi a mesma coisa que ver
uma dessas aves raras que aparecem ocasionalmente na floresta da
ilha, sabe a que me refiro, com plumagem tão bela, que a gente vai
se arrastando devagarinho para mais perto, quase sem respirar, só
de perceber como é magnífica, sabendo que simplesmente se preci‑
sa observar mais de perto para ver melhor...
— Sim, eu sei — disse a condessa. — Isso eu também já fiz.
— Eu recordo que deixei o cavalo solto para pastar e mergu‑
lhei no mar, acho que pensando que podia, ou esperando poder
nadar para mais perto, oculto pelas ondas, observando sem ser
visto. Acho que eu temia que ela simplesmente desaparecesse
caso me enxergasse...
— E depois você diz que eu é que peguei a imaginação dos ilhéus...
— Quando eu caminhei para fora do mar, ela ergueu os olhos e
me sorriu e, você não deve ficar chocada com isto, Natalie, mas eu
percebi imediatamente que ela era uma quadrarona, uma mulata
três quartos branca.
— Sabe, eu ia lhe perguntar... naturalmente...
— A pele dela era cor de mel e tinha longos cabelos negros e olhos
que pareciam os de uma tigresa. Era de uma beleza total e absoluta.
Não me disse uma palavra, somente se virou e acenou para que a se‑
guisse ao longo da praia até sua cabana, tal qual estivesse me esperan‑
do... — ele sorria com a reminiscência. — Eu caminhei atrás dela,
naturalmente e ainda posso recordar seus cabelos negros balançando
às suas costas, caindo abaixo da cintura em uma cascata luxuriante,
e abaixo deles havia uma fresta no vestido, você entende? Eu avistava
aquela parte dourada de sua pele entre a cintura e acima das nádegas
e depois a curva mais ampla que estava coberta pelo tecido do vestido
de algodão, um... pareu, como eles chamam.
Após uma breve pausa, ele continuou:
— Ela me levou para dentro e sua cabana cheirava a hortelã e
louro e percebi que o mesmo cheiro emanava dela, fragrâncias her‑
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acreditar no que ouvira. André era seu pai! Mas é claro! Ela tinha
seus olhos e seus cabelos muito claros e, se não fosse por um truque
cruel do fado, também portaria seu nome. Ela sempre acreditara
que tinha formação aristocrática, que era uma dama no coração e
na alma e agora sabia que tudo era verdade. O ressentimento explo‑
diu novamente através dela. De algum modo, essa revelação apenas
a deixou mais desconsolada. Encontrara seu verdadeiro pai!
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soubesse que Joshua nunca o perdoaria caso viesse a saber, tanto ele
como Josette haviam reconhecido sua situação vergonhosa e o es‑
cândalo iminente que estraçalharia a família. Confuso e irado, ele
tomara a galante decisão de sacrificar seu trabalho nos estaleiros e
renunciar a seu amor por Josette, apesar do fato de que ele se sentia
mais fortemente atraído por ela do que jamais estivera por qualquer
outra mulher durante toda a sua vida.
Depois de uma busca desesperada, Angelique encontrou Ben
cortando lenha atrás da casa. Com a aproximação da tempesta‑
de, a casa precisaria de um bom estoque de achas e toquinhos.
Quando ele a viu, riu de sua cara, um gargalhada aguda, que
mais parecia um latido.
— Não tinha mágica bastante no teu bruxedo! Tu não conse‑
guiste pegar ele!
Ela apertou a capa ao redor do corpo, estremecendo com o golpe
do vento gelado.
— Escute‑me, Ben... Preciso fazer outro encantamento. Consiga
‑me qualquer coisa de Jeremiah. Uma coisinha pequena.
Ben se ergueu em toda a sua estatura, parecendo uma torre ao
lado dela e ele sentiu o cheiro rançoso e acre de seu suor.
— E por que não vai buscar tu mesma?
— O quê? Eu jamais entraria no quarto de um cavalheiro. Uma
dama não faz esse tipo de coisa e nunca darei o menor motivo para
que Barnabas se envergonhe de mim!
Houve um golpe de trovão e o vento sacudiu os topos das árvores
em um frenesi caótico.
— Por que tu percisa machucar as pessoa?
— Apenas firo aquelas que me feriram primeiro.
— E o que foi que Miss Josette te fez?
— Ela me tirou o homem que eu amo!
