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Lara Parker

A vingança de Angelique

traduçÃo :

William Lagos

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Título original:
Dark Shadows: Angelique’s descent
Copyright © 2012 by Lara Parker
1ª edição – Maio de 2012
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009
Editor e Publisher
Luiz Fernando Emediato
Diretora Editorial
Fernanda Emediato
Produtor Editorial
Paulo Schmidt
Assistente Editorial
Diego Perandré
Capa e Projeto Gráfico
Alan Maia
Diagramação
Kauan Sales
Preparação
Marcia Benjamim
Revisão
Josias A. Andrade

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Parker, Lara
Sombras Noite: A vingança de Angelique / Lara Parker ;
tradução: William Lagos. ‑­‑ São Paulo :
Geração Editorial, 2012. -- (Coleção dark shadows)
Título original: Angelique’s descent
ISBN 978­‑85­‑8130­‑065‑8
1. Ficção norte-americana I. Título. II. Série.
12-05733 CDD: 813
Índices para catálogo sistemático
1. Ficção : Literatura norte-americana 813

Geração Editorial
Rua Gomes Freire, 225/229 – Lapa
CEP: 05075­‑010 – São Paulo – SP
Telefax.: (+ 55 11) 3256­‑4444
Email: geracaoeditorial@geracaoeditorial.com.br
www.geracaoeditorial.com.br
twitter: @geracaobooks
2012
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

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PARA MINHA MÃE E MEU PAI
com amor

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Agradecimentos

esejo agradecer com grande apreço a algumas daquelas pessoas


cujo trabalho tornou possível este livro.
Inicialmente, a Jim Pierson, o campeão e protetor que iniciou
esta série de romances, Sombras da Noite. Foi ele que produziu os
vídeos da série Sombras da Noite e promove o Festival Anual Som‑
bras da Noite, em um esforço constante para manter o programa
fora das sombras.
Sinto‑me grata a todos os fãs de Sombras da Noite que me transmi‑
tiram seu carinho e apoio, especialmente a Marcy Robin e a Kathleen
Resch, editoras de shadowgram, que generosamente compartilharam
comigo suas pesquisas sobre o ano de 1795 e seu próprio romance
sobre Angelique, intitulado Inícios: a Ilha dos Espíritos.
Gostaria de agradecer do fundo de meu coração a minhas amigas
escritoras, Trudy Hale, Celeste Fremon e Carolyn Lowery, que gene‑
rosamente leram partes deste livro, fizeram sugestões e se demons‑
traram dispostas a conversar comigo durante horas nos períodos

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Lara Parker

em que eu me sentia confusa ou perdida. Foram aves de arribação


que deixaram ovos em meu ninho e estes descascaram na forma de
ideias fabulosas.
Contudo, minha gratidão mais calorosa vai para minha editora
paciente e inteligente, Caitlin Blasdell, cuja orientação me alimen‑
tou e me deu coragem para escrever este livro e por sua gentil suges‑
tão de que “metáforas são como joias: um colar é suficiente”.
Os roteiristas deste período para o programa de televisão Som‑
bras da Noite, Sam Hall, Ron Sproat e Gorden Russell, foram uma
fonte de inspiração contínua, do mesmo modo que Kathryn Leigh
Scott, que foi a primeira a publicar os meus escritos em O Compa‑
nheiro das Sombras da Noite. Constantemente me referi aos muitos
livros que ela publicou com base nos episódios da série a fim de sa‑
cudir a poeira de minhas lembranças e sempre me descobri atraída
novamente para aquele mundo mágico delineado por ela.
Estou profundamente agradecida ao meu marido Jim Hawkins e
à minha filha Caitlin por seu constante amor e entusiasmo.
E estarei para sempre em dívida com Dan Curtis, cuja visão ins‑
piradora originou Sombras da Noite e que deu ao mundo esses per‑
sonagens imortais que nunca cessam de nos exasperar e encantar e
que, para mim, deu o papel de Angelique.

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Minha Senhora abandonou o Céu, abandonou a Terra
E desceu para o mundo inferior.
Inana abandonou o Céu, abandonou a Terra
E desceu para o mundo inferior.
Abandonou o domínio, abandonou a senhoria.
Ela desceu ao mundo inferior.
Mito sumério , 2000 a .C.

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Um

arnabas acordou tremendo, seu coração batendo forte, a respi‑


ração descompassada e saindo aos arrancos. Um enorme peso
parecia esmagar seu corpo e era como se seus membros estivessem
desprovidos de força e acorrentados. Ele enfiou os dedos no traves‑
seiro que o estava sufocando, ergueu­‑o de cima do rosto e saiu do
sonho com um esforço violento, como se precisasse transformar
suas mãos em garras para se firmar na realidade. Por longos instan‑
tes permaneceu ofegante na escuridão, a flutuar lentamente para
fora de seu pesadelo, sentindo­‑se às vezes deslizar por instantes e ser
de novo puxado para baixo, ao encontro das visões apavorantes que
iam descendo em espiral para um vórtice cada vez mais profundo.
Girou o corpo, ficando agora de costas sobre a cama e soltou um
suspiro. Estendendo as mãos para os lençóis, esfregou a superfície
com a ponta dos dedos; depois se retorceu para um dos lados, em
direção à janela, a fim de contemplar no céu o brilho da falsa aurora.
Pensamentos aberrantes corriam ao redor de seu crânio enquanto
ele lutava para se libertar do pânico que o havia dominado. Imaginou

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se deveria acordar Júlia e pedir que lhe aplicasse outra injeção. Ela
conservava o frasco com o medicamento sobre o tampo de seu tou‑
cador e teria prazer em ser acordada por ele, feliz por poder ajudá­‑lo.
Seu olhar correu pelo quarto, em busca de segurança. Raios de
luz se refletiam vacilantes sobre a madeira da coluna da cama, os
entalhes da cômoda, o brilho do espelho. Do outro lado da janela,
os galhos do carvalho retalhavam a lua com suas sombras espessas.
Sentou­‑se com dificuldade, movendo os pés para fora da cama, as
solas alfinetadas pela textura espinhosa do tapete grosso. Enquanto
contemplava a escuridão, as gavinhas do pesadelo retornaram ondu‑
lantes para sua mente. A mulher de seu sonho demonstrara avidez,
gemendo ao encontro de seu abraço, erguendo sua boca para en‑
contrar a dele, seu corpo cálido apertando­‑se contra ele. Seus cabe‑
los eram fragrantes e sua pele recendia a almíscar e ele podia
recordar a pena que sentira dela, uma piedade que se formara tal
qual uma nuvem ao redor da fome que fluía através de suas veias.
Ele praticamente não a conhecia, era uma garota maltratada da Rua
do Rio e ele a havia encontrado como tinha achado todas as outras,
enquanto caçava durante as noites através dos bares mal ilumina‑
dos que se apertavam uns contra os outros na zona do cais. Quanta
confiança ela havia demonstrado quando se curvara para ele... Sua
mão se movera debaixo da capa que ela usava, subindo pela parte
mais funda das costas, onde podia sentir as costuras de seu vestido
ao redor da cintura dela. Ele sentia a dor de uma necessidade irre‑
sistível que lhe enfraquecia o corpo inteiro e sua boca se enchera de
amargor com a recordação de sua própria obsessão desprezível.
— Não consigo respirar... — sussurrou ela enquanto ele a aper‑
tava contra si.
Ele pretendera então, antes que fosse tarde demais, deixá­‑la par‑
tir. Mas ela acariciara a parte de trás de seu pescoço com o toque
leve da ponta de seus dedos e ele estremecera. Ele podia ler os pen‑
samentos dela, do mesmo modo que seus movimentos lhe traíam
os motivos: sua capitosa incredulidade perante seus avanços, suas
fantasias dançando juntas em um amontoado de possibilidades:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

“Collinwood — a senhora da mansão rural — a inveja de suas ami‑


gas — posição e vida fácil...” Sua mente provinciana mal conseguia
conceber tal riqueza! Seria possível que ele a amasse? Que fosse ca‑
paz de torná­‑la sua esposa? Ela estava desesperada e imprudente‑
mente disposta a tudo.
Ela desatou o laço de sua capa, revelando o brilho lustroso de seu
colo e ele lhe acariciou a pele. Ela lhe lançou um olhar lascivo, e se‑
gurando sua mão imensa com suas duas mãozinhas bonitas, cobriu­
‑a de beijos. Então, com um suspiro, ela se derreteu em seu abraço.
Ele segurou as madeixas de seus cabelos perfumados e empurrou­
‑as gentilmente para trás. Não eram os seus seios que ele buscava.
Seus lábios roçaram o colarinho de seu vestido e se esfregaram pela
curva de seu pescoço. Sua pulsação palpitava ali como um tambor...
NÃO! Não mais! Com um esforço, Barnabas se arrancara do so‑
nho e retornara à consciência. Sua respiração irregular e ofegante,
ele se levantou, caminhou até a janela e olhou para fora. A lua esta‑
va cheia e se embalava no berço formado pelos ramos do grande
carvalho que se erguia por trás de Collinwood. Refletia­‑se nas te‑
lhas de ardósia do telhado da torre redonda e ao longo das paredes
de pedra, cobertas de trepadeiras grossas que lembravam veias. Sua
luz flutuava pelo pórtico calçado com grandes pedras lisas, a ba‑
laustrada esculpida e as janelas ogivais com caixilhos de chumbo,
retas e verticais no primeiro andar, formando arcos mais acima,
iluminando os quartos em que dormia a família que ele considera‑
va como sendo a sua.
Como sempre, o luar o seduzia e ele ansiava para andar lá fora,
sentindo a prata líquida correndo em suas veias ao invés de sangue.
Mas ele foi tranquilizado pelo primeiro pensamento que lhe per‑
passara a mente, no próprio instante em que acordara, e ainda po‑
dia recordar a voz incrédula de Júlia em um desvão de sua memória:
“Barnabas! Nós conseguimos! Você está curado!” A percepção de
que ele não era mais uma criatura da noite e que, finalmente, podia
retornar ao escurecer para seu leito, com a consciência limpa, e se
levantar ao nascer do sol — essa simples aceitação de um dom

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ansiado tão profundamente e todavia tão pouco apreciado pelos


homens comuns inundou sua mente com uma alegria desesperada.
Do ponto em que estava parado junto à janela, ele mal podia
distinguir, lá bem distante, além do bosque, a Casa Velha aninhada
em um prado, brilhando com a fantasmagoria de um templo grego.
Ele sentiu um palpitar de nostalgia e, ao mesmo tempo, de uma
fascinação maligna. A casa possuía uma beleza neoclássica gracio‑
sa, mal localizada entre os bordos e cicutas da Nova Inglaterra e ele
imaginou, como já fizera tão frequentemente no passado, um lar
totalmente voltado à música e ao riso, bailes encantadores com can‑
delabros cheios de velas acesas e casais girando, as lindas moças em
suas saias rodopiantes nos braços de jovens cavalheiros elegantes.
As numerosas salas seriam atendidas por escravos bem­‑humorados
que assavam veados com temperos finos, passavam a ferro as rou‑
pas de linho e poliam as baixelas e faziam todas as coisas necessá‑
rias para que a feliz aristocracia rural pudesse prosseguir sem
preocupações no gozo de suas confortáveis vidas de prazeres.
Mas esse não tinha sido o destino daquela mansão condenada,
escondida em uma fria cidadezinha da Nova Inglaterra, ainda que
magnólias pendurassem seus botões de marfim por sobre o grama‑
do. Em vez disso, a lua lançava um brilho gélido sobre o edifício
pálido, apagando a impressão de qualquer ambiente de calor ou
alegria. Abandonado agora, não era um templo, mas um sepulcro,
seus quartos vazios ainda reverberando com os passos de gerações
da família Collins, em que ele mesmo tinha habitado, e onde, mais
tarde, até mesmo se escondera a dormir em um compartimento do
porão, depois partindo, somente para retornar de novo para
Collinwood em outro disfarce, como se fosse um primo ou um
parente distante.
Recordar agora estas lembranças era o mesmo que provar um
fruto passado, muito nojento e podre. “Tão parecido com Barna‑
bas”, diziam sempre. “Ora, você podia ser gêmeo dele!” E igual que
antes, ele era bem recebido pela família incestuosa, abraçado pelos
segredos e as culpas que ninguém mencionava e que isolavam e

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distanciavam a família do mundo exterior. “É espantoso. Como ele


é parecido com o retrato...”, eles murmuravam uns para os outros.
E ele, suportando a vergonha e os horrores indizíveis, tinha per‑
manecido entre eles durante sete gerações, pretendendo uma seme‑
lhança de normalidade, morto, mas não morto, suas fomes macabras
crescendo e diminuindo ao longo dos anos de experiências. Suas
esperanças transbordavam em vagas promessas, somente para tom‑
bar vezes sem conta em total desespero enquanto as garras inexorá‑
veis da maldição, como algemas de ferro, se retorciam novamente
ao redor de sua alma.
Até agora.
Agora, final, inacreditável e inconcebivelmente — ele estava li‑
vre. “Barnabas! Nós conseguimos! Você não é mais...” — seu rosto
se contraiu em uma careta somente pela recordação da palavra —
“um vampiro...”. A percepção de que ele estava curado ainda era
difícil de aceitar. Ele tinha vivido por tanto tempo como um prisio‑
neiro de suas fomes abomináveis.
Ele abriu os postigos e respirou o ar fresco da noite. Sentiu o
cheiro do mar, úmido e pungente e o leve nevoeiro que subia dos
amplos gramados da fazenda, adocicado pelo perfume das gardê‑
nias e dos narcisos em botão. Uma coruja piou duas notas trêmulas
e uma outra lhe respondeu à distância. A atração do luar era forte
enquanto revelava o mundo abaixo em detalhes nítidos e brilhan‑
tes. Tudo parecia tão claro quanto o dia, somente vazio de cores. As
tonalidades de cinza eram infinitamente variadas e o conjunto ti‑
nha a textura de um chiaroscuro divino que esculpia cada objeto. Ele
ainda conseguia ver o orvalho sobre a grama, a curva das folhas
grossas da magnólia e a perfeita carnação das flores.
Barnabas percebeu que seu controle retornava enquanto sua res‑
piração se acalmava e seus batimentos cardíacos retomavam seu rit‑
mo normal. Ele estava livre. Curado, finalmente. Humano. Por que
então ele ainda era assombrado por esses sonhos? Quase todas as noi‑
tes ele era acordado por uma corrida febril de lembranças vergonho‑
sas. Se aqueles anos horríveis, aqueles séculos de angústia estivessem

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realmente atrás de si agora, se sua vida fosse finalmente tornar­‑se


fácil e normal, desdobrar­‑se da maneira mais comum à medida que
ele envelhecesse, ficasse velho e morresse — como qualquer outro
homem — por que então ele ainda era atormentado por essas visões
da vida que tivera antes? Sem dúvida, elas logo acabariam por fene‑
cer e desapareceriam para sempre.
Um cão uivou, longa e melancolicamente e outro respondeu, la‑
mentoso, solitário, prisioneiro da noite e Barnabas reconheceu aus‑
teramente a presença de uma alma irmã. Ele também tinha
percorrido as extensões enluaradas daquele gramado, que abraçava
a escadaria de pedra e o caminho calçado com pedras largas, quan‑
do sua única interação social ocorria após o pôr do sol e as lareiras
eram acesas no grande salão. Somente então ele podia gozar da
companhia humana e começar a conhecer — talvez até mesmo
amar — os muitos membros da família Collins que consideravam
esta casa como seu lar. Fora aqui que tudo havia começado.
Fora quando ele recebera sua noiva que viera de Martinica, a
jovem de olhos escuros, pele de um branco de alabastro e sorriso
radiante, sua amada Josette. Fora também nessa ocasião que sua
criada viajara com ela, a raposa de olhos verdes que havia assom‑
brado e destruído sua vida, a misteriosa e linda Angelique.
Barnabas estremeceu, pensou em fechar a janela, mas se sentia
capturado pela luz do luar a derramar­‑se sobre a mansão distante e
pela melancolia que crescia dentro de seu próprio peito. Porque esta
era, dentre todas as noites, justamente a última em que a velha casa
permaneceria erguida sobre seus alicerces.
Ele e Júlia tinham concordado, depois de muitas discussões com o
resto da família, algumas delas acaloradas, que a casa antiga deveria
ser demolida e arrasada até os alicerces. A companhia de demolição
chegaria na manhã seguinte. Talvez esse conhecimento fosse respon‑
sável pela intensidade de seu sonho e ele esperava que, com a destrui‑
ção da casa, suas lembranças angustiantes também partissem. Júlia
tinha razão. Era ridículo conservar em pé a Casa Velha quando já
fazia dois séculos que a família habitava a nova e elegante mansão, a

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Casa Grande de Collinwood, em que agora ele dormia e acordava


para caminhar à luz do sol. A Casa Velha estava mesmo apodrecendo
em seu abandono, tornara­‑se quase uma ruína. Somente o luar lhe
emprestava solidez. Suas salas estavam vazias e desertas. Tinha sido a
residência de fantasmas por um tempo longo demais.
Barnabas estremeceu novamente e agora era de fato devido ao
frio. Os cães que uivavam gemeram novamente, como se prantean‑
do por alguma caverna confortável, perdida quando seus ancestrais
ainda viviam em alcateias, e ele estendeu os braços para fechar a
janela contra o ar da noite. Nesse mesmo instante, uma lufada de
vento correu pelas árvores, sacudindo seus ramos negros para um
lado e para o outro, enquanto a própria lua parecia girar no céu. Ele
lançou o olhar por sobre as águas­‑furtadas do telhado e depois para
o gramado e mais uma vez estremeceu de susto, a respiração tran‑
cada na garganta. Porque havia visto, ou pensara ter visto, o vulto
de uma mulher parada sob a sombra das árvores.
Ele somente vira uma silhueta, mas ela estava vestida totalmente
de branco e a barra de suas saias roçava a grama do chão. Ela usava
uma capa que lhe cobria os cabelos e ocultava­‑lhe o rosto, mas o
ângulo de sua cabeça parecia indicar que ela estava olhando em
direção à janela em que ele se encontrava e ele pensou fitar o brilho
que emanava do olhar dela.
Seria uma visão conjurada por suas reminiscências? Teria ele
permitido a seus sonhos e reflexões invocarem espíritos? Mas não,
aquilo não era nenhum fantasma. Ela permanecia ali, claramente
desenhada contra as janelas compridas da ala ocidental da Casa Ve‑
lha. E então, ela se virou e começou a caminhar, desaparecendo na
escuridão das árvores.
Quem poderia ser essa mulher? Talvez seu carro tivesse sofrido
uma pane na estrada e ela tivesse se aventurado pelo longo cami‑
nho da entrada para a mansão até o ponto em que, intimidada
pelas janelas escurecidas, tivesse ficado com medo de chegar e
bater­‑lhes à porta a essa hora da noite. E agora ela estava perdida,
incapaz de achar o caminho de volta para a estrada. A curiosidade

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começou a bater as asas como uma mariposa contra a janela da


razão, porque o remorso de suas lembranças estava tão ativo como
sempre estivera. Ele se flagrou calculando se poderia ser alguma de
suas antigas vítimas, talvez a jovem de seu sonho, alguma alma
penada em busca de recompensa, ansiosa por consolo, ainda va‑
gueando pelo purgatório dos não­‑mortos. Enquanto buscava seu
chambre e seus chinelos, ele sorriu amargamente perante os capri‑
chos de sua imaginação. Não havia assombrações vagueando esta
noite. Contudo, quem seria ela? Se estivesse em dificuldades, era
sua obrigação ir ajudá­‑la.
Enquanto se movia através do quarto, ele viu de relance o reflexo
de sua imagem no maciço espelho de moldura dourada que se er‑
guia sobre o toucador. Recordou o tempo em que não tinha sido
mais capaz de ver sua própria imagem nos vidros, e o reflexo o dis‑
traiu por um instante. Ali estava ele, iluminado pelo luar, um cava‑
lheiro elegante, com cabelos escuros levemente crespos e apenas
começando a ficar grisalhos nas têmporas. Era um homem de li‑
nhagem sofisticada, até mesmo aristocrática e seu rosto mostrava
traços de nobreza: malares amplos, nariz aquilino, olhos escuros
como carvão protegidos por sobrancelhas grossas, uma boca deli‑
cada e sensual, lábios que se curvavam em um sorriso secreto e en‑
cantador, erguendo­‑se apenas levemente nas suas comissuras. Era
uma face de sensibilidade delicada, o rosto de um poeta. Contudo,
ainda brilhando como brasas nas profundezas de seus olhos, apare‑
cia um olhar tão intenso que era quase ferozmente hipnótico.
Enquanto caminhava pelo longo corredor até a escadaria, Bar‑
nabas passou pela porta do quarto de Júlia. Por um momento, ele
hesitou, imaginando se deveria acordá­‑la e pedir­‑lhe que fosse in‑
vestigar em seu lugar.
Ele lhe havia feito uma solene promessa de interromper todas as
suas visitas à Casa Velha. Esta tinha sido uma das condições para
sua cura através das longas semanas de convalescência. Ele pensou
em sua paciência e em seu profissionalismo, em suas experiências
incansáveis, nunca cedendo ao desespero, uma cientista em sua

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obra, pesquisando, testando, levantando hipóteses, sempre cheia de


otimismo. Querida Júlia... Ele sabia que seu motivo era o amor; ela
era mais devotada que qualquer outra mulher que jamais tivesse
conhecido. Sua força se encontrava em seus conhecimentos. Ela o
salvara e era apenas justo que se tornasse sua esposa. Ela havia fala‑
do com tanta seriedade, suas vistas brilhando sobre as altas maçãs
do rosto: “Você é como um alcoólatra, Barnabas, que não poderá
jamais tomar uma única gota de vinho, percebe? Prometa­‑me que
jamais irá retornar àquele lugar...”
Esta era a razão porque ele hesitava agora, mas então decidiu que
somente iria percorrer o gramado e se adiantou resolutamente até a
grande escadaria que conduzia ao vestíbulo.
O luar envidraçava a entrada com seu lustro gelado. Enquanto ca‑
minhava em direção à porta, ele olhou brevemente — como já fizera
milhares de vezes antes — para seu retrato pendurado na parede, que
todos imaginavam ser somente uma pintura de seu ancestral, o pri‑
meiro Barnabas Collins. Ali estava ele, usando a indumentária de
um cavalheiro do século XVIII, segurando sua bengala e a demons‑
trar grande autoridade, o castão de prata esculpido no formato da
cabeça de um lobo. Sacudindo a cabeça tristemente, abriu a porta e
ingressou no mundo da noite.
Barnabas se deslocou ao longo da relva úmida em direção ao
bosque. O vento sacudia os galhos das árvores e um chuvisco de
folhas se espalhava sob seus pés. O orvalho escorria generosamente
das folhas longas das ervas e o aroma de ameixeiras e cerejeiras em
botão perfumava o ar. A coruja merencória novamente entoou suas
notas em timbre de oboé, e Barnabas ergueu os olhos para ver o
grande pássaro deslizar sobre sua cabeça em um silêncio surpreen‑
dente. Suas amplas asas fecharam uma rápida cortina contra a luz
da lua e deixaram uma sombra móvel sobre a grama. Barnabas qua‑
se teve uma vertigem ao perceber a longa silhueta negra que ele
também lançava sobre o gramado.
Mas ele era o único ser humano a vaguear pela paisagem e sua
antiga solidão amarga doía­‑lhe no coração. A mulher não podia ser

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vista em lugar algum. Desvanecera­‑se totalmente e ele se indagou se


não a havia simplesmente imaginado.
Contudo, alguma coisa ainda o puxava e o arrastava para mais
além. Ele chegara à orla do bosque. Como em um sonho, ele cami‑
nhou pesadamente por entre as árvores, buscando a alma penada
que lhe fugira, ainda sem nada ver. Somente os troncos escuros o
encaravam, até que ele notou, mais uma vez, a forma inconfundível
do pássaro, desta vez pousado em um ramo longo que se projetava
de um grande carvalho. À medida que se aproximava, a coruja vol‑
tou sua cabeça redonda em sua direção, olhando para baixo, pare‑
cendo cheia de curiosidade. Então alçou voo novamente, como uma
vela enfunada pelo vento, suas asas prateadas pelo luar, enquanto
flutuava acima da copa das árvores.
Barnabas pensou em retornar. Algum pressentimento vago pe‑
sava em seu peito, mas ele prosseguiu, atravessando uma clareira e
depois atingindo a seguinte.
Misteriosamente, seus pensamentos se voltaram para Angelique
e seu último encontro. Nesse momento, sua morte o havia comovi‑
do até a compaixão. Depois de ter causado vidas inteiras de sofri‑
mento, ela parecia estar profundamente contrita e havia tentado
uma última vez retirar a maldição de sobre ele. “Será possível que
você me possa perdoar?”, ela sussurrara. “Tudo quanto eu fiz, foi
por amar você...”
Ele tinha sido atraído mais uma vez por aqueles olhos verde­
‑azulados, marejados de lágrimas e havia fraquejado. Seus lábios pró‑
ximos à sua face, ele murmurara: “Sim, eu te perdoo. Eu te amo. Eu
sempre te amei”. Antes que ela morresse, ele proferira essas palavras!
Que tipo de pacto havia feito através da eternidade que jamais
o libertava de suas garras? Não obstante, ele se maravilhara com a
beleza do rosto dela, mesmo na morte. Encantara-se com o for‑
mato de seus braços e a curva de seus ombros enquanto ela tom‑
bava contra ele.
Mais de um século antes, ele falhara em suas responsabilidades
para consigo mesmo e para com sua família e arriscou tudo quanto

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

tinha, amor, juventude e a própria vida, somente para permanecer


com ela. Por quê? Ela representava tudo o que ele desprezava: a
identidade de seu pai era questionável, ela mesma traiçoeira, violen‑
ta e despida de virtudes. Mas acendera um fogo dentro dele; mesmo
agora, ele recordava a agonia pura de desejá­‑la…
Naquela primeira noite, depois que ele a mandara embora, An‑
gelique havia caminhado até a porta, suas saias flutuando como
ouro derretido sobre o tapete. Então, ela se voltara para lhe lançar
as vistas sobre um ombro, seu olhar tão firme e direto, tão cheio
com a promessa de abandono, seus olhos opalinos ao mesmo tempo
escuros e luminosos, uma gota de saliva brilhante em seu lábio in‑
ferior, um olhar tão conhecedor e tão conectado ao seu, que ele se
afundou naquele mar. Ela era seda líquida quando lhe estendera os
braços, com um odor totalmente seu, como o de ervas crescendo à
beira­‑mar e seu beijo era como o recordava, tão completo e tão
úmido quanto ele havia imaginado, enquanto seu corpo inteiro
palpitava para ela, pensando que seria capaz de viver dentro de sua
boca. Depois tinha perdido toda a lembrança de si mesmo e mergu‑
lhara na ferocidade daquele abraço, enquanto ela sugava a medula
de seus ossos e os enchia com seu próprio fogo.
Barnabas estremeceu só de pensar nela novamente. Sem dúvida,
ela fora a perseguidora e ele fora hipnotizado pelo poder que fluía
dela. Quantos milhares de vezes ele revirara os fatos ao redor de sua
mente, arranjando e rearranjando os dados, até que se sentira com‑
pletamente sem culpa e inocente. Barnabas perdera sua alma para
Angelique. Pelo menos durante algum tempo isso fora verdade. Ti‑
nha plena certeza disso. Ela fora um êxtase maior do que qualquer
homem podia ou deveria conhecer.
Naquele instante, antes de sua morte, ele falhara na força de sua
resolução e lhe dissera as palavras que ela ansiava por ouvir. Mais uma
vez ele imaginou como poderia ter sido tão infiel à sua terna Josette...
Josette! Sua mente imaculada e sua doçura radiante eram tão
reais para ele agora como tinham sido no dia em que a conhecera.
Ela fora educada com o maior esmero, era cheia de bondade, tinha

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Lara Parker

maneiras deliciosas e uma conversação encantadora. Subitamente,


ele sentiu um desejo avassalador de contemplar o túmulo de Josette,
de ficar em pé ao lado daquele lugar em que sua família a enterrara
após sua fuga desesperada do horror em que ele se tornara.
Ele estava cansado, até mesmo exaurido por sua busca fútil atra‑
vés dos bosques, mas decidiu caminhar até o cemitério. Tinha cer‑
teza de que, caso ficasse junto à sepultura de Josette, aquela sensação
doentia em seu estômago seria aliviada.
Já fazia bastante tempo desde a última vez em que subira o recife
até Widows’ Hill. Estava ofegando em consequência do esforço,
porque raramente se exercitara desde sua cura. Ele se resignou ao
fato de que não mais possuía aquela força com que se acostumara
enquanto era um vampiro, quando a ascensão de um rochedo ou a
travessia de um prado era alcançada pelo voo de um instante sobre
as asas do vento. Quando chegou ao local de onde Josette se lançara
para a morte, sentiu a salsugem do ar e ouviu as ondas se esbatendo
lá no fundo. Contemplou o mar escurecido. A lua pairava agora na
fímbria do horizonte, seu luar pintalgado flutuando através das
águas. Ele se virou e dirigiu­‑se ao cemitério.
Finalmente, chegou à entrada do local de repouso da família
Collins. O portão de ferro estava profusamente entrelaçado pelas
gavinhas de um jasmineiro, o ar docemente perfumado; podia ain‑
da distinguir outro aroma, o de gardênias tropicais, pesado no ne‑
voeiro, suas flores abertas nos galhos dos arbustos que pareciam
negros sob o luar e cresciam ao lado do portão. De onde se encon‑
trava, era possível avistar o mausoléu e as gárgulas esculpidas sobre
a cripta em que passara tantos dias adormecido até o pôr do sol,
escondido por detrás de uma porta de pedra, dentro de seu velho
ataúde. Seu coração batia de antecipação enquanto ele marchava até
o local em que sabia Josette fora enterrada, recordando­‑se de quan‑
tas vezes no passado distante ele se aproximara dali e ficara rezando
por sua alma durante horas.
Mas alguma coisa o confundira. A sepultura de Josette não se
achava no lugar que ele lembrava. Ali havia somente lápides caídas

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

e marcadores apagados, cabeças esculpidas e uma estátua vitoriana,


que um dia fora elegante, mas que fora desgastada pela passagem do
tempo. Havia sepulcros sobre os restos dos falecidos e aqui e ali um
sarcófago de pedra se erguia acima do solo. Ele começou a vaguear,
procurando entre as pedras tumulares, desorientado e zangado
consigo mesmo. Teria sua mente perdido a força, do mesmo modo
que seu corpo, em consequência de sua transformação? Começou a
ficar impaciente com sua inabilidade de encontrar o lugar de des‑
canso de Josette. Mas como poderia ser possível esquecer de uma
coisa tão importante para ele? Começou a retraçar seus passos, pa‑
rando junto às lápides, limpando a terra e as folhagens com as mãos,
tentando ler os nomes obscurecidos pela escuridão das sombras.
Totalmente frustrado, ele se encontrou parado diante de um gran‑
de anjo de mármore, profundamente desgastado pelas intempéries e
parcialmente amaciado pelo musgo. Barnabas não tinha lembrança
de haver visto esse monumento antes. O anjo pairava sobre a tumba
que guardava como uma figura medieval retirada de uma catedral
gótica, suas asas escuras abertas contra o céu. O luar enganoso brin‑
cava com os traços rasgados pelas chuvas, dando a impressão de que
eram rugas fundas abertas por lágrimas. As dobras de mármore de
sua túnica pareciam mover­‑se levemente e flutuar para longe do cor‑
po. Por um longo momento ele ficou ali, mesmerizado pela visão ce‑
lestial e estendeu a mão para tocar a forma de uma perna oculta pelas
vestes, imaginando como o mármore era capaz de se disfarçar de tal
maneira a parecer macio como carne ou sutil como tecido, quando
não era nada mais que pedra fria e dura.
Então seus olhos caíram sobre a inscrição, claramente visível à
luz agora oblíqua do luar e seu sangue pareceu congelar! “Angelique
Bouchard, 1774­‑1796”. E ainda, um pouco mais abaixo, “o amor
dorme no abraço da morte”. Ficou horrorizado. Era o túmulo de
Angelique! Mas quem colocara aquele memorial sobre ele? Um
anjo! Santo Deus! Sem a menor dúvida, era a mais absurda das re‑
presentações, pensou, baseada superficialmente, talvez, no nome
dela, mas tão incongruente com a vida da mulher que representava.

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Lara Parker

Ele estremeceu inconscientemente, uma vez mais, ao pensar nela


— Angelique — sua amante e sua nêmese, agora falecida, enquanto
ele, que a vencera para sempre, ainda respirava sobre a terra.
Subitamente, a imagem do anjo foi transformada em sua mente.
Não estava mais agraciada por uma santidade gentil, parecia antes ma‑
cabra e ameaçadora. Barnabas recuou, mais perturbado do que curio‑
so e sua busca pelo túmulo de Josette havia perdido toda a importância.
Ele começou a caminhar de volta até o portão, pretendendo retornar a
Collinwood, quando viu de relance a mulher que contemplara um
pouco antes — atrás das lápides mais afastadas. Era ela!
Ela se movia rapidamente, sua forma esfumaçada balançando
entre as tumbas. Sua garganta se apertou e uma nova energia pul‑
sou em seus membros. Desta vez, ele estava determinado a fazê­‑la
parar e correu em direção à sombra como se ela representasse sua
liberdade da escuridão.
Alguns momentos depois, surpreendeu­‑se ao se encontrar fora
do cemitério e no terreno que rodeava a Casa Velha. A mansão pa‑
recia flutuar à luz do luar, como um palácio fantástico. Ele chegou
aos degraus de tijolos desgastados e sua mão tocou um grande pilar
alabastrino. Sentia­‑se ofegante. O pórtico se achava deserto e so‑
mente o vento assobiava por entre as colunas, lançando folhas co‑
bertas de geada pelo longo corredor da entrada. Não podia ver a
mulher em parte alguma, estava intensamente desapontado e fu‑
rioso consigo mesmo por tê­‑la perdido. Sentia um pressentimento
vago de algum perigo e sacudiu­‑o de sua mente com impaciência,
até mesmo com cólera, enquanto subia os degraus.
E ali, de repente, à sombra do pórtico, ele a contemplou mais
uma vez. Alguma coisa em sua postura parecia indicar que ela espe‑
rava por ele. Percebeu a vitalidade em seus movimentos enquanto
ela se virava para a porta. A curiosidade agora queimava suas entra‑
nhas. Tinha certeza de que era um fantasma e que pretendia atraí­‑lo
para o interior da casa.
Novamente ele hesitou. Seria uma temeridade arriscar­‑se a en‑
trar ali? Ele estivera curado somente por um mês, mas a dor de sua

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transformação se abatera e desembocara em um conjunto de peque‑


nos desconfortos aborrecidos, cada sinal apontando para o sucesso
da medicação e para a permanência de sua mudança. Contudo, já se
haviam passado muitos anos desde que ele sentira a necessidade de
experimentar aquilo que se costumava chamar de coragem. Ele ti‑
nha sido temerário e arrogante em sua mocidade, antes mesmo de
ser amaldiçoado, demonstrando um desejo intimorato por aventu‑
ras. Agora, mais uma vez, a vida lhe apresentava um desafio. Ele
estava ansioso por correr o risco, para experimentar sua força nova‑
mente contra os perigos do mundo, para retomar sua posição no
mundo dos vivos. E aquela casa lhe trazia tantas recordações! Ele
sentiu uma dor aguda de remorso pelo fato de que seria agora demo‑
lida. Subitamente experimentou um desejo violento de caminhar
através das salas e corredores pela derradeira vez. Empurrou a porta
pesada e deu um salto para trás quando as dobradiças uivaram como
um animal selvagem capturado em uma arapuca e o trinco aberto
caiu de volta no seu encaixe com um clangor metálico.
Barnabas foi saudado por um silêncio tão profundo, que teve a
impressão de que a casa inteira estava envolvida em veludo. Odores
ao mesmo tempo desagradáveis e familiares lhe assaltaram as nari‑
nas: o mofo nos tapetes e cortinados, a poeira acumulada em cama‑
das grossas sobre o mobiliário, as cinzas frias e úmidas na lareira e
o cheiro enxovalhado de coisas abandonadas havia muito tempo,
abrandado e amortecido por um véu de teias de aranha. Havia ain‑
da um outro cheiro, menos sufocante, mas igualmente vil — o fe‑
dor pútrido de decomposição e morte. Pairava no ar como filetes de
fumaça e parecia subir pelo assoalho, como se os ratos que haviam
vivido no porão da casa condenada tivessem morrido de fome e
apodrecido lá embaixo.
Ele atravessou a sala de visitas, o ruído de seus passos como uma
batida oca de tambores e olhou para fora pelas janelas ogivais com
caixilhos de chumbo. Pensou ter ouvido um som roçagante e se virou
para examinar a sala. Estava vazia, exceto pelas sombras. Então escu‑
tou o som novamente e se voltou para a lareira imensa. Percebeu que

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Lara Parker

uma caixa de compridos fósforos de madeira tinha sido aberta e os


palitos jaziam ali contra os tijolos refratários do fundo da lareira,
mas a chaminé estava escura e fria. Acalmou seus nervos, fechou os
olhos e escutou. Fantasiou que o ar estava sendo agitado por cochi‑
chos e murmúrios vagos, mas esperou, até ter certeza de que não
escutava nada senão as batidas abafadas de seu próprio coração.
Moveu­‑se com determinação através do vestíbulo e subiu a larga
escadaria de balaústres pesados até os quartos do primeiro andar,
em que Joshua, Naomi, Jeremiah, Sarah e tantos outros haviam
dormido. Um fantasma entre fantasmas, ele percorreu cada quarto,
seu olhar recaindo sobre alguma textura ou padrão dos tapetes e
colchas que sua memória recordava. Todas as pinturas e artigos va‑
liosos tinham sido retirados dali há muito tempo. Mas ainda havia
papéis e fotografias, peças de roupa descartadas, berloques e artigos
de toalete — os fragmentos indesejados de vidas inteiras — empi‑
lhados sobre as cadeiras desirmanadas ou jogados pelo chão.
Sentindo uma tristeza inescapável, foi olhar o quarto de Josette.
As lembranças relampejaram em seu olhar interior e acariciaram
seus sentidos enquanto ele revivia o frescor e a doçura de seu rosto.
Recordou com uma dor vazia a delicadeza da mão que ela erguia
para ser beijada, a modéstia de seu olhar quando tinham sido apre‑
sentados pela primeira vez e sua voz gentil: “Monsieur Collins. Meu
pai me contou que você veio da América do Norte e que é um cava‑
lheiro de reputação e encanto invejáveis. É um prazer conhecê­‑lo”.
Atraído pelo corredor traseiro, em que ficavam as acomodações
dos criados, ele estava agora parado diante da porta do quarto de An‑
gelique, uma das poucas que estavam fechadas. Seu coração pulou
uma batida enquanto ele imaginava mais uma vez escutar o suave
som de roçagar e alguma coisa que se assemelhava a um suspiro. Fez
uma pausa e então, descartando sua tola apreensão, girou a maçaneta.
O quarto estava gélido, porque a janela fora deixada aberta. Bar‑
nabas recordou­‑se das poucas vezes em que havia entrado neste quar‑
to em dias passados. Era bastante semelhante aos outros, embora
menor e menos refinado e ele percebeu, com um certo desgosto, que

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

seu relacionamento com Angelique em geral ocorrera no seu próprio


quarto de dormir, na sala de visitas ou em outros pontos da mansão.
Ele sempre sentira uma certa resistência em entrar ali e, das vezes em
que o fizera, tivera simplesmente o propósito de desculpar­‑se.
Com uma dor aguda de remorso, ele se recordou da noite em que
lhe pedira perdão, esperando que pudessem ser amigos, dizendo
que sempre pensaria nela com afeto e ela, com sua sedução diabóli‑
ca, lhe murmurara, dominando­‑o, derretendo sua resolução: “Min‑
ta para mim”, lhe sussurrara. “Se todas as suas palavras bonitas
foram mentiras, então minta para mim de novo.”
Com um estremecimento, ele olhou a cama estreita, de fato mais
um catre que uma cama, mas com travesseiros de cetim; e então gi‑
rou o olhar para o pequeno toucador, um resto ambarino de perfume
seco no fundo de um frasco de cristal. Um roupão verde desbotado,
que ele reconheceu perfeitamente, com rendas meio rompidas ao re‑
dor da gola, estava pendurado no guarda­‑roupa aberto. Uma única
luva enrugada e um chapeuzinho com uma pluma de avestruz frouxa
estavam na gaveta de cima, grossos de poeira.
Ele estava a ponto de se virar para ir embora, quando o frágil
tecido de organdi que ainda meio recobria as vidraças balançou na
brisa e sua franja rasgada se ergueu por um momento, antes de cair
de novo. Ele pensou que esta deveria ser a fonte do som que escuta‑
ra anteriormente porque, mesmo que a noite estivesse agora tran‑
quila, uma lufada de ar ainda sacudia a cortina. Enquanto olhava, a
brisa ficou mais forte e fez correr as páginas de um pequeno livro
que jazia entre a poeira do tampo de uma mesinha ao lado da jane‑
la, quase como se dedos invisíveis o estivessem a folhear.
Barnabas avançou para fechar a janela, percebendo o absurdo de
seu gesto, já que a casa seria demolida na manhã seguinte e come‑
çou a sentir­‑se um pouco envergonhado, ao invadir, depois de tan‑
tos anos, este lugar privado que pertencera a alguém que ele
conhecera havia tanto tempo. Melhor deixar que tudo fosse demo‑
lido com seus segredos, enterrado sob a terra. Este quartinho, pen‑
sou, traía as raízes provincianas de Angelique. Ela nascera, afinal de

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contas, para não ser mais do que uma criada, apesar de suas preten‑
sões à fortuna e nobreza. Nada havia neste pequeno quarto que fa‑
lasse de uma natureza aristocrática.
E contudo, ela estivera determinada a se tornar sua esposa, até
mesmo tentara forçá­‑lo a se casar com ela. Ela havia retornado in‑
findavelmente, em cada uma de suas vidas, para zombar dele e
persegui­‑lo com seus desejos insaciáveis.
Houvera ocasiões em que o rancor que sentira por ela fora tão
intenso, que ele chegara a planejar sua morte e outras vezes em que
ele ansiara por ela com uma luxúria incontrolável, feroz e incalcu‑
lável. Houvera ocasiões em que ele soubera no fundo de seu coração
que somente ela entendia o seu tormento, por ser a causa dele; e que
somente ela compartilhava com ele seus segredos desesperados e
seu profundo conhecimento do mal. Nesses momentos, ele se per‑
mitira um senso de unidade com ela e mesmo algo próximo de —
caso ele ousasse pensar em tal coisa — alguma coisa semelhante ao
amor. Se o amor é o primo do ódio, a única outra emoção capaz de
consumir tudo o mais, então era verdade que ele sentira por ela um
amor amargo, intenso e sem remorsos.
Ele estendeu as mãos para os postigos. O quarto de Angelique ficava
no lado da casa que dava para o mar e lá, bem distante, o luar ainda
flutuava, reluzente como um regato de prata, sobre a superfície das
águas. Barnabas começou a tremer, porque a casa estava prenhe de re‑
cordações assustadoras. Ele não mais possuía a força de seus vinte anos
ou o poder indomável de um apóstolo do Diabo. Era agora um homem
comum e tão vulnerável quanto qualquer outro, não somente a perigos
físicos, como à praga do terror. Cometera um grande erro em vir aqui.
Ficou parado junto à janela, com medo de se mover, embora a ânsia
que sentia agora de fugir dali fosse tão forte como uma dor física.
Novamente, uma brisa fria varreu o quarto. As páginas do livrinho
se moveram como antes e, inegavelmente, ele escutou um suspiro e
depois um leve gemido — como o gemido do prazer durante o amor
— seguido de outro longo suspiro. Os cabelos de sua nuca se horripi‑
laram e subitamente, teve plena certeza de que ela se encontrava ali.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ele se virou e a viu, seu sangue virando gelo em suas veias. Ela
estava deitada na cama estreita, que recém-estivera totalmente va‑
zia, suas roupas transparentes espalhadas ao redor dela como o te‑
cido do luar. Sob seu nevoeiro enfumaçado, ele podia ver a
respiração de seu corpo e as curvas graciosas de suas coxas. Ela lhe
estendia seus braços de marfim e ele contemplou de relance o brilho
de seu olhar e o convite em seu sorriso. Com um esforço selvagem,
ele recuou, girou nos calcanhares e se lançou em direção à porta.
Correu como um louco, tropeçando pelo corredor escuro, sem
parar até que chegasse à sala de visitas obscurecida. Ele mergulhou
em direção à lareira, suas mãos tremendo desajeitadamente por so‑
bre os fósforos espalhados, tateando, quebrando, amaldiçoando, até
que, finalmente, conseguiu acender uma chama minúscula. Ele a
segurou entre as mãos em concha, as palmas tremendo, caiu de jo‑
elhos e encostou a flama à fímbria da cortina mais próxima.
O veludo esgarçado pegou fogo imediatamente e reluziu, en‑
quanto uma corrente de fogo subia pela beirada do tecido e hesitava
por um momento abaixo da costura grossa da franja dourada, antes
de explodir em chamas. O fogo chiou até em cima, mais alto que as
janelas, empapando a sala com uma aura dourada, enquanto canta‑
va com o som de um incêndio. Ele arrancou fora a cortina e uma
parte dela caiu no chão, já em chamas, e ele a arrastou em direção a
uma tapeçaria desbotada que também começou a arder. Agora a
sala inteira reluzia com as chamas do Inferno e estava cheia do som
de um rugido, ensurdecedor e implacável. E depois, enterrado nas
profundas desse som — reverberando, pulsando, troçando dele —
escutou o eco do riso enregelante de Angelique.
Barnabas pulou porta afora, fugindo através da noite e só conse‑
guiu parar quando já estava em seu próprio quarto na mansão de
Collinwood. E lá, através da segurança de sua janela fechada, ele
pôde ver o brilho que rasgava a fímbria da noite, enquanto a Casa
Velha ardia como a tocha de um vulcão distante refletida contra a
escuridão do céu.

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Dois

luz do sol corria em serpentinas através das janelas ogivais de


caixilhos de chumbo pelo pavimento da elegante sala de jan‑
tar em que a prataria e as porcelanas cintilavam sobre a toalha de
damasco branco. A matriarca de Collinwood, Elizabeth Collins
Stoddard, seu irmão Roger, sua filha Carolyn e Júlia já se haviam
assentado para o desjejum, falando em voz baixa, e Barnabas perce‑
beu que ocorrera uma pausa abrupta na conversação no momento
em que ele aparecera.
— Está uma linda manhã! — falou alegremente, ignorando a
seriedade da atmosfera enquanto se sentava, estendia a mão para
um guardanapo de linho e o desdobrava sobre suas calças de vinco
impecável. Forçou sua concentração sobre o buquê de junquilhos e
anêmonas na floreira colocada ao centro da mesa, seus alegres tons
de creme e de escarlate flutuando como aquarelas impressionistas
contra o pergaminho trabalhado da toalha de damasco. A noite que
passara sem dormir o deixara exausto; uma dor quente criava es‑
pasmos em seus ombros e seus olhos ardiam como se partículas de

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

areia tivessem sido capturadas pelas sobrancelhas. Mas estava de‑


terminado a conservar sua compostura e murmurou um “obriga‑
do” polido à Sra. Johnson quando ela serviu o café fragrante em sua
chávena. Foi sua prima Elizabeth que quebrou o silêncio opressivo.
— Barnabas, temos uma notícia terrível para lhe dar.
Ele ergueu os olhos em uma máscara de indagação. Elizabeth ain‑
da era um tipo de beleza. Nesta manhã, seus cabelos negros e lustro‑
sos tinham sido arrepanhados de suas faces e ela usava o colar de
pérolas de que ele gostava tanto. Sua voz trazia a rouquidão dos pri‑
vilegiados, seu sotaque fluente em suas vogais longas, com a entona‑
ção levemente nasal dos norte­‑americanos das classes superiores.
— O que foi? — indagou Barnabas com ingenuidade aparente.
— Temo que você se sentirá devastado por ela — falou, à guisa
de introdução. Ele ainda recordava da debutante que, aos dezessete
anos, entrara tão graciosamente no baile, de braços dados com seu
pai. Sua pele, pensou consigo, era muito semelhante à taça cuja alça
ele trazia entre os dedos, da mais pura porcelana irlandesa, branca
como a neve, fina como seda e translúcida. Neste momento, os cí‑
lios grossos disfarçavam seus olhos de ébano e uma pequena ruga
de preocupação aparecia no centro de sua testa.
— Bem, o que foi que aconteceu? Diga­‑me, Elizabeth, por favor...
— Durante a noite passada... a Casa Velha se incendiou e
queimou­‑se até os alicerces.
— Você não está falando a sério! — exclamou Barnabas, erguen‑
do seu guardanapo até os lábios. Sentia um vaso sanguíneo pulsan‑
do em uma das têmporas.
— Estou surpresa por você não ter acordado.
— Ora, não... não acordei, não escutei nada. Absolutamente
nada. Que coisa mais dolorosa! — seus lábios tocaram a superfície
lisa do guardanapo e ficou abalado com sua tendência imediata
para recair na mendacidade. As mentiras vinham fáceis, como se
fossem a própria substância de seus pensamentos.
— Willie foi o primeiro que viu — continuou Elizabeth. — Ele
acordou antes da aurora, viu a fumaça e foi acordar a Sra. Johnson, que

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Lara Parker

então me trouxe a notícia. Chamamos os bombeiros, naturalmente,


mas quando eles chegaram, a casa estava praticamente destruída.
— Alguma coisa... alguma coisa se salvou? — indagou Barnabas.
— O esqueleto da casa ainda está em pé, as colunas do pórtico...
Mas o interior inteiro desabou, lamento dizer. Oh, Barnabas, eu
lamento tanto...
— Chocante... realmente... — ele murmurou.
— Meu Deus! E por que essa conversalhada toda? — soou uma
voz da ponta da mesa, com evidente desprezo. — Finalmente nos
livramos do velho cadáver.
Roger — o patriarca da família, com aristocráticos cabelos louros
quase embranquecidos — falou com o desdém glacial e os padrões
cultivados da fala de um ator shakespeariano. Suas sobrancelhas pe‑
sadas e ainda louras se curvavam no centro para manter­‑lhe a testa
franzida de forma permanente, a única característica perturbadora
em um rosto perfeitamente cinzelado.
— Eu pensei que você me havia dito, meu caro amigo, que a casa
seria demolida hoje?
— Sim, foi o que eu disse — concordou Barnabas. — A turma de
demolição deverá chegar a qualquer momento desta manhã. Isto
vai tornar bem mais fácil o seu trabalho, suponho — ele surpreen‑
deu a si mesmo pela cordialidade em seu tom de voz. Era como se
fosse outra pessoa falando. — Agora eles simplesmente podem em‑
purrar o que restou com um bulldozer.
— Perfeitamente, o incêndio veio mesmo a calhar — observou Roger.
Nesse momento, um rapaz de mais ou menos quinze anos, cabe‑
los claros e compleição robusta, entrou vigorosamente na sala e des‑
lizou para seu lugar de costume.
— Quero ir ver o que sobrou da Casa Velha! Quando posso ir até
lá, Tia Elizabeth? — exclamou, estendendo uma das mãos para os
pãezinhos cobertos de açúcar e canela.
— Não pode ir enquanto não tivermos certeza de que o fogo foi
totalmente apagado, David — decretou Elizabeth.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Mas eu quero procurar suvenires no meio das cinzas!


— E eu insisto que primeiro você estude suas lições — disse ela,
severamente; David soltou um gemido de desgosto e afundou em
sua cadeira.
Elizabeth voltou­‑se para Barnabas.
— De que forma você pensa que o incêndio pode ter começado?
— indagou. — Não caíram raios a noite passada. Era lua cheia e o
céu estava claro.
— Talvez a Casa Velha tenha escolhido a maneira como queria
desaparecer — disse Carolyn, meditativamente. Era uma jovem
inquieta, frequentemente se mostrava aborrecida, estragada pelos
privilégios de que sempre gozara e querendo obter mais coisas da
vida. O que a diferenciava das outras garotas da sua idade — além
dos olhos azul­‑pálidos e de uma língua afiada — e lhe conferia
uma beleza tão grande que chegava a doer, eram seus cabelos,
longos e dourados, uma cascata rebrilhante que tombava abaixo
de seus ombros.
— Quanto mais cedo vendermos aquela propriedade, tanto me‑
lhor — continuou Roger — de preferência para um casal jovem que
esteja subindo socialmente, suponho eu, que construirá uma mons‑
truosidade moderna dedicada a um consumo evidente e a festas
deliciosamente aborrecidas.
Seu cenho franzido ficou mais profundo e seus olhos de um gelo
azulado se estreitaram.
— É evidente que todos nós seremos convidados e eles sentirão a
necessidade de tocar essa atroz música moderna. Mesmo que mi‑
nha vida dependesse disso, eu não conseguiria imaginar o que as
pessoas apreciam nesse tipo de baboseira sem tom.
— Bem, Tio Roger, o senhor não precisa ir, precisa? — indagou
Carolyn. Nada lhe teria agradado mais do que uma festa acompa‑
nhada por aquela atroz música moderna. Ela se voltou para Barna‑
bas. — Pois então, primo Barnabas, como você acha que aconteceu?
— Desculpe, não entendi — respondeu­‑lhe.
— O que foi que iniciou o incêndio?

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Lara Parker

— Ora, não faço ideia — comentou Barnabas. Seu colarinho en‑


gomado estava começando a lhe apertar o pescoço e ele lamentou
sua tentativa matinal de se apresentar com todo o esplendor sarto‑
rial que lhe garantira seu alfaiate.
— Você tem certeza de que não foi até lá às escondidas e tocou
fogo na casa, só para economizar o preço da demolição? — pergun‑
tou a jovem.
Barnabas espantou­‑se com a rapidez que a intuição dela chegara
perto da verdade. Podia ver o divertimento brilhando nos seus
olhos e o sorriso malicioso em seus lábios. Hesitou. Não seria me‑
lhor falar a verdade? Mas não conseguiu se forçar a ser honesto.
— Acho que a equipe de demolição será necessária, pelo menos
para carregar os restos da carcaça... — respondeu, sem pensar muito.
— Será que eles têm um desses guindastes legais com uma imen‑
sa bola de aço balançando na ponta do guincho? — indagou David.
Elizabeth o encarou de testa franzida por causa da interrupção.
— Você deve ir até lá imediatamente, Barnabas — disse Roger
— para descobrir qual foi a causa do incêndio.
Júlia ergueu os olhos para ele, alarmada:
— Por que Barnabas tem de ir até lá? — inquiriu.
— Por quê? Porque a última coisa que nós queremos são rumo‑
res de um incendiário à solta, envolvendo visitas do xerife, esse tipo
de coisa — disse ele.
— Mas Willie já disse a Elizabeth que praticamente não restou
nada em pé. Sem dúvida, não é razão para que ele se dê ao incômodo...
— Claramente é responsabilidade de Barnabas assumir um inte‑
resse sobre os assuntos da propriedade. Desde que ela foi posta à
venda, tivemos diversos inquéritos. Qualquer coisa que possa afetar
o preço de venda deve ser também sua preocupação, Júlia, caso...
— falou Roger secamente e com irritação — você realmente venha
a se tornar um membro da família.
Há muito tempo ele vinha esperando com impaciência mal
disfarçada que Barnabas se envolvesse nos negócios, desde que

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

ele aparecera — um primo perdido havia muito tempo na Ingla‑


terra, com certo direito sobre parte da fortuna da família. E ago‑
ra, esta proposta de casamento dava a Roger razões ainda maiores
de preocupação.
Barnabas sentiu­‑se desconfortável sob o foco agudo das vistas de
Roger. Sua garganta se apertou e seu colarinho restringia sua respi‑
ração como o baraço de um carrasco. As necessidades de sua cura
tinham garantido constantes desculpas e compromissos e, natural‑
mente, suas ausências durante dias inteiros, o que havia simples‑
mente provocado o aborrecimento de Roger e o levado a questionar
tanto a integridade como o senso de propósito de Barnabas.
— Devo insistir que você investigue e então desça até a cidade
hoje à tarde. Faremos uma reunião em meu escritório. Há muitas
coisas que precisamos discutir e não meramente o incêndio da
Casa Velha, mas outros assuntos da maior urgência — declarou
Roger peremptoriamente.
— Mas Roger, Barnabas esteve muito doente — disse Elizabeth
a seu irmão com suavidade. — Ele ainda precisa de tempo para se
recuperar. Não é verdade, Júlia?
— Sim. Sim, isso está inteiramente correto — concordou Júlia,
procurando manter a voz calma e profissional. — A última coisa de
que precisamos é uma recaída. Tempo. E descanso. E o amor e apoio
de sua família...
Ela lançou um olhar em direção a Roger e sorriu genuinamente
em resposta ao brilho irritado que surgia de seus olhos. Roger a ig‑
norou, jogou o guardanapo sobre o tampo da mesa e se levantou.
Virou­‑se para Barnabas:
— Foi você que fez os preparativos para a demolição, contra meu
julgamento, se é que se recorda. Eu achava que a Casa Velha alcan‑
çaria um melhor preço se fosse vendida como um monumento his‑
tórico. Agora não passa de uma ofensa ao olhar. Presumo que os
caminhões devam estar a caminho. No mínimo, eu lhe agradeceria
se lidasse com essas dificuldades ainda hoje. Desde que não seja um
esforço demasiado grande.

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Lara Parker

Ele girou nos calcanhares e saiu da sala de jantar.

* * *

Nervosamente, Júlia conduziu Barnabas estrada abaixo e dobraram


na longa colunata formada pelos vetustos plátanos, suas folhas re‑
centes de um verde brilhante, seus troncos salpicados de negro er‑
guidos em arcos fortes mas graciosos sobre a avenida. Ele sentia
horror pelo que tinha pela frente e tentou limpar a mente de todos
os pensamentos até que, finalmente, chegaram à grande estrutura
ainda fumegante.
Ela estacionou o Bentley e os dois desembarcaram. Era uma manhã
cálida de primavera e o ar estava doce com a fragrância dos botões de
flores. Ao longo do terreno, milhares de junquilhos se balançavam em
touceiras de amarelo amanteigado; os cornisos flutuavam como pelí‑
culas de nuvens, tão delicados que, só de vê­‑los, seu coração doía. Bar‑
nabas ansiara por gozar a luz do dia com todos os seus tons alegres,
mas não se podia furtar à melancolia que parecia residir dentro dele de
forma permanente. Suspirou e Júlia o tomou pela mão.
— Quer dizer que você não ouviu nada? — perguntou. — Você
dormiu profundamente?
— Claro que sim. Sempre tenho sono pesado — explicou ele, em
um tom indiferente.
Ela sabia que o oposto é que era verdadeiro e ele pôde sentir sua
preocupação. Enquanto se aproximavam, Barnabas sentiu a dor de
seus ombros ficar mais forte e sua cabeça começou a latejar.
Um pouco de fumaça ainda subia dos restos carbonizados, mas
ainda se viam pedaços da balaustrada de ferro sustentando o teto
com seu rendilhado e ele podia enxergar as colunas maciças ainda
erguidas, seus troncos cilíndricos e seus capitéis clássicos como
uma longa linha de sentinelas a cercar a casa — tinta e dois gracio‑
sos pilares erguendo o teto do alpendre para proteger os pórticos.
— Barnabas, você deve tentar impedir que isso o perturbe —
aconselhou ela.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Mas Júlia, eu não estou absolutamente perturbado — decla‑


rou ele, ainda permanecendo desapaixonado, embora seu peito
sentisse o aperto de um torno e o ar parecesse fervente demais
para ser respirado. A frieza de sua atitude era espantosa até mes‑
mo para si próprio, enquanto a recordação daquela noite, com
suas visões e demônios se transformava em um sonho lembrado
apenas fracamente.
Um pássaro cantou em uma árvore ao lado do gramado, um
som de flauta, seguido por um trinado e uma espécie de chocalhar
rápido. Poderiam ter sido três diferentes pássaros, mas Barnabas se
lembrava daquele canto.
— Escute — disse ele —, é um sabiá praticando seu repertório...
Júlia lhe sorriu e segurou­‑lhe o braço enquanto se aproximavam
da casa. Ainda se avistavam brasas fumegantes e um odor doentio
subia das cinzas. Barnabas caminhou desajeitadamente por entre os
destroços, reconhecendo aqui e ali os restos de um móvel, mas ficou
aliviado ao ver que praticamente tudo tinha sido destruído. Era di‑
fícil encontrar os vestígios das paredes, e a imensa lareira de tijolos
havia desabado e se transformado em uma pilha enegrecida. E o
tempo todo, aquele sabiá assobiava e chilreava como se troçasse
dele. Desta vez, Barnabas o avistou pousado no ponto mais alto do
que restara da chaminé arruinada, sacudindo a cauda.
Uma pesquisa de um quarto de hora não revelou nada de signi‑
ficativo e suas mãos estavam sujas de cinzas e fuligem pegajosa,
quando Barnabas finalmente disse a Júlia:
— Como você escutou à mesa do café, sou obrigado a dar uma
passada pelo escritório de Roger hoje à tarde. Há alguma coisa que
você queira fazer na cidade? Se houver, poderá me acompanhar.
— Nada de premente, mas terei prazer em ir com você — disse ela,
caminhando um pouco mais adiante. — E a turma da demolição?
— Parece que eles não vêm mais nesta manhã, não é mesmo?
Vamos embora daqui.
Pensando que provavelmente nunca mais precisaria retornar
àquele local, começou a caminhar de volta para o automóvel.

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Lara Parker

Foi nesse momento que Júlia o chamou e curvou­‑se sobre algu‑


ma coisa caída no solo. Relutantemente, Barnabas retornou até
onde ela estava e olhou para os pés dela. Sentiu um choque ao ver
um livrinho, todo sujo de fuligem, mas intacto, atirado logo ali. Ele
o agarrou e o revirou entre as mãos.
Júlia parecia incrédula.
— É impossível que este livro tenha sobrevivido, quando tudo o
mais se queimou...
— Contudo, ei­‑lo aqui... — ele abriu as páginas de bordas quei‑
madas, que estalaram como em queixa e começou a olhar o que
continham. — Não é um livro de verdade — disse baixinho. — É
um livro de lições, escrito por uma criança em idade escolar...
— Mas de quem era? Dá para dizer? — indagou Júlia, olhando
por cima de seu ombro. As primeiras páginas estavam garatujadas
em uma letra imatura, parecendo mais exercícios de caligrafia. Mal
se podiam decifrar as palavras:

O mar não tem fim. Infinito é o mar. As ilhas ficam muito distantes.
Começa com a maré. Enroscado dentro de mim, sem ritmo, apenas
um empurrão e um fluxo. As ilhas estão muito distantes. Outra e mais
outra. Algumas têm montanhas altas cujo topo chega até as nuvens.
Algumas são arredondadas como o corpo de uma mulher. Algumas
são planas, com as árvores todas inclinadas para o mesmo lado, seus
ramos se estendendo como dedos, esticando­‑se para fugir do vento.

As freiras nos ensinam a escrever, mas a lição deve ser feita em


inglês. A Irmã Luciana diz que eu estou desperdiçando papel.

A ilha em que eu nasci se chama Madinina. O nome significa “Ilha


das Flores”. Mas minha mãe a chama de Pays des Revenants. No diale‑
to Créole1 isto significa “Terra dos Retornados” ou “Terra das Almas Penadas”.

1
A palavra “crioulo”, neste livro, não se refere a negros, e sim a descendentes de europeus
nascidos nos países hispano-americanos. (N. do E.)

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Os franceses chegaram a esta ilha em 1684. Saint­‑Pierre foi a pri‑


meira cidade fundada em Martinica. As escunas aportavam para
pegar cargas de açúcar.

Glória seja a Deus, Pai Onipotente, Criador do Céu e da Terra...

Júlia engoliu em seco.


— Santo Deus, eu mal posso acreditar! Este livrinho deve ter
pertencido a Angelique!
— O quê? — murmurou Barnabas vagamente. Um arrepio de
frio percorreu­‑lhe todo o corpo.
— Ela nasceu por lá, no Caribe. Em Martinica. Ela era a criada
de Josette desde antes de elas embarcarem para a América do Norte
— insistiu ela.
— Mas como um diário de infância poderia ter chegado até
a Casa Velha? Mesmo que fosse de Angelique? — murmurou
Barnabas, fingindo indiferença. Uma lembrança, concluiu, sen‑
tindo seus dedos adormecidos como pelo frio, enquanto lia um
pouco mais:

Não posso ver o vento, mas ele está aqui. O que se move com o vento?
Moinhos, pandorgas, guarda­‑sóis, velas, páginas de livro, bandeiras,
saias, vestidinhos de algodão, chapéus, flores, cabelos, nuvens, nevo‑
eiro, brumas, fragatas, árvores, os ramos das árvores.

O Senhor é o meu Pastor; nada me faltará. O que é um pastor?


Um guarda de ovelhas? Por aqui só existem cabras e porcos.

— É um diário — reconheceu Barnabas, movendo as páginas


ressequidas com as pontas dos dedos. — Veja só como é grosso.
— Barnabas, jogue isso fora — disse Júlia. — Não acho que você
deva ler essa coisa. As lembranças são dolorosas demais para você.
O incêndio da Casa Velha já é um choque para sua constituição e
você está muito vulnerável.

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Lara Parker

O sabiá chilreou novamente e Barnabas, embora seu ser inteiro


concordasse com Júlia, se flagrou discutindo com ela.
— Mas, Júlia, é uma coisa notável, você tem de admitir — comentou.
— E eu acho que é a obra de alguma criança totalmente solitária
e triste — ela refutou.
— Mas é impressionante... precoce... escute só.
Atraído pelo livro, ele começou a ler de novo em voz alta:

O mar não tem ritmo. Mamãe fez uma janela de mar, um balde com
fundo de vidro e o colocou sobre a superfície da água. Quando eu
olhei por ele, pude enxergar outro mundo. Pude ouvir os estalos que
faziam os comedores de corais e sentir o movimento das marés. O
vento do mar é invisível, puxando, sacudindo, arrastando.

— Mas é extraordinário, não é? Como uma coisa tão lírica po‑


deria ser escrita por uma criança? — indagou Barnabas.
— Barnabas, jogue isso fora! — insistiu Júlia. — Realmente,
você não deveria ler alguma coisa, qualquer coisa escrita por An‑
gelique, se é que esse diário foi mesmo dela. Sua presença é pode‑
rosa demais, e...
— Espere. Escute...

Os tambores são como o som do céu. São trovões. Os tambores falam


uns com os outros. Falam do vento e da chuva. Falam das tempesta‑
des da África. O ritmo está nos tambores. O pulsar do coração. Os
negros tocam música com o ritmo do trovão.

— Nada de parecido com a Angelique que conhecemos, não é


mesmo? — Barnabas fechou o livro e o colocou em um dos bolsos
de seu casaco.
— Deixe isso aqui! — exigiu ela.
— Eu quero ficar com ele — falou Barnabas —, mas só por mais
algum tempo. Quero examiná­‑lo com mais cuidado. Venha, vamos
voltar. O que você acha que aconteceu com os demolidores?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Jogue esse diário fora, Barnabas. Ou então, me dê.


— Mas por que, pelo amor de Deus?
— É porque... — disse ela com hesitação — porque eu tenho a
sensação de que é perigoso.
— Mas isso é absurdo. Estou curioso, é só isso. Se causar algum
efeito sobre mim, eu faço isso. Eu jogo no lixo. Além disso, toda essa
história de condenação e melancolia já ficou para trás, Júlia. Os fei‑
tiços terminaram. Ah, não discuta comigo. Veja... olhe como o sol
está brilhando!
Ele a abraçou gentilmente.
Enquanto subiam novamente pela estrada no sedan preto, os
músculos de seu peito e de seu pescoço começaram a relaxar e Bar‑
nabas se afrouxou contra o encosto do banco do passageiro. O es‑
forço para controlar suas emoções e estabelecer uma distância entre
ele e o crime cometido na noite anterior o havia esgotado.
Abriu os olhos e fitou Júlia, como se a enxergasse pela primeira vez
e deixou que sua mente se inundasse com um genuíno sentimento de
afeição. Ela estava usando um conjunto de pele de camelo, a cor com‑
binava bastante bem com seus cabelos louro­‑avermelhados. Seu
rosto havia envelhecido um pouco, é bem verdade, mas o seu tam‑
bém havia. As linhas angulosas de suas faces e queixo adicionavam
severidade a seu semblante, mas ele pensou na ansiosa simpatia que
sempre lia em suas vistas e que lhe comunicava tanto conforto. Sim,
era isso que ele sentia: conforto... e tranquilidade. Ela era sua velha
confidente e nunca cessara de amá­‑lo.
Sua vida futura se desenrolou diante dele como uma longa estra‑
da e podia contemplá­‑la até o seu final: um casamento com Júlia,
respeitabilidade e segurança, tomar parte nos negócios da família
Collins — alguém precisava tomar conta deles havia bastante tem‑
po — alcançar sucesso financeiro... Ela seria uma excelente compa‑
nheira, tão sensata e altruísta. É claro que não poderiam ter filhos,
mas isso não o perturbava em particular. David ainda era jovem e
precisava de um mentor para quando fosse controlar os bens da
família, depois que atingisse a maioridade. Os anos passariam voando.

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Lara Parker

Júlia e ele envelheceriam juntos. Depois de sofrer os crimes do pra‑


zer, depois de provar o significado da imortalidade e descobrir que
seu preço era alto demais, Barnabas tinha certeza de que esta exis‑
tência gentil e humilde era tudo o que poderia desejar.
Júlia sentiu seu olhar sobre ela, virou o rosto para ele e sorriu­‑lhe.
Ele estendeu o braço para uma de suas mãos — porque a outra estava
segurando a direção — e beijou­‑lhe as pontas dos dedos. Nesse mo‑
mento, uma nuvem passou em frente ao sol e os cumes das árvores,
que haviam estado banhadas em luminosidade, se escureceram. Mas
foi apenas um momento passageiro e, no instante seguinte, a nuvem
foi impelida pelo vento e o dia se alegrou novamente.

* * *

Assim que se viu sozinho em seu quarto, Barnabas tirou o livrinho


do bolso de seu casaco. Dissera a si mesmo que o havia guardado
para queimá­‑lo, mas surpreendeu­‑se com um forte senso de anteci‑
pação quando levantou a capa. A língua materna de Angelique era
o francês. Viu realmente muitas páginas em escrita francesa, que
conseguia ler facilmente. Mas de permeio havia igualmente muitas
frases redigidas em um inglês hesitante. Talvez as freiras lecionas‑
sem as duas línguas. Recordou­‑se do sotaque de Angelique adulta,
com as sílabas muito claras e britânicas, o resultado de estar falan‑
do em uma segunda língua aprendida na escola.
Sentou­‑se na cadeira junto à janela e começou a ler. Haveria al‑
guma coisa que pudesse aprender pela leitura da epístola dessa
criança? Alguma coisa que lhe pudesse revelar a verdadeira nature‑
za de sua atormentadora?

Eu fui sereia, da mesma cor castanha das velas de um navio, marrom


como as pétalas de magnólia depois que caem no meio das folhas,
morena como sementes, como as asas de uma gaivota ao pôr do sol.
Só mais tarde é que eu fiquei branca. Depois que elas me conserva‑
ram trancada no quarto. Pedra contra os furacões. Foi o vento en‑

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

trando pela janela que retirou o moreno de minha pele. Minha pele
ficou cor de arroz. Foi porque elas me enrolaram em roupas e me
deram doces. Meus pés ficaram macios. Eu já não conseguiria mais
caminhar sobre os corais.

Minha mãe segurava­‑me as mãos contra a espuma das ondas. Este


é o berço salgado, o vento inferior invisível que puxa e arrasta e depois
vai embora. Eu amo o mundo que fica embaixo do mar. Mamãe dis‑
se: “Desta vez, você nasceu da água”.

Há pequenas lulas da cor de arco­‑íris que nadam para trás com os


braços cruzados. Eu também sei fazer isso. Hoje eu vi uma tartaruga
com o casco malhado caminhando no fundo do oceano. E ontem eu vi
uma parede curva de minúsculos alevinos prateados, parecendo um
imenso chafariz. Quando eu nadei em sua direção, a parede explodiu
como estrelas, como os borrifos da chuva. E bem lá embaixo, no escu‑
ro, o tubarão estava tão quieto, tão quieto...

Mamãe varre a poeira dos cantos da sala. Ela deixa uma tigela
com água junto à porta para capturar os maus espíritos. Não há espe‑
lhos aqui em casa. Por que ele veio me buscar?

Nossa casinha é pintada de cor­‑de­‑coral com os postigos em lavan‑


da e o teto de capim seco. Todas as janelas dão para o mar. As pessoas
vêm visitar minha mãe quando estão doentes e ela as cura. Ela sabe
como. Ela tem uma bolsa cheia de mágica. Eu sei que ela achou que o
melhor para mim era ir embora com ele.

A Irmã Claire me deixava ler seu livro de poemas depois que eu


completava minhas lições. Este é o que eu gosto mais e foi escrito por
John Milton:

“O mar é tão profundo na calmaria quanto o é na tempestade.”