— Ele ama ela e não tu! Não dá pra ver? — exclamou, soltando
uma casquinada fanhosa, seguida de um grunhido no fundo da
garganta que mais parecia emitido por uma fera que por um ser
humano. Ela ficou furiosa.
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Ela podia sentir o calor que brotava de seu corpo para a ponta
dos dedos e estava encantada com o prazer de tocá‑lo finalmente,
acariciando‑o e bebendo o néctar de sua presença.
Porém, a mente de Barnabas estava distante dali e praticamente
não percebia que ela estava ali, muito menos o que estava fazendo.
— Sua dor de cabeça passou? — perguntou gentilmente.
Ele se assustou com suas palavras.
— O quê?
— Estava imaginando em que você pensava...
— Eu estava devaneando... Diga‑me... O que você pensa do Re‑
verendo Trask?
Angelique considerou‑lhe a questão. Em consideração aos cons‑
tantes protestos da condessa de que algum tipo de bruxaria estava
acontecendo na casa, tinham mandado chamar de Salem um famo‑
so caçador de bruxas.
— Eu acredito que, se existe algum bruxo por aqui, ele ou ela
deve ser encontrado e destruído — respondeu Angelique. — O Re‑
verendo Trask é um clérigo devoto, não é verdade?
— Eu acho que ele não passa de um charlatão e um hipócrita,
ainda por cima.
— Mas se a governanta for realmente uma bruxa, ele não a
descobrirá?
Phyllis Wick, a tutora de Sarah, uma recente adição ao pessoal
doméstico, tinha causado na família inteira a impressão de ser uma
mulher muito estranha. Ela era altamente excitável e nervosa e não
demonstrava boas maneiras ou qualquer encanto social. Raramen‑
te falava com alguém e nunca sorria. Até mesmo Sarah, em geral
tão confiante, tinha medo dela. Angelique estava satisfeita com o
fato de que as suspeitas gerais se enfocavam na governanta, o que
desviara dela qualquer possível atenção.
— Phyllis Wick não é capaz de fazer mal a ninguém — refu‑
tou Barnabas.
— Mas de que outra forma você pode explicar as coisas estra‑
nhas que vêm acontecendo recentemente nesta casa?
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partilhasse de seu sangue vil, que sua maldade lhe corresse através
das veias, no final das contas. Mesmo assim, ela abriu a gaveta e
agarrou a boneca num repelão, invocando a serpente de fogo tão
facilmente como se tivesse inspirado um pouco mais fundo até en‑
cher os pulmões.
Tremendo de ódio, ela disse:
— Sarah... sua irmãzinha querida... Quando você a vir sofrendo,
Barnabas, irá sofrer do mesmo modo — disse mais para si mesma.
Depois, com uma careta de raiva, acrescentou: — Você vai se arre‑
pender de ter me abandonado, Barnabas. Algum dia você vai dese‑
jar nunca ter parado de me amar.
Então, com a intenção mais malevolente, ela cravou a primeira
maromba no pano macio e azulado, depois outra e enfim, uma ter‑
ceira. Com os olhos da mente, ela viu Sarah gritar e cair no chão, o
olhar assustado da governanta, a família acudindo ante seus gritos
e, sobretudo, o rosto angustiado de Barnabas.
Algumas horas depois, quando Angelique escutou a batida à sua
porta, rapidamente escondeu a boneca sob seu travesseiro. Bem a
tempo, porque Barnabas abriu a porta violentamente sem esperar
que ela atendesse, seu rosto contorcido de preocupação.
— Você viu a bonequinha de Sarah? — perguntou aos gritos.
— Aquela bonequinha azul com o aventalzinho branco. Ela está
chorando e pedindo por ela e não conseguimos encontrá‑la em
parte alguma.
— Não — respondeu ela, gelidamente. — Por que a boneca ha‑
veria de estar logo aqui?
— Pensei tê‑la visto apanhá‑la algum tempo atrás.
— Peguei mesmo e a coloquei no meio dos brinquedos dela. Por
favor, saia de meu quarto e não me incomode novamente.
Ele deu alguns passos, lançando os olhos ao redor, como se tives‑
se certeza de que veria a boneca em algum lugar do quarto.
— É que ela ficou tão doentinha, assim de repente! Está cho‑
rando pela bonequinha... Eu já a procurei pela casa inteira. Pensei
que... talvez...
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— Barnabas... Bom‑dia!