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Três

ngelique conseguia ver seu coração quando fechava os olhos,


pequenos e acinzentados, polidos como uma pedra carregada
pela arrebentação. Mas hoje seu coração se sentia como um passa‑
rinho tentando fugir e batendo as asas contra as paredes de uma
caverna escura. Sua mente escapou para visitar as outras cavernas
que ficavam na beira da água e era lá que ela queria estar, sob as ro‑
chas altas, com os filetes de luz solar escorrendo para dentro como
serpentinas. Ela sonhava que percorria novamente o caminho até as
lagunas turquesa, ouvia o ruído das ondas batendo contra os penhas‑
cos, em que os caranguejinhos caminhavam de lado com suas garras
encarnadas e ela nadava na água, flutuando através das plantas aquá‑
ticas que subiam desde o fundo, enquanto escutava o barulho dos
peixes estalando seus dentes contra os corais.
Hoje alguma coisa lhe parecia cruel, como se estivesse sendo cas‑
tigada, mas ela não fizera nada que merecesse uma repreensão e tam‑
pouco a havia recebido. Mas ela era uma criança livre que nunca fora
dominada ou ameaçada. Fora o mar que lhe ensinara a ter cuidado
— como flutuar com a corrente sussurrante e como ficar longe dos

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

corais de fogo, como evitar os peixes­‑escorpiões cujo ferrão podia


significar a morte e como se desviar da mordida das enguias.
A mão de seu pai era áspera como as cracas que se prendiam nos
recifes ou no costado dos navios e suas unhas cortavam a sua pró‑
pria palma. Sua mão parecia a garra de um caranguejo gigantesco
esmagando seus dedinhos, puxando­‑a quando ela se demorava, an‑
dando mais depressa do que suas perninhas conseguiam levá­‑la.
Ela tivera de correr a seu lado pela estrada enlameada, tropeçando
nas poças, sua sacola de livros batendo contra seu flanco. Seus de‑
dos a beliscaram quando ele a levantou para dentro da carroça.
— Eu quero sentir orgulho de você — ele cochichou, seu tom de
voz um aviso. — Não chore.
Mas quando ele olhou para ela, teve a sensação de que não a
estava vendo.
O negro chicoteou o pônei e a carroça avançou penosamente.
Ela olhou seu vestidinho branco, a barra grudada em suas pernas
suarentas, logo aquele vestido que sua mãe nunca a deixava usar,
sempre pendurado em um canto escuro da casa. A saia tinha flores
vermelhas e uma barra de renda. Ela tocou os bordados, as folhas
salientes, a curva acetinada das papoulas e sentiu um arrepio de
orgulho. Já tinha visto vestidinhos brancos usados por outras me‑
ninas, mas o dela era de longe o mais delicado.
— Mas, mamãe, este é o vestido que a senhora guarda para o Car‑
naval... — dissera.
— Tenha cuidado, senão rasga — respondera sua mãe. — É feito
de pano de batista.
Ela olhou para ele. Por que ele viera buscá­‑la hoje? O que ele
quereria dela, esse pai que tão raramente vira? Sua mãe lhe dissera
que ele pretendia levá­‑la para Saint­‑Pierre, a fim de criá­‑la como sua
filha legítima. Mas então por que ele falava tão pouco com ela?

* * *

— Pai? Aonde nós vamos?

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Lara Parker

Ela escutara sua mãe chamando­‑lhe o nome, os tons delicados de


sua voz flutuando através dos penhascos e piscando junto com a
poeira dourada pelo sol. Ela correra através da areia, pensando que
ia ganhar alguma comidinha, um pedaço de abacaxi doce...
— Mamãe! Eu vi o pavão flutuando! — ela exclamara. — Cheio
de manchas azuis e prateadas, e dois grandes olhos na ponta de
cada pena. Eu fui nadando e toquei nele e ele bateu as asas e saiu
voando por cima da água!
Mas sua mãe tirara com um puxão o seu pareu, seu vestidinho
frouxo de algodão com florzinhas desbotadas e passara uma escova
em seu corpo para tirar o suor e a areia. Então ela tirara do cabide o
vestido de festa e o enfiara pela sua cabeça. Depois ela passara vase‑
lina em seus cabelos, que eram amarelos demais, brilhavam feito o
sol e estavam emaranhados como as algas entre as quais ela costu‑
mava nadar e o escurecera com um óleo vegetal.
“Mamãe, dói quando a senhora me penteia!”, ela protestara.
Sua mãe puxara seus cabelos firmemente para trás e os atara
com fitas coloridas. Ela olhara para seu reflexo na janela e sentira­‑se
transformada em alguma coisa exótica, como um peixe dos recifes
com barbatanas transparentes e guelras vermelhas.
“Ai, eu não gosto, é enfeitado demais...”
Então ela erguera o rosto e vira as lágrimas brilhantes nos olhos
de sua mãe.

* * *

Seu pai era uma sombra negra contra o céu, uma peça talhada no
azul, como uma silhueta de papel, seus ombros altos e largos imensos
dentro da sobrecasaca negra, seu nariz um bico pesado, sua barba
parecendo alga de enguia ressecada. Mas ela podia ver claramente
que ele era um blanc, com a pele bem clara, embora os olhos fossem
cor­‑de­‑ébano e seus cabelos pretos como carvão. Era por isso que ele
nunca vinha ver a ela ou sua mãe. Porque elas eram gens du couleur,
gente de cor, e porque sua mãe tinha sido filha de uma escrava.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Certa vez, ele viera, enquanto ela era ainda nenê e a colocara
sobre um joelho e a beijara e escutara o seu riso. Ela tinha brincado
com sua barba e tocado sua testa alta e suarenta.
— Você tem os olhos mais estranhos — ele dissera.
— Olhos tão mutáveis como o mar — respondera sua mãe, com
certo grau de orgulho. — Transparentes como a água da laguna.
Algumas vezes, ficam tão claros como as medusas na areia. Algu‑
mas vezes ficam da cor de turquesas ou de opalas. E em outras, se
tornam tão escuros como as nuvens de tempestade.
Seu pai emitira um som que vinha do fundo de seu peito. Segu‑
rara o pulso de sua mãe e a puxara para bem perto de si.
— De onde ela tirou esses olhos, Cymbaline? — ele sussurrou, sua
voz parecendo mais com um chiado de cobra. — Você me disse que
ela era minha! De onde foi que ela arranjou esses olhos verde­‑mar?
Sua mãe, ainda em pé, olhara para baixo em sua direção sem de‑
monstrar o menor medo. Ela usava seus cabelos presos em um lenço
de um encarnado brilhante, formando o que chamavam então de
trunfa, uma ponta no alto de sua cabeça que parecia uma chama.
— Mas você não consegue notar? — respondera­‑lhe sua mãe,
ofendida. — Ela nasceu de seu orgulho, sem a menor dúvida. Como
você ousa duvidar? Veja que ela traz a sua mesma marca!
Ela ainda estava sentada no seu colo e o pai levantara a barra de seu
vestido, olhando para a parte de trás de uma de suas pernas. Havia ali
uma marca de nascença escura — como um pingo de vinho tinto no
formato de uma serpente enroscada. Ele a esfregara com seu polegar e
dera de ombros. Depois, suspirara fundo e a colocara de volta no chão.
O vento soprava mais forte e a estrada estava cheia de buracos e
valas. As palmeiras ondulavam suas longas folhas como facas gigan‑
tescas. Seu pai suava sob a sobrecasaca pesada. Ela cheirava seu odor
mofado, não como o ar marinho, mas como alguma coisa trancada,
úmida e enxovalhada, igual ao interior de uma torre de pedra. Os sa‑
patos que sua mãe a obrigara a colocar, feitos de couro negro, tinham
começado a lhe arranhar os pés. Ela nunca se calçava e a sola de seus
pés era tão grossa e resistente como a casca de uma árvore e os sapatos

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Lara Parker

machucavam sua pele nos lugares mais macios. Ela já parara de pensar
que suas fitas novas eram bonitas; agora era o seu cabelo que doía por
ter sido repuxado tanto. O que ele dissera para sua mãe?
— Eu quero que ela tenha o melhor — explicara. — Ela tem a
pele clara e pode passar por branca. Mas eu não quero que você
apareça por lá para estragar as coisas.

* * *

A chuva começou a cair como lençóis. Era uma chuva cálida, mescla‑
da ao odor de plumérias. Ao longo da estrada, as flores batidas pela
chuva penduravam­‑se molengas, como se tivessem sido pisoteadas e
suas cores pareciam ter sido lavadas até desaparecer. Ela imaginou se
a tempestade duraria muito tempo, como aquelas que arrancavam
árvores da terra, com raízes e tudo, e destelhavam as casas, lançando
os telhados pelos ares, voando como grandes pássaros. Eram aquelas
tempestades que espatifavam as escunas contra os recifes da baía e
que lançavam ondas da altura de casas contra os penhascos.
— Por que mamãe não pode vir comigo? — indagou.
— Ela... decidiu que chegou a hora de você morar comigo — dis‑
se ele, evasivamente.
A chuva continuava a cair firmemente, o céu de um cinza pálido,
a superfície do mar agitada e cheia de lugares mais fundos que pa‑
reciam ter sido atingidos por pedrinhas. Ela olhou para o porto en‑
quanto a carroça se movia lentamente atrás do pônei exausto,
seguindo a estrada da praia que levava até Saint­‑Pierre.
Angelique estava ansiosa para ver os navios. Algumas vezes, che‑
gava a haver mais de cinquenta ancorados na baía, as velas pesadas,
as proas elevadas pintadas com tinta dourada e as bandeiras de co‑
res brilhantes. Mas hoje só havia uns poucos, encolhidos e empapa‑
dos pela chuva, protegidos pelo pequeno canal interior, alguns com
as velas rasgadas em farrapos, outros as trazendo enroladas e do‑
bradas como as asas articuladas dos grandes morcegos que se es‑
condiam no fundo das cavernas.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela espiou seu pai. Ele estava encolhido em um canto da carroça,


a cabeça enfiada dentro do colarinho. Ela reuniu toda a sua cora‑
gem e perguntou:
— A casa é grande, pai?
Ele ergueu os olhos, surpreendido pela pergunta e a fitou com o
cenho franzido. Quando respondeu, o som de sua voz subiu desde
o fundo de seu peito.
— Sim, é grande, suponho eu. Grande o suficiente.
— É feita de madeira?
— Não, é uma casa de pedra.
Ela se decidiu a tentar localizar a casa com os olhos a fim de
acalmar a sensação doentia que brotava de seu estômago. Talvez ela
a reconhecesse quando a avistasse. Imaginou se seria uma mansão
e se a escola ficaria perto. Com os pés, tateou o saco de livros e de
roupas que estava no assoalho da carroça. Estava contente por se
haver lembrado de trazer o diário para mostrar à sua mãe quando
ela viesse visitá­‑la. Então Angelique pensou de novo naquela frase
estranha que ela o ouvira dizer:
“Eu não quero que você apareça por lá para estragar as coisas.”
O pônei puxou a carroça para a estrada nova, pavimentada com
paralelepípedos azuis. A carroça dava pequenos saltos nos interva‑
los entre as fileiras de pedras, mas era melhor que os solavancos das
rodas na lama e nas valetas do caminho de terra. Passaram por ar‑
mazéns de cujas paredes a água da chuva escorria, as portadas com
pilares e arcos olhando lugubremente para as docas vazias.
Sob um toldo ela pôde ver um grupo de escravos recém­
‑trazidos e ainda presos em seus grilhões. Devido a suas peles
negras e aos farrapos sujos que usavam, estavam quase invisíveis
nas sombras e se amontoavam em pequenos grupos. Mas dava
para ver­‑lhes as pernas, algumas musculosas e outras muito pe‑
quenas — pernas de crianças — de mistura com os trapos colo‑
ridos do que tinham sido saias de mulheres. Ela já assistira a um
leilão de escravos. Talvez houvesse um leilão amanhã e ela tivesse
licença para assistir.

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Lara Parker

— O senhor tem escravos? — ela perguntou. Seu pai olhou­‑a


carrancudo, como se estivesse preocupado com outros pensamen‑
tos, mas após um instante, respondeu com um resmungo:
— Escravos... sim, naturalmente.
— Quantos?
— Demais. E nunca o suficiente.
O guarda do armazém estava sentado em uma salinha que dava
frente para o cais, uma lamparina bruxuleando no interior. No mo‑
mento em que sua carroça passava ruidosamente, o homem se lançou
na chuva com o chicote enrolado na mão e gritou ferozmente para
um dos homens negros. Com um grito rouco, ele soltou a ponta da
pesada chibata e o escravo se encolheu para dentro das sombras.
— Ai, aquele homem os está chicoteando! — ela exclamou.
— Sem o chicote, eles viram uns diabos — comentou seu pai.
Ela sentiu uma súbita piedade pelos escravos — aquele trabalho
de quebrar os ossos e a humilhação das correntes. A mãe de sua mãe
tinha sido alforriada porque dera à luz uma filha de pele clara. Que
coisa horrível não ser livre! Então ela pensou nas cavernas e nos
recifes em que ela podia ser uma ninfa sobre as algas do mar, tão
livre quanto a maré irresistível, onde a água era tão morna e clara e
todas as cores tão luminosas. Ela imaginou quantos dias se passa‑
riam até que ela pudesse nadar por lá outra vez.
A carroça sacolejou novamente, ingressando na rua principal de
Saint­‑Pierre. Aqui e ali um postigo não tinha sido fechado e batia contra
o marco da janela sob o impulso das lufadas do vento assobiante, mas a
maioria fora trancafiada seguramente perante a ameaça de um possível
vendaval. Talvez isso significasse que um furacão estava a caminho e ela
imaginou se sua mãe estaria segura dentro de sua minúscula cabana.
Ela esperava que sua mãe tivesse lembrado de amarrar as telas de ma‑
deira com firmeza e de colocar a panela embaixo da goteira do telhado.

* * *

Ela segurou o amuleto que trazia pendurado ao pescoço e esfregou


o saquitel de couro macio com os dedos. Dentro dele, ela podia sentir

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

a caveirinha da serpente. Fora ela quem a vira primeiro, enroscada


sobre o tampo da mesa, antes que sua mãe a matasse.
— Mas que cobra linda! — ela exclamara. — Posso pegar, ma‑
mãe? Parece a relva em movimento! Será que é venenosa, mamãe?
— É uma fer­‑de­‑lance, uma jararaca, e entrou aqui para fugir da
chuva — murmurara sua mãe. — Venenosa, sim, e muito. Mas é
um bom sinal para você, minha pequenina. Vai servir para fazer
um uangá poderoso.
A grande fita iridescente tinha­‑se retorcido ao redor do pulso
de sua mãe enquanto ela a segurava pela nuca, abria­‑lhe a boca
com a ponta de um dedo e forçava suas presas contra a borda de
um copo. Ela ordenhou as glândulas sob sua mandíbula, até que o
veneno todo escorreu pela beirada do copo como um fio de lágri‑
mas sujas. A seguir, ela arrancou a língua dardejante e a colocou
ao lado do copo. Ainda se retorcia e tremia sobre a madeira es‑
branquiçada, como se fosse um lagartinho. Depois, ela puxara
para trás a cabeça da serpente, expondo­‑lhe a garganta e a cortara
com um único golpe de faca. Angelique não havia ficado nem um
pouco assustada; ao contrário, sentira­‑se fascinada. Os poderes de
sua mãe eram a coisa mais maravilhosa que ela já vira. Cada vez
que ela preparava algum de seus encantamentos, Angelique ob‑
servava e recordava­‑se de todos os passos.
Depois que ela terminara de fazer o uangá, amarrou­‑o ao redor
do pescoço de Angelique.
— Pronto, criança... — ela murmurara. — Isto servirá para
mantê­‑la em segurança.
— Por que suas mãos estão tremendo, mamãe? — ela inquiriu. —
E por que não está cantando? As suas canções trancaram na garganta?
Então sua mãe pusera Angelique em seu colo. Alisara­‑lhe os ca‑
belos e dissera baixinho:
— Eu sempre sonhei com isto, minha querida. Seu pai vai lhe
dar uma vida muito melhor do que eu jamais poderia...
— Eu tenho mesmo de ir embora?
— Sim...

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Lara Parker

— Mas eu gosto de morar aqui, junto do mar, com você, mamãe...


— Você é a filha de um senhor de engenho e será a sua querida,
com um casaco de veludo e uma cama de quatro colunas... Você será
matriculada em uma boa escola, não naquele convento solitário, para
ser educada por freiras velhas. E vai ter amigas bonitas, escutar músi‑
ca... e tomar chocolate... — dissera­‑lhe mansamente. Mas então ela a
puxara em um abraço desesperado e a apertara contra seus seios ma‑
cios. Um soluço reprimido conseguiu sair de dentro dela.
— O que é isso, mamãe? — cochichou Angelique. — Por que a
senhora está chorando?
— Minha querida, minha adorada... minha vida... meu cora‑
ção... se ao menos você não fosse um anjinho assim tão lindo...
E então seu pai viera para levá­‑la consigo.

* * *

Eles subiram a longa avenida ensombreada pelos galhos longos dos


tamarindeiros, que quase se tocavam, formando um longo arco. Esta
parte da cidade era linda, mesmo sob a chuva, toda erguida em pedra,
as ruas calçadas de lajes quadradas, os tetos das casas recobertos com
telhas vermelhas interrompidas pelas janelinhas de telhados pontu‑
dos das mansardas. Passaram pelo teatro, com seus arcos elevados e
a escadaria dupla. Havia cartazes coloridos, pintados em chapas de
madeira, anunciando uma ópera vinda de Paris com um balé orien‑
tal. Seu coração deu um salto. Será que seu pai a levaria para assistir?
Não conseguia imaginar coisa alguma mais maravilhosa.
— Podemos ir ao teatro, pai? — ela pediu. — Ai, quando eu
crescer, quero ser dançarina!
Ele resmungou, mas não respondeu. Ela pensou que ele talvez
estivesse zangado com ela ou então que mudara de ideia quanto a
ficar com ela. Talvez ele pensasse que ela não tivesse gostado de vir
com ele porque tinha ficado tão quieta durante a viagem. Seu estô‑
mago começou a pular como uma poça cheia de peixinhos deixa‑
dos pela maré.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Saint­‑Pierre é uma cidade tão bonita... Tem tantas cores, é


como os corais — falou o mais alegremente que conseguiu. — Es‑
tou feliz que o senhor me tenha trazido para cá.
Ele não respondeu.
— Qual é a nossa casa, papai? Eu quero adivinhar! Só me diga
quando chegarmos perto...
As casas recobertas de reboco pintado de amarelo-claro, laranja
pálido ou pêssego sugeriam uma promessa de outra vida, coisas que
ela apenas imaginara por meio das histórias contadas por sua mãe:
tesouros de outras terras, móveis marchetados, estátuas de bronze,
vestidos de seda e de veludo, música de violinos e harpicórdios, per‑
fumes, cristais e tortas doces. Sua mãe lhe contara que por detrás
daqueles postigos havia prateleiras de livros grossos com capas de
couro e títulos impressos em letras douradas, as margens igual‑
mente douradas, além de cafeteiras de prata e taças de porcelana e,
acima de tudo, contendo a vida de sonho particular dos ricos pro‑
prietários de plantações e de seus familiares.
Sua mãe também lhe contara que havia mulheres mestiças, cha‑
madas de mulatas, que algumas vezes viviam com os plantadores e
lhes davam filhos bastardos em troca de uma vida de escravidão
muito mais suave. Sua mãe poderia ter feito isso. Ela era uma mu‑
lher bonita e cheia de vida e muitos homens se haviam apaixonado
por ela. Mas fora orgulhosa demais. Não, essa não tinha sido a úni‑
ca razão. Ela havia escolhido um outro caminho, o caminho da
magia da cura e assim mantivera sua liberdade.
— Nossa casa fica nesta rua, papai? — indagara, esperançosa.
— Vamos chegar logo?
A chuva tamborilava nos pavimentos e a água corria como pe‑
quenos regatos pelas sarjetas e ronronava e saltava entre as paredes
baixas que separavam a rua dos prédios. O ar era pungente, as ruas
estavam vazias e mesmo assim, eles não paravam. No momento em
que ela achava não poder mais suportar a expectativa, a carroça
desviou para uma rua lateral que conduzia para fora da cidade.
— A casa não fica em Saint­‑Pierre? — ela perguntou.

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Lara Parker

— Não, não fica em Saint­‑Pierre — disse­‑lhe o pai, lançando


um olhar frio em sua direção. Seu coração afundou em um asso‑
mo de desapontamento.
— Então, para onde nós vamos?
— Para as colinas.
Ela se ajeitou no banco e tentou não se sentir frustrada demais.
Escutava o som das rodas da carroça esmagando a terra, a respira‑
ção opressa do pônei e, algumas vezes, o som baixo de uma canção
trauteada pelo escravo negro que dirigia a carroça, suas costas nuas
reluzindo sob a chuva. Fechou os olhos e lembrou as ocasiões em
que mergulhava no mar em busca de um peixe muito especial, um
peixe­‑anjo azul ou um baiacu malhado, que nunca estavam nos lu‑
gares em que ela os procurava. Mas depois que parava de procurar
e ficava flutuando na superfície, meio sonhando, deixando que as
sombras dos recifes se projetassem sobre o fundo, logo abaixo dela,
então se deparava com alguma criatura tão linda quanto rara, que
nunca havia visto antes. Decidiu que o melhor era parar de fazer
perguntas e esperar para ver o que acontecia. Agora ela pertencia a
seu pai. Depois de algum tempo, adormeceu, sua cabeça encostada
confiantemente no braço dele.
Acordou­‑se ao ouvir as ondas do mar batendo contra as rochas
que ficavam lá embaixo, no fundo dos rochedos, justamente quando
dobraram para fora da estrada e tomaram um caminho lateral em
direção à ponta de uma península. A chuva havia parado e o céu aci‑
ma do mar assumira um tom prateado e reluzente. O pônei tropeçou
em uma pedra frouxa que havia no meio do caminho e ela caiu para
frente, em direção ao fundo da carroça. Seu pai a segurou e a agarrou
firmemente junto dele. Ela ergueu os olhos e ficou surpresa ao ver que
ele estava franzindo a testa em direção a qualquer coisa localizada na
estrada, mas ainda bem distante. Ela seguiu seu olhar, e seu coração
pulou como se um anzol o tivesse capturado e o sacudisse no ar.
Um edifício maciço se erguia sobre um promontório rochoso,
muito acima da superfície da água. Era construído com pedras pesa‑
das, parcialmente recobertas de musgo e cercado por uma parede

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

alta. Ela conhecia aquele lugar. Podia recordar as histórias de sua


mãe, que escutava à noite, antes de mergulhar no mundo dos sonhos.
“Era uma vez uma grande casa. As pedras tinham sido trazidas por
sobre o mar, desde as pedreiras da França, como lastro no porão de
uma escuna. Juntamente com elas tinham chegado artesãos e carpin‑
teiros. Ah, sim, era um lindo castelo construído por, ai, por um ho‑
mem muito rico, que desejava erguer uma casa para sua terna noiva.
Mas ela morreu, pobre alma, teve um ataque de vapores na véspera de
seu casamento. E então a casa inteira ficou abandonada e se arruinou,
depois se tornou a sede de uma plantação de cana­‑de­‑açúcar. Foi en‑
tão que construíram a torre do moinho e a capela e as senzalas para
os escravos. Os escravos ficavam trabalhando no auge do calor até
morrerem. Suas vidas eram trocadas por sacos de açúcar.”
— O que aconteceu com o homem rico? — perguntara ela.
— Ah, ele foi morto por seus próprios negros. Morreu para pa‑
gar seus pecados, sim, foi por isso que ele morreu. Ai, aquela casa
tem uma história longa e muito feia — concluíra sua mãe.
Angelique foi ficando cada vez mais ansiosa, enquanto a carroça
se movia constantemente na direção da estrutura assustadora.
— Essa não é nossa casa, é? — atreveu­‑se a perguntar.
— É, sim — respondeu o pai, friamente.
— Mas é tão escura e tão triste!
Quando o escravo fez o pônei parar, seu pai pulou da carroça,
deu uma volta e chegou até onde ela estava. Segurou­‑a em seus bra‑
ços e colocou­‑a no chão. Sentiu suas mãos frias como gelo nos pon‑
tos em que lhe tocaram a pele.
Então Angelique viu diversas outras meninazinhas de sua idade
que ela conhecia da escola, vestidas como ela — todas usando seus
vestidinhos brancos de festa —, que pareciam estar esperando por
eles. Por que elas estavam aqui? Todos começaram a caminhar em
direção à grande casa e ela escutou algumas das outras meninas
falando baixinho. A mão de seu pai apertou a dela com mais firme‑
za e ele quase a levantava no ar enquanto avançava a passos largos.
Ela precisava correr para acompanhá­‑lo.

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Lara Parker

Ela reparou que muitas pessoas de sua vila também estavam lá e


entendeu que era por causa delas que seu pai ficara carrancudo, mas
agora ele as ignorou. Elas estavam paradas em grupinhos à beira do
caminho, olhando a sua passagem, como se fosse uma procissão.
Ela olhou por entre as pernas dele, revestidas de pano escuro, e re‑
conheceu algumas de suas amigas, Céline, Marie­‑Thérèse, Sophie
— todas meninas da ilha, todas de pele clara, que moravam em
outras casinhas ao longo das praias. Seguiram em uma longa fila até
um grande portão de ferro que atravessava o paredão de pedra.
Então, ela viu a capela. Era um pequeno edifício junto ao pátio
central, com uma cruz acima da porta. Subitamente, ela recordou
como se um raio frio estalasse dentro dela, que esta deveria ser a
“comunhão” de que as freiras haviam falado, quando as meninas
eram levadas à igreja para serem crismadas. “A Primeira Comu‑
nhão” — era isso! E imediatamente ficou aterrorizada. Ela já tinha
dez anos e não havia decorado o catecismo. Ela tinha obrigação de
aprender tudo, mas a única coisa que começara a aprender mal e
mal era o Salmo 23: “O Senhor é o meu Pastor...” Mas o que era um
pastor? O Senhor era o mesmo Bon Dieu? Ou ele era Damballah?
Ela não conseguia se lembrar direito.
E por que aquela gente da vila parecia tão preocupada? Eles mur‑
muravam entre si, seus rostos sérios e enrugados. Alguns sussurra‑
vam e apontavam em sua direção. Outros sacudiam as cabeças e
faziam o sinal da cruz. Era porque ela era tão pequena? Ela ia rodar
no teste do catecismo porque nunca havia aprendido o quanto de‑
via. Ela era uma pecadora e seria a desgraça de seu pai.
Olhou em direção do castelo, suas torrinhas e paredes arredon‑
dadas. Agora que não plantavam mais cana­‑de­‑açúcar ali, o mato
tinha retomado a península. Trepadeiras subiam pelas balaustradas
e se penduravam nos parapeitos. Enquanto se aproximava, Angeli‑
que viu os troncos retorcidos de que brotavam as lianas serpentean‑
do ao longo das pedras e as folhas caídas e úmidas coladas às paredes
como algas mofadas. Atravessaram o portão de ferro, tão alto como
o mastro dos navios e cruzaram uma ponte sobre um fosso de água

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

lodosa. A capela escura se erguia à frente deles como um mausoléu.


Subitamente, resolutamente, ela parou e puxou a mão de seu pai.
Ele franziu a testa e olhou para baixo em sua direção.
— O que foi? — disse ele, fingindo gentileza. — Que foi,
meu anjo?
— Eu não quero entrar lá!
Ela mesma se surpreendeu com o som de sua voz, aguda e clara.
Seu som lhe emprestou coragem e ela começou a pensar em correr de
volta, através do portão e estrada abaixo. Aonde ele a estava levando?
O lugar dela era junto de sua mãe. Que direito ele tinha de levá­‑la
aonde quer que fosse? Ela não tinha razão alguma para obedecê­‑lo.
Ela soltou sua mão da dele e a escondeu atrás das costas.
— Me leve de volta! Eu não gosto dessa igreja!
Uma cólera súbita escureceu o rosto de seu pai e seus olhos se
apertaram. Ele fez um esforço para se controlar, a curva de seu lábio
superior brilhava e seus dentes reluziam. Ele se ajoelhou pesada‑
mente para ficar na mesma altura de seu rosto e a encarou.
— Escute­‑me, Angelique...
— Eu quero voltar para casa!
Ela sentia a histeria subindo de dentro dela e pensou no quanto
sua mãe o desafiaria. Ela ia gritar, morder, chutar, fazer o que fosse
preciso. Mas não daria sequer mais um passo em direção àquela
terrível capela. Ela observou a batalha das forças contrárias dentro
de seu pai. Seus olhos pareciam duas ágatas de fogo e seu hálito
começou a sair em jatos quentes contra as faces dela.
Desafiadoramente, ela girou nos calcanhares e correu. Imediata‑
mente, porém, escutou seus passos pesados atrás dela e, num relan‑
ce, ele a agarrou e prendeu entre seus braços, sufocando­‑a contra
sua sobrecasaca pesada.
— Escute­‑me, Angelique! — ele parecia exclamar e sussurrar ao
mesmo tempo, sua voz áspera em seus ouvidos. — Lembre­‑se do
dia em que eu fui visitar sua mãe. Quando eu fiquei tão doente.
Você lembra? Eu tinha pegado a febre, estava delirando e perdera o
controle de minha mente...

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Lara Parker

Era verdade: ela se lembrava muito bem. Ele tinha cambaleado


para dentro de sua casinha à beira­‑mar, balbuciando, os olhos de
um animal selvagem, a língua negra e pesada dentro de sua boca.
Sua mãe olhara impassivelmente enquanto ele se lançara sobre o
catre em que elas costumavam dormir, retorcendo­‑se sobre o acol‑
choado e rasgando o algodão gasto em uma porção de lugares.

* * *

— Cymbaline! Você tem de me ajudar... Minha cabeça está explo‑


dindo! Por favor... por favor... se você jamais gostou de mim... —
seus olhos giraram nas órbitas e o branco das escleróticas ocupou
um lado inteiro deles enquanto as pupilas se fixavam nela. — Pelo
amor da criança, não me deixe morrer! — os passos de sua mãe a
levaram lentamente em sua direção, ela colocara a mão sobre o pei‑
to dele e escutara. Depois disso, fora até a sua cesta e retirara de um
saquitel uma pluma arrancada do peito de uma gaivota.
Angelique observara enquanto sua mãe se ajoelhara ao lado de
seu pai e segurara a pena contra sua boca, enquanto ela balançava
ao ritmo de sua respiração opressa. Depois, ela fechara os olhos e
colocara dois dedos ao lado do pescoço dele, balbuciando para si
mesma. Depois de um momento, a mulher se erguera e o olhara do
alto, as mãos na cintura e um sorriso de desprezo em seu rosto.
— Você não está morrendo, Théodore Bouchard — dissera. — E
essa sua dor é culpa de sua própria tolice. Alguma coisa que tomou,
sem a menor dúvida. Alguma droga para aumentar a sua masculi‑
nidade e deixá­‑lo orgulhoso de seu egoísmo pecaminoso, não foi?
— a voz de sua mãe mostrava um desprezo adocicado. — Alguma
poção mágica para fazer crescer seu membro e deixá­‑lo bem duro!
Não, eu não irei ajudá­‑lo!
Ela lhe dera as costas e recomeçara a fazer suas tarefas domés‑
ticas, ignorando­‑o.
Mas ele gemera ainda mais.
— Mulher amarga e ciumenta — resmungara. — Raposa vaidosa...

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Nesse ponto você tem razão.


— Pelo amor de Deus, me livre desta... agonia... desta dor de
cabeça terrível... — ele suplicou. — Já está me afligindo há dias. Eu
não tomei droga nenhuma. É... é... — seus olhos estavam arregala‑
dos e protuberantes — ... É a febre! Foi um desses negros amaldiço‑
ados que me odeiam. Minha camisa favorita sumiu depois da
lavagem. Eu sei... Eu tenho certeza de que um desses demônios ne‑
gros miseráveis me roubou para usar como mortalha. Está me escu‑
tando, Cymbaline? Há um corpo... um cadáver apodrecendo em
algum lugar escondido enrolado em minhas roupas e eu estou mor‑
rendo também! Faça alguma coisa, o diabo que te carregue! Tire
uma mecha de cabelo... um pouco... um pouco de sangue! Cymba‑
line! Ajude­‑me, sua porca desgraçada!
Estendendo um dos braços, ele se apoderara da faca da cozinha
que estava sobre a mesa e a sacudira para ela, não como ameaça,
mas para que o sangrasse, porém sua mãe lhe dera as costas e come‑
çara a cantar uma canção da ilha para abafar­‑lhe as queixas. De‑
pois, levantando uma cesta sobre a cabeça, levou a roupa lavada
para pendurar na corda enroscada nos estipes de duas bananeiras.
Angelique saíra com ela para a horta. Fileiras verdes de ervilhas e
inhames bem cuidados se estendiam a seus pés. Sua mãe soltara o
cesto da roupa ao lado das gavinhas de um pepineiro.
— Vamos, me ajude na outra ponta, querida... — dissera­‑lhe sua
mãe. Ela adorava ajudar a mãe a pendurar os vestidos para secarem
ao vento. Todos os pareus eram feitos de panos coloridos, como um
campo de flores desbotado, macios e multicoloridos, lembrando os
corais que ela avistava sob o mar. Ela erguera um dos panos que
drapejava ao sabor do vento e se deixara levar para dentro das cores,
tocando­‑as com sua mente.
Seu pai continuava resmungando e gemendo sobre o catre.
— Angelique...
Ele chamara por seu nome. Ela se virara, muito espantada que ele
falasse com ela. Curiosa, largara os prendedores e fora até ele, cami‑
nhando de leve até onde ele jazia. Ela se recordava de como ele parecia

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Lara Parker

negro por debaixo de sua pele branca. Ela não conseguira ver a luz
que pulsava sob o rosto das outras pessoas. Ela ficara pensando para
onde sua luz poderia ter ido e julgara que tinha sido chupada pela dor
que ele sentia. Estendera a mãozinha para encontrar a luz e seus de‑
dos lhe haviam roçado a testa. Ele suspirara tão profundamente, que
ela tirara a mão bem depressa antes que ele a tocasse.
— Nã­‑ã­‑ã­‑ão... — ele sussurrara. — Toque minha testa de novo,
meu anjinho... — hesitantemente, ela tocara de novo em sua cabe‑
ça. — Aaaaah... sua mão é tão fresca e seus dedos... sim, é isso mes‑
mo... seus dedos empurram para longe a dor...
Ainda com hesitação, ela apertara suas têmporas cuidadosamen‑
te, movendo os dedos ao longo dos supercílios, para dentro dos ca‑
belos, depois acariciando­‑lhe o pescoço, repuxando a pela macia,
escavando em busca da luz perdida. E, para seu espanto, com um
longo suspiro gutural, ele adormecera.

* * *

Tudo isto retornara em um só momento, enquanto ele a apertava


contra seu peito. Seus braços esmagavam os ossinhos de suas costas
e seu rosto estava apertado contra o tecido espinhoso de sua sobre‑
casaca, provocando­‑lhe uma comichão. Ela farejou o odor salgado
de seu corpo. Então ele a empurrou para longe de si e a olhou dire‑
tamente no rosto. Sua barba se movia enquanto ele falava e perdigo‑
tos saltavam de seus lábios.
— Eu soube! Naquele dia eu soube! Você não é como as outras
meninas. Elas são fracas e miseráveis! Você tem poder suficiente
para transformar o que verá em breve. Para mudar tudo com o po‑
der de sua mente! — falou, com voz insistente. — Nada disso é real,
a não ser que você queira que seja! — seus dedos apertaram­‑lhe os
ombros como garras, cravando­‑se em sua pele. — Deixe­‑me sentir
orgulho de você... — disse ele, respirando fundo por um momento
e depois sua voz ficou ainda mais baixa, como um sussurro esterto‑
rante. — Minha... filha!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Nesse momento, a pedra em que seu coração se transformara se


abriu um pouco e era como se um fiozinho de água corresse de
dentro dela, como uma lágrima.
— Eu... eu vou tentar.
Ele lhe segurou a mão, agora com delicadeza, e a levou em frente.
Nesse momento, ela teria dado a vida somente para agradá­‑lo.
Mas ao contrário do que ela temera, eles não entraram na capela
e Angelique começou a achar que seu medo não tivera razão de ser.
Em vez disso, a pequena procissão de meninas de branco entrou no
pátio lajeado e se aproximou da parte de trás do edifício. Todos
pararam ali. Angelique viu a textura profundamente granulada da
madeira de uma porta com dobradiças pesadas que se abria como
uma garganta para uma sala localizada no subsolo.
Novamente, ele murmurou no seu ouvido, sua voz sibilando:
— Não chore. Está me escutando? Faça o que tiver de fazer, mas
não balbucie nem grite. O que você vai ver lá dentro não é real. É
apenas um truque!
As outras meninas, subitamente percebendo que iam ser manda‑
das entrar sozinhas naquela sala escura, começaram a gemer. Elas se
agarraram desesperadamente a seus pais ou mães, horrorizadas pela
separação. Um outro som, um uivo melancólico vindo das profunde‑
zas do castelo fez com que todas se arrepiassem de medo. A própria
Angelique sentiu o medo subindo dentro de seu estômago.
Seu pai empurrou a porta pesada e impeliu­‑a para frente, sua
cabeça rodando enquanto ela se sentia lançada para dentro da escu‑
ridão, juntamente com as outras. A porta se fechou, cortando a luz
que vinha de fora, e subitamente ela se percebeu em total escuridão,
seus pés pisando a terra fria. A parede úmida estava atrás dela e ela
colocou as palmas das mãos contra o frescor das pedras. Começou
a respirar alguma coisa crua e familiar. Alguma lembrança de qual‑
quer coisa que ela conhecera antes deslizou para sua mente cons‑
ciente e a seguir sumiu de novo. O fedor de carne morta pairava no
ar e novamente seu estômago deu uma volta, enquanto ela perma‑
necia ali, junto das outras meninas, parecendo suspensas na escuridão,

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Lara Parker

assustadas demais para emitirem um único som. Elas formaram


um bolinho apertado, como cobras enroscadas umas nas outras,
tremendo, as respirações ofegantes, todas com medo de fazerem o
menor movimento. Uma das meninas começou a soluçar baixinho.
Houve um movimento como se algo girasse dentro da escuridão, o
som de alguma coisa a explodir e então os candeeiros escondidos no
alto das paredes trouxeram vida ao cenário. Como se fossem uma úni‑
ca massa, as meninas engoliram em seco e recuaram daquela visão.
No piso, bem no centro da peça, estava a cabeça de um javali,
arrancada de seu corpo. As cerdas negras e grosseiras estavam esti‑
cadas de sangue coagulado. Ossos e cartilagens se projetavam para
fora da garganta e os colmilhos amarelos se curvavam para fora da
boca aberta. Os olhos redondos como contas captaram a luz das
chamas e pareceram olhar fixamente para elas, como se o terror da
morte ainda rebrilhasse em suas pupilas negras.
As meninas berraram histericamente e se jogaram contra a por‑
ta, arranhando e batendo com os punhos cerrados, soluçando por
seus pais. Mas Angelique se separou do grupo. Ela achava que as
outras gurias eram umas bobas, do mesmo jeito que quando estava
na escola e alguma coleguinha gritava de medo ao ver uma aranha.
Uma vaga curiosidade encheu­‑lhe a mente enquanto ela olhava para
a horrorosa careta do animal. Ela sabia que era uma cabeça de ver‑
dade, isso não era truque algum e que seu pai lhe mentira. Mas ela
também sabia que, por mais ferozmente que os olhos brilhassem na
luz bruxuleante das tochas, não havia como lhe pudessem fazer
mal. O bicho estava morto.
Então ela escutou outro tipo de gemido e o som de arranhões,
unhas contra madeira e um coro melancólico de ganidos que fizeram
sua respiração parar e horripilaram todos os cabelos de sua cabeça.
Eram animais — e estavam muito vivos — raspando as garras
contra a madeira de outra porta em uma parede separada, uivando
para entrar. A porta se escancarou e seis cães saltaram selvagemente
para dentro da peça, numa fúria de rosnados e dentes à mostra, ba‑
tendo as mandíbulas e suas costelas se movendo sem parar enquanto

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

resfolegavam. Eles saltaram sobre a cabeça do javali e, em sua ânsia


faminta, arranhavam e mordiam as costas e os pescoços uns dos ou‑
tros, arrancando pedaços da carne do animal numa selvageria feroz,
ao mesmo tempo em que ganiam e rosnavam cruelmente.
As meninas tinham parado de chorar e se apertavam bem junti‑
nhas, respirando em uníssono, seus olhos imensos, os rostos man‑
chados de rubor, os narizes vermelhos e escorrendo.
Angelique continuou separada e silenciosa, parada à frente do
grupinho. Ela apenas contemplava, fascinada e confusa, enquanto
os cães devoravam sua refeição sangrenta. Ela estava lutando para
entender, mas sua mente se tornara em uma mancha confusa. Seu
pai a tinha ido buscar. Por que ele a levara para lá? Como ele a po‑
deria ter jogado neste lugar?
A raiva cresceu em seu peito e rugia em seus ouvidos como o
zumbido de um enxame de abelhas. Subitamente, ela queria puni­
‑lo, fazer com que ele lamentasse seu cruel abandono. Ele só era seu
pai de nome. De repente, ela odiava tudo quanto ele representava:
suas mãos desajeitadas e desgraciosas enquanto ele a erguia, sua voz
insistente: “Deixe­‑me sentir orgulho de você...”. Ela sentia uma fra‑
queza nas pernas e ansiava pela segurança cálida junto à sua mãe na
casinha à beira do mar. Ela respirou fundo. Ele lhe pedira que fosse
corajosa. Ela só tinha de ficar ali esperando.
Nesse momento, seu coração deu um pulo; o maior dos cães se
virara e estava olhando para ela. Seus olhos brilhavam, sua mandí‑
bula pintada de sangue, seus beiços erguidos até o focinho, expon‑
do as presas lustrosas. Um rosnado baixo começou a brotar de seu
peito e ele começou a se encolher, pronto para dar o bote. Ela sabia
não ter a menor condição de impedi­‑lo, mas permaneceu imóvel,
sua mente enfocada em algum outro lugar obscuro, em outro tem‑
po indefinível. Lentamente, ela ergueu a mão direita para segurar o
amuleto pendurado em seu pescoço e apertou­‑o entre os dedos. Ela
sentiu o formato da caveirinha da cobra dentro do seu uangá.
O cão rosnou novamente, agora bem mais forte, e se firmou nas
patas traseiras, seus olhos dois carvões acesos. Angelique escutava

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Lara Parker

atrás de si o lamento das outras meninas, mas agora se sentia mais


hipnotizada que temerosa. Havia alguma coisa familiar aqui, algu‑
ma lembrança ou o fragmento de um sonho, mas ela não conseguia
trazê­‑la para seu consciente.
O cão começou a se mover em direção a ela, polegada após pole‑
gada. Ela já podia sentir sua respiração quente nos tornozelos e fa‑
rejar o sangue azedo em sua queixada. Esperta o suficiente para não
se mover, ela permaneceu congelada onde estava, imaginando um
meio de se salvar. Se ao menos ela conhecesse melhor a magia de
sua mãe... Havia forças invisíveis por toda parte — ventos que ar‑
rancavam árvores e correntes marítimas no oceano cuja força im‑
pedia que se nadasse contra elas. Se ao menos ela pudesse se tornar
invisível como o vento, misturar­‑se com a parede, perder­‑se nas
frestas das pedras frias...
Escutou o cão rosnar uma terceira vez, mais forte ainda, quase
um rugido, o aviso final antes de dar o bote. Mas não era a dor que
ela temia; era o fracasso — fracasso em corresponder à confiança
de seu pai e ao amor de sua mãe. Ela não soltaria um único grito.
Ela fitou o cão diretamente, disposta a ser devorada, quase ansiosa
por... o quê? Começar sua vida novamente? O olhar do cão estava
agora vago e indiferente. Então, algum demônio interno piscou de
dentro de seus olhos e eles se transformaram em duas chamas. Sua
boca de dentes cruéis e avermelhados pareceu curvar­‑se em um
sorriso demoníaco.
Estive esperando por você...
Sua pele pareceu encolher­‑se com o frio que a invadia. Era só
imaginação ou o animal falara com ela? Não em qualquer língua,
não com a voz, mas por meio de um pensamento negro que flutua‑
ra pelo ar até chegar à sua própria mente. Ou fora somente outro
ronco grosso provindo das profundezas de seu estômago?
Por um longo momento, ele a contemplou como para ver se ela
havia escutado ou sentido a sua mensagem e ela o encarou sem va‑
cilação, diretamente nos olhos de fogo. Então, ele inclinou a cabeça
e farejou um de seus tornozelos com a ponta do focinho. Ela gelou,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

esperando que as fauces se abrissem. Mas ao contrário, ele mera‑


mente lambeu­‑lhe o pé, sua língua deixando um rastro de sangue.
Então, lentamente, ele lhe deu as costas e inclinou­‑se novamente
sobre os restos de sua horrorosa refeição.

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Quatro

porta se abriu. A luz inundou a peça. Os cães se encolheram,


temendo chicotadas. As meninas se jogaram nos braços de seus
pais e mães, soluçando de alívio. Angelique caminhou de volta para
a luz do sol. Seu pai estava cercado por outros plantadores e parecia
exuberante enquanto eles o parabenizavam, alguns deles colocando
dinheiro em suas mãos. Todos falavam ao mesmo tempo.
— Bem, essa aposta você ganhou, Bouchard!
— Espantoso! Tenho de confessar. Simplesmente maravilhoso,
ela foi... onde foi que você a encontrou?
— Santo Deus! Eu jamais deveria ter feito essa aposta com
você, Théodore!
— Ora, apenas pense que perdeu em uma briga de galos, Luís
— disse seu pai, com uma gargalhada. — Com a diferença de
que, caso fosse uma briga de galos, você teria perdido muito mais
do que isso!
— Então foi assim que você arranjou tantas dívidas! — brincou
outro homem.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— É a minha cruz, Jacob, o jogo, o maldito jogo. Mas com isto...


— disse ele, erguendo o punho cheio de notas de banco —, eu pa‑
garei todas as minhas dívidas. Mais do que isso, agora eles têm ou‑
tra pequena deusa para mantê­‑los felizes!
— Só não felizes demais, segundo espero...
Um dos senhores de engenho, vestido extravagantemente com
um casaco verde de montaria e botas acima do joelho, cravou os
olhos em Angelique, depois se espreguiçou e deu um tapa amigável
nos ombros de seu pai.
— Muito benfeito, muito benfeito, meu amigo! — exclamou.
— Um pequeno tipo de beleza! Vai conservar suas moedinhas na
pilha, por assim dizer, hein? — seu rosto estava todo manchado
de vermelho pelo excesso de álcool e sua voz soava meio enrolada.
— Vamos supor que agora você é o senhor destas bandas. Pelo
menos, por algum tempo. Muito bom para sua bolsa, esse negó‑
cio. Muito bom mesmo.
— Esperemos que sim, Luís.
Angelique ergueu os olhos para seu pai, esperando ouvir
algum elogio.
— Eu fui corajosa? — indagou. Um dos senhores de engenho
mais jovens olhou para ela com algum interesse. Era atarracado e
robusto e usava uma camisa branca de colarinho aberto e calças de
couro. Sua expressão era séria e suas maneiras diretas.
— Ela tem olhos imensos, um azul que parece uma flor, ora, ela
não deve ter mais de nove ou dez anos... — comentou o rapaz.
— Sim, é uma lástima que sua pele seja tão clara — declarou seu pai.
— Em outra época, poderia ter um destino muito melhor à sua espera.
— E você vai sacrificá­‑la às suas desavergonhadas dívidas de jogo?
— Não, não, é mais do que isso, muito mais... — seu pai se afas‑
tou um pouco. Aparentemente, ele não queria que ela escutasse o
que ele diria a seguir. — Ela tem coisas muito ruins pela frente...
— Não posso acreditar que você esteja ansioso por isso — mur‑
murou Luís, entre dentes.
— Claro que não, mas eles precisam disso, não é verdade?

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Lara Parker

— Como é que eles chamam o sacrifício? Débatement?


— Não, eles chamam de Manje Lwa ou de Mange loá... — disse
Théodore com uma risada.
— Ah, sim, a fonte da juventude e essa besteirada toda!
— Só assim eles se lembram de casa. A carne de uma criança, o
tempo que sai da mente e tudo o mais. Escutem. Eles já estão tocan‑
do os tambores...
Angelique caminhou até ele, com impaciência.
— Fui ou não? — insistiu.
Seu pai respondeu­‑lhe bruscamente.
— Muito corajosa de fato. Você foi escolhida. O que acha disso?
Agora vá preparar­‑se para a cerimônia.
— Quando eu posso voltar para a casa de mamãe?
Ela estendeu a mão para segurar a dele, mas ele enfiou os dedos
na cava do colete e se virou abruptamente para um lado. Foi ime‑
diatamente enfrentado por um padre gordo que usava uma longa
sotaina branca e uma cruz de madeira sobre o peito.
— Bl… bl… bl… blasfêmia! To... to… to… total blasfêmia,
Monsieur Bouchard! — entoou o padre. Ele se voltou para o homem
de rosto vermelho, seu ultraje levando­‑o a gaguejar. — E o... o... o
senhor apoia esse crime, Monsieur Desalles?
Luís Desalles olhou para Angelique com uma expressão marota.
— Ah, tenho certeza de que esta pequena deusa é uma imagem
de escultura! — falou, em tom de troça e a seguir dirigiu­‑se ao pa‑
dre com falsa deferência. — Mas, padre Le Brot, o senhor não pre‑
cisa ter medo, uma vez que tem a proteção da Igreja e os escravos
têm alguma estima por ela! — sua voz estava pastosa de rum. —
Ah, não, o senhor não precisa ter medo de acordar no meio da noi‑
te com sua casa sendo queimada até os alicerces, com sua garganta
cortada primeiro... ou não, já que falamos nisso. Ha! Ha! — ele
balançou de um pé para o outro e deu uma risadinha. — Pelo me‑
nos, eles repetem de cor as palavras da missa!
— Re... re... repetem de cor! Sem dúvida esta é a maneira de lhes
roubar para sempre suas almas imortais! — respondeu o padre Le

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Brot, ofendido. Ele parecia sentir­‑se superior aos demais e tratava os


outros com desprezo, quase como se o esforço de conversar com
eles não fosse nada mais que um desperdício de tempo.
— Roubar as almas de todos nós, acho eu! — intrometeu­‑se outro
senhor de engenho. Era um homem mais velho que os outros, cabelos
brancos e um colete de brocado. — Mas o que mais eles todos fazem,
senão nos roubar nossos lucros e nosso rum? Adoecem num dia e no
outro já morreram! — os longos anos que passara na ilha haviam
desenvolvido nele um ar de resignação. — Eles estão sempre conspi‑
rando. Conspirando. Um dia, ainda vão acabar com todos nós!
— Pai? Eu fui corajosa?
Seu pai olhou ao redor ansiosamente, para ver se algum dos ou‑
tros plantadores a havia escutado e então rapidamente voltou­‑se
para o padre.
— Escute, Pai — falou sarcasticamente. — Ela quer falar com você!
O padre observou Angelique com certo interesse. Ele havia nota‑
do seu desapontamento quando, incapaz de fazer com que seu pai a
tomasse pela mão, ela a baixara novamente. Enquanto olhava para
ela, seu rosto se iluminou.
— Mm... mm... mas eu me lembro desta menina! Ela foi ensi...
si... ensinada pelas Irmãs. Uma ótima estudante, se não me engano
e também uma bo... bo... boa leitora! — disse ele, sorrindo. — Você
é a menina que leu todo o livro de poemas, não foi?
Angelique sentiu­‑se grata por lhe falarem com tanta considera‑
ção. Ela corou e sacudiu a cabeça afirmativamente, alegre de novo.
— Sim, padre. E... e também li o Shakespeare.
— E quais são os seus poetas favoritos, minha querida? — inda‑
gou o padre.
— Milton, senhor. E Thomas Gray.
— Ah, sim... Aquele poema: Elegia escrita em um Cemitério Ru‑
ral... Hummm...
O padre se virou para o pai de Angelique e falou­‑lhe em voz baixa:
— Vo... vo.. você seriamente pretende entreg... ga... gar esta me‑
nina para esse ritual atroz, Théodore? É uma coisa brutal, incivilizada.

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Lara Parker

Nós trou... trou... trouxemos os negros aqui para trabalhar para nós
e temos agora o de... de... dever de lhes salvar as almas.
Vamos lá, você realmente acredita que os negros têm alma? —
redarguiu seu pai, com um riso forçado e sem alegria.
— Se... se... sem a menor dúvida, todos os homens têm al... al...
almas. Eles nascem com uma pu... pu... pureza instintiva que lhes
permite conhecer di... di... diretamente a Deus.
— Se isso fosse verdade, então teríamos de fazer tudo o que esti‑
vesse ao nosso alcance para não deixar que eles O descobrissem!
— ele olhou em volta e chamou asperamente. — Ei, vocês? Onde
estão as minhas negras?
Duas escravas se aproximaram timidamente.
— Aqui, sinhô... — murmurou uma delas.
— Onde diabos vocês estavam, suas porcas ignorantes? Peguem
a criança agora mesmo e a preparem para a cerimônia. Pelo amor
de Deus, deem um banho nela. Ela está imunda!
Elas se adiantaram em sua direção, mas Angelique não se
moveu. Ela segurou a manga da sobrecasaca de seu pai e deu­‑lhe
um puxão.
— O senhor está orgulhoso de mim? — perguntou. — Está?
Ele sacudiu a manga.
— Sim, sim, é claro que estou. Agora vá com essas mulheres.
Elas vão prepará­‑la.
— Venha, minina... — sussurrou uma das mulheres. Alguma
coisa em seu tom de voz xaroposo fez com que Angelique se recor‑
dasse de sua mãe. — Vai ser uma grandi felicidadi pra você. Très
gentile. Très bonheur. É um jogo que nóis fazemu. Venha agora. Ve‑
nha cum nóis.
Relutantemente, Angelique acompanhou as mulheres. Olhou
por sobre o ombro para avistar seu pai uma última vez. Ele estava
conversando com os outros senhores de engenho. Naquele momen‑
to, sua alta estatura vestida com a sobrecasaca negra por baixo de
seu rosto barbado e cabelos compridos pareceu assumir o formato
de um tronco de árvore queimado e enegrecido pelo fogo. Seus

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

gestos pareciam galhos sem folhas se erguendo no vento. Ele já se


esquecera completamente de sua presença ali.
Ela seguiu as duas criadas através do pátio e entrou pela porti‑
nha da torre redonda do engenho. Subiram por uma escura escada
em caracol que dava voltas dentro da estrutura como a parte de
dentro de um velho coral. Os olhos de Angelique estavam fixos na
cabeça enrolada em um turbante e no traseiro grande da escrava
que subia à sua frente, salientado pelo tecido com motivo floral de
sua saia. As paredes tinham sido construídas grosseiramente e os
degraus de pedra eram em forma de triângulos irregulares.
Em determinado ponto, ela encontrou uma janelinha estreita,
através da qual pôde ver um pouco da vegetação verde e as ondas do
mar, mas a seguir o caminho retorcido se escureceu novamente.
Angelique lembrou­‑se das cavernas cheias de água em que entrara
remando quando a maré estava baixa, cada vez mais fundas até que
toda a luz externa se esvaísse. Era uma brincadeira de que gostava
muito, namorar o escuro, que era simplesmente outro amigo, como
a água e a areia, nada que precisasse recear. Ela sabia que a qualquer
momento poderia virar a canoa e voltar para o sol.
Mas aquela escadaria ficava cada vez mais escura e o ar dentro da
torre era quente e úmido. O único som era a respiração ofegante das
duas mulheres e o som de seus pés descalços batendo contra as pe‑
dras, e Angelique pensou novamente na silhueta de seu pai, negra e
esgarçada contra a luz do céu.
Finalmente, elas chegaram a um patamar estreito em que havia
uma porta pesada, com um ferrolho grosso de metal. A porta foi
aberta, mostrando uma sala grande e redonda que ficava no alto da
torre, mobiliada com uma cama de colunas torneadas e um toucador.
Cortinas grandes como tapeçarias estavam penduradas sobre as ja‑
nelas compridas e estreitas e uma luz esmaecida fluía através delas
para se refletir nas paredes de pedra. A cama estava coberta por uma
colcha de veludo vermelho e sobre ela havia um dossel de renda fina.
Angelique percebeu no mesmo instante que toda a decoração era eu‑
ropeia, ornamentada mas gasta. Ela se virou para uma das mulheres.

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Lara Parker

— O que meu pai quis dizer quando falou que eu era a escolhida?
A mulher mais gorda e mais velha parecia de boa índole e mos‑
trava uma espécie de gentileza em que Angelique instantanea‑
mente confiou.
— Eles óia vocês por uma fresta no teiado, lá em riba da parede
— mais alto que o lugá em que os cachorro estava — disse ela, lan‑
çando um olhar para sua companheira.
— E por que eles olhavam?
— Ora, pra vê quem seria a deusa, minina — respondeu a mu‑
lher, sua voz trêmula e Angelique percebeu que ela estava fazendo
um esforço para se mostrar alegre, porque suas bochechas estavam
frouxas e seu corpo inteiro parecia estar carregando um grande
peso. — Agora vem cá tu, docinhu. Nóis temo de ti deixá bunita e
limpinha. Vai sê um bom banhinho para tu, vancê não acha?
Gentilmente, a mulher mais velha levou Angelique para uma
tina grande, redonda e esmaltada. Seu tom de voz era tranquiliza‑
dor, mas suas mãos tremiam quando ela derramava um óleo perfu‑
mado de uma garrafa verde sobre a água morna. Uma fragrância de
avencas surgiu com o vapor úmido. Ela retirou com cuidado o ves‑
tidinho de Angelique e a ergueu para dentro da tina. Angelique
nunca se banhara em água tão cálida e macia e se deixou mergulhar
de boa vontade em seu abraço líquido.
Mas elas não a deixariam gozar daquele conforto por muito tem‑
po. Murmurando alguma coisa em língua crioula, a escrava mais
moça se reuniu a elas e as duas a esfregaram com tanta força, que
ela pensou que sua pele fosse ficar em carne viva atrás das orelhas e
sob os cabelos. Ela se deixou esfregar como se fosse uma boneca de
trapo, completamente frouxa, concentrando­‑se apenas nos dois pa‑
res de pés nus em tonalidades de castanho, que apareciam por bai‑
xo das saias de flores coloridas, pisando o chão molhado enquanto
se moviam ao redor da tina. Elas murmuravam uma para a outra
palavras musicais que Angelique reconhecia por haver escutado an‑
tes, mas que não podia compreender. Era tudo tão estranho e não
completamente desagradável, mais como um sonho em que ela fos‑

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

se jogada para cá e para lá como uma peteca e depois acariciada e


ninada com acalantos. Ela sentia as mãos fortes massagearem seus
pés e artelhos com óleo perfumado.
Então elas a tiraram para fora da água, puseram­‑na em pé e se‑
caram seu corpo trêmulo com um roupão de algodão macio.
Pentearam­‑lhe os longos cabelos até que ficassem fofos e dourados,
desenroscando­‑lhe os cachos com gentileza. Ela suportava tudo
como se estivesse sonhando acordada. Então baixaram um vestido
branco e transparente por sua cabeça, costurado em camadas de
tule fino. Parecia um vestido de noiva, amarrado com um cinto
cheio de borlas escarlates, mas percebeu que sua bainha estava es‑
garçada. Então a enrolaram em fios e mais fios de joias — colares,
tornozeleiras, braceletes e pulseiras de ouro com moedinhas tilin‑
tantes, pequenas conchas e pérolas.
Elas a conduziram até um espelho erguido no canto da sala.
Quase não reconheceu o reflexo que via nele. O convento em que
estudara não tinha espelhos e ela só vira seu reflexo nas vidraças de
sua casa ou na superfície das lagunas quando a água estava lisa.
Sua pele era mais branca do que ela havia imaginado e seus ca‑
belos dourados explodiam como a aura do sol ao redor de sua cabe‑
ça e de seu rosto delicado e muito pálido. O tecido fino do vestido
estava amontoado ao redor de sua cintura em muitas camadas, en‑
roladas em colares longos ou presas por broches e, de repente, ela se
recordou dos casulos redondos e gordos que pendiam dos galhos
das mancenilheiras, brilhantes sob o sol, cada um escondendo um
verme adormecido. A mulher mais velha trouxe uma tigela e um
pincel e começou a pintar seus olhos com tinta kohl. Comichava e
Angelique empurrou­‑lhe a mão.
— Fica quetinha, meu bem e num pisca — disse a mulher. —
Ansim, isso aí. Num tá linda?
Angelique franziu a testa.
— Por que vocês estão fazendo tudo isso?
— Ora, pra tu ficá bonita, minha nenê — explicou a outra. —
Todus us escravu vêm ti vê hoje.

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Lara Parker

— Vêm me ver? Por quê? Por que eles querem me ver?


— Pra vê vancê de manto e com todas essa coisa bonita usandu.
Pruque tu vai sentá lá em riba, no arto do artar...
— O quê? Um altar?
— É craro. Tu é a deusa agoia, minina. Tudos elis vêm vê vancê e
vão se ajoeiá e rezá pra tu e ti adorá, que tu é a pequena Virge Maria.
Esta descrição dos acontecimentos pareceu uma perspectiva ter‑
rificante para Angelique. Alguma coisa estava para acontecer que a
amedrontava mais do que a peça com os cães famintos ou a frialda‑
de de seu pai. Seus pensamentos começaram a se desenrolar louca‑
mente e ela olhou para as mulheres.
— Eu quero ir para casa! — gemeu. — Por favor, por favor, me
levem de volta! A mamãe está me esperando lá!
— Nã, nã, nenê — murmurou a mulher grande tranquilizadora‑
mente, como se a estivesse embalando no berço. — Vancê fica aqui
agora. Tu mora na torre, viu? Nóis duas cuida de tu, ti damo comi‑
da boa e ti vestimo e te deixemo gorda e reluzenti. Pruquê vancê é
agora a nova deusa viva da prantação.
Sua voz tremeu e Angelique contemplou os olhos da negra como
se fosse a primeira vez. O branco dos olhos estava marcado por
veiazinhas cor de cobre, mas estavam cheios de lágrimas, que escor‑
riam por suas bochechas gordas e brilhavam contra sua pele escura.
— Por que você está chorando? — ela indagou, cada vez mais
confusa. — Está chorando por minha causa?
A mulher sacudiu a cabeça, mas se engasgou quando tentou falar.
A mulher mais nova se aproximou, sua saia cor de ferrugem apertada
ao redor de seu ventre magro e olhou severamente para a que chorava.
— Thaïs. Para cum isso! Tu é boba, ou o quê!? I si elis ti iscuta?
Thaïs ergueu os olhos para ela e disse em voz lamentosa:
— I si iscuitarem? Nóis faiz de novo? Tudo di novo? Óia essa guriazi‑
nha! Suzette? Tão cruel... tão cruel... Teu curação é duro qui nem pedra?
— Ora, i que mais nóis pode fazê? — retorquiu Suzette, austera‑
mente. — Si nóis si recusa, elis nos mata. Tu sabe disso, Thaïs. Tu
sabe disso tão bem quantu o sor desci nos fim de dia!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ao ouvir essas palavras amargas, Thaïs subitamente pareceu


encolher­‑se e começou a soltar um gemido baixo e agudo, os braços
apertados ao redor do peito, balançando para frente e para trás.
— Ela era minha fia... Minha nenê preciosa...
— Para cum isso! — a voz de Suzette parecia um chiado de co‑
bra. — Ela num era fia tua coisa arguma! Era só outra guria escrava
qui nem esta, só qui esta inté pareci branca. I agora, tu tá loca, ge‑
mendo dessi jeitu? Si elis ti pega, vão ti botá no troncu i ti batê. É o
que tu qué? Cinquenta laço no teu lombu qui nem fogo? E ti man‑
dam logu logu pra trabaiá nos canaviá cum tuas costa feita im pe‑
daçu! Nóis é as duas filiz de trabaiá aqui, na casa delis, aí tu tampa
essa tua boca preta! Tu inté pareci a idiota di uma hiena!
O choro diminuiu um pouco e Angelique, cada vez mais pertur‑
bada, olhou ao redor do quarto. Só conseguiu ver aquela única por‑
ta com o ferrolho de metal e três janelões altos e estreitos, com
caixilhos de chumbo, as folhas trancadas, instaladas bem fundo nas
paredes grossas. No mesmo instante, ela percebeu um odor apetito‑
so, temperado e quente, e Suzette se aproximou dela com uma ban‑
deja de prata, trazendo um prato grande cheio de fatias de bolo e
pastéis doces. Havia frutas cristalizadas e carne moída dentro de
massa folhada, mais uma taça de líquido cor de ouro.
— É para mim? — ela perguntou.
— Sim, minina, é tudo pra tu e u que tu não comê, sobra pra
nóis — a voz de Suzette indicava cobiça e gula. — Vai in frenti,
come uns. Tu vai gostá muito, meu docinhu...
Angelique sentiu um puxão no estômago e só então percebeu até
que ponto estava faminta. Estendeu a mão para um pastel: tinha
cheiro de limão e açúcar, mas por dentro era uma pasta quente de
frango. Deu uma mordida. Nunca tinha provado nada tão gostoso!
Pegou o prato e Suzette observou com uma satisfação austera en‑
quanto Angelique comia até não caber mais, lambendo os dedos e
tomando golinhos do suco doce que havia na taça.
Enquanto isso, Thaïs não parava de olhar para o espaço, com um
punho fechado contra os dentes, embalando­‑se como se estivesse

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Lara Parker

esperando alguma coisa com um pavor contido. Então, abrupta‑


mente, ela ergueu a cabeça e seus olhos se arregalaram. Angelique
escutou um som distante. Thaïs ergueu­‑se, prendendo a respiração
e soltou um uivo tão angustiado que parecia ter levado uma facada.
Suzette, com o rosto contorcido, correu até sua companheira e a
abraçou com toda a força.
O grito vinha da direção da capela — um berro de arrepiar os ca‑
belos, não um grito de medo ou de dor, mas um uivo de terror com‑
pleto e final. Angelique se ergueu e o prato caiu no chão com estrondo.
— Mas o que é isso?
Nenhuma das mulheres se moveu ou respondeu. Thaïs desabou
em uma cadeira com uma resignação inerme. Seu rosto era uma
máscara de tristeza e ela olhava para frente com olhos cegos. Mas
Suzette veio até onde estava Angelique e segurou­‑lhe a mão. Com
um puxão firme, fez com que ela se levantasse.
— Vem cá, vamo — cochichou. — Elis quer vancê agora. Quan‑
du teu tempo acabá, podi sê que tudo isso tenha acabadu e elis vai
ti sortá. Vancê percisa esperá pur isso e conservá teu curação longi
das percupação.
Angelique não fazia a menor ideia do que ela estava falando. Ela
apenas sabia que alguma coisa terrível havia acontecido e que agora
ela teria de descer até aquela igreja. Ela puxou a mão e correu em
direção à porta. O ferrolho era pesado e difícil de erguer e Suzette
já a agarrara pela cintura, impedindo­‑lhe os movimentos e gritan‑
do. Angelique conseguiu dar­‑lhe um coice e se livrar, enquanto
abria o ferrolho e jogava a porta para o lado com um estouro. Ela se
enfiou pela abertura escura e voou escada abaixo, achando que a
cada momento ia perder o pé e mergulhar de cabeça naquela espiral
estonteante. Suzette vinha logo atrás dela, gritando e tentando
agarrar­‑lhe o vestido, mas Angelique era mais leve e mais rápida
que a mulher de passos pesados.
Quando chegou ao térreo, disparou através do pátio e se jogou
contra o portão que dava para fora. O imenso cadeado bateu­‑lhe no
estômago com tanta força, que ela soltou todo o ar dos pulmões.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Vendo que a corrente do cadeado estava enroscada na tranca, olhou


em volta sem saber o que fazer, até que viu uma portinha na parede
que conduzia ao fosso e correu em direção a ela.
Os passos de Suzette ecoavam atrás dela e ela gritava agudamente:
— Angelique! Pare! Elis vai nos matá! Vorta, pur favô!
A porta se abriu com um grunhido e ela desceu por outra esca‑
daria de pedra até um corredor que parecia tão negro quanto um
túmulo. Ela tateou ao longo das paredes, horrorizada pelo medo de
perder o pé e cair, porque as pedras sob seus pés eram escorregadias
de musgo ou limo. Atrás dela, a voz de Suzette ainda chamava seu
nome, mas ela meio que correu, meio que deslizou sobre as pedras
pegajosas, sua respiração aos haustos, seus dedos se arranhando nas
pedras. Subitamente, o chão desapareceu debaixo de seus pés e ela
caiu por sobre uma espécie de beiral áspero e tombou dentro da
água até os joelhos. Ela estava na parte subterrânea do fosso. Levan‑
tou as bainhas de seu vestido e espadanou através da poça, que pa‑
recia ir ficando cada vez mais funda, depois mais rasa outra vez.
Lambeu os lábios e o gosto do ar fétido lhe disse que aquela água
tinha sido empurrada pela maré desde o oceano.
À medida que seus olhos se acostumavam com o escuro, ela per‑
cebeu as paredes de pedra úmida que se erguiam à sua volta. Escu‑
tou um rufar distante e ritmado, que ela pensou ser a arrebentação
da maré contra os penhascos da praia e sentiu uma grande alegria
ao pensar que poderia fugir para o oceano.
Foi então que ela avistou uma luz no alto de outra escada muito
mais estreita que aquela que descera e bastante íngreme, quase
como uma escada de mão subindo da água. Encorajada, ela vadeou
até os degraus e subiu. O som dos tambores estava mais perto e es‑
cutou um gemido trêmulo, como o da arrebentação trovejando no
interior de uma caverna profunda à beira­‑mar.
Atingiu uma porta de madeira e a empurrou para abrir.
Encontrava­‑se em uma peça pequena, as paredes alinhadas de
prateleiras cheias de garrafas. Na outra ponta da sala havia uma
fita de luz cintilante aparecendo por baixo de uma cortina pesada

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Lara Parker

que cobria uma porta muito maior e ela se enfiou cuidadosamen‑


te sob o tecido, pensando que esta poderia ser sua via de escape
para o mundo externo.
A princípio, Angelique não entendeu o que estava vendo. Era
como se estivesse em uma plataforma logo acima de uma caverna e
que o céu noturno tivesse caído e enchido o recinto com estrelas.
Mas não, eram pequenas chamas — fagulhas de luz por toda parte!
O que pareciam brasas semiapagadas eram de fato milhares de velas
bruxuleando através da escuridão. O som, que parecia zumbidos e
murmúrios, provinha realmente das gargantas de dúzias e dúzias
de homens apinhados na igreja, cada qual segurando sua vela e ba‑
lançando ao ritmo de tambores. Ela estava na capela!
Seu ânimo desabou dentro dela e sentiu que suas pernas e braços
doíam de exaustão. Mordeu os lábios e prendeu as lágrimas quen‑
tes. Sua fuga desesperada a conduzira justamente aqui. O ritmo pe‑
sado dos tambores pulsava e sacudia o ar com seu timbre. Ela olhou
horrorizada para uma massa ondulante de corpos suarentos. Os
homens cantavam incompreensivelmente, mesmerizados pela bati‑
da dos tambores.
Seus olhos percorreram o salão, em busca de uma passagem
através da turba. A comida que devorara estava exercendo um efeito
estupefaciente sobre ela. Sua visão ficou embaçada e suas pernas
pareciam água. Ela tentou correr de volta, mas uma tontura fez que
ela girasse e caísse justamente nos braços de Suzette, que chegara
por trás dela. Ela sentiu que seu corpo inerme era erguido sobre
uma alta plataforma de madeira.
Colocada acima do bando de homens, ela mal conseguia discer‑
nir frascos cheios de líquido, frutas e bolos e fatias de hortaliças
cruas através daquele nevoeiro que lhe recobria os olhos. Tudo pa‑
recia polvilhado com farinha branca e emitia um odor azedo. Havia
jarros amarrados com fitas trançadas, que pareciam conter peque‑
nos ossos e outros objetos misteriosos flutuando em líquido. So‑
bre um imenso prato de porcelana ela viu pedaços de carne crua
de algum animal sacrificado e esfolado, cortados em fatias e ainda

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

pingando gotículas de sangue. A vista lhe provocou um enjoo, sen‑


tiu um engasgo na garganta e olhou para outro lado.
Erguendo os olhos, viu que seu pai estava parado nos fundos do
santuário. Sentiu uma onda de esperança, mas ele não se adiantou.
Ao contrário, ele a observava, mas seu olhar não demonstrava afei‑
ção ou orgulho. Ele parecia ao mesmo tempo raivoso e resignado,
como se simultaneamente rejeitasse e aceitasse um destino maior
do que podia controlar. Moveu­‑se até o centro da massa de homens
ondulantes e ficou parado ali, segurando uma longa espada acima
de sua cabeça, o cabo em uma das mãos e a ponta na outra, como
uma ponte sobre sua cabeça. A lâmina da espada reluzia, refletindo
a constelação de pequenas chamas, mas o centro dela estava escure‑
cido por uma mancha enferrujada.
Então ele se curvou e beijou a lâmina, colocando a espada sobre
o altar, ao lado de Angelique. A seguir, ele ergueu o prato de porce‑
lana. Voltou­‑se para a congregação e se moveu entre as fileiras de
homens ajoelhados, passando­‑lhes pequenos pedaços de carne en‑
sanguentada. Ela viu que cada dançarino colocava na boca um pe‑
daço da oferenda.
O cântico e o rufar dos tambores chegaram a um auge frenético
e os escravos se ergueram e começaram a girar e a se embalar, en‑
quanto Angelique observava a cerimônia através do véu de qual‑
quer derivado de ópio que lhe houvessem administrado. Os corpos
dos dançarinos pareciam agora outros tantos monstros. Cresciam
velas acesas do alto de suas cabeças, das costas de suas mãos e do
peito de seus pés. As luzes saltitantes giravam e traçavam arcos de
fogo através da escuridão. Vários dos homens agora saltavam alto
no ar e gritavam como se tivessem sofrido algum golpe.
Vagamente, ela percebeu que estava no centro da cerimônia. To‑
dos os olhos dos homens a fitavam, eles se curvavam perante ela e
dançavam à sua volta. Seus dentes brancos cintilavam e suas lín‑
guas estavam escarlates.
Um dos homens na primeira fila da multidão entrou em transe,
soltou um grito agudo e então caiu aos pés do altar, balbuciando

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um fluxo de palavras em uma linguagem incompreensível e Ange‑


lique percebeu que ele estava possuído. Ela tinha visto coisas pare‑
cidas em cerimônias realizadas na vila, mas sua mãe sempre a
afastara delas. “Couchon Gris”, ela murmurara. “Petrô! Não olhe
para isso, é coisa do mal.” Os olhos do homem estavam fixos nela
até que rolaram para cima e para dentro das órbitas e só as escleró‑
ticas amareladas apareciam. Suas costas formaram um arco e ele se
atirou em sua direção, o estômago projetado para frente, enquanto
se retorcia e dava cambalhotas.
Sua cabeça estava cheia daquela fumaceira e um miasma come‑
çou a nadar por entre seus pensamentos até que a inundou comple‑
tamente. Teve a impressão de que caía de uma grande altura e
interrompeu a queda com um estremeção violento, colocando as
palmas das mãos na plataforma. Algum tipo de líquido, pegajoso e
ainda quente, tinha sido derramado ali e ela ergueu as mãos, repu‑
xando a cabeça ao sentir o fedor cáustico. Olhou então para baixo.
Percebeu pela primeira vez que estava sentada sobre uma poça de
sangue que se coagulava lentamente e que fluíra através do altar
para pingar pelos lados da plataforma até o piso, em que se juntara
numa poça de um carmesim fosco.
Ela olhou para a mancha escura por um longo momento, imagi‑
nando qual seria o seu significado e seu olhar correu para uma mas‑
sa arredondada caída junto dela, brilhando de sangue congelado,
como uma anêmona do mar ferida, quebrada de sua haste e carre‑
gada pelas ondas até a praia. Mas os filamentos lembravam mais
algas enroscadas ou ramos de zosteras, e a seguir ela percebeu que
não era nenhum tipo de alga, mas cabelos humanos enroscados e
sob eles divisou o brilho opaco dos olhos vidrados de uma menina
morta! Nesse momento ela desmaiou e perdeu toda a consciência
do que a rodeava.

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Cinco

uando Angelique despertou, estava de volta na sala da torre,


sozinha, sua roupa fora trocada e ela fora deitada sobre a col‑
cha de veludo da cama. Era de dia, mas a chuva caía novamente e ela
ficou ali, quietinha, escutando o pandeiro das gotas sobre o teto
acima de sua cabeça. Algumas vezes golpes violentos de tambores
em staccato reforçavam o som, mas logo diminuíam ao sabor dos
caprichos do vento e então ouvia o gorgolejar constante da água que
escorria dos parapeitos e rugia ao tombar contra o solo. Estalos e
sacudidelas vibravam através das paredes. E por baixo de todos es‑
ses sons, ela escutava o barulho que, sabia agora, fizera com que se
acordasse. Eram os gritos de uma escrava.
Ela afastou o dossel de renda da cama e olhou ao redor. Havia
bancos grosseiros ao longo das paredes e a tina esmaltada em que
tomara seu banho ainda estava cheia com aquela água oleosa. Seu
saquinho de livros e roupas estava atirado no chão de tábuas largas
e manchadas e a seus pés havia um tapete desbotado.
Escutou a voz de novo:

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Lara Parker

— Não, Sinhô, pur favô, num faça isso. Eu não pude pará ela. Ela
corria muito! Pur favô, Sinhô, pur favô, num faça isso!
Angelique pulou até uma das janelas e conseguiu olhar para baixo.
O alto da torre ficava mais ou menos a uns seis metros acima do
nível do chão. O pátio estava vazio. As lajes estavam prateadas com
a água da chuva, enquanto riachinhos desciam pelas calhas para
formar pequenas poças e lançar borrifos ao redor. Havia um poço
de pedra e dois postes cravados no chão, um dos quais com três
cabras amarradas e parecendo inquietas.
Então seu pai e outro homem apareceram ao pé da torre, arras‑
tando a escrava Suzette. O homem desconhecido usava roupas de
trabalhar nos campos, mas era forte e claramente um blanc. An‑
gelique imaginou que fosse o capataz da plantação, porque carre‑
gava um chicote pesado e puxava Suzette por um dos pulsos.
Suzette cravava os calcanhares no piso e arranhava seu braço com
a mão livre, até que ele lhe agarrou o outro pulso. Ele a levou aos
puxões até o poste vazio, arrancou da cabeça dela o pano rasgado
de seu turbante e o amarrou ao redor de seus pulsos, atando­‑a a
seguir no poste.
— Ai, pur favô, Sinhô, num bata numa pobri escrava! Num foi
minha curpa! Ela correu qui nem uma rata, mas eu acabei pur pegá
ela, o Sinhô sabe qui eu peguei! Nunca vai acontecê de novo, nunca,
nunca! Ai, pur favô, Sinhô, num faça isso, não! NÃO!
Angelique se agarrou às barras da janela, tremendo. O calor su‑
biu até seu rosto. Nunca tinha visto antes um escravo apanhar no
tronco e nem ao menos acreditava que essa crueldade acontecesse.
Por um momento, a chibata se retorceu ao longo do solo como
uma cobra em areia quente e então se ergueu, pairou e cantou pelo
ar. Suzette engoliu em seco e quando o açoite a atingiu, arqueou as
costas e berrou como se sua voz tivesse sido arrancada de seu corpo.
Angelique fechou os olhos e virou a cabeça. Mas ainda podia
escutar os estalos do chicote e os uivos lastimosos, até que os gritos
se transformaram em gemidos, depois em silêncio, enquanto o
chiado e estalos da chibata prosseguiam. Quando o silêncio reinou

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

novamente, Angelique criou coragem para olhar outra vez. Ela viu
o capataz desatar a tira de pano e puxá­‑la. O corpo de Suzette es‑
corregou para o chão molhado.
O pai de Angelique avançou até ela e contemplou a escrava e
então, como se ele soubesse que ela estaria olhando lá de cima, er‑
gueu os olhos justamente para as barras da janela da torre em que
a menina estava.
Ela percebeu com um choque que ele havia querido que ela
assistisse a tudo e seu coração gelou no peito. Imagens relampeja‑
ram dentro de sua mente, recortadas da noite anterior, momentos
daquilo que deveria ter sido um pesadelo: escravos fazendo fila
no santuário escuro, silenciosos e obstinados, cada um parando
um momento diante do grande portal dianteiro. Então, um sa‑
cerdote de manto negro, ai meu Deus, era seu pai mesmo! Ele ti‑
nha administrado o sacramento, tocando em cada testa com
água-benta e colocando alguma coisa dentro de cada boca. Então
a longa linha de homens marchara para dentro da noite e a porta
tinha sido trancada.
Angelique esperou para ver se Suzette se levantava, mas ela per‑
manecia imóvel e frouxa sobre o pavimento. Finalmente, Thaïs se
esgueirou de uma porta, ergueu a escrava nos braços e carregou­‑a
para dentro. Depois disso, o pátio ficou vazio de novo, salvo pelas
três cabras que baliam de vez em quando e empurravam umas às
outras como peixes presos em uma linha de pesca de corrico. A
chuva constante ainda martelava monotonamente a terra.
Angelique se moveu de volta para a cama ainda aturdida. Só en‑
tão percebeu que mordera os lábios até tirar sangue e que eles esta‑
vam inchados. Seu corpo estava pegajoso de suor. De repente, ela
percebeu como era quente na sala da torre, em que não chegava a
brisa do mar. Parou no meio do quarto, apoiando uma das mãos
em um poste tremendamente grosso que atravessava o pavimento.
Olhando para cima, ela percebeu que o poste não servia para
suportar o telhado, mas tinha no alto uma roda denteada que se
encaixava nas imensas engrenagens presas a um caibro horizontal

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que atravessava a parede. Ela percebeu que a mó do engenho estava


atrelada a este poste e que aquele som contínuo de esmagamento era
provocado pelas asas do moinho forçando as pedras para esmagar a
cana, que deveriam ficar abaixo do nível do solo. Mas as asas esta‑
vam tão rasgadas que somente a armação em treliça oferecia algu‑
ma resistência ao vento; logo entendeu que o moinho estava
abandonado e que seus braços apenas giravam e rangiam em um
eterno vaivém.
Olhou através do quarto. Sobre o tampo do toucador, viu uma
bandeja com fatias tentadoras de abacaxi e manga e pastéis de cre‑
me e morangos em um prato ao lado de uma xícara de chocolate.
Mas seu estômago ardeu em amargor só com a ideia de comer.
Subitamente, ela ouviu o ferrolho se abrir por fora da porta e se
virou para encarar seu pai. Suas botas altas estavam enlameadas até
em cima, usava calças negras bastante gastas e sua sobrecasaca esta‑
va empapada com a água da chuva. Ele ficou parado na porta, sim‑
plesmente olhando para ela e, sob o chapéu disforme, seu rosto
parecia ainda mais maligno que de costume. Ele olhou para a ban‑
deja cheia de comida e reclamou:
— Você não tomou seu desjejum.
— Eu não quero — disse ela, sua voz pouco mais que um sussurro.
— Eu não quero mais ficar aqui. Leve­‑me de volta para minha mãe.
Ela ficou espantada com sua própria ousadia.
Então percebeu que estava em pé atrás de uma cadeira e colocou
as mãos ao redor do encosto de madeira, apertando firmemente.
Ela sentia coceira nas axilas e seus braços pareciam grudados de
seus lados.
Seu pai deu de ombros e sacudiu a cabeça como se não
conseguisse entender.
— Você não está cansada de viver naquela choupana com sua
pobre mãe, sem nunca ter o suficiente para comer?
— Nós não somos pobres! — protestou Angelique. A horta e o
mar forneciam tudo o que ela e sua mãe precisavam. Ela nunca se‑
quer pensara em passar fome.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Você não iria preferir morar aqui? Pode ter tudo quanto dese‑
jar e as escravas cuidarão bem de você. Vai viver como uma prince‑
sa... — argumentou ele.
— E você vai mandar bater nas escravas que não me cuidarem
direito? — ela indagou, o rubor do desprezo colorindo­‑lhe as faces.
Ele hesitou por um único momento antes de lhe responder:
— Sim. Caso você tente fugir.
Ela sentiu uma onda de pânico. Ele a havia enganado. Os sonhos
de sua mãe eram somente mentiras de seu pai. Ela se firmou no
encosto da cadeira para não vacilar enquanto lutava contra o calor
que subia de dentro dela e se esforçava para prender as lágrimas.
Mas seu pai parecia incapaz de entender o que se passava com ela e
um sorriso retorcido irrompeu através da carranca com que a havia
contemplado antes.
— Se ao menos você tivesse conseguido olhar para si mesma
a noite passada... — comentou em um tom de voz que quase pa‑
recia de reverência. — Eles ficaram escravizados por sua presen‑
ça. Eu mesmo mal podia acreditar. Realmente, penso que você é
um tesouro...
— Você prometeu uma boa escola! — ela gritou. — Disse que eu
ia ter a vida de uma filha de senhor de engenho. Você mentiu!
Seu pai suspirou profundamente e caminhou até uma das janelas.
— Eu sou... um senhor de engenho — declarou, olhando para
fora e soltando outro suspiro.
— Onde estão as suas plantações de cana? Onde está sua linda casa?
Ele riu de novo, um riso sem a menor alegria, quase uma tosse.
— Todas as manhãs eu me acordo pensando exatamente nisso...
Passou a mão pela boca e esfregou os olhos como se esti‑
vessem doendo.
— É um negócio amaldiçoado... — afirmou, inclinando­‑se con‑
tra as barras. Falava em uma voz tão baixa, que parecia estar falan‑
do sozinho. — Tem sido uma luta difícil, diversas vezes pensei que
estivesse arruinado. Ano passado, um furacão destruiu a colheita.
Duas vezes os escravos conspiraram e iniciaram revoltas — fúteis,

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naturalmente — mas revoltas, não obstante. Houve muitas... situa‑


ções... Bem, vamos dizer que eles entendem de venenos... Alguns se
matam enchendo o estômago de terra. Outros fogem e pulam pelo
promontório ali adiante, pensando que podem nadar através do
mar de volta até a terra deles e ficarem livres...
Sua voz cessou aos poucos, como se ele tivesse pensado em coisas
que não podia dizer. Embora ela não entendesse a maior parte do
que ele falara, Angelique sentiu uma onda de orgulho pelo fato de
que ele estava se confidenciando com ela.
— Há coisas que você não pode conhecer — explicou ele, ainda
olhando para fora. — Os escravos são uns selvagens cheios de ran‑
cor. Tentamos convertê­‑los ao cristianismo, mas eles ainda têm prá‑
ticas antigas que trouxeram consigo da África. Adoram deuses que
assumem muitas formas e todos são extremamente supersticiosos
— com isso, eu quero dizer que eles não são realmente...
— Os loás são reais — cochichou Angelique, baixinho.
Seu pai girou nos calcanhares rapidamente e fitou­‑a:
— O que você sabe a respeito deles? — indagou rudemente.
— Eles entram em sua cabeça — respondeu a menina.
Ele franziu a testa e colocou a mão sobre o peito enquanto a encarava.
— Você já ouviu falar em uma loá chamada... Erzulie?
— É a deusa do amor.
— Ah, então você sabe... Hummm... espantoso. Só posso pen‑
sar que sua mãe... bem, existe uma espécie de adoração depravada
de Erzulie em minha plantação. Muitos dos escravos são devota‑
dos a ela. Você... como posso dizer isso... eles acreditam que ela
retornou em você... em forma humana, que esta deusa voltou à
vida — completou.
— Eu? Mas ela é uma mulher com muitos maridos...
— Eu sei... Você é uma espécie de Erzulie criança. Eles acreditam
que você aparece magicamente no final da cerimônia e lhe trazem
ofertas e em troca, você lhes atende os desejos. Tudo não passa de
tolice, naturalmente, eu sei muito bem disso. Mas enquanto eles

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

acreditarem que você irá aparecer perante eles, acho que irão se
contentar com seu trabalho e permanecer... manejáveis...
— Mas por que eles acreditariam em uma coisa assim?
— Porque eu mesmo contei para eles.
— Mas eles não vão acabar descobrindo?
— Essa é a dificuldade. A fim de que o ritual possa ser realizado,
você precisa permanecer escondida. Se eles a virem andando por aí,
percorrendo a terra, ou junto com sua mãe, iriam perceber que ti‑
nham sido enganados. A partir de então, eles ficariam ainda mais
inclinados a se revoltar contra mim. E quanto a você, bem, prova‑
velmente eles lhe cortariam a garganta. É muito importante para
eles crerem que você é... um espírito.
— Mas é um monte de mentiras. Eu não sou espírito nenhum.
Ele começou a caminhar pelo quarto. Parou diante do espelho
e olhou fixamente para sua imagem durante um momento, fazen‑
do uma careta e estreitando os olhos. Esfregou as mãos por sobre
o rosto.
— Venha se contemplar — disse ele, segurando­‑a asperamente
por um dos braços e puxando­‑a até o espelho. O toque de seus de‑
dos fez com que ela estremecesse. — Essa menina que você vê refle‑
tida ali... não é uma deusa?
Seus cabelos tinham secado em massas de cachinhos pálidos
que, mesmo naquela luz abafada pelas cortinas pareciam brilhar ao
redor de seu rosto. Seus traços eram delicados, mas dominados por
seus olhos espantosos, imensos e acinzentados. Ela sentiu fiozinhos
de suor escorrendo por seu corpo. Estendeu a mão para o pescoço e
sentiu o amuleto de sua mãe, que ainda estava pendurado por baixo
do vestido e tremeu de novo, porque o rosto de seu pai pairava no
espelho acima do dela. Seus olhos faiscavam enquanto ele lhe con‑
templava o reflexo.
— O que você está vendo — explicou, sua respiração opressa —
é um tipo de beleza. E beleza é coisa muito rara, embora seja um
talismã frívolo. Mas você possui um dom que é ainda mais raro.
Existe uma espécie de encanto em você. Você está acesa com um

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fogo que eu nunca vi antes, em parte alguma e eu preciso usar este


fogo para atingir meus objetivos. Caso recuse, serei obrigado a des‑
cobrir uma forma... de obrigá­‑la.
Ela sentiu a extensão de sua inermidade e quase não con‑
seguia respirar.
— Mas havia sangue naquela plataforma em que eu estava. O
que aconteceu ali?
Seu pai suspirou novamente, enfiou a mão em um dos bolsos de
seu casaco longo e dele retirou uma garrafa.
— Não era nada — mentiu —, eles sacrificaram uma cabra...
Ele tomou um longo trago de rum e sentou­‑se pesadamente no
banco junto da parede mais próxima. Seus ossos pareciam estar se
desmanchando por dentro do casaco pesado. Angelique sentiu um
assomo de piedade por ele.
— E por quanto tempo eu vou ter de ficar aqui? — perguntou.
Ele tossiu, tirou do bolso um lenço grande e imundo e escarrou
dentro dele. A resposta saiu abafada enquanto ele secava os lábios.
— Não vai ser por muito tempo — resmungou. — Só um pouco
— completou, enfiando o lenço em um bolso do colete.
Os dedos dela apertaram seu uangá e ela experimentou uma rá‑
pida centelha de esperança.
— Minha mãe não pode vir morar aqui comigo, também? — pediu.
Seu pai se ergueu e começou a andar de novo pelo quarto, sua
agitação evidente.
— Sua mãe tem sua própria vida — disse evasivamente.
— Mas ela sabe que eu estou aqui?
— Sim, é claro que ela sabe.
— E ela quer que eu faça isso? — insistiu.
Ele pensou um momento antes de responder e quando o fez, as
palavras pareceram transformar seu coração em pedra.
— Seu tempo com sua mãe acabou, Angelique.
— Mas por quê? Por que você diz isso?
O desespero girava dentro dela e, de repente, começou a sentir­‑se es‑
túpida, como se o choque de sua assertiva a impedisse de compreender.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Ela sabe que é seu destino. Que é forçada a concordar com ele.
— Mas não é verdade! Ela nunca teria deixado que eu partisse se
você não lhe tivesse mentido! Não era isto que ela queria para mim!
Não foi isto que você lhe prometeu!
Ele se inclinou para frente, agarrou­‑a pelos cabelos e puxou­‑a
para junto de si. Ela sentiu sua respiração quente quando ele baixou
o rosto em sua direção. Sua cólera estava misturada a um certo de‑
sespero, como se emoções conflitantes o estivessem empurrando à
beira da loucura e sua voz saiu furiosa e dura:
— Não me desafie, Angelique! Você já assistiu à minha cólera e
ao meu método de punição. O mesmo destino a espera se você in‑
sistir em sua teimosia!
Ele a empurrou com tanta força, que ela caiu no pavimento. Seus
olhos estavam arregalados enquanto ele a fitava, as pontas dos de‑
dos tremendo:
— Escute, minha menina, e escute bem! Você não é mais a filhi‑
nha da mamãe e nem tampouco minha filha, se quer saber! A vida
em Martinica é difícil para todos nós — falou incisivamente. — Por
que razão você deveria se furtar a essas dificuldades? E agora... —
ele respirou profundamente e forçou sua voz a sair mais tranquila.
— Agora eu preciso de você aqui. Desesperadamente. Você tem um
novo papel a executar em sua vida e pode desempenhá­‑lo com or‑
gulho. Sugiro que o faça. Suplico­‑lhe que o faça.
Caminhou até a porta e trancou­‑a por detrás de si. Ela viu o fer‑
rolho baixar e escutou o clangor do ferro a bater nos encaixes.

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Seis

la não sabia por quanto tempo havia chorado e quão longo


foi o período em que dormiu após isso, porque tinha sido
narcotizada. As escravas a acordavam e alimentavam e ela dor‑
mia de novo. Havia ocasiões em que a lua se erguia acima de sua
janela e ela caminhava silenciosamente até o vão para vê­‑la luzir
sobre a curva do mar. Havia momentos em que o sol enviava raios
para dentro do quarto e transformava a parede de pedra ao lado
de sua cama em um mosaico de tésseras de ouro. Mas a maior
parte do tempo, ela pairava em um crepúsculo cinzento, desolada
demais para se forçar a acordar quando o efeito dos opiáceos pas‑
sava e mais do que disposta a recair em um cochilar inquieto em
vez de ficar plenamente acordada e sofrendo a dor da separação
de sua mãe.
Havia ocasiões em que as escravas a transportavam ou a impe‑
liam a caminhar escada abaixo até o santuário, quando a colo‑
cavam sobre o altar e ela ficava sentada ali, em total estupor,
enquanto os homens dançavam e cantavam ao seu redor. Algumas

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

vezes, ela tinha a sensação de não estar sozinha sobre a plataforma,


que alguma presença invisível sentava­‑se a seu lado. Ela se lembrava
de ser vestida e adornada com colares e contas, como uma estátua
enfeitada para uma celebração religiosa. Ela vagamente se recorda‑
va de ver seu pai outras vezes, sempre com um ar de repreensão no
rosto, mas isso praticamente não a afetava, por não fazer a menor
ideia do motivo por que ele lhe lançava esse tipo de olhar.
Havia instantes em que sua mente clareava e ela se sentia me‑
nos como um fantasma, enquanto se sentava em uma cadeira do
quarto ao lado da cama, ou quando a banhavam, ou diante do
espelho, mas estes momentos flutuavam por ela e desapareciam
no fluxo dos dias.
Ela sonhava com o mar. Ela se lembrava de como ele era di‑
ferente abaixo da superfície, perto dos recifes em que ela nada‑
va durante horas. Ela sonhava com as criaturas marinhas
pairando em seu mundo de lusco­‑fusco, sem dar a mínima im‑
portância para as mudanças atmosféricas de luz ou de tempo,
balançadas pelo ritmo irregular que as ondulava e empurrava
segundo o fluxo das marés, suas cores cintilando, seus olhos
sempre abertos e brilhantes. Ela sonhava que era uma delas, seu
corpo arredondado e suas pernas encurtadas para assumir o
formato de um peixe. Ela parecia balançar gentilmente dentro
da água enquanto dormia.
Sonhava com sua mãe. Em seus sonhos, sua mãe estava sempre
em movimento, seu corpo ágil como o de uma palmeira que o
vento fazia dançar. Expressões diferentes se alternavam em seu
rosto, como as cintilações da luz do sol sobre a superfície de uma
laguna. Ela parecia tão feliz quanto era bela, amor e profunda
alegria fluindo para fora de seu peito. Angelique sonhava com o
toque das mãos de sua mãe acariciando­‑a e com seus dedos
penteando­‑lhe os cabelos.
Havia dias em que elas prendiam flores nos seus cabelos, pinta‑
vam seus olhos com rímel negro e a colocavam em uma cadeira
coberta por um cortinado e depois quatro negros a carregavam

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Lara Parker

como numa liteira em revista aos alojamentos dos escravos. Bem


protegida dentro de sua tenda móvel, ela podia ver os rostos escu‑
ros, bocas abertas com dentes muito brancos, olhos arregalados
de maravilha, enquanto crianças e suas mães a encaravam com
grande espanto. No piso de seu cadeirão havia pedaços de frutas e
doces, que ela segurava indiferentemente e jogava para os expec‑
tadores, apenas vagamente consciente da comoção causada por
sua presença. Mas do fundo de seu transe, ela sempre vigiava a
algazarra e a confusão.
A cerimônia foi se tornando mais familiar, mesmo que a
assistisse sempre num estado de semi­‑inconsciência. Ela per‑
manecia escondida na peça por detrás do altar enquanto os
tambores trovejavam e a cantilena ia se fazendo mais forte. Ha‑
via ocasiões em que mesmo ela era hipnotizada pelo timbre da
fanfarra, justamente quando mais a recordava dos trovões que
desciam dos céus. Depois, ela surgia sobre o andaime, a dança
selvagem se tornava menos frenética e os escravos pareciam
mais gentis, como se sua tristeza se dissolvesse com sua presen‑
ça. Os homens a rodeavam, seus olhos faiscantes grudados nela
e a menina se sentia revestida pela sua adoração. Muitas vezes
eles estendiam os braços e seus dedos lhe tocavam os pés ou as
mãos. Mas isso nunca a assustava, porque seus músculos se
afrouxavam no momento em que a tocavam e ela sentia que sua
raiva e rancor se dissipavam.
E havia aquelas noites em que ela mesma não conseguia evitar
ser arrastada para o frenesi. O odor das velas e dos perfumes, o
cheiro dos corpos suarentos, a fumaça e as luzes bruxuleantes, o
rufar incessante dos tambores, tudo isso a sugava para dentro do
encantamento que se realizava a seu redor. Ela sentia pulsações de
calor que se derramavam em sua alma e depois saíam dela e ficava
excitada com a gradual necessidade de trazer para dentro de seu
corpo a traição de que eles tinham sido o objeto para coabitar com
a que ela própria sofrera. Então ela mergulhava em um lago de de‑
sespero. Seus punhos se fechavam, seu arcabouço se enrijecia, as

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

lágrimas escorriam por suas faces e ela gritava de agonia, até que,
finalmente, se afrouxava inteira, desmaiando de tristeza.

* * *

Certa manhã bem cedo, ela acordou com a cabeça bem mais clara
que de costume. Escutou Thaïs erguer o ferrolho cuidadosamente e
entrar em silêncio com sua bandeja de comida. A primeira luz da
aurora brilhava nas janelas e o céu estava da cor de lavanda. O can‑
to matinal dos pássaros ainda soava apenas fracamente através dos
ares. O vestido de Thaïs era feito de um pano cheio de florzinhas
desbotadas e seus cabelos estavam atados com um lenço azul. Ela se
voltou e sorriu meio nervosa, vendo que Angelique estava acordada.
— Bem, minina, vancê ti acordô? É manhã i hoje num vem chu‑
va ninhuma. Vancê vai comê bem agora e botá uma comida gorda
na sua barriga. Hoje vancê vai à cidadi. — Thaïs a contemplou ner‑
vosamente. — Vamo agora, quirida. Eu tem de ti botá no vestido di
rosa. Gosta dele? Vancê está um poco mais alertada hoje que de
costumi, né? Tu vai sê uma guria boazinha hoji, iscuitou?
Angelique empurrou o prato de comida para fora da mesa e ele
ficou girando e estalando contra o chão. Thaïs engoliu em seco.
— Ai, Deus. Pruquê tu feiz isso?
— Porque essa comida me deixa com sono o tempo inteiro.
Thaïs mostrou uma expressão culpada.
— Bem, né, isso pode sê verdade, docinhu — confessou. — Mais
é memo pru teu bem. Sapo dormino num sabe que a cobra tá che‑
gano. Mais vancê tem di cumê, sinão sou eu que vou tê de passá
mal, munto mal memo!
— Mas eu quero ficar acordada. Há quanto tempo estou dor‑
mindo? Semanas? Meses?
Thaïs sentou­‑se ao lado de Angelique e passou um braço ao re‑
dor de seus ombros. Seu corpo pesado fez afundar o colchão e seus
olhos líquidos pareciam pendurados em seu rosto macio. Um chei‑
ro leve vinha dela, não de todo desagradável, parecia uma mistura

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de fumaça com banha de porco. Ela ia começar a falar, mas em vez


disso, ergueu os dois braços para o alto e olhou em direção ao teto.
— Ai, Sinhô Deus... Meu Sinhozinho... — exclamou, esfregando
as mãos nas coxas redondas e soltando uma série de suspiros.
Angelique subitamente se recordou de um sonho que tivera na
noite anterior. Seu pai tinha estado no quarto e chegara até sua
cama, olhando para ela com raiva. “Ela está drogada demais!”, ele
tinha dito. “Ela precisa estar mais acordada para a cerimônia. Pare‑
ce um zumbi! Uma sonâmbula!”
— Por que vocês me dão essas drogas? — ela perguntou a Thaïs.
— Iscuite, minha minininha, iscuite só. Que mais eu pudia fazê?
Vancê é uma cosinha maluca, tu é memo. Vancê correu da pobri da
Suzette. I tu mi assusta di vredade. — Então as palavras de Thaïs
começaram a sair como uma torrente. — O Sinhô, eli é brabo e
berra cumigo. Eli diz: “pru quê ela tá tão sonada?”, e eu digo: “ela
percisa, sinão ela fogi!” “Mais ela num presta ansim”, eli diz, “ela
num podi i si pendurano dessi jeito, ela num parece cum deusa ar‑
guma nem memo cum nada!” I eu digo: “Bem, o Sinhô me diz para
deixá ela limpinha sempre e num deixá qui ela vá iscapá. O Sinhô
diz qui si ela iscapá vai mi tirá o coro.” — Ela deu um suspiro fundo
e continuou. — Pruque ele vai memo, vancê intende. Quando tu
correu iscada abaixo naquela premera noite eli deu uma tunda na
Suzette. Deu tunda pra valê nela. Aí, ela tem ódio de vancê agora.
Tem um curação muito duro pra tu e é mió vancê se cuidá sempre
quando ela tivé pur perto. Ela diz: “num põe verbena no suco dela,
põe meimendro! Mais eu só ponho a poeirinha, só um poquinho,
só pra deixá tu sonhano...”
Thaïs estava ficando mais agitada.
— Mais o Sinhô, eli num fica filiz di jeito ninhum, tu vê. Eli ti
qué mais remexida. O único motivo pruquê tu tá mais acordada
hoji é qui onti eli mi disse di noiti pra num ti dá nada na tua be‑
bida! I hoji tu tem de i até a cidade e o Sinhô Buchá qué qui tu
esteja mais remexida. Ansim, nóis tem de ti cuidá bem di perto,
só pra tu não fugi!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Então ela soltou outro suspiro e deu um abraço em Angelique.


— A verdadi, verdadi pura é que eu tô filiz di ti vê acordada. —
Ela se ergueu e foi até um guarda­‑roupa de nogueira, de que Ange‑
lique não se recordava, e abriu­‑lhe as portas. — Óia aqui qui
vistidinho bem bunito!
Thaïs tirou um vestido de noite rosa pálido de um invólucro
de papel de seda e o estendeu sobre a cama. Era feito de tafetá de
seda, bordado com folhas e hastes onduladas de um tom de verde
aguado, que se curvavam ao redor da gola e desciam até a barra
da saia. O corpete era formado por pequenas dobras, e rosas de
cetim tinham sido bordadas nos punhos das mangas. Mas o ves‑
tido não era novo. Leves pegões na cintura e os leves traços de
dobras soltas e pregadas novamente mostravam que o vestido já
fora usado por outras. Mesmo assim, era o vestido mais bonito
que Angelique já vira.
— Vancê teve no Carnaval, docinhu? — perguntou Thaïs,
ajudando­‑a a tirar a camisola.
— Carnaval? Ah, claro, minha mãe me leva todos os anos...
— Todo mundo, us iscravo, us sinhô, todos os mulato vão tá lá.
Esti vistidu, tu sabe? Feiz todo o caminhu desdi Paris da França... U
qui é qui tu me diz disso?
O vestido deslizou pela cabeça de Angelique com um som pare‑
cido a um chiado e a seda se colou em sua pele. Ela tocou no tecido
com os dedos, encantada, quase bebendo a cor rosada. Era igual à
primeira cor da manhã.
Thaïs a adornou com esmero. Prendeu braceletes de ouro com
guizos nos pulsos e tornozelos de Angelique. Colocou flores, plu‑
mérias de um rubro cremoso e poliantas brancas como a neve, em
seus cabelos louros. Uma amarílis escarlate caiu em seu colo. Ange‑
lique olhou para o centro da flor e estudou suas frágeis pétalas, suas
partes interiores tão delicadas. Tocou a ponta do pistilo e a poeira
do pólen se grudou em seu dedo.
Ela se voltou para Thaïs.
— Por favor, não me obrigue mais a dormir.

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Lara Parker

— Ai, Jisus, docinhu...


— Eu quero ficar acordada.
— Bem, eu odeio isso, sim, eu faço. Eu fico tão tristi di ti vê des‑
si jeitu e vancê é uma coisinha tão piquena ainda. Mais tu sabi que
seti ano di chuva num lava as pinta das galinha di angola. Vancê, tu
vai fugi di novo, eu sei qui tu vai...
— Não, eu não vou fugir.
— Vancê mi prometi?
— Sim, eu prometo.
— Tu faiz isso pur mim.
— E por Erzulie também.
— Mais qui é qui vancê sabi di Erzulie, docinhu?
— Eu quero que a deusa venha até mim. Se ela pensar que eu
estou fingindo ser ela, então talvez ela entre na minha cabeça, e eu
a conhecerei finalmente.
Thaïs encarou Angelique com um olhar pungente que se lhe es‑
pelhava pelo rosto inteiro e depois sua expressão se suavizou. Ela
puxou a criança entre seus braços e a apertou firmemente.
— Podi até sê qui ela faça isso memo — disse em voz baixa e
respeitosa. — Podi até sê que ela fique cum ciúme, né? I aí ela vem.
É isso memo qui ela costuma fazê. E aí tu fica bem.
Depois de uma longa viagem nos bancos de uma carroça, An‑
gelique e Thaïs chegaram em Saint­‑Pierre. Os sons do Carnaval,
flautas e apitos, tambores e vozes cantando, zumbiam pelo ar.
Havia uma grande quantidade de gente, não somente escravos
fantasiados ou usando suas roupas finas de segunda mão, mas
também os blancs, alguns olhando, outros dançando e partici‑
pando da celebração alegre. Angelique foi escondida em sua li‑
teira e seu pai a surpreendeu quando ergueu a cortina e olhou
para dentro.
— Não apareça para ninguém até que caia a noite e a adoração
comece — falou em seu habitual tom de voz incisivo.
O préstito começou e ela era sacudida por seus carregadores tal
qual se estivesse sendo transportada por um burro manco. Dentro

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

da liteira estava quente e difícil de respirar. Ela escutava tambores,


maracás, chocalhos e pandeiros, gritos e cantigas e o som de muitos
passos. Ela estava ansiosa para ver tudo. Ela apertou o rosto contra
a estrutura de bambu de sua gaiola e não pôde resistir a espiar por
uma frestinha entre os cortinados. Grande número de escravos cer‑
cava sua liteira, balançando bandeiras e flâmulas brancas com um
coração vermelho atravessado por uma flecha e entoavam em coro:
“Erzulie, nain, nain! ”.
Viu um grupo de escravos que traziam caveiras pintadas em seus
rostos com uma pasta de farinha branca. Eles tocavam flautas de
bambu e eram cercados por dançarinos com ossos pintados pelo
corpo inteiro e os esqueletos vivos dançavam com todo o abando‑
no, cantando uma canção dedicada ao “Deus do Portão”. Uma des‑
sas criaturas macabras enfiou a cabeça por entre as cortinas da
liteira e ela recuou assustada, mas ele soltou uma gargalhada inde‑
cente e saiu dançando rua abaixo.
Passaram pelo grande teatro e, sobre a linda escadaria dupla que
se curvava em direção à entrada, ela viu outro grupo de escravos
usando calças brancas, rufos renascentistas ao redor do pescoço e
chapéus pontudos. Suas faces estavam pintadas de um tom rosado
de ruge e os olhos traziam círculos de kohl. Depois viu uma coisa
espantosa: um lindo grupo de mulatos vestidos com o que pare‑
ciam ser roupas de gala descartadas pelos senhores de engenho e
suas famílias. Eram vestidos de seda europeia, chapéus com plumas
de pavão, sapatos de cetim com laços e coletes listrados e, o que
causava o maior choque: usavam joias reluzentes. Ela não podia
imaginar quem eles eram, mas eram tão belos quanto um quadro
cujos personagens tivessem criado vida.
O som de bombos e gritos anunciou a chegada de outro bloco,
este formado por figuras de túnicas brancas, que carregavam
uma plataforma muito maior que a dela. Balançando no alto do
andor estava uma figura grande, feita de palha e pasta de milho,
mas vestida de preto. Seu rosto imenso era pintado de amarelo e
tinha três chifres vermelhos na cabeça. Ele era o Rei do Carnaval

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Lara Parker

e ela se recordava do susto que havia levado quando havia visto


pela primeira vez este gigante de papel com seu sorriso cheio de
dentes pontiagudos.
Quando chegaram ao bairro da cidade mais próximo ao cais
do porto, tomaram uma estrada lateral que seguia em direção a
um bosque. Ela deu uma espiada nas docas, de onde grupos de
marinheiros e pescadores vinham subindo para participar da
festança. Havia um veleiro alto sacudindo­‑se na baía, ostentan‑
do uma bandeira que ela nunca vira antes, com faixas brancas e
encarnadas e estrelas brancas sobre um canto azul e, perto do
maior dos armazéns, ela avistou um grupo de soldados de casa‑
cas escarlates. Eles gritaram e correram para assistir ao desfile.
Ela tentou acompanhá­‑los enquanto se perdiam na massa huma‑
na, porque lembravam um cardume de peixes vermelhos se ali‑
mentando na corrente, movendo­‑se como uma única criatura,
espalhando­‑se e a seguir se reunindo novamente enquanto sacu‑
diam as algas com sua formação vermelha e brilhante. Os solda‑
dos a deixaram encantada e ela se inclinou um pouco mais por
entre as cortinas para não perder o relâmpago de botas negras e
cintos brancos ou as fagulhas refletidas pelos botões de latão e
pelas espadas prateadas.
O andor carregando a figura gigantesca manquitolava estrada
abaixo à frente dela. Os carregadores deliberadamente se inclina‑
vam para os lados em um movimento balouçante, fazendo com que
a figura desajeitada chegasse perigosamente perto do chão, antes de
endireitá­‑la de novo e virá­‑la para o lado oposto, como se estivesse
dançando, enquanto os da frente gritavam e eram respondidos pe‑
los de trás, para confundir e desencorajar os maus espíritos. E os
soldados, dando tapas nas costas uns dos outros e se empurrando,
corriam atrás da plataforma, gritando “Aaaaahhh!” cada vez que a
figura se inclinava e parecia que ia cair. Ao chegar mais perto, An‑
gelique percebeu que o destacamento era, na verdade, formado por
rapazes adolescentes. Sua gritaria chocarreira traía sua idade e ela
viu que muitos estavam com as fraldas das camisas aparecendo por

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

baixo das casacas escarlates e tinham os calções brancos enlamea‑


dos. Ela ansiava por contemplá­‑los um pouco mais, mas ficou com
medo da cólera de seu pai e se enfiou no fundo de sua gaiola escura,
puxando as cortinas bem apertadas.
Quando ela percebeu que seu cadeirão era largado no solo, ou‑
sou espiar de novo. A procissão inteira tinha entrado na mata e es‑
tava agora em uma grande clareira em cujo centro fora montada
uma fogueira enorme, ainda apagada. Sua gaiola tinha sido coloca‑
da no meio das últimas árvores e Angelique estava louca para des‑
cer da liteira, achava que ter de ficar fora das vistas era uma tortura
cruel. Afinal de contas, estavam acontecendo tantas coisas ali em
volta que ela não seria a única atração, pensou, e não lhe iriam dar
grande bola se espiasse do meio da escuridão.
Haviam acendido archotes na ponta de postes compridos em
frente às árvores escuras. Um conjunto de tambores se instala‑
ra diante da fogueira e diversos tamborileiros começaram a to‑
car seus ritmos infecciosos, nos diferentes timbres de bombos,
rufos e tarolas.
Gritos de saudação brotaram de repente de um grupo de homens
e ela esticou o pescoço para ver o que causara tanta excitação. No
meio deles, dois galos de penas de um escarlate enferrujado sacu‑
diam as asas e pulavam, suas puas ensanguentadas cortando o ar.
Uma briga de galos! Ela se inclinou um pouco mais para fora e per‑
cebeu que todos os seus acompanhantes tinham ido embora. So‑
mente Thaïs ficara, estendendo um pano branco sobre quatro
pequenos postes para fazer o seu altar. Seu pai não estava à vista.
Ela viu os soldados de novo, a uma pequena distância. Um de‑
les era alto e esguio, com um bigode aparado e uma barbicha. Pa‑
recia mais velho, um oficial pelo jeito, porque seu uniforme estava
em muito boas condições e usava uma espada em uma bainha
dourada, que se balançava com o movimento de seus passos. Os
outros se haviam agrupado a seu redor, gritando de espanto ou
descrença perante cada coisa que viam. Ela ouviu que o chama‑
vam de Jeremiah e constatou que ele estava encarregado de tomar

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conta daquela turma agitada. Ele sorria e movia a testa em aquies‑


cência, segurando o queixo com uma das mãos e tratando os rapa‑
zes com familiaridade. Um rapaz particularmente bonito parecia
ser o seu companheiro favorito; ela viu quando o oficial sorria para
ele e lhe sacudia de brincadeira os cabelos crespos.
Então os dois se viraram e olharam em direção à sua liteira, en‑
quanto o rapaz a fitava com grande curiosidade. Ele começou a se
aproximar, mas o oficial devia tê­‑lo chamado de volta, porque ele se
virou rapidamente e ela escutou: “Volte para cá, seu patife! Não se
meta lá!” Ela ficou surpresa ao escutar falarem em inglês.
Ela abriu um pouco mais o cortinado. O rapaz estava agora pa‑
rado ao lado do oficial, conversando baixinho com ele e fazendo
sinais com a cabeça em sua direção. O homem mais velho sacudiu
a cabeça em uma negação veemente e passou um braço pelos om‑
bros do rapaz, conduzindo­‑o para longe. Ela ainda estava espiando
quando o jovem olhou para trás e, desta vez, fitou­‑a diretamente
nos olhos. Por um momento, ele entreparou, contemplando­‑a como
se estivesse muito surpreso. Depois o jovem soldado fez uma coisa
muito estranha. Fez um muxoxo com os lábios e, erguendo o quei‑
xo, beijou o ar e acenou em direção a ela.
Nesse momento, uma tocha foi encostada à fogueira, que entrou
numa erupção de chamas, inundando a efígie gigantesca com a luz
das flamas. O rosto pintado de amarelo berrante pareceu emitir um
brilho interno, seus olhos dois carvões, a boca se abrindo aos pou‑
cos em um sorriso diabólico. Corpos segurando tochas saltaram
para dentro do círculo, cantando em coro uma cantilena repetitiva
em ritmo hipnótico, seus membros refletindo a luz e ondulando ao
som dos tambores. Angelique apertou bem o cortinado e fechou os
olhos, até que a cadência penetrou em seu corpo e o pulsar era
acompanhado pelas batidas de seu próprio coração.
— Alô, você, aí dentro...
Ela estremeceu. O cochicho vinha de perto, logo do lado de fora
do cortinado, mas era uma voz de adolescente, ao mesmo tempo tro‑
cista e íntima. Ela se encolheu com o som, escondendo­‑se no canto

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

mais escuro. Esperou, com medo até de respirar, mas a cortina foi
sendo entreaberta aos poucos e um raio de luz incidiu sobre seu rosto.
Ela estendeu o braço e fechou o cortinado bem depressa, mas no mo‑
mento seguinte, ela foi sendo aberta de novo, lentamente, e desta vez,
ela não tentou impedir.
— Alô... — ele cochichou de novo. — Eu só queria vê­‑la...
Ele estava parado do lado de fora, mas muito perto dela, com
uma expressão impudente no rosto. Era um rosto maravilhoso, de
traços finos, porém másculos, seu olhar aguçado brotando de olhos
que pareciam negros sob as sobrancelhas grossas, uma porção de
sardas a recobrir­‑lhe as faces e o nariz.
— Eu nunca vi uma deusa verdadeira antes... — disse ele, em
tom de brincadeira.
Ela ficou aterrorizada ante a perspectiva de que seu pai retornasse
a qualquer momento e ficou encarando o rapaz, sem saber o que fazer.
Ele sorria com dentes muito brancos, uma leve sugestão de buço em
seu lábio superior. Cachos castanhos com luzes douradas caíam­‑lhe
frouxamente sobre a testa e seus olhos escuros cintilavam em seu ros‑
to como se ele estivesse olhando alguma coisa maravilhosa. Subita‑
mente, ele mostrou um sorriso que teria sido pecaminoso se não fosse
tão brejeiro. Finalmente, ela encontrou sua voz e sussurrou em inglês:
— O que é que você quer?
— Ora, conversar com você, é claro. O que mais ia ser?
— É proibido falar com a deusa.
— Mas você não é uma deusa de verdade, não é mesmo?
O calor subiu­‑lhe ao rosto e ela se ruborizou, sentindo um for‑
migamento na ponta dos dedos. Suas palavras a deixaram zangada.
— Sim, eu sou! Eu sou Erzulie, a deusa do amor! — afirmou.
Ele jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.
— Mas que armação mais gozada! Melhor do que aquela do ho‑
mem que jogava fogo pela boca! Jeremiah disse que você era perigo‑
sa, que eu não deveria chegar nem perto... — comentou ele. — Então,
é claro, que eu não poderia resistir à tentação. Mas só de olhá­‑la, sei
que não seria capaz de fazer mal a um coelhinho!

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— Por que você não me acredita?


— Por quê? Porque eu posso ver instantaneamente, mesmo com
toda essa pintura ao redor de seus olhos, que você é uma menina
verdadeira, de carne e osso. Mas você é tão encantadora, que eu não
me importo nem um pouco! Ah, mas que aventura! — exclamou,
com um suspiro de contentamento.
— Vá embora! — ela tentou gritar, mas o que saiu foi mais um
soluço preso em sua garganta. Ele era a primeira pessoa a falar com
ela por um tempo tão longo, com exceção de Thaïs e de seu pai, e ele
era tão familiar e tão ousado, que sua garganta se apertou até que os
músculos do pescoço começaram a doer.
Ao ver que ela parecia estar sofrendo, seu sorriso sumiu imediata‑
mente e uma expressão de grave preocupação escureceu­‑lhe as faces.
— Ah, mas me desculpe, eu estou muito arrependido mesmo.
Não pretendia assustá­‑la. Era eu que deveria ter medo de você! —
explicou­‑se. — Ah, vamos, vamos, vamos, por favor, não chore.
Você não precisa mesmo chorar, só por minha causa!
Mas as lágrimas escorreram por suas faces e ela não as podia
impedir e tentou engolir e prender o choro, só que nada passava
pela bola sufocante que trazia na garganta.
Antes que ela entendesse o que se passava, o rapaz entrara na
liteira e fechara as cortinas por dentro. Por um momento, a es‑
curidão foi completa e ela ficou sentada ali, paralisada, apenas
consciente do calor do corpo dele muito próximo ao seu e de
que seu cheiro lhe recordava o do mar. Então ela pode ver­‑lhe o
rosto ainda mais de perto que antes e ele franzia a testa e falava
aos tropeções:
— Eu... eu... é porque eu sou um soldado? Você não deve se as‑
sustar com este uniforme bobo. É o uniforme de minha escola, eu
sou cadete da marinha. Talvez você esteja pensando que eu estou
querendo insultá­‑la. Bem, é verdade, eu a insultei mesmo, no prin‑
cípio. Eu sou mesmo um diabo!
Ele lhe sorriu de novo e segurando o punho de sua camisa com
os dedos da outra mão, começou a esfregar­‑lhe as bochechas para

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

limpar os filetes de tinta que haviam escorrido. Ao acabar, ele a con‑


templou de novo, parecendo outra vez estonteado.
— Ora, seus olhos são da mesma cor das centáureas! E tão gran‑
des e assustados. Suponho que você pense que nós viemos combater
os franceses e conquistar sua ilha!
— Vocês... vocês são ingleses? — ela indagou, baixinho.
— Não, somos da Nova Inglaterra, boba! Do belo estado de
Massachusetts! — ele se gabou. — Eu vim com meus colegas da
academia em uma excursão marítima, para aprender tudo em pri‑
meira mão a respeito de barcos e de veleiros. Antes eu quis viajar até
a África, mas meu pai não me permitiu. Ele tem medo da longa
travessia, você sabe...
— E... você já aprendeu alguma coisa? — ela indagou bem baixinho.
— Ah, sim — afirmou o rapaz. — Só que velejar é um tipo de
profissão muito laborioso e aborrecido também, atravessando
aquelas ondas a noite inteira. Eu enjoei a maior parte do tempo.
Jeremiah nos trouxe até as ilhas, mas só as inglesas, naturalmente.
Aí nós ouvimos falar do Carnaval aqui de Martinica e eu lhe supli‑
quei para nos trazer. E estou tão feliz por ter vindo, porque só assim
eu pude falar com você e... — ele pareceu se atrapalhar por um mo‑
mento, enquanto a olhava e então mudou de assunto de repente.
— Quer dizer... O seu vulcão já entrou em erupção? Como é o nome
dele? Piley? Paley?
Angelique, confusa por sua presença, meio afogada naquele
f luxo inesperado de palavras, percebeu que ele aguardava
uma resposta.
— É o Mont Pelée... — corrigiu. — Não... mas quando o Deus
se... acorda, ele se vira para o outro lado e... Pelée ruge e cospe fogo!
— Ah, eu adoraria ver isso! Não seria divertido? — ele falou ir‑
responsavelmente. — Que nem o Vesúvio! Todo mundo por lá fi‑
cou enterrado na lava, capturados instantaneamente, no flagrante
de seja lá o que for estivessem fazendo! Ficaram preservados para
sempre... Pegando bananas, varrendo o chão, usando o penico!

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Lara Parker

Ele riu, feliz com sua própria piada e Angelique sorriu um


pouquinho, porque pensara em Thaïs transformada em pedra
justamente nessa última posição. O rapaz a olhou fixamente
mais uma vez.
— Você quer ver o meu tesouro? — perguntou. Enfiou a mão no
bolso superior da casaca e retirou um saquinho. — Há um navio no
porto de Saint Thomas, que pertence ao Grão Mogol da Índia e traz
uma porção de mulheres! Elas se vestem de seda bordada com fios
de ouro! Meu tio Jeremiah, aquele bandido sortudo, teve permissão
para subir a bordo. E isto... é o que eles têm na Índia... — ele se in‑
clinou um pouco mais perto e derramou um punhadinho de joias
sem engaste no seu colo, suas cores brilhantes, verde­‑maçã, ametis‑
ta, âmbar e vermelho-escuro. — Estas ele me deu. O que você acha?
Angelique, de boca aberta, olhou para as joias e ergueu os olhos
para o rapaz, totalmente maravilhada.
— Olhe só esta aqui — ele mostrou. — Esta chamam de pedra
da lua, mas o nome de verdade é mais complicado, ortósio ou sele‑
nita... Viu só? — ele lhe segurou a mão e colocou­‑lhe uma pedra de
um branco pálido sobre a palma. — Dizem que a luz da lua fica
presa aqui dentro — ele sacudiu a pedra levemente, para que ela
pudesse ver a centelha brilhante. — Está vendo?
— Ah, sim!
Ela olhou para ele com espanto e depois outra vez para a pedra.
Ele dobrou­‑lhe os dedos ao redor da joia.
— Esta é para você — disse ele —, para se lembrar de mim.
E então inclinou­‑se ainda mais perto e a beijou de leve em uma
das faces.
— Barnabas! Você está aí dentro?
O rapaz lhe piscou um olho e pôs um dedo sobre os lábios.
— Saia já daí neste minuto! — gritou uma voz furiosa.
O rapaz arrepanhou suas joias de sobre a saia do vestido dela,
mostrando um sorriso largo enquanto as enfiava novamente
dentro do saquitel e o colocava no bolso do uniforme. Então caiu
de costas, de ponta­‑cabeça para fora da liteira e tombou no solo.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Foi erguido violentamente pelo homem chamado Jeremiah e co‑


locado sobre os pés.
— Meu Deus, Barnabas! Você é um imbecil completo? — sua
voz transparecia mais medo do que cólera. Seus olhos voaram para
o rosto de Angelique, franziu a testa e olhou ansiosamente a seu
redor, antes de repreender o rapaz com um sussurro feroz:
— Eu lhe disse como isso era perigoso! Se eles o pegassem aí
dentro, o teriam matado no mesmo instante sem pensar duas vezes!
E você nem perceberia! Seria como um punhado de poeira invisí‑
vel... E isso acabaria com você!
Barnabas piscou para Angelique, para lhe mostrar como ele
achava essa ameaça absurda. Mas Jeremiah o segurou pelo colari‑
nho e praticamente o levantou no ar.
— Venha comigo, mocinho! De volta para seu lugar no navio
antes que eu perca a calma!
Angelique escutava sua voz enfraquecendo enquanto eles
se afastavam.
— Mas como você pode fazer uma besteira dessas? Santo Deus,
Barnabas, você não sabe que eu sou responsável por você perante
seu pai? Meu irmão me mandaria fuzilar!
Mas as últimas palavras que ouviu eram do rapaz:
— Eles a transformaram em um ídolo idiota e ela é só uma garo‑
tinha... O que vai acontecer com ela depois?
Ela ficou segurando firmemente a pedra da lua em sua palma e
estava grudenta de suor antes que ela fosse capaz de abrir os dedos
novamente e olhar para ela outra vez. Ela ficou movendo a pedri‑
nha até que a lua dançasse dentro dela. Rapidamente, ela enfiou a
outra mão dentro do vestido e puxou seu uangá para fora. Desatou
o nozinho e guardou a selenita junto da minúscula caveira da ser‑
pente. Então amarrou o saquinho firmemente e o colocou de volta
sobre o colo, pendendo outra vez de seu pescoço.
Mais tarde, nessa mesma noite, quando o cerimonial de Erzu‑
lie finalmente começou, ela ficou parada em seu vestido cor­‑de­
‑rosa, seus cabelos dourados drapejando ao redor de seus ombros.

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Lara Parker

Quando milhares de velas estrelaram a escuridão e os escravos


entoaram suas cantilenas para ela e depuseram suas oferendas
polvilhadas de farinha a seus pés, ela ficou imaginando se ele es‑
tava ali por perto assistindo, por detrás da multidão ondulante,
contemplando­‑a com seus olhos alegres de troça, aquele rapaz
cujo nome era Barnabas.

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Sete

arnabas pousou o diário, em absoluto espanto.


Ele se recordava muito bem de sua primeira viagem às ilhas.
Tinha ido com Jeremiah quando ainda era adolescente, pouco mais
que um garotinho — Jeremiah, a quem ele adorava e que o traíra no
final. Recordou­‑se, numa confusão de imagens e de cores, do navio
mercante que estalejava todo o tempo ao sabor das ondas e dos ven‑
tos, das ilhas suntuosamente verdes, das brisas fragrantes que lhe
acariciavam o rosto. Fechando os olhos, ainda podia recapturar a
imagem do Carnaval de Martinica, em que vira fazerem mágicas
pela primeira vez e — mas isso parecia incrível! — seria possível
que fosse verdade? Aquela criatura pagã escondida numa carrua‑
gem — a “deusa viva” que ele achara tão fascinante e tão pungente
— era possível que fosse a própria Angelique? Recordava­‑se agora
de que, durante toda a viagem de volta para casa ele se havia imagi‑
nado perdidamente apaixonado por ela.
Mas sua memória mais nítida da viagem fora outra descoberta
que fizera ao retornar para a América do Norte. Os tombadilhos

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Lara Parker

dos barcos de seu pai estavam atopetados com a carga que fora con‑
tratada, barris de rum. Certa noite, durante a viagem de retorno a
Boston, ele e seus colegas tinham decidido abrir um dos barris e
beber como verdadeiros marinheiros, provando o elixir dourado
que derramava fortunas nos bolsos de seu pai. Fora nessa noite, de‑
pois que os outros haviam adormecido e sua cabeça rodava demais
por causa do rum ingerido para que ele próprio conseguisse dor‑
mir, que ele tinha descido às escondidas para baixo do último con‑
vés. Naquela escuridão úmida e tremulante, ele tinha visto dúzias
de escravos amontoados juntos e gemendo, todos os corpos negros
agrilhoados uns aos outros.
Uma batida leve em sua porta quebrou­‑lhe o devaneio. Era Jú‑
lia. Rapidamente escondeu o diário sob outros livros em sua es‑
crivaninha e se levantou para saudá­‑la no momento em que ela
abria a porta.
— Está na hora de irmos para Collinsport — disse ela firme‑
mente. — Já estacionei o carro lá na frente...
— Sim, é claro... Muita gentileza sua... — ele respondeu
com brandura.
Ela hesitou, examinando­‑o cuidadosamente, sentindo algo de
diferente em sua atitude.
— Você está bem, Barnabas?
— Claro que estou! O que está pensando? — seu tom de voz
soou aborrecido, o que era muito pouco comum quando falava com
ela e os dois se surpreenderam.
— Eu só pensei que talvez nós devêssemos deixar para outro dia...
— Mas não. Nós temos de dar outra passada na Casa Velha. Ver
o que os demolidores estão fazendo. A essa altura, eles devem estar
bem adiantados — insistiu Barnabas.
— Eu mesma posso fazer isso, caso você queira — ofereceu­‑se ela.
— Ora, pelo amor de Deus, não precisa ser tão solícita, Júlia.
Realmente, já estou ficando bastante cansado de ser tratado tão
bem. E de ver esse ar ansioso em seu rosto. Realmente, não lhe fica
bem, detrai um pouco de sua beleza...

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Desculpe... — disse ela, prendendo a respiração, mas contro‑


lando a língua. Barnabas pegou seu casaco e, ao fazer isso, derru‑
bou a pilha de livros no chão. O diário caiu no meio deles e Júlia
franziu a testa.
— Você não estava lendo essa coisa, estava?
— Não! Bem, para falar a verdade... eu dei uma espiada nas fo‑
lhas, sim. De fato, não é lá muito interessante.
— Barnabas, pelo amor de Deus, entregue­‑o para mim. Já afetou
sua disposição e você está ficando irritável...
— Não me afetou em absoluto, minha querida. Não seja absur‑
da. Não estou absolutamente irritável, como você disse... Mas
devo insistir para que você pare de me pressionar. É isso que está
dando nos meus nervos. Quanto ao diário, pretendo queimá­‑lo
assim que voltar...
— Entendo — disse ela, respirando fundo. — Do mesmo jeito
que você queimou a Casa Velha ontem...
— O quê?
— Ora, Barnabas, de que outro jeito o fogo poderia ter começado?
— Júlia, realmente acho que você perdeu a cabeça.
Júlia hesitou por um momento, fitando Barnabas diretamente
nos olhos, antes de desviar os seus, mas não insistiu.
— Desculpe­‑me. Não sei o que me deu para lhe dizer uma coisa
dessas. Vamos?

* * *

Roger falava sem parar. Barnabas percebeu que se tornara a audiência


cativa de um só ouvinte perante um palestrante e também que Roger
estava desesperadamente precisando de um sócio e de um admira‑
dor. Era um homem de opiniões formadas com absoluta segurança,
cheio de um grande desprezo por aqueles que discordavam dele ou
por seus oponentes, dotado de uma energia feroz, filósofo e mora‑
lista à sua maneira, perfeitamente satisfeito em martelar o assunto
que escolhera sem receber resposta. Barnabas contemplava o rosto

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Lara Parker

aristocrático de seu primo, com suas feições finamente cinzeladas e


escutava com atenção seus tons melífluos, mas na verdade já se sentia
terrivelmente cansado enquanto Roger descrevia possíveis oportuni‑
dades comerciais, capitais e investimentos.
Barnabas sabia que deveria valorizar quaisquer oportunidades
que Roger lhe apresentasse. Por que estava ouvindo tão desapaixo‑
nadamente? Seria um sintoma de sua cura?
Seus olhos deslizaram para a janela, através da qual podia ver o
jardim bem cuidado em frente ao escritório de Roger, fronteiro à costa
oceânica, em que a primavera havia derramado sua abundância gene‑
rosa. Ao lado da linha da água, uma cerejeira magnífica se erguia re‑
pleta de botões, seus ramos negros recobertos pelas flores que pareciam
mangas de tecido rosado. As duas texturas opostas, uma como carvão
cheio de arestas, a outra tão delicada como a aurora, lhe causavam um
sentimento peculiarmente semelhante a um espasmo de depressão.
Abelhas haviam descoberto as flores da cerejeira e zumbiam
loucamente, milhares delas, bêbadas de néctar e seu murmúrio
lhe enchia o cérebro com um rugido distante. De súbito, sentiu­‑se
terrivelmente solitário e, com um estremecimento, reconheceu
um velho anseio: ele queria enamorar­‑se novamente.
Forçou­‑se a escutar o discurso de Roger.
— Agora que você se recuperou, Barnabas, devo lhe dizer como
estou ansioso para que você ocupe um lugar na mesa da diretoria.
Temos diversos, como se poderia dizer, “ferros na lareira” e alguns
investimentos a longo prazo que precisam ser tratados com cuidado
de modo a se tornarem mais seguros. Quem há para fazer isso, se‑
não você? Carolyn seria uma executiva de primeira classe, se qui‑
sesse. Contudo, infelizmente, até hoje não demonstrou o menor
interesse na firma da família. Ela se aborrece com o comércio e pa‑
rece sentir, lamento dizer, que as fábricas de têxteis são... ah... pouco
saudáveis e “injustas para com os operários”. Dentre todas as posi‑
ções absurdas para se assumir, ela se volta contra as Empresas
Collins! David se mostra de algum modo um tanto promissor e é de
se esperar que ingresse neste campo quando ficar mais maduro, se

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

é que alguma vez ele vai amadurecer... Seja como for, você faria
muito bem em investigar todos os investimentos dos Collins e não
esperar que nada esteja garantido. Os tempos mudam. Temos de
garantir o futuro de Carolyn e de David; os investimentos não se
apresentam de vontade própria, requerem planejamento e um certo
risco. Portanto, o que você tem em mente?
Barnabas sobressaltou­‑se com a pergunta súbita.
— O que quer dizer?
— Ora, o que tem em mente para fazer, Barnabas, o que quer fazer?
Sem dúvida, não pretende simplesmente desfrutar de sua fortuna, ou
antes, da fortuna da família Collins... que não é lá tão grande assim...
— Eu... bem, eu pensei, naturalmente, em ingressar na diretoria
e prestar minhas contribuições em nível executivo...
— Mas que tipo de contribuições? — persistiu Roger.
— Desculpe, não entendi bem.
— Quais talentos especiais você pensa possuir? Sei que já viajou
pelo mundo todo. Qual era a sua profissão em Londres, realmente?
Era advogado?
— Eu... bem... eu era negociante, suponho. De fato, nunca preci‑
sei trabalhar todos os dias. Eu tenho uma quantidade substancial
de propriedades — explicou Barnabas.
— Terras?
— Não... joias, antiguidades, móveis e tapeçarias...
— Você tem noção de quão rapidamente esses objetos, por mais
preciosos que sejam, perdem seu valor? Ou você fez investimentos?
— Ora... mas é claro... — subitamente, Barnabas sentiu­‑se abor‑
recido. — Roger, eu me ressinto da implicação de que eu não sou
capaz de fazer a minha parte. Eu possuo uma fortuna bastante
grande na Inglaterra e não tenho a menor intenção de viver à sua
custa, como parece estar sugerindo.
— Ora, meu rapaz, acalme-se — disse o outro tranquilizadora‑
mente. — Eu não quero pressioná­‑lo, mas não existe nada melhor
que um novo envolvimento para fazer correr o sangue, se é que me
entende. O que me diz então?

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Lara Parker

— Sobre o quê? — indagou Barnabas.


— Sobre um novo envolvimento. Ah, por favor, Barnabas, você
não prestou atenção em nada do que eu lhe disse?
— Lamento, Roger, minha mente estava vagueando, estava pre‑
ocupado com outra coisa — desculpou­‑se. — Talvez eu deva retor‑
nar até o que sobrou da Casa Velha e ver se os demolidores chegaram.
Ao meio­‑dia, eles ainda não estavam lá...
— Ora, os demolidores que se enforquem! Agora escute, Barna‑
bas. Tenho uma palavra­‑chave para você: Turismo! Podem­‑se obter
grandes lucros com o turismo, você sabe, os visitantes chegam em
hordas da Alemanha, do Oriente... hoje em dia, todos querem co‑
nhecer o mundo!
Barnabas começou a imaginar se aquela entrevista jamais acaba‑
ria, pois Roger não mostrava o menor sinal de diminuir o ritmo.
— Hoje em dia, a grande ocupação da classe média é viajar. Esses
gorduchos do Centro­‑Oeste usando bermudas ou os comerciantes
japoneses carregados de câmeras caras... sem a menor sensibilidade
para a cultura, sem a menor informação a respeito da história, cole‑
cionando países como se fossem tampinhas de garrafa ou figurinhas
de jogadores! Não obstante, é um poço que pode ser muito bem ex‑
plorado. O que você diria de um hotel quatro estrelas? De uma esta‑
ção de férias de primeira classe?
Roger finalmente fez uma pausa. Barnabas sentia sua cabeça gi‑
rando em consequência daquela avalanche de palavras. Então, Ro‑
ger baixou a voz e falou em tom de conspiração:
— Nós ainda somos donos, embora você talvez não saiba disso,
de uma boa propriedade no Caribe. Uma plantação de cana-de-
açúcar arruinada, mas a casa fica sobre um recife no alto de um
promontório e a vista do mar é espetacular, segundo me disseram.
Barnabas sobressaltou­‑se com a palavra Caribe.
— Realmente? — indagou. — Onde fica?
— Ora, em Martinica, é claro, nas Índias Ocidentais Francesas.
Houve um tempo em que comprávamos açúcar por lá. Tínhamos
navios, mas perdemos todos depois da revolução. A propriedade foi

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

adquirida pela família Collins no final do século XVIII e nada foi


jamais feito com ela. Segundo acredito, foi comprada por um de
nossos ilustres ancestrais como um presente para sua futura noiva.
Mas o casamento nunca chegou a ocorrer, lamento dizer. Ela mor‑
reu misteriosamente. Mas ainda possuímos a escritura da terra.
Ainda assinada, veja só, pelos ministros do rei da França!
— E nunca fizeram nada com ela? Mas por quê? — indagou
Barnabas, sua atenção agora concentrada inteiramente em Roger.
— Política, meu caro, política. E falta de trabalhadores. Mas re‑
centemente recebi carta branca do atual governo francês. Eles rece‑
berão uma iniciativa por lá de braços abertos. Portanto, precisamos
de alguém que vá até lá, consiga um arquiteto adequado, mais um
mestre de obras, alguém que tome conta da construção e reúna os
operários e... naturalmente, eu pensei em você!
— Primo, eu não sei se seria capaz de assumir uma tarefa
assim monumental...
— Ora, vamos lá, Barnabas! Não deve ser assim tão difícil para você,
meu rapaz! Posso perfeitamente ver que você entende dessas coisas!
Que ama bons móveis, como me disse? Antiguidades! Imagine só?! Um
grande hotel! Você poderia viajar até a Europa para adquirir as artes
decorativas... reconstruir o prédio desde os alicerces... soprar­‑lhe uma
nova vida... aparentemente existem estátuas, ameias com parapeitos...
Ouviu­‑se uma batida na porta e Júlia entrou de repente, sem es‑
perar ser convidada, sua respiração opressa. Seu rosto estava grave
de preocupação:
— Roger! Barnabas! Houve um terrível acidente. Na estrada
para Collinwood. Dois homens morreram!

* * *

Júlia segurava a roda da direção com as duas mãos enquanto eles


dirigiam para o local em que se erguera a Casa Velha, buscando
algum sinal do acidente. O sol estava próximo ao horizonte e ela
estava dirigindo contra a ofuscação de seus raios.

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Lara Parker

— Não pode ser muito longe daqui — disse ela, com um tremor na
voz. — A polícia disse que era antes da encruzilhada, logo depois da pon‑
te coberta. Deve ser nesse trecho que vem logo à frente, você não acha?
Barnabas apertou os olhos e então ergueu uma das mãos para
cobrir a testa, escudando seus olhos do brilho.
— Não consigo evitar de pensar que, de alguma forma, isto foi
culpa minha — balbuciou.
— Barnabas, isso é absurdo!
— Eu sei, mas quem contratou a demolição fui eu e...
— Santo Deus! Não consigo ver nada! — gritou ela, freando o
carro quase até parar. A poeira acumulada no para­‑brisa ampliava
a luz do sol poente, escondendo a estrada. Era como se estivessem
envolvidos em uma nuvem de fogo, um nevoeiro dourado pintando
o vidro. Avançaram metro a metro para frente e, tão logo a cintila‑
ção diminuiu, avistaram o desastre.
Havia dois carros da polícia com suas luzes vermelhas correndo
de um lado para o outro do painel instalado sobre o toldo e uma
ambulância. Diversos policiais estavam reunidos junto à margem
do rio. Júlia parou o carro e saiu junto com Barnabas.
A jamanta que transportava a escavadeira havia capotado para
dentro do rio, suas rodas viradas para o ar, lembrando um elefante
morto. A cabine era uma casca enegrecida, esmagada e achatada;
fora a água do rio que impedira que o fogo se espalhasse quando o
tanque de gasolina explodira. O trator estava caído de lado no meio
dos arbustos, um pouco mais acima, suas rodas retorcidas e a parte
traseira completamente separada, jogada além das árvores, como se
fosse um brinquedo de criança abandonado em uma caixa de areia.
— Mas quando aconteceu isso? — perguntou Barnabas.
— Hoje cedo — disse Júlia. — A polícia não sabia de nada até
uma hora atrás, mas quando chegaram, o metal queimado já estava
frio ao toque.
— Quer dizer que nós passamos diretamente por eles hoje à tar‑
de, quando nos dirigíamos à cidade e simplesmente não vimos
nada? — falou Barnabas, incrédulo.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— E como poderíamos ter visto? A ponte fica no caminho. Eles


estavam dentro do rio... — explicou ela e continuou logo depois, após
fazer uma pausa. — Nós não poderíamos tê­‑los salvo, Barnabas…
— Como você sabe? Poderíamos ter tentado fazer alguma coi‑
sa... — sugeriu, olhando para o caminhão lá no fundo. — Pobres
bastardos... Que desperdício!
Controlando suas emoções, olhou para os dois mortos. Nunca
tinham chegado à Casa Velha. Alguma coisa os interrompera na
metade da estrada, alguma coisa que ele deveria saber que andaria
rondando por ali. Um dos corpos estava sendo carregado em uma
maca, mas era difícil para os paramédicos subir pelo barranco ro‑
choso e eles tropeçavam com o peso. A outra vítima ainda estava na
cabina virada, seu rosto enegrecido pelo fogo apenas visível, sua
boca aberta em um grito silencioso.

* * *

Barnabas pedira licença para se retirar mais cedo. O jantar tinha


sido uma desgraça e a única coisa que sentira fora irritação com sua
família e sua preocupação hipócrita com os homens mortos no aci‑
dente. Elizabeth mencionara a “tragédia”, sem dúvida uma concep‑
ção errônea, porque os motoristas eram inocentes, contratados para
executar um trabalho e não tinham sido castigados pelos deuses
por sua hubris. Se havia alguma culpa, pertencia unicamente a ele.
O manto que pairava sobre a família era o mesmo senso de
destino que ninguém mencionava, mas cuja inevitabilidade to‑
dos percebiam, o mesmo sentimento que Barnabas captara em
outras gerações. Pouco era discutido, não havia um senso de ul‑
traje ou uma busca de explicações racionais para aquecer a con‑
versa. O que fora proferido era uma série de eufemismos mornos
a respeito da morte. Mas todos estavam dolorosamente cônscios
daquilo que não fora dito. A família era amaldiçoada. O infortú‑
nio chegara e sempre havia chegado, paulatina, mas previsivel‑
mente. A família Collins se mantinha à parte da comunidade,

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Lara Parker

guardava seus segredos bem enterrados, mas nunca se libertava


da mão vingadora do Fado.
Por puro aborrecimento ele se havia retirado da discussão superfi‑
cial à mesa, distraído pelos pensamentos de seu próximo casamento.
Diversos dias antes deste último conjunto de eventos, Júlia ti‑
nha aceitado deliciada a sua proposta. Eles iriam marcar uma
data em seguida e já haviam planejado passar a lua de mel em
Singapura, onde Júlia conhecia raros elixires para o sangue que
ela achava que poderiam preservar a cura de Barnabas. Mesmo
assim, ele se sentia perturbado pela ideia da consumação sexual.
Ele abraçara Júlia afetuosamente muitas vezes, segurara sua mão
enquanto conversavam, até mesmo a beijara levemente nos lábios
em saudação ou quando se separavam. Mas ele nunca a tinha re‑
almente beijado apaixonadamente. Algumas vezes ele percebera
sua inquietação quando haviam estado sozinhos, uma urgência
em sua resposta quando ele a abraçava para lhe dar boa-noite, um
sinal tácito em seu olhar. Em breve, ele seria obrigado a fazer
amor com ela.
Ele não se sentia precisamente relutante, embora seu desempe‑
nho como amante lhe desse certo grau de receio. Enquanto era
vampiro, sua excitação tinha sido resposta a estímulos completa‑
mente diferentes e ele se sentia sem prática. Mesmo assim, Júlia era
tão inteligente e tão apoiadora, que ele tinha certeza de que ela faci‑
litaria essa transição também. Ele era, disse para si mesmo, ainda
jovem, vigoroso e faminto pela vida. Ele gostava do corpo ágil e es‑
belto dela, de seu caminhar elegante e de seus movimentos rápidos.
A energia — a paixão — retornaria, disso ele tinha certeza. Ele se
sentia mais como um viciado em recuperação das drogas insidiosas
que haviam feito parte de sua personalidade durante tanto tempo;
agora ter­‑se­‑ia de redescobrir tal qual ele tinha sido sem elas.
Fechou a porta de seu quarto, aliviado por se achar finalmente
sozinho. Os livros estavam caídos no chão onde ele os tinha deixa‑
do cair antes. Acendeu a lâmpada e estendeu o braço para o diário.
Somente quando abriu as páginas para procurar o lugar em que

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

havia parado, ele relaxou. Percebeu que estivera ansioso para retor‑
nar ao diário desde que havia interrompido a leitura.
Ele descobriu que estava lendo uma lista de encantamentos
mágicos, feitiços e anotações para o que lhe pareceu serem
cerimônias africanas.

Cult des Morts de um sacerdote papaloi

Para invocar os espíritos:


Uma encruzilhada à meia­‑noite,
uma vela feita de cera de abelha e da graxa do fígado de uma gaivota,
uma pistola carregada com um tampão de terra no cano.
O encantamento é:
“Sob o estrondo do trovão, possam todos os Reis da Terra se ajoelharem”.

Para adormecer uma mulher de tal modo que você lhe possa co‑
nhecer os segredos:
Um sapo morto numa sexta­‑feira.
Coloque a cabeça, o coração e o fígado sobre seu seio esquerdo.
Sussurrar:
“Oh, meu amor, meu amor, meu grande amor, paire junto de mim
e me murmure...”

Para invocar os Mortos — Prise du Mort:


Uma bolsa de flores de acácia silvestre,
uma cruz de madeira e duas pedras,
quatro velas brancas — sinalizando os quatro pontos cardeais,
uma pistola totalmente carregada.
Vá até ao túmulo à meia­‑noite e faça este apelo:
“Dos fogos de Mont Pelée, tu deves retornar porque eu necessito de
ti urgentemente”.

Quando o defunto aparecer, não corra, mas dê três passos para


trás e derrame perfume no chão entre vocês dois.

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Lara Parker

Para chamar Erzulie, você precisa de:


Uma bacia esmaltada, sabonete enrolado no invólucro, uma to‑
alha bordada.
Doces açucarados, perfumes e um lenço branco.
Três alianças e colares de ouro e pérolas.
O som do céu e a trovoada. Chuva.

Coisas necessárias para um feitiço:


A língua de um pássaro,
o coração de um sapo,
uma vela de cera de abelha ou de sebo,
um pilão e seu cabo,
uma pistola com cápsulas.

Necessário para lançar um feitiço sobre outra pessoa:


Uma peça de roupa que tenha tocado na pele,
fios longos de cabelo de qualquer lugar do corpo,
sangue,
aparas de unha ou dentes,
excremento, sêmen ou sangue.

Quais as coisas que, ao serem comidas, instilam qualidades desejáveis:


O coração — coragem;
O fígado — destreza e imunidade a facas;
O cérebro — exatidão nos objetivos;
Os olhos — premonição;
Carne de uma criança — imortalidade.