— Angelique.
— Como está Sarah?
— Muito melhor. É espantoso, sua doença desapareceu tão rapi‑
damente como viera.
Mas por que ele não dizia nada? Na noite anterior, ele estivera
disposto a barganhar com ela, mas agora parecia não lembrar de
nada! Não era possível que tivesse esquecido da promessa. Ela ten‑
tou acalmar sua ansiedade, mas sua impaciência era tanta que, uma
vez que ele não mencionava seu compromisso para com ela, teria de
introduzir o assunto ela mesma.
— Barnabas.
Ele ergueu os olhos.
— Quando você dirá à sua família? — indagou, forçando um
tom alegre. — Será uma grande surpresa para eles saber que vamos
nos casar.
— O quê? Nós nunca falamos de casamento...
— Como não? Não vá me dizer que já esqueceu! Ontem mesmo
você prometeu casar‑se comigo e esta não foi sequer a primeira vez.
— Mas... Eu pensava que Sarah ia morrer! Eu estava desespera‑
do... Perdoe‑me, mas você deve entender que eu não lhe faria esse
tipo de promessa em qualquer outra situação... Além disso, eu não
acho que o seu chazinho tenha tido algo a ver com a sua recupera‑
ção. Essa medicina herbal é primitiva e... foi uma coincidência, só
isso... Sem dúvida, você compreende...
Angelique virou o rosto, suas faces vermelhas de ódio.
— Não diga mais nada. É claro que eu compreendo. Ah, eu en‑
tendo perfeitamente. Eu o amo, mas você não pode me amar por eu
ser quem eu sou e não pode me aceitar como esposa. Tenho de com‑
preender que você me considera indigna de sua posição. Que você
sempre pensou assim de mim. Sua duplicidade não tem limites.
Você me traiu mais de uma vez em Martinica e agora está a me trair
outra vez, sem a menor piedade, sem a menor vergonha, fazendo
‑me promessas apressadas só para conseguir o que queria.
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tirano. Naomi fez que ele se calasse no momento em que ela abriu
a porta e entrou.
— Venha cá — ordenou Joshua. — Não, não se sente. Fique em
pé enquanto eu lhe digo o que tenho a lhe dizer!
Angelique não disse nada, esperando que ele continuasse.
— Então você pretende se casar com meu filho.
— Ele quer se casar comigo, senhor.
— Não foi assim que ele me apresentou a questão. Sua voz estava
totalmente despida de qualquer emoção.
— Mas foi assim quando ele falou comigo, senhor.
Joshua fez uma pausa, enquanto a avaliava.
— Por que você quer se casar com ele?
— Porque eu o amo.
Joshua soltou uma risadinha de troça e deu‑lhe as costas. Ela
podia perfeitamente perceber o desprezo que ele nutria por ela e
que envenenara seu coração.
— Esta é uma razão — declarou — que acho totalmente
incompreensível...
Ele se voltou para Naomi e declarou:
— Esse tal amor que ela diz sentir surgiu do nada! Talvez eu não
entenda o que é amor.
Naomi contemplou Angelique e ela pensou ver alguma simpatia
registrada no rosto da outra.
Joshua continuava:
— Acho absurdo se falar de amor entre duas pessoas que não po‑
dem ter passado mais do que uma hora em presença uma da outra.
Angelique sentiu que precisava se defender.
— Eu passei muitas horas em companhia de Barnabas.
— Você se aproveitou descaradamente dele em uma hora de
tanto sofrimento.
— As circunstâncias não são importantes. Nós nos teríamos ca‑
sado de qualquer forma.
Joshua encarou‑a friamente:
— Cavalheiros não têm o hábito de casar com suas servas.
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como o construíra e sua leveza lhe daria asas. Ela falou mental‑
mente com o baralho.
— Vocês são as paredes do quarto em que Phyllis Wick está es‑
condida. Vocês são o lugar em que ela se deita agora. Primeiro o
vento enregelante, depois o fogo crestador. Esse quarto está aqui,
totalmente sob meu poder.
Angelique escutou lá da rua a voz anasalada do Reverendo Trask
quando ele iniciou sua invocação:
— Eu invoco os Poderes da Luz para darem combate aos Poderes
das Trevas! Phyllis Wick, eu a previno de que os Poderes da Luz
estão presentes e que em breve a atingirão em sua própria alma! Sua
destruição está próxima! Avance, pois, e se entregue!