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Oito

ngelique tinha tanta saudade do mar, que pensava que seu


corpo ia se partir em dois. A melhor parte de sua vida tinha
desaparecido com ele: o mergulho frio da manhã, a areia causti‑
cante do meio­‑dia, os arranhões dos corais, a ferroada das mães­
‑d’água. Estava amortalhada no espesso aborrecimento das paredes
acinzentadas e no ar pesado, quente e úmido que se amontoava
dentro daquela torre. Sem que a brisa do mar refrescasse seu quar‑
to, o ar parecia feito de carne, tão palpável e sufocante que sua
pele estava sempre pegajosa.
Os meses foram passando e a solidão de sua vida era cada vez
mais sufocante, depois parecia quase mortal. Ela preenchia as lon‑
gas horas do dia olhando para fora pelas três janelas gradeadas. Lo‑
calizadas fundo nas paredes grossas, cada uma das fendas estreitas
tinha um peitoril largo sobre o qual ela podia sentar e apertar o
rosto contra as grades.
Uma das janelas dava para a estrada que levava de volta a
Saint­‑Pierre. Ela se torturava com o pensamento da longa jornada

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Lara Parker

e de como ela havia adormecido tão confiadamente sobre o om‑


bro de seu pai. Ela imaginava se seria capaz de achar o caminho
de casa caso conseguisse de algum modo descobrir uma saída
através das paredes.
Outra das janelas dava vista para os penhascos que desciam até
o mar. Frequentemente ela pensava em Barnabas e imaginava se ele
tinha velejado em segurança até sua casa. Ela conseguia escutar as
ondas se esbatendo contra as rochas, mas não dava para ver a arre‑
bentação da maré e nem sequer a linha da costa, somente a ampla
extensão do grande abismo, com suas tonalidades mutáveis que os‑
cilavam entre ardósia e anil.
A terceira janela emoldurava uma vista do pátio interno e era
principalmente aqui que ela vigiava. Se ela acordasse bem cedo,
podia ver quando tocavam os escravos para fora da senzala em
grupos de 30 ou 40, para trabalhar nos canaviais, arrastando seus
corpos cansados colina acima até chegarem lá sob as chibatadas do
capataz nos retardatários. Os encarregados dos cães berravam e
amaldiçoavam tão alto que, mesmo à distância, ela podia escutar­
‑lhes as ameaças. Os novos canaviais de seu pai se espalhavam con‑
tra o horizonte, esparsos e irregulares, verdes em alguns pontos,
esfarrapados em outros. Ela imaginou se ele teria uma boa colheita
esse ano e se isto o tornaria mais bondoso para com ela.
Dentro do pátio, ela podia ver o movimento das escravas que
cuidavam dela, Thaïs e Suzette e de outros escravos que traziam
suprimentos, comida e flores. As duas mulheres penduravam rou‑
pas na corda, como sua mãe fizera. Também alimentavam e davam
água para os animais votados para os sacrifícios: galinhas brancas,
cabras, algumas vezes um cachorro. Era desta janela que ela tam‑
bém podia ver os largos braços de treliça desnuda do moinho de
vento abandonado, gemendo com seus fracos esforços para girar.
Mais abaixo, espalhados pelo pátio, havia largos cochos de madeira
para o suco da cana e um galpão para as caldeiras, todos abandona‑
dos. Ela pensou que já se haviam passado anos desde que esta plan‑
tação funcionara plenamente.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Angelique tinha uma nova ocupação que progressivamente


consumia uma parte maior de seus pensamentos. Cada vez que
uma cerimônia era celebrada na capela, ela era mantida no
quarto escuro que ficava por detrás do altar. As longas horas
amedrontadas pelo rufar dos tambores tinham dado lugar à
curiosidade e à descoberta. Davam­‑lhe uma vela para que ela
pudesse suportar a escuridão da peça e, com aquela luz tíbia, ela
começou a inspecionar as prateleiras ensebadas e atopetadas de
uma parafernália espantosa.
Havia muitas panelas de barro com as tampas firmemente amar‑
radas e seladas com cera. Havia também muitos sacos grandes de
poeira branca, que parecia ser uma mistura de farinha com cinzas.
Ela encontrou tigelas esmaltadas, jarros e pratos, uma variedade de
adagas, machetes, facões de cortar cana e até bisturis de diversos
tamanhos; latas cheias de pós, frascos com líquidos que pareciam
salvas e caixas cheias de ervas secas; saquinhos com espinhos de
ouriços­‑do­‑mar, pinças de lagostas e bicos de polvos; pilhas de ga‑
fanhotos, miriápodos e vários outros insetos que ela não reconhe‑
cera; jarros de vidro cheios de um líquido em que flutuavam pedaços
de carne esponjosa, com restos de pele frouxa balançando ao lado;
embriões de pequenos animais; garras e antenas de escaravelhos
gigantes; cadáveres ressequidos de sapos, lagartos, escorpiões e co‑
bras. Alguns daqueles objetos ela já vira entre os guardados de sua
mãe, mas a maior parte era desconhecida e fascinante e ela inspe‑
cionava esta coleção macabra como se estivesse classificando as
joias do tesouro de uma rainha.
Dentro de uma caixa de madeira entalhada, ela encontrou, enro‑
lado em seda, um lindo kriss, um punhal malaio, incrustado de
joias e pedrarias de cores brilhantes, sua lâmina ainda tão afiada
como a de uma navalha. Ela o segurou nas mãos, girando­‑o mara‑
vilhada, antes de enrolá­‑lo de novo com o maior cuidado.
Porém, a descoberta mais excitante de todas foi uma pilha de li‑
vros amontoados em um canto. A maior parte estava mofada e
grossa de poeira, as páginas grudadas juntas pela umidade. Alguns

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Lara Parker

continham estranhos desenhos que ela não conseguia decifrar: es‑


tranhas figuras circulares, cruzes e riscos enovelados uns nos ou‑
tros, desenhados com uma bela caligrafia. Outros eram livros­‑caixa
com listas de propriedades compradas e vendidas — escravos, bar‑
ris de rum, barris de açúcar — com todos os números adicionados
ou subtraídos em colunas caprichadas. Ela se divertia procurando
erros nas contas de somar ou diminuir.
Mas havia um livro que parecia ainda mais precioso que todos
os outros. Tinha capas de couro, a beirada das páginas pintada de
dourado e amarrado com um cordão grosso e quando ela o abriu,
descobriu longas descrições de cerimoniais, cânticos e canções.
Os cânticos eram escritos por muitas mãos diferentes, de tal
modo que o conjunto deveria ter sido coletado ao longo de déca‑
das. Alguns estavam em espanhol, outros em francês e uma gran‑
de quantidade redigida em dialetos africanos, com palavras em
inglês ou frases cristãs de mistura aqui e ali, um conjunto muito
difícil de decifrar.
As palavras africanas eram sempre repetidas muitas vezes, cha‑
mando o loá que deveria realizar a mágica. As cerimônias eram
infindavelmente fascinantes e ela lia as palavras silenciosamente,
vezes sem conta, escutando os sons dentro de sua mente. Também
encontrou penas de ganso e tinta e vidrinhos fechados, ainda uti‑
lizáveis. Já que o livro era pesado e suas páginas grandes e man‑
chadas, ela começou a copiar certos encantos em seu diário, mais
para se divertir, para conseguir ler melhor depois, quando estives‑
se em seu quarto.
Thaïs sempre dormia na torre com Angelique, em um dos ban‑
cos de madeira junto das paredes, mas após algum tempo, a escra‑
va começou a confiar mais nela ou talvez tivesse apenas ficado
menos vigilante e a porta do quarto era algumas vezes deixada
destrancada durante uma parte do dia. Quando os escravos ti‑
nham saído para cuidar de suas tarefas e o castelo estava deserto,
Thaïs dava licença a Angelique descer as escadas e sair, desde que
permanecesse dentro dos limites do pátio interno. Como uma

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

gata enjaulada, somente solta de vez em quando, ela começara a


explorar o perímetro de sua prisão.
A porta externa da capela estava sempre trancada e o pátio intei‑
ro cercado pela muralha e pelo fosso. Um dos lados do castelo se
erguia diretamente sobre o penhasco de paredes verticais que caí‑
am até o mar, separado dele por uma mureta de cerca de um metro
e meio de altura. Angelique facilmente redescobriu o túnel do sub‑
solo pelo qual ela correra no primeiro dia e que conduzia direta‑
mente à capela. Havia uma passagem alta estreita ao lado da
canaleta central por onde corria a água e ela podia caminhar por ali
em segredo, permanecendo sequinha o tempo todo, para ir até a
peça por detrás do altar, a fim de ler mais coisas naquele livro ou
copiar mais páginas dele. Finalmente, ela contrabandeou o volume
pesado até seu quarto e o conservava escondido embaixo da cama.
Depois disso, quando ela estudava o livro ou escrevia em seu diário,
ficava cuidando pela janela que dava para o pátio para ver se alguém
estava chegando na torre.
Um dia, quando estava sentada no peitoril da janela, viu uma
nova escrava saindo da cozinha. Tinha mais ou menos a mesma
idade de Angelique, era esguia como uma palmeira e sua pele era de
um tom acobreado e reluzente. Ela apareceu com um balde grande
e tirou água do poço. Então ela jogou a água sobre uma das pedras
chatas que calçavam o pátio, ajoelhou­‑se e começou a esfregá­‑la
com um bolo de bagaço de cana, cantando uma simples canção
africana em voz alta e aguda.
Angelique contemplou atentamente a escravinha, suas costas
estreitas dobradas sobre sua tarefa, seus cotovelos magros apare‑
cendo sob as mangas de seu vestido esfarrapado e as plantas rosa‑
das de seus pés voltadas para o céu. Depois de alguns momentos,
a menina ergueu a cabeça e ficou contemplando uma fragata vo‑
ando logo abaixo das nuvens até se transformar em um ponti‑
nho minúsculo e desaparecer da vista. Então ela se sentou sobre
as pernas, com os joelhos dobrados, dando um suspiro e deixan‑
do marcas de suas palmas na pedra enquanto a água secava. Ela

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Lara Parker

começou a dar tapas na água que recobria a pedra, com batidi‑


nhas secas e ritmadas, tal qual se a laje fosse um tambor. Isto a
ocupou for vários minutos até que uma borboleta começou a an‑
dar em círculos ao redor de sua cabeça e ela se ergueu de um
pulo para caçá­‑la ao redor do pátio, uma ação que a seguir se
transformou em uma dança. Ela começou a pular e a rodopiar,
seus bracinhos ondulando acima de sua cabeça e seus braços e
pernas perfeitos pareciam brunidos com ouro.
— Chloé!
O grito de Suzette fez com que a menina recobrasse sua manei‑
ra anterior, desajeitada e caminhando com os pés chatos, e ela se
agachou, começando a esfregar o piso outra vez, mas não por
muito tempo. O próximo balde que ela tirou do poço se derramou
sobre seus pés e ela bateu com os pés na água da pocinha, até que
ela se espalhou para baixo do forno do pão, assustando um lagarto
verde. Imediatamente, ela já estava de quatro no pavimento,
arrastando­‑se em direção ao animal, tocando­‑o com o dedo até
que ele fugiu em disparada. O coração de Angelique doeu, ansian‑
do por se tornar amiga dela.
Angelique adivinhou que Chloé deveria dormir na cozinha.
Bem cedo de manhã ela já estava no pátio, tirando água do poço e
cantando suas musiquinhas monótonas. Então ela passava o dia
lavando as lajotas ou esfregando as panelas sujas e tisnadas pelas
chamas do fogão. Havia dias em que ela ficava lá dentro, talvez
ajudando a fazer a comida, mas quase sempre aparecia à tardinha
para sentar­‑se em um degrau enquanto tomava uma tigela de
sopa, espantava os mosquitos que voavam ao redor de seus olhos
e olhava o sol se pôr no horizonte do mar sobre o muro baixo que
dava para o penhasco.
Certa manhã, quando a menina estava junto ao poço, Angelique
tirou um bolinho de chuva da bandeja que lhe haviam trazido para
o desjejum e estendeu o braço o mais que pôde através das barras da
janela, jogando­‑o no pavimento, lá embaixo. Caiu diretamente
diante dos pés de Chloé e a outra se assustou, largou a corrente do

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

poço com um estrondo, dando um pulo para trás e olhando para


cima, rapidamente, apertando os olhos.
— Mais qui troço é essi? O céu tá caino? — exclamou. A seguir,
viu o que estava no chão, deu uma olhadela rápida em direção à
cozinha para ver se ninguém a estava espiando e então correu para
pegar o bolinho, tirou a poeira e os grãos de areia que se haviam
grudado nele e deu uma mordida. Um sorriso se espalhou por seu
rosto e ela apertou novamente os olhos, desta vez olhando direta‑
mente para a janela em que estava Angelique. Erguendo a mão, ela
lhe abanou bem depressa.
Nessa noite, Angelique decidiu que iria esperar até que Thaïs
adormecesse e então desceria às escondidas até a cozinha. Guardou
boa parte de seu jantar em um pano. Depois ficou acordada noite
adentro, até que as estrelas estavam tão brilhantes como milhões de
vagalumes e, pelos roncos de Thaïs, teve certeza de que ela estava
ferrada no sono. Quando Angelique abriu o ferrolho da porta e des‑
ceu a escada pisando o mais leve que podia, as pás inertes do moi‑
nho estavam estalando mais do que nunca e abafavam todos os
outros sons, até mesmo o bater de seu coração. Alegrou­‑se ao ver
que a lua ainda não havia saído.
A menina realmente estava encolhida na cozinha escura, deitada
sobre uma esteira enfiada embaixo de uma mesa de tampo largo em
que cortavam as verduras e a carne. No momento em que Angeli‑
que abriu a porta, o chiado leve das dobradiças a acordou, ela sen‑
tou, esfregando os olhos e encarou-a, sabendo muito bem que não
devia se mover ou emitir um som.
— Chloé... — cochichou Angelique. A menina se encolheu apa‑
vorada contra a parede e puxou as pernas para proteger o peito. —
Não tenha medo. Eu só...
— Esprit! — sussurrou Chloé.
— O quê? Não, não sou espírito nenhum — tranquilizou­‑a Angelique.
— Mystère...! Mystère...! — Chloé chiou como uma cobra, seus
olhos largos de medo.

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Lara Parker

— Não tenha medo! — disse Angelique, baixinho. — Eu não lhe


farei mal algum. Olhe para mim. Sou perfeitamente real...
Porém, Chloé se encolheu mais ainda, prendendo os joe‑
lhos com as mãos e formando quase uma bola com seu corpo
e cochichou asperamente:
— Não chegue perto de mim! Suzette disse que eu não devo
jamais falar com você, nunca, nunca mesmo, senão... você vai
me comer...
— Ora, não! É claro que eu não vou comer você. Eu só que‑
ro... só quero...
— Você é Erzulie! Se me tocar, eu morro!
Angelique hesitou e então se sentou no chão, ao lado da mesa de
partir carne, a certa distância de Chloé. Esperou por um minuto ou
dois, escutando sua respiração e a seguir, abrindo a trouxa em que
colocara os restos de seu jantar, tirou um pedaço de porco assado e
começou a dar mordidinhas na carne. Fingia não olhar, mas sentia
perfeitamente os olhos de Chloé sobre ela.
Depois de mastigar por diversos minutos, estendeu cerca de me‑
tade do pedaço de carne para a outra menina:
— Eu trouxe uma coisa para você... — explicou.
Chloé hesitou e então estendeu o braço e arrancou a comida bem
depressa de sua mão. As duas ficaram comendo sem falar, sugando
a gordura dos ossos e fazendo barulhinhos com a boca e a língua,
até que cada uma percebeu os sons vulgares que fazia e as duas co‑
meçaram a dar risadinhas. Angelique ficou com medo de que fos‑
sem descobertas, colocou a mão sobre a boca da outra e mordeu
seus próprios dedos para impedir a si mesma, mas as duas se sacu‑
diram, cuspindo e se engasgando, até que suas gargantas e bocas
doíam de tentar impedir as risadas.
— Seu nome é Chloé, não é mesmo? — cochichou Angelique.
A menina morena hesitou por um momento, depois fez que sim
com a cabeça.
— O meu é Angelique.
— Eu sei quem tu é. Tu mora na torre...

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

As duas ficaram em silêncio por mais algum tempo.


— Quantos anos você tem? — perguntou Angelique.
— Ah, nem sei... Acho que dez — respondeu Chloé.
— Levante e fique em pé.
Chloé saiu de seu esconderijo, ainda meio assustada e Angeli‑
que fez que ficassem as duas de costas uma para a outra. Angeli‑
que estendeu o braço e tocou em suas cabeças para comparar as
alturas de ambas.
— Acho que você só tem nove — decidiu, sentindo­‑se superior.
— Mas isso é bom.
— Que é que tu quer dizer, que é bom?
— É que nós podemos ser amigas. Mesmo que eu já tenha quase
onze anos.
— Ah, não, eu não posso ser tua amiga. Eu não posso brincar
contigo! — protestou Chloé, seus olhos largos de medo.
— Não seja boba. Vamos nos encontrar de noite, quando todo
mundo estiver dormindo — sugeriu Angelique. — Você não vê? Eu
não tenho ninguém para conversar e já estou aqui há mais de um ano...
— Mas por que tu me escolheu?
— Ai, Chloé, eu queria tanto ter uma amiga — explicou Angeli‑
que. — Eu tenho estado tão sozinha e agora que você apareceu, fi‑
quei tão feliz...
Chloé sorriu, meio para si mesma:
— Eu gostei muito da carne... — disse baixinho.
— Que bom — alegrou­‑se Angelique. — Mas agora eu tenho de
voltar antes que Thaïs acorde.
— Ai, meu Deus! — assustou­‑se a outra. — Vai. Vai logo! Apura!
— Mas amanhã de noite, eu venho outra vez. Vou trazer mais
alguma coisinha para você comer — disse­‑lhe Angelique. — E você
pode me trazer... um pouco de argila.
— Um pouco de quê? — surpreendeu­‑se a outra.
— Um pouco de barro duro. Para a gente fazer uma coisa com ele.
Angelique deu­‑lhe um abracinho, saiu pela porta e correu atra‑
vés do pátio.

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Lara Parker

Na noite seguinte, Angelique convenceu Chloé e as duas desli‑


zaram silenciosamente pela passagem subterrânea até o quarti‑
nho que ficava por detrás do altar. Chloé trouxera argila da beira
do rio. Elas acenderam uma vela e sussurraram e riram durante
horas, fazendo lagartinhos e tartaruguinhas de barro, vaquinhas,
galinhas e cabras.
Depois dessa noite, aquela peça se tornou seu quarto secreto.
Criaram um canavial inteiro de argila, com choupanas para os es‑
cravos, os tetos feitos de galhinhos e de capim seco. Fabricaram a
torre, a casa­‑grande e até as muralhas do castelo. Logo havia tam‑
bém imagens de escravos realizando suas tarefas, plantando cana
ou moendo as varas cortadas.
Cada noite Chloé trazia mais argila, além de sementes e conchas,
folhas e bagas, para tornar sua aldeia cada vez mais requintada. An‑
gelique remexia as gavetas da cômoda e do guarda­‑roupa e encon‑
trava pedaços de tecido e couro, restos de renda ou retalhos de
bordado para vestir o seu povinho. Elas inventavam histórias e de‑
sempenhavam todos os papéis — capataz e senhor de engenho, es‑
cravos e crianças — movimentando as figurinhas para cá e para lá
e fazendo com que dessem pulinhos, numa imitação de pequenos
passos, ao mesmo tempo em que falavam em nome delas.
Chloé não parecia absolutamente sentir o peso de sua existência
de escravidão. Era vivaz e descuidada e seu entusiasmo pela brinca‑
deira com os bonecos de barro não tinha limites; algumas vezes ela
se encarregava do jogo inteiro:
— Tirem esse escravo daqui! — ela gritava, imitando a voz cruel
do capataz.
— Num, num, sinhô, num meti eu nu chão! — suplicava, repre‑
sentando um escravo.
— Abram esse buraco, seus bastardos e enfiem ele dentro! — ela
dizia com uma voz que parecia um rosnado e então enterrava a fi‑
gurinha, fingindo que ela tremia de medo, com terra até o pescoço,
gemendo e gritando todo o tempo:
— Ai, não! AI, NÃO! Num mi põe nessi buracu!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Deixem sua cabeça para fora e vão buscar o mel! — agora era
a voz do capataz.
— Ai, não, Sinhô! Pur favô, num põe o mer, não! Pur favô, o mer não!
— Derramem o mel inteiro na cabeça dele e vão buscar um bal‑
de de formigas!
— Ai, não, Sinhô, as furmiga não!
— Derramem as formigas para que mordam ele bem, que mor‑
dam os olhos e as orelhas e o pescoço e entrem no nariz e mordam
lá dentro!
Chloé parecia possessa e retorcia o rosto em uma máscara cruel
quando pretendia ser o capataz. Então Angelique entrava na brinca‑
deira e fingia ser o escravo:
— NÃO! NÃO! As formigas estão me mordendo! Elas vão comer
toda a minha cara! — ela gritava, excitada por uma mistura de hor‑
ror e fascínio. Ela nem sequer era capaz de imaginar como seriam
umas torturas tão cruéis. Ela pensava que Chloé inventava esses
dramas e ficava encantada com a imaginação da outra.
Foi ideia de Chloé fazer as bonecas. As duas eram marrons, porque
a argila era marrom, mas uma trazia o cabelo louro de Angelique e a
outra tinha a carapinha preta e curta de Chloé. Elas haviam cortado
um pouco de seus próprios cabelos. Até mesmo as roupas tinham sido
feitas com tiras de seus próprios vestidinhos, costuradas ao redor da
argila, para serem mais autênticas. Os olhos eram feitos de pedrinhas
e as bocas outras tantas fileiras de sementes enfiadas cuidadosamente
na argila ainda mole e elas discutiram sobre quem tinha feito a curva
mais perfeita de uma boca sorridente. Fingiram que as bonecas eram
irmãs e lhes fizeram camas com travesseirinhos e cobertas, para que
elas pudessem dormir lado a lado. Mais adiante, chegaram a erguer
uma tenda com lenços de seda e pareus de algodão e as duas se deita‑
vam ao lado das bonecas e as acalentavam com melodias que suas
próprias mães haviam cantado para elas, até que conheciam bem as
canções uma da outra e eram capazes de cantar todas de cor.
Durante o dia, Angelique lia seu livro. Ela recordava também mui‑
tas coisas que sua mãe lhe havia ensinado e também parte das rezas

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Lara Parker

das freiras na escola, mas queria saber muito, muito mais. Certa vez,
ela perguntou a Chloé se ela sabia alguma coisa sobre os loás.
— Loás? Ah, terem muitos, muitos loás mesmo! — falou, cheia
de importância.
— Ah, por favor, diga­‑me os nomes deles! — pediu Angelique.
— De todos eles? Bem, existe o Brava Guede, que é o melhor de
todos os loás, é ele que vem cuidar das crianças. Mas tem o Guede
Ratalon. Ele cavar os túmulos — explicou a outra.
— Eu me lembro de Legbá. Quem é ele? — quis saber Angelique.
— Papá Legbá é o mesmo Maître Ka­‑Fu. É ele quem abrir os
portões para que todos os outros loás possam entrar! — disse Chloé,
abrindo seus braços delicados e então disse: “A­‑a­‑a­‑a­‑abra!” e fez
uma curvatura até o chão. — Mas quando eles chamar o Guarda do
Portão nessa capela aí do lado, eles dizer... “Kalfu...”
Angelique percebeu que ela estava fazendo um grande esforço
para dizer “Carrefour”, que era “encruzilhada” em francês.
— Sim! Eu já os ouvi dizendo isso! — exclamou Angelique. —
Por que é diferente aqui?
— Porque o vodu daqui é ruim... é angajan! — sussurrou Chloé.
— O que você quer dizer com angajan? — falou Angelique, tam‑
bém baixinho.
— É o baká daqui... alma penada... espírito mau... ele pegar a ti‑
boangue, a alma da gente! — falou Chloé, assustada. — Ele é como
o Cochon Gris — come o porco e bebe o sangue dele!
A imaginação de Chloé ultrapassava as fronteiras do fantástico.
Enquanto a escutava, Angelique pensava nos caranguejinhos ver‑
melhos que entravam e saíam de seus pequenos esconderijos, difí‑
ceis de se ver e ainda mais difíceis de pegar.

* * *

Em certo ponto, Angelique decidiu tentar alguma coisa do seu li‑


vro, mas havia muitos ingredientes de que ela precisava e não tinha
à sua disposição. Uma noite, ela pediu a Chloé:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Você pode me conseguir um sapo ou uma rãzinha, um coqui?


— Para que tu quer um sapo? — disse a outra, surpresa.
— Quero fazer um encantamento — falou Angelique abertamente.
— O que quer dizer “encantamento”?
— O sapo tem de estar vivo.
Quando Chloé finalmente lhe trouxe o sapinho, Angelique o vi‑
rou de costas e ficou a lhe passar um dedo na barriga até que o bicho
ficou hipnotizado. Então, ela pegou uma das facas menores e lhe
abriu o ventre.
— Olhe —, explicou — aquilo é o coração.
— Aquilo é o coração? — espantou­‑se Chloé. — Mas é mesmo!
Eu vejo que está batendo que nem um tamborzinho!
— E que parte você pensa que é o fígado?
— O quê?
— Nós precisamos do fígado. É para nós duas comermos — ex‑
plicou Angelique.
— Mas para que você quer comer esse... “figo”? — indagou Chloé.
— Porque nos dá coragem e esperteza.
— Ora, eu não vou comer o figo de nenhum sapo, não me im‑
porta pra que serve!
— Mas você precisa! — afirmou Angelique, remexendo nas en‑
tranhas do sapo. — Acho que é isto aqui... — comentou, retirando
um minúsculo órgão úmido e oferecendo­‑o a Chloé, cujos olhos se
arregalaram de desgosto enquanto ela sacudia sua cabeça em uma
negativa veemente.
A seguir, Angelique cortou fora o coração e, segurando os dois
pedacinhos, que sangravam um pouco, cortou cada um em duas
metades minúsculas, recitando as palavras africanas que tinha de‑
corado do livro. Com uma careta, colocou suas porções na boca e
engoliu. Chloé a olhava, seu rosto contraído como um melão seco.
Angelique ofereceu­‑lhe sua parte, mas ela se recusou.
Angelique tentou forçar os pedacinhos para dentro da boca dela,
mas ela recuou, gritando:

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Lara Parker

— Eu não quer nada disso! Fica longe de mim! Tu tá com sangue


e porqueira espalhados por todos os dedos!
— Vamos fazer o encantamento agora — disse Angelique
— mas não vai funcionar para você, porque você não quis co‑
mer o coração.
— Eu não quer comer coração nenhum! — protestou a outra.
— Então pegue só a minha boneca e vamos começar.
Angelique pegou a boneca que representava a amiga e soprou­‑lhe
no rosto:
— Você é Chloé — disse baixinho — e agora está viva.
Virou­‑se para Chloé:
— Agora faça o mesmo com a minha.
Chloé concordou e pegou a boneca de cabelos amarelos:
— Você é Angelique e agora tu tá viva — falou, sem muito entu‑
siasmo. Mas ela adorava seus jogos de “fazer de conta” e tentou
acreditar. Angelique lhe entregou um pedaço de cordão preto.
— Amarre em volta da garganta da minha boneca — ordenou.
— Mas por quê?
— É o encantamento. Anda logo — disse Angelique, pacientemente.
Chloé enrolou o cordão desajeitadamente e conseguiu fazer um
laço de correr ao redor de seu pescoço.
— Agora diga: “Querfur ting­‑in­‑ding gu­‑u. Mi hot mi bêis­‑i.”
— Dizer o quê?
— Diga primeiro: “Querfur”...
— “Querfur”...
— Agora diga: “Ting­‑in­‑ding gu­‑u…”
— “Ting­‑in­‑ding gu­‑u…”
— “Mi hot mi bêis­‑i.”
— “Mi hot. Mi bêis. I.”
— Agora aperte bem apertado o cordão no pescoço da boneca
— explicou Angelique. — Veja se consegue me sufocar.
— Te sufocar? Mas pra que é que tu quer que ele te sufoque?
— Para ver se o encantamento funciona, é claro.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Chloé foi apertando o cordão, enquanto escrutinava o rosto de


Angelique para ver se havia algum sinal de sufocamento.
— Mais apertado — disse Angelique, franzindo a testa.
— Se eu apertar mais, vai cortar fora a cabeça dela! — protestou Chloé.
— Ah, faça logo! E repita as palavras mágicas!
Chloé se esforçou o mais que pôde para resmungar as palavras
que aprendera, enquanto apertava o nó mais firme, até que, confor‑
me ela previra, a cabeça de argila da boneca de Angelique se soltou
e caiu no chão. Angelique suspirou de frustração:
— Não funcionou — disse ela. — É alguma coisa que eu estou
fazendo errado...
— Mas pra que tu quer fazer feitiço? — reclamou Chloé. — Fei‑
tiço quem faz é o hungan! Feitiços são coisa perigosa. Além disso,
primeiro tu tem de fazer o vevé...
— O que é um vevé? — quis saber Angelique.
— É a figura do loá, mas não pode ser de barro, tem de ser de
farinha branca — explicou a outra. — E depois, tu não pediu ao
Papá Legbá para abrir o portão primeiro...
— Deixe­‑me tentar com sua boneca.
— Eu não quer tentar mais coisa nenhuma! Vamos brincar de
outra coisa. Vamos dançar!
Ela largou a boneca sem cabeça no chão e se levantou, come‑
çando a girar. Mas Angelique estava determinada. Ela pegou o
cordão preto e amarrou ao redor do pescoço da boneca que re‑
presentava Chloé.
Colocou a boneca sobre os joelhos e assoprou nela outra vez.
— Você é Chloé — disse baixinho — e agora está viva...
A seguir, começou a entoar o encantamento bem baixinho:
— “Quéri Fúrei... Ting­‑in­‑ding gu­‑u. Mi hot mi bêêêêiss­‑ii.”
Suas mãos ainda estavam pegajosas das entranhas do sapo e
ela enrolou as pontas do cordão nos dedos para segurar melhor.
Chloé ainda estava cantando de boca fechada e girando, e Angelique
começou a apertar bem devagarinho, os olhos fixos na bonequinha,

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Lara Parker

que lhe retribuía o olhar com seus olhos de pedrinhas emoldura‑


dos pelas trancinhas encarapinhadas. Suas mãos começaram a
endurecer e sua boca a se ressequir, mas ela recitou o encanta‑
mento inteiro outra vez, assoprando com toda a força contra o
pescocinho da boneca.
Subitamente, ela sentiu um espasmo como se fervesse por den‑
tro, como o tremor que sentia ao tocar em certo tipo de mãe­‑d’água
e então uma ondulação de calor percorreu­‑lhe as omoplatas e
desceu­‑lhe queimando até as nádegas. Uma centelha de fogo
enroscou­‑se como uma serpente no interior de seu estômago,
retorcendo­‑se e depois engrossando e sua garganta parecia em fogo
ao mesmo tempo que um gosto amargo lhe enchia a boca.
Chloé parou de girar, de repente.
— Tá funcionando! — ela gritou. — Tá funcionando agora!
Seus olhos se arregalaram e ela segurou o pescoço com as mãos
e gritou:
— Tá doendo! Minha garganta tá doendo!
Angelique gelou, cheia de descrença, pensando ser brincadeira,
mas ao olhar para Chloé, percebeu que ela estava realmente sofren‑
do, segurando o pescoço com as mãos e tossindo:
— Para com isso! Para com o feitiço! Por favoooooor! Eu não
posso reeess... pirar!
Angelique tentou retirar as mãos, mas seus dedos estavam en‑
roscados no cordão e seus esforços para puxá­‑lo e retorcê­‑lo só dei‑
xavam o nó mais apertado. Chloé começou a soltar uns gritinhos
que pareciam guinchos de algum animalzinho caçado, engasgada,
arranhando a garganta e atacando o ar com os dedos em garra.
— Aaaaaiiiii, Papá Guede! Eu sinto dooooorrr!!!! — gemeu ela,
sem conseguir respirar, mal podendo emitir os sons. — Papá Gue‑
de! Me salve! — ela sussurrava, tentando gritar. Então se dobrou e
caiu de joelhos, tossindo, uma tosse seca e dolorida, como se esti‑
vesse com ânsia de vômito, mas sem que nada saísse de sua boca.
Angelique tentou freneticamente soltar o nó corrediço do cordão,
mas ele se recusava a afrouxar. Chloé gemia cada vez mais baixo e

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

balançava o corpinho para a frente e para trás, as mãos tentando ar‑


rancar de seu pescoço um laço que não estava lá, as lágrimas brotan‑
do sem parar de seus olhos.
Angelique se arrastou de joelhos, tateando no chão em busca da
faquinha que havia usado para abrir a barriga do sapo. Seus dedos
encontraram a lâmina e ela agarrou a boneca com a outra mão.
Seus dedos trêmulos, suas unhas escarvando a argila endurecida,
ela conseguiu enfiar a ponta da faca sob o cordão e puxou. Da pri‑
meira vez, escapou, mas da segunda, o cordão foi rebentado! Chloé
caiu no chão, encolhida em um montinho trêmulo e fitou Angeli‑
que com olhos angustiados que lentamente se vidraram, enquanto
ela perdia a consciência.
Angelique arrastou Chloé para seu colo e apertou­‑a com cari‑
nho. Ela sentia seus ossos finos encolhendo por debaixo de sua pele
e farejava seu cheiro cálido e apimentado.
— Sinto muito, Chloé! Ai, Chloé, eu sinto tanto! Chloé, por fa‑
vor, por favor, não morra! — ela soluçou, numa convulsão de espas‑
mos de pavor. — Eu não sabia que ia funcionar mesmo. Mas
funcionou tão depressa! Por favor, Chloé, acorda!
Mas Chloé estava quieta e nem respirava, seu pescoço mole, seu
corpo tão frouxo com as algas das lagunas. Angelique entrou num
frenesi e olhou ao seu redor, sem fazer ideia de como agir, contem‑
plando as prateleiras de garrafas e frascos enquanto esquadrinhava
sua própria mente. Um encantamento! Outro encantamento! Ti‑
nha de haver um! Alguma coisa, havia alguma coisa, o que é que
era? “Para reviver um animal estrangulado.” Era isso!
Ela se esforçou para recordar as palavras. Palavras diferentes,
noutra língua. Palavras dos cristãos. Lembrou só de uma parte, e
depois se recordou de um pouco mais e logo a seguir estava rezando
sobre a forma imóvel de Chloé.
— Deus que nasceu. Deus que morreu. Deus que voltou de novo
à vida. Deus que foi crucificado. Deus que esteve na caverna. Deus
que foi furado pela adaga! Salve­‑a. Salve­‑a! — ela soluçava entre as
palavras, balbuciando vezes sem conta a reza forte, beijando a face

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Lara Parker

de Chloé, molhada de suas próprias lágrimas e soprando dentro de


sua boca. — Você é Chloé. Você está viva!
Ouviu­‑se um leve gemido e Chloé abriu os olhos. Com um gri‑
to, Angelique a apertou contra o peito, chorando lágrimas quen‑
tes de alívio.
— Ai, Chloé! Eu sinto tanto! Por favor, diga que me perdoa!
— Esses… feitiços ser… coisa ruim — murmurou Chloé. E An‑
gelique a beijou de novo.
— Eu te amo, Chloé — suspirou Angelique. — Eu te amo…
Angelique abraçou Chloé enquanto ela dormia, olhando seus pe‑
quenos seios subir e descer. Seus pensamentos giravam como um
pião. O encantamento havia funcionado, fora tão fácil! A força entra‑
ra dentro dela e acendera sua energia. Qual era aquele poder? “Car‑
ga”, era como Chloé o chamava. Uma palavra assim tão simples?
Capaz de impelir a coluna de sua respiração? O livro! Algumas das
regras do livro eram realmente corretas. A boneca usava um pedaço
de pano que tocara a pele de Chloé e o cabelo era mesmo de Chloé.
Mas a outra fracassara ao tentar o feitiço com ela. Por que seria?
Seus pensamentos a confundiam e assustavam. Porque havia al‑
guma coisa mais: Chloé teria mesmo morrido e fora ela que a trou‑
xera de volta à vida? Mas não. Isso não podia ser possível... Contudo...
ela se sentia exultante, assombrada pelo poder que sabia possuir,
mas um dom que ela absolutamente não conseguia entender. Era
aquela “coisa mais” de que falara o seu pai. Mas o que ele realmente
sabia a respeito dela? De fato, o que ela mesma realmente sabia a
respeito de si própria?
Já era aurora quando as duas meninas retornaram às apalpadelas
pela passagem subterrânea e o canto dos pássaros já estava no ar.
Chloé estava bem juntinha a Angelique, recuperada, mas ainda
amedrontada e incapaz de falar, sua garganta profundamente dolo‑
rida. Emergiram do túnel e já estavam na metade da travessia do
pátio, quando escutaram o galope de cavalos que se aproximavam
galopando pela estrada em direção ao portão. Angelique segurou a
mão de Chloé:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Esconda­‑se! Aqui mesmo!


As duas meninas se enfiaram por trás da parede lateral da capela
justamente no momento em que o grande portão de ferro rangeu e
se abriu e seu pai e outro senhor de engenho entraram a cavalo no
pátio central. Ele recordava o nome do outro. Era Luís Desalles. Ele
estivera lá no dia em que ela fora escolhida.
O ar estava parado, sem a menor brisa e até mesmo os longos
braços do moinho estavam silenciosos. Os cascos dos cavalos in‑
quietos ressoavam contra as lajes do pavimento e os dois homens
falavam em voz baixa, suas vozes pastosas pelo excesso de bebida.
— Você é um puto de Satã, Bouchard! — balbuciava Desalles.
— A música para os negros é o chicote! É só a chibata que faz com
que trabalhem. São uns brutos do inferno!
— Não, você está errado! — contrariou seu pai. — Eles sentem
falta de dançar. Os negros são naturalmente supersticiosos. São
bestas e estão obsecados por ela. Mal consigo impedir que lhe po‑
nham as mãos em cima!
— Mas que diabo você está dizendo?
— Eles chegam a esquecer de que eu estou ali com eles! — disse
Bouchard. — Ou algumas vezes fingem que se esquecem, até que eu
desembainhe a espada! Mas eles sabem em seus cérebros ardilosos
o que está para acontecer e então esperam... — concluiu ele, soltan‑
do um riso amargurado.
Angelique e Chloé permaneciam ocultas na sombra da parede.
Mas o sol já estava a se erguer e uma longa lança de luz começava a
cruzar o pátio. Tinham medo de se mexerem e só se podiam enco‑
lher contra as pedras. O pátio inteiro estava entre elas e a cozinha.
O fazendeiro Desalles prosseguiu com suas palavras indistintas:
— Todos eles são inadequados, tanto na moral como no tempe‑
ramento. Na semana passada, um dos meus negros, Valentin, se
jogou na caldeira grande, justamente quando começou a ferver — a
coisa mais horrível. E ontem mesmo, Bence, o meu novo rapaz que
parecia tão promissor, trepou em uma árvore de fruta­‑pão e se jo‑
gou lá do alto. Quebrou o pescoço, tremendo idiota!

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Lara Parker

Fez uma pausa e prosseguiu:


— Eles são capazes de qualquer coisa para se vingarem de nós!
Outro dia, eu... eu estava chicoteando um escravo e o maluco engo‑
liu sua própria língua! Sufocou a si mesmo!
Chloé tossiu, mas cobriu a boca a tempo e nenhum dos homens
pareceu perceber, porque Desalles não parava de reclamar:
— As mulheres são vilãs ainda piores. Você sabe que elas ab‑
sorvem as crias antes de nascer, como fazem as fêmeas dos antí‑
lopes? Uma das minhas fêmeas estava a ponto de dar à luz; um
dia eu a vi, barriguda da cria; e no dia seguinte puf! Seu barrigão
tinha desaparecido!
O cavalo de Bouchard começou a estalar os cascos nas lajes, irre‑
quieto por estar parado, caminhando aos poucos em direção à ca‑
pela e as meninas se apertaram ainda mais contra a parede. Chloé
encarava Angelique com olhos imensos e assustados.
— Meu maior pesadelo — dizia Bouchard — é que eu tenho de
reinstalar este maldito moinho de vento. As novas engrenagens
para esmagar a cana ainda não chegaram da França. Se a cana ama‑
durecer cedo demais, vou perder tudo.
Os cascos do cavalo estalavam cada vez mais perto.
— Veja só minha situação, estou amarrado dentro do mijo até o
pescoço. É por isso que, neste domingo, eu vou lhes permitir a sua
maldita cerimônia e então... — sua voz soava xaroposa pelo rum.
— Erzulie… meu pequeno tesouro, escondida lá em cima. O que eu
faria sem ela, Luís?
Angelique sentiu um puxão em sua manga e viu que era Chloé.
Ela se virou para ver o rosto de sua amiguinha, contorcido em uma
careta, enquanto ela apontava para sua própria garganta. Angelique
instantaneamente agarrou­‑lhe a cabeça e a enterrou contra sua saia,
mas Chloé explodiu em um espasmo de tosse sufocada.
Bouchard berrou em sua direção, sua voz praticamente um latido:
— Quem está aí?
Angelique e Chloé se esconderam ainda mais fundo nas som‑
bras da esquina e depois deslizaram como duas ratinhas para a

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

parte de trás do edifício. Os cascos estalaram nas pedras enquanto


o cavalo se aproximava, parava, e batia de novo nas lajotas, mais
lentamente. Houve uma espera agonizante, até que o pai de Ange‑
lique se aproximou e olhou do alto da sela, encarando as duas
meninas trêmulas.
— Mas o que é isso? — ele rosnou para Angelique. — Que infer‑
no você está fazendo aqui fora? Eu não lhe proibi muitas vezes de
mostrar a cara por aqui?
Seu tom de voz tremia de raiva.
— E ainda está metida com uma escrava!
— Por favor, papai, não lhe faça mal. Ela é... minha amiga.
— Amiga? Mas você não sabe que ela vai nos trair — se é que já
não o fez?
— Não! Ela jamais faria uma coisa dessas!
— Mas por que vocês estão aqui? As duas juntas… logo a esta
hora da manhã... Você saiu às escondidas de noite?
— Sim, mas ninguém nos viu. Ninguém mesmo, antes do senhor...
— E por que razão você se escapou da torre?
— Eu só queria… brincar…
— Brincar? Brincar de quê? Brincar onde?
— Brinquedos, pai, faz de conta… na salinha atrás da capela...
O rosto de seu pai ficou roxo de fúria. Inclinou­‑se da sela e
agarrou Chloé pelos cabelos. Ela gritou enquanto ele a colocava
atravessada na sela à sua frente e, firmando­‑a com uma das
mãos pela cintura, galopou com a menina que esperneava atra‑
vés das lajotas do pátio e entrou a cavalo na cozinha. Monsieur
Desalles ficou ali, congelado em seu próprio cavalo, olhando
estupefato para a cena. Finalmente, recuperou­‑se o bastante
para dizer:
— Ôpa, ôpa, Théodore. Não machuque sua barriga. Lembre­‑se
de que vai querer fazê­‑la parir umas crias daqui a alguns anos...
Angelique correu até a porta da cozinha a tempo de ver seu
pai desmontando do cavalo, prendendo Chloé embaixo de um

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Lara Parker

braço, braços e pernas se debatendo. Ele estendeu a mão para


umas tenazes de pegar carvão em brasa que pendiam da parede
acima da pia.
O instrumento de ferro em uma das mãos, ele gritou:
— Luís, me dê uma mão aqui. Segure a cabeça dela!
Angelique puxou o casaco de seu pai:
— Não! Não! Pai! — exclamou. — Por favor, não a machuque!
Por favor, eu lhe suplico! Ela nunca fez nada de mal! Eu vou morrer
se você judiar dela!
Seu pai se virou violentamente para ela, fitando­‑a fixamente,
seus olhos dois buracos negros e os dentes rilhando:
— Morrer você vai, se eu não fizer o que estou pensando! — sua
voz um silvo de cobra. — Sua criança imprudente, temerária! Pare
de choramingar! Então não percebe o que você fez?
Ela saltou sobre ele, arranhando a mão que segurava as tenazes,
mas ele a jogou longe, com um empurrão. Desalles chegara até a
porta e Bouchard gritou­‑lhe:
— Agarre­‑a! Inferno de guria endiabrada!
A esta altura Chloé gritava o mais alto que podia e Angelique,
sua cabeça rodando com o empurrão e o tombo que levara, lágri‑
mas quentes toldando­‑lhe a vista, pôs­‑se em pé novamente, só para
sentir a mão pesada de Desalles segurando­‑lhe o braço firmemente.
— Thaïs! — gritou seu pai pela escrava, tentando em vão segu‑
rar Chloé, que se revirava e escoiceava. — Thaïs! Desça até aqui,
agora mesmo!
Então resmungou entre dentes, tentando em vão firmar a meni‑
na que não parava de se debater em seus braços:
— Para o inferno com seu couro negro, preguiçosa!
Thaïs apareceu na porta da torre, ainda tonta de sono, estupidi‑
ficada de terror.
— Thaïs! Venha me ajudar aqui! Eu quero arrancar a língua
dela! E vou! Vou garantir que ela nunca, mas nunca mais fale
de novo!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ainda cambaleando de bêbado, ele amaldiçoava:


— Suas desgraçadas de merda, querem me desafiar, é? Eu vou
rebentar a cabeça de vocês duas antes de acabar este negócio!
— Solte­‑me! — gritou Angelique e acertou um pontapé nas viri‑
lhas de seu captor.
Dobrando­‑se de agonia, Desalles a soltou, com uma praga:
— Sua puta amaldiçoada!
Pelo canto dos olhos, Angelique viu seu pai erguer as tenazes
apavorantes e se lançou contra seu braço novamente.
— Solte­‑me, sua criatura infernal, largue­‑me! — ele berrou.
Mas agora tanto ela como Chloé, duas hienas selvagens, começa‑
ram a mordê­‑lo, Chloé nos dedos que tentavam puxar para fora
sua língua escorregadia e Angelique do lado do punho que segu‑
rava a língua. Angelique sentiu seus dentes se cravarem na carne e
o sangue quente escorrer para dentro de sua boca, mas como um
cão raivoso ela continuou com os dentes cravados, mesmo en‑
quanto golpes caíam sem parar sobre sua cabeça e ela escutava as
tenazes estalando no chão.
Então seu pai, agarrando as duas atacantes como um touro as‑
saltado por duas leoazinhas, praguejando e amaldiçoando em fú‑
ria, arrastou os pés para o pátio. Ele sacudiu Angelique para longe
com uma maldição terrível seguida de um pontapé e ela caiu nas
pedras, rolando estonteada, até que levantou a cabeça para vê­‑lo
avançar em direção ao poço no centro do pátio, Chloé ainda presa
debaixo de seu braço.
Ela soube na hora o que ele pretendia fazer.
— Não! — ela gritou. — Ní‑í‑í‑í‑í‑ÃO!!!
Arrastando­‑se pelo chão, tropeçando e caindo, desesperada para
impedi­‑lo, ela lhe agarrou uma perna, depois segurou um braço,
mas já era tarde demais. Ele ergueu a menina, que se debatia e uiva‑
va sem parar, acima de sua cabeça e lançou­‑a por sobre a beirada do
poço. Angelique atirou­‑se contra as pedras da parede do poço, es‑
tendendo os braços e gritando:
— Chloé! Chloé! Chloé!

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Lara Parker

Mas a única coisa que pôde fazer foi olhar agoniada para o bu‑
raco aberto. Escutou um grito agudo vindo lá de baixo e viu a vi‑
bração da corrente ao ser atingida, enquanto ela gritava: “Chloé!”
de novo, seus gritos ecoando os da menina que tombava, reverbe‑
rando, ressoando como dentro de uma caverna — como o croci‑
tar distante de corvos quando voavam sobre as árvores da floresta
— seguindo­‑se um silêncio completo.

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Nove

haïs bem que tentou, mas não conseguiu consolar a tristeza


de Angelique, que pranteava enlutada, sentada no peitoril de
uma janela, firmemente agarrada às suas grades. Suas lágrimas
escorriam livremente, enquanto ela olhava para o poço maldito,
como se pudesse ir buscar Chloé dentre os mortos, puxando a
corrente do balde. Sentia­‑se anestesiada de raiva e desespero e só
conseguia pensar em sua mãe, em como ela precisava vê­‑la outra
vez, sentindo que apenas seu abraço conseguiria levantar de seu
peito aquela dor excruciante.
Foi só no final da tarde que uma carroça atravessou o portão e
foi parar ao lado do poço. Um homem musculoso, todo vestido
de couro, desceu da carroça com um menino escravo a seu lado.
Depois de olharem para dentro do poço e depois de muitas dis‑
cussões e considerações, o homem retirou uma corda de dentro
da carroça e amarrou­‑a ao redor da cintura do menino. Este
postou­‑se sobre o balde e ficou encolhido ali dentro, seus pés des‑
calços projetando­‑se pela beirada e o homem começou a girar o

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Lara Parker

sarilho para baixar a corrente, polegada após polegada, até o fun‑


do escuro do buraco.
Uma esperança fraca e inútil saltitou dentro do coração de
Angelique, mas enquanto o homem esperava, baixando o balde
lentamente, o cavalo batia com os cascos no pavimento e o sol ia
baixando no céu. Nada de som, nenhum movimento vinha do
poço escuro. Após um longo tempo, finalmente a corrente esta‑
lou ao ser sacudida lá de baixo e o homem se debruçou para pu‑
xar a corda, trazendo o menino até o alto da parede do poço. Ele
estava pingando água, totalmente ensopado, agarrando­‑se firme‑
mente à ponta da corda, depois de ter passado uma laçada pela
cintura, até que subiu pela beirada e pulou para o chão. Então os
dois ficaram olhando enquanto o homem girava a corrente no
sarilho, os elos estalando e a máquina gemendo enquanto a ma‑
nivela era girada.
Quando o balde chegou à superfície, a forma inerte de Chloé
aparecia parcialmente acima da borda, como um tufo de algas
marrons enroscadas em uma âncora. O homem puxou­‑a para
fora do balde e atirou­‑a no chão como se fosse um saco de fari‑
nha. Angelique voltou­‑se para Thaïs, que espiava por cima de
seu ombro:
— Por favor, Thaïs, deixe­‑me descer — disse baixinho. — Eu
preciso ir vê­‑la. Tenho de lhe dar adeus...
Mas a mulher sacudiu a cabeça, pegou uma coberta do banco em
que dormia e se moveu em direção à porta.
— Num, sinhazinha, vancê fica aqui im riba. Como divia de tê
ficado sempre — disse Thaïs. E a seguir deixou o quarto, a fim de
ajudar Suzette a preparar o cadáver.
Angelique se virou novamente para a janela. O corpo de Chloé
jazia sobre as lajotas que havia lavado tantas vezes, seu rosto oculto
por um braço, os farrapos do vestido molhado grudados em sua
forma delicada e seus braços e pernas perfeitamente modelados,
como se fossem argila cinzenta arrancada da terra. Angelique
recordou­‑se de Suzette, que tinha caído quase no mesmo lugar, es‑

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

pancada, mas ainda viva. Ela ficou observando enquanto Thaïs e


Suzette silenciosamente enrolavam o pequeno cadáver e o carrega‑
vam até a cozinha. O homem lhes falou, dizendo a elas que lhe
trouxessem alguma coisa e Thaïs acenou afirmativamente.
Subitamente, ocorreu a Angelique que aquele homem não era
um escravo e tampouco morava na plantação. Seu gibão de couro e
suas botas o marcavam como um trabalhador ambulante, alguém
que tinha sido chamado para retirar do poço o corpo, alguém mais
entendido que os escravos desajeitados, talvez alguém que morasse
em Saint­‑Pierre.
O homem se virou e seguiu as escravas pela porta da cozinha.
Sem pensar duas vezes, Angelique se atirou até a porta e verificou
que Thaïs mais uma vez se havia esquecido de trancá­‑la e correu
escada abaixo até o pátio, ignorando o escravinho, que olhou para
ela muito espantado ao vê­‑la, mas sem esboçar a menor ação. Ele
não disse uma palavra e não fez o menor movimento para impedi­
‑la enquanto ela corria até a carroça, subia pela roda como um ca‑
mundongo e se jogava na carroceria.
Ela viu num relance que a carroça pertencia a um fabricante de
velas, pelas pilhas de lona e de cordas que estavam pelos cantos,
costuradas a argolas e alças de cordame. O odor do mar estava forte
e as velas eram pesadas, mas ela se enfiou embaixo delas, encolhendo­
‑se em um canto o mais ocultamente possível.
Escutou o homem gritar para o menino:
— Venha cá! Isto aqui é soda cáustica e lixívia de milho. Vá até
o poço e derrame tudo!
Ela esperou, com medo de respirar por longos minutos agoniantes,
certa de que sua ausência logo seria notada, até que, finalmente, viu a
carroça se sacudir, então arrancar para frente e o chicote estalou.
Lentamente, as rodas se moveram. O portão de ferro gemeu e o
ferrolho se fechou com um estrondo até que, pelo balouço contí‑
nuo, ela percebeu que haviam chegado na estrada.
O cavalo era vigoroso e galopava em ritmo firme e rápido, para
onde ela não sabia e nem se importava, desde que fosse para longe

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Lara Parker

da plantação. Seu coração batia forte com o pensamento do que


poderia ter à frente: a reunião tão ansiosamente aguardada com sua
mãe, a segurança e o amor de sua infância... e o mar! Ela mal podia
esperar para cair nos braços do mar novamente.
A dor da morte de Chloé, a noite que passara em claro e a exal‑
tação de sua fuga se reuniam em volta dela como fantasmas, en‑
quanto ela permanecia enroscada por baixo da lona de vela,
anestesiada até o estupor, sobrevivendo ainda um único pensamen‑
to — o cálido abraço de sua mãe. Apertava os dedos ao redor do
uangá ainda preso a seu pescoço, o amuleto que lhe dera sua mãe e,
recordando a outra carroça que a trouxera até o canavial, lutou
contra o sono, como se pudesse combater a maré com seus braços
estendidos. Mas finalmente sucumbiu e foi escorregando por uma
chaminé escura, tentando agarrar­‑se com os dedos em garra nas
paredes frias e úmidas, até deslizar totalmente na inconsciência.
Seu sonho foi com Barnabas. O cortinado se abriu, a luz se
derramou para o interior de sua liteira e lá estava ele, completa‑
mente molhado, rindo, subindo para o lado dela, sacudindo­‑a e
empurrando­‑a para um canto do cadeirão. Ele derramou as
joias em seu colo e as arrebanhou outra vez, suas mãos tocando­
‑lhe as coxas, seus dedos descuidadamente se intrometendo en‑
tre suas pernas enquanto reunia as pedras preciosas dentre as
dobras de seu vestido. Parecia demorar para sempre até que
conseguiu pegar todas, mas algumas tinham deixado suas cores
brilhantes entre as pregas e ele tinha de ir buscar de novo e cada
vez que ele conseguia segurar uma, seu toque era como penas
que a confortavam. Então ele a beijava no pescoço e nos lábios e
estava tão perto dela, que ela sentia a batida dos corações dos
dois. Ele sussurrava para ela, chamando­‑a de “Deusa” e depois
sua mão entrava por baixo de seu vestido e a apalpava lá embai‑
xo e seus dedos encontravam lugares que estremeciam e ganha‑
vam vida com seu toque.
Quando Angelique acordou, era noite fechada. Alguém a estava
sacudindo e ela sentou­‑se com um estremeção. A carroça tinha

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

parado, estava dentro de um galpão vazio e o menino escravo es‑


tava em pé a seu lado, contemplando­‑a.
— Que é que tu qué, guria? — cochichou ele, sua respiração
cálida próxima à sua face.
— Onde nós estamos? — perguntou, endireitando­‑se e olhando
em volta.
— Nós temo em casa. O Sinhô entra na casa e me deixa aqui fora
para enroscar as cordas.
— Em casa... Mas onde é que fica?
— Ora, menina, nós fica nas doca. Em Saint­‑Pierre! Nós trouxe
tu o caminho inteiro. O que é que tu vai fazê agora, hein? — inda‑
gou o menino.
— Por acaso alguém me viu? — quis saber Angelique.
— Eu não contei pra ninguém que tu tava aqui drento — garan‑
tiu o garoto. — Eu não diz uma palavra pra ninguém. Eu vi que tu
tava mesmo querendo ti escapá!
— Estamos realmente em Saint­‑Pierre? — perguntou ela, mal
ousando acreditar.
— Pois temo...
— Ai, que bom! Agora eu tenho de ir embora — disse ela, des‑
cendo da carroça. — Tenho de encontrar minha mãe. Daqui até a
casa, eu sei o caminho.
— Mais tu vai sozinha? — ele indagou, surpreso.
— Ora, é claro. Eu pego a estrada do porto, as cavernas ficam só
algumas braças mais adiante. A casa fica na enseada — disse Ange‑
lique, cheia de confiança.
— Tu não tem medo de ir sozinha? — perguntou o menino.
— E por que eu deveria ter medo?
— Ah, e eu é que sei? Acho que nada te assusta, né? Óia só o jei‑
to que tu pulou pra drento do carroção! Tu não correu feito um
cachorro. Tu correu que nem um porco! Tu correu pra sarvá tua
vida! Mais tem coisas ruim pela istrada. Ladrões e escravos fugido.
E os bucanero! Eu vô só guardá as corda e despois vô contigo um
pedaço do caminho — ofereceu­‑se o menino.

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Lara Parker

— Mas eu não quero esperar por você — disse ela, decididamen‑


te. — É lua nova e ninguém vai me ver. Obrigada!
Com essas palavras, ela saiu apressadamente em direção às do‑
cas. Mas o menino já estava grudado em seus calcanhares.
— O pobrema é — disse ele, ofegante — que eles vê uma menina
branca com um menino preto e eu fico num baita dum pobrema.
Mió mesmo é eu ficá um pouquinho mais pra trais. Tu vai na fren‑
te, mas não se percupeie. Eu vô tá seguindo logo atrais.
O menino não falou nem mais uma palavra durante mais de
meia hora, enquanto marchavam estrada acima através da escuri‑
dão. Diversas vezes, ela disse: “Vá embora!” e tentou correr à frente
e se livrar dele, mas o garoto parecia grudado nela e aumentava sua
velocidade cada vez que ela corria. Finalmente, ela desistiu.
A noite estava quente e bilhões de estrelas se suspendiam no
manto negro do céu, algumas bem alto na cúpula central e ou‑
tras pairando quase sobre a fímbria do oceano. A música da
arrebentação cadenciada das ondas era como um canto de se‑
reia, e quanto mais Angelique caminhava ao longo da orla do
mar, tanto mais ansiava pela doce carícia das ondas. Finalmen‑
te, ela desceu à praia e correu até a beirada da espuma. Quando
viu as próprias estrelas a se banharem nas águas, não conse‑
guiu resistir mais.
— O que tu tá fazendo? — gritou o menino, lá de trás.
Ela o ignorou e mergulhou na primeira onda que se ergueu para
saudá­‑la. O impulso cálido fez correr a areia de sob seus pés e a pu‑
xou para dentro de si, mas ela se deixou levar e balançar nas maro‑
las, enroscada em uma bolinha firme, depois abrindo os braços e
pernas e se lançando para a superfície como uma foca ágil, passan‑
do por baixo da próxima onda. Flutuou, sentindo­‑se finalmente em
casa, ainda mais do que se sentiria ao lado de sua mãe, porque o
mar era o local em que nascera sua alma.
Quando ela finalmente saiu para a areia, ofegante e cheia de en‑
tusiasmo, o menino estava sentado na praia, esperando por ela.
— Tu nada que nem uma toninha — disse ele.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Você tem nome? — indagou simplesmente, ao sentar­‑se ao


lado dele.
— Césaire — foi a resposta.
— Suponho que você seja escravo do fabricante de velas...
— Não, senhorinha, eu não sou nenhum escravo. Eu tenho mi‑
nha carta de alforria...
— Você é forro? É... livre? — indagou ela, sentindo uma estra‑
nha sensação de inveja ao pronunciar a última palavra.
— Sou, sim, senhorinha. O Amo me deu a liberdade, ou pelo
menos, fui eu que ganhei ela, costurando vela. Eu estive rasgando
os dedo por dez ano, já fiz cem vela e todas ela estão nos navio, se
enfunando nos vento agora mesmo.
— Então você ainda tem de trabalhar para seu patrão até acabar
de se pagar — disse ela, com ar de superioridade. — Foi o que eu
pensei. Você é forro, mas não está livre de verdade.
— Bem, isso mostra o que tu não sabe. Eu já tive até no mar, como
auxiliá do fabricante de velas. E vai tê um dia que eu vô saí que nem tu
— vô viajá pra casa — pra África — disse Césaire orgulhosamente.
— África!? Mas como você sonha alto!
— Eu vim de lá quando era nenezinho, lá no fundo do buraco
negro. Mas eu vou vortá como marinheiro, tu só espera pra vê.
Essa vela que tu tava escondida embaixo, era uma mezena real
superior. E fui eu que fiz essa vela. Amanhã de manhã ela vai
prum barco que tá no porto, uma escuna que vem das América
do Norte.
— América do Norte? — exclamou Angelique. — E esse barco
veio do Maine, você sabe?
— Bem, sabê ao certo eu não sei, mas é um barco de vaivém, ele
vorta todas as estação pra trocá tabaco por rum e armas. E ainda
leva uns escravo de contrabando.
— Eu não acredito que foi você mesmo que fez essa vela para a
escuna — comentou ela —, porque, se fosse, você saberia se ela veio
do Maine. Decerto isso tudo que você me contou provavelmente é
um monte de lorotas!

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Lara Parker

Ela se ergueu, subiu da praia e começou a caminhar de novo es‑


trada acima, seguindo a senda ao redor da laguna. Como já passava
da meia­‑noite e não havia ninguém por perto, Césaire tinha desis‑
tido de segui­‑la de longe e agora caminhava ao lado dela. Mas a
única coisa que conseguiam ver era a espuma brilhante nas praias
do mar, a longa estrada pálida e as dunas que se erguiam do oceano
até a orla da floresta. Tudo quanto escutavam era o barulho de sor‑
vedouro da maré baixa e milhares de sapos cantando no meio do
mato: “Coqui! Coqui!”.
— Por que tu é tão amarga? — perguntou Césaire.
— Isso não é da sua conta — disse ela, com raiva. — E por que
você resolveu ser o meu guardião?
— Ora, eu cá pensei que tu podia tá querendo ti destruí. Tu tá
fugindo, não tá?
— Sim, estou... e daí?
— Tu tá fugindo de quê?
Ela pensou em lhe contar, mas não conseguiu responder. A
dura lição do segredo tinha sido enterrada fundo demais em
sua alma.
— Por que tu tava lá no castelo? — ele persistiu.
— Ele pertence a meu pai, Théodore Bouchard — admitiu ela.
— Tu conheceu a garotinha que se afogô?
— Sim, conheci — disse ela. Após uma pausa, acrescentou: —
Ela era minha amiga.
— E por que ela feiz aquilo? — ele indagou, surpreendendo­‑a.
— Fez o quê?
— Por que ela se jogô no poço?
— Mas ela não...
— Aquele Monsiê Buchá dizeu que ela era cavalo da deusa Erzu‑
lie, que montô nela e a obrigô a fazê aquilo. Que a loá deixou ela
louca e que ela se jogô dentro do poço.
— Não, não foi desse jeito, de maneira nenhuma! Isso mostra
como você é estúpido em acreditar numa coisa só porque lhe dis...
— Angelique começara a explicar, quando subitamente prendeu a

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

respiração no meio de uma palavra, enquanto seu coração pulava


uma batida.
Bem lá de trás, estrada abaixo, um cavalo se aproximava a pleno
galope. Ela olhou em volta, apavorada, mas Césaire puxou­‑a por
um braço e a arrastou para uma valeta à beira do caminho e a se‑
guir se escondeu ao lado dela, protegidos pelo capim alto.
Os dois ficaram deitados, respirando devagar no escuro, es‑
perando enquanto o barulho dos cascos se aproximava e a se‑
guir trovejava acima de suas cabeças, a uns dois metros de
distância, antes de o som ir diminuindo progressivamente na
distância, estrada acima. Angelique estava tão aterrorizada, que
tinha medo até de se mexer e ficou ali, enterrada embaixo dos
caniços duros, perto de Césaire o suficiente para escutar as bati‑
das dos corações dos dois, como dois malhos em uma bigorna.
Finalmente, ele sussurrou e mesmo aquele leve som fez com que
ela pulasse num sobressalto.
— Ele já si foi. Ele não viu nós nem nada. Nós era que nem pedra
no riacho, mim e tu, mim preto e tu prateada, nós dois escondido
nos fundo das água.
Ela suspirou e deixou o medo escorrer para fora de seu coração.
— Farta muito pra tua casa?
— Não sei — ela respondeu. — Não pode ser muito mais longe,
mas é difícil de dizer, assim no meio do escuro.
— Tarveis tu devia esperá pela manhã. Aí vai tê gente pela estra‑
da, indo e vindo, e tu não vai chamá a atenção. Eu até podia drumi
um pouco agora, tu não?
— Eu não estou cansada — disse ela, sonhadoramente. Seguiu­
‑se uma longa pausa.
— Tu já teve com um rapaiz antes? — ele perguntou baixinho.
— O que você quer dizer, “teve com”? — falou ela, intrigada.
— Quer dizer... sozinha...
Ela estava a ponto de perguntar: “Como estamos agora?”, mas
seu orgulho a impediu e ela se recordou da noite em que Barnabas
tinha entrado em sua liteira.

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Lara Parker

— Bem... sim... Uma vez — respondeu.


— Só uma veiz?
— Sim.
— Bem, foi ansim comigo também. Uma veiz. Ela mora em
Saint­‑Pierre e o nome dela é Tippi. Tippi, a joia da noite...
Os dois ficaram deitados no meio do capim e olharam para as
estrelas luzindo em cortinados de seda e renda fina.
— Obrigada, Césaire, por não ter desistido de me ajudar —
disse Angelique.
— Eu acho que tu merece. Tu é uma guria corajosa — respondeu
o rapazinho.
— Por que você diz isso? — perguntou ela.
— Purque eu vejo tu — disse ele, simplesmente. — Tu tem cora‑
ção pra pegá o que tu pensa que é teu. E essa é a mió coisa que ensiste.
Tu viu tua chance e pegô ela. Foi tua mamãe que te ensinô isso?
— Ah, não sei — disse ela, suspirando.
— Bem, esse teu coração corajoso, ele vai ti dá fortuna e ele vai
ti dá dor — declarou ele, como quem já tem experiência. — Tu já
sabe disso?
— Não...
— Uma porção de coisa vem pra ti e uma porção de coisa tu
perde — explicou ele. — Si tu escoie um coração corajoso, tu tem
de tê coragem o tempo todo, porque é uma carga pesada pra si car‑
regá. O furacão arranca o ninho da fragata e os corvo vêm e mata
seus fiotinho, mas ela continua voando mesmo ansim.
Foram as últimas palavras que Angelique ouviu antes de pegar
no sono e, com Césaire de seu lado, ela se sentiu segura pela primei‑
ra vez em muito, muito tempo.
Subitamente, o rapazinho a estava sacudindo e dizendo:
— Eu tenho de ir agora. Eu tenho de ir antes que descubram que
eu não tô em casa. Tu encontra o caminho de casa?
Ela sentou­‑se. A aurora já começava a jogar listras pelo céu e o
mar se balançava contra a areia dourada, macio e azul, sua espuma
mais limpa que leite fresco.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Estou vendo a choupana! — gritou ela, levantando­‑se. — Está


lá adiante, do outro lado da laguna!
— É aquela caixinha... Bem lá longe?
— Sim, é ela! Aquela é minha casa! Ah, eu lhe agradeço tan‑
to, Césaire!
Ela passou os braços ao redor do pescoço dele e o beijou no rosto.
— Você me trouxe até a sua casa!
Ele abaixou o rosto para vê­‑la e ela ergueu o dela em sua direção
e os dois se viram claramente pela primeira vez à luz da manhã. Ele
era preto como um carvão e seus olhos eram cor de ébano e então
ele falou com a voz trêmula:
— Me diz teu nome. Quero pensá em ti. Quando eu já tiver
no mar...
— É... Angelique...
— Bem, adeus, Angelique — disse ele — e boa sorte também.
O rapaz girou nos calcanhares e começou a correr pela estrada
de volta a Saint­‑Pierre.
Ela estava preocupada com o cavaleiro da madrugada. Poderia
ter sido o seu pai? Mas lá estava a casinha, solitária sobre a areia e
quando ela fez a curva na praia, não viu cavalo algum. Seu coração
começou a bater de exultação e ela imaginou o rosto de sua mãe,
pensou escutar o seu grito de felicidade, sentir o peito macio de sua
mãe contra suas faces. Nunca, nunca mais ela sairia de perto dela...
Mas quando se aproximou, sentiu uma pontada de desaponta‑
mento. Os estipes lustrosos das bananeiras estavam caídos, frouxos
e quebrados e a horta que sempre estivera tão verde e alegre, estava
seca, só a terra amontoada ainda indicava onde tinham estado os
canteiros. A casa que fora pintada com tinta vermelho­‑coral estava
agora tão desbotada e pálida como a areia sobre a qual se erguia e os
postigos lavanda tinham caído, com a exceção de um só, ainda pen‑
durado por uma única dobradiça. A palha que cobria o teto estava
frouxa e achatada, fosca e cinzenta sobre os postes balançantes do
pequeno alpendre e até mesmo a porta estava aberta, mostrando
uma sala deserta.

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Lara Parker

Ela chegou mais perto e pisou no degrau de entrada. A casa esta‑


va totalmente despida de vida, como se ninguém jamais houvesse
morado ali. Ela caminhou devagar pelas pecinhas e ficou parada
um momento em seu quartinho, que parecia agora tão pequeno,
empoeirado e abandonado. Uma brisa soprou lá fora, atravessou a
porta e varreu uma nuvem de areia pelo piso.
— Mamãe? — ela gritou, incapaz de compreender o nada em que
sua casa aconchegante se tornara. — Mamãe! — gritou. — Mamãe!
Caminhou até a porta dos fundos e abriu­‑a lentamente. Um ca‑
valo relinchou e ela escutou o ruído de seus cascos escarvando a
terra. O animal estava amarrado pelo freio ao estipe de uma bana‑
neira quebrada, movendo a cauda para espantar as moscas, esfre‑
gando o focinho vigorosamente contra uma das patas dianteiras.
Quando ele a viu, ergueu a cabeça para contemplá­‑la melhor, pis‑
cando os olhos. Além da casa, as palmeiras inclinavam suas frondes
de folhas parecidas com longas penas verdes e esgarçadas, como
asas gigantes obscurecendo o mato, tremendo um pouco, depois
ficando imóveis. Ela gelou, ao ver seu pai sair cambaleando do meio
das árvores, abotoando as calças. Ele ergueu a cabeça em sua dire‑
ção num movimento rápido e armou uma carantonha e quando ela
viu a expressão assassina daquele rosto, o sangue correu para aver‑
melhar suas próprias faces.
Havia uma enguia gigante que habitava uma fenda do segundo
recife além das grutas à beira­‑mar, e o animal despertava nela um
medo tão primordial, que ela estremecia cada vez que a avistava. Ela
sentiu a mesma repulsa agora, enquanto olhava para seu pai, que
balançava nos pés, seus olhos avermelhados. Ela sabia qual era a
fenda em que morava a enguia e sempre guardava uma boa distân‑
cia, algumas vezes enxergando de longe seu focinho rombudo e
olhos malignos quando a luz do sol atravessava a água e serpenteava
até sua cova. Sua mãe lhe dissera que enguias eram preguiçosas e
que jamais a perseguiriam, mas ela tinha certeza de que esta a mor‑
deria, porque tinha várias fileiras de dentinhos pontiagudos e um
costume maldoso de mastigar a água ritmicamente, uma ação tão

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

nojenta, que lhe dava comichão sob os braços e provocava um late‑


jar doloroso no meio de suas pernas.
Essa mesma sensação a acometeu agora, enquanto seu pai dava
um passo desajeitado em sua direção.
Certa vez, no final de uma tarde, quando ela estava flutuando
sobre o grande banco de coral redondo e enrugado que chamavam
de “coral de cérebro”, atrás do qual ficava a cova da enguia, ela vira
a criatura emergir para buscar comida. Primeiro a cabeça, depois o
longo corpo gordo e borrachudo — com três metros ou três metros
e meio de comprimento — deslizaram para fora do buraco e come‑
çaram a escorregar através dos corais brilhantes, espalhando um
cardume de peixes­‑anjo e se movendo mais depressa que uma cobra
pelo fundo arenoso. Ela tinha grudado os olhos na enguia, com
medo de respirar ou de mover as pernas para tomar impulso e na‑
dar para longe, do mesmo modo que estava agora, olhando através
do pátio para seu pai, paralisada por um medo tão grande que nem
conseguia compreender.
Ele piscou para ela, como se pensasse que ela não era de ver‑
dade, então seu cérebro embriagado finalmente concluiu que era
ela mesma que estava parada ali. Seu rosto estava contorcido de
raiva, mas um sorriso mau começou a se espalhar aos poucos
através da careta.
— Quis fugir de mim, não foi? — praticamente grunhiu, sua voz
rouca e estrangulada no fundo da garganta. — Vou te arrancar a
pele dos ossos, ah, se vou! — prometeu, dando mais um passo in‑
certo. — Ao diabo contigo e com tua impudência! Mas o que é ne‑
cessário para te conservar trancada? Tu és uma puta do diabo, ah,
tu és, mas eu vou bater em ti e não vou parar até que o demônio
saia, ah, se vou!
Por um momento, ela pensou que fosse desmaiar e fez um movi‑
mento ineficaz com os braços balançando no ar, como se estivesse
nadando, tentando tomar impulso para trás. Mas ele saltou em sua
direção e a prendeu nos braços como se fosse um torno, antes que
ela pudesse se mover ou gritar. Ela percebeu que ele era mais uma

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Lara Parker

besta­‑fera que um homem no momento em que a apertou contra


seu peito, forçando a respiração para fora de seus pulmões e
sufocando­‑lhe o rosto contra o tecido grosso da camisa. Ela o sentiu
tremer como se o medo que ela mesma experimentava nesse instan‑
te se tivesse derramado e entrado no corpo dele e sob seu peito ofe‑
gante ela sentiu a angústia da frustração que seu pai sentia.
— Por que você me desrespeita? — ele gritou, sua fala pastosa
por causa do rum. — Por que me trai? Por que me desafia? Você
quer me matar?
Ele a empurrou para longe de si, mas sem largar e cravou­‑lhe os
dedos no pescoço e depois os enroscou em seus cabelos, empurrando­
‑a para o chão.
Ela gritava de terror, seu coração trovejando. Então ela escutou o
cinto dele silvando no ar e ela era Suzette, enquanto o relâmpago
quente lhe escaldava as costas e ela era Chloé, enquanto mergulha‑
va no negror antes que chegasse o golpe seguinte e ela viu a enguia
de novo, suas mandíbulas imensas se abrindo e fechando, saindo
centímetro após centímetro de sua fenda no coral, um momento
antes que as águas escuras a engolissem inteira.

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Dez

ngelique foi enfeitada com o vestido branco para a cerimônia.