Angelique soube então que ele desenhara um sinal de exorcismo
na terra em frente à porta, porque projetou a voz bem alto:
— Phyllis Wick, a poeira agora conhece seu nome e a terra o irá
proclamar até os céus! Avance, pois, antes que os fogos do inferno a
consumam para sempre!
Ela podia imaginar a pobre Phyllis encolhida em um canto do
quarto, com medo de se mexer e até de respirar, atemorizada com
as admoestações de Trask e seus comandos cheios de retidão au‑
toproclamada. Angelique teve uma breve visão de outro lugar em
outra época, durante a qual ela mesma fora uma infeliz acovarda‑
da, mas a imagem se desvaneceu tão rapidamente como tinha
chegado e ela retornou à sua tarefa. A mulher jamais se apresen‑
taria, a não ser que fosse obrigada a fazê‑lo. Angelique, descar‑
tando os pensamentos sobre a depravação que descobria dentro
de si mesma ou sobre o ser malevolente com quem falava, come‑
çou a encantação. Acendeu uma vela de cera e aproximou a cha‑
ma da frágil habitação que protegia a mulher inocente. Começou
a entoar uma cantilena:
— Eu invoco o Coração do Fogo que queima no interior do Co‑
ração do Gelo!
Ela tremia. Percebia inteiramente o que estava fazendo agora. Ela
caíra tão baixo, que estava pedindo a ajuda do Diabo. Ela podia escutar
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Aquela noite, depois que os dois tinham se deitado, ela criou a imagem
de um corpo adormecido em seu leito e se escondeu por trás da porta
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mesmo que essa fosse a única maneira de tê‑lo para mim. Quando
nos encontramos pela primeira vez em Martinica, você me desejou
como mulher e não pensou jamais que eu fosse uma feiticeira. Quan‑
do eu lhe disse, não me acreditou, desejou‑me, perseguiu‑me, amou
‑me e seduziu‑me. Essa é a mulher que está diante de você agora.
— E tudo o que eu vejo agora é uma carne imunda e podre por
baixo de seu exterior reluzente. A bruxaria está em seu coração!
Pense no que fez!
— Naquela noite em que eu cheguei aqui e fui até seu quarto,
não tinha lançado mão ainda do menor feitiço. Tinha resistido e
rejeitado todas as minhas habilidades durante anos. Se você me ti‑
vesse demonstrado seu amor da mesma forma que me amou em
Martinica, nada disso jamais teria acontecido. A culpa é toda sua,
por que você me rejeitou!?
— Porque eu amo Josette! Não consegue aceitar isso? Meu Deus,
Angelique, eu dormi com você! Uma virgem vestal não estaria ar‑
mando toda essa confusão. Essa é a história mais antiga do mundo,
um oficial com uma camponesa. Tenho certeza de que você gozou
com uma porção de “cabos de vassoura” antes de me conhecer!
— Canalha! Como ousa dizer isso? Está cego para a verdade!
Naquela primeira noite, depois que cheguei nesta casa maldita, você
me deixou tão furiosa, que eu não queria amá‑lo nunca mais! Eu
queria... sim, eu queria era vê‑lo morto!
Ela respirou fundo, tentando aliviar a dor que sentia no peito.
— Mas quando vi seu sofrimento, não consegui suportá-lo! Eu
desfiz o feitiço! Pois não está vendo? Eu te amo! Eu não poderia
nunca, jamais lhe fazer mal!
— E espera que eu tenha pena de você, só por isso? Foi você...
que deixou... Sarah mortalmente doente, com seu brinquedo... Bem
que eu desconfiei, sua bonequinha e alguns alfinetes! Você usou
isso como um truque para me obrigar a desposá‑la!
Ela percebeu que o vislumbre total de sua malignidade o estava
enfraquecendo e ele acabou por se virar e seguir em direção à porta.
— Aonde você pretende ir?
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Jamais ela criara uma poção com tanto cuidado antes. Ela compôs
um antídoto tão poderoso quanto a própria morte, com os antigos
pós que trouxera de Martinica. Então, foi até a chaminé e removeu
o tijolo frouxo. Sem o menor receio, enfiou o braço dentro do in‑
terior cavernoso, tateou até encontrar um morcego adormecido e
fechou os dedos firmemente ao redor do corpo que se debatia;
puxou‑o para fora pela abertura e, apertando‑o contra o peito,
levou‑o de volta para seu quarto. Uma vez lá dentro, enquanto a
criatura lhe arranhava as mãos, ela lhe perfurou o coração e lhe
ordenhou o sangue para dentro de uma caneca.
Sentada à beira da cama de Barnabas, ela esperou que ele acor‑
dasse. Ele variava em seu delírio, murmurando:
— Josette! Espere por mim... Eu já vou...
Então seus olhos se cravaram em Angelique e ele estremeceu
com uma série de espasmos, quase em convulsão, enquanto gritava:
— Saia de perto de mim! Bruxa! Assassina! Não me toque!
Seu coração partido de dor, Angelique sabia que faria qualquer
coisa agora para salvá‑lo, até mesmo mandar trazerem Josette. Todo
o seu desejo de vingança se esgotara e enfim, tudo considerado, seu
amor por ele era mais forte até que seus ciúmes. Ela se inclinou so‑
bre ele e lhe murmurou ao ouvido:
— Diga‑me onde ela está — pediu — e eu a trarei para você.
Mas seus olhos lampejaram e ele rouquejou:
— Não! Você nunca a encontrará! Ela agora está a salvo de você!
— gritou e em seguida se deixou cair sobre o leito, exaurido, mur‑
murando — Josette! Eu vou buscá‑la! Nada me impedirá...
Após alguns momentos de respiração elaborada, ele se afrouxou
da cabeça aos pés e sussurrou roufenhamente:
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Ele nem sequer soube que soltara seu último suspiro nos braços
de Angelique. Ela lhe beijou o rosto, tão tranquilo agora e depois as
pálpebras que se fechavam sobre seus olhos fundos.
— Eu te amo — disse ela. — Eu te amei desde a primeira vez em
que te vi. E continuarei a amá‑lo para sempre.
O Espírito Negro estava no quarto.
— Para sempre... — repetiu.
— Sempre o mesmo pacto e sempre as mesmas mentiras — dis‑
se ela, suas lágrimas a cobrir‑lhe as faces.
— Não, não é o mesmo. Venha comigo agora e me sirva e algum
dia, dentro de alguns séculos, eu a libertarei.
— Não, não vou.
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— Está com medo de mim, não está? Mas de que é que tem medo?
É disto em que eu me transformei?
Ela recuou dois passos, tentando colocar o ataúde entre os dois, o
medo a lhe apunhalar o corpo como cacos de vidro de bordas afiadas.
— Está com medo de que seus poderes não funcionem mais comi‑
go? O Diabo que te carregue! Bruxa! Diga logo o que aconteceu comigo!
Foi necessário todo o seu controle para conseguir responder.
— A maldição... o transformou... em um morto‑vivo.
Ele soltou um longo gemido, balançando como se suas palavras
o tivessem atingido como uma bofetada.
— Mas você só pode viver à noite — ela sussurrou. — Ao nascer
do sol, será obrigado a retornar para este ataúde, para dormir, para
viver escondido dos raios solares ou será destruído pela sua luz.
— Eu me lembro... da praga... que me rogou, bruxa! — disse ele,
aos trancos. — “Quem doravante sentir amor por você — morrerá.”
Não foi isso que você disse? Não foi? Responda logo, maldita!
— Sim...
Seus olhos se injetaram de fogo.
— E você ainda me ama, Angelique... Foi por isso que tratou de
me impedir, não foi?
Ela pressentiu que seu tormento era insuportável, ainda mais do
que sua cólera, enquanto ele se inclinava em sua direção.
— Você sempre soube que seria a primeira, não é?
Ela sacudiu a cabeça, incapaz de falar e ele estendeu um dos bra‑
ços e a puxou cruelmente contra seu peito outra vez. Ela o empur‑
rou fracamente, impotente para resistir enquanto ele a dobrava
contra o ataúde.
— Você mentia ao me dizer que me amava?
— Não! Eu ainda te amo! Eu o amarei para sempre!
— Isto quer dizer então, de acordo com a praga que me ro‑
gou, que terá de morrer! — rugiu ele, apertando‑a contra si. —
Ame‑me, Angelique! Abrace‑me! Beije‑me, que eu lhe darei o
beijo da morte! Todos os poderes de sua bruxaria não a poderão
salvar agora!