Os tambores estavam ressoando há horas, mas Thaïs não apa‑
recia para levá­‑la e já estava quase na hora em que deveria aparecer.
Finalmente, foi Suzette que veio buscá-la — Suzette, que a odiava.
— Ti mexe logo, sua pesti i num mi cria pobrema!
Elas desceram a escada compassadamente e seguiram pelo subter‑
râneo até o quartinho por detrás do altar e Angelique se surpreendeu
ao ver que, depois de todos esses meses, as figuras de argila ainda es‑
tavam ali. As pequenas pessoas, árvores e choupanas da plantação,
tudo estava no mesmo lugar em que ela e Chloé as tinham deixado.
A boneca que representava Angelique ainda estava caída sem cabeça
no piso sujo, com a boneca de Chloé a seu lado, o cordão negro reben‑
tado ainda por trás do pescoço. Ela olhou para os brinquedos, sem
sentir nada, nem remorso, nem tristeza. Parecia­‑lhe estranho que ti‑
vesse brincado tanto tempo com uma coisa tão boba.
Quando ergueu a boneca que representava Chloé, os olhos de
conta a contemplaram e ela sentiu um impulso súbito. Arrancou

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Lara Parker

uma mecha dos cabelos pretos e encarapinhados e estendendo a


mão para o cordão de couro ao redor de seu pescoço, desatou o nó
que prendia seu uangá. A selenita brilhou dentro do chumaço de
ervas ao lado da caveirinha da jararaca. Ela enfiou a madeixa de
cabelos enroscados dentro do saquitel, apertou o cordão bem firme
e colocou tudo de volta ao redor de seu pescoço.
— Qué qui vancê tá fazeno cum issu? — indagou Suzette,
cheia de suspeita. — Vê si vancê si senta agora quieta e num si
mexe mais.
— Não! — disse Angelique com raiva. — Você não é ninguém
para me mandar fazer coisa nenhuma! — exclamou, enquanto es‑
magava os brinquedos debaixo dos pés, jogando­‑os de um lado
para o outro, destruindo as figurinhas de argila até que todas se
transformassem em poeira.
Os tambores da capela pulsavam e o som inundava a peça em
que estavam. Começou a ouvir os gritos da congregação de escra‑
vos, cada vez mais altos e insistentes, invocando os mistérios e con‑
jurando os espíritos.
— Carrefour! Saint­‑Michel! Grand Père Eternel! Luc! Marc! Lou‑
is! Baron Cimetière! — repetiam os adoradores em uma cantilena
infindável, cada nome repetido como um grito sonoro. Eles canta‑
vam a litania monótona sem pausa, até que de repente, ela percebeu
que os nomes haviam mudado. Agora eram “Elá Fredá! Sainte
Vierge­‑Marie! Erzulie gê Rouge!”
— Vancê entra agora — disse Suzette. — Tá na hora.
De má vontade, Angelique passou por baixo da cortina. Sua
mente estava confusa esta noite e sentia­‑se aborrecida com a ceri‑
mônia. Observava tudo friamente, impassível, considerando se de‑
via expor aos negros todos os seus segredos.
Chloé lhe falara a respeito do hungan, que era o líder e ela procu‑
rava entre os corpos ondulantes qual deles poderia ser. Seu pai não
estava à vista, mas ela percebeu um homem mais velho, de cabelos
grisalhos, que jogara um saco de farinha de trigo no chão e cravava
nele uma agulha puxando linhas finas entrelaçadas até criar um

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

desenho fantástico. Ele ergueu um vaso de barro e espalhou um lí‑


quido amarelado por sobre os quatro cantos do padrão que dese‑
nhara. Instantaneamente, os tambores que haviam silenciado por
um momento retornaram à vida, agora com um ritmo novo, vivo e
palpitante e o hungan começou a cantar, enquanto sacudia acima de
sua cabeça uma cabaça comprida, de que tombavam contas e ossi‑
nhos. Ela reparou que os corpos dos escravos que dançavam esta‑
vam recobertos por uma pasta branca e espessa, mas o suor abria
sulcos brancos pelo meio dela e suas peles negras brilhavam, refle‑
tindo a cintilação das velas.
Uma fogueira já em brasas fora acesa junto à base de sua plata‑
forma e inhames recobertos de farinha estavam sendo jogados nela
para cozinhar. A fumaça de cheiro acre subiu­‑lhe até as narinas.
A seguir, ela escutou um guincho amedrontado que se erguia
acima do barulho dos tambores pulsantes e um dos dançarinos sal‑
tou para frente, carregando uma galinha de penas brancas pendu‑
rada pelas patas e batendo as asas em vão. Ele segurou­‑lhe as patas
com as duas mãos e as quebrou com um estalo nauseante, depois
colocou a galinha sobre a cabeça, em que ela se debateu por alguns
instantes, mas depois ficou imóvel, seus olhos fixos e vermelhos.
Era um espetáculo quase cômico, ele parecia estar usando um cha‑
péu de penas, até que o hungan se inclinou para a frente, estenden‑
do os braços, pegando a ave e lhe arrancando a cabeça com as mãos
nuas, que se soltou do corpo tão facilmente como se tivesse sido
cortada com uma faca aguçada e invisível. O sangue escorreu pelo
rosto do dançarino.
Angelique dobrou­‑se para frente, escutando com toda a atenção,
tentando entender o balbuciar do feiticeiro. Todos os loás estavam
listados em seu livro e ela imaginou se seria capaz de reconhecer
qual era o que estava a possuir o corpo do dançarino, “montando”
nele como se fosse um cavalo e produzindo aquela algaravia incom‑
preensível por meio de sua boca.
Ela o contemplou com uma fascinação fria, tentando decidir se
ele estava só fingindo ou se realmente tinha sido tomado por algum

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Lara Parker

espírito. Quando ele se aproximou dela, viu que seus olhos tinham
rolado para dentro de suas órbitas e ele a encarava com fendas de
um amarelo cremoso. O sangue escorria por sua testa lustrosa e lhe
descia até a boca macia, enquanto a pasta branca se amolgava com
o suor descendo em torrentes pelo seu peito.
Subitamente, ela teve um sobressalto quando uma pedrinha
tombou sobre a plataforma à sua frente. Instintivamente, ela es‑
tendeu um dos braços e a segurou. A pedrinha estava quente, era
cor de cobre e, embora os olhos do homem estivessem vazios e
agora parecessem tão amarelos como uma ferida cheia de pus e
ainda que seus lábios não se movessem, ela o escutou sibilar:
“Chloé, Chloé, Chloé...”
Um suspiro pareceu ser emitido em coro por todos os outros
adoradores. Eles recuaram, como se o companheiro fosse uma
criatura maligna e o medo era palpável no ar, como um cheiro
real. Ele ondulava e estendeu os braços para ela, seu rosto uma
máscara sem olhos. Um som como o coaxar de um sapo abriu
passagem pela sua garganta e seus longos dedos tocaram de leve
suas pernas. Mesmo ao se afastar de seu contato, ela sentiu uma
espécie de comichão viajar por todo o seu corpo, como se peque‑
nos insetos estivessem caminhando por debaixo de cada centíme‑
tro de sua pele.
Subitamente, ele estremeceu e pulou sobre o altar e os tambores
trovejaram como ondas de tempestade a se quebrar contra os pe‑
nhascos e a penetrar pelas grutas submarinas, ecoando, enfraque‑
cendo e, no momento em que ele se inclinou sobre ela, seus olhos
ainda cegos, como se fosse um namorado a ponto de beijá­‑la, de
seus lábios brotaram chamas!
Ela engoliu em seco e recuou, sentindo inesperadamente que as
chamas eram frias, como fitas, fragrantes de perfume, envolvendo­
‑a em vagas de carmesim e ouro. Eram folhas — pétalas — em tal
profusão, que ela pensou que sufocaria sob a massa de botões cas‑
cateantes. Então riu, erguendo­‑se da pilha de delicados odores. Es‑
tendendo os braços para baixo, ela apertou braçadas de pétalas

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

contra o peito e as lançou como chuva pelo ar. Ela viu que as pétalas
flutuavam no ar e caíam sobre os adoradores amontoados, que esta‑
vam agora totalmente passivos e a encaravam, enquanto ela notava,
de repente, que cada rosto era belo e elegante, tal qual tivessem sido
todos esculpidos em madeira de ébano.
O rufar dos tambores entrou em seu corpo e ela começou a dan‑
çar, primeiro do jeito que havia dançado com Chloé, balançando
lentamente como uma criança a brincar de dançarina, depois mais
sensualmente, convidativamente, como se, pela primeira vez em
sua vida, ela percebesse as curvas de seus quadris e os pequenos
botões de seus seios. Ela estava dançando sem tirar o tecido frouxo
de seu vestido, mas era como se estivesse nua diante deles.
Nesse momento, o espírito entrou nela, enrolando­‑a em um ne‑
voeiro cintilante. Erzulie cantou sons estranhos com sua boca e An‑
gelique se retorcia e tremulava, esfregando seus próprios seios e
soluçando com uma tristeza profunda enquanto caía, tremendo
sob o poder da loá. Um a um, os adoradores se aproximaram e se
inclinaram sobre ela, debruçados sobre a plataforma, tocando­‑a,
beijando­‑a, seus lábios percorrendo os arcos de seus pés e suas per‑
nas tensas, suas mãos a lhe acariciar as coxas.
Ela não era mais a Angelique adolescente, pouco mais que uma
criança, mas efetivamente se tornara a própria deusa Erzulie, que
recebia ansiosamente suas bocas macias e as línguas que entravam
nela. Sobreveio um silêncio espiritual, enquanto os amantes encan‑
tados provavam sua inocência exuberante e eram escravizados pela
fonte da vida. Ela erguia os quadris e gemia, ansiando por alívio,
mas estava presa entre a possessão da deusa e as devoções dos ho‑
mens e o movimento de suas línguas e as leves mordidas apenas a
tantalizavam ainda mais.
Finalmente, com um grito de angústia, ela juntou os joelhos ou‑
tra vez, seus punhos se cerraram e seu rosto se contorceu com uma
dor tão aguda como punhaladas. Ela chorou baixinho, como uma
criança de colo, as lágrimas escorrendo­‑lhe dos olhos extremamen‑
te apertados e seu corpo se retorcendo de tormento. Os adoradores

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Lara Parker

lhe murmuraram palavras de consolo, cochicharam uns para os


outros e a acariciaram até que adormeceu.
Quando emergiu do transe, tinha perdido toda a lembrança de
sua possessão, salvo por uma espécie de comichão adejando dentro
de seu cérebro como a lembrança de um sonho misterioso.

* * *

Na manhã seguinte, Angelique sentou­‑se junto à janela, olhando


através do pátio para os alojamentos dos escravos. O dia estava
cruelmente quente, o céu mostrava um azul cegante. Ela olhou mais
além para os canaviais que pareciam ondas de espuma, os pés de
cana mais altos que os homens, os quais desapareciam no meio de‑
les. Nesta manhã, uma ideia excitante como um passarinho se ba‑
lançava nos galhos de sua mente.
Os espíritos eram reais. Ela nunca duvidara de sua existência,
desde que sua mãe falara deles pela primeira vez, mas agora aceitava
totalmente a existência corpórea dos loás. Ela ansiava por conhecer
mais. Sentia um parentesco espiritual com os escravos, porque, do
mesmo modo que eles, era uma prisioneira da violência e do medo.
Invejava­‑lhes a natureza volátil, seu fácil acesso aos deuses, enquan‑
to ela só podia agora voltar­‑se para dentro de si mesma como sua
única válvula de escape.
Depois daquela noite, a cerimônia se transformou em uma ob‑
sessão. Por longo tempo ela recitava e repetia baixinho para si mes‑
ma a encantação que escutara; aqueles cânticos melancólicos se
haviam transformado em melodias firmemente gravadas em sua
mente. Todo o tempo em que se achava sozinha era gasto com o
Livro dos Mistérios, lutando para traduzir as diversas línguas em que
se achava escrito a fim de decifrar todos os feitiços. As páginas reve‑
lavam os segredos da antiga magia africana. Angelique estudava
cada conjunto de regras até decorar as sílabas e os sons.
No quartinho que ficava atrás do altar, ela estudava as fórmulas
das poções e procurava nos frascos e garrafas das prateleiras, em

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

busca dos ingredientes corretos. Ela os colocava em ordem e os en‑


tesourava, ainda incerta sobre suas propriedades e propósitos.
Suzette a observava sem compreender.
— Qué qui tu tá fazeno, minina? Dexa essas coisa im paiz...
— Se você não gosta, olhe para o outro lado — falava Angeli‑
que com impaciência, continuando a cheirar e a provar todos os
pós e líquidos.
— Vancê é uma criança teimosa e impertinenti.
— Eu não sou mais criança.
A própria ideia da presença de seu pai a apavorava. Frequente‑
mente acordava durante a noite, quando os estalos das pás do moi‑
nho lhe invadiam os sonhos. Os guinchos das engrenagens eram
como a voz de algum demônio: ela ficava coberta de suor frio, seu
coração aos pulos, pensando que era o rangido da porta e que seu
pai havia subido até ali.
Depois de trazê­‑la de volta para o canavial, contudo, ele sim‑
plesmente a havia ignorado, exceto durante as cerimônias. Ela es‑
perava que, ao menos enquanto ela permanecesse fora das vistas
de todos e simplesmente executasse seus deveres de deusa, ele a
deixaria em paz.
Ela tinha agora plena consciência de como era valiosa para ele e
também para outros senhores de engenho, que haviam igualmente
começado a se envolver com o vodu africano dentro do maior se‑
gredo. Aos domingos, eles iam rezar na Igreja Católica, mas à meia­
‑noite, vinham assistir às danças.
Um dia, em que ela estava imersa em seus estudos, escutou a voz
de um homem na escada e sentiu um súbito medo, pensando que
fosse seu pai. Rapidamente enfiou o livro embaixo do colchão, mas
quando a porta se abriu, ela foi surpreendida pela presença de um
estranho. Mas logo a seguir reconheceu o padre jesuíta, o padre Le
Brot, que conversara com ela no primeiro dia de sua chegada, de‑
pois da experiência com os cães.
— Angelique — disse ele, com bondade — po... po... po...
posso entrar?

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Lara Parker

Ela simplesmente olhou para ele, confusa, incapaz de responder.


Parecia um emissário de outro mundo. Fez um sinal com a cabeça
para que Thaïs os deixasse a sós e caminhou até o lugar em que
Angelique estava sentada e, para seu espanto ainda maior, segurou­
‑lhe as mãos. Era um homenzinho gorducho e meio careca, com
um rosto vermelho sobre um pescoço carnudo, uma de cujas do‑
bras se projetava sobre seu colarinho. Seus olhos brilhantes e seu
sorriso jovial não podiam esconder como ele se julgava importante
a seus próprios olhos e ela recordou de que, quando ele falava, apre‑
sentava tendência a gaguejar.
— Co... co... co... como você está, minha querida? Eu esti... ti...
ti... tive pensando muito em você e imaginando como você estava
su... su... su... suportando sua provação.
O uso da palavra provação a encolerizou e imediatamente des‑
confiou dele. Caso seu pai tivesse mandado este homem para testá­
‑la, então era um tolo, porque ela nada revelaria.
— Não é uma provação ser Erzulie — disse ela, friamente, rejei‑
tando a condescendência detectada no tom de voz do padre.
O padre Le Brot suspirou profundamente e lhe fez um sinal
para que se sentasse na cadeira que ficava junto da mesinha em
que ela fazia suas refeições. Ele mesmo ocupou uma cadeira do
lado oposto e Angelique percebeu que ele estava perscrutando
seu rosto em busca de traços de tristeza ou debilidade. Ela não
mostraria nada.
— O que você quer de mim? — indagou, finalmente. — O que
veio fazer aqui?
— Eu vim para rez... rez... rez... rezar com você — disse­‑lhe.
— E por que quer rezar comigo? — pressionou ela.
Sua lembrança das freiras na escola católica junto ao convento já
estava meio apagada, mas ela sabia que suas preces melancólicas
sempre a haviam feito sentir­‑se culpada sem qualquer motivo. As
freiras a haviam ensinado a ler e a escrever, mas também a haviam
oprimido com suas ideias sobre religião como se ela estivesse con‑
denada desde seu nascimento.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Porque eu tenho grande preocupação com sua alma imortal,


minha filha — entoou o padre, cessando de gaguejar. — Você está
vivendo em um antro de iniquidade e participando de rituais pa‑
gãos que são a obra do Diabo! — concluiu, com firmeza.
— O Diabo? — ela engoliu em seco. — Mas eu nunca vi o Diabo!
— Aquelas danças, aquele frenesi, aqueles deuses falsos, os
horríveis sacrifícios... Minha querida — insistiu ele — você deve
saber que tudo isso é obra do Diabo e que eles são demônios saí‑
dos do Inferno!
— Eu não sei absolutamente nada disso! — exclamou ela, com
raiva. — Você acha que o Diabo está em toda parte!
Ele se acalmou, retornando à gagueira:
— Vo... vo... vo... você quer se confessar? — perguntou,
com gentileza.
— Não. Eu não tenho nada para confessar — respondeu­‑lhe. Ela
não confiava naquele homem e já estava ficando impaciente.
— Então rez... rez... rez... reze comigo — falou o padre, nova‑
mente lhe tomando as mãos.
— Eu não quero rezar coisa nenhuma! — respondeu ela, atrevi‑
damente e se levantou da cadeira, dando­‑lhe as costas e caminhan‑
do até o outro lado do quarto.
O padre Le Brot ficou meio atrapalhado, mas compôs seu rosto.
— Não, não, não, é cla... cla... cla... claro que você não quer —
aceitou ele. — Como eu sou bo... bo... bo... bobo. Vo... vo... vo... você
sempre reza junto com os escra... cra... cra... escravos, não é mesmo?
Mas me di... di... di... diga, minha querida, as pre... pre... pre... pre‑
ces deles são respondidas alguma vez?
Ela considerou a pergunta. Qual seria a natureza das preces de‑
les? Só podia imaginar. Será que os escravos rezavam pela liberdade
e por um retorno seguro até sua terra de origem? A impressão que
ela tinha era a de que eles nem pediam nada, só rezavam pela vida e
pelo êxtase da dança e pela oportunidade de se perderem de si mes‑
mos enquanto dançavam.
— Bem, eles rezam para mim — explicou.

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Lara Parker

O padre Le Brot pareceu totalmente aparvalhado e sacudiu a ca‑


beça. Ela ficou satisfeita por tê­‑lo confundido.
— E fique sabendo que os seus ricos senhores de engenho
também vêm à capela só para rezar para mim — ela acrescentou,
com um toque de arrogância. Ela pensou ver uma luzinha pis‑
cando nas pupilas do padre, como se ela tivesse confirmado uma
velha suspeita.
— Os plan... plan... plan... plantadores também vêm a estas...
estas dan... dan... dan... danças? — ele indagou, tartamudeando
mais que nunca.
— Algumas vezes — disse ela. — Erzulie concede seus desejos,
caso ela queira.
O padre Le Brot se ergueu e começou a caminhar pelo quarto.
Angelique ficou olhando seu hábito preto flutuando a seu redor e
percebeu o suor que se acumulava nas dobras de sua papada. Ela
imaginou que aquela sotaina e o mais que tivesse por baixo dela
deveriam ser muito pouco confortáveis no calor. Mas ele estava
imerso em pensamentos e custou a falar, sua voz mais cadenciada e
quase sob controle.
— Estes plantadores que vêm assistir a esses rituais, bem... de
muitas ma... ma... ma... maneiras, eles são tão... tão ignorantes
quanto seus es... es... es... escravos. As franquias da civilização não
os dotaram nem de com... com... com... compaixão, nem de humil‑
dade e eles se voltam para estas cel... cel... cel... celebrações primiti‑
vas por puro des... des... des... desespero!
— Eles sabem que Erzulie lhes poderá dar algumas coisas que
Deus nunca lhes dará — contestou Angelique firmemente.
O padre cruzou os pulsos por baixo de sua barriga redonda e
esticou bem as costas, como se estivesse a ponto de fazer uma pro‑
clamação de seu púlpito.
— Minha querida criança, você entende muito pouco dessas coi‑
sas — asseverou, sua voz quase totalmente controlada. — O maior
dom de Deus é a vida eterna. Para aqueles que têm fé, mil tesouros
os aguardam nos céus. Estes homens ga... ga... ga... gananciosos são

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

jogadores que cruzaram o oceano, porque outros iguais a eles fize‑


ram grandes fortunas no passado, apenas vendendo açúcar. Não
eram nobres e nem sequer cavalheiros de classe média na França.
Eram renegados ou, no má... má... má.. máximo, filhos mais moços
que não tinham terras e não dispunham de fortuna sequer para
comprar uma patente de ofi... fi... fi... oficiais no exército. Na cabeça
deles, Martinica era um lu... lu... lu... lugar em que eles poderiam
viver como reis!
Embora o seu sermão a aborrecesse, Angelique ficou intrigada,
vendo o suor escorrer­‑lhe pela face, imaginando novamente que
tipo de roupas ele usava por baixo da sotaina e que o deixavam as‑
sim tão acalorado. Mas o que estava por trás de sua prédica, ela
entendia perfeitamente. Ele tinha medo dos negros, como todos os
demais brancos.
— Ora, esses plantadores de cana vêm assistir à missa e fingem
ser devotos e... ah, sim, estão sempre prontos para condenar as he‑
resias, mas, para falar a verdade, têm pouca lealdade verdadeira
para com Deus Todo­‑Poderoso e não sentem o mínimo interesse
pela vida que há de vir. Os únicos tesouros que desejam são os ma‑
teriais, para serem obtidos aqui e agora! — continuou ele. — Mas
de uma forma ou de outra, o único jeito de obterem riquezas de‑
pende das mãos de seus escravos! Os plantadores, os senhores de
engenho, como você diz, podem ver isto e ao mesmo tempo, se re‑
cusam a ver. Eles temem os escravos, mas precisam deles, tanto de
seu suor como de suas superstições pagãs. Sem trabalhadores, eles
ficam inermes. E é por isso que os negros chegam em enxames para
as ilhas, seus números crescendo a cada dia que passa!
O discurso do padre Le Brot estava ficando apaixonado e, espan‑
tosamente, ele havia perdido totalmente seu gaguejar. Angelique
pensou que o padre parecia um baiacu malhado que acabara de le‑
var um susto.
— Chegam mais a toda hora! E eles ainda querem mais! — o
homem discursava. — Eles trazem as pobres criaturas para sua
condenação apertadas como lastro no porão de navios! Só para

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Lara Parker

plantar mais cana­‑de­‑açúcar! E para esmagar as canas e produzir


mais açúcar! E esses pretos infelizes não querem trabalhar e assim
eles os espancam até matar e mandam buscar mais! Esses brancos
inconscientes já são superados de vinte ou trinta para um! E no fi‑
nal, Deus não vai possuir estas ilhas, elas vão pertencer aos negros!
Esse é o plano do Diabo e foi o Diabo que plantou a ambição no
coração dos homens brancos!
Ele parou, recuperando o fôlego e ficou a encará­‑la, seus olhos
arregalados, quase se projetando das órbitas. Então pareceu recupe‑
rar sua compostura e, demonstrando um certo embaraço, quase
envergonhado, lhe falou com voz gentil:
— Lamento muito, minha filha, sei que essas coisas todas não
são mais do que um mistério para você e que você é incapaz de mo‑
dificar a menor parte delas. Se eu vim aqui, foi por sua própria
alma. Você tem de cuidar de sua alma imortal, Angelique.
— Onde fica minha alma, padre? — ela indagou, sem malícia.
— No meu coração ou dentro de minha cabeça?
— Minha filha, a alma é essa parte invisível de você que sobrevi‑
ve após a morte — disse o padre, sem lhe responder diretamente.
Uma nuvem caiu sobre sua disposição de ânimo. Por que este
padre inventara de lhe falar de morte? Aqui, bem ou mal, ela estava
protegida por seu pai e alimentada pelas escravas. Ninguém a ame‑
açava. Até mesmo as paredes da torre eram grossas e lhe garanti‑
riam a segurança, em caso de furacões. Ela decidiu que o padre Le
Brot estava somente repetindo aquelas palavras que ela já escutara
muitas vezes durante a missa, palavras que sempre a advertiam so‑
bre o castigo e a condenação que a aguardavam e, naturalmente,
falavam do Diabo. Então, notou que, passado seu entusiasmo, o pa‑
dre estava gaguejando de novo.
— Você está em um grave pe... pe... pe... perigo — advertiu-a.
— Por quê? Que tipo de perigo?
— Por causa da cerimônia.
Então era isso, suas suspeitas eram verdadeiras. O padre se sentia
ameaçado pelos rituais do vodu porque nunca havia assistido um,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

caso contrário, teria percebido que ela era o centro da dança e a


incorporação do espírito. Ele tinha vindo aterrorizá­‑la porque ele
mesmo andava amedrontado, mas não seria aquele homenzinho
que a assustaria.
— Não corro perigo algum — disse ela. — Meu pai tomou as
devidas providências. Ninguém ousaria me fazer mal.
— Seu pai? — inquiriu o padre Le Brot, erguendo as sobrance‑
lhas. — Quem é seu pai?
— Monsieur Bouchard.
O padre ficou espantadíssimo.
— Mas eu... eu... eu não percebera isso! — balbuciou, o tarta‑
mudeio voltando em plena força. — Como po... po... po... poderia
imaginar que Théodore er... que você é fi... fi... fi... filha dele!
Ergueu os braços para os céus:
— Oh, meu Senhor dos Céus, preservai­‑nos!
Com esta última exclamação, ele girou nos calcanhares para ir
embora. Mas voltou­‑se para ela ao chegar na porta.
— Eu vol... vol... vol... voltarei para vê­‑la — disse às pressas. —
Mas pense em tudo o que eu lhe disse. Eu vou rezar por você. E...
ora, eu... eu... eu... eu quase me esqueci! Misericórdia divina, o que
vai ser de mim se minha cabeça não melhorar? Eu lhe trou... trou...
trou... trouxe isto!
Ele retornou, enfiou a mão num dos bolsos da sotaina e retirou
um livrinho que colocou no tampo da mesa.
— Achei que você poderia gostar disto — falou e saiu rapidamente.
Curiosa, ela foi até ali e olhou para o livro. As palavras da capa
diziam: “William Shakespeare, Peças e Sonetos”.

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Onze

odas as manhãs, quando escutava soar o sino, Angelique se


levantava e corria até a janela. Observava os escravos arras‑
tarem seus corpos cansados até os campos, os mesmos escravos
que, algumas vezes, a haviam adorado na noite anterior. Ela re‑
cordava do rufar de tambores que dava vida às suas almas. Havia
pensado sobre as coisas que o padre Le Brot lhe havia dito e
sentia­‑se envergonhada por sua própria altivez. Ela nunca real‑
mente acreditara ser a fonte daquele poder, ela sabia que a ceri‑
mônia se teria realizado da mesma forma sem ela. O que a
transformava era a adoração dos escravos. Os tambores haviam
chegado da África, juntamente com sua profunda fé nos espíritos.
Era deles que provinha a magia invocada.
Ela sabia que era somente uma das corporificações da deusa do
amor e que os loás flutuavam pelos ares, ansiando para serem in‑
vocados, do mesmo jeito que Chloé havia chamado Guede, na noi‑
te em que morrera e ressuscitara só para morrer de novo pelas
mãos de seu pai. Eles voavam em círculos, esperando para descer,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

tentados por comida ou sacrifícios e, quando chegavam, cavalga‑


vam um dos dançarinos e falavam por intermédio dele. Angelique
começou a ansiar outra vez por receber o espírito de Erzulie.
Erzulie me protegerá, dizia para si mesma todas as noites, antes
de adormecer e novamente de manhã ao despertar e à meia­‑noite,
quando marchava para a capela. Ela começou a planejar sua própria
invocação. Seria simples e implorante. Ela apenas queria que a deu‑
sa entrasse nela mais uma vez, que a abraçasse, que a envolvesse
com suas ondas de prazer.
Certa noite, uma noite nublada em que o céu não mostrava qual‑
quer estrela, esperou que Thaïs adormecesse e então desceu pela
escada até o pátio, inclinou­‑se para traçar o vevé sobre as lajotas do
pavimento e acendeu as velas. Ela conseguira trazer flores da capela
— amarílis e poliantas — para lhe emprestarem suas cores e fra‑
grâncias, além de bolinhos de carne que havia separado de seu jan‑
tar e juntado durante dias.
Tinha também um prêmio, um pombo branco que capturara
em uma de suas janelas depois de espargir migalhas no peitoril du‑
rante semanas. Finalmente, ele ficara tão manso, que arrulhava
para ela a fim de acordá­‑la todas as manhãs e ela podia estender a
mão para lhe acariciar as penas trêmulas. Naquela manhã, ela o
acariciara de novo e dissera baixinho: “Venha, pombinho, não te‑
nha medo...”. Quando ele demonstrara a maior confiança, ela
apertara os dedos com firmeza, trouxera a ave para dentro e a em‑
brulhara em um retalho de pano de veludo.
Agora, ela o trazia dentro do vestido, apertado contra o peito,
pronto para Erzulie. Ela observava a cabecinha, virando­‑se rapi‑
damente para um lado e para o outro, os olhos brilhando e sentia
a vida morna pulsando dentro dele. Esperava que esta oferenda
fosse o bastante.
Segurou uma faquinha que contrabandeara do quartinho do
altar e, com o maior cuidado, cortou a garganta do pássaro vivo e,
enquanto ele ainda esperneava e se debatia, recolheu o fluxo de
sangue em um copo. Parando no centro do vevé com uma vela em

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Lara Parker

cada canto, ela começou a cantarolar, baixinho e ardilosamente:


“Erzulie Sévérine, Belle­‑Femme, La Sirène, Erzulie Bumbá, Fredá
Dahomin, Gê Rouge...”.
Depenou as plumas do pássaro, ainda macio e quente e as
lançou pelo ar como se fossem sementinhas de pólen. Balançan‑
do e se retorcendo, ela espalhou a poeira de uma poção que ela
mesma fizera, com ervas e farinha de osso trazidas do santuário
e então, fechando os olhos e tremendo, ela ficou bem ereta e be‑
beu todo o sangue do copo.
Ergueu os braços para o céu e clamou:
— Erzulie, Deusa, eu te invoco de dentro do rugido do trovão,
de dentro dos fogos de Mont Pelée. Eu te suplico que penetres em
mim quando eu me ajoelhar perante ti, Mystère, Madoná, Mbabá,
Muaná, Uaresá...
Com esta última invocação, ela caiu de joelhos e esperou de ca‑
beça baixa.
A princípio, foi só o silêncio, depois somente as flautas sopradas
pelos sapos e rãs do banhado e, lá bem distante, os sons do mar.
Sentia­‑se frágil e despreparada, depois inteiramente indigna. Subi‑
tamente, seu corpo começou a tremer com um calor formigante,
que subia desde seus pés e chamejava através de seu torso. Sua men‑
te se fixou na imagem de uma minúscula flama e a centelha foi
crescendo e cintilando, como se a atmosfera estivesse fraturada em
enxames de cores e ela podia ver as nuances das moléculas do ar
dançando a seu redor em arco­‑íris rachados.
Houve um som como de um zumbido anasalado, como se o éter
estivesse vivo, uma coisa com vida própria, pulsando e respirando e
seus dedos a acariciavam, cantando e gemendo. O murmúrio foi
crescendo, pungente e vibrante, até atingir uma altura de som agu‑
da e excruciante, uma trovoada que reunia forças, subindo de tom,
expandindo­‑se, explodindo no estrondo esmagador de um trovão
tão ensurdecedor, que ela pensou que lhe esmagaria o cérebro.
Um nevoeiro encheu o pátio e vozes gemiam ao vento, dissonan‑
tes, fantasmagóricas. Ela sentiu o odor de peixes mortos e apodrecidos

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

no sol. Havia agora uma figura, com formato humanoide, mas não
feminina, certamente não era Erzulie, que oscilava na obumbração,
a silhueta de um homem, usando uma longa vestimenta e ao mes‑
mo tempo desnudo, magro e musculoso, seus tendões e músculos
protuberantes ensombrecidos, cintilando como uma chama negra,
mas denso, com aspecto plenamente corpóreo: braços e pernas e
uma face tão lisa quanto alabastro. Cabelos cor de ébano desciam
em ondas por sua testa e pela nuca, recobrindo­‑lhe os ombros.
Ele estava parado dentro de uma carruagem oscilante, as pernas
abertas, segurando as rédeas com as mãos, enquanto, flutuando
diante dele como se fossem arcos voltaicos, cavalos aveludados,
musculosos e tão escuros quanto o mar à meia­‑noite, pareciam su‑
bir e descer como num carrossel. A visão piscava, assumia uma for‑
ma nítida, depois desaparecia, somente para retornar uma vez mais.
Angelique sussurrou:
— Quem é você? Por que foi você quem veio?
Sua voz ressoou como o vento correndo sobre as águas.
— Porque tu me chamaste. Tu me arrastaste de meus sonhos
após séculos de sono. Mas tu ainda és uma criança, Angelique, jo‑
vem demais. Vejo como teu talento floresce e anseio para capturá­‑lo
e trazê­‑lo para dentro de mim até o centro do mundo, mas não ain‑
da, menina, ainda não.
E ele subia e descia enquanto falava, no mesmo ritmo criado pe‑
los cavalos, sua voz escovando­‑lhe o interior dos ouvidos e então se
dissipando nos canais da escuridão.
— Quem é você? — ela perguntou de novo, mas sabia, dentro da
parte mais profunda de si mesma, com um conhecimento que per‑
tencia à carne e ao sangue e não à sua mente, que ele era Lúcifer ou
algum outro Deus do mal e que ela o invocara por engano.
— Tu não te lembras? — sussurrou ele, sua respiração como fios
de fumaça.
— Não! Não foi você que eu invoquei! — disse ela, num mur‑
múrio. — Por que você veio? Eu não quero você aqui! — protestou,
tomada de pânico.

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— Vir? — disse ele, sua voz um suspiro. — Vir, minha querida?


Sim, vem comigo, deixe­‑me... te tocar, te sentir...
Ele saltou da carruagem ondulante e caminhou sobre as lajes
do pavimento e, por baixo das vestes escuras, Angelique divisou
os pés divididos como os cascos das patas de um bode e uma cau‑
da espinhenta. Ele chegou cada vez mais perto, pairando agora
junto dela, flutuando sobre ela. Ela sentiu uma punhalada fria
como um dedo de gelo, rasgando­‑a, penetrando­‑a e seu beijo era
como areia congelada.
Ela recuou.
— Não! Não me toque! Me deixe em paz! — gritou. — Eu não
quero você! Eu nunca quis você! Deixe­‑me!
Porém, ele suspirou como uma onda retornando, chupando a
espuma rodopiante e seu rosto se escureceu.
— Eu nunca mais te deixarei — avisou­‑a, sua voz agora como os
rugidos do Mont Pelée — mas tu és ainda jovem demais para esco‑
lher. Mas lembra­‑te de que eu estou contigo e somente eu te prote‑
gerei. Só eu te amo. Eu sempre te amei.
Sua imagem se foi dissolvendo, sua voz fraca e distante.
— Eu jamais te desapontarei — chegou o eco amortecido. — E
jamais te abandonarei!
Veio então uma última palavra, profunda como um tremor
de terra:
— Nuuuun­‑nun­‑nun­‑nuncaaaa...
E então, ele sumiu.

* * *

A partir dessa noite, Angelique perdeu toda a paixão pela cerimô‑


nia. Um pavor mortal permeava sua mente e ela não mais ansiava
por receber Erzulie e nem tampouco queria mais aumentar seus
conhecimentos sobre os loás. Ela não mais respondia ao rufar dos
tambores ou às invocações dos escravos quando subia à plataforma
e seus gemidos continuados não lhe davam nem terror nem alegria,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

mas puro aborrecimento e indiferença. Contudo, ela passava os


dias no temor de que seu pai viesse vê­‑la e repreendê­‑la por sua fal‑
ta de interesse e todas as noites ela dormia e acordava continuamen‑
te, imaginando o retorno do misterioso Espírito Negro.
Certa manhã, ela acordou com o movimento de Thaïs, que esta‑
va em pé sobre o banco, logo abaixo de uma das janelas, fechando
as pesadas tapeçarias e cortinados.
— Por que você está fazendo isso? — perguntou. — Eu gos‑
to do sol.
— Chegô o tempo di si cortá as cana! — disse Thaïs. — Nóis
temo de ti movê pra fora da torri. Tem uns iscravu qui vêm conser‑
tá u muinhu e instalá us novo ismagadô que troxero pur todo u
caminho, desdi a França!
— Mas por que você precisa cobrir as janelas?
— U sinhô diz que vancê tem de continuá iscondida. Nem pensi
im chegá perto das janela agora, intendeu? Eli num qué essa genti
toda ti vendo.
— Você disse que eu vou sair daqui?
— Tá certu.
— Para onde?
— Ora, praqueli lugá qui vancê mi preguntô umas quantas veiz
— disse a escrava. — U sinhô dizeu pra botá vancê nu quartinhu
qui fica nu tercero andá.
— Ali na casa da plantação?
Um arrepio correu pela espinha de Angelique. Ficar mais perto
de seu pai, fosse em que lugar fosse, era seu maior medo.
Thaïs pareceu perceber sua inquietação.
— Mais num é hoji, minina. Tem genti dimais andano às vorta
pur aí. Nóis vai amanhã. Aí vancê tem tempo de juntá tudo u qui
quisé levá junto com vancê.
Mais adiante, nesse mesmo dia, Angelique escutou gritos no
pátio e, como Thaïs não se achava à vista, trepou no peitoril da
janela para espiar para fora por uma fresta entre as cortinas,
sem ser vista. Havia uma grande comoção lá embaixo. Alguns

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Lara Parker

escravos descarregavam um grande carro de boi e um imenso


conjunto de rodas de madeira com sulcos profundos foi sendo
colocado ao lado da torre. Seu pai, montado a cavalo, dirigia um
outro grupo de escravos que estavam carregando a terceira peça
da esmagadora para dentro e Angelique pôde ver uma enorme
roda dentada ainda dentro do carroção, sob diversos panelões
de cobre brilhante.
De repente, ela sentiu uma vibração dentro da torre e percebeu
que o grande poste localizado no centro de seu quarto estava come‑
çando a girar. Como estivera sem uso por um tempo longo demais,
gemia estridentemente como se estivesse a queixar­‑se e só lenta‑
mente começou a revolver, sacudindo a estrutura inteira como se
um terremoto estivesse fazendo estremecer as paredes espessas.
Do lado de fora, dava para escutar o barulho dos escravos que
haviam subido até o alto da torre do moinho e agora martelavam
a estrutura quebrada. Uma das enormes pás girou para baixo e
cobriu a janela, escondendo a luz. Através das cortinas, ela viu a
figura esguia e ágil de um rapaz negro. Ele estava esticando um
novo pano de lona sobre o braço da ventarola. Angelique estava
admirando sua agilidade enquanto ele se pendurava na imensa
armação em treliça, com a lona ainda drapejando ao vento, quan‑
do percebeu que era Césaire.
Ela afastou a cortina um pouquinho mais, só para ter certeza. O
braço da ventarola do moinho cobria completamente a janela, obs‑
curecendo o pátio e ele se agarrava ao arcabouço igual a uma rã
arbórea, sem dar a mínima para a altura, habilmente dando nós em
um pedaço de corda.
— Césaire! — ela chamou, em um cochicho de teatro. Ele girou
a cabeça e olhou em volta. — Aqui! Na janela!
Ele se balançou para mais perto da torre e prendeu um pé no
parapeito de pedra, aparentemente para se equilibrar melhor, mas
de fato para enxergar o interior do quarto escuro, apertando os
olhos, escondido pela imensa pá pendurada. Quando a viu, seu ros‑
to se iluminou com um sorriso.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Meu Deus! Angelique! É mesmo tu?


— Sim!
— O quê... por que tu tá aqui? — ele indagou, surpreso.
— Eu não consegui escapar.
— Que quer dizer? Tu não achou tua mãe?
— Não. E meu pai me encontrou e me obrigou a voltar.
— Ah, foi? Então tu tá... sozinha? Posso entrar para te ver?
— Ah, não! De jeito nenhum! — ela sussurrou. — E agora vá
para longe da janela. Ninguém pode ver você falando comigo. Nin‑
guém pode saber que eu estou aqui.
Ele franziu a testa:
— Quer dizer que tu é...
— Prisioneira. De novo.
Seu rosto se ensombreceu e ele mudou a posição na parede, ten‑
tando achar um jeito de chegar mais perto dela. Agarrou as barras
da janela pelo lado de fora e ficou pendurado precariamente ali, um
dos pés ainda apoiado nos caixilhos da treliça.
— Como é que eu posso falar contigo?
— Você não pode.
Ela começou a ficar assustada.
— Por favor, me deixe agora, Césaire, saia desse lugar, antes que
alguém o veja. Meu pai é um homem muito cruel. Ele...
Uma voz áspera subiu do pátio e Césaire rapidamente tomou
impulso contra a parede e firmou­‑se no arcabouço da treliça, mari‑
nhando por ela abaixo, até chegar ao chão. Correu para uma carro‑
ça e retirou outro pedaço de lona. Enquanto a erguia, espiou para
sua janela, piscando um olho e continuou com sua tarefa.

* * *

Mais tarde, nessa mesma noite, ela escutou um estranho som do


lado externo. Césaire tinha trepado outra vez pela pá do moinho e
estava batendo nas grades da janela. Thaïs estava dormindo, mas
Angelique não queria se arriscar a acordá­‑la com uma conversa e

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Lara Parker

lhe fez um sinal de que desceria a escada até o térreo. Segundos de‑
pois, estava no pátio.
— Césaire? — indagou em um cochicho abafado.
— Tô aqui!
Ela olhou para a extremidade do pátio calçado, onde ele era in‑
terrompido pela mureta que o separava do rochedo que descia ver‑
ticalmente até o mar. Ele estava sentado no alto da amurada.
Ela correu até ali e afundou no chão a seu lado.
— Eu não posso ficar — disse­‑lhe. — É perigoso para mim
falar com você.
— Olhe! — disse Césaire, apontando para uma pequena en‑
seada diretamente abaixo deles. A noite estava quente e as estre‑
las do céu tão luminosas, que pareciam uma nuvem de vapor. Ela
se arriscou a ficar em pé e olhou. Dali ela enxergava toda a exten‑
são do mar. Uma península longa e estreita se esticava como um
braço ao redor de uma curva, mantendo uma laguna em seu
abraço. Mesmo à luz das estrelas, ela podia ver as ondas batendo
e rebentando no recife exterior, mas o pequeno porto estava cal‑
mo junto dos penhascos que mergulhavam diretamente nas
águas profundas.
— Olhar o quê? — sussurrou.
— Lá embaixo — disse o rapaz. — Lá está a tua escuna do Maine.
Ela apenas conseguia divisar uma forma na escuridão, o sufi‑
ciente para reconhecer que era um barco ancorado, com duas pe‑
quenas luzes de bordo acesas, brilhando como estrelas que tivessem
caído nas profundezas.
— Tem certeza?
— Ah, sim. Eu conheço todos os barcos. Nenhum deles aporta
sem que eu saiba.
— Mas por que esse está aqui? Por que não está no porto de
Saint­‑Pierre?
— Ora, porque tá escondido. Esta enseada é boa ancoragem para
esperar durante a maré alta, que vai ser de manhã cedo. Ele atraves‑
sou a Passagem e agora tá esperando a hora de voltar ao mar com a

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

baixa­‑mar. Nenhum dos navios grandes vem aqui. São fundos de‑
mais e teriam um baita pobrema para cruzar aquele recife lá adian‑
te. Mas esse barco tem fundo raso e veleja fácil com o vento. Ele
corre por cima das ondas que nem um passarinho!
— Gostaria de estar nesse barco — disse Angelique, com
um suspiro.
— Não, tu não gostaria de estar a bordo dele — contestou Césai‑
re. — Esse barco é roubado e mesmo que se mova que nem uma
guria inocente, é de fato uma puta velha.
— Por que você diz isso? — quis saber Angelique.
— Porque transporta escravos escondidos no porão — respon‑
deu o rapaz, com a maior naturalidade.
Angelique se esticou por cima do parapeito, olhando para baixo.
— Eu não me importo — disse ela. — Eu também não passo de
uma escrava.
— Guria, tu não sabe o que tu tá dizendo. Um dia desses tu sai daqui.
— Meu pai não vai me deixar sair nunca. Além disso, não tenho
mais nenhum lugar para ir. Não sei o que aconteceu com minha
mãe, nem onde ela está.
Ela encarou o rosto de Césaire, cuja testa estava franzida.
— E... e eu nem tenho com quem conversar — disse ela,
abaixando­‑se novamente, seu coração doendo enquanto olhava em
volta. — Se meu pai nos encontrasse conversando deste jeito, ele
iria... — interrompeu­‑se com um estremecimento. — Você lembra
a menina no poço?
Césaire assentiu, seus olhos brilhando.
— O nome dela era Chloé. Nós brincávamos juntas, mas em se‑
gredo. Uma noite, o pai nos pegou e ele... e ele...
Ela se ergueu de repente.
— Não posso mais ficar aqui, Césaire. Eu nem devia ter descido...
— Espera — disse ele. — Eu tenho uma coisa para te contar. Tu
sabe o que vai acontecer? Tu pode sentir no ar? Escuta...
As ondas se quebravam contra os penhascos e mais longe, na
mata e nos banhados, ouvia­‑se o flautear dos sapos e das rãs. Bem

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Lara Parker

mais longe, ela escutou o som de tambores, mas isso não era nada
fora do comum. Rara era uma noite sem tambores.
— Está falando dos tambores?
— Sim. Os tambores tão cantando todas as noites. Sobre a revolta.
— Revolta?
— Têm escravos fugidos morando nas cavernas da montanha,
chamam eles de maruns e eles ganham força da cratera do Mont
Pelée. Eles descem às escondidas para as senzalas de noite e di‑
zem aos escravos: “Revoltem­‑se!” Eles dizem que devem lutar
pela liberdade.
— Liberdade?
Ela amava o som dessa palavra: era a mais bela que conhecia.
— Quando chegar a revolta, todos os blancs vão ser mortos. Eles
vão queimar as casas-grandes — todos os prédios — até os alicer‑
ces. Foi mais por isso que eu vim te contar.
— E os amos não suspeitam de nada?
— Quando a raposa não consegue saltar e pegar as uvas, diz que
tão verdes. Escute! São tambores Ibos. Os escravos do teu pai são
todos Ibos. Tu sabe de onde eles tiram esses olhos amarelos deles?
Angelique recordou­‑se de Chloé, sua pele acobreada e seus olhos
de um amarelo­‑esverdeado e assentiu com a cabeça.
— Aqui eles são gente tímida, melancólica, porque se sentem
desolados por terem sido arrancados para longe de casa. Mas na
África? Eles são canibais!
Ela estremeceu e ele riu ao ver como ficara assustada, seus dentes
brancos ao luar.
— E você é... Ibo?
— Não, guria! — disse ele, orgulhosamente. — Eu sou Mandin‑
go! Veja o meu cabelo, como é macio e sedoso. Claro que não, eu
não sou Ibo de jeito nenhum!
— Então você não sabe o que dizem esses tambores...
— Sei o suficiente — contrariou­‑a. — Escuta o que te digo. É a
história deles. Eles se levantam uma noite e tocam os fogos. Quan‑
do o tempo chega, eu te conto. Aí tu pode avisar o teu pai, e...

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Avisá­‑lo? — ela exclamou, sua respiração presa na garganta,


um bolo de dor quando tentou engolir. — Mas eu jamais o avisaria!
Espero que os escravos venham e toquem fogo no canavial!
— O quê? — falou ele, espantadíssimo.
— Só quero mesmo é que o matem! Adeus, Césaire! — ela gri‑
tou, dando dois passos para trás. Depois, girou nos calcanhares e
correu de volta para a torre.

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Doze

uando Angelique acordou na manhã seguinte, custou­‑lhe um


momento para recordar onde estava. Thaïs a acordara no co‑
meço da madrugada, levara­‑a até a casa­‑grande e a trancara em um
quartinho do terceiro andar.
Angelique olhou em volta de seu novo ambiente: uma cama gros‑
seira, um toucador e um piso de tábuas sem tapete. Correu até a úni‑
ca janelinha e olhou para a torre e para os galpões de armazenagem.
Havia uma grande atividade no pátio, muitos escravos trabalhavam.
Seu pai andava para cima e para baixo como uma pequena tempestade
— praguejando, queixando­‑se disto ou daquilo, sacudindo os braços e
volta e meia apontando para a torre. Ela ficou espantada ao ver que os
braços da ventoinha que deveria impulsionar as mós estavam girando
rapidamente e que as portas que davam para a bagaceira estavam aber‑
tas de par em par. Escravos estavam instalando as grandes rodas no lu‑
gar de tal modo que suas engrenagens superiores se encaixassem.
De repente, um dos homens soltou um grito e diversos trabalha‑
dores dentro da sala térrea da torre berraram com força em resposta.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Nesse instante, o moinho de vento estremeceu e guinchou. Movia­


‑se pesadamente sob a carga e as grandes rodas sob ele começaram
a girar. Uma grande exclamação de entusiasmo correu através da
equipe e todos os presentes se amontoaram dentro do salão térreo
para verem o mecanismo poderoso em funcionamento. Até mesmo
seu pai pareceu estar alegre, ou pelo menos, aliviado. Mas ele não se
adiantou para a porta como os demais, ficou parado sozinho, de
braços cruzados, já que podia ver as mós girando umas contra as
outras pela parte superior da abertura da porta.
O pensamento de ter de encarar de novo seu pai, agora que esta‑
va morando mais perto dele, fez com que ela estremecesse de medo.
Decidiu­‑se a permanecer tão quieta quanto um ermitão dentro de
uma concha nova, observando tudo ao seu redor com o máximo
cuidado. Ela imaginou quando seria a próxima cerimônia e subita‑
mente pensou que deveria trazer do quarto secreto vários pós de
que poderia precisar para sua própria proteção.
Enquanto o dia ia passando, Angelique começou a imaginar
se alguém viria buscá­‑la ou atendê­‑la. Fora acordada e trazida
às pressas e, apesar da sugestão da escrava, não trouxera seus
livros ou qualquer muda de roupa e até essa hora, ninguém
tampouco lhe trouxera comida. Foi até a porta experimentar a
fechadura e, para sua surpresa, descobriu que era uma coisa
primitiva, fácil de forçar com um grampo ou alfinete. Mas não
foi mais além do corredor escuro e deserto. Descobriu, ainda
mais espantada, que havia uma tranca de ferro pendendo de
um gancho na parede interna ao lago da porta e percebeu que
poderia se trancar por dentro.
Nesse momento, escutou gritos vindos do pátio e correu de volta
até a janelinha para vir dois carros de boi atravessando pesadamen‑
te o portão, carregados de cana­‑de­‑açúcar recentemente cortada.
Um grupo de vinte e poucos escravos descarregou as varas frouxas
e desajeitadas e as carregou até a moenda em que, com muitos gri‑
tos e movimentos desajeitados, forçaram as canas para o meio das
rodas de esmagar.

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Lara Parker

Ela olhou para o céu e viu uma longa coluna de fumaça escura
subindo de um dos galpões. Através das janelas da casa do engenho
ela enxergou as chamas refletidas nos fundos arredondados de
imensas caldeiras de cobre. No excitamento daquele primeiro dia
da colheita da cana, ela havia sido completamente esquecida.
Finalmente, já no fim da tarde, Thaïs apareceu com uma bande‑
ja de comida. Ela parecia exausta, suas roupas estavam imundas e,
depois de lhe entregar a bandeja, ela desabou em um banquinho
que encontrou num dos cantos do quarto, deixando cair a cabeça
contra o peito.
— Thaïs? O que aconteceu com você? — indagou Angelique.
— Elis mi mandô cortá cana, minina, i isso acabô comigu.
Ela ergueu as mãos inchadas com cortes e vergões rubros de san‑
gue coagulado. Angelique prendeu a respiração.
— Mas por que você foi mandada para os campos? Sua função
não é cuidar de mim?
— Tudo nóis fumo; tudo nóis tá imbaixo du chicoti agora... —
explicou ela, erguendo um olhar triste para Angelique.
Angelique percebeu então que as exigências da colheita consu‑
miriam todo o tempo e energia de todos os moradores do canavial
e que ela seria ignorada durante esse tempo.

* * *

Antes que muitos dias se passassem, ela já começara a explorar a


mansão vazia. A maior parte dos quartos estava deserta, salvo por
uma ocasional mesa torneada ou um banco de madeira esculpida
encostado a um canto. A poeira se acumulava nos cantos, os espe‑
lhos estavam baços de fuligem e grumos de poeira; velas pela meta‑
de, com lágrimas longas de cera derretida grudadas nos flancos,
encolhiam­‑se em candelabros apagados; e todos os postigos esta‑
vam trancados por dentro, sem permitir a passagem do sol. Mas ela
pôde perceber que, em tempos passados, aquele tinha sido um cas‑
telo aristocrático e elegante. Os assoalhos eram marchetados com

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

parquete em figuras complicadas, recortados de madeira de lei ou


de madrepérola, havia vitrais coloridos com caixilhos de chumbo
instalados em janelas ogivais colocadas a meia distância das espes‑
sas paredes de pedra e, em algumas das salas, até mesmo grandes
tapeçarias desbotadas e sujas pendiam das paredes.
Em contraste com a tristeza e abandono reinantes nas salas do
castelo, o pátio era uma colmeia de vida, em que enxameavam os
trabalhadores negros. Desde uma hora antes do romper da alva,
quando alguém assoprava em uma grande concha à guisa de cla‑
rim, até muito além da meia­‑noite, os escravos labutavam. O traba‑
lho seguia um padrão inexorável. Os carros de boi vinham dos
canaviais com as rodas guinchando pela estrada e estrondando nas
lajotas do pavimento até perto do moenda acionada pelas pás do
moinho de vento, carregados de cana­‑de­‑açúcar empilhada até duas
vezes a sua altura, os bois mugindo com o esforço de transportar a
carga. As pilhas se amontoavam a grande altura contra as paredes
da torre e da casa­‑grande; as rodas de esmagar roncavam e as canas
gemiam ao serem esfaceladas; as pás do moinho resmungavam ao
sabor do vento; e a chaminé alta das caldeiras vomitava seus gases
escuros e venenosos contra o céu cor de turquesa.
Thaïs se revelara fraca demais para o labor nos canaviais e fora
agora designada para alimentar as fogueiras. Quando ela subia ao
quartinho de Angelique, de seu corpo ainda pingava suor, suas rou‑
pas estavam empapadas e um cheiro doce de melado emanava de
sua pele. Mas todas as noites ela lhe trazia uma refeição simples,
mas substanciosa e sempre aparecia arrastando os pés de cansaço.
Certa noite, ela se movia tão lentamente, que Angelique a contem‑
plou com um certo grau de preocupação.
— Thaïs? O que está errado com você? — indagou.
A pobre escrava começou a chorar.
— Eli mi bateu... — disse numa voz quase inaudível.
— O quê? Onde?
Thaïs ergueu lentamente a camisa até o pescoço e lhe mostrou as
costas. Estavam entrecruzadas de faixas ensanguentadas.

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Lara Parker

— Mas por quê? Por que ele fez isso com você?
— Elis deu orde pra pará as caldera, mas era tardi dimais. O
xarope ficô duro qui nem pedra e si estragô. Bem qui eu dizeu, tá na
hora de fechá us fogo, mas u homi encarregadu, o Lazaire, eli tinha
a várvula nas mão e eli dizeu num tá na hora ainda. Sim, eu diz
preli, tá na hora, sim! Agora! Mais o Lazaire mi mandô calá minha
boca preta i num feiz! Aí as ispuma ficaro tão arta di fervê, qui sai‑
ro por fora das caldera i eu miscapei, mas o Lazaire ficô todo que‑
mado! I u Sinhô mandô batê em mim pur estragá a fervura!
O coração de Angelique sentiu uma piedade indizível e ela foi até
Thaïs e se sentou no chão ao lado dela, colocando a cabeça no seu colo.
— Pobrezinha da Thaïs — disse ela —, estou com tanta pena de
você! Ele é um homem duro e cruel e eu tenho ódio dele!
Um pensamento percorreu sua mente e ela achou que poderia
servir de algum modo para consolar Thaïs.
— Thaïs, você sabe que há revolta no ar? O som dos tambores...
A escrava não lhe deu resposta; mas ela sentiu como seus múscu‑
los se enrijeciam e viu como ela prendia a respiração. Angelique a
contemplou em expectativa, mas Thaïs apenas soltou o ar dos pul‑
mões e deu um longo suspiro.
— Num, minina, num tem revolta ninhuma. Us escravu si rebe‑
la, uns morre a tiro, otrus são inforcado ou coisa pior. Quando us
iscravo de Trinité si rebelaro, elis chamaro as milícia. Num tem es‑
perança contra us backrá. Num tem orguio mais forti que mosque‑
tis. Tá tudo mortu agora, vinte iscravo corajosu, tudo massacradu.
I us úrtimo marum qui elis pegaru, vancê sabe u qui fizeru? Pusero
elis pindurado numas gaiola até secá no ventu.
— Mas os tambores? Você não sabe o que eles dizem? Eu os es‑
cutei de novo durante toda a noite passada.
— Tambores canta como a montanha pelada resmunga, fala
muito i num isplodi. Minina, us iscravu tá tudo condenado a tra‑
baiá inté morrê i fica tudo interradu nu meio dus pé di cana.
Angelique ficou ali sentada, seus braços estendidos sobre o colo
de Thaïs e sentia seu coração encolher aos poucos. Ela teve uma

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

lembrança súbita de um peixe­‑pedra, um sinanceja, tão venenoso e


tão difícil de ver, manchado e coberto de muco e parecendo ser
apenas limo no fundo do mar. Ela pensou em como eles ficavam
enfiados na areia, no meio de pedras verdadeiras, cobertos pelos
mesmos coraizinhos e anêmonas escamosos, invisíveis até o mo‑
mento em que algum camarãozinho incauto aparecesse por ali.
Então um espinho fino como uma adaga se projetava do chão, uma
agulha prateada proveniente do corpo da pedra falsa e a morte
vinha rápido, antes que o sinanceja se movimentasse lentamente
para devorar sua presa. Ela decidiu que, doravante, seu coração se‑
ria como o peixe­‑pedra. Ela esperaria e a adaga que trazia ao cora‑
ção permaneceria oculta.

* * *

Certa manhã, Angelique escutou seu pai sair a cavalo pelo portão
bem cedo e, imaginando porque o dia estava tão quieto, ela correu
para a janela e viu que a porta da moenda estava fechada e que as
pás estavam girando lentamente no ar parado. Os escravos estavam
sentados em grupinhos, pelo pátio ou encostados nas paredes,
exaustos e desanimados. Àquela hora, já estava mortalmente quente
e ela se sentia inquieta e ainda mais aborrecida que de costume.
Ela decidiu aproveitar a oportunidade para vaguear pelo castelo e,
depois de procurar por mais ou menos uma hora, descobriu que esta‑
va diante da porta que dava para os aposentos de seu pai. Tentada pela
possibilidade de descobrir alguma pista quanto ao desaparecimento
de sua mãe, ela empurrou a porta pesada, que se abriu facilmente.
Viu um quarto grande e escuro com uma imensa cama de dos‑
sel. Lençóis sujos e amontoados se enroscavam sobre o colchão e,
chegando perto, viu que o cortinado era de veludo esgarçado, pen‑
durado em um ângulo frouxo da armação superior. Uma poltrona
estava enterrada sob uma pilha de roupas imundas e o casaco mal‑
cheiroso que seu pai costumava usar estava colocado no seu encos‑
to. Mas havia uma escrivaninha imponente, coberta de papéis.

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Lara Parker

Ela percorreu as cartas, sentindo uma leve esperança de desco‑


brir o paradeiro de sua mãe.
Um bilhete curto se queixava: “O açúcar não está sendo vendido.
Não há navios no porto. Sugiro que você fabrique melado para desti‑
lar rum”. Havia outra mensagem, esta assinada por seu pai, pedindo
“paciência” e dizendo que “a cana está velha demais e tem pouco
suco”, que estava “extremamente quente” ou que “fora cortada tarde
demais e empilhada diante do moinho, onde se acumula, perdendo o
açúcar. Os operários ainda não aprenderam a trabalhar direito”.
Um pouco mais abaixo, ela leu: “O pivô de uma das rodas se soltou
e tive de parar o moinho...” “Preciso desesperadamente de novas rodas
grandes...” “Um conjunto foi encontrado em Saint­‑Pierre pela horren‑
da soma de 1.300 francos.” Ela jogou a carta para um lado com indife‑
rença e continuou a procurar, mas não achou nada sobre mulheres
vendidas como escravas, nenhuma palavra a respeito de sua mãe —
somente as queixas solitárias de um homem empenhado no agora in‑
grato comércio de açúcar, tão lucrativo há apenas algumas décadas.

* * *

O terror começou uma noite depois que a moenda fora novamente


colocada em operação. Durante dias, os escravos tinham sido obri‑
gados a trabalhar a noite inteira, alimentando as mandíbulas insa‑
ciáveis das mós com uma quantidade infindável de canas.
Naquela noite em particular, Angelique foi acordada por gritos e
correu para a janela para escutar os berros de vários escravos: “Parem
o moinho! Parem o moinho!” Eles correram para ajudar um escravo
que sacudia um braço em desespero, o outro preso de alguma forma,
apertado entre os cilindros das caldeiras. Provavelmente, ele adorme‑
cera em pé, pensou ela, assombrada, e ao cair para frente, estendera a
mão para se firmar e ela se prendera nas engrenagens.
Seu pai chegou cambaleando ao pátio, os braços erguidos acima da
cabeça, sua voz pesada de sono, amaldiçoando e gritando ferozmente pa‑
lavras enroladas, mas compreensíveis, enquanto fazia pausas para escutar:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— O que foi? O que aconteceu? Mas por que diabo ele fez isso?
— Sinhô, ele tá preso! Nóis tem de separá as roda!
— O quê? Mas não! — decretou furiosamente. — Eu não vou
deixar pararem a moenda! Continuem trabalhando, seus imbecis
amaldiçoados! Achem um machado! Cortem fora!
O moinho continuou trovejando e as mós guinchavam, mas os
uivos do escravo se escutavam ainda mais alto e Angelique viu através
da porta aberta o machado subir e descer. O coto ensanguentado
sacudiu­‑se para os lados e pareceu golpear o ar em vão, enquanto o
homem em agonia apertava o braço contra o peito e caía ajoelhado,
seus companheiros reunidos a seu redor em um bando aterrorizado.
Angelique ficou olhando enquanto carregavam o mutilado e,
quando retornou para sua cama, permaneceu horas acordada, sua
mente um delírio de terrores entrecortados. O ar vibrava com o
calor e o som agudo das pás do moinho ou cavernoso da moenda,
como uma enorme prensa roçando em escamas aguçadas, parecia
arranhar­‑lhe a pele e esmagar seus próprios ossos.
Subitamente, ela escutou alguém caminhando pelo corredor em
direção à sua porta e seu coração deu um pulo. Alguma coisa estava
arranhando a madeira do assoalho, deslizando e se movendo para
frente e ela conseguia escutar sua respiração fraca e laboriosa. Ela
caminhou em silêncio até a porta e encaixou a tranca na alça de ferro
aparafusada na parede do lado oposto da porta, depois se deitou no‑
vamente, louca de medo, olhando para a porta trancada, sem se mo‑
ver ou ousar emitir o menor som, até que seus músculos contraídos
doessem sem alívio. A respiração parecia fanhosa e o trinco externo
foi sacudido por mão invisível. Pela primeira vez desde que fora apri‑
sionada, ela estava feliz por estar trancada, porque a porta não cedeu
e, após um longo momento, ela escutou o som de passos afastar­‑se.

* * *

Depois daquela noite, Angelique percebeu que os escravos estavam


mudados; pareciam ao mesmo tempo inquietos e mal­‑humorados.

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Lara Parker

Por mais que o capataz não lhes poupasse a chibata, parecia que
toda a sua energia tinha sido esvaziada. Eles se moviam lentamente,
arrastando os pés e as pilhas de cana­‑de­‑açúcar se acumulavam
contra as paredes, sem serem moídas. Os tambores palpitavam até
antes da aurora, só parando quando a lua se punha e o céu assumia
aquela escuridão mais profunda que vem antes do amanhecer.
Houve uma ocasião em que, por volta da meia­‑noite, ela foi acor‑
dada por uma cavalgada furiosa; o portão foi aberto e seu pai entrou
às pressas no pátio, acompanhado por um grupo de outros senhores
de engenho. Foram até uma peça por trás da sala das caldeiras, cuja
porta de metal ela sempre vira trancada com cadeados e correntes
grossas e, quando saíram, cada um deles trazia um mosquete e um
saco de munição, berrando uns para os outros, sem tentar manter
controladas suas vozes enlouquecidas de rum e de raiva:
— Eles mataram a família inteira!
— Sua mulher e as três filhas!
— Cortaram­‑nas em pedaços!
— Tocaram fogo no canavial!
Entre pragas terríveis e o tinido dos cascos sobre as lajes do pavi‑
mento, eles partiram novamente, outros tantos trovões estrada abaixo.

* * *

Mais tarde, Angelique acordou com um assobio abafado, correu até


a janela e olhou para fora. Césaire estava sozinho, em pé no meio do
pátio, parcialmente iluminado pelas chamas sob as caldeiras man‑
tidas a todo o vapor.
— Angelique! — ele chamou. — Desce!
— Não posso — ela respondeu. — Eu não me atrevo!
— Tá tudo seguro — gritou, sem se preocupar em controlar o
som. — Teu pai tá na outra plantação, ele e os outro buscando vin‑
gança. Mas eu preciso falar contigo!
Poucos momentos depois, ela tinha descido em silêncio, cami‑
nhando às apalpadelas pelos longos corredores e descendo as escadas,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

apoiada nos corrimões e saindo para a noite. Era a primeira vez que
ela se aproximava da moenda e ficou abalada pelo tamanho da má‑
quina e o ruído que ela produzia. Escravos exaustos, nus até a cin‑
tura, músculos tremendo de cansaço, enfiavam as hastes frouxas
entre os cilindros e o suco escorria para um cano de chumbo que o
conduzia até a sala das caldeiras.
— Vem cá! — gritou Césaire, puxando­‑a para a sala das caldei‑
ras. Thaïs e outra escrava ainda mais velha estavam debruçadas so‑
bre uma grande caldeira de cobre, mexendo o xarope dourado com
longas pás de madeira grossa. Estavam tão amortecidas pelo cansa‑
ço, que nem sequer ergueram as cabeças. Bolhas subiam e estoura‑
vam na superfície do melado e uma espuma branca se amontoava
em um círculo ao redor das beiradas. O ar estava pingando vapor.
Césaire olhou em volta e finalmente conduziu Angelique até o can‑
to mais distante.
— A rebelião está começando! — disse ele, com um olhar selva‑
gem e ela podia ver o suor se acumulando em sua testa.
— Meu pai saiu para se reunir às milícias — respondeu ela. —
Ele veio buscar mosquetes e a munição que tinha escondido.
— Não, não, isso não é nada — disse ele. — Aqueles escravos
idiotas de Sainte­‑Marie planejaram tomar o canavial de lá. Tavam
loucos de ódio. Que nem idiotas, eles foram em frente! Invadiram a
casa­‑grande para roubar a prataria! Ah, sim e vão pagar por ela com
suas vidas, as pobres almas!
— Eles vão morrer todos?
— Sim, é claro, todos, até o último. Mas foi um golpe de sorte.
Os soldados vão massacrar eles e pensar que apagaram o fogo.
— Mas então não haverá revolta alguma...
— Ai, guria, mas tu nem sonha como vai ser essa! Os maruns da
montanha estão armando escravos pela ilha inteira. A conspiração
ronca fundo, que nem o fogo no coração de Mont Pelée. Amanhã de
noite, eles vão incendiar Saint­‑Pierre! Vão matar centenas, milha‑
res, talvez todos os grands­‑blancs. Chegou a hora do homem negro.
Ele finalmente vai ganhar o que é dele!

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Lara Parker

— E eles vêm até aqui depois? Para esta plantação?


— Tu tá condenada, guria, a não ser que o teu pai consiga con‑
vencer os escravos dele a defender a casa­‑grande. Tu acha que eles
lutariam por ele?
— Nunca na vida. Ele os trata pior que animais.
— Então esta plantação também vai acender as estrelas do céu.
Tu tem de avisar ele.
— Eu nunca irei avisá­‑lo!
— Escuta — disse ele, pacientemente. — Tem um caminhozi‑
nho que desce até a baía e eu vou te esperar num bote lá embaixo.
Mesmo que Mont Pelée escorra lava pelos lados e solte fogo pelo ar,
tu fica segura na água.
— Você tem certeza? Não vai ser perigoso?
— Angelique, guria, eu só tô parado aqui neste lugar te contan‑
do tudo isso porque eu não quero que nada de ruim te aconteça.
Aqueles escravos enlouquecidos vão te estuprar, dúzias deles, e de‑
pois te matar. Tu tem de fazer o que eu te digo. Avisa o teu pai.
Assim que tu puder. Mesmo que tu odeie ele muito, tu não quer
ver ele morto, quer?
Ela não respondeu, mas pensou que talvez ele tivesse razão.
— Vou te esperar amanhã de noite — disse ele. — Não tenha medo.

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Treze

ão parecia possível para Angelique pegar no sono depois destas


notícias assombrosas, mas de algum modo ela foi escorregan‑
do para o nível mais profundo da consciência, um sono sem sonhos
no fundo das cavernas da noite. Só acordou quando a sombra de
seu pai pairava sobre ela.
Seus olhos se arregalaram ante a visão de seu sorriso embriaga‑
do. Ela já tinha idade suficiente para perceber que sua expressão era
de lascívia e sua respiração fedia a rum. Desajeitadamente, ele ten‑
tou tocá­‑la e ela se encolheu ante seu toque no momento em que
sentiu a mão grosseira arranhar­‑lhe o braço. Ele riu como se fosse
um relincho de cavalo e se ergueu, as mãos nos bolsos, as pernas
bem separadas.
— Levante, bonequinha — ele falou, roucamente.
— O que você quer?
— Eu vim para lhe contar que seu velho pai ainda é um grande
lutador e que você deveria ter orgulho de mim! Orgulho de ser a
filha de seu pai! Olhe! Olhe para isto em minhas mãos e me diga o

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Lara Parker

que está vendo! — seu rosto foi dividido por um sorriso de satisfa‑
ção maligna. — Você sabe o que é isto? É morte, menina, morte de
gente! Estas mãos é que causaram!
— Não me toque — disse ela, com nojo. — Nem chegue per‑
to de mim!
— Ora, Angelique, meu anjo — protestou ele —, por que você me
odeia tanto? Eu não fui bom para você? Não lhe dei uma porção de coi‑
sas bonitas? — queixou­‑se, seu estado de ânimo mudando rapidamente.
Ela não respondeu, mas encolheu­‑se no canto mais distante da
cabeceira da cama, abraçando os joelhos em posição fetal e o en‑
carou. A única coisa de que tinha consciência era das ondas de
rancor que fluíam através dela, que a enchiam como uma poça
escura da água que escorria para fora de uma gruta quando a maré
baixa recuava.
— Eu só queria te dizer, bonequinha, que salvei tua vida esta
noite. Isso não faz com que você goste um pouco mais de mim?
Aqueles bastardos iam vir te pegar, mas eu interrompi a marcha
deles — eu e meus homens — e torci os pescoços dos desgraçados
com as mãos nuas. Deus, que coisa excitante é matar um homem,
sentir seu coração parar abaixo de teus pulsos!
Ele baixou os olhos para as próprias mãos, girando­‑as no ar
diante das vistas, maravilhado pelo poder que haviam demonstra‑
do. Depois riu de novo para ela.
— Venha me dar um beijo pelo meu esforço — disse ele, dando
um passo em sua direção.
— Fique longe de mim! — sua voz saiu sibilante, tão mortal que
ele gelou onde estava.
— Mas o que te deixa tão rigorosa? — indagou ele, meio surpre‑
so. — Ah, mas... eu sei! É que você tem meu sangue e com ele her‑
dou a minha raiva! Mas por Deus, eu gosto desse temperamento!
Ele me enraivece, mas também acende um fogo dentro de mim, ah,
acende! Vamos, lute comigo, minha bela, quero sentir você lutar!
Ele mergulhou em direção dela e agarrou­‑lhe um dos braços,
puxando contra ele o corpo que se debatia, rindo e mergulhando a

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

cara em seus cabelos. Ela se defendeu, os dedos em garra, as unhas


lhe arranhando as faces, tentando furar­‑lhe os olhos.
Ele recuou, surpreso, a respiração trancada na garganta, mas
apenas por um momento, já que estava embriagado demais para
sequer sentir dor. Ele levou a mão direita para trás, tomou impulso
e acertou­‑lhe um golpe tão furioso no rosto, que a deixou cega por
um momento. Ela caiu no chão com um grito abafado, sua cabeça
girando e ele lhe mostrou um novo sorriso maligno.
— Você é uma cadela orgulhosa, claro que é, mas é preciso mais
do que isso para me impedir de fazer o que eu quero...
— Eu não preciso lhe impedir — disse ela, a voz cheia de despre‑
zo. — Porque mesmo que você me mate — e vai ter de me matar
para fazer o que quer ou mesmo para me machucar de novo — por‑
que não vai ver mais a luz da manhã daqui a dois dias! Você pensa
que ganhou a batalha em Sainte­‑Marie, mas não passa de um idio‑
ta! Eles virão! Vão chegar aos milhares! Amanhã de noite! E vão
queimar seu precioso canavial e mais esta casa, até os alicerces, com
você dentro dela e eu terei o prazer de encontrá­‑lo no meio dos fo‑
gos do Inferno!
Ele olhou para ela de boca aberta, sem compreender, mas impe‑
dido por sua veemência.
— O que faz você achar isso, menina?
— Porque eu sei! — declarou ela com firmeza. — A matança de
hoje só serviu para deixar vocês cheios de falsa confiança! Vocês
pensam que triunfaram sobre eles, mas estão errados!
— Quem te disse isso?
— Césaire. O auxiliar do fabricante de tendas.
— Esses negros forros! — gritou seu pai, com um tom de voz
escaldante. — São eles que estão por trás disso tudo! Mas... — ele
parou de repente, desconfiado, seus olhos grudados nela. — Como
foi que você falou com ele?
— Eu não falei — mentiu ela, sabendo que o havia vencido.
— E não é tampouco o que você pensa. Eu escutei pela janela e
ouvi quando ele falou para os escravos que estavam trabalhando

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Lara Parker

na moenda. Ele lhes disse que, caso não o defendessem, você es‑
taria condenado!
— Você escutou tudo isso? — indagou ele, o efeito da be‑
bida subitamente escorrendo de seu rosto, sua expressão dura
e ansiosa.
— Amanhã de noite — disse ela, calmamente. — Os escravos de
toda a Martinica vão incendiar Saint­‑Pierre!
Sentiu uma grande satisfação ao ver como o rosto de seu pai em‑
palidecia ao ouvir suas palavras e seus lábios tremerem. Ele a enca‑
rou por mais um momento e então girou nos calcanhares e saiu do
quarto aos tropeções.