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Barnabas fechou o diário e o deixou cair das mãos, mas ele ficou
apoiado sobre seus joelhos. Colocou a mão sobre a capa do livro e
acariciou o que restara do couro danificado com a ponta dos dedos.
A leitura da história de Angelique a trouxera de volta para ele tão
agudamente como se ela tivesse vivido novamente diante de seus
olhos e percebeu que seu coração estava leve e libertado de toda a
sua amargura. Ele soltou um longo suspiro, ergueu‑se e caminhou
até a janela. Portanto, fora mesmo amor que a motivara o tempo
todo. Ela nunca abrira mão da esperança.
O que teria acontecido, imaginou, se ele tivesse ficado com ela
— antes que ela fosse destruída porque ele mesmo lhe partira o
coração, antes que sua loucura se iniciasse. Mas já fazia tanto, tanto
tempo! Se ao menos ele tivesse partido com ela, se a tivesse tratado
com carinho e a conservado junto de si, aliviando sua dor. Ela o
havia amaldiçoado por meio de sua pavorosa semidivindade, mas
ela lhe deixara a vida — a vida de um monstro —, mas a vida, não
obstante. E ela havia sacrificado sua própria vida por uma chance
remota de realizar a jornada com ele.
Ele sempre amaldiçoara sua existência vil e sobrevivera como uma
criatura em perene tormento, mas agora, imagine o que acontecera.
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em seu coração. Você acreditou que ela pranteava junto a meu leito de
morte durante minhas horas derradeiras no mundo dos vivos, mas
nunca suspeitou de que ela fosse uma verdadeira feiticeira e jamais foi
capaz de fazer ideia da agonia por que passei ao despertar nas garras
de sua maldição.
Inicialmente, eu pensei que, por algum tipo de milagre, ainda
estivesse vivo. A febre havia passado e eu havia sobrevivido. Acordei
na escuridão, de posse de todas as minhas faculdades, desorientado,
mas consciente e acreditei estar em um leito de hospital dentro de um
quarto com os postigos fechados e as cortinas corridas para evitar a
entrada de luz, preso para minha própria segurança. Sem dúvida, as
cortinas tinham sido cerradas porque a luz do sol algumas horas antes
me havia causado tanto sofrimento. Mas enquanto eu sentia a meu
redor as tábuas envernizadas de meu compartimento, minha exalta‑
ção inicial por retornar à vida se tornou em confusão e imediatamente
em pavor. As paredes pareciam recordar — não! — inconfundivel‑
mente — as de um ataúde! O medo me apertou o coração. Eu teria
então sido enterrado vivo?
Antes de começar a lutar para me libertar, uma espécie de bru‑
ma caiu sobre minha mente que me tornou insensato e uma réstia
de luz cortou a escuridão, juntamente com um bafo de ar frio. Eu
senti uma vibração e ouvi os rangidos do que me pareceu ser uma
porta sendo aberta para dar acesso ao mundo exterior. Involunta‑
riamente apertei os olhos — bem fechados — contra a luz que me
escaldara anteriormente e permaneci imóvel como a morte. Um
cheiro doce e familiar se derramou contra minhas narinas e mur‑
múrios cálidos tocaram‑me os ouvidos, mas fingi estar adormecido,
paralisado por uma vaga apreensão.
Senti alguma coisa se alojar próxima a meu coração, uma ponta
aguçada ser apertada contra meu peito e outro corpo perto de mim que
se apoiava de forma a transferir seu peso. Incapaz de resistir por mais
tempo, abri os olhos e vi inclinada sobre mim, como se me quisesse con‑
fortar, uma visão embaçada: um vestido listrado de verde, cabelos
amarelos e olhos escuros cheios de lágrimas. Acho que a senhora já
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boca tivesse pelos por dentro e minha língua explorava as pontas agu‑
das de minhas presas com espanto. Dobrei‑a enquanto lutava e fechei
os ouvidos a seus gritos frenéticos. Então meu tormento perante a coi‑
sa odiosa em que me tornara se dissolveu na delícia intensa de lhe
abrir as roupas à força, entrar nela e me fundir com ela, descobrindo
sua jugular ao lhe rasgar o pescoço, enchendo minha boca e minha
garganta com seu néctar surpreendentemente doce.
Ah, mamãe, tente não me desprezar por isto que lhe revelo!