* * *

Na manhã seguinte, a porta da moenda estava fechada e os escra‑


vos não estavam em seus postos de trabalho. De fato, o pátio es‑
tava deserto e ela podia escutar música vindo da direção das
cabanas da senzala. Ela entendeu que seu pai dera um dia de folga
aos trabalhadores. Thaïs lhe trouxe cedo o desjejum, depois
sentou­‑se em seu mochinho do canto, sacudindo a cabeça de
amargura e tristeza.
— Noiti passada ser ruim... — disse ela, baixinho.
— Eu sei — respondeu Angelique. — Sainte­‑Marie.
— Muito, muito morto, otros na cadeia. Tanto sangue corrido.
U que nóis faiz agora? Ansim que os home encontra força pra luitá,
nóis é cortadu qui nem cana pelus soldadu.
— Você sabe o que vai acontecer esta noite? — perguntou Angelique.
— Sim. Eu sei qui tem otra ceremônia — respondeu Thaïs. An‑
gelique levou um susto.
— Como assim, hoje de noite? Não! Hoje de noite não!
— Sim, o Sinhô mi acordô bem cedo di manhã, antis di saí a
cavalo — explicou ela. — Eli mi diz pra deixá vancê perfeita di tudo
qui é jeitu. Eu vou na torri agorinha memo pra buscá u vestidinhu
branco pra vancê.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Esta noite eu não faço — disse Angelique firmemente.


— U quié qui vancê tá dizeno? Vancê num vai fazê o quê? Vancê
tá louca, minina? Ai, purquê vancê é sempre tão boba!?
— Quando ele retornar, diga­‑lhe simplesmente que se ele preten‑
de que eu seja Erzulie de novo, eu vou sair para o pátio e me mostrar
para todos e dizer quem eu realmente sou. Eu vou dizer a todos os
escravos que tudo isso não passa de uma farsa!
Thaïs abriu a boca e ficou de queixo caído, olhando para Angeli‑
que em total estupor. Depois se ergueu e saiu correndo porta afora,
embora lembrasse de girar a chave na fechadura antes de ir embora.
Angelique ficou imaginando se as coisas que Césaire lhe conta‑
va eram verdade. Preocupações conflitantes lhe martirizavam o
cérebro. Haveria realmente um levante dos escravos? Ela imagina‑
va se realmente deveria ter revelado o plano a seu pai. Esta poderia
ser a sua oportunidade de finalmente escapar dele, mas não se os
escravos rebelados a pegassem primeiro e a tratassem como a filha
de um senhor branco de engenho. Seu pai conseguiria mantê­‑la
em segurança? Lutaria para salvar­‑lhe a vida? O que ele estaria
fazendo agora? Teria ido alertar as milícias? E nesse caso, será que
acreditariam nele?
Sentiu um súbito anseio para retornar ao quartinho por detrás
do altar. Foi até a janela e viu que tanto o pátio como as oficinas
estavam desertos; até mesmo Thaïs tinha desaparecido. Angelique
abriu a fechadura com um grampo de cabelo e saiu às pressas pelo
corredor para depois descer as escadas sem ser percebida.
Assim que chegou ao quarto secreto, percebeu que já se haviam
passado meses desde que ela realizara o ritual em que fracassara
na invocação de Erzulie. Parecia estranho sentir a pulsação fa‑
miliar latejando através dela quando seus dedos tocaram os pós
sagrados do vevé. Enquanto ela remexia na parafernália das prate‑
leiras empoeiradas, ela sentiu que alguma coisa se modificara
dentro dela. De repente, uma série de objetos não mais pareciam
misteriosos, mas ao contrário, perfeitamente úteis para os fins a
que se destinavam.

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Lara Parker

Inconscientemente, ela começou a reunir os itens necessários —


pedaços de insetos e de folhas secas, os potes cheios de sálvias, as
caixas de ervas, saquitéis cheios de criaturas marinhas, até mesmo
aquelas massas carnudas que flutuavam nos líquidos dos grandes
vidros enfumaçados — ao mesmo tempo em que proferia as pala‑
vras das cantilenas e seguia as instruções que enchiam as páginas
do livro e que agora sabia de cor. Em uma parte de seu coração, ela
sentia tristeza por ter perdido Erzulie e imaginava se era agora in‑
digna da deusa.
Alguma coisa cintilou em um canto de sua mente. Estendeu a
mão para o uangá que sua mãe lhe fizera, que até hoje pendia do
cordão de couro ao redor de seu pescoço. Dentro dele estava a mi‑
núscula caveira da fer­‑de­‑lance, a selenita e a mecha de cabelos de
Chloé. Estas coisas a conservavam em segurança. Hoje eu não par‑
ticiparei da cerimônia, ela garantiu para si mesma. A lembrança da
figura negra era terrificante demais, porém sabia que, de um modo
ou de outro, ambos estavam inextrincavelmente entrelaçados.
Ela se sentiu atraída mais uma vez pelo grosso volume encader‑
nado em couro, novamente enfeitiçada pelas palavras que conti‑
nha. Parecia sentir que algo pairava sobre ela, como se fosse um
grande pássaro e ela sentiu conforto e paz embaixo de suas asas.
Cada vez mais profundamente ela mergulhou nos sons das cantile‑
nas, acalentando as canções e litanias dentro de sua mente. Pare‑
ciam uma escrita secreta derivada dos primórdios das eras.
Cansada finalmente, ela se levantou para partir, mas interrompeu­
‑se, novamente retirando o kriss incrustado de joias de dentro de
seu estojo, girando­‑o entre as mãos para ver os reflexos da vela cin‑
tilando nas pedras. Depois de correr a polpa de um dedo por sua
lâmina fina, ela enrolou o punhal malaio novamente e o guardou
dentro da caixa. Um pedaço de papel negro ou cinza-escuro balou‑
çava no canto mais elevado da peça e o movimento captado pelo
canto de um de seus olhos lhe prendeu a atenção. Chegando mais
perto e erguendo a vela, ela prendeu a respiração ao reconhecer­‑lhe
a natureza: era um morcego pendurado de cabeça para baixo em

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

uma das traves que sustentavam o teto. Suas asas enrugadas esta‑
vam dobradas às suas costas, sua pele reluzia à chama da vela e seus
olhos vermelhos como duas contas de coral a encaravam com um
reconhecimento tranquilo. Estremecendo, ela deixou o animal
onde estava e saiu do quarto sem fazer ruído.

* * *

Mais tarde, nesse mesmo dia, quando ela escrevia em seu diário,
alguém lhe bateu à porta. A chave girou e, quando a porta se abriu,
seu pai estava parado ali. Seus músculos se contraíram, mas para
sua surpresa, a atitude de seu pai era contrita, até mesmo demons‑
trando remorso. O inferno que fervia nas profundezas de seu peito
parecia estar tranquilo agora e ele estava em pé diante dela com os
ombros erguidos como para proteger a cabeça e suas mãos imensas
balançavam frouxas de seus lados.
— Posso falar com você, Angelique? — ele pediu.
— Eu não vou representar essa cerimônia hoje — disse ela, sem
rodeios. — É uma coisa estúpida e falsa e eu estou completamente
enjoada disso. Nem pretendo fazer mais nada por você, nunca, ja‑
mais em minha vida.
— Eu decidi deixar você partir — foi a resposta dele.
— Como assim? — ela redarguiu, estupefata.
— Você tem toda a razão — prosseguiu ele. — Eu a tratei muito
mal e realmente estou arrependido. Você tem toda a razão do mun‑
do para estar ressentida comigo. Mas eu tenho muita coisa a temer
hoje e só lhe peço que me ajude mais uma vez.
— Não! — recusou­‑se firmemente. — Eu o odeio! Você é cruel e
não passa de um assassino! Você não pode me obrigar.
— Escute, Angelique. Eu descobri o paradeiro de sua mãe. Ela está
trabalhando em um canavial de Trinité, como médica no hospital
dos escravos. Prometo que a levarei amanhã até onde ela se encontra.
Angelique mal conseguia crer nas palavras dele. A alegria corria
por todo o seu corpo.

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Lara Parker

— Minha mãe? Realmente?


— Eu lhe suplico para fazer isto por mim — disse ele, sua voz
firme e sem traços de álcool. — Estive em Saint­‑Pierre para alertar
as autoridades. Talvez esta conspiração possa ser evitada. Mas os
escravos estão inquietos... obviamente... ansiosos por vingança.
Suspeito que isso que você escutou possa ter um fundo de verdade.
Ele fez uma pausa e lhe deu as costas. Ela conseguia ver as gotas
de suor que lhe escorriam da testa. Enfiou a mão no bolso e reti‑
rou dele um lenço, que apertou contra a testa, seus movimentos
lentos e pesados.
— Eu lhes prometi uma cerimônia — disse ele — e vou sacrifi‑
car um bode. Prometi­‑lhes também barris de tafiá, tudo quanto
eles puderem beber. Suas mentes são tão simples e depravadas, que
entretenho a esperança de que eles serão hipnotizados por suas pró‑
prias danças e não se voltarão contra mim, mas ao contrário, luta‑
rão contra a própria gente deles.
Nesse instante, ela escutou o começo do rufar dos tambores e
reconheceu o ritmo da cerimônia, o Maman profundo, seu som
mais grave que o bater do coração; e o Catá, mais alegre e com um
ritmo mais rápido que a canção dos passarinhos. Ela sentiu algu‑
ma coisa voltando à vida dentro dela. Surdamente, ela escutou os
compassos da cantilena e o chamado de Papá Legbá; fios de fuma‑
ça do fogo ritual pareciam se enroscar pelo ar até encontrar o ca‑
minho de suas narinas.
Ele ergueu os olhos para ela, como dois carvões polidos.
— Se você aparecer na cerimônia de hoje — disse ele —, eu lhe
dou minha palavra. Amanhã eu a devolverei para sua mãe.
— Tudo bem — disse ela, com simplicidade. — Eu encarno Er‑
zulie mais uma vez.

* * *

A noite estava calma, o ar quente e úmido. Já era quase meia­‑noite


e os tambores batiam ainda mais frenética e insistentemente do que

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

nunca por detrás das portas fechadas da capela. Thaïs a preparou


para a cerimônia e Angelique olhou para a cabeça grisalha e os om‑
bros caídos da escrava.
O espírito de Thaïs foi quebrado, pensou Angelique, enquanto
Thaïs se debruçava sobre ela para abotoar as pressões e amarrar os
laços de seu vestido.
O corpo da mulher estava pesado e ela gemia cada vez que preci‑
sava se erguer e ficar em pé. O trabalho na colheita a havia alque‑
brado, depois as longas horas diante da caldeira, mexendo sem
parar, tirando a espuma branca com a escumadeira, derramando o
líquido nos recipientes, respirando os vapores quentes. Angelique
começou a considerar um pensamento passageiro de levar Thaïs
com ela para Trinité, para cuidar dela, do mesmo modo que agora
teria liberdade de cuidar de sua própria mãe.
O pensamento de sua mãe inundou­‑lhe a mente e ela sentiu as
lágrimas a lhe marejarem os olhos. Já se haviam passado três anos
desde que a vira pela última vez. Ela tinha crescido e sua mãe
talvez nem a reconhecesse. Ela estava alta agora, com quadris que
se curvavam suavemente acima de suas pernas longas. Seus pe‑
quenos seios já se erguiam no peito e seus ombros eram ossudos,
mas largos. Uma penugem fina começara a crescer sob seus bra‑
ços e entre as pernas.
Enquanto ela alisava o vestido branco sobre seu estômago liso,
sentiu o vestido apertado logo abaixo das axilas, como se tivesse
sido feito para uma menina muito menor. Angelique foi atingida
subitamente por uma ideia que sempre tivera, mas a que nunca dera
grande consideração. Houvera outras deusas antes dela.
— Eles vão escolher outra Erzulie? — perguntou a Thaïs.
— Sim, minina, despois qui to fô muié.
— Mas esta é minha última vez — disse ela. — Meu pai pro‑
meteu que vai me deixar ir embora amanhã se eu me apresentar
hoje à noite.
— Qui qué dizê, úrtima veiz? — exclamou Thaïs com voz aguda.
— Ele prometeu que vai me levar de volta para minha mãe.

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Lara Parker

O rosto de Thaïs sofreu uma súbita transformação e ela se er‑


gueu, esquecida de suas dores, para agarrar Angelique firmemente
com ambos os braços.
— Quié qui tu qué dizê? Quié qui tu qué dizê, ti deixá i embo‑
ra? Eli nunca vai ti deixá i embora! — exclamou ela, erguendo os
braços para o céu e soltando um gemido agudo. — Ai, Sinhô Deus
du céu, nos ajuda hoji! — continuou, um soluço sufocado cortan‑
do sua súplica.
— Ai, Thaïs, eu vou sentir saudade de você, juro que vou! — ex‑
clamou Angelique. — Por favor, não chore. Por que você ficou desse
jeito? Ai, Thaïs, você não deve ficar tão triste... Eu estou tão feliz que
isso tudo tenha acabado...
— Mais, minina, tu num sabe. Vancê num faiz ideia du qui vai
ti acontecê agora!
— Sim, eu sei. Eu vou ver minha mãe de novo. Quero tanto ser
livre outra vez, caminhar pelas ruas da vila — conversar com ou‑
tras meninas, correr na areia da praia, nadar através das ondas e
entrar em minhas grutas — talvez até encontrar algum rapazinho
gentil e mexer com ele e fazer com que ele ria! Ai, eu estou tão feliz!
Você não faz ideia de como eu me sentia solitária! E agora, tudo
acabou! Thaïs, o que há com você?
Thaïs estava sentada de novo no mochinho do canto, seus braços
ao redor da barriga, olhando fixamente para o ar e abraçando a si
mesma, balançando como se estivesse sentindo alguma dor. Ela er‑
gueu o rosto para Angelique e seus lábios formaram palavras sem
emitir qualquer som: Le sacrifice!
Nesse instante, Angelique escutou uma carroça entrando no pá‑
tio, suas rodas trovejando contra as lajes do pavimento. Correu para
a janela e viu o padre Le Brot descer desajeitadamente da carroça,
carregando uma lanterna de praia com o braço estendido e avançar
até a porta da casa­‑grande. Seu corpo rechonchudo enchia todas as
dobras de sua sotaina e, refletindo as chamas da lanterna, ela viu sua
cruz de madeira pulando sobre seu peito. Sem pensar, ela estendeu a
mão para o amuleto em seu pescoço e apertou­‑o entre os dedos.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Quase imediatamente, seu pai estava à porta:


— O que você está fazendo? — encarou Thaïs furiosamente. —
Traga­‑a imediatamente!
Thaïs simplesmente o encarou com uma expressão de tanto
desprezo e recusa mal-humorada, que Angelique pensou que
ela enlouquecera.
O rosto enrugado de seu pai se escureceu de raiva.
— Venha! — rosnou, puxando Angelique pelo braço.
Já estavam na metade das escadas quando encontraram o padre
Le Brot, que subia os degraus bufando. Praticamente colidiram com
o sacerdote, que ergueu então sua lanterna para revelar seu rosto
redondo e suarento.
— Oh, Bouchard! — exclamou, cheio de consternação. — Eu...
eu... eu... eu vim para lhe dizer que você não po... po... po... pode
fazer essa coisa horrível!
Mas o pai de Angelique passou por ele com completa indiferen‑
ça, quase derrubando­‑o escadas abaixo. Puxando­‑a por um braço
através do vestíbulo, ele a arrastou pela porta aberta.
O padre rotundo correu atrás deles, gritando:
— Bla... bla... bla... blasfêmia! Sacrilégio! Você invo... vo... vo..
voca o Diabo para satisfazer suas fo... fo... fo... fomes co... co... co...
covardes e vis e o Diabo virá atrás de você! Ele virá para bus... bus...
bus... buscá­‑lo, eu lhe prometo, Théodore Bouchard! Sua alma já
está perdida! Não sa... sa... sa... sacrifique sua própria fi... fi... fi... fi‑
lha aos poderes do mal!
Angelique estava estupefata perante a veemência do padre e ima‑
ginou como poderia ser uma fé tão temerosa e tão resistente aos
outros espíritos que havia pelo mundo. Mais uma vez, ela pensou
como era grande o terror que o padre sentia dos loás.
— Saia do caminho, seu velho tolo e intrometido! Volte para
suas missas fedorentas com o corpo e sangue de Cristo sobre o al‑
tar! Qual é a diferença, só me diga! Sua hipocrisia me faz rir!
— Théodore, eu lhe suplico! — gritou o padre, sem qualquer
medo aparente, lançando­‑se no seu caminho e erguendo as mãos

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Lara Parker

em uma súplica que mais parecia uma prece dirigida a eles. Angeli‑
que ficou espantadíssima ao ver as lágrimas que lhe escorriam dos
olhos. Sem largar seu braço, seu pai recuou no ar um pé calçado de
bota e acertou um pontapé violento na cabeça do padre, atirando
no chão o pobre homem. Sua lanterna saltou e se quebrou contra as
pedras e a chama se apagou.
— Pai! — gritou ela, assombrada com sua crueldade, enquanto
fiapos de medo começavam a se estender ao redor de seu coração.
Mas ele levou Angelique aos puxões através do pátio escuro e em
direção à capela.
Os adoradores já estavam imersos na cerimônia e ela foi assalta‑
da pela onda de calor que emanava de seus corpos retorcidos e da
ressonância dos tambores, que dentro daquele espaço fechado pare‑
ciam lhe amortecer os próprios ossos. Os corpos negros e desnudos
dos dançarinos a envolveram num casulo escuro e ela tremeu com
o poder de sua adoração. Ela sentiu uma lascívia controlada ema‑
nando deles, mais fria e mais assustadora do que jamais sentira an‑
tes. Seu pai arrastou­‑a até o altar e obrigou­‑a a se encostar nele.
O fogo estava reduzido a carvões brilhantes, o prato de porcelana
postado a seu lado, limpo e brilhante e ela pensou no bode que deve‑
ria estar atado ali à espera de ser sacrificado, mas que não estava lá.
Ondas de pânico começaram a adejar em seu peito. A cantilena se
ergueu numa dissonância lamentosa, as melodias melancólicas e re‑
petitivas. As chamas de mil velas lançavam sombras nas paredes. Su‑
bitamente, seu pai agarrou­‑lhe as mãos e puxou­‑lhe os dois braços
para as costas. Ela gritou de dor enquanto ele lhe amarrava os punhos
com uma rápida volta de corda, dando um nó seguido de outros.
Um cálice foi erguido até seus lábios, mas ela apenas provou e
cuspiu de volta o líquido escaldante para dentro do recipiente. Ela
não queria ser drogada. Estremeceu, sentindo os nós se apertarem
mais e mais. Por que ela estava assim atada? E então, com um estre‑
meção que a sacudiu até a alma, ela finalmente entendeu. Um medo
mais frígido que qualquer coisa que sentira até então a prendeu en‑
tre seus dedos gélidos.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Percebeu então os olhos deles como nunca os vira antes, quei‑


mando de fome, seus rostos congelados em expressões de expecta‑
tiva estonteada. Ela sentia seus dedos arranhando­‑lhe as pernas e
sondando­‑lhe as coxas e... alguma coisa mais estava ali, alguma ou‑
tra presença escura, mãos geladas tocando­‑lhe a nuca e deslizando
espinha abaixo, por baixo de sua saia... Algum ser estava perto dela,
mais próximo que sua própria pele e uma voz como o vento gemeu­
‑lhe ao ouvido: “Eu estou aqui...”. Mas o latejar de seu coração afo‑
gava aquele som.
Nesse instante, através da fumaça, ela viu um estojo de madeira
familiar se abrir e a mão de seu pai enfiar­‑se dentro dele para retirar o
kriss. Enquanto os tambores trovejavam, o punho incrustado de joias
captou a luz do fogo e explodiu em vívidas lascas de cor. Ela se sentia
hipnotizada pelo punhal, sua lâmina dura e relampejante, flutuando
acima de sua cabeça e então, ao mesmo tempo que a cantilena se er‑
guia a um nível de uivos, ela sentiu uma súbita ferroada de dor aguda.
Incompreensivelmente, ela escutou gritos aterrorizados — se‑
melhantes àqueles que ela escutara naquela primeira noite em que
esperara na torre, os mesmos gritos que lhe haviam assombrado os
pesadelos — só que desta vez, eram seus próprios gritos. Abrupta‑
mente, ela viu o rosto de seu pai, retorcido de fúria, seus traços re‑
torcidos e esmaecidos até ficarem irreconhecíveis, enquanto a faca
descia de novo, falhando em lhe rasgar a carne.
Imediatamente, ela sentiu que o chão abaixo de seus pés se abria
e que um ar congelante subia da fenda e a envolvia em uma bainha
de gelo. Visões de páginas manchadas de tinta correram pelo seu
olhar interno. Sua mente se fechou sobre si mesma. Por debaixo de
seu amor mesclado de ódio por seu pai e da angústia de sua traição,
ela invocou o poder que sabia ter dentro de si, uma força antiga e
temperada na fornalha das idades. Lá do fundo de sua infância per‑
dida, ela arrancou a magia, a um só tempo cintilante e escura, que
estivera adormecida no lugar mais íntimo de sua alma.
Ela não precisou falar quaisquer palavras mágicas ou proferir as
fórmulas rúnicas de antigos encantamentos, mas sentiu que cada

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Lara Parker

nervo de seu corpo se enrijecia e ela se tornou o kriss, afiado, face‑


tado, como flutuando no ar. Escutou o grito de terror de seu pai e
viu seus olhos se arregalarem de pavor enquanto o punhal ganha‑
va vida e se retorcia em suas mãos. Ela contemplou seu horror
enquanto ele tentava forçá­‑lo de volta, lutando contra sua descida
inexorável, mas era a mesma coisa que se ele tivesse tentado impe‑
dir o golpe de um relâmpago através do céu. Ela era como uma
flecha lançada de um arco, ela era o kriss e ela se enfiou inteira
dentro do coração dele.

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Quatorze

ngelique! — chamava uma voz e um raio de luz perfurou


a escuridão. — Você ainda está aí?
— Sim! Césaire?
— Ai, que bom! Eu tava preocupado contigo. Não te mexe! Eu já
volto! — falou o rapaz, sua voz entrecortada.
— Césaire! Espere! O que aconteceu? Estamos em segurança?
— Sim. Não, não sei. Fica quietinha aí. Eu volto logo.
Era difícil saber exatamente onde ela se encontrava. Estava tre‑
mendo da cabeça aos pés, enroscada em uma bola e estivera espe‑
rando pelo que lhe haviam parecido horas, escondida abaixo do
convés. Os estalos do barco e os leves tapas da água empurrada
pelas ondas contra o casco se escutavam misturados com os gru‑
nhidos da corrente da âncora. O vento era um rugido incessante
e a pequena escuna se erguia e descia sem sair do lugar. Havia
outro som, próximo e abaixo dela, os gemidos e resmungos de
cativos humanos, escravos agrilhoados nas paredes do porão do
barco. O fedor de dejetos humanos era pútrido, quase mais forte

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Lara Parker

do que ela podia suportar, mas o cheiro de infelicidade que ema‑


nava deles era ainda pior.
Ela empurrou o chapéu que Césaire lhe tinha dado mais para
baixo em sua cabeleira, enfiando os cachos em seu interior. A cami‑
sa e calças esfarrapadas que estava usando traziam o cheiro dele e
ela agarrou com as mãos uma dobra do tecido e puxou­‑a para en‑
volver seu nariz, a fim de apagar os outros odores imundos.
Imagens recortadas de sua fuga, cada uma projetada em alto­
‑relevo, como se tivessem sido iluminadas por um relâmpago de
luz, se sucediam por detrás de suas pálpebras ou nos escaninhos de
sua mente. Recordou da visão de seu pai caindo a seus pés e de sen‑
tir o santuário ficar mortalmente silencioso quando os tambores
pararam de tocar. Ela viu os escravos recuarem, apavorados pelo
seu poder, com medo de serem apunhalados e mortos também. E
então, como se aparecesse de lugar algum, Césaire desatava os nós
que lhe prendiam as mãos, sua mão forte agarrava uma das suas
firmemente e ela estava correndo com ele pela capela subitamente
esvaziada e através de suas portas escancaradas.
Era qual em um pesadelo, seus pés pareciam pesar como chum‑
bo e ela estava certa de que os negros enlouquecidos, seus desejos
inflamados e frustrados, já lhe tocavam os calcanhares enquanto
eles a perseguiam através do pátio. Ela e Césaire subiram até o
parapeito detrás do pátio, empoleirados por um instante sobre ele,
as águas escuras redemoinhando dezenas de metros lá embaixo,
antes que ele gritasse: “Pula!”. E então lá estavam os dois, quase
voando, caindo durante o mais longo dos segundos, até mergu‑
lhar nas águas do oceano.
Empurrada de volta por nuvens de bolhas, ela subiu com as mãos
em concha empurrando as águas até a superfície. Césaire estava a
seu lado, batendo desajeitadamente com as mãos e os pés, mas con‑
seguindo permanecer flutuando.
— O barco tá lá! — ele gritou e ela enxergou o longo casco negro
recortado contra as ondas, balouçando na maré, os altos mastros
desnudos perfurando o céu.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela nadou, puxando Césaire com uma das mãos. Ele cuspia água:
— Ainda bem que tu nada bastante pra nós dois!
E eles flutuaram numa corrente invisível, protegidos pelas ma‑
rolas, enquanto as luzes de bordo da escuna balouçante subiam e
depois desciam, desaparecendo da vista por alguns segundos.
Eles nadavam um pouco, depois flutuavam abraçados, até o mo‑
mento em que finalmente tocaram a madeira coberta de cracas
do casco da escuna. Exaustos, encontraram uma escada de corda
e subiram a bordo.
A quietude do tombadilho era inesperada.
— Onde está todo mundo? — cochichou Angelique.
Césaire estava atirado nas tábuas do tombadilho, respirando
com dificuldade. Então eles escutaram risos grosseiros subindo do
refeitório do barco.
— Eles estão jogando com o Velho Papai Rum — resmungou o
rapaz. Finalmente, ele sentou no piso, olhou para ela e viu que esta‑
va tremendo, seu vestido arrancado pelas vagas. — Olha, é melhor
tu botar estas roupas — falou, retirando as suas e ficando desnudo.
— Melhor eu ficar pelado do que tu. Os marinheiros não gostam de
mulheres a bordo, para um marinheirinho experiente feito eu tá
tudo bem, mesmo que seja preto. Esconde o teu cabelo pra tu virar
rapaz — completou, estendendo­‑lhe a touca de lã tricotada que
guardava no bolso.
Ela tentou não olhar para o pequeno pênis de Césaire, encolhido
e acinzentado pela água, mas ficou surpreendida ao ver como era
magro o resto de seu corpo, tremendo na brisa enquanto esperava
em pé ao lado dela.
— Vem logo! — disse ele, e a moça se levantou para acompanhá­
‑lo ao longo do tombadilho até que encontraram uma pequena es‑
cotilha que dava para o convés inferior.
— Entra aqui! — disse ele, baixinho. — Vou ver se encontro o
capitão. Ele estava esperando que eu chegasse num bote, com uma
lanterna na proa e escutaria teu pai gritando um “Ô de bordo!” bem
alto. O teu velho ia pagar pela travessia dele.

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Lara Parker

Ela penetrou na escuridão. Ele fechou a escotilha por fora e sumiu.


Ela esperou por longos minutos, que se foram arrastando até se
transformarem em horas incertas. Novamente estava escondida da
vista dos outros, forçada a suportar a impotência da prisão, mas fi‑
nalmente teve tempo para pensar a respeito de tudo quanto lhe ha‑
via sucedido e sentiu­‑se torturada pelo remorso. De algum modo,
ela havia assassinado seu próprio pai — mesmo com as mãos ata‑
das, ela empurrara o punhal até se lhe cravar no coração — um
crime impensável. Ela o fizera para se salvar, mas depois havia fugi‑
do. Quem acreditaria nela, agora que estava totalmente sozinha?
Não fazia a menor ideia se o seu pai lhe falara a verdade a respei‑
to do paradeiro de sua mãe em Trinité, mas estava apavorada pela
ideia de retornar a Saint­‑Pierre. Diversos senhores de engenho sa‑
biam de sua parentela; o padre também sabia. Seria acusada de as‑
sassinato e o julgamento resultaria em sua execução — por
enforcamento? Ou, coisa ainda pior, seria submetida à tortura?
Contudo, talvez ninguém tenha percebido o que acontecera. Se os
escravos realmente se revoltassem, a morte de seu pai seria atribuí‑
da aos seus próprios escravos rebelados e ela teria liberdade para
continuar vivendo em Martinica. Mas como? Para onde poderia ir?
Havia ainda outro pensamento que a assombrava desde as pro‑
fundezas de sua mente. Seus poderes, ainda tão novos e pouco
familiares, a deixavam estupefata. Percebeu que não havia sinal
de feridas em seu pescoço, apesar das dores agudas que sentira.
Seria ela realmente uma bruxa? Algumas vezes, ela se sentira se‑
duzida pelo cerimonial dos escravos, arrastada pelo fervor dos
adoradores e os loás lhe tinham parecido espantosamente reais.
“Temo por sua alma imortal”, dissera­‑lhe o padre Le Brot. Aquele
poder que ela possuía provinha de um deus ou do lado obscuro, o
lado do mal? Seria ela, como o padre Le Brot a havia advertido,
uma serva do Diabo?
Ela podia senti­‑lo agora, ali mesmo no convés inferior, com seu
fedor abominável. A escuridão estava imbuída de sua presença e o
odor imundo era o mesmo que ela recordava, o fedor pútrido de

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

carne apodrecida. Bastava pensar nele para sentir como pairava a


seu redor, e caso ela ficasse quieta e se concentrasse, seu toque se
fazia palpável... até mesmo íntimo.
Os gemidos dos escravos acorrentados, magoados e lamuriosos
eram como a música dos largos tubos ocos do grande órgão da
Catedral de Saint­‑Pierre — os sons mais graves, aqueles tão pro‑
fundos, que mal se ouviam, mas que vibravam através dos ossos.
Aquela elegia lamentosa e melancólica se transformou na voz dele
— uma queixa mais entristecida do que poderia ser qualquer
pranto humano e, através do ar tão quente e grosso que parecia
lama flutuante, ela viu a curva da proa se abrir e a água do mar
invadir o convés inferior, erguendo­‑se em uma onda negra que
entortava o espaço, enchendo­‑o com o som de um rugido tremen‑
do que se quebrava em torno dela como se ela fosse um penhasco,
antes de ser sugado pelo retorno da maré e se mesclar novamente
com a escuridão da noite.
Ela fechou os olhos e escutou o som de seu coração latejan‑
te, rápido e agudo. Então ouviu outro ruído, profundo e pul‑
sante, subindo de dentro dela, como se dois corações estivessem
batendo juntos.
— Não — ela ofegou baixinho, os pelos se erguendo em seus
braços. — Não faça isso...
— Angelique — ele sibilou, sua voz como unhas arranhando
uma tábua. — Venha comigo agora, venha comigo...
— Quem é você?
— Fui eu que a salvei... Eu estava lá com você...
Ele estava muito próximo dela agora e ela sentia a água fria do
oceano penetrando pelas fendas mal calafetadas do casco em que
ela apoiava as costas, espalhando­‑se entre suas coxas, os dedos con‑
gelantes viajando por baixo de suas roupas, subindo entre suas per‑
nas. Ela se contraiu e esperou enquanto ele a explorava por toda
parte, circulando ao redor de sua cintura, beliscando seus seios ain‑
da minúsculos, suas carícias como ferrões de gelo, até que, final‑
mente, ela escutou um suspiro frio e leve.

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— Venha comigo...
— Diga­‑me quem você é... — sussurrou em resposta.
Um riso paciente e sem alegria, que poderia ser o som dos elos da
corrente da âncora se esfregando uns contra os outros, ecoou em
seus ouvidos, enquanto ele murmurava:
— Mas você sabe quem eu sou. Você sempre soube, minha linda.
Então, por que pergunta? Se quiser, posso dar­‑lhe um nome, mas
isto a satisfará?
— Sim...
— Eu sou Aquele que Vive para Você, que anseia só por você, o
Deus de Chifres...
Ela estremeceu.
— Obscuro, deixe­‑me.
Sua respiração era como os gases sufocantes do vulcão Mont Pe‑
lée, que às vezes a atmosfera carregada impelia para as praias, oleo‑
sa e pungente, e agora ela podia vê­‑lo, enquanto aquele mar de
veludo preto se transformava em vestes esvoaçantes e seus braços
possantes abraçavam as tábuas que firmavam a carena. Seus olhos
eram carvões em fogo e sua pele tão macia quanto obsidiana polida,
mas sua voz era o flutuar espumante da escuna enquanto a maré se
esbatia contra seu casco.
— Fui eu que lhe dei o poder. Você agora é minha serva. Mais
uma vez.
— Não foi você. Fui eu mesma que fiz aquilo — insistiu Angelique.
— Como você conseguiu matar seu pai?
— Eu senti o poder dentro de mim. Eu mesma fiz a escolha.
— De me usar.
— Eu sei quem você é de verdade! O Mal personificado! Te esconjuro!
O barco estalou e estremeceu como se tivesse batido em um ban‑
co de areia e o casco se encolheu às proporções de antes. A forma
musculosa e brilhante se misturou às tábuas da carena e era agora
novamente o gemido dos escravos, retorcendo­‑se em suas cadeias.
Mas a voz chiou novamente em seus ouvidos:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Você jamais poderá fugir de mim. Eu permaneço em seus


pensamentos. Para sempre.

* * *

Ela estava irrequieta agora, sua pele começara a comichar. Quanto


mais tempo teria de permanecer neste buraco? A espera começou a
roer­‑lhe a paciência e ela estava a ponto de empurrar a escotilha,
para ver se a podia abrir por dentro, quando escutou passos e vozes
acima de sua cabeça. Imediatamente, sua coragem a desertou e ela
se encolheu por trás dos grossos fardos de tabaco com seu odor de
terra argilosa. Pelas frestas entre as tábuas já era possível divisar os
raios da aurora a espiar para dentro do convés inferior.
Nesse momento, ela escutou o guincho da âncora sendo erguida
e o suspiro asmático do cabrestante. A água pululava e latejava sob
a quilha e ela escutava gritos mais altos que o som das roldanas ge‑
mendo pelo esforço de puxar a lona das velas que estalejavam ao
vento. O navio começava a velejar! A escuna se moveu, ergueu­‑se e
caiu espadanando enquanto cortava as ondas como um arado e ela
sentiu seu coração batendo excitado. Para onde estariam indo? E
onde estava Césaire?
Quando ela pensou que não mais podia suportar o suspense, a
escotilha se abriu com um estalo súbito e um estremeção, e lá estava
Césaire, que se jogou no piso a seu lado. Ele trazia uma pequena
lanterna, a chama minúscula sacudida pelo movimento, depois
aquietada pelo ar parado. Ela ficou contente ao ver que ele conse‑
guira um par de calções e uma camiseta de jérsei, mas a melhor
parte era que ele ostentava um sorriso que lhe ia de orelha a orelha.
— Césaire! Finalmente! O que aconteceu?
— Tamos indo para o mar! — ele exclamou. — Guria, nós tive‑
mo uma sorte danada!
— Para o mar... mas para onde?
— Para a ilha grande — Hispaniola! Para a cidade mais linda
— Port­‑au­‑Prince! E lá, nós fiquemo gordos e ricos!

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Lara Parker

— Quanto tempo leva a viagem?


— Dez dias — duas semanas...
— Mas por quê? — indagou ela, desconfiada. — Pensei que ía‑
mos ficar no porto da enseada até de manhã. O que aconteceu? —
indagou, batendo com os dois punhos nas coxas. — Ai, eu odeio ter
de ficar aqui embaixo, sem poder saber o que está acontecendo! Por
favor, não posso ir até o tombadilho?
— Mas é justamente isso! Tu pode! Tu pode subir agora. Só tem
uma coisinha.
— Qual é?
— Tu tem de cortar esses cabelos. Se eles veem que tu é uma
guria, eles te levam de bote e te deixam solta na primeira ilhota de‑
serta que encontrarem na viagem!
— Cortar meus cabelos? Mas com o quê?
— Com isto! — disse ele, brandindo um cutelo, um facão
de marinheiro.
Instantaneamente e sem discutir mais, ela tirou o gorro de lã
e deixou os cachos dourados caírem até abaixo de seus ombros.
Pegando uma mecha, Césaire foi serrando com a lâmina rombu‑
da até que ficou solto em sua mão. Jogou­‑o no colo dela e come‑
çou a cortar outra. O tempo todo, ele tagarelava com um
entusiasmo irreprimível.
— Acabei de subir ao mastro principal, para desfraldar o ga‑
lhardete lá em cima. Santo Deus, esta é a melhor escunazinha em
que já estive!
— Conte­‑me tudo o que aconteceu. Você desapareceu a noite
inteira. Conseguiu encontrar o capitão? — indagou ela.
— Ah, consegui! Foi meio difícil, mas eu me salvei pela mi‑
nha esperteza! E também porque eu sei marinhar pelos mas‑
tros muito bem!
— Ah, não! Você arriscou sua vida por mim de novo, Césaire?
— Primeiro eu me esgueirei pelo tombadilho e escutei pela vi‑
gia que dava para a cabine do capitão. Eu escutei quando ele dizia
aos oficiais que os escravos estavam incendiando Saint­‑Pierre e

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

que não iam mais poder comerciar ali por uns tempos. Eles não
podiam mais descarregar e vender o tabaco que trazem a bordo
no porto grande da cidade e então decidiram levantar âncora e
partir para o outro lado do Mar das Caraíbas... Eles querem pe‑
gar mais escravos por lá, os que já têm não acham suficientes para
pagar a viagem. Eles discutiram durante horas e finalmente se
decidiram a velejar.
— Mas quando você conversou com o capitão? — indagou An‑
gelique, enquanto via outra madeixa de seu cabelo cair em seu colo.
Césaire estava agachado junto dela e esfregava a lâmina em seus
cachos como se estivesse serrando madeira.
— Uau, essa foi a parte mais assustadora. Eu tava lá agachadinho
na janela, escutando tudo e pensando em qual seria o melhor plano
a tomar, quando um marinheiro me apareceu por trás e me agarrou
pela orelha! “O que é que tu tá fazendo aqui, guri? E nu em pelo,
ainda por cima?”, ele gritou, como se tivesse pegado uma cabra da
montanha e pretendesse enfiar num espeto para assar. Aí eu disse:
“Eu tenho permissão para subir a bordo, senhor!”, e ele diz: “De
quem?” E eu digo: “Do capitão”. E aí ele me arrastou, pelado como
um urubu, escada abaixo e até o alojamento do capitão. Ele disse ao
capitão que eu era um clandestino!
— Deus do céu! O que eles fazem com clandestinos? — inter‑
rompeu Angelique.
— Bem, o capitão já estava pensando em mandar me jogar pela
amurada, quando eu disse: “Senhor Capitão, eu teria o maior pra‑
zer de subir pelo seu mastro principal e consertar aquela vela real
que tá rasgada, patrão!” Eu nem sabia se havia alguma vela rasgada,
mas achei que podia tentar a sorte, porque... Ora, sempre tem uma
vela rasgada! — explicou Césaire. — Ele não acreditou que eu pu‑
desse subir até lá em cima e disse que os rapazes de cor têm medo
das alturas e aí eu disse: “Experimente pra eu ver!” Assim que a luz
se abriu, todos vieram ao tombadilho para me ver tentando, ou pro‑
vavelmente para me ver cair, o que seria um baita divertimento
para eles. Eles mal sabiam que eu trepo nas escadas de corda melhor

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Lara Parker

que um macaco! — completou ele, com uma risada, balançando­‑se


nos calcanhares.
— Por que você não desceu para me contar antes?
— Eles me deixaram trancado no quarto dos beliches até de ma‑
nhã e aí é claro que eu não pude vim te ver...
— Bem, e você conseguiu? Você subiu até o alto? — ela pergun‑
tou, seus olhos vibrando de entusiasmo.
— Ai, guria, mas que pergunta é essa? Tu ainda não me conhece?
Até sem as escadas de corda, eu podia ter subido agarrado no mas‑
tro tão fácil que nem um coqueiro e deixava eles todos de boca
aberta até que o vento entrasse... — gabou­‑se o rapaz. — Mas eu fiz
o melhor que podia para melhorar o espetáculo. Quando eu che‑
guei no topo, vi que a vela principal não estava rasgada, mas toda
frouxa e eu amarrei de novo todos os nós e firmei as cordas nas ar‑
golas e quando eles estavam todos de pescoço virado para cima me
olhando, eu me soltei e caí! Eu caí no travessão logo abaixo e me
agarrei com uma mão só! Claro que foi tudo faz de conta, mas colou
muito bem! Eles ficaram tão espantados, que o capitão disse que eu
podia ficar a bordo.
— Mas, e eu? — falou Angelique, ansiosa. — Quanto tempo eu
ainda vou ter de ficar encerrada aqui embaixo, no meio do escuro?
Eu já não aguento mais!
— Vai com calma, guria — riu­‑se ele. — Eu me virei por ti
também... Depois eu disse a eles que havia outro rapaz da minha
idade escondido no convés inferior e o capitão riu e me deu um
tapa de brinquedo na orelha, zapt! Bem assim... E me disse que eu
era o sujeitinho mais insolente que ele já tinha encontrado! Aí um
dos oficiais se meteu na conversa e disse pra ele que eles estavam
precisando de um garoto na cozinha e ele disse que era verdade e
vamos conhecer esse outro rapaz que deve ser tão temerário quan‑
to você! Ele disse: “Assim que tivermos começado a navegar, me
leve esse outro a meu alojamento”. Pronto! Tu tá bem assim! Ago‑
ra põe o meu gorro de volta para não parecer que o teu cabelo tá
espetado demais!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Césaire e Angelique subiram pela escada íngreme até o tombadi‑


lho oscilante e ela piscou com a luz da aurora. O navio estava vivo,
cheio de marinheiros atarefados, uns no cordame e outros nas li‑
nhas, gritando e puxando com força. Um ou dois dos homens os
olharam pelo canto dos olhos, mas a maior parte simplesmente os
ignorou, concentrados em seu trabalho de ajustar as velas para o
timoneiro conduzir o barco na direção desejada com o apoio dos
ventos. Eles já estavam tão longe de Martinica, que ela pôde ver o
alto da ilha seguinte, Dominica, aparecendo no horizonte distante
e o brilhante Mar das Caraíbas se expandia em todas as direções, o
sol nascendo à direita e o vento em popa. Todas as velas estavam
enfunadas e empuxando, e o oficial que ela pensou ser o capitão
estava parado na ponte, olhando para o timoneiro que segurava a
roda do leme, com uma das mãos no quadril e seu casaco azul de‑
sabotoado no colarinho.
Um momento depois, lá estava ela, de pé diante do homem im‑
ponente, imunda e descalça, a touca cobrindo seus cabelos tosados
e a cabeça baixa.
— Quer dizer, então, meu rapaz, que vocês dois decidiram viajar
como clandestinos em meu barco, não é verdade? — disse ele, seve‑
ramente. — Você sabe que isso é um crime, não sabe?
Angelique estava com medo de erguer o rosto, assustada de‑
mais para falar. Simplesmente concordou com a cabeça e con‑
tinuou olhando para as tábuas que formavam o assoalho do
castelo de proa.
— O que eu deveria fazer era levar vocês dois de volta para
Saint­‑Pierre — continuou o capitão — e entregá­‑los às autorida‑
des locais, mas não dá para fazer isso, não com essa rebelião in‑
fernal. Só Deus sabe se eu poderia encontrar a milícia... Olhe
para trás de você.
Ela obedeceu e, sem a menor dúvida, diversas nuvens de fumaça
escura se erguiam das colinas acima do porto. Então, eles tinham
mesmo se rebelado! Os maruns tinham organizado a revolta e os
escravos incendiado Saint­‑Pierre! Seu coração pulou uma batida.

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Lara Parker

Eles teriam destruído o canavial de seu pai? Como estaria Thaïs?


Esperava que sua mãe estivesse em algum lugar seguro.
— Agora escute aqui, rapazinho — prosseguiu o capitão. — Eu
tinha feito uns arranjos lucrativos para tomar a bordo uns cavalhei‑
ros com suas famílias e os levar para um lugar seguro, mas decidi
que não era conveniente arriscar minha carga durante esse maldito
levante e assim velejamos com a maré matinal e, como você bem
pode ver, já atravessamos metade do canal, o vento está ajudando
nosso leme. Eu devia jogá­‑lo no mar, mas você está com sorte. Pre‑
cisamos de um ajudante na cozinha. O que me diz? Está de acordo?
— Sim, senhor — disse Angelique baixinho, falando pela pri‑
meira vez. Ela arriscou uma espiada ao rosto do capitão. Ele era um
homem alto e usava uma barba completa, já grisalha, com rugas
profundas ao redor dos olhos. Ela viu de relance que sua mão direi‑
ta havia perdido os três dedos médios e que ele apertava o polegar e
o mínimo contra o cabo de uma espada.
— Pois muito bem — concluiu o capitão. — Trabalhe bastante e
ajude o cozinheiro no que ele precisar, faça tudo que ele mandar,
não lhe crie problemas, e terá uma viagem segura até Hispaniola,
gratuita ainda por cima, eu poderia dizer. O que eu vou fazer com
você depois que chegarmos lá vai depender de seu desempenho du‑
rante os próximos dez dias. Agora saia da minha vista! — ordenou
e fez um sinal com a testa para Césaire. — Esse macaquinho vai lhe
mostrar o caminho. Temos uma porção de panelas para esfregar,
tenho certeza, e o porco salgado tem de ser bem batido para poder
cozinhar. E você vai nos servir o chá no tombadilho. Ei, espere um
minuto! O que é que você tem de me dizer, rapaz?
— Obrigado, senhor — ela conseguiu balbuciar.
O capitão olhou­‑a com as vistas apertadas e respondeu:
— Hum!
Ela correu atrás de Césaire.
— Apura! — cochichou Césaire. — Antes que ele mude de ideia!
Correram pelo tombadilho, passando pelo grupo de jovens ofi‑
ciais, que estavam parados junto ao gradil, olhando para Martinica,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

falando com entusiasmo e fazendo gestos em direção aos incêndios.


Um jovem alto e bem apessoado, com cabelos castanhos crespos, lan‑
çou um olhar em sua direção. Nesse momento, o barco afundou na
depressão formada por uma onda imensa que se aproximava e o tom‑
badilho estremeceu e se inclinou. Césaire agarrou Angelique pelo
braço a fim de conservar­‑lhe o equilíbrio, mas ela gritou, escorregou
e caiu, batendo diretamente contra um par de pernas uniformizadas.
— Ah, mil perdões, senhor!
— Ôpa! Que foi isso? — disse o jovem, porém ao ver que ela esta‑
va toda amontoada no chão, sorriu e estendeu o braço para ajudá­‑la a
se erguer. Enquanto ela se levantava desajeitadamente, ergueu os
olhos para ele. Ficou espantadíssima ao ver­‑lhe o rosto. Ela o conhe‑
cia! Para seu total espanto, reconheceu o rapaz que havia visto naque‑
la noite de carnaval, o rapaz com que havia sonhado tantas vezes e
que conservara vivo dentro de sua mente durante três longos anos.
Inconscientemente, ela segurou seu amuleto, dentro do qual
ainda se achava a selenita, a pedra-da-lua, e abriu a boca, formando
em silêncio o nome do jovem oficial: “Barnabas...”
Ele franziu­‑lhe a testa e se inclinou mais para perto:
— O que você disse, rapaz?
— Eu... eu não falei nada, senhor...
— Pensei que tivesse dito meu nome... Eu o conheço de algu‑
ma parte?
— Nã... nã... não, senhor — gaguejou ela.
— O que está fazendo a bordo?
— Sou o auxiliar do cozinheiro, senhor...
— Ah, sim, fui eu mesmo que o recomendei. Estava com medo
de que o capitão o jogasse na “bebida” — comentou com um sorri‑
so agradável. “Ainda não tem pernas de marinheiro, já vi...”
— Não, senhor.
— Bem, então se cuide para permanecer o mais tempo possível
abaixo do tombadilho, no seu devido lugar. Podemos pegar uma
tempestade e é possível que as ondas o joguem por cima da amurada.
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.

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Lara Parker

Césaire puxou­‑a pelo braço, mas o jovem a fitava diretamente


nos olhos. Ela lembrava de seus olhos, escuros e alegres de conten‑
tamento e da fileira de sardas que lhe cruzava o nariz. Seus modos
corteses e delicados também eram familiares.
— Que idade você tem, rapazinho? — indagou Barnabas.
— Treze, senhor...
— Uma boa idade, mais jovem do que eu quando saí para o mar
pela primeira vez. E a propósito, você não tem motivo para ficar
envergonhado. Nessa minha primeira vez, eu me segurava a uma
corda de segurança o tempo todo — com medo de cair de cara no
tombadilho e porque eu precisava do oceano inteiro para vomitar,
pois enjoei a viagem inteira!
Ele deu uma gargalhada cordial, como de um camarada para
outro e bateu­‑lhe gentilmente no ombro, partilhando de uma brin‑
cadeira, de homem para homem.
— Eu não enjoo, senhor... — ela se aventurou a dizer, por mais
que Césaire lhe fizesse sinais para apurar.
— Ah, não? Ora, pois então eu tenho inveja de você, rapaz. Quem
sabe, alguma vez no futuro, você me possa contar o seu segredo...
Ela se virou para descer a escada que dava para a cozinha, mas o
oficial a chamou de novo.
— Espere um minuto, rapaz!
Ela olhou para trás, meio assustada. Ele olhava para ela com
maior atenção agora e sua mão subiu até os lábios.
— Sinto que há alguma coisa familiar em você. De onde você é?
— De Martinica, senhor!
— Sim, mas de que parte?
— Basse­‑Pointe, senhor!
— Hummm... mas o que será? Esses seus olhos... azuis como
ásteres selvagens... Ah, está bem, a memória nos passa a perna al‑
gumas vezes. Não posso tê­‑lo conhecido antes, de jeito nenhum.
Mas boa sorte em sua primeira viagem. Espero que se torne um
ótimo marinheiro!
Césaire puxou­‑a para o interior da cozinha.

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Quinze

arnabas! Acorde! Preciso falar com você!


Batiam incessantemente à sua porta e Barnabas foi ar‑
rancado com violência de seu devaneio. O diário estava em seu
colo, onde o deixara, completamente espantado pela última pas‑
sagem que lera.
— Barnabas! Você está aí? — era a voz de Carolyn.
Ele foi abrir a porta e encontrou­‑a em pé, usando um chambre,
os cabelos despenteados e uma expressão de pavor no rosto.
— Carolyn, o que foi?
— Ai, Barnabas, é a mãe. Ela levou um tombo!
— Está muito ferida?
— Eu não sei. Ela acordou no meio da noite, tentou sair da cama,
mas ao se erguer, sentiu uma tontura forte. Ela disse que teve a im‑
pressão de que todo o sangue descia da cabeça...
— Onde ela está agora?
— Está deitada. Júlia está com ela e me pediu para vir buscá­‑lo.
Ela precisa de sua ajuda!

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Lara Parker

— É claro, fico feliz — quer dizer, vou imediatamente. Diga­‑lhe


que já vou.
Ele trancou a porta e tentou concentrar­‑se em onde deixara
seus chinelos. Então achou que não devia colocar o chambre sobre
o pijama, decidindo que o melhor seria se vestir antes de descer.
Seu cérebro estava girando com as histórias do diário. Aquela ter‑
rível viagem! Ele era ainda tão jovem! O ataque dos piratas... uns
corta­‑gargantas impiedosos, que o haviam posto a ferros. Havia
aquele com a cicatriz no rosto, que dera uma gargalhada e dissera
que poderiam conseguir um bom resgate em troca de um
“Collins”, caso conseguissem levá­‑lo vivo de volta até o Maine.
Havia aquele vilão de coração negro que queria matá­‑lo só para
ver se ele tinha mesmo sangue azul. Sua certeza total de que iria
morrer. Então, aquele pedacinho de gente, o rapazinho imundo
da cozinha, que o havia libertado! Ele jamais soubera seu nome
— era só o grumete que trabalhava com o cozinheiro e que fugia
também para salvar a própria vida — tão rápido como mercúrio
— ele o libertara e depois sumira!
Ele enfiou as calças e sentou­‑se na cama para atar os sapatos.
Arrancado das fauces da morte. Os patifes que o guardavam mor‑
talmente doentes, em uma agonia de vômitos, incapazes de impedir
seu jovem resgatador, que era... impossível! Uma coincidência ab‑
surda demais sequer para ser considerada. Seria possível que sua
vida e a dela tivessem se desdobrado uma sobre a outra, como se
houvesse a mão de algum fado a dirigi­‑las assim, antes que ele se‑
quer a conhecesse e... a desejasse? Incompreensível!
Foi neste estado de mente confuso que Barnabas se apresentou
no quarto de Elizabeth. Júlia estava sentada ao lado dela, vigiando
a dama idosa, seu próprio rosto enrugado de preocupação.
— Ai, Barnabas... Obrigado por vir. Odeio pedir, mas você não
se importa? Willie já está com o carro no portão e nós precisamos
que você vá até a cidade comprar alguns remédios. Ela não tem to‑
mado seus remédios — para a pressão sanguínea — e eu temo que
ela tenha tido uma queda repentina...

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Culpa minha — disse Elizabeth fracamente, erguendo a ca‑


beça do travesseiro. — Minhas pílulas acabaram e...
— Fique quietinha agora, minha querida, continue deitada e
descanse. Está tudo bem, Barnabas pode ir buscar seu remédio ago‑
ra — disse Júlia, tranquilizadoramente.
— A farmácia está aberta a esta hora? — indagou ele.
— Sim — disse Júlia. — Aquela que fica em Main Street — a
Pierson’s. Eu já telefonei e eles já aviaram a receita e estão com o
medicamento preparado para pronta entrega.
— Vou até lá agora mesmo.
— Muito obrigada, primo — murmurou Elizabeth das profun‑
dezas do leito.
— Ela vai ficar bem, tão logo tome os remédios...
— Não precisa dizer mais nada. Estou satisfeito em poder ajudar
— garantiu­‑lhes Barnabas e saiu do quarto.

* * *

A aurora já quase despontara quando Willie ajudou Barnabas a subir as


escadas de volta para seu quarto. Júlia, que estivera frenética de preocu‑
pação, saiu correndo de seu quarto no momento em que viu Barnabas
cambaleando pelo corredor, um dos braços ao redor do ombro de Willie.
— Barnabas! Meu Deus! O que aconteceu?
Ele se virou para contemplá­‑la com olhos inexpressivos e aver‑
melhados. Sua camisa estava coberta de sangue coagulado, mas um
fio de sangue recente continuava a correr de seu pescoço. Ele gemeu
e desabou entre seus braços. Suportando seu peso o melhor que
podia, ela olhou em súplica para Willie:
— Mas o que foi que aconteceu?
— Eu não sei — respondeu Willie. — Ele não conseguiu me di‑
zer. Acho que foi atacado por algum tipo de animal.
Barnabas dobrou o braço e tocou com a ponta dos dedos no pes‑
coço, que ainda sangrava dolorosamente. Enquanto os dois o colo‑
cavam na cama, Barnabas gemia e sacudia a cabeça.

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Lara Parker

— Ele vai ficar bem? — perguntou Willie.


— Tenho de examiná­‑lo primeiro — disse Júlia, lutando para
manter a voz calma. — Você tem o remédio da Sra. Stoddard?
— Está bem aqui.
Willie lhe estendeu um saco de papel amassado, também man‑
chado de sangue.
— Eu... eu tive de trocar um pneu depois que estourou e... e o
carro estava numa ladeira... eu tive de procurar uma pedra para
colocar atrás da roda traseira e...
— Está tudo bem, Willie, depois você me conta. Apenas leve de‑
pressa o medicamento para a Sra. Stoddard. Ah, sim, jogue fora esse
saco primeiro.
— Tudo bem, pode deixar — disse ele, seus passos pesados soan‑
do no corredor.
Júlia dobrou­‑se sobre Barnabas, desabotoando­‑lhe a camisa, que
estava empapada de sangue. Ele gemeu e abriu os olhos.
— Barnabas, você pode me dizer o que aconteceu?
Ele a fitou, estonteado e sem piscar, como se estivesse olhando
para um lugar muito distante.
— Barnabas...
— Júlia... Eu fui seguido por alguma criatura — ele sussurrou.
— Eu... eu... eu nem sei o que era — parecia um homem — mas não
era um homem — era forte demais — algum tipo de demônio...
— Ele... estava... usando roupas de homem?
— Um terno, acho eu... não... uma capa. E tinha a força de um...
de um... — ele balbuciou, sua voz se extinguindo e então ele recaiu
no travesseiro com um estremecimento.
Júlia foi até o banheiro e retornou com uma grande bacia esmal‑
tada e diversas toalhas de rosto, que ela colocou na mesinha de ca‑
beceira. Seu pé bateu em um pequeno objeto caído no chão,
semiescondido sob a cama e se inclinou para ver o que era. Ela er‑
gueu o diário e o manteve por um momento à luz do abajur.
— Você andou lendo isto a noite passada? — indagou em um
tom de voz que traía sua desaprovação.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Que foi... que você disse?


— Você estava lendo o diário de Angelique?
Ele encarou o teto.
— Eu já lhe disse que não me despertou o interesse.
Ela colocou o livro sobre a colcha, nos pés da cama e gentilmen‑
te começou a limpar o sangue do pescoço de Barnabas, com medo
do que poderia encontrar. Lavou­‑lhe as feridas com um pano úmi‑
do, mergulhou­‑o na água da bacia, torceu o pano e limpou seu pes‑
coço novamente.
Barnabas começou a falar em um murmúrio que parecia quei‑
mar de intensidade.
— Ele apareceu assim, do nada...
— Onde vocês estavam?
— Perto das docas. Fui eu que disse a Willie que tomasse o ca‑
minho da margem. Estávamos na parte mais funda da Rua do Ca‑
nal, quando passamos por cima de alguma coisa — alguma coisa
afiada, como um caco de garrafa — e o pneu furou.
— Ah, mas esse é um lugar muito perigoso, só armazéns, não é?
Ela encontrara um corte irregular, logo abaixo da clavícula de
Barnabas e ele se encolheu de dor quando ela o tocou com a toalha.
— Sim eu vi vários vagabundos — homens sem­‑teto debruçados
sobre um fogo aceso numa lata de lixo — e então eu disse para mim
mesmo, ora, se eu sair do carro, pelo menos este lugar não está
completamente deserto.
— Você nunca deveria ter saído a caminhar por lá sozinho.
— Pode ser, mas eu estava ansioso para comprar o remédio, você
sabe. Elizabeth dependia de mim e eu tenho a sensação de que a
família acha que eu sou... irresponsável.
— Isso não é verdade — contestou Júlia. — Roger é condescen‑
dente com todo mundo — é a sua maneira de ser. Não há motivo
para você tomar isso pessoalmente.
Júlia era sempre tão calma e simpática, pensou ele, sempre capaz de
confortar e tranquilizar. Mas havia alguma coisa diferente em sua atitude
neste momento, parecia distante... removida. Ele fez uma careta de dor.

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Lara Parker

— Vamos, continue deitado. Não se esforce. Você nem precisa


falar mais.
— Parecia uma tarefa tão simples — disse ele, impacientemente.
— Ir até a cidade com Willie, apanhar o medicamento e retornar. E
era uma tarefa necessária, Elizabeth precisava do remédio. Nem me
passou pela cabeça ficar parado dentro do carro, esperando que
Willie trocasse o pneu.
— Claro que entendo. Então, o que houve?
— Eu deixei Willie ali, enquanto ele tirava o macaco da mala do
carro. Você sabe, há uma ladeira ali, a rua sobe em um ângulo agudo...
— Subindo das docas...
— Pois é. Bem, eu fui subindo pela calçada, pensando que, quan‑
do atingisse a rua principal, era somente uma questão de dobrar a
esquina à direita e caminhar até a farmácia, que fica apenas a três
quarteirões de distância...
— Você pode sentar­‑se, para que eu remova sua camisa?
Barnabas sentiu uma leve irritação pelo fato de que Júlia não
parecia estar prestando atenção ao que ele dizia, quase como se
pensasse que o que lhe ocorrera fora culpa sua.
— Seja como for, eu estava subindo a ladeira e cheguei a um tre‑
cho da calçada em que as lâmpadas dos postes estavam apagadas.
Estava extremamente escuro, mas eu percebi que havia diversas
aberturas em formato de grandes arcos que entravam profunda‑
mente pelas paredes laterais.
— Sim, antigamente ali ficava uma cocheira — disse ela.
— Realmente? Sim, está certo, agora que você mencionou, as
aberturas eram grandes o bastante para a passagem de carrua‑
gens puxadas por cavalos — arcos de tijolos e portões de madeira,
bem lá no fundo. Quando eu passava por uma das aberturas, en‑
xerguei um sem­‑teto adormecido ali, sob uma pilha de jornais.
Passei para o meio da rua, dando distância suficiente, não por
receio, mas para não perturbar o infeliz, mas quando olhei de
volta para ele, percebi que seus olhos estavam abertos e arregalados,
olhando em frente sem ver e havia uma grande poça de sangue

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

sobre os jornais em que descansava a cabeça. De repente, percebi


que estava morto.
— Santo Deus! Você acha que alguém o assassinou?
— Ah, não sei. Eu estava tão determinado em ir buscar o remé‑
dio, que simplesmente passei por ele às pressas. Foi uma coisa tão
impiedosa de minha parte, tanta indiferença, apressar­‑me daquele
jeito, mas notei imediatamente que não havia nada que pudesse fa‑
zer por ele e pensei que Elizabeth estava viva, mas podia estar pre‑
cisando desesperadamente de mim. Decidi que chamaria a polícia
tão logo retornasse a Collinwood.
— Provavelmente ele esteve em alguma briga de bar.
— Talvez, mas estava deitado no meio de jornais.
— Ele tinha sido atirado ali na entrada do portão?
— Sim, é possível. Bem, seja como for, eu finalmente cheguei em
Main Street e, mesmo que não houvesse trânsito a essa hora, pelo
menos as vitrines estavam abertas e bem iluminadas. Eu estava an‑
dando rapidamente em direção à farmácia — podia ver o sinal lu‑
minoso da Pierson’s acendendo e apagando — quando pensei que
estava escutando alguém atrás de mim.
— O que quer dizer?
— Alguém caminhando. O som de passos. Porém, passos to‑
talmente em sincronia com os meus, porque quando eu parava,
paravam também; e quando eu recomeçava a caminhar, lá esta‑
vam eles de novo.
— Quem sabe foi um eco. Algumas vezes isso ocorre em uma
rua deserta.
— Foi exatamente o que eu decidi que era, porque quando escu‑
tei o som de passos ficando mais fortes, girei nos calcanhares. E não
havia ninguém ali!
— Deve ter sido aterrorizante — sugeriu Júlia.
A essa altura, a bacia de água estava vermelha de sangue e Júlia
ainda continuava a retorcer o pano e a passá­‑lo de novo pelo peito e
pela parte superior de um de seus braços. Ela voltou ao banheiro,
esvaziou a água tingida de vermelho­‑escuro na latrina e encheu de

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Lara Parker

novo a bacia na pia. Quando retornou, ela começou a trabalhar nos


rasgões feios que lhe marcavam a pele do pescoço.
— Seja como for — prosseguiu Barnabas, ainda mais agitado
— eu cheguei até a farmácia e, por sorte, Pierson me esperava, com
a sua prescrição já preparada. Parece que o empregado que em geral
ficava no turno da noite estava doente. Ele me entregou as pílulas e
indagou a respeito do estado de Elizabeth e fez comentários sobre a
possibilidade de chover amanhã. No momento em que ele estava
registrando a compra na caixa, aquelas campainhas tocando a cada
volta da manivela, ele ergueu os olhos para a vitrine da loja e estre‑
meceu involuntariamente. Juro por Deus que todo o sangue sumiu
de seu rosto e ele ficou pálido como um cadáver.
— Mas o que foi?
— Foi o que eu lhe perguntei imediatamente: “Você viu alguém
pela vitrine?” Mas no mesmo instante, a palidez o deixou, ele reco‑
brou o controle e sacudiu a cabeça. “Não foi nada, só uma alma
penada que às vezes anda por aí...” — comentou rindo, como se
fosse uma piada. Mas eu notei uma mudança abrupta em seus mo‑
dos, porque logo depois que eu paguei e recebi o troco, ele me levou
às pressas até a porta e assim que eu saí, fechou­‑a por dentro sem a
menor cerimônia, passou a tranca e baixou o cortinado da vitrine.
Quase imediatamente, apagou as luzes e eu o vi caminhar de volta
rapidamente para os fundos da loja, em que, suponho eu, existe
uma porta traseira dando para alguma travessa.
— Claramente ele se assustara com alguma coisa — sugeriu Júlia.
— Decerto. Um momento mais tarde eu escutei lá atrás o som de
um motor sendo acionado e imediatamente pensei em lhe pedir
uma carona — concordou Barnabas.
— Mas é claro! Se ele havia decidido trancar a loja e ir embora,
poderia perfeitamente tê­‑lo levado de volta até onde estava seu car‑
ro! — afirmou ela.
— Um velho automóvel Packard saiu da travessa e Pierson en‑
trou na rua principal com tanta rapidez, que chegou a passar por
cima da esquina da calçada com o pneu dianteiro e disparou em

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

grande velocidade — explicou Barnabas. — Eu nem tive oportuni‑


dade de lhe acenar.
— Mas que pena!
— Contudo, eu falei com meus botões e disse que eram só uns
três ou quatro quarteirões e que, a essa altura, Willie provavelmen‑
te já trocara o pneu e assim eu caminhei, ou melhor dito, comecei
uma corrida de resistência, tipo um cooper, de volta para a Rua do
Canal e dobrei na esquina, sem maiores problemas. Foi nesse ponto
que escutei os passos novamente.
— Você não passou pelo corpo do morto? — indagou Júlia, to‑
talmente entretida pela história.
— Não, eu intencionalmente desci pela calçada oposta, olhan‑
do o tempo todo por cima do ombro e tentando ver de relance o
meu perseguidor infernal e suponho até ter dado uma olhada ou
duas para o cadáver — continuou ele —, mas eu estava mais pre‑
ocupado com o que tinha à minha esquerda, alguns edifícios es‑
curos de madeira...
— Estábulos — informou­‑o Júlia.
— O quê?
— São os velhos estábulos, esses prédios de madeira que você viu...
— explicou­‑lhe. — Ficam justamente em frente das cocheiras...
— Exatamente. Tolamente, eu não percebi se havia alguma por‑
ta aberta ou um canto escuro entre os prédios, quando, surgindo
aparentemente de parte alguma, surgiu este... diabo!
— Ai, meu Deus!
— Ele usava uma capa negra e... saltou sobre mim pelas costas
ou, pensando bem, pareceu até pular do alto. Sim, ele caiu de algum
lugar e montou­‑me nas costas...
Júlia não sabia o que dizer, seus lábios entreabertos.
— Sua força, Júlia, estava tão fora de proporção para seu tama‑
nho, que era de um ser humano normal, não era em absoluto um
gigante, ainda que me desse a impressão de flutuar acima do solo
como se voasse e caísse de novo sobre mim, rasgando meu pescoço
com unhas longas... unhas aduncas ou, pior ainda, com seus dentes.

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Lara Parker

— O que você pensou que fosse?


— Ora, um ladrão, um assaltante, na hora eu não fazia ideia do que
fosse. Tentei derrubá­‑lo e me livrar dele, mas ele estava pendurado em
minhas costas como um grande... macaco... sua respiração sibilante,
seus dentes rangendo. E então, naturalmente, eu soube do pior.
— Barnabas — você não quer dizer — que deve ter sido...
— Um vampiro.
— Ai meu Deus, e ele?
— Ele fez escorrer meu sangue, mas não... se alimentou.
— Então não houve...?
— Não houve penetração — garantiu­‑lhe Barnabas. — Ele só
me sangrou, eu nem cheguei a perder a consciência, não senti suas
presas penetrarem em meu pescoço. O que foi que você descobriu?
Ela virou Barnabas para a janela, em que um solzinho triste se
apresentava amortalhado em nuvens espessas e inspecionou na luz
as diversas feridas, agora limpas de sangue.
— Há cortes profundos, rasgões na pele, quer dizer, arranhões,
mas não há marcas de presas. Você foi afortunado. Como conse‑
guiu escapar?
— Não sei. Ele parecia desajeitado... Era como se fosse...
novo... inexperiente.
— Ou talvez tenha sido justamente... o seu sangue — o elixir
misturado a suas veias — o sabor ou o cheiro... que o repeliu.
— Mas é claro. Você tem toda a razão. Deve ter sido isso.
Subitamente, Barnabas sentia­‑se muito cansado. Suspirou pro‑
fundamente e seus ombros se afrouxaram. Júlia colocou uma ban‑
dagem sobre os cortes.
— Acho que, desta vez, você se salvou. Mas vou lhe administrar
uma injeção, só para garantir — decidiu­‑se.
Ela se virou para sua maleta médica, retirou a hipodérmica, dre‑
nou uma cápsula de fluido através da agulha e voltou para o lado de
Barnabas. Enquanto ela injetava o soro, disse­‑lhe:
— Você precisa descansar agora. Eu ficarei aqui, velando por
você. Não sairei enquanto não tiver adormecido.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Deus a abençoe, Júlia — disse­‑lhe, seus olhos cheios de grati‑


dão. — É só você que eu tenho no mundo. Você sabe disso.
Ele relaxou no colchão e no travesseiro e ela puxou o lençol de
cima e as cobertas até seu queixo e o beijou. Então assentou­‑se a seu
lado, até que ele recaiu em um sono agitado. Mais de uma vez ele ge‑
meu e se debateu ou gritou alguma coisa sem nexo e ela foi obrigada
a acalmá­‑lo com palavras gentis e sua mão a lhe acariciar a testa.
Enquanto estava sentada a seu lado, ela viu de relance o diário
que deixara aos pés da cama, no mesmo lugar em que o pusera.
Hesitando um momento, ela se inclinou e segurou­‑o com a mão
direita, endireitou­‑se e o abriu em uma página ao acaso, depois em
outra, estremeceu e colocou o livro na mesinha de cabeceira. Mas
após um momento, ela reconsiderou e, após verificar que Barnabas
agora dormia profundamente, pegou­‑o de novo, colocando­‑o em
um bolso de seu casaco e saiu do quarto na ponta dos pés.

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Dezesseis

apturado pelo lusco­‑fusco entre a vigília e o sono, Barnabas foi


perseguido por relâmpagos de lembranças torturantes, en‑
quanto era transportado de volta ao verão de seu décimo oitavo ano
de vida. Eles viram uma fragata movendo­‑se rapidamente na fím‑
bria do horizonte, seus três mastros propelidos por velas enfunadas.
Enquanto ela se aproximava, eles enxergaram através da luneta a
bandeira da Frota Real Espanhola flutuando acima da vela princi‑
pal, porém logo abaixo dela drapejava a temida bandeira negra da
caveira e tíbias cruzadas. Foi como se uma loucura se instalasse a
bordo de seu próprio navio, os marinheiros preparando os canhões
e rolando barriletes de pólvora. Mas os canhões da escuna estavam
mal calibrados por falta de uso ou os canhoneiros não sabiam mirar
e todas as balas caíram no mar. A fragata avançava constantemente
em direção a eles e, embora o capitão desse ordem para virar de
bordo e fugir sob o impulso do vento, ela rapidamente os alcançou
e os piratas acabaram por subir a bordo, gritando pragas, brandin‑
do cutelos e adagas, rindo como demônios.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ele tinha lutado com bravura? Acreditava que sim, porém te‑
merária e desajeitadamente. Guardava uma lembrança feroz de
ter feito um talho na cara de uma das bestas e escutar seu uivo de
surpresa. O combate era uma mistura incompreensível de espa‑
das e cutelos cintilando, gritos de dor e sim, naturalmente, ele
recordava de haver pensado que os bucaneiros não eram cava‑
lheiros, porque não ficavam em pé para combater como soldados,
mas atacavam pela frente só como distração, enquanto um de
seus camaradas depravados se esgueirava por trás e apunhalava
um honesto marinheiro pelas costas. Ele recordava o tombadilho
traiçoeiro, feito escorregadio pelo sangue derramado e um braço
cortado, e depois... será que tinha sido mesmo verdade? Uma ca‑
beça cortada rente por um único golpe de uma lâmina prodigio‑
sa. Ele permanecera determinado a manter as costas coladas ao
mastro principal, para proteger­‑se de um ataque por trás e se de‑
fender melhor dos rufiões. Também recordava talhar o ar à sua
frente com sua espada, em suas fúteis tentativas de repelir aqueles
experientes lutadores.
Eles tinham sido numerosos demais, lançaram longe sua espada
e o amarraram ao mastro, de onde ele foi forçado a assistir enquan‑
to seu capitão arguto e cheio de recursos, aquele mesmo cavalheiro
corajoso que perdera três dedos para outro bando de flibusteiros e
mesmo assim vencera aquela outra batalha, era desta vez massacra‑
do pelos bastardos sedentos de sangue, como um touro sacrificado
em um antigo holocausto.
Inicialmente, ele não tivera qualquer explicação para o fato de os
piratas se decidirem a poupá­‑lo. Mas depois que o barco fora toma‑
do e a maioria de seus camaradas estavam mortos, ele escutou os
fora da lei discutindo entre si. Um de seus companheiros oficiais se
havia rendido após negociar seu resgate, somente para perder a vida
logo depois, porque não havia honra entre esses ladrões, por meio
da informação de que havia a bordo o filho de um rico negociante,
que pagaria uma bela soma por ele, caso fosse poupado e entregue
ileso. Alguns deles tinham acreditado no que ele lhes dissera.

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Lara Parker

Os piratas o haviam posto a ferros no porão, lado a lado com os


escravos cativos. Fora obrigado a deitar­‑se junto deles, encadeado a
seus grilhões, mergulhado nos seus dejetos imundos, escutando
seus gemidos. Tivera de suportar tanta humilhação e vergonha e
um remorso tão estarrecedor, que acreditara terem sido suficientes
para transformá­‑lo de uma vez por todas em um homem íntegro,
com um irrefragável senso de justiça.
Mas de que lhe servira na ocasião? Ele estava convencido de que
morreria com pleno conhecimento de que o negócio corrupto de
sua família, o comércio de vidas humanas, tinha trazido esta puni‑
ção sobre todos eles.
Por quanto tempo ele estivera prisioneiro? Os dias se haviam
mesclado em uma única noite longa de fome, sede e miséria corpo‑
ral e espiritual. Até que, finalmente, ele tinha percebido que o barco
se movia para águas calmas e lançava âncora em algum porto. Eles
desceram para soltar os escravos, levando­‑os para o tombadilho en‑
tre as troças e zombarias mais cruéis, certamente para venderem os
infelizes, mas o haviam deixado sozinho lá no fundo do porão, cer‑
tamente para morrer.
Então o inesperado ocorrera. Ainda podia lembrar do rapazote
curvado sobre ele, dizendo­‑lhe que o protegeria e que ele não ti‑
nha nada a temer. Mas o que ele fizera de fato? Esforçou­‑se para
recordar. Estaria sua memória corrompida? Ele havia realmente
visto o rapaz andar lentamente pelo meio da água imunda acu‑
mulada no porão até capturar... um rato? Ele realmente se arras‑
tara pelo meio das traves da carena mergulhando os braços na
salsugem pútrida do porão até pegar a criatura que tentava fugir
nadando? Por trás das pálpebras, ainda podia ver a figura esguia
do rapaz em silhueta contra a abertura da escotilha, carregando o
corpo castanho e frouxo em sua mão...
Mais tarde, quando o rapaz retornou com um companheiro,
um escravo jovem, ele trazia a chave e lhe abrira os grilhões. De‑
pois disso, seu jovem resgatador o fizera passar por dois guardas,
jogados no piso do tombadilho e vomitando, canecões de rum

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

derramado ao lado deles. Enquanto o escravo observava, o rapaz


branco o fizera descer por uma escada de corda para um bote equi‑
pado com um remo, que estava à sua espera.
Mas isso era incrível! Fora ela que lhe salvara a vida. Barnabas
estava totalmente acordado agora e seu espírito queimava de curio‑
sidade. As lembranças que ele arrastara do fundo de sua mente for‑
neciam muito poucos detalhes. De que maneira ela fizera isso? O
rum! Só podia ter sido! Aos treze anos, ela já era uma feiticeira e
fizera uma poção para envenenar o rum!
Ele tinha de saber se estava certo. Sentou­‑se contra a cabeceira
da cama, franzindo a testa com a dor que sentia no ombro e olhou
ao seu redor em busca do diário. Mas não estava sobre a escrivani‑
nha, nem aos pés da cama e nem na mesinha de cabeceira. Júlia
dissera qualquer coisa a respeito dele antes de lhe lavar as feridas.
Ela lhe perguntara se ele andava lendo aquele diário. Ela o teria
guardado em algum lugar?
Ele se levantou do leito, pôs­‑se de joelhos e, quase desabando de
fraqueza, procurou embaixo da cama, entre os lençóis e as cobertas,
em cima da colcha... Tinha desaparecido!
Cambaleou ao redor do quarto, suas dores protestando ao menor
movimento, desesperadamente procurando no toucador, na mesi‑
nha junto à janela, sobre o assento da poltrona, nas gavetas da escri‑
vaninha. Nada! Não estava em parte alguma! Furioso porque não o
podia encontrar, arrancou fora os lençóis e cobertas da cama,
amontoando­‑os no assoalho. Mas como o diário poderia ter desapa‑
recido? Júlia! Mas é claro, só podia ter sido ela. Júlia o levara consi‑
go! Ele conseguiu chegar até a porta e gritou através do corredor:
— Júlia! — e berrou novamente — Júlia!
Ela saiu de seu próprio quarto, uma expressão preocupada evi‑
dente em seu rosto, mas ele a conhecia demasiado bem e reconhe‑
ceu facilmente a culpa que palpitava por trás da preocupação.
— O que foi, Barnabas? Você está bem?
— Júlia, o que aconteceu com o meu diário? O que você fez com ele?
— Perdão?

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Lara Parker

— O diário de Angelique. Onde está?


— Ora, eu pensei... Você disse que não estava interessado nele e
como eu... eu não queria que ficasse no seu quarto, perto de você,
você sabe muito bem, eu... eu...
— Você o quê? — exigiu ele.
— Eu o removi.
— Onde está agora?
Ela hesitou por um momento, contemplando­‑o com uma mistu‑
ra de ansiedade e de censura.
— Então, você o esteve lendo — afirmou.
— Sim, é claro que estive — ele respondeu com irritação. — E
daí, que é que tem?
— Barnabas... esse diário é maligno.
— Tolice.
— O rancor de Angelique e seus ciúmes motivaram a maldição
que você sofreu há quase duzentos anos. Foi você mesmo que me
admitiu isso. Hoje à noite você foi atacado... por um vampiro. Não
posso imaginar que você queira qualquer força do mal perto de si,
a influenciá­‑lo...
— Como você ousa...
— Barnabas, escute...
— Como você ousa se intrometer onde não é chamada? — ele a
repreendeu. — Decidir por sua conta o que eu posso e o que eu não
posso ler? Não percebe que isso é uma violação de minha privacidade?
— Mas você disse...
— Você não acha que eu sou perfeitamente capaz de determinar
se o diário de uma criança pode ter o menor poder sobre mim?
Você não sabe que, a esta altura, eu sei perfeitamente o que é e o que
significa a malignidade?
— Eu somente acho que você se encontra vulnerável em sua situ‑
ação presente. Lembre­‑se de que eu sou a sua médica e eu decido...
— Você não decide coisa nenhuma! Você é minha médica, como
não, mas não é minha mãe!
Ele viu que ela se encolhia ao ouvir­‑lhe as palavras.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Você o queimou?
— Não. Fiquei com medo de queimá­‑lo — confessou Júlia.
— Então, onde ele está?
Ele mal se podia controlar. Incrivelmente, ela fincou o pé.
— Não tenho a intenção de lhe dizer.
— Mas você não entende? Eu tenho de saber!
Uma frustração, totalmente desproporcionada com a situação, o
envolveu. Subitamente, estava tão enraivecido, que se descobriu de‑
bruçado sobre ela, seus dedos cravados em seus ombros, sacudindo­
‑a e apertando cada vez mais forte.
— Onde é que está? Onde?
— Barnabas, pare! Por favor...
Abruptamente, ele a soltou, estupefato com sua própria reação.
O que estava acontecendo com ele? Contemplou suas mãos com
incredulidade.
— Júlia — ele falou com voz trêmula —, sinto muito, sinto
muito mesmo. Não sei o que deu em mim, porque eu me zan‑
guei tanto...
Caminhou de volta para a cama desarrumada e sentou­‑se, dei‑
xando pender o rosto entre as mãos. Quando ergueu os olhos nova‑
mente, sua expressão estava faminta e miserável.
— É só porque eu... por favor, entenda... eu preciso dele de vol‑
ta... por favor... Perdoe­‑me.
Júlia suspirou.
— Está certo — confessou. — Já que precisa tanto saber, eu lhe
direi. Eu enterrei a coisa, lá no cemitério, sob a lápide dela.

* * *

Sua mente obnubilada pela dor, Barnabas cambaleou no gramado.


A chuva estava caindo havia horas, numa precipitação contínua.
Ele saíra porta afora, sem sequer pegar um guarda­‑chuva e logo
ficara empapado até os ossos. Caminhou encolhido, a centelha de
determinação constituindo o único fogo brilhante dentro dele.

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Lara Parker

Estava desesperado para ler o relato de Angelique sobre a bata‑


lha. Ela o descreveria, revelaria suas ações e como ele fora valente e
generoso. Suas palavras o recuperariam, restaurariam seu vigor e
sua coragem. Ele seria capaz de ver a si próprio outra vez, através de
seus olhos, jovem, otimista, “alegre”, como ela o chamara e “cor‑
tês”, o jovem que ele tinha sido tanto tempo atrás, antes de suas
décadas de depravação. Seu coração doía. Maldita Júlia!
Suas roupas estavam agora molhadas a um ponto que se lhe gru‑
davam à pele, mas havia certo conforto em não mais resistir à força
da chuva e em deixar que fizesse nele o que tinha vontade. O esforço
tinha aliviado a contração de suas feridas e o dilúvio de gotas cain‑
do constantemente se tornara agradável. Ele pensou em Angelique.
Sua primeira paixão transcorrera sob a chuva, aquela cálida chu‑
va tropical de Martinica que parecia feita de seda. Ele recordou os
traços de seu rosto enquanto a beijava, macia e úmida, seus lábios
cheios de água doce. Ele a apertara contra si, sentindo­‑lhe os ossos
por dentro das vestes molhadas de pingar e ela era inteiramente
uma carne líquida que o envolvia. Recordou­‑se de se deitar com ela
entre aqueles lençóis de água morna, um riacho flutuando por bai‑
xo deles e o céu se abrindo acima para banhá­‑los. Seus seios esta‑
vam úmidos e escorregadios, os mamilos duros como sementes
novas e suas mãos nadaram em sua umidade cálida, enquanto seus
corpos flutuavam em um rio de correntes, seus membros deslizan‑
do juntos. Ainda podia sentir a chuva martelando em suas costas,
enquanto um redemoinho o sugava e seus corpos e a chuva e o rio
eram todos uma coisa só.
Ele alcançou o portão do cemitério. Nesse instante, o céu foi
rasgado por um imenso relâmpago esgalhado e um estrondo tro‑
vejante que sacudiu o solo a seus pés. A estátua do anjo ficou
iluminada naquela fração de segundo, pairando sobre sua sepul‑
tura do outro lado do cemitério. Uma única batida de coração e
já Barnabas estava parado diante de sua figura suplicante e, naquela
terra encharcada, ele descobriu facilmente o local em que a gra‑
ma tinha sido perturbada.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Caiu de joelhos e escavou com os dedos nus, arrancando fora


uma touceira frouxa de capim e algumas pedrinhas e galhos secos
facilmente deslocáveis. Então sentiu por baixo das unhas: o diário
estava mesmo ali. Ele quase chorou quando viu o livro jazendo no
meio da lama, uma poça de água se juntando a seu redor enquanto
a chuva caía sobre ele, as páginas empapadas, a capa de couro escu‑
recida e desmanchada.
Uma centelha de esperança lhe sugeriu a possibilidade de que
algumas das páginas ainda pudessem ser salvas e ele abriu os de‑
dos em garra para puxar o livro para fora da terra. Mas nesse ins‑
tante, ele percebeu em que se tornara. Sua resolução, sua fortaleza,
sua devoção à sua nova vida, haviam desaparecido tão facilmente
quanto a lama que escorria sob seus joelhos e ele ficou abismado
ao perceber como se deixara dominar novamente por sua detestá‑
vel obsessão. Mais uma vez, ela o conquistara! Mais uma vez, ele
fora capturado pelo feitiço de uma ligação irresistível e mais uma
vez estava disposto a sacrificar todas as virtudes, até mesmo o co‑
ração generoso daquela mulher que o amava, em troca de seus
desejos desprezíveis.
Fora Júlia que o libertara de tudo isso. O que, em nome de
Deus, ele estava fazendo ali? No mesmo instante em que final‑
mente tivera a oportunidade de viver novamente como um ho‑
mem íntegro, ele estava de novo disposto a jogar tudo fora? Já não
fora torturado o suficiente? O que ele poderia possivelmente ga‑
nhar da leitura daquele diário senão uma nova fantasia de praze‑
res ilícitos? Júlia estivera tentando lhe dizer justamente isso e ele
não se dispusera a escutá­‑la.
A infância de Angelique fora trágica, mas ela era má desde o ber‑
ço, era impossível negar a sua malignidade e enquanto ela vivera,
ele passara lutando contra ela. Ele sempre continuara a se debater,
envolto em um absoluto desprezo por si mesmo, contra aquilo em que
ela o tornara. Como ele poderia agora estar considerando qualquer
outro caminho? Resistir a ela tinha sido a única força de bondade
dentro dele e o que ele mais ansiava agora, com todas as forças de

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Lara Parker

seu ser era pela bondade, a paz que somente um coração livre de
remorso poderia conceder.
Que fique aí mesmo! Subitamente, um sentimento de grande alí‑
vio lhe percorreu o corpo inteiro e uma onda de pura felicidade
inundou­‑lhe o peito. Tremendo em consequência de sua decisão,
careteando ao sentir nas mãos a terra pegajosa, limosa e fria, ele
colocou a lama e as pedrinhas de volta em cima do livrinho e as
cobriu com a touceira de capim que havia arrancado outra vez. En‑
tão ele se ergueu, apertou a terra firmemente com a sola de suas
botas, girou nos calcanhares e, seu passo incerto mas determinado,
caminhou para fora do cemitério.

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Dezessete

ort­‑au­‑Prince! Os loás pairavam sobre a cidade como se o próprio


ar fosse a respiração dos espíritos. Eles lhe sussurravam: Liberdade!
A cidade estava cheia de negros, maruns, mulatos, quadrarões com ape‑
nas uma avó negra, homens e mulheres de cores esplêndidas e brilhan‑
tes, seus corações cheios de raiva. A cólera galopava pelas ruas e
travessas. Não havia nenhum deus cristão por aqui. Era a África que
reinava com seu poder pulsante, seus ancestrais vingativos, seus deuses
sanguissedentos. Em cada porta se avistavam despachos desbotados, de
cada peito suarento pendia um amuleto de ossos amarrado com um fio
de tendão humano. Os altares se erguiam com sangue em suas pedras,
penas e cabelos ressecados nas paredes, guardando todos os pátios.
Eu o vi na doca, um bando de negros ao redor dele. Aproximei­
‑me, como se estivesse sendo atraída por um ímã. Ele fazia fogo. Ele
dançava, seu corpo negro brilhante de suor e dos lugares em que
pisava subia fumaça e quando ele se virava e estendia seu braço para
o chão, as chamas surgiam exatamente como ele havia ordenado.
Fiquei com inveja. Permaneci com ele o dia inteiro.

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Lara Parker

Essa noite eles acenderam os fogos do sacrifício e ele iniciou a


cerimônia que eu pensava conhecer tão bem. Mas não era absoluta‑
mente a mesma coisa. Ele é um verdadeiro canal para os espíritos.
Eles descem nele instantaneamente. Assim que entrou em transe
profundo, ele pegou a espada. Os tambores soavam como tambores
no céu. Ele tremia em pé, sem sair de onde estava. Sua longa saia de
capim balançava e se sacudia para cima e para baixo, como as algas
movimentadas pelas marés. Assim que a espada ficou vermelha em
brasa do contato com os carvões, ele encostou seu fio de navalha em
um braço e depois no outro. Ele desenhou com delicada precisão
em seu próprio peito, pelo pescoço e na língua. Ergueu a lâmina e
cortou em dois um de seus olhos totalmente aberto. Nenhum san‑
gue correu de parte alguma. Não ficaram feridas, nem inchaços,
muito menos cicatrizes. Seu olho permaneceu intacto.
As páginas estavam começando a se separar agora, sob o calor
delicado do secador de cabelos. Júlia deixara o livro secar durante
diversos dias, enrolado em toalhas e depois, finalmente, começara a
separar as páginas com precisão cirúrgica. Era uma obra lenta, tedio‑
sa, frustrante. Uma boa parte do diário estava perdida. A tinta desbo‑
tara ou formara manchas como riachinhos aguados do mesmo modo
que lágrimas apagariam parcialmente as palavras escritas em uma
carta de amor. Algumas das páginas haviam se tornado como um
tecido fino, mole e frágil, rasgando­‑se facilmente em tiras grudentas
e esfarrapadas como o pano de algodão rasgado para fazer curativos
em feridas. Mas ainda havia seções que ela podia ler claramente.
Abruptamente, ele saltou para dentro do fogo. Olhei fascinada en‑
quanto ele caminhava devagar sobre os carvões, não apenas andando,
mas enterrando os pés entre as brasas brilhantes, enquanto os tambo‑
res ribombavam em fúria. Ele girava e dava cambalhotas, depois co‑
meçou a andar sentado em uma vassoura cuja palha logo estava em
chamas, mas o cavalo realmente era ele, galopando sobre as flamas em
um doido frenesi, até que eu tive certeza de que seus pés deveriam
estar assados, e o tempo todo meu próprio corpo era percorrido por
uma comichão formigante. Finalmente, ele saiu da fogueira, agora

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

pouco mais do que tições fumegantes, caindo sentado no chão ao lado


do que restara, exausto, seu peito subindo e descendo rapidamente, as
pernas cruzadas sob o corpo. As solas de seus pés estavam grisáceas
das cinzas, mas pareciam perfeitamente firmes e saudáveis, sem bo‑
lhas ou sinais de queimaduras. Incapaz de resistir, eu me aproximei e
toquei­‑lhe um dos pés e percebi que a pele estava fria e seca. Ofereci­
‑lhe água e ele a recebeu na concha das mãos e me sorriu.
Júlia estremeceu. Mas nem por um momento duvidou da veraci‑
dade do que lera. Ela simplesmente tinha medo daquilo. Nada em
sua natureza ansiava por magia de qualquer tipo, nem respondia
aos poderes que permitiam sua ocorrência. Ela ficava fascinada era
pelas possíveis explicações médicas. O homem tinha calos grossos.
O suor repelia o calor. A fé em si mesmo e a velocidade eram aliados
poderosos. Sempre era possível algum tipo de prestidigitação. Feiti‑
ceiros eram gente muito esperta.
Segui­‑o até sua casa, pois não tinha mesmo nenhum outro lu‑
gar para ir, porque eu queria ser sua escrava e ainda porque ele me
atraiu e conduziu até lá. Ele mora em uma choupana no meio de
choupanas, numa favela erguida nas faldas de uma colina, piso de
terra e um capacho áspero lhe serve de cama. Ele não guarda co‑
mida nem água. Os outros vêm alimentá­‑lo, porque ele é um
grande hungan. Mais ainda, porque ele é um bokor famoso. Eu
sabia que ninguém questionaria a presença de uma menina bran‑
ca em sua casa, desde que eu conseguisse convencê­‑lo a me deixar
ficar e morar com ele.

Eu lhe disse:
— Ensine­‑me a fazer fogo.
Ele me perguntou por que eu pensava que ele deveria me ensinar.
O que eu havia visto. E eu lhe contei tudo o que sabia. Eu lhe falei de
Chloé e de Erzulie e da última cerimônia em que eu tinha revirado a
faca nas mãos de meu pai. Recitei­‑lhe os cânticos do livro de despa‑
chos e relatei quais feitiços já dominava. Ele escutou em silêncio até
que eu terminei. Então me disse: “Você não sabe nada, criança. Seu

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Lara Parker

conhecimento é apenas da cabeça, você não possui habilidades instin‑


tivas. Não posso perder meu tempo com você”.
Porém, me disse que podia ficar em sua choupana essa noite, mas
que depois teria de ir embora. Eu lhe perguntei onde deveria dormir e
ele apontou para o chão de terra, junto à parede dos fundos. Eu pedi
água e ele sacudiu a cabeça. “Não há água”, afirmou. Os negros não
tinham permissão de usar o poço da praça. Tinham de caminhar vários
quilômetros em busca de água, saindo das favelas até o campo aberto.
Acordei logo após a meia­‑noite com o som de uma corrente mur‑
murante. A princípio, era um som bem fraco, mas depois se tornou
perfeitamente claro.
Quando o dia clareou, disse ao hungan que eu havia achado
água. Ele disse que não era possível, que eles haviam tentado cavar
vários poços nas colinas, mas sem sucesso. Eu lhe disse: “A água está
bem aqui, atrás desta parede, onde você me mandou dormir esta noi‑
te. Cavem aqui”.
Ele chamou diversos homens e começaram a cavar. Encontraram o
regato subterrâneo logo no primeiro dia. A água jorrou como uma
chama de prata e o hungan disse: “Pois muito bem, esta noite você
virá conosco”.
O lugar de encontro ficava em uma encruzilhada, numa peque‑
na aldeia negra erguida no meio dos canaviais. Havia diversas
choupanas com tetos de palha e milhares de velas tinham sido colo‑
cadas nas beiras dos caminhos, seguindo as quatro direções. O povo
se juntou depressa, cruzando as plantações de cana ou trilhas atra‑
vés do mato. Usavam fantasias brilhantes, representando o Sou‑
cougnan ou Sucunhã, que trocava de pele e o Loup­‑Garou, ou
lobisomem. O Bokor disse: “Esta cerimônia é um Bizangô, um sa‑
crifício de sangue”. Cada um dos ofertantes dançou com os movi‑
mentos de seu animal, galos vaidosos e vigilantes, cães latindo, porcos
grunhindo, alguns representando demônios com rabos e chifres. Eu
não sei se eram fantasias ou se eles realmente se transformavam. Eles
invocaram Carrefour e não Legbá e, depois que o primeiro foi ali‑
mentado, chamaram o Baron Cimetière.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Eu fui puxada para o centro do círculo, junto com um cabrito assus‑


tado e pensei que ele fosse o sacrifício. Eu comecei a balir com ele e
alimentei­‑o com folhas presas em meus próprios lábios, a fim de
acalmá­‑lo, mas seus olhos refletiam seu medo. Os tambores pararam e
todos eles se afastaram furtivamente como leopardos. Eles tinham lon‑
gas cordas em suas mãos, que o Bokor disse serem intestinos curtidos e
que eram muito fortes. Quando a vítima foi trazida de volta, era um
homem, mas ele foi transformado em uma vaca antes que o matassem.

Júlia foi virando página após página cuidadosa e habilmente.


Usava como ferramentas seu bisturi de cirurgiã, tesouras e peque‑
nas pinças, que retirava de sua maleta de médico. Mas uma parte
bem grande do diário estava perdida! Ela temia que, caso devolves‑
se o diário nestas condições arruinadas para Barnabas, somente
conseguiria perturbá­‑lo ainda mais. De algumas páginas, ela só
conseguia salvar alguns trechos.

O Bokor tem olhos brilhantes e ele gosta de uma brincadeira. Ele é um


fiapinho de homem, muito preto e mal chega a um metro e meio de
altura. Ele é magro e tem ossos finos, com pés e mãos minúsculos e seu
rosto é tão enrugado como um pepino do mar abandonado na areia
pelo recuo da maré.

Os ombros de Júlia doíam pelo esforço e seus olhos ardiam de


tentar ler as palavras borradas. Ela esperava poder salvar mais.
Talvez se ela o deixasse secar por mais alguns dias, mais páginas
se separariam.

Ele me disse que o vodu veio da África, mas que os franceses o chamam
de voire — ou seja, “ver” e Dieu, “Deus” — “voir Dieu” ou “ver a
Deus”, mas eu lhe disse que já escutara dizer “voir dans”, que significa
“ver dentro”. Pensei que era muito importante saber qual era o verda‑
deiro significado, mas ele disse que não tinha a menor importância. Ele
me perguntou por que eu tinha decorado as invocações africanas.

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Lara Parker

— Você não é negra.


— Eu tenho um pouco de sangue africano.
— Use sua própria língua. As palavras não importam realmente.
A Magia vem de dentro da alma.

“Olho de girino e dedo do pé de sapo;


Pelo de morcego e língua de cão;
Vampiro, trasgo, chupador de sangue, parasita,
Tambores, rum e sangue.”

— Diga­‑me o nome dos três tambores.


— Catá, Séconde, Maman.
— Por que eles têm esses nomes?
— Eu não sei.
— O Catá é traiçoeiro, uma criança arteira e desobediente. O
Séconde é o do meio e representa todos os aspectos da vida humana.
Essa é a vida comum. O Maman é que representa mesmo o vudum.

Júlia estava profundamente envergonhada por ter tirado o diário


de Barnabas. Achava que o mínimo que poderia fazer era recuperá­
‑lo e devolvê­‑lo a seu noivo, na esperança de que ele a pudesse per‑
doar. Além disso, logo na manhã seguinte, ainda acordada em seu
leito, antes de se levantar, ela começou a ponderar as explicações
científicas para a feitiçaria — do mesmo modo que se havia imergi‑
do em sua investigação até a descoberta da solução final para o
vampirismo. Uma curiosidade peculiar lhe instigava a mente. Ela
tinha de admitir para si própria que era fascinada pelo sobrenatural
e sua antítese, suas explicações “naturais”.

Eu perguntei a ele: “Você pode matar alguém?” Ele respondeu: “Ma‑


tar é fácil, mas é contra a lei”. E eu lhe indaguei: “Você pode fazer com
que alguém o ame?”. Ele disse: “Você me paga seu dinheiro e depois
aguenta as consequências”. Então eu inquiri: “Você pode invocar os
mortos?” Ele retorquiu: “Posso, se eles estão inquietos. Os mortos

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

adoram ser invocados. A não ser, é claro, que sejam zumbis. Então
você consegue um escravo que nunca se revolta”.

Zumbis! Ora, este era um fenômeno interessante. Os mortos­‑vivos.


Os ataúdes são abertos e o cadáver não se corrompeu. O cabelo e as
unhas cresceram. A pele ainda tem vigor, mais rosada que em vida, há
sinais de rejuvenescimento, algumas vezes até mesmo um pênis ereto.
Por que eles usavam as pedras tumulares desde os tempos mais remo‑
tos? Para impedir que os corpos se levantassem. E por que essa imen‑
sidão de cerimônias pelos mortos? Para que eles pudessem descansar
em paz nos seus túmulos. Cada época com seus rituais: com os obje‑
tos necessários, eles poderiam se dispor a ficar em repouso eterno:
ânforas de vinho, tigelas com cereais, moedas para Caronte dentro
das bocas, sementes de papoula para um sono sem sonhos.

Um senhor de engenho veio ao Bokor, querendo comprar alguns es‑


cravos e o Bokor aceitou­‑lhe o dinheiro. Então, seu rosto, uma másca‑
ra distorcida, montou um cavalo de costas, segurando­‑se na cauda e
fez com que cavalgasse até a porta da vítima. Colocou os lábios em
uma fresta da porta e sugou a alma para si. Após alguns dias, a víti‑
ma morreu. O Bokor me levou até o cemitério à meia­‑noite, até o
ponto em que o morto jazia em sua sepultura. Ele havia guardado a
alma da vítima em uma vasilha de barro lacrada com cera e quando
lhe chamou o nome, o morto foi obrigado a responder, porque o Bokor
estava em posse de sua alma. Então, ele passou a vasilha pelo nariz do
morto, para que ele pudesse farejar sua alma e o homem se ergueu e o
seguiu. Na casa do Bokor ele recebeu um elixir vermelho, que é a fór‑
mula secreta e se transformou em um zumbi. A partir de agora, ele
trabalhará sem descanso para o seu amo afortunado.

PÓ PARA CRIAR ZUMBIS:


Obtenha uma placenta após o parto, a bolsa inteira ainda com
uma parte do cordão umbilical presa nela. Enrole em folhas de man‑
cenilheira, deixe secar bem e depois moa com um pilão;

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Lara Parker

Sapo bugá ou mandioca crua;


Miriápodos ou tarântulas;
Sementes e folhas de plantas venenosas;
Ferrões de baiacus;
Restos humanos retirados de um cadáver fresco.

Um homem que roubou o segredo do Pó de Zumbi foi morto pelos


huncis do Bokor. Ele nunca chegou a saber que tinham encontrado a
bolsinha com o pó que ele achara ter escondido muito bem. Eles o le‑
varam de bote mar adentro e então, bem longe da praia, amarraram­
‑lhe as mãos às costas e bateram em sua nuca com uma pedra,
deixando uma ferida aberta. Esfregaram um veneno de ação rápida
na ferida. Ele soube que estava morto antes de bater na água ao ser
jogado pela amurada.
O Bokor me disse que fez o Pó de Zumbi porque era mais fácil que
chupar almas através de frestas ou fechaduras.

Barnabas não lhe falara uma palavra racional desde sua discus‑
são; ele estivera tão doente, que tudo quanto dizia era efeito da
febre. Ele parecia oscilar entre uma culpa penitente e uma determi‑
nação furiosa. “Nunca mais! Nunca mais!”, ele gritava, ao sair de
um sono agitado. Ou ele tomaria uma de suas mãos nas dele e com
olhos esgazeados lhe suplicava que o perdoasse, dizendo: “Júlia, fi‑
que comigo, não me abandone!”. Momentos depois, ele olhava fixa‑
mente para o ar e berrava o mais alto que podia: “Saia de perto de
mim! Fique longe de mim!”. Ela se encolhia de medo, certa de que
ele manifestava a raiva que estava sentindo dela.

O Bokor me disse: “Eu não lhe mostrarei assassinatos ou mortes. Dis‑


to você já viu o suficiente. Eu lhe mostrei como a vida retorna para os
mortos. E esta noite, eu vou lhe mostrar como matar a própria Morte.
Esta noite, você vai cravar a estaca em um vampiro”.
“O vampiro tem dentes de marfim, compridos e aguçados, para su‑
gar a força da vida e deixa suas vítimas exaustas. É um ser absorvido

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

em si mesmo, sem a menor simpatia pelos demais. Eu já lhe disse que


todos os deuses nascem de nossa imaginação e, de forma semelhante,
o vampiro nasce dos reinos de nossos pensamentos mais íntimos. Ele é
a manifestação de nossos anseios mais profundos e de nossos medos
mais arraigados. Está morto e não está morto. O sangue ainda corre
dentro de seu corpo. O cheiro do vampiro é como o guano das caver‑
nas em que os morcegos se reproduzem. Ele tem olhos ocos e cheios de
loucura, com os quais pode ver as cores em intensidade muito mais
rica. Ele tem a audição de um predador e suas capacidades de sobre‑
vivência vão muito além do humano. Ele não pode ser morto enquan‑
to estiver desperto, portanto, você não o poderá acordar. Ele só pode
ser morto dentro de sua tumba.”
— O que o torna assim?
— Um morcego vampiro o mordeu e se alimentou dele, deixando
envenenado o resto de seu sangue.
— E por que vem o morcego?
— Por maldição. Um inimigo lhe roga uma praga, que é o su‑
prassumo da vingança. Mas é necessário dispor de um enorme po‑
der para rogar esta praga. É preciso ter uma grande energia e um
grande ódio combinados.
Os sons da noite estavam amortecidos e as velas geravam uma luz
fraca. O céu estava amortalhado de nuvens enquanto caminhávamos
para o cemitério. Eu escutava o som de nossos passos como se fossem
os cochichos dos mortos. O Bokor me conduziu até a sepultura em que
dormia o vampiro. Havia uma cruz branca e um caixão estava dentro
da cova que já havia sido aberta antes de nossa chegada. Os huncis
estavam conosco, porque desejavam tirar partes do corpo, mas fica‑
ram para trás, por estarem amedrontados. “Você não pode ficar as‑
sustada”, disse­‑me ele, “porque todo medo é fraqueza.” Ele colocou a
estaca em minha mão.
Quando olhei para o vampiro, fiquei maravilhada, porque podia
sentir seu mistério e sua força. Seu rosto era muito branco, como se
fosse esculpido em marfim, do mesmo modo que suas mãos, cruzadas
sobre seu peito. Eu podia ver o formato de seu crânio, e os ossos de suas

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Lara Parker

mãos eram visíveis sob a pele. Suas unhas eram longas e amareladas
e era realmente possível cheirar o odor de guano de morcego que ema‑
nava de seu corpo. Seu casaco estava coberto de terra e seu colarinho
em forma de rufo pregueado cheio de mofo e de manchas de ferrugem.
Estava dormindo tão pacificamente, que eu até mesmo senti uma cer‑
ta relutância em lhe fazer mal.
Os huncis se aproximaram. “Hoje você vai matar a própria Mor‑
te.” Eu coloquei a ponta da estaca sobre o peito dele e pensei somente
em como eu era magra, imaginando de onde tiraria a força para o
perfurar e cravar a estaca em seu coração. Eu só dispunha do peso de
meu próprio corpo e assim me ergui e empurrei com toda a força a
ponta de madeira aguçada, sentindo que ela perfurava o tecido de seu
casaco e as diversas camadas de pele, cada seção dando passagem
com um pequeno estremecimento. O monstro gemeu. A estaca bateu
em uma costela e eu a desviei para encontrar uma entrada onde o
tecido fosse mais mole.
Nesse momento, o vampiro abriu os olhos. Seu olhar hipnótico
provocou um tremor aterrorizado através de meu corpo. Podia sentir
como ele drenava minha força com o poder de sua vontade, enquanto
seus olhos me queimavam até a alma e então ele ergueu as mãos po‑
derosas para segurar a estaca. Sua boca se abriu para proferir as pa‑
lavras que me fariam parar e seus lábios se arreganharam para
mostrar as presas, ao mesmo tempo brilhando de brancura e cobertas
de uma espécie de lodo. Eu não conseguia mais empurrar a estaca.
Então o Bokor pulou­‑me nas costas e todo o ar saiu de meus pul‑
mões, enquanto ele punha todo o seu peso no cabo da estaca. Nossos
corpos se chocaram com o cadáver vivo do vampiro e quando a estaca
lhe atravessou o coração, o sangue jorrou em jatos e me cobriu. Eu caí
sobre ele, minha face junto de seu rosto, minha respiração sugando o
estertor prolongado de uma traqueia afogada em sangue.

Júlia estremeceu. Ela se recordou de como Barnabas retornara


sem trazer o diário, suas roupas em um estado horrível, tiritando e
empapado até os ossos. As feridas se haviam reaberto e ele estava

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

fraco pela perda de sangue. Ela teve medo que a mordida do vampi‑
ro lhe causasse uma recaída, pois Barnabas parecia estar travando
uma batalha interior entre demônios opostos, suas emoções em um
torvelinho, sua própria natureza se alimentando de si mesma.
A maior parte do tempo, ela tinha certeza de que ele não sabia
quem era ou onde estava, e delirava a respeito de um navio atacado
por piratas e dele próprio deitado em um porão, onde fora posto a
ferros. Em outros períodos, ele parecia mais calmo e falava com al‑
guém em um tom de voz gentil, alguma pessoa a quem amava.
Incapaz de se impedir, Júlia continuou a secar e a ler parte do diário.

O Bokor conversa muito comigo e sempre me desencoraja. Ele gosta de


brincar comigo e de me torturar com seus enigmas:
— Você ainda quer se tornar uma vudum mambô?
— Sim.
— A escolha não é fácil e depois que a jornada começa, é impossí‑
vel retornar. Você quer seguir o caminho até o fim?
— Eu não quero ficar para trás atolada em lamaçais e mistérios.
— Mas por que você quereria uma coisa dessas?
— Eu creio que é o meu destino.
— Destino é só aquilo em que você acredita — disse ele, com uma
risadinha infantil. Ele gosta de pronunciar frases de efeito só para
escutar o som da própria voz. Mas desta vez, eu estava determinada
a fazer com que ele me escutasse.
— Quero dizer que tenho dons e conhecimento.
— Todo mundo tem.
— Você vai me ensinar o que sabe?
— O vudum te provoca confusão e peso. Não vai tornar melhor a
tua vida.
— Preciso de alguma coisa para me proteger.
— O vudum só te deixará mais vulnerável.
— Mas não vai me dar poder?
— Esse poder não te obedece. Você quer controlar coisas, mas o vu‑
dum não é controle. É por isso que eu sei que você nunca vai conseguir

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Lara Parker

se tornar mambô. Você é uma jovem branca. Como poderá olhar para
dentro da alma africana? Você simplesmente quer fazer a sua vonta‑
de, como todas as mulheres vaidosas. Você quer truques, encanta‑
mentos simples e bobos. Você quer brincar com os outros como se
fossem bonecos de trapo. Isso não é poder, é apenas uma interferência
tola, uma baboseira infantil.
— Eu vou lhe confessar por que tenho tanto medo. Tenho começa‑
do a pensar que estou presa ao Diabo.
— O Diabo?
— Sim.
— E você se quer ver livre dele.
— Sim... livre...
— Mas o Diabo é somente outro loá e nem ao menos é muito in‑
teressante. É só um outro espírito luminoso. Os loás nunca lhe farão
mal algum, a não ser que você lhes permita. Alimente­‑os e dê­‑lhes
bebida e eles nunca a incomodarão. Bata sobre o vevé com o asson e o
loá é obrigado a descer. Você sabe disso. Todos os deuses são somente
o resultado de nossa própria imaginação e o Diabo não é diferente.
— Tem certeza disso?
— Eu nunca tenho certeza de nada.
— Mas eu já o enxerguei e já falei com ele.
— Eu nunca disse que ele não existia.
— Então, como é que eu posso me libertar?
— Tudo bem, responda­‑me isto: o que é a feitiçaria, se é que já sabe?
— Você sempre me disse. É interferência, transformação.
— Como é que funciona?
— Encontra­‑se o ponto mais fraco e é nesse lugar que se lança o poder.
— Bem, você acabou de responder sua própria pergunta. É assim
que você poderá se libertar seja do que for.
— Mas o Diabo tem um ponto fraco? E qual é?
— Mas ele não é o Deus de Chifres?
O Bokor deu nova risadinha infantil, seu corpo de pepino­‑do­
‑mar, sacudindo­‑se todo com o seu divertimento.
— Mas o que quer dizer isso?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Ah, você ainda é criança demais para entender. Quer dizer


que ele não passa de um corno, de um marido enganado... Você não
pode ter medo dele. Enquanto tiver medo dele, está lhe dando domí‑
nio sobre você.
— Então, por que ele me diz que meu poder provém dele, quando
eu sei que me ensinei sozinha todas essas coisas e sofri muito para
conseguir aprendê­‑las?
— Essa é fácil. Pense no que acabou de dizer.
— Ah, sim! Este é meu ponto fraco!
— Exatamente. Ele sabe quão orgulhosa você é. Ele está tentando
lhe dizer alguma coisa que você já sabe. Você tem várias escolhas.
Quais são elas?
Pensei a respeito por algum tempo, depois respondi:
— Viver uma vida normal e nunca me tornar aquilo para o que
nasci. Fazer pequenos feitiços. Ou escolher seguir o vudum.
— No momento em que escolher seguir o vudum não terá nunca
mais uma vida normal. Mas isso você já sabe.
— E se eu escolher apenas a magia branca, a magia boa, como
fazia minha mãe? Ela era curandeira e só fazia o bem.
— Ah, sim, a magia “branca”, como eles chamam... A magia boa...
Só que não existe magia boa... Toda magia é interferência e, portanto,
é má. Mas isso não quer dizer que não seja divertida! — completou
ele, com outra risadinha.
— Pare com esses enigmas ridículos! Diga­‑me a verdade!
— Mas a verdade é o enigma!
E dessa vez, as risadinhas se transformaram em ruidosas garga‑
lhadas. Bem, pelo menos um de nós estava se divertindo.
— Portanto, se eu virar feiticeira...
— Feiticeira você já é...
— Se eu praticar somente o que já conheço e não me mostrar or‑
gulhosa, será que ele vai me deixar em paz?
— Não, não vai. Porque o que você já conhece não tem significado.
E agora nós retornamos ao começo de nossa conversa. Escute­‑me, An‑
gelique, pois eu vou lhe contar a verdade, conforme você a chama.

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Lara Parker

Tudo o que eu lhe disser, você esquecerá, porque não vai conseguir
entender nada. Mas eu vou lhe dizer de qualquer maneira, porque
talvez um dia consiga lembrar. A Morte é o único poder e o Diabo é a
morte. Todo o vudum gira ao redor da morte. A morte é o centro do
vudum. Quando você aceitar a morte e não se prender a nada mais
na vida, então o seu poder emergirá e o vudum a guiará.
“Você é capaz de fazer isso agora? Consegue alcançar a indiferença?
Eu penso que não. Eu acho que você vai passar a vida inteira obcecada
por alguma coisa. Você não tem o caráter de uma mambô. Você irá
prender­‑se à vida e ignorar a morte de onde ela provém. Você buscará o
amor e ele se transformará em ciúme e o ciúme em rancor e este busca‑
rá vingança, porque por baixo de todas as suas cores do arco­‑íris existe
uma poça escura de desespero e porque o seu caminho é o caminho do
desejo. Você diz que Erzulie é sua deusa, mas o seu lado especular é a
Erzulie Rouge. Qual o lado que você escolherá? O lírio ou a rosa? A
perfeita inocência ou a profunda compreensão? A grande deusa do
vodu tem a Morte sentada do seu lado. O momento que cerca o mo‑
mento. A magia que está dentro da magia. O poder que está no reflexo
do espelho. Muitos anos se passarão até que você perceba, se é que um
dia perceberá, que está condenada por sua obsessão e que o maior de
todos os poderes consiste em não se querer mais nada.”

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Dezoito

ngelique estava tão imunda que parecia impossível que por baixo
da sujeira tivesse pele clara. A imundície tinha entrado em seus
poros e sua pele inteira se tornara cor de cinza. Havia fuligem alojada
sob suas unhas e seus cabelos amarelos estavam bem escondidos, en‑
rolados em um pano esfarrapado e oleoso. Ela estava tão magra que se
dobrava ao se deitar no chão de terra, seus ossos soltos, quase balan‑
çando dentro de seu vestido de algodão esfiapado e cheio de buracos.
Césaire jamais a teria reconhecido se os seus olhos não tivessem dar‑
dejado em sua direção, como opalas de fogo cintilando na poeira.
— Eles me disseram que eu te encontraria aqui — disse ele,
franzindo o nariz por causa dos cheiros de fumaça e de ervas quei‑
madas. — Eu não queria acreditá neles.
— Que mais eles lhe contaram?
— Que eles treme de medo por causa do teu hounfort. Que tu
não é cruel, mas que tu é cruelmente boa. Que tua magia é como o
relâmpago, nunca se sabe quando chega, nunca se sabe qual o alvo
que irá atingir. Dizem ter visto centelhas saltando de teus dedo e

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Lara Parker

que tuas poções não são segura, porque algumas vezes curam e ou‑
tras vezes aleijam.
— Erzulie dorme comigo agora, Césaire — revelou ela. — A cor
de minha pele não é mais uma barreira para sua vinda. A loá entra
dentro de mim quando eu respiro.
— A Erzulie? A deusa amada por sua pureza?
— Ah, não, a outra Erzulie. A sua imagem no espelho. Erzulie
Rouge, que é muito mais poderosa e se alimenta de almas humanas.
Césaire franziu a testa e caminhou para mais perto de onde ela
se assentava.
— O que tu tá fazendo no meio dessa gente toda, Angelique?
— O que quer dizer? Eu moro aqui.
— Por quê?
— E aonde mais eu iria? Eu cuido dos houncis e eles cuidam de
mim e me trazem comida.
— E é tão importante pra ti sê uma pequena deusa? Vivê neste
lugar imundo? As maçãs podre de um barril não deixam escolha
para as sãs.
Seus olhos cintilaram ante seu insulto.
— Você pensa que eu sou vaidosa e orgulhosa. Você não sabe de
nada! Não é por essa razão que eu agora sou a Bizangô. Erzulie Rou‑
ge me protege dele.
— De quem? Do Bokor?
— Não, não é do Bokor — disse ela, com desprezo. — É do outro!
Angelique se ergueu e caminhou até o altar. Rolos de fumaça
subiam de suas roupas, como se elas fossem feitas de cinzas. Ali fi‑
cou ela, seu corpo esguio como um salgueiro, embora com um as‑
pecto estranhamente real, olhando para a mesa sagrada. Uma
comprida cobra cor de cobre ondulava lentamente ao redor dos po‑
tes de argila e panelas de barro cheias de comida azeda ou transfor‑
mada em pó, seu corpo sinuoso circulando sem tocar as velas acesas
e fluindo sobre pilhas de ossos secos.
— Eu lhe farei um amuleto, Césaire, um uangá de amor — disse
ela. — Se você quiser, é claro. Esta manhã eu peguei um beija­‑flor e

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

preciso mesmo usá­‑lo antes que esfrie. Um uangá de amor só para


você. Gostaria disso? Há alguma garota bela que você deseje?
Ela se virou para seu lado e ele viu o minúsculo pássaro em sua
mão, suas penas iridescentes e seu peito escarlate.
— Mas eu vou precisar de um pouco de seu sangue e do seu sê‑
men — disse ela, sugestivamente. — Venha...
Césaire sacudiu a cabeça.
— Eu não preciso de que você me faça nenhum amuleto
hoje — afirmou e, com um esforço, afastou os olhos dela e os
firmou sobre a pintura acima do altar. Mostrava uma mulher
nua, com grandes seios, a parte inferior de seu corpo recoberta
de escamas de peixe. Em toda a sua volta havia pinturas da
Virgem Maria.
De qualquer modo, Césaire se aproximou de onde Angelique
estava parada. Ele viu que ela estava segurando uma boneca fei‑
ta de pele seca e que a estava embelezando descuidadamente ao
enfiar­‑lhe ao pescoço um colar formado por uma fiada de dentes
humanos. Tinha uma cabeça minúscula e encolhida, em que re‑
luziam os olhos de conta e diversos alfinetes apareciam cravados
em seu peito ressequido.
— Angelique, o que eu vim fazê aqui é te levá de volta pra Martinica.
— Não, não quero ir. Não posso voltar para lá.
Césaire estremeceu e olhou de novo para o quadro central.
Ao lado da mulher­‑peixe, um barco de vela branca balançava
sobre ondas azuis e encapeladas. Abaixo do barco, havia um cálice
cheio de flores escarlates e acima dele, o céu estava pintado de negro
e recamado de estrelas. A mulher segurava alguma coisa e, quando
Césaire olhou mais de perto, viu que era uma cabeça humana. Foi
só então que ele percebeu que o altar inteiro de Angelique era feito
de caveiras sorridentes.
— Só me escuta, guria, eu tenho notícias da tua mãe.
Seus olhos dardejaram para o rosto dele, escrutando, revelan‑
do alguma indicação de que ainda havia uma criança escondida
dentro dela.

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Lara Parker

— Ela tá com um tremendo pobrema — ele continuou. — Achei


que tu gostaria de saber.
— Onde ela está?
— Na cadeia.
— Na prisão? Mas por quê?
— Ela foi julgada por bruxaria e foi condenada — revelou o rapaz.
Angelique o encarou, como incapaz de acreditar em suas pala‑
vras, enquanto lágrimas lhe enchiam os olhos.
— Eu tenho um barco — disse ele. — Tu vem comigo?

* * *

O tempo estava calmo, mas as marolas estavam altas, pesadas e in‑


cessantes e o vento mudava de direção, obrigando a nave a correr à
sua frente. Uma exalação sulfurosa emanava do mar e mais de uma
vez Angelique inclinou­‑se sobre a amurada e murmurou palavras
estranhas, contemplando a superfície que parecia ferver.
Césaire estava em pé do outro lado do tombadilho e ela sabia que
o rapaz estava assustado com o seu comportamento e pensou que
ele não mais a conhecia, que ela se transformara para ele em um
espectro negro contra o céu cinzento e que, embora ela tivesse sol‑
tado os cabelos em uma nuvem amarelada, eles não a dotavam de
qualquer luz. Ela podia estender a mão e tocar o Espírito Negro
quando as águas se erguiam a seu alcance. Ele não fazia parte do
mar, mas se encontrava nas profundezas do abismo e ela lhe disse
calmamente: “Não me persiga”.

* * *

Ela abriu o portão da prisão e entrou no pátio coberto de capim


maltratado. O tempo estava mudando e lufadas intermitentes e car‑
regadas de premonição agitavam as palmeiras meio desfolhadas
que ficavam junto à porta da cadeia e as faziam agitar­‑se em uma
dança macabra. O carcereiro estava sentado justamente do lado de

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

dentro da porta, cochilando em uma cadeira de pernas finas equi‑


librada nas patas de trás, sua cabeça jogada para trás sobre o encos‑
to e roncando. Ela pigarreou e ele acordou, espreguiçando­‑se e
erguendo­‑se sem firmeza sobre os pés para se dirigir a ela.
— O horário de visita acabou uma hora atrás — disse abrupta‑
mente. Era um homem grande, meio mulato, usava uma barba rui‑
va e um de seus olhos era cego, de uma coloração azul opaca que lhe
percorria a pupila, emprestando­‑lhe uma aparência lúgubre, como
se ele tivesse apenas metade de uma alma.
— Eu viajei desde Port­‑au­‑Prince em Hispaniola para ver a mu‑
lher que foi condenada por feitiçaria. Por favor, me deixe entrar —
pediu ela, cortesmente.
A tirania dos pequenos funcionários lhe dava um sentimento de
poder e ele sorriu com desprezo e malícia:
— Minhas ordens são para não deixar entrar mais nenhum visi‑
tante. Volte amanhã.
— E se eu lhe disser que a mulher que desejo ver é minha mãe?
— Eu não tenho nada a ver com isso — respondeu­‑lhe friamen‑
te. — Todos os dias alguém é enforcado, tem os ossos quebrados no
pelourinho ou é executado a tiros pela milícia. Eu só guardo os pri‑
sioneiros e, caso esteja disposto, lhes jogo um pedaço de pão. Agora
dê o fora daqui. Tenho de fazer o meu trabalho.
Relutantemente, ela se virou para ir embora, mas nesse momento
seu olhar passou além de sua escrivaninha e se fixou em um quarto
pequeno, que ela deduziu ser o seu alojamento. Enxergou um catre e
uma cadeira com roupas espalhadas e uma mesa com pão, queijo, uma
garrafa de rum pela metade e uma grande vela de sebo que queimara
até o tampo da mesa, mas com o pavio ainda aceso, que espalhava uma
pocinha de espermacete semiendurecido em uma camada fina e ama‑
rela, cujas beiradas já se achavam ressequidas. Ela encarou a chama
azulada e ainda bruxuleante no pavio que ardia quase deitado.
— Aquele é o seu quarto? — indagou e, quando ele grunhiu
uma afirmativa, farejou o ar e lhe disse tranquilamente: — Acredi‑
to que alguma coisa aí dentro pegou fogo...

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Lara Parker

O guarda soltou um gritinho infantil, quase um ganido, segui‑


do de uma corrente de pragas, quando se voltou e viu as chamas
subindo do assoalho. Ele se lançou contra a fogueira incipiente,
dando patadas com a sola das botas, mas sem resultado, porque
assim que apagava em um ponto, ele se erguia em outro e em ou‑
tro mais. Já estava subindo pelas roupas de cama quando ele ati‑
nou em pegar uma bacia cheia de água e jogá­‑la sobre o fogo.
Angelique passou por ele e entrou no corredor sem que o homem
lhe prestasse a mínima atenção.
Quando ela atravessou a passagem estreita e olhou pelas barras
de uma cela, sentiu seu coração subir até a garganta. Já fazia qua‑
tro anos desde a última vez em que se haviam visto, mas Cymba‑
line não mudara em nada. Estava sentada em um mochinho,
cantarolando para si mesma. Seus cabelos lustrosos pendiam sobre
seus ombros e sua pele dourada brilhava até mesmo no interior da
cela, como se a luz proveniente da única janelinha gradeada
emanasse realmente dela.
Quando ela viu Angelique parada do lado de fora das grades,
seus olhos castanho­‑escuros inicialmente cintilaram de suspeita,
depois se arregalaram de descrença enquanto ela sacudia a cabeça
lentamente e uma expressão profunda de completa emoção lhe
suavizava os traços do rosto. Ergueu os braços e, ao mesmo tempo
que Angelique estendia os seus através das barras, ela a apertou
contra si, soluçando:
— Anjo, ai, meu anjinho, minha filha... minha filha preciosa!
— Mamãe, ai, mamãe, eu pensei que nunca mais iria vê­‑la! —
tornou Angelique. — Senti tanto a sua falta. Por que está aqui presa
desse jeito? O que aconteceu?
Mas Cymbaline estava incapaz de responder. Simplesmente se‑
gurava o rosto de Angelique entre as mãos e beijava tudo o que
podia alcançar através das grades — faces, queixo, testa, lábios —
quaisquer palavras que tivesse para dizer aprisionadas em sua gar‑
ganta. Seus dedos percorriam o rosto e os cabelos de Angelique
como se não pudesse confiar em seus próprios olhos e precisasse

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

tocar nela para realmente crer que a filha estava ali. E suas lágri‑
mas lhe escorriam pelas faces sem parar.
— Ai, como você está encantadora! — sussurrou finalmente.
— Tão alta, magra, mas com o corpo tão forte — você já virou
mulher, posso ver.
— Estou só com quatorze anos, mamãe — contestou Angelique.
— E já aprendeu muitas coisas a respeito da vida?
— Sobre a vida eu ainda sei muito pouco, mamãe, somente o
que você mesma me ensinou — disse ela. — Mas estive em Port­‑au­
‑Prince, na Hispaniola — e lamento dizer que por lá só aprendi os
segredos da morte.
— A Ilha do Diabo. Lá os espíritos são muito poderosos. Mas
sente­‑se aqui, o mais perto de mim que puder e me conte tudo —
pediu a mãe. — Eu quero escutar. Só sei que você fugiu de Basse­
‑Pointe durante a rebelião...
— Mamãe, meu pai tentou me matar durante a cerimônia. O
tempo todo era para fazer isso que ele me levou. Ele lhe mentiu. Ele
jamais pretendeu me criar como filha dele.
— O bastardo me enganou. Ah, como eu fui idiota em acreditar
nele! Lamento muito, lamento tanto por tudo o que você sofreu!
— Eu o matei com sua própria adaga.
— Isso é verdade?
— Sim.
— E então você navegou para Hispaniola?
— Dez dias em um navio mercante — relatou Angelique. — Na
metade da travessia, fomos abordados por esses mendigos do mar,
que chamam de piratas, ansiosos para saquear nosso barco. Suas
roupas tinham manchas de sangue e traziam facas e cutelos. Ma‑
mãe, eles mataram quase todos a bordo — oficiais, marinheiros, até
o cozinheiro! Eles só pouparam meu amigo Césaire porque ele é
negro e sabia governar o navio...
— Como você conseguiu escapar?
— Eles só me deixaram viva porque eu trabalhava como auxiliar
do cozinheiro, estava disfarçada de menino e eles queriam alguém

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Lara Parker

que lhes preparasse as refeições — explicou ela. — Aquele monte de


idiotas bêbados nunca conseguiu pensar que eu fosse capaz de pre‑
parar um caldo com pelo e rabo de rato, que depois derramei den‑
tro do barril de rum, aquela poção que rói as entranhas por dentro
e deixa as pessoas cegas.
— Ah, sim, vômitos fatais provocados por pelo de rato — co‑
mentou Cymbaline. — Percebo que você se tornou feiticeira.
— Que mais a senhora queria que eu fizesse?
— Não mais e nem menos do que eu mesma fiz.
— Eles a chamaram de bruxa.
— Eles disseram que foi bruxaria e me acusaram, mas não foi
bruxaria — explicou ela. — Foi causado pela mancenilheira.
— Mas todo mundo sabe que a mancenilha é venenosa... O que
foi que você fez?
— Vamos dizer que eles finalmente conseguiram me pegar —
suspirou a mãe. — Eu passei três anos trabalhando no hospital dos
escravos, em Trinité, uma plantação realmente muito grande. Eu
partejava nenês, reduzia fraturas, curava as doenças quando esta‑
vam começando. Muita gente foi chamada de bruxa, e não era mais
que uma curandeira dedicada.
— Mas o que causou sua infelicidade?
— Havia um capataz, um homem egoísta e lascivo que não me
deixava em paz. No princípio, eu nem me preocupei, achava que
minha posição no hospital me dava segurança — disse ela. — Eu
era necessária. Precisavam de mim lá. Mas quando o capataz come‑
çava a insistir demais comigo, eu punha o verme verde em sua be‑
bida para reduzir sua luxúria.
Ela deu um suspiro e continuou:
— Só que uma noite ele estava bêbado, com uma dessas bebedei‑
ras malvadas que dá o rum, e me encontrou no pátio do hospital.
Ele me puxou para o mato, não consegui me desvencilhar mas, na
passada, eu arranhei as unhas na casca de uma mancenilheira.
Quando ele me derrubou no chão, eu cravei as unhas nas costas
dele. O patife do bode lascivo pensou que eu o estava arranhando

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

de prazer até que o veneno correu por dentro dele. Eu o escutei ui‑
vando de agonia enquanto estertorava até morrer.
— E eles acusaram a senhora do assassinato?
— É isso que torna tão injusto aquele tribunal corrupto. Eles não
me acusaram de matar, disseram que eu era culpada por não tê­‑lo
salvo. Eu não podia ter feito isso de qualquer modo, mancenilha
não tem cura que eu saiba, mas eles sabiam que eu não lhe daria
nenhum remédio, mesmo que houvesse. Tu sabes, eles querem me
ver morta. Por uma porção de razões.
— E qual foi a sua sentença?
— Ah, minha doce querida, você não queira saber!
— Qual foi? Diga­‑me!
— Tudo pensado, não foi tão ruim assim. Eles me sentenciaram
a uma morte rápida e praticamente indolor, por causa dos serviços
que eu havia prestado...
— Qual foi?
— Enforcamento.
Angelique sentiu o sangue rodando dentro da cabeça.
— Quando?
— Daqui a dois dias.
— Ai, mamãe...
Angelique prendeu a respiração, incapaz de falar, mas seus
olhos chamejavam. Cymbaline a abraçou novamente através das
barras da cela.
— Angelique, minha querida, não fique assim tão triste. Eu não
poderia pedir nenhuma bênção tão grande quanto esta, de poder
vê­‑la de novo antes de morrer...
Embora seus olhos estivessem marejados de lágrimas, ela sorria
e agarrou uma das mãos da menina, segurando­‑a bem firme. O
peito de Angelique doía com uma pressão surda, como se ela esti‑
vesse prendendo a respiração embaixo d’água por um tempo longo
demais. Ela hesitou e depois falou, com uma voz trêmula.
— Mamãe, eu trouxe comigo um pó secreto, lá de Port­‑au­‑Prince.
Se eles soubessem que eu havia pegado um pouco, teriam me matado.

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Lara Parker

— Que negócio é esse?


— É um pó que induz a um sono profundo, tão profundo, que
parece a morte.
— Você não está falando de... Pó de Zumbi?
— É, sim.
— Feito de cadáveres? Eu não vou tomar Pó de Zumbi! — disse
Cymbaline, recuando, horrorizada.
— Mamãe, mamãe, volte! O pó não produz a morte, somente o
sono da morte!
— Mas o zumbi é uma criatura infeliz e doida, porque sua alma
foi retirada! Ele caminha pelo mundo em um transe sem vida, ten‑
tando obter sua alma de volta. Morrer enforcada é de longe melhor
do que um destino desses!
— Não, a retirada da alma é um ritual realizado pelo Bokor...
— E como é que você sabe disso, Angelique?
— Eu já vi fazerem, muitas vezes. O pó somente provoca o sono,
e a loucura surge porque a vítima acorda dentro da sepultura, é
causada pelo horror de estar enterrada viva! Mas eu posso lhe des‑
pertar do sono. Eu irei acordá­‑la sozinha e a senhora nem ao menos
sentirá que esteve encerrada dentro de um túmulo. Eu já vi isto
acontecer vezes sem conta. A senhora tem de confiar em mim —
insistiu ela.
— Você quer que eu use esse pó?
— É sua única saída, mamãe. Veja só, eu tenho até o antídoto,
o contraveneno — disse ela, mostrando­‑lhe os saquinhos com os
dois pós, um branco e o outro encarnado. Cymbaline se enco‑
lheu de nojo.
— Mas o que aconteceu com você, minha filha? Quem foi
que lhe deu essa coisa maligna? Quem lhe pode ter ensinado
como usá­‑la?
— Mamãe, eu morei com um famoso Bokor em Port­‑au­‑Prince.
Eu vi o jeito como o pó é fabricado e tenho até a receita — confes‑
sou Angelique. — Eu vi os homens se erguerem dentre os mortos. A
senhora só precisa derramar um pouco na palma, soprar e respirar

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

do ar o pó bem depressa. Basta uma inspiração e a senhora perde a


consciência. Vai cair num sono tão quieto e sem vida, que eles terão
certeza de que a senhora morreu. Eles vão levá­‑la ao cemitério dos
condenados, que fica atrás do cemitério comum e enterrá­‑la direta‑
mente no chão.
Cymbaline só escutava, tremendo de nojo.
— Não! É uma coisa horrível demais! Você quer que eu seja en‑
terrada viva? Eu não tenho coragem. Jamais poderia fazer isso!
— Assim que todos tiverem ido embora, eu venho, desenterro o
caixão e a acordo. Você nem vai saber — tudo vai parecer um so‑
nho. E nós escaparemos juntas — insistiu. — Eu a levarei comigo
de volta para Port­‑au­‑Prince...
Cymbaline olhou para sua filha como se não a conhecesse mais
e sacudiu a cabeça, seus olhos cheios de preocupação e piedade.
— Mamãe, não há outro jeito...
— Dê­‑me o pó, então — falou com um profundo suspiro. — Eu
vou pensar nessas coisas todas que me contou. Eu realmente amo a
vida com todo o meu coração.
— Mamãe, eu lhe prometo que irei salvá­‑la!
Cymbaline tocou o rosto de Angelique novamente e a con‑
templou detalhadamente, como se quisesse decorar­‑lhe os tra‑
ços do rosto.
— Antes que você vá embora — disse­‑lhe. — Eu devo...
Existe uma coisa que eu pensei que jamais teria oportunidade
de lhe contar.
— O que é, mamãe?
— Théodore Bouchard, aquele monstro vil. Estou tão contente
em saber que foi você que o matou... Ele... — interrompeu­‑se, hesi‑
tando. — Ai, Angelique, eu lhe fiz um mal tão grande! Foram meus
sonhos ambiciosos para você que me levaram a fazer isso.
— O que há com ele?
— Eu lhe menti. Ele não era o seu pai.
— O quê!? Mas como você pode me dizer isso? A marca de nascen‑
ça em minha perna é igual a uma que ele tinha! — protestou a jovem.

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Lara Parker

— Minha filha, uma marca de nascença é muito fácil de falsifi‑


car por alguém como eu.
— Mas por que você me disse que eu era dele?
— Eu pensei que ele iria se transformar em um senhor de engenho
rico e poderoso e que gostaria de você e lhe daria uma bela vida. Ele me
jurou que estava disposto a criá­‑la como uma dama. Tenho vergonha
de dizer que ele foi meu amante, um vilão de coração tão negro quanto
o dele e de que me deitei com ele muitas vezes. Ele chegou a me propor
casamento, mas eu disse que não — afirmou­‑lhe. — Não obstante, eu
lhe disse que ele era seu pai e ele me acreditou. Eu nunca soube que ele
era um Couchon Gris. Eu deixei que ele a levasse... logo você, uma cria‑
tura tão doce, um verdadeiro anjo. Ai, eu fiz uma coisa muito má ao
inventar aquela falsidade e meu coração está amargurado por isso. As‑
sim, você percebe, eu realmente mereço essa sentença triste.
— Nem diga isso!
— Foi um crime tão grande, que eu tenho de pagar por ele.
— Não fale desse jeito!
Angelique olhou para suas mãos, flexionando os dedos.
— Mamãe, nesse caso, quem foi o meu pai?
— Eu não sei. Eu realmente acredito que ele veio do mar. Você se
lembra do que eu lhe costumava dizer? De que nascera da água?
— Sim. E eu sempre achei que fosse verdade. Que eu era filha do
mar, porque me sentia tão feliz quando estava dentro dele.
— Eu vou contar­‑lhe agora a história do dia em que seu pai apare‑
ceu e você mesma decide. Era uma manhã muito estranha e não subia
qualquer brisa do oceano. O vento descia do vulcão, de Mont Pelée,
escaldante e áspero; o céu estava tão azul que parecia ferver; a espuma
do oceano estava grossa como creme. Eu estava juntando siris, mas
estava vendo o ar ao meu redor, todo fraturado em arco­‑íris e a areia
parecia composta de grãos de ouro. Foi nesse momento que eu pensei
que havia um feitiço no ar, porque ele estava tão quente e parado e
então eu vi aquele pássaro branco, imóvel, me olhando diretamente no
rosto e então tive certeza de que era isso mesmo que eu havia pensado.
— O pássaro lhe contou?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Cymbaline anuiu.
— Eu fiquei andando um pouco pela praia, mas estava difícil encon‑
trar siris, porque todas as conchinhas brancas da praia tinham ganhado
vida e estavam se movendo — prosseguiu ela. — Então eu vi a grande
tartaruga, muito verde e malhada, como um animal marinho subindo
à praia durante o dia. Ela tinha aberto ali o seu buraco, em plena luz do
dia, numa hora que ela não devia estar ali, porque não havia lugar ne‑
nhum para se esconder e eu cheguei perto e vi que estava soltando seus
ovos redondos e perolados por uma abertura abaixo de sua cauda. Ela
se virava para cá e para lá, para cima e para baixo, sacudindo a cauda e
esfregando as patas e eu soube na hora que era um feitiço.
— O que aconteceu?
— Ora, sem a menor dúvida, um homem saiu da água — doura‑
do como um deus, seus olhos pareciam caquinhos do céu.
— Então, foi ele?
— Ele ficou comigo cinco dias. Nós fizemos amor, amor de ho‑
mem com mulher, muitas vezes. E quando ele partiu, você estava
dentro de mim.
Angelique fechou os olhos e imaginou uma visão de sua mãe
caminhando através da espuma e usando um pareu de tecido floral
— esguia, cabelos longos, lisos e escuros, corpo ágil e curvilíneo, o
vestido grudado a seu corpo, como se ela fosse uma corbelha de
flores. Acima de tudo, ela percebeu sua timidez e seus movimentos
desajeitados de menina, a mulher que um homem veria, não a sua
mãe, tão sábia e amorosa, que a amamentara em seu peito, mas a
garota ondulante caminhando sobre a areia, recatada, mas sorri‑
dente, sorrindo como sorriria para um amante, movendo­‑se como
se tivesse música nos ossos.

* * *

O morto pendia do laço da forca. Girava lentamente, preso à corda


pelo pescoço, seus olhos arregalados na máscara da morte. O ar
estava quente e empapado de umidade, mas o céu estava acinzentado

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como chumbo e não havia a menor lufada de vento. O sol se punha,


uma esfera vermelha e enferrujada e ao longe se escutavam roncos,
ecoados por um rugido subterrâneo que significava que havia um
furacão a caminho da ilha.
Angelique esperou fora da prisão, no meio de uma multidão de mu‑
latos e bequês, os brancos naturais da ilha, que viviam na zona portuá‑
ria, todos vindos para apreciar as execuções e tentou acalmar o pânico
que lhe surgia no coração. Os guardas removeram o corpo do escravo
que acabara de ser enforcado e lançaram o baraço vazio novamente
para cima, onde fez a volta pela trave e ficou balançando pelo seu pró‑
prio peso até se aquietar. Uma fila de caixas de madeira verde que servi‑
riam como caixões estava em pé contra a parede da prisão sob a arcada.
Diversos enforcamentos já haviam ocorrido aquele dia e ela per‑
cebeu que a turba estava demonstrando sinais de impaciência. Ela
viu apenas um punhado de blancs, mercadores e comerciantes, mas
os juízes estavam parados em uma plataforma, usando vestes tala‑
res negras e havia um destacamento desorganizado da milícia fran‑
cesa; ela localizou o padre Le Brot perto do patíbulo, administrando
a extrema­‑unção para os condenados. Ela recuou um pouco, com
medo de que ele a reconhecesse.
— Tu conhecia a bruxa?
A voz a assustou e ela virou o rosto para uma mulher de pele
marrom e rosto gentil, que trazia seu nenê encaixado em um dos
quadris. Respondeu baixinho:
— Ela é minha mãe.
A mulher prendeu a respiração e a seguir soltou um suspiro bai‑
xo de comiseração, depois se virou e cochichou para uma compa‑
nheira. Todas olharam para ela com expressões lamentosas, e outra
mulher, um pouco mais escura, aproximou­‑se dela, seu rosto mar‑
cado de compaixão:
— Tua mãe não faiz mal argum — disse­‑lhe gentilmente. —
Essa sentença é muito injusta. Ela é uma boa curandeira. Ela feiz o
parto de meu filho. Todos os escravo de Trinité amavam ela.
Outra mulher falou baixinho:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Foram os senhores de engenho de Grande Anse que queriam


vingar aquele capataz — os que se embebedavam junto com ele em
Saint­‑Pierre. Desde a rebelião aumentou a tirania, a suspeita e a
crueldade. Muitos são executados sem motivo nenhum.
O céu escureceu e ameaçava chover quando Cymbaline surgiu
no arco que conduzia ao portão da prisão e começou a caminhar
lentamente até o patíbulo. Angelique sentia seu coração batendo
violentamente e olhou com ansiedade para as nuvens baixas no ho‑
rizonte, porque temia que as gotas de chuva lavassem o pó do ar.
Sua mãe estava vestida com uma longa túnica branca e solta que
não conseguia disfarçar seu corpo esguio e seus cabelos negros caíam
em ondas por suas costas. Não usava quaisquer ornamentos, mas sua
beleza brilhava através do lustro de sua pele e de seus olhos cintilantes
como os de uma tigresa, que percorreram a multidão e se pousaram
em Angelique. A sombra de um sorriso perpassou sua face.
O trovão estrondou como um bombo profundo e o ar parecia
palpável, espesso e quente, pairando como um toldo sobre sua ca‑
beça. Cymbaline subiu ao patíbulo com a cabeça bem erguida, deu
apenas um leve tropeção no último degrau porque olhava para o
alto, depois ficou ereta sobre o assoalho da plataforma, somente um
leve tremor em seu lábio inferior a lhe trair o medo. Um sopro bem­
‑vindo de brisa atravessou a praça como uma alma penada, ergueu­
‑lhe a barra da túnica longa, mas fugiu antes de refrescar o
ambiente e o ar ficou parado novamente.
Angelique esperava que Cymbaline estivesse trazendo o pó em
uma das mãos. Mas alguma coisa estava errada. Alguma coisa não
era como ela havia imaginado. Angelique estremeceu com a súbita
constatação de que as mãos de sua mãe estavam atadas nas costas!
Como ela poderia levar o pó até as narinas para cheirá­‑lo?
Um juiz de toga negra leu a sentença, sua voz anasalada ressoan‑
do solene e firme no ar empapado de umidade.
— Cymbaline Harpignies, você foi acusada do crime de bruxa‑
ria, julgada, considerada culpada e condenada à morte por enforca‑
mento. Tem alguma coisa a dizer?

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Cymbaline contemplou o povo reunido a seu redor. Seus cabelos


negros emolduravam­‑lhe o rosto e seus olhos estavam esgazeados.
— Eu suplico ao povo aqui presente que me escute uma última
vez — falou com a voz perfeitamente controlada. — Eu não cometi
crime algum e somente defendi minha honra contra uma humilha‑
ção que mulher alguma deve ser forçada a suportar.
Angelique viu a velha cólera crescer dentro dela:
— Os juízes dizem que ele era um homem branco e como eu
tenho sangue africano em minhas veias, não tinha qualquer direito
de feri­‑lo. Ele era branco, admito isso, mas era uma besta vil e licen‑
ciosa, não era um homem em absoluto. Eu não o chamarei de ho‑
mem e quaisquer que busquem vingança por sua morte tão bem
merecida são monstros tão brutais quanto ele!
Correu um murmúrio pela multidão, enquanto os juízes confa‑
bulavam uns com os outros e então um fez sinal ao sacerdote. O
padre Le Brot subiu ao cadafalso.
— É uma bruxa! — gritou um homem. — Ela não precisa tomar
a comunhão!
O padre se voltou para o homem que gritara e lhe disse com gentileza:
— Todos são iguais aos olhos de Deus e todos os que recebem os
sacramentos ascendem aos Portões do Céu.
Angelique não podia esperar mais. Esperando que ele não a re‑
conhecesse, avançou para frente da multidão enquanto o padre pu‑
nha a hóstia na boca de Cymbaline e quando ela avançou até o
centro do patíbulo, ela gritou:
— Padre, dê­‑lhe um crucifixo para segurar!
O padre Le Brot virou­‑se e franziu a testa levemente ao escutar a
voz, mas não olhou para baixo em sua direção.
— Ela precisa de uma cruz, padre! — insistiu Angelique
com urgência.
Em vez disso, o padre olhou para os juízes, questionadoramente.
O juiz principal hesitou, depois deu de ombros e Angelique soltou
um suspiro de alívio ao ver o guarda desatar os pulsos de sua mãe e
o padre lhe estender o crucifixo. Cymbaline olhou para a cruz de

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

madeira por um longo momento, depois seu olhar se desviou e ela


viu Angelique na primeira fila, diante do cadafalso. Seus olhos se
fitaram e Angelique anuiu lentamente.
Cymbaline estendeu a mão rapidamente para o crucifixo,
segurou­‑o, apertou­‑o rapidamente contra os lábios, soltando um
bafo de fumaça branca no ar. Então apertou o crucifixo contra o
peito. Suas narinas se abriram, seus olhos se arregalaram, ela
olhou para Angelique de novo e então respirou a plenos pulmões
enquanto o carrasco erguia o baraço. No instante seguinte, seus
olhos se vidraram, ela vacilou, desmaiou e caiu, amontoada sobre
as tábuas imundas do patíbulo. Seu braço se abriu para fora, a
mão ainda segurando firmemente o crucifixo. Enquanto os cir‑
cunstantes surpresos se amontoavam a seu redor, sua respiração
foi cessando, até que parou.
Como em resposta, o céu escureceu. As nuvens vomitaram chu‑
va, empapando a populaça. As bátegas martelaram o corpo imóvel
de Cymbaline enquanto um dos guardas a endireitava e estendia de
costas sobre a plataforma para lhe examinar o rosto.
— Está morta? — a voz que fez a pergunta parecia estar cuspin‑
do em vez de falar.
— Morta, sim — disse o guarda, com uma finalidade cheia de
indagações, sacudindo a cabeça em descrença, gotas de chuva a
pingar­‑lhe do nariz.
A multidão explodiu e exigências furiosas e contraditórias foram
lançadas aos juízes.
— Ela era mesmo uma bruxa! O crucifixo a destruiu!
— Não! Isso prova que ela era uma mártir! A cruz salvou­‑a do
nó do carrasco!
— Enforquem ela mesmo assim!
— Sua sentença foi injusta!
— E se ela era mesmo uma bruxa? Ela vai voltar para nos atormentar!
— Isso não é verdade! — gritou o padre acima das outras vozes,
sua gagueira esquecida. — Cristo a levou consigo no momento em

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que ela colocou o crucifixo contra o coração! Ela merece ser enter‑
rada no campo santo!
— Essa bruxa tem de ser é queimada! Senão, vai “envivescer”
de novo!
Mas o padre Le Brot impôs sua autoridade e o corpo de Cymba‑
line foi erguido e carregado de volta para a prisão. Lá dentro, ela foi
envolta em uma mortalha limpa e colocada no último ataúde vazio,
ainda em pé contra a parede, sob a arcada da galeria. Lençóis de
chuva estouravam contra as pedras do calçamento da praça.
A procissão funerária começou lentamente, seguindo pelas ruas
curvas e estreitas até a beira da cidade. Os caixões foram empilha‑
dos em um pesado carroção puxado por dois cavalos de tiro e An‑
gelique pôde notar que havia muitos pranteadores, a maioria das
famílias dos condenados que haviam sido executados, alguns cho‑
rando, outros caminhando pesadamente, um remorso baço evi‑
dente em seus olhos. Ela olhou com o maior cuidado e teve certeza
de que o caixão de sua mãe era o último a ser colocado na traseira
do carroção, ainda melhor identificado porque o padre Le Brot ti‑
nha amarrado o crucifixo à corda que prendia a tampa do caixão,
já que nenhum deles fora pregado ou aparafusado. Angelique ca‑
minhava logo após o veículo, algumas vezes estendendo a mão
para tocar no ataúde de madeira áspera, como para se assegurar de
que tudo estava bem.
A chuva incessante caía como em cortinas, impulsionada agora
por um vento traiçoeiro que parecia não brotar de direção alguma,
mas soprar de todas ao mesmo tempo, impulsionando a chuva de
lado através da estrada, dobrando as árvores quase até o chão e de‑
pois girando e arrancando o capim do chão em feixes enovelados.
O rugido que descia do céu se tornara constante, agora acompanha‑
do por um estrondo que subia do mar e Angelique percebeu que a
maré estava sendo reforçada pelo vento e que ondas de grande altu‑
ra se atiravam com grande violência contra a praia.
Angelique observou enquanto o ataúde era baixado até o fundo da
cova escura, que parecia cheia com a água que fluía de mil riachinhos

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

recém­‑criados pela inundação. Outras gotas de chuva explodiam


contra a tampa de madeira lisa.
Os coveiros não puderam palear a terra para dentro da sepultura,
mas foram obrigados a raspar a lama para cobrir o buraco, lutando
finalmente para cobrir a cova com leivas de terra encharcadas. A força
do vendaval tornava difícil permanecer em pé, e os dois homens se
curvavam sob seu impulso enquanto labutavam. Finalmente, eles de‑
ram o serviço por terminado e um dos homens se apoiou com uma das
mãos contra o cabo da pá enquanto tirava a água do rosto com a outra
mão. Depois ele se ergueu e olhou para Angelique que se surpreendeu
ao reconhecer o carcereiro, com sua barba ruiva e crespa e o olho de
azul nublado que emprestava uma malevolência obtusa a seu olhar.