Quase imediatamente, eu a deixei cair no chão, enojado pelo que
havia feito. Pensei em arrastá‑la para a beira da água, onde a maré
baixa talvez a envolvesse e carregasse mar adentro, mas meramente
a deixei caída onde estava e desapareci no meio das trevas, contem‑
plando sua forma atirada ali, frouxa e torta como uma boneca,
meu segundo assassinato em dois dias. Ela me pareceu igual que
Angelique, pequena e imóvel.
Eu me apoiei na parede de um armazém vazio que dava frente
para o mar, senti o toque dos tijolos cobertos de musgo sujo pelo sal
que era trazido pela brisa marinha, aquela gordura acumulada du‑
rante anos sob a palma de minha mão, fraco, mas saciado, e deslizei
para o solo, sentado como em estupor, meus membros temporaria‑
mente paralisados, minha capa como uma lagoa negra sob minhas
coxas. Olhei lugubremente para o montinho disforme caído sobre as
tábuas da doca. A luz amarela do farol passou por cima dela, depois
a abandonou no escuro.
Eu era a taça e ela fora o vinho.
Eu me conservara vivo e agora sabia claramente que tipo de vida
levaria doravante.
Os primeiros albores da alva começaram a se arrastar pelo mar além
dos molhes e a linha borrada e cinzenta de uma tempestade em aproxi‑
mação revelou fracamente a linha do horizonte, lançando um novo
medo em minha mente. Eu sabia que teria de retornar para o mausoléu.
Tive a impressão de que voara até lá em um único instante e descobri
que Ben havia adormecido ao lado dos degraus de pedra e ficara ali a
noite inteira. Ele acordou, ainda envolvido em pesada letargia.
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— Barnabas, eu sei que foi você! Eu escutei sua voz... Você prome‑
teu que voltaria para me buscar e eu sabia que voltaria. Volte para
mim, querido...
Seus olhos percorreram o gramado e as árvores mais além.
— Ou você quer que eu vá até você?
Ajeitei‑me em meu ataúde, amargo e resignado, mas até certo
ponto em paz, porque Ben já se livrara do outro cadáver que estivera
ali dentro. Pensava somente em Josette e me senti profundamente
confortado pelo pensamento de que não chegara a lhe causar mal.
Finalmente, ela estava livre de mim e era ainda bem jovem. Sua vida
se estendia à frente com a promessa de felicidade. Um grande peso
pareceu ter sido retirado de sobre meu peito e me senti como se estives‑
se flutuando no ar. Fechei os olhos para o mundo, imaginei seu rosto
pairando sobre mim e escutei sua voz suave chamando‑me pelo nome.
Ah, mamãe, quais são as imagens que não consigo apagar? Seu
grito de espanto ao descobrir meu anel em seu dedo. Ben cavando‑lhe
o túmulo de suicida, fora do mausoléu. Uma violenta discussão com
Natalie que a trancou no quarto. O som de vidros sendo quebrados.
Sua descoberta da passagem secreta que Joshua mandara construir
dentro da casa. Seus pés escorregando na beirada de Widow’s Hill.
Seu grito de pavor enquanto caía através da noite.
Não tive consciência de que Ben chegara a erguer o martelo para
cravar‑me a estaca no coração, conforme prometera, mas que Josette
lhe sustara o braço.
Acordei como um suicida acorda após o fracasso de sua escolha
irrevogável pela morte; o alívio e a raiva combatiam em meu peito.
Como não poderia sentir uma vertigem de exaltação ao perceber que
a vida ainda fervia em meu sangue? Mas minha fúria contra Ben
parecia superar qualquer sensação de alegria pelo adiamento do ins‑
tante final e decidi então encontrá‑lo e torná‑lo minha próxima víti‑
ma. Seria a punição adequada por sua traição.
Ergui‑me pesadamente de meu ataúde e, imediatamente, espas‑
mos tão fortes de fome tremeram como uma convulsão através de meu
corpo inteiro que julguei não ser capaz de permanecer em pé. Cambaleei
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Mamãe, este deve ter sido o ponto mais abjeto de minha vida,
quando me voltei contra meu único amigo. Mas eu estava desesperado
para realizar meu plano. Tinha perdido qualquer vestígio de razão. Fu‑
rioso além de qualquer controle, agarrei Ben pela garganta com ambas
as mãos e o levantei, mesmo sendo tão pesado e mais alto do que eu.
— Ben — rugi —, eu posso matá‑lo facilmente. Você quer morrer?
Ele lutou inutilmente para se libertar, a ponta de seus pés mal
tocava o chão. Sufocado, ansioso para respirar, ele sacudiu a cabeça
em negativa.
— Então apronte a carruagem. Acabe os caixões a tempo e os leve
para o navio que está no porto!
Descobri que podia vigiar minha amada com os olhos da mente e
a leitura de seus pensamentos me acalmou. Mamãe, escute‑me e lhe
descreverei o que vi.
Josette não estava nem assustada nem arrependida, mas afundara
em um sonho. A lua se erguia diante de sua janela e lançava raios bri‑
lhantes como o dia ao longo do assoalho. Ela estava deitada sob seus
acolchoados, olhando para o espaço, arrebatadamente, capturada por
um aturdimento feliz. Ela tocou as pequenas feridas que lhe marcavam
o pescoço e suspirou enquanto uma onda de prazer percorria todo o seu
ser. Lânguida de felicidade, ela se espreguiçou e bocejou, depois se er‑
gueu e foi até a janela. O luar era uma força magnética, puxando seus
pensamentos e ela falou como em transe:
— Meu querido, sinto a proteção de um poder maior que o pró‑
prio amor. Fui até o mausoléu. Lembranças tão trágicas. Quem me
poderia ter forçado a ir até lá?
Mas então minha visão foi alterada por sua confusão. De algum
modo, ela perdera o anel de ébano que eu enfiara em seu dedo anular.
— O anel! Ele vai esperar que eu esteja com ele!
Procurando freneticamente, ela derrubou uma lâmpada de cabe‑
ceira. O som do vidro se quebrando foi acompanhado por um riso
distante, oco e sem alegria. Ela retornou para o conforto do luar, mas
o orbe inconstante se escondera por trás das nuvens. Uma tempestade
se aproximava. Trovoadas. Fios de bruma velejaram sobre a lua e
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e sedento de sangue. Olhe. Olhe para o penhasco. Olhe para seu futu‑
ro. Veja como será transformada. Veja como você será depois que se
tiver tornado sua noiva.
Josette, hipnotizada pela voz, obedeceu e caminhou até mais perto
da beirada do penhasco. Inicialmente, só avistou o mar se estendendo
até a fímbria do horizonte, distante, uma mistura de roxo e de verde,
com a espuma branca rodeando e caindo por entre as lâminas retor‑
cidas das rochas a seus pés. Então, ao encarar diretamente o abismo,
percebeu a visão que Angelique conjurara para lhe mostrar, uma ima‑
gem que flutuava no nevoeiro, que troçava dela, mesmo em sua con‑
fusão apalermada, porém que conseguiu despertar‑lhe a vaidade.
Mamãe, eu lhe pergunto agora, em sua condição de mulher, sem dú‑
vida a senhora entenderá, como ela não poderia ter sido iludida por esta
aparição demoníaca? Como uma donzela dotada de tanta beleza pode‑
ria não ser vaidosa? Ela me amava, sem dúvida, mas também amava
seus cabelos castanhos, sua pele de alabastro, seu olhar luminoso. O espe‑
lho sempre lhe devolvera uma imagem viva de total perfeição. Muitas
vezes, ao imaginar que me beijava, ela beijara seu próprio reflexo na lâ‑
mina de cristal do espelho e recuava, maravilhada com a forma que as‑
sumia o amor em seus próprios olhos sombreados pelos cílios longos.
E agora, quando ela contemplava o abismo, que tipo de abomina‑
ção ela viu flutuando sobre ele? Uma prostituta velha e desgastada
vestida de farrapos. As garras do vento erguiam a barra de uma saia
andrajosa, a musselina em trapos flutuava a seu redor. Seus cabelos
brilhantes se haviam transformado em um novelo emaranhado, sua
pele imaculada perdera todo o brilho e seus malares altos e elegantes
se haviam transmutado em fundos emaciados que lhe destacavam os
planos da caveira. Seus olhos ternos estavam afundados e injetados de
sangue, com círculos escarlates ao redor. O sangue pingava‑lhe dos
lábios e, mais horrível do que tudo o mais, um par de caninos pontia‑
gudos como adagas brilhava de dentro de uma boca cavernosa.
— Não, afaste isso de mim!
Ela cobriu os olhos e estremeceu. Jamais havia sonhado que um
dia pudesse ficar feia. O que ela possuía, senão sua beleza? Sua pai‑
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Lara Parker
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