* * *

Quando o furacão estava soprando em seu assalto mais furioso,


Angelique retornou ao cemitério deserto com uma pá, firmou os
pés bem separados para resistir contra a fúria das rajadas uivantes
do vento e começou a cavar. Copas de palmeiras voavam pelo ar e
longas folhas escuras de coqueiros voavam ao redor de sua cabeça
enquanto ela se curvava para realizar a tarefa. Logo seus braços do‑
íam de cima a baixo, desacostumados com o trabalho e suas costas
sofriam espasmos de dor. Ela sentia o vento como um corpo físico,
empurrando sua estrutura óssea tão enfraquecida pelos meses de
desnutrição em Port­‑au­‑Prince e ela cambaleava a cada nova lufada.
Frequentemente sua pá subia apenas com meia dúzia de pedrinhas,
porque o vento e a chuva empurravam a lama de volta para a mi‑
núscula abertura que conseguira cavar. Finalmente, ela se pôs de
joelhos e começou a atirar para fora a lama com as mãos em con‑
cha, pouco se importando com o sangramento nos dedos e nas jun‑
tas quando encontravam calhaus aguçados que lhe quebravam as
unhas e rasgavam e arrancavam a pele das mãos.
O vento girou em redemoinho e o galpão junto ao portão do
cemitério explodiu e depois desabou com um som ensurdecedor

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Lara Parker

enquanto cacos de tijolo se esfarelavam em pedaços e as paredes


de pau a pique se desfaziam em lama. Parecia que o mundo intei‑
ro estava se desmanchando. Não conseguia respirar direito pelo
nariz, mas cada vez que abria a boca para inspirar, ela se enchia de
água e Angelique recordava as muitas vezes em que fora derruba‑
da pela arrebentação da maré e perdia o senso de direção, nadan‑
do para o fundo ao invés de subir à superfície das águas. Só que
agora não havia qualquer superfície para ser atingida e lhe aliviar
o afogamento neste oceano de ar espumante que batia nela com
punhos pesados, e mesmo assim as rajadas de vento lhe enchiam
os olhos com fragmentos de cal ou madeira a um ponto em que
não conseguia mais enxergar.
Mas ela persistiu escavando a sepultura, logo conseguiu meter­‑se
dentro dela e suas beiradas começaram a protegê­‑la da fúria do ven‑
to, embora a água e a lama persistissem em se juntar a seu redor, até
que, finalmente, seus dedos arranharam a madeira áspera da tampa
do caixão grosseiro. Ela começou a rezar baixinho: “Mamãe, não
acorde, eu estou aqui, eu vim buscá­‑la, vou tirá­‑la daí de dentro e
sua morte será lavada pelo furacão e tudo o que recordaremos de
sua fúria será sua ressurreição...”.
Finalmente, ela conseguiu limpar a lama de sobre a tampa do
ataúde, pois agora a chuva até a ajudava, lavando os torrões de
terra restantes de cima da tábua e escorrendo para o fundo da
cova e fazendo o ataúde começar a flutuar, até que, com um ím‑
peto de alegria, ela arrancou o crucifixo, rebentando a corda que
amarrava frouxamente o caixão e se ergueu, esforçando­‑se por
enfiar os dedos sob a superfície de madeira escorregadia a fim de
levantar a tampa.
Seu primeiro pensamento foi que a água havia enchido o ataúde,
porque a mortalha era tão fina e parecia grudada no fundo, mas
quando ela arrancou o tecido empapado, um pavor enjoativo se en‑
roscou ameaçadoramente ao redor de seus ossos. Ela olhou para o
receptáculo aberto em pura incompreensão. O caixão estava vazio!
— Mamãe! Mamãe!?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Não! Mas como podia ser isso? Onde ela estava? Cambaleando
através do cemitério, tropeçando, caindo na lama e se erguendo no‑
vamente, ela saiu em busca de outro túmulo cavado recentemente,
mas os detritos soprados pela tempestade cobriam cada centímetro
da terra e não havia nada senão lama embaixo dos galhos arranca‑
dos e destroçados. Ela gritou: “Mamãe!” mais de uma vez. Mas o
vento arrancava os sons de sua garganta antes mesmo que pudes‑
sem sair e a única resposta eram os rugidos do furacão. Ela caiu de
joelhos, soluçando.
— Em algum lugar... por minha culpa... em algum lugar nessa
escuridão amarga... ela vai se acordar e terá de morrer... uma segun‑
da vez... e deve estar sofrendo agora, deve estar gritando por mim
para me avisar... e eu não consigo escutar­‑lhe a voz... Eu não consigo
encontrá­‑la... não... ai, meu Deus, por favor... não!
Ela ergueu os braços histericamente para os uivos do vento e seu
grito saiu tão agudo, que superou o rugido da tempestade.
— O que você fez comigo? Você me traiu! Responda­‑me! Diabo!
Atormentador! Assassino!
Os uivos da ventania foram sua única resposta, mas ela conse‑
guia percebê­‑lo em algum ponto do ar turbulento, tão seguramente
como conseguia escutar dois corações batendo dentro de seu peito
e ela soube que ele descobrira a maneira de destruí­‑la para sempre.
Ela olhou para o céu tumultuado e o invocou com toda a sua força:
— Salve­‑a! Mostre­‑me onde ela está, Demônio! Satã! Onde es‑
tás? Por que me abandonaste? Vem para mim!
E finalmente, a voz lhe respondeu dentre o rugido anestesiante.
— Aqui estou...
Ela girou e esquadrinhou a escuridão em busca dele, mas só con‑
seguiu divisar o dilúvio furioso que a cercava.
— Salve­‑a!
— Você é um desapontamento para mim, Angelique — disse a
voz, em seu tom monótono, rascante e profundo. — Não fui eu que
roubei o corpo dela. Foi o carcereiro caolho quem fez isso. Você
sofre por causa de seu orgulho e dos medos que a aleijam. Você

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Lara Parker

acredita somente em seus próprios poderes. Você me rejeitou e ago‑


ra, quando lhe convém, está me invocando. Estou cansado de você.
Quando seu coração se tornar em pedra, então eu a buscarei. Até
então, você nunca saberá quando seus poderes lhe falharão!
— Eu renuncio a meus poderes! Está me escutando! Não quero
mais saber deles, agora e para sempre! Não me servem para nada!
Somente me trazem desespero e me partem o coração! Vá para lon‑
ge de mim, para sempre e os leve consigo quando for!
Se os gritos do vento pudessem rir, um assobio agudo e de furar
os tímpanos soou qual uma gargalhada maléfica e ele disse então:
— Como queira, minha filha, como queira! A escolha foi total‑
mente sua!
E a entidade foi sugada pelo holocausto e desapareceu a distância.

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Dezenove

arnabas olhava pela janela de seu quarto em um dia que de‑


monstrava toda a beleza que surge após a passagem da tempes‑
tade. Nuvens pesadas ainda pairavam baixo no céu, mas a luz se
derramava ao redor delas, formando halos de prata ao redor de suas
sombras escuras e raios brilhantes iluminavam o chão para se refle‑
tirem nas gotículas que pendiam dos ramos. O ar fora lavado pela
chuva e, quando o sol finalmente apareceu, a grama mostrava todas
as nuances de um verde­‑esmeralda encantador.
Fazia duas semanas desde que ele entrara em colapso e agora
tanto ele como Júlia acreditavam que o ataque do vampiro não fora
suficiente para lhe reverter a cura. Os longos dias passados na cama
o haviam deixado impaciente. Estava tão tenso que era agora im‑
possível dormir e, embora ainda se sentisse fraco, não poderia per‑
manecer no quarto sequer por mais uma hora.
Júlia estava sentada em sua escrivaninha, trabalhando para recupe‑
rar as páginas do diário. Finalmente havia conseguido afrouxar um tre‑
cho particularmente grosso, quando escutou uma batida à sua porta.

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Lara Parker

— Sim? Quem é?
— Sou eu, Barnabas. Posso entrar?
Ela correu para abrir a porta.
— Barnabas, você não devia ter saído da cama!
Ele estava encostado no marco da porta, sorrindo, e ela percebeu
que seu rosto já adquirira alguma coloração.
— Ah, Júlia, eu estou chateado. Queria te perguntar se eu podia
sair para dar um passeio e se você estava disposta a caminhar comi‑
go. Eu não acho que vá precisar que empurre minha cadeira de ro‑
das — brincou. — Mas talvez eu tenha de me apoiar no seu ombro...
Ela se ruborizou levemente.
— Mas é uma ideia encantadora! — ela exclamou. — Vou com
você agora mesmo!
Enquanto ela pegava seu casaco, ele divisou o livro sobre a escriva‑
ninha, brilhando à luz do abajur. Ele franziu a testa inicialmente, mas
quando percebeu o que de fato era, pareceu ficar bastante perturbado.
— Júlia... que negócio é este aqui em cima?
— Ai, Barnabas! É... é o diário de Angelique...
— Mas... você o havia enterrado!
— Eu sei que o enterrei. Lamento tanto... Foi uma ação egoísta
e estúpida...
Ele ficou olhando para ela, mais espantado que reprovador e
ela prosseguiu:
— Eu estava planejando devolvê­‑lo a você, Barnabas. Estive traba‑
lhando nas páginas. Salvei delas o quanto pude. Mas... temo que toda
a parte central esteja perdida, salvo por trechos e frases isoladas...
Ele caminhou até a superfície em que jazia o livro e o contem‑
plou como se não pudesse acreditar que estivesse ali.
— Você esteve lendo o diário?
— Sim... E devo admitir que ela teve uma infância fascinante. Mas
tão envolvida com o sobrenatural. Definitivamente, ela era uma feiti‑
ceira, uma feiticeira treinada, tornara­‑se uma sacerdotisa vodu já aos
quatorze anos. As partes que eu li foram muito perturbadoras.
— E você ainda acha que seja... maligno?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Devo dizer que sim. Percebo que é somente um registro de


suas experiências, mas elas foram depravadas e espiritualmente
corruptas. Contudo, ela sofreu tanto que eu quase senti pena dela.
Ela nunca conheceu seu pai verdadeiro e... coisa de partir o cora‑
ção... sua mãe sofreu uma morte horrível por culpa dela. Eu acho
que, depois disso, ela tentou desistir de seus poderes e passar a viver
uma existência normal.
— Mas você ainda acha que o livro é perigoso.
— Bem, eu sinto que pode ser, sim — ela concordou. — Contu‑
do, há várias noites eu venho lendo partes dele e... sobre mim não
causou efeito algum... salvo repugnância, uma sensação de que al‑
gumas partes dele eram totalmente repulsivas...
— O que está a me dizer é que agora você pensa que não há pro‑
blema em que eu volte a ler o que sobrou dele.
— O que eu penso... é que eu não devia ter tentado impedir que
você o lesse...
— Bem, a verdade é, Júlia, que eu absolutamente não estou mais
interessado nesse diário. Preferia que você o tivesse deixado lá onde
estava, enterrado no cemitério.
Júlia sacudiu a cabeça e soltou um risinho amarelo.
— Por que está rindo?
— Só porque eu passei longas horas secando as páginas e as se‑
parando com o máximo cuidado. Pode ter sido uma tolice de mi‑
nha parte, mas eu queria lhe devolver o livro para que você não
ficasse mais zangado comigo...
— Mas, Júlia, eu nunca me zanguei realmente com você! Eu lhe
sou devotado e tenho uma grande dívida para consigo. Vamos, dei‑
xe essa coisa aí. Vamos dar nosso passeio e não mencionar mais esse
diário ridículo.

* * *

Mais tarde, nessa mesma noite, como acontecia quase sempre com
ele, Barnabas não conseguia dormir. Bateu de leve à porta de Júlia,

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Lara Parker

antes de abri­‑la. Ela dormia profundamente e ele achou melhor


não incomodá­‑la. O diário de Angelique permanecia aberto sobre
a escrivaninha. Seu formato tinha mudado. Estava mais grosso do
que antes, porque as páginas estavam empenadas. A capa de couro
estava mais negra e mais pesada, mas um luar gentil entrava pela
janela e caía sobre o volume danificado, imbuindo­‑o com uma cin‑
tilação fantasmagórica. Depois de hesitar um momento, ele o pe‑
gou e, após fechar a porta silenciosamente, retornou com ele para
seu próprio quarto.
Suas mãos tremiam quando ele abriu o livro e começou a ler.
Subia um odor peculiar das páginas, de um mofo concentrado, sal‑
gado como a água do mar, porém quase imediatamente uma série
de imagens começaram a se formar em sua mente, qual tivesse sido
capturado por um sonho.

* * *

Césaire encontrou Angelique, prostrada e quase afogada pela


chuva, ao lado da sepultura meio cheia de lama e conduziu­‑a,
estonteada e incapaz de resistir, para o lugar em que morava, o
galpão do fabricante de velas. Assistiu enquanto ela emitia um
longo gemido e carpia por sua mãe, chegando à própria fímbria
da loucura e somente sua simpatia e constante vigilância impe‑
diram que cometesse suicídio. Durante o dia, quando estava
acordada, sentia­‑se escaldada de remorso, durante as horas de
sono era perseguida por pesadelos formados por um emara‑
nhado de visões horríveis. Não tinha para onde fugir, salvo
para uma semi­‑inconsciência drogada, que Césaire lhe induzia
com chá de camomila misturado a umas gotas de tafiá, a ca‑
chaça dos escravos.
Um dia, ela pareceu estar um pouco melhor ao acordar. Olhou
pela janela para o novo dia com um rosto pálido e emagrecido.
Virou­‑se para ele e indagou:
— Diga­‑me uma coisa, Césaire. O que aconteceu com Basse Pointe?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Ora, tá entregue pros ratos, guria. Todo mundo foi embora.


Os escravos rebeldes... tão todos morto. A casa­‑grande tá aban‑
donada. O povo todo tem medo de ir lá, dizem que tá cheia de
almas penadas.
— Você vai comigo até lá?
— Por que tu quer ir até lá, guria?
— Quero meus livros.
Assim, Césaire arranjou emprestada uma égua velha e cavalga‑
ram juntos até as colinas, ela na garupa, agarrada às suas costas.
Sentia consolo na proximidade de seu corpo magro, mas que pare‑
cia feito de aço e ela enfiou o rosto em seus cabelos, que eram ma‑
cios e tinham cheiro de rosas secas. Ela prendeu as pernas nos
flancos da égua e deixou seu passo lento embalá­‑la, afrouxando os
nós de dor que retorciam seus ossos.
Ela nunca havia percebido que a mata era tão luxuriante, árvo‑
res imensas cujas copas pareciam chegar até as nuvens, o mato
rasteiro ostentando folhas largas de um verde-escuro, lianas en‑
feitadas com orquídeas e helicônias brilhantes arqueadas como
pássaros escarlates. Havia zumbidos e farfalhadas entre as espes‑
sas touceiras de avencas e um calor intenso subia de poças fétidas
entre as sanguinárias, cujos grandes troncos, cheios de projeções
em leque semelhantes a arcobotantes subindo desde as raízes, se
espalhavam pelos brejos.
De vez em quando, um trecho de céu surgia por entre as copas
das árvores ou ela observava de relance o imenso Mont Pelée su‑
bindo até um teto de névoas, seus lados íngremes afogados em um
pelame verde e Angelique sentiu uma ânsia que não podia compre‑
ender. Era como se a montanha a estivesse chamando.
Teve uma sensação estranha ao atravessar o portão pesado, as folhas
escancaradas e meio pendentes das dobradiças que começavam a enfer‑
rujar, que foi ficando mais forte enquanto ela cruzava o pátio cheio de
ervas daninhas. Césaire estivera certo ao dizer que a plantação estava
deserta. As pás do belo moinho revolviam lentamente, como as velas de
um navio fantasma, mas estavam separadas das engrenagens e as

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Lara Parker

pedras de moer a cana estavam silenciosas. Pilhas de canas secas ainda


estavam amontoadas contra as paredes, desmanchando­‑se aos poucos
em palha e moinha, enquanto a brisa leve roçagava entre suas hastes
que pareciam feitas de folhas de papel seco enroladas.
Enquanto Angelique subia as silenciosas escadas de pedra para
seu antigo quarto, as imagens se sucediam rapidamente dentro de
sua mente. Tudo estava igual, seus livros exatamente onde os havia
deixado mais de um ano antes, jazendo na poeira acumulada em‑
baixo de sua cama e ela retirou dali o seu diário, alguns livros esco‑
lares e o Shakespeare que lhe dera o padre.
O quartinho por detrás do altar parecia menor e mais esquálido
do que ela recordava, mas ela cuidadosamente escolheu uma varie‑
dade de ervas e pós curativos guardados em pequenos recipientes e
colocou­‑os dentro de um alforje que havia trazido para esse fim. O
livro de feitiços estava caído em um canto, coberto de fuligem e ela
deixou que ficasse ali mesmo.
Erguendo a cortina esfiapada, ela entrou no santuário. Ficou pa‑
rada vários minutos diante do altar, escutando o som do vento as‑
sobiando do lado de fora das paredes de pedra e o silêncio completo
e implacável que reinava no interior. Pela última vez ela deu adeus,
como já o fizera ao lado da sepultura de sua mãe, a todos os seus
poderes das trevas.

* * *

— Mas eu não quero ser dama de companhia!


— Angelique, me escuta, tu tem de seguir em frente. O que mais
tem na vida que uma nova aventura? Tu não pode rodá um moinho
despois que a água do rio secou! — falava Césaire, pacientemente,
sentado ao lado dela, enquanto a moça comia o peixe seco e os bis‑
coitos que ele lhe trouxera.
— Não posso ficar aqui contigo?
— Não tem nada pra ti aqui — disse Césaire firmemente, en‑
quanto lhe mostrava um pedaço de papel que trazia na mão, no

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

qual estava escrito um nome: Condessa Natalie du Prés. — Olha pra


isto e pensa na tua cabeça. Isto é um bom sinal. Uma senhora im‑
portante, que veio de Paris e tu é um pouco educada, modesta e
sensata, justo o que ela vai querer...
— Mas, Césaire, serei uma criada...
— Guria, todo mundo é criado de alguém. A gente que a gente
obedece nos conserva respirando e nos dão razão pra viver...
— Não. Eu quero ficar aqui.
— Tu é boa demais pra esta vida. Tem mais, eu também tô
indo embora...
— Você vai? Você vai embora?
— Tu sabe que meu sonho é sair pro mar e é o que eu pretendo
fazê daqui a pouco, guria. Os porco não se importa com a lama em
que vive, mas os pássaro têm de voar no ar.

* * *

A plantação de Trinité era mantida com esmero e os canaviais eram


imensos. Enquanto Angelique se aproximava da casa­‑grande, ficou
quase cega com o brilho do sol refletido no teto de telhas vermelhas
da varanda. Era um prédio muito bem construído, com dois anda‑
res e rebocado de cima a baixo, com os postigos pesados pintados
de verde. Uma gigantesca roda de madeira girava em uma corrente
veloz para acionar o moinho e as águas cintilantes do rio ondeavam
através das pastagens. Ela avistou quatro ou cinco escravos decente‑
mente vestidos — trabalhando no jardim, cuidando das árvores
frutíferas espalhadas pelos gramados e levando lenha para a cozi‑
nha em carrinhos de mão. As colinas estavam cobertas de canaviais
até o horizonte, pintalgando a terra com manchas multicores de
mogno, esmeralda e ouro.
A Condessa Natalie du Prés estava sentada em uma poltrona de
vime em sua ampla sala de visitas, bebericando chá de uma taça de
porcelana. Usava um vestido de tafetá magenta e seus cabelos des‑
ciam em cachos vermelhos. Seu rosto era anguloso, com maçãs

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Lara Parker

salientes como as de uma cobra e seu nariz era aquilino com nari‑
nas grandes. Seus olhos de um castanho-escuro fixaram­‑se desde‑
nhosamente sobre Angelique e ela apertava os lábios ao falar.
— Angelique, é o seu nome? — comentou ela sem a menor sim‑
patia. — Mas você não passa de uma criança malvestida, sem graça
e desinteressante. Por que eu iria querer contratá­‑la? Obviamente
você é uma filha de camponeses e não tem nada para me oferecer.
Quem é sua mãe?
— Ela está morta, Madame. Mas trabalhava no hospital dos seus
escravos. Seu nome era Cymbaline — respondeu Angelique.
— Ah, sim, eu me lembro dela, foi condenada por ser bruxa —
disse a senhora, suas sobrancelhas se apertando no meio da testa.
— Você é que nem ela?
— Oh, não, Madame...
— Você não mexe com venenos ou pratica bruxaria?
— Não, Madame. Essas coisas me assustam.
— Não, é claro que não. Você é ordinária demais para se meter
com qualquer coisa que se refira ao oculto...
— Mas eu trabalho com afinco, Madame. E aprendo depressa.
— Não, não, a questão não é essa. Eu preciso é de uma moça
que possa fazer companhia à minha sobrinha em seus estudos.
Você não serviria de maneira alguma. Garanto que nem sequer
sabe escrever!
— Mas eu sei, Madame e posso declamar Shakespeare de cor.
— Realmente? Você recita Shakespeare? Acho muito difícil acre‑
ditar nisso.
— É verdade, Madame.
— Sem dúvida... Declame alguma coisa para mim.
Angelique pensou por um momento.
— Qual é a sua peça favorita?
— Está tentando pretender que conhece todas? Ou está ganhan‑
do tempo porque mentiu?
— Vou dizer­‑lhe alguma coisa de A Tempestade, se a senhora
gosta dessa...

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Vá em frente.
Angelique respirou fundo e começou a recitar baixinho, sua
voz assumindo a cadência melodiosa à medida que sua cora‑
gem aumentava.

“A cinco braçadas jaz teu pai


E os corais são feitos de seus ossos;
Estas pérolas foram um dia seus olhos,
Nada de seu corpo desapareceu,
Porém tudo foi transformado pelo mar
Em algo mais rico e mais estranho.
As ninfas do mar dobram finados de hora em hora.
Escutai! Eu ouço agora o tilintar do sino...”

A condessa ficou espantadíssima.


— Onde foi que você aprendeu isso?
— Eu ganhei um livro com as peças de Shakespeare, Madame,
quando era pequena.
— Bem, sim, hummm, está bem. Embora a capacidade de me‑
morização não seja um sinal de inteligência. A imaginação e a per‑
cepção é que são as marcas de uma mente arguta.
— Sim, Madame.
— Contudo, é impossível encontrar criadas educadas nesta ilha.
Uma vez que estou precisando de uma criada aceitável, talvez possa
treiná­‑la. E Josette precisa de uma companheira. É um verdadeiro
inferno obrigá­‑la a estudar suas lições.
— Eu estudarei junto com ela, Madame. Farei o que estiver a
meu alcance para ajudá­‑la.
— Ela é mais moça que você e muito mais bonita. É por isso
que o pai dela lhe faz todas as vontades. Mas nós vamos só fazer
uma experiência com você, entenda­‑me bem. Já lhe aviso desde
agora, o menor sinal de preguiça ou de insolência de sua parte e eu
a ponho no olho da rua! Você vai morar no alojamento dos cria‑
dos, mas vai se apresentar com Mademoiselle Josette na biblioteca

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Lara Parker

sempre que seu tutor vier e, caso se demonstre uma estudante


mais ou menos decente, quem sabe? Posso até permitir que você
permaneça conosco.
E assim começou o longo período de Angelique como dama de
companhia. Ela viveu uma vida comum, totalmente sem aconte‑
cimentos marcantes, embora estivesse empregada e gozasse de
um certo conforto. Tarefas inumeráveis a ocupavam da aurora ao
crepúsculo e somente quando estava sozinha em sua cama de
noite é que tinha tempo de pensar em si mesma, em suas lem‑
branças e nos seus sonhos.
A condessa era uma patroa exasperante, mutável e imprevisível e
sempre de mau humor. Sempre exigia mais do que Angelique podia
realizar e insistia em uma devoção completa a seus deveres. Assim
que uma nova exigência era satisfeita ou uma habilidade desenvol‑
vida, ela não lhe dava mais a mínima importância, mas começava a
se queixar de falta de cuidado ou de jeito em uma habilidade que
não lhe fora ainda ensinada e muito menos desenvolvida, seus olhos
como contas brilhantes girando em torno dela por cima dos mala‑
res parecidos com os da caveira da jararaca em seu amuleto. Ela
nunca ficava satisfeita e jamais fazia um elogio. Mas mesmo que ela
não o admitisse, sequer para si própria, começou a depender gran‑
demente de Angelique, porque ela era, apesar de todos os seus ares
de grande dama, singularmente preguiçosa.
A condessa tinha de ser acordada às nove em ponto pela abertu‑
ra dos cortinados e, uma vez que ela detestava o sol quente, estava
sempre de mau humor a manhã inteira. Ela esperava sua bandeja
com chá e bolinhos de leite ao estilo inglês, mas se achasse o chá
muito frio ou muito fraco ou os bolinhos secos demais, mandava
tudo de volta com duras palavras de reprovação. Insistia que a ban‑
deja de prata estivesse perfeitamente polida e que os guardanapos
de linho tivessem sido passados sem a menor dobra. Caso contrá‑
rio, nem sequer permitiria que fossem dispostos sobre seu leito. Ela
se queixava incessantemente de Martinica, “esta jângal monótona
cheia de pestilência e flores nojentas”.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Sua toalete matinal consistia em um banho, a água batizada


com óleos perfumados e esperava que Angelique a esfregasse, mas
sem violência demais. Depois do banho, tinha de ser empoada e
seus cabelos penteados de uma forma complicada, que ela rein‑
ventava a cada manhã.
A Condessa du Prés se considerava como membro da realeza e o
verdadeiro lar de sua alma era Versalhes. Deste modo, os únicos
padrões que aceitava eram os parisienses. Mesmo no calor pegajo‑
so de Martinica, ela usava um vestido de seda com todos os seus
detalhes e várias anáguas por baixo dele, preferindo sofrer o des‑
conforto do clima a vestir­‑se como uma “camponesa”, segundo
sua expressão favorita.
Assim que a condessa se achava ataviada e seu quarto fora arru‑
mado, Angelique era dispensada para ir à biblioteca. Lá encontrava
o tutor de Josette a esforçar­‑se por ensinar à menina alegre mas
desatenta suas novas lições. Os temas oscilavam entre poesia e lite‑
ratura, as artes da linguagem, música, matemática básica e um pou‑
co de geografia, tudo ia sendo apresentado aos poucos e Angelique
achava uma tarefa fácil tornar­‑se o modelo de uma estudante apli‑
cada. De fato, sentia­‑se fascinada por todas as matérias e se aplicava
a seu estudo com grande energia. Apreciava especialmente a litera‑
tura e sempre ficava desapontada quando as lições terminavam.
Josette, por sua parte, estava muito mais interessada em brincar
de esconde­‑esconde, fantasias e faz de conta. Aquilo de que ela mais
gostava eram as instruções sobre as formas de se comportar como
uma dama. Suas obsessões eram roupas e boas maneiras e ela falava
constantemente em ir a Paris para ser recebida na corte do rei.
Contudo, Angelique era forçada a admitir que ela tivesse certo
encanto. Sua natureza era generosa e sua tagarelice incessante esta‑
va cheia de observações gentis e comentários alegres sobre as pesso‑
as e o mundo que a rodeava. Era afetuosa e se inclinava para tocar
nas pessoas com quem conversava, garantindo assim sua atenção
constante, suas frases jorrando como de uma fonte cristalina. Ti‑
nha talento musical e, apesar de uma recusa cansativa a estudar,

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Lara Parker

tocava o harpicórdio com facilidade, lembrando as melodias ou as


tirando de ouvido, martelando as teclas com delicadeza, enquanto
cantava com voz aguda e graciosa as frases cadenciadas.
Josette amava a todos e logo estava enamorada de Angelique, que
devolvia o sentimento com alguma relutância. Mas como ambas
precisavam de uma companheira mais ou menos de sua idade, no
devido tempo se tornaram muito íntimas. Embora a condessa nun‑
ca permitisse a Angelique esquecer qual era o seu lugar, Josette se
demonstrava totalmente inconsciente do contraste social entre elas
e tratava Angelique como se fosse sua irmã.
Ela era generosa em excesso e teria dado todos os seus brinque‑
dos e roupas para Angelique caso a condessa o permitisse. Mas Jo‑
sette estava sempre ganhando novos vestidos e enfeites, de modo
que algumas de suas roupas usadas eram repassadas. Contudo, ela
não tinha ciúmes nem orgulho de nada, salvo de sua pele imacula‑
da, que ela guardava religiosamente dos assaltos do sol tropical. Ra‑
ramente era vista ao ar livre sem uma sombrinha e quando passeava
pelos jardins, era quase como se fosse outra flor, seus cachos de um
castanho­‑avermelhado cascateando pelos seus ombros e sua figura
delicada movendo­‑se graciosamente sob a curva do guarda­‑sol.
O almoço era no jardim coberto, junto com a condessa e, natu‑
ralmente, Angelique era obrigada a servir à mesa. A Condessa du
Prés instruía Josette às delicadezas do decoro apropriado à mesa,
completas com a maneira educada de conduzir a conversação tanto
em referência ao assunto quanto à modéstia dos comentários. A
postura de Josette era corrigida a cada trinta segundos e o uso e
manejo de cada tipo de talher, pires e taça era considerado com só‑
bria atenção. Angelique, por sua vez, era educada nos temas especí‑
ficos de servir uma mesa aristocrática. A intenção da condessa era a
de preparar cada uma das meninas para os papéis adequados que
deveriam desempenhar ao longo de suas vidas.
Durante as tardes, Josette era obrigada a fazer suas lições ou,
na falta delas, a praticar bordado, enquanto o tempo de Angeli‑
que era dedicado a lavar, passar, engomar e fazer pequenos consertos

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

nas roupas. Os cuidados e a limpeza de todas as roupas de uso e


de cama da condessa e de Josette estavam a seu cargo. Caso vies‑
se um professor de música ou um instrutor de danças cortesãs,
as duas meninas assistiam às lições. Naturalmente, Josette rece‑
bia a atenção especial da jovem dama da mansão, enquanto An‑
gelique servia somente como acompanhante ou assumia o papel
de um par masculino.
A condessa insistia em jantares formais, mesmo que a necessi‑
dade de se vestir a rigor algumas vezes irritasse o pai de Josette,
André du Prés. Angelique gostava muito de André, que era um
homenzinho corpulento e de coração generoso, ainda que o de‑
monstrasse de uma forma distraída e desajeitada. Ele se devotava
à gestão da propriedade, que lhe causava um sem­‑fim de preocu‑
pações e ansiedades. Mas ele a gerenciava bem e, em sua maioria,
os escravos pareciam satisfeitos.
André respeitava à risca o Code Noir da colônia, as leis referentes
à escravatura, e não espancava seus escravos. Ele lhes dava alimen‑
tação suficiente, dias de descanso e até pequenos pedaços de terra
para as famílias plantarem hortas. Fora ele que criara e mantinha
um hospital só para eles e até mesmo demonstrava uma tendência a
perdoá­‑los quando lhe traíam a confiança, tratando­‑os como crian‑
ças arteiras ou malcomportadas. Ele tinha o bom-senso de reco‑
nhecer que não podia produzir o seu açúcar sem eles e de que toda
a sua fortuna dependia de seu trabalho. Nas tardes de domingo, ele
lhes dava permissão para suas danças, mas o som de seus tambores
nunca era macabro ou ameaçador, como fora nas terras de seu pai,
mas se mantinha em tons alegres e era acompanhado por cantorias
que entravam noite adentro.
Desde que a mãe de Josette morrera e Natalie havia concordado
em se mudar para Martinica a fim de se encarregar da educação de
Josette, André se sentia em dívida para com sua irmã e lhe atendia
aos menores desejos, entre eles o dever desagradável de aparecer
para jantar em trajes cortesãos noturnos de casaca e colete. Tinha
cabelos louros e rebeldes e usava suíças grossas sobre as faces rubentes

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Lara Parker

que resultavam de horas a fio andando a cavalo ao redor dos cana‑


viais. Seu traço mais proeminente era um par de olhos azuis e riso‑
nhos, que cintilavam de cada vez que ele sorria ou franzia a testa,
porque ele ao mesmo tempo gostava de frases espirituosas e mos‑
trava uma tendência a se zangar com facilidade.
Não era Angelique que servia à mesa do jantar, já que dispu‑
nham de um mordomo. Mas ela comia na cozinha com os demais
criados. Era na hora do jantar que ela mais se ressentia de sua posi‑
ção. A família comia alegremente em porcelana de Limoges com
taças de cristal Waterford, enquanto a criadagem comia em louças
baratas ou em gamelas de madeira com talheres de ferro. Angelique
fechava os olhos e fingia estar equilibrando um garfo de prata em
sua mão e que sua cidra amarguenta era um vinho fino francês ser‑
vido em uma taça delicada.
Enquanto os meses se passavam, Angelique lutava para manter o
Espírito Negro afastado de si. Nunca mais ela empregara sequer a
mais simples mágica. Quando adoecia, esperava pacientemente até
que os recursos de seu próprio corpo a curassem novamente. Se a
condessa se demonstrasse particularmente exigente em suas ordens
e reclamações, Angelique empurrava para o canto mais obscuro de
sua mente qualquer tentação de empregar algum feitiço. Ela execu‑
tava muito bem as suas funções de criada. Seguia suas habilidades
naturais e se aplicava diligentemente às lições ministradas pelos tu‑
tores de Josette, adquirindo tanto ou mais pela experiência do que
sua jovem ama pelo estudo.
E tudo para quê? Quando a condessa decidira a respeito da con‑
tratação de Angelique, ela a havia chamado de “sem graça e desin‑
teressante”, mal suspeitando das paixões que fervilhavam logo
abaixo da superfície controlada. E embora estas paixões fossem
muito bem escondidas, elas ainda se inflamavam e tornavam Ange‑
lique vulnerável a desejos dolorosos. Uma vez que ela não tinha
amigos verdadeiros, nunca revelava seus sentimentos e sentia­‑se
muito solitária. Nenhuma das outras criadas eram suas confiden‑
tes. Ela mantinha sua reserva, não somente para nada revelar, como

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

porque era simplesmente orgulhosa demais para se associar com


aquelas que considerava suas inferiores. Mesmo que ela tivesse des‑
cartado a feitiçaria, o tempo que passara em Port­‑au­‑Prince fazia
com que a conversa das demais criadas parecesse trivial e vazia.
Contudo, suas paixões tinham de ser canalizadas para alguma
saída, precisavam alimentar e nutrir algum fruto. O ciúme cresceu
em seu coração como uma árvore cheia de flores de perfume vene‑
noso. Embora soubesse perfeitamente que o ciúme era um pecado
mortal e conduzia a terríveis resultados, especialmente através de
sua releitura de Otelo ou de Macbeth, ele se tornara em uma raiz de
loucura que aprisionava sua razão. Por mais que tentasse, ela não
conseguia resistir à sua influência insidiosa.

* * *

Aos domingos, a família assistia à missa na capela de sua plantação


e se esperava que todos os criados e escravos participassem da ceri‑
mônia. Algumas vezes, a celebração era dirigida pelo padre Le Brot.
Se ele a percebera sentada junto com a família du Prés, nunca admi‑
tira tê­‑la reconhecido, mas ela não podia olhar para seu corpo pe‑
queno e rotundo e seu rosto jovial sem sentir uma profunda gratidão
pelo fato de que ele tentara lhe salvar a vida.
Somente uma vez ela imaginou que o padre a encarava do alto do
púlpito e estremecera ao escutar o tema da homilia escolhida para
aquele domingo: “Não cobiçarás a casa de teu próximo. Não cobiçarás a
mulher de teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi,
nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertencer”. (Êxodo 20:17).
E o padre parecia estar se dirigindo diretamente a ela, enquanto
prosseguia em sua leitura do Livro do Êxodo: “Todo o povo presenciou
os trovões e os relâmpagos e o clangor das trombetas e o monte fumegan‑
te; e o povo, observando, estremeceu e ficou de longe...” continuando até
“... Moisés, porém, se chegou até a nuvem escura em que Deus estava”.
Angelique muitas vezes vira o Mont Pelée fumegando e cheirara
os vapores sulfurosos que se erguiam das fissuras no cone calvo

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Lara Parker

perto do topo do vulcão, um ar tão fétido, que os pássaros se sufo‑


cavam e caíam do céu. Os aldeãos sempre diziam que era só o Deus
que se estava virando para outro lado enquanto dormia, mas Ange‑
lique sempre tinha medo, porque ela acreditava no fundo da alma
que o Deus da montanha somente poderia ser o Maligno. Aquela
manhã, o sermão inteiro parecia dirigido diretamente a ela. Como
o padre poderia saber que Angelique invejara Josette desde o pri‑
meiro dia em que a conhecera?

* * *

Os sábados eram dias de mercado e os mais excitantes da semana.


Angelique saía com o carroceiro em uma pequena charrete antes
do romper da alva, o Atlântico ribombando contra a praia ao pé
dos penhascos elevados sobre os quais se erguia Trinité, enquanto
todos os demais ainda dormiam. Ela nunca se cansava de descer
as colinas bem cedo de manhã e sempre prendia a respiração
quando finalmente enxergava o mar e o porto em forma de lua ao
redor da enseada de águas da cor de turquesas, com seu colar de
areias brancas como pérolas enfeitando Saint­‑Pierre. Mas olhan‑
do para trás, ela podia ver o anfiteatro altaneiro das montanhas,
com Mont Pelée ao centro, subindo do coração da floresta, seu
pico alcançando as nuvens.
Sua garganta se contraía de antecipação sempre que a charrete se
aproximava da cidade e todos os seus sonhos de infância renasciam
ao se mover ao longo das ruas tortas e cheias de ladeiras de Saint­
‑Pierre. Eram ruas estreitas, mas cheias de cores brilhantes e nas
esquinas de ângulos agudos, os raios do sol penetravam para bri‑
lhar nos tetos de telhas vermelhas.
Tempo houve em que a cidade fora um refúgio de bucaneiros e
ainda oferecia sua enseada para a ancoragem segura de navios mer‑
cantes provindos de todas as terras. Ela sempre percorria a flotilha
em busca de uma escuna com a bandeira dos Estados Unidos: um
campo azul com faixas brancas e vermelhas. Havia navios de todas

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

as classes e tamanhos circulando pela enseada e o cais se azafamava


em atividade. Saint­‑Pierre era o centro cultural de Martinica, e as
vitrines das lojas mostravam joias finas, sedas, couros curtidos e
taxiados e móveis e tapeçarias luxuosos.
O que Angelique mais amava era a imensa praça calçada de para‑
lelepípedos chamada de Place­‑Bertin, com suas fontes graciosas e can‑
teiros elegantes. Seu coração sempre se elevava com a visão do lindo
teatro de três andares, com sete arcos formados por colunas jônicas e
cobertos de baixos­‑relevos, dando acesso às escadarias duplas de már‑
more trabalhado com gradis de aço forjado. Frequentemente havia
companhias de atores ambulantes ou um corpo de balé, em geral vin‑
dos da França e os cartazes pintados à mão anunciando os espetáculos
lhe davam água na boca, muito mais que os alimentos mais delicados.
Foi para ela, portanto, um dia magnífico, aquele em que André du
Prés anunciou que havia adquirido uma casa de tijolos na cidade,
localizada em uma linda avenida arborizada. O que fora uma vida
relativamente estável no campo adquirira agora uma promessa reno‑
vada. Os arranjos necessários à mudança para a cidade ocuparam a
família inteira durante meses. Na primeira noite em que Angelique
dormira na casa nova, ela passara quase a noite inteira acordada
olhando para o teto de seu pequeno quarto no andar térreo.
Ela se sentia torturada pela consciência de que havia muito mais
na vida. Desde que ela renunciara a seus poderes, convivia com a
lembrança do potencial intocado que jazia dentro dela. De que
lhe servia ter mantido, por engenhosidade e perseverança, uma
disciplina tão firme contra o uso da feitiçaria, se o futuro não
lhe guardava qualquer promessa? Sua alma estava aprisionada e
frequentemente ela sentia que nunca havia realmente saído de seu
quarto solitário na torre do moinho de Basse­‑Pointe.

* * *

Mas a vida em Saint­‑Pierre renovara um passatempo que trazia


grande alegria à vida de Angelique. Nas tardes de domingo, em

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Lara Parker

que era dispensada de seus deveres, ela descia a pé pela praia que
saía de Saint­‑Pierre e andava muito além do porto atarefado para
ir nadar no mar. Ela despia suas roupas e se dirigia novamente aos
recifes, mergulhando nas lagunas mais profundas para explorar
os horizontes misteriosos do fundo do oceano. Os corais pare‑
ciam ainda mais belos do que nunca, em miríades de formatos,
chifres­‑de­‑veado, dedos­‑de­‑afogado, cérebro, estrela e flores, em
suas ricas nuances de cobre e ocre, malva e marrom-claro. Ela re‑
descobriu as correntes submarinas, respirando e mergulhando de
novo, girando em torno, as marés puxando e curvando os póli‑
pos, as anêmonas e as algas e os recifes de coral curvos que se er‑
guiam quase até aflorar à superfície, arredondados em colônias de
um verde­‑acinzentado, como se tivessem sido esculpidos em mi‑
núsculos labirintos.
Ela descobriu uma ponta de terra larga e arenosa que se projeta‑
va mar adentro, coberta de uma multidão de estrelas­‑do­‑mar en‑
carnadas, milhares e milhares delas, espalhadas até onde sua vista
alcançava, ventosas como pérolas vermelhas e delicadas pontilhan‑
do seus braços pontudos. Nadou de permeio a um cardume de tan‑
gues, peixes espinhosos e azuis com olhos falsos nas barbatanas,
como se troçassem dela enquanto se esfregavam em sua pele. Sentiu
um anseio doloroso no peito enquanto vigiava as criaturas vivazes
e livres, que pareciam acariciar os corais de que se alimentavam e
novamente recobrou sua antiga felicidade.
Havia uma praia oculta em que nadava algumas vezes, na qual
um canal profundo se abria entre a margem e os recifes. Se ela
quisesse chegar aos canteiros de coral, partindo dessa praia, era
obrigada a nadar por este braço vazio do mar, por onde passava
uma forte corrente. O fundo descia rapidamente e ela contempla‑
va as águas turvas, que pareciam estender­‑se para sempre, com
somente pequenos redemoinhos e marolas junto à superfície a re‑
fletir a luz do sol. Ela precisava de longos minutos para cruzar o
canal, o negror aumentando progressivamente à medida que as
águas ficavam mais profundas, cada vez mais escuro e cheio de

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

premonição, antes que os brilhantes recifes de corais novamente


saltassem perante suas vistas.
Nas noites que se seguiam a essas visitas, quando ela repousava
em seu leito, algumas vezes sentia que estava atravessando o canal
novamente, nadando e flutuando através de um purgatório líquido
cujas profundezas indiscerníveis se acumulavam abaixo dela e as
correntes traiçoeiras lhe puxavam os pés.

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Vinte

erta tarde, Angelique caminhou tanto ao longo da praia, que


divisou a distância a velha cabana em que morara. Hesitou por
um momento, submetida a uma confusão de sentimentos doloro‑
sos e então começou a correr sem parar e só parou quando pôde ver
o alpendre, o pátio ao seu redor e o teto que havia sido recentemen‑
te coberto com palha nova.
Inicialmente lhe pareceu que a casa estava cercada por gigantes‑
cas teias de aranha, até que percebeu que aquilo era uma cobertura
de redes de pesca colocadas a secar ao sol, finamente tecidas ao pon‑
to de recordarem gaze e que estavam de fato pendentes de diversos
postes altos. Enxergou cestos e grandes bacias espalhados pelo pátio
ao redor de uma horta bem cuidada, de um forno ao ar livre e, per‑
to dele, uma cadeira de madeira grosseiramente esculpida.
Foi pé ante pé até a porta aberta e espiou para dentro. O interior
não lhe era familiar, embora certamente a casa estivesse habitada. O
quarto de dormir tinha uma pilha de acolchoados e a maior parte
da peça da frente estava atravancada com equipamentos de pesca,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

varas, rolos de linha, redes, agulhas longas para costurar velas, pe‑
sos usados como boias, outros maiores que talvez servissem como
âncoras improvisadas, chamarizes esculpidos manualmente. Na
cozinha havia algumas panelas de cobre, frigideiras de ferro pendu‑
radas em pregos às paredes e latas de biscoitos ou de carne salgada
colocadas sobre a mesa. Roupas de homem — um casaco e diversas
camisas simples — estavam penduradas em uma cadeira de encos‑
to reto. Surpreendeu­‑se ao ver uma prateleira com alguns livros e
papel para escrever em um canto da mesa.
Quando ela saiu de novo pela porta da frente e olhou para o mar,
viu o pescador. Ele tinha puxado seu barco para a praia e estava
agora dobrando a vela, que ainda drapejava e ondulava ao vento. Ela
ficou parada ali, admirando, enquanto ele amarrava a vela ao bota‑
ló e cuidava de suas linhas, enrolando­‑as e retorcendo as pontas
para firmar os rolos por meio de movimentos fluidos. Então ele se
inclinou por baixo da barra do leme, puxando uma corda grossa,
enquanto a enrolava ao redor do ombro esquerdo. Era uma linha de
corrico, e presos a ela estavam três ou quatro tarpões, seus lados
prateados refletindo a luz do sol da tarde como se fossem realmente
feitos de metal. O pescador estava descalço e de peito nu e, quando
se aproximou dela, a jovem se espantou ao perceber que ele só tinha
um ano ou dois mais do que ela.
Ele se interrompeu quando a viu parada junto de sua porta e
olhou para cima e para baixo ao longo da praia para ver se ela es‑
tava sozinha. Convencido de que ela não tinha acompanhantes,
cumprimentou­‑a de cabeça e se aproximou da casa. Soltando sua
pesca dentro de um balde de água salgada, ele lavou o sal de suas
mãos em uma bacia.
Ela percebeu que ele era forte, seu corpo esguio e bem formado.
Sua pele era escura, mas dava para ver que estava queimada de sol e
deveria ter sido branca. Ele estava coberto com leves restos de espu‑
ma da água do mar e seus músculos eram fluidos e definidos. Seus
cabelos eram louros como a areia, seu rosto bronzeado pelo sol e
finamente cinzelado e seus olhos, quando ele finalmente a olhou

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Lara Parker

diretamente, eram de um tom verde que lembrava musgo, muito


parecido com a tonalidade de suas redes de pesca.
— O que você deseja? — indagou, por fim. — Está perdida?
— Não — ela respondeu com simplicidade. — Eu estava passe‑
ando pela praia quando vi a casa a distância.
— Pode chamar de casa agora — disse ele, defensivamente,
como se desconfiasse que ela tinha vindo para tirá­‑la dele. — Quan‑
do eu a encontrei, não era mais que uma pilha de tábuas espalha‑
das. O que está vendo aqui, eu construí sozinho. Só “quinchei” o
teto a semana passada.
Ela contemplou os pés dele, que eram compridos e cheios de veias
salientes e observou o movimento dos ossos sob a pele queimada en‑
quanto seus dedos se encravavam nervosamente na areia do chão.
— Sabe que eu já morei aqui? — ela indagou, sem esperar res‑
posta. — Quando eu era pequena. Quer dizer — acrescentou às
pressas — aqui já foi minha casa — antes de desabar e você a re‑
construir completamente.
— Você morava em um lugar mágico — disse ele ingenuamente.
— Então você conhece as cavernas? — indagou ela.
— As cavernas? Mas é claro. Vou lá com frequência...
Ela ficou espantada pelo sentimento de alegria que estava expe‑
rimentando por encontrar uma alma semelhante à dela.
— E aquelas salas em que o sol entra aos poucos...
— Em que a chuva marcou os rochedos com longas marchas
de ferrugem...
— E as lagunas tão claras que a água parece ser apenas um sus‑
surro de luz...
O rapaz contemplou­‑a por um minuto, deu de ombros e falou:
— Tenho de limpar os peixes. Entre, você pode me ajudar.
O rapaz entrou na casa e retornou com uma faca pequena e uma
cesta de limas. Chamou­‑a para perto com um aceno da cabeça e ela
caminhou até a bacia grande, que tinha uma grande prancha irre‑
gular de madeira trazida pelo mar e ao lado dela, uma faca de esfo‑
lar. Ele lhe entregou o cesto de limas e a faquinha.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Você pode esguichar o suco para mim — foi dizendo o rapaz.


Ela esperou enquanto ele jogava o primeiro tarpão sobre a
prancha e usava a sua lâmina longa para cortar ao longo da barri‑
ga cremosa e abrir­‑lhe o ventre. Os miúdos vermelhos se espalha‑
ram pela areia. Um leve odor de ovas subiu a suas narinas
enquanto ele raspava as entranhas do peixe e retirava a espinha,
girando­‑o entre as mãos com a facilidade que vem de longa práti‑
ca e cortando­‑lhe fora a cabeça com um único talho contra as
guelras. Seus movimentos eram destros e concisos e ela se encan‑
tou com a delicadeza de seus pulsos e braços, apesar dos músculos
fortes e ágeis e seus dedos longos e esguios enfiados no corpo do
pescado para tirar fora o coração e os pulmões de um vermelho
vivo de dentro de suas entranhas escorregadias. Ela observou os
movimentos fáceis de seus ombros e de suas costas enquanto ele
mergulhava o tarpão novamente em água salgada. Então ele des‑
lizou o peixe limpo para o lado em que ela estava, como tendo
certeza de que ela saberia o que fazer.
Ela cortou uma lima ao meio e apertou as metades uma após
outra entre suas palmas, deixando o suco fluir sobre a pele do peixe,
saboreando o olor fresco e delicado que se espalhava pelo ar.
— Assim está bem — disse ele, sorrindo. — Tem de espre‑
mer bastante.
Ela reparou as cintilações ambarinas em seus olhos verde­‑musgo.
Eles trabalharam juntos durante quase uma hora, até que o sol já
estava perto do horizonte e ela soube que teria de ir embora em se‑
guida, para estar em casa antes que caísse a noite. Ele não se ofere‑
ceu para a acompanhar, mas indagou:
— Você vai ao mercado no sábado?
— Sim, sempre vou à feira, para fazer as compras para a família
que me emprega. Eu sou dama de companhia na família du Prés.
— Eu estarei lá, vendendo meus peixes. Procure­‑me e eu lhe da‑
rei uma livre pelo seu trabalho.
Ela correu por todo o caminho até a casa, o sol iluminando o mar,
como se o pusesse em chamas, enquanto descia para o horizonte.

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Chegou o sábado e ela o encontrou, empoleirado em uma es‑


plêndida charrete, seus peixes salgados e preservados pelo suco
de lima, vendendo facilmente. Ele mal olhou para ela ao vê­‑la
aproximar­‑se, mas após alguns momentos, fez­‑lhe sinal com um
gesto natural de seu pulso que lhe provocou um estranho tremor
que correu através dela. Ela deu a volta na charrete e ele se virou dos
peixes o tempo suficiente para lhe pôr uma moeda na mão.
— Venha me ver amanhã de novo — falou brevemente e logo se
voltou de novo para atender à sua clientela. Ela segurou a moeda no
punho fechado enquanto caminhava de volta para seus cestos.
Quando abriu a mão e a olhou, a moeda cheirava a peixe.

* * *

Depois disso, Angelique caminhava os três quilômetros ao redor da


enseada todos os domingos. Antes de chegar à casa do rapaz, ela
tirava suas roupas de criada em um lugar sossegado e as substituía
por um pareu de algodão que trouxera consigo, enrolando­‑o em seu
corpo e atando­‑o à altura do pescoço. Sentia­‑se mais confortável no
papel de uma jovem das ilhas.
Seu nome era Thierry e já vivia sozinho havia três anos. Seu pai
fora pescador em Marselha e viera para a ilha como servo temporá‑
rio, pagando a passagem com anos de serviço, mas tanto ele como
sua mãe haviam morrido de le mal de Siam, a febre amarela. Thierry
tratava Angelique como se a conhecesse desde sempre. Algumas ve‑
zes ele não retornava da pesca senão quase ao pôr do sol e ela tinha
de partir antes de encontrá­‑lo. Nesses dias, ela limpava a cabana ou
cuidava da horta enquanto o esperava, cantarolando para si mesma.
Em outros dias, quando havia calmaria, ele nem sequer saía à pes‑
ca e eles nadavam juntos pelos recifes ou perambulavam através das
grutas à beira­‑mar, apontando um para o outro as criaturas coloridas
que habitavam sob a superfície das águas. Podiam ficar olhando du‑
rante horas um bernardo­‑eremita arrastando sua concha nova para
um nicho entre as rochas. Se vissem uma arraia­‑pavão subir desde o

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

fundo arenoso, mergulhavam para acariciar a pele aveludada de seu


ventre, já que estas eram inofensivas. Brincavam de esconder nas tou‑
ceiras espessas das algas ou flutuavam sobre os cumes das florestas
submarinas de anêmonas, beliscando os delicados tentáculos das flo‑
res vivas, que eram de fato animais, para vê­‑las encolher­‑se em botões
minúsculos quase invisíveis. Eles surpreendiam tubarões falsos, os
chamados de “enfermeiros”, adormecidos ao sol, quase à superfície e
os assustavam ou mexiam com os peixes­‑chorões de rosto melancó‑
lico, só para ver quando eles ondulavam para longe, suas barbatanas
rugosas oscilando como vestidos de senhoras. Alguns dias, eles sim‑
plesmente se assentavam nas dunas e, enquanto ela lia o seu Shakes‑
peare em voz alta, ele se deitava de costas, contemplando o céu.
Quando ela chegava bastante cedo, ele a levava ao mar em seu
barco, ela sentava na travessa da proa e observava enquanto ele pes‑
cava. Seus olhos lhe percorriam o corpo esbelto e musculoso en‑
quanto ele se debruçava sobre o leme da popa, sua cabeça inclinada
para trás a fim de calcular o impulso do vento sobre a vela. Ela per‑
cebia a força dos músculos crispados de suas canelas enquanto ele se
apoiava de pernas abertas contra ambos os lados do barco para lan‑
çar a rede e depois trazê­‑la de volta para si com longos puxões de
uma elegância natural, a teia coberta de espuma e seu interior cin‑
tilando com os pulos das sardinhas e de um eventual bagre que ele
depois usaria como isca.
Ele começou a tocar nela casualmente enquanto se inclinava
sobre ela para pegar um anzol ou lhe segurava o joelho a fim de
lhe chamar a atenção para uma fragata voando sobre suas cabe‑
ças. Sempre que ele roçava nela ou a tocava de leve com a ponta
dos dedos, a garota sentia um calor naquele ponto e um tremor
lhe percorria o corpo inteiro. Ela pensava naqueles toques a sema‑
na inteira e recordava exatamente onde tinham sido, tentando re‑
criar o tremor.
Eles começaram a se explorar da maneira mais inocente, como
se para cada um deles o outro fosse apenas outra criatura marinha
nova e espantosa empurrada para a praia pela maré. Eles sentavam

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na poça mais rasa das cavernas um dia, sob a plataforma de um


rochedo que se inclinava sobre eles como se fosse se afrouxar de
repente e esmagá­‑los. Thierry lentamente puxou o pareu úmido de
Angelique de um de seus ombros e ficou olhando para seu seio, de‑
pois o segurou com a mão, traçando sua pequena forma arredonda‑
da com os dedos e tocando o mamilo hesitantemente, vendo como
ele endurecia, do mesmo modo que uma anêmona florescendo em
flautas sedosas.
Então ele o beijou, explorando seu formato e ela sentiu o calor
de sua boca sobre a carne firme e fria da auréola e sua língua girar
ao redor do mamilo. Então ele recolocou o pano de algodão no
lugar e refez o nó junto ao ombro. Ele não a tocou de novo, mas
ficou olhando para ela e Angelique se deixou afundar nas profun‑
dezas verdes dos olhos dele, enquanto sentia as leves palmadas da
lâmina gentil da extremidade de todo o oceano vivo enrolar­‑se ao
redor de seu corpo.
Ela passou a semana inteira fantasiando, enquanto trabalhava
em suas diversas tarefas, lembrando­‑se de como ele desenroscava
as redes enoveladas pelas ondas, consertava os anzóis que haviam
entortado ou salgava seu pescado. Ela sentia que trabalhavam em
uníssono; ela se erguia quando ele se levantava e permanecia em
pé quando ele estava parado ali. Ela não conseguia pensar em
nada mais que seu corpo esbelto e musculoso e suas mãos esguias
e longas, com seus movimentos tão destros e seguros e cada vez
que recordava seus toques casualmente naturais e descuidados,
seu corpo inteiro pulsava.
Na semana seguinte, ele lhe removeu o pareu inteiro enquanto
ela flutuava na água, seu corpo semissubmerso e ficou olhando para
suas curvas ondulantes dentro do líquido cintilante e acariciou­‑a
como se estivesse esfregando os dedos pela areia, deixando sua pele
arrepiada nos pontos em que sua mão estivera — ao longo de seus
braços, sobre seus seios, depois por cima de seu ventre liso.
Ele tocou a superfície de seu estômago e apertou a carne das co‑
xas, depois ergueu­‑lhe uma das pernas e a separou da outra para

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

poder ver as formas indistintas sob a água morna da laguna, as


conchas curvas de suas nádegas e o que lhe pareciam guelras rosa‑
das entre elas, que ele tocou de leve com a ponta de um dedo.
Depois as sondou delicadamente, descobrindo pela primeira vez
um sexo tão diferente do seu.
Ela se ergueu e viu o que lhe pareceu ser um longo peixe branco
embaixo da água, balançando­‑se levemente e os dois sentiam ape‑
nas curiosidade enquanto ela enrolava sua mão ao redor do objeto,
sentindo a carne sedosa e firme com a ponta dos dedos, espantada
com sua dureza enquanto o membro se movia dentro da palma de
sua mão como se dotado de vida própria. Quando Thierry se levan‑
tou de dentro da água, ela se inclinou e beijou­‑lhe a ponta, depois
chupou um pouco mais para dentro de sua boca, fechando os lábios
a seu redor e movendo a língua para sentir o gosto salgado do mar.
Contudo, até esse momento, eles nem haviam pensado em se
beijar como dois namorados.
Finalmente, em um domingo, Thierry sugeriu que lançassem o
barco ao mar, porque a pesca fora boa a semana inteira e ele não
tinha a menor vontade de perder um dia. O que ela ansiava era re‑
tornar às grutas para recomeçar as brincadeiras tantalizantes com
seus dedos dentro da lagoa e ficou um pouco aborrecida pelo fato de
que ele estava mais interessado em seus lucros na feira do que na
intimidade deliciosa que haviam iniciado. Todavia, ela já se acostu‑
mara com aquele fogo doloroso que lhe fluía através do corpo e lhe
parecia que nada seria capaz de apagá­‑lo, portanto ajudou­‑o a em‑
purrar o barco em direção às ondas da arrebentação e, correndo no
mesmo ritmo que ele através da espuma, cada um de um lado do
bote, saltou a bordo.
Thierry puxou a vela principal e a enrolou ao redor do traves‑
são, soltando depois a vela ao vento e deixando o barquinho cortar
as ondas. A nave pareceu ansiosa por vagar e lançou­‑se sobre a
crista da próxima onda e depois sobre as que vieram a seguir, em
um movimento que parecia o embalo de um berço, como se esti‑
vesse sendo ninada, e ao mesmo tempo ela se afrouxou e se sentiu

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Lara Parker

perturbada. Ela contemplou o rosto de Thierry contra o céu. Os


cachos macios de sua testa balançavam ao vento, suas faces bron‑
zeadas eram sardentas e seus lábios macios. Todos os belos traços
de seu rosto pareciam ter sido gravados em alguma madeira dou‑
rada e rara. Ela pensou em como aquele rapaz era bonito. Ele se
virou em sua direção, contemplou­‑a com seus olhos verdes por um
longo momento e ela sentiu seu coração pular dentro do peito.
O barco não se movia depressa, porque a brisa não soprava forte,
mas já havia coberto uma distância considerável desde a praia
quando o vento parou de forma totalmente inesperada e eles se en‑
contraram no meio de uma calmaria. Thierry afrouxou a vela prin‑
cipal e caminhou até a proa, onde ergueu sua pequena bujarrona,
mas a lona ficou pendendo frouxamente no ar parado. Ele olhou
fixamente para o mar, tão estranhamente calmo e, voltando­‑se para
acompanhar­‑lhe o olhar, ela viu o que parecia ser uma mancha de
lodo oleoso girando sobre a superfície da água na direção do hori‑
zonte. Havia silêncio total, salvo pelas leves batidas das marolas
contra os lados do barco e alguns gritos agudos de pássaros terres‑
tres vindos do centro da ilha.
Thierry deu de ombros e voltou­‑se para seus anzóis, colocando
uma fatia de atum em três deles, perfurando a carne avermelhada
com a ponta aguçada e prateada e prendendo­‑os a três linhas indi‑
viduais. Amarrou ao pequeno cabrestante da âncora a linha da
popa e enrolou a linha da proa ao redor da coluna do leme. Mante‑
ve uma terceira linha presa entre os dentes enquanto puxava a bu‑
jarrona e a retirava, sem lançar sequer um olhar para Angelique.
Dobrou a vela cuidadosamente e a colocou no fundo do barco. En‑
tão se deitou sobre a lona, tirou a linha da boca, amarrou­‑a ao redor
de um dos tornozelos para sentir melhor alguma fisgada e estendeu­
‑lhe os braços. Ela foi ansiosamente até onde ele estava.
Ficaram os dois deitados à sombra da vela principal, que drape‑
java preguiçosamente, olhando para o céu cor de anil. O formato e
os movimentos do barco, arrítmicos, balouçantes, as tábuas lam‑
bendo a água, fizeram seus corpos escorregarem para o centro, bem

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

juntos um do outro e ela se deixou levar pela felicidade do embalo


do berço, enquanto se beijavam pela primeira vez, tentativamente,
provando, mal esfregando os lábios, as línguas entrando para ex‑
plorar suas bocas salgadas. Estavam tão apertados que ela conse‑
guia escutar as batidas dos dois corações, o dela em um ritmo
rápido e delicado como o das asas de um pássaro; o dele com pan‑
cadas mais profundas e mais fortes, como se os dois latejassem den‑
tro de seu próprio peito. Mas quando ela o escutou, um súbito
pulsar frio a percorreu.
Ele sentiu quando ela se tensionou e disse:
— Eu não quero machucá­‑la. Se nós fizermos isto, será um
compromisso e passaremos a pertencer um ao outro. É isso que
você quer?
— Eu quero viver com você para sempre — disse ela num ímpe‑
to, enquanto a onda de pânico ia amortecendo.
— Sim — concordou ele. — Eu também quero viver com você
para sempre.
Ela arqueou seu corpo contra o dele, estendendo os braços para
sentir­‑lhe os ombros fortes. Correu os dedos pelas vértebras de
suas costas, apertando­‑as uma a uma até sentir a última, que se
erguia logo antes das nádegas. Ela deixou sua mão prosseguir ao
longo da fenda, movendo­‑se mais para baixo até sentir o movi‑
mento em seus testículos.
Thierry estremeceu e abriu­‑lhe as pernas com os joelhos, depois
ajoelhou­‑se levemente sobre ela, olhando o órgão que possuía entre
suas coxas. Ela sentiu um toque lá embaixo, no começo da separa‑
ção das pernas, então uma pressão mais firme e ergueu os quadris
do fundo do barco para encontrá­‑lo.
O que aconteceu a seguir foi uma mancha confusa, mas Thierry
sentiu um puxão no tornozelo e a seguir um arrepelão tão violento,
que ele quase foi arrancado do barco. Sentou­‑se rapidamente, seguran‑
do a linha, primeiro puxando com os braços e ombros, depois ficando
em pé, seu pênis ainda ereto, seu corpo inteiro apoiado contra a amu‑
rada, enquanto se soltava para trás, usando todo o seu peso para firmar

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Lara Parker

a corda, afrouxando o molinete, depois puxando com a habilidade que


lhe trouxera a prática, fazendo com que o anzol entrasse mais profun‑
damente na garganta do peixe e arrastando­‑o em sua direção.
— É um marlim! — ele gritou. — Um dos grandes! Temos uma
fortuna na ponta desta linha! — prosseguiu rindo, um riso de exul‑
tação, mostrando­‑lhe um vasto sorriso, seus olhos reconhecendo as
emoções conflitantes do momento.
Angelique contemplou enquanto ele manejava o peixe como um
brinquedo e ela se ergueu e curvou o corpo por detrás do dele,
ajudando­‑o a puxar, fazendo a criatura relutante chegar cada vez
mais perto do bote.
— Por que ele não pula no ar? — indagou­‑se Thierry uma vez,
sacudindo a cabeça. — Este marlim não quer mostrar a cara!
Então a linha se afrouxou e Thierry começou a puxá-la rapida‑
mente, a corda se enroscando a seus pés.
— Acho que o perdi! — exclamou, um tanto desapontado, mas
o peixe subitamente mostrou sua forma gigantesca ao lado do barco
e viram imediatamente que não era um marlim, mas um grande
tubarão negro, sua longa cauda em forma de foice chicoteando para
os lados, sua barbatana dorsal cortando a superfície das águas. A
pele da nuca de Angelique se arrepiou com um medo insidioso en‑
quanto ela e Thierry contemplavam o grande peixe percorrendo a
superfície logo à sua frente e ela viu um olho vermelho contemplando­
‑a desde a cabeça negra oculta logo abaixo do plano superior das
águas, com a forma escorregadia ondulando para os lados, depois
para frente e para trás em um movimento constante.
— Corte a linha e deixe­‑o ir! — pediu a Thierry.
— Por quê? — redarguiu ele. — Um tubarão é uma boa presa e
podemos pescá­‑lo assim que ele se cansar. E olhe o tamanho desse
aí, o comprimento é quase a altura de um homem. Tem bastante
carne nesse corpo.
— Corte a linha, já lhe disse! — ela falou, com o coração baten‑
do violentamente e o velho medo gélido serpenteando por suas
veias. — Ele é maligno! Esse peixe é o Espírito Negro, o Diabo!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— O quê? Está maluca, menina? Eu não vou desistir de uma


presa como esta. Deveria saber disso, se é que pretende ser a esposa
de um pescador!
Ele se inclinou para trás de novo, todo o seu peso contra a linha
e fez uma laçada ao redor do travessão, depois enrolou­‑a ao redor de
seu corpo desnudo e soltou uma gargalhada, como se ela não fosse
mais que uma criança supersticiosa.
Mas ela ficou tensa e se afastou de repente dele, dizendo:
— Thierry, eu vi o olho vermelho do Diabo!
Caiu de joelhos e começou a procurar a faca que ela sabia estar
guardada em um espaço sob a roda do leme.
Nesse momento exato o peixe girou e afundou, sacudindo a qui‑
lha do barco e Angelique perdeu o equilíbrio e caiu violentamente
contra as tábuas do fundo. Thierry retirou a alça que enrolara no
travessão e segurou­‑a com firmeza, enquanto o peixe abria túneis
pelas profundezas das águas, puxando a linha num repelão e
fazendo­‑a correr velozmente pelas mãos do rapaz, rasgando a pele
de suas palmas quando ele resistiu, gritando para ela:
— Venha cá! Ajude­‑me a segurá­‑lo!
Mas a linha assobiou e voou entre seus punhos cerrados, todas
as roscas acumuladas diante de seus pés desaparecendo em segun‑
dos por sobre a amurada. Antes que ele pudesse se abaixar para
agarrar a ponta, a linha ainda amarrada ao redor de seu tornozelo
foi puxada violentamente e ele foi erguido e arrancado pelos pés
para fora do barco, gritando, retorcendo­‑se e se esforçando para se
firmar na amurada, agarrando, perdendo o apoio, seus olhos arre‑
galados de surpresa.
Angelique segurou­‑lhe uma das mãos e a firmou ferozmente
até ser lenta e torturantemente puxada para baixo junto com ele,
escorregando pela amurada e afundando na água. Ela nadou para
baixo e mais para baixo, mergulhando cada vez mais fundo atrás
dele, seus dedos agarrando­‑lhe o corpo e ele abraçado a ela quan‑
do ela retornou, seus pulmões explodindo enquanto nadava de
volta à superfície.

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Lara Parker

Ela podia sentir suas mãos como garras, arranhando­‑a, percor‑


rendo toda a extensão de seu corpo, do torso aos quadris, depois
descendo pelas pernas, enquanto a escuridão se ia fechando ao re‑
dor dela. Ela tinha certeza de que ele a segurava firmemente, mas o
rapaz estava sendo puxado com muita força para a direção oposta e
não conseguia mais se agarrar nela. Finalmente, ela sentiu que ele se
afrouxava e se soltava. Ela se virou e viu­‑lhe o rosto desaparecendo
através das águas turvas, seus olhos angustiados e sua boca aberta
em um grito que em vez de projetar­‑se, foi engolido pelas águas.
Ela quebrou a superfície com um enorme hausto e ficou olhando
angustiadamente para o vazio do mar, agora lodoso com filamentos
de espuma grossa percorrendo a superfície laqueada. Respirou pro‑
fundamente e mergulhou de novo, perfurando o lúgubre nevoeiro
aquático, projetando­‑se cada vez mais fundo até que não mais conse‑
guia suportar a dor em seus pulmões e se viu forçada a retornar em
direção à luz. Mas mergulhou muitas outras vezes, cada mergulho
um pouco mais fundo, até que as menores centelhas de luz sumiam e
somente uma escuridão de tinta a rodeava. Não encontrou sinal dele.
As mandíbulas das trevas o haviam engolido inteiramente.
Exausta, ela se firmou na amurada do barco e passou por cima
dela para o interior. Caiu frouxamente no fundo, ofegando e chian‑
do para limpar os pulmões, ainda meio afogada, enchendo­‑se do ar
que lhe faltara por tanto tempo, amortecida pela descrença. Pensou
em seu lindo rapaz e em como era doloroso afogar­‑se, então estre‑
meceu da cabeça aos pés, olhando para o céu anilado com um olhar
cego, até perder completamente os sentidos.
Enquanto jazia em seu estupor, escutou as batidas da água con‑
tra o casco.
— Angelique... Chegou a hora...
Ela gemeu enquanto sua mente era sacudida pelo som.
— Mas por quê?
— Você pensa que eu lhe permitiria amar aquele homem? Você
é uma bruxa! Lembre­‑se sempre disso! Você nunca poderá amar
ninguém — a voz lambia as tábuas do casco.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Mas por que você o matou? Você não tem coração, é malig‑
no... totalmente cruel...
— Para salvá­‑la — voltou o som gotejante. — Para salvá­‑la das
fraquezas humanas.
— Assassino — retrucou num murmúrio. — Demônio!
— Eu a escolhi para ser minha noiva — respondeu­‑lhe. — Como
você pode denegar o seu destino? Um talento como o seu apenas
surge após séculos de espantalhos e charlatães. Por meio de você, eu
serei reverenciado e adorado e as almas dos homens ambiciosos cai‑
rão todas sob o meu poder.
Ela se ergueu com um grande esforço e olhou através da água.
— Eu nunca irei para você! Eu o odeio! — ela gritou.
O Diabo se ergueu do mar no flanco de uma onda enorme. De suas
narinas imensas como as de um cavalo brotava a espuma. O barqui‑
nho percorreu a onda, pairou por um momento em sua crista e depois
caiu com um estremeção. Ela se agarrou nas amuradas enquanto o via
descer de sua carruagem e cruzar a pé sobre as águas, seu manto e
túnica flutuando sobre as ondas, seus cabelos enroscados de salsugem.
— Deixe­‑me em paz! Eu te esconjuro! — gritou ela, em desespero.
Ele estendeu­‑lhe os braços e seu rosto de mármore era gentil e
formoso, como fora o de Thierry, mas ela sabia que era somente
uma ilusão, uma artimanha e se encolheu enquanto ele a recobria
com sua forma congelante.
— Minha garota escorregadia e cintilante — murmurou­‑lhe aos
ouvidos. — Você é um rebento da raça mais antiga. Adore a Deusa
da Terra e viva uma existência ordinária. Sentirá as dores do parto
e as humilhações da velhice. Ou então, venha comigo e seja minha
consorte e voaremos juntos através das noites escuras.
— Eu não quero você! — ela exclamou, empurrando­‑o, mas
suas mãos somente penetraram nas superfícies moduladas de sua
forma. Ferventemente, ela lhe disse:
— Todas as forças de meu poder pertencem somente a mim
mesma! Fui eu que me instruí. Meus conhecimentos não são prove‑
nientes de você. E nem você é capaz de tirá­‑los de mim.

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Lara Parker

— Então, invoque­‑o novamente — zombou a figura, e o Deus Es‑


curo flutuou para longe por um momento, enquanto o vento soprava
com violência e assoprava a carruagem para o mar aberto, mas seu
trono de ébano ergueu­‑se novamente e ele estava em pé dentro dele.
— Chame­‑o de volta, Angelique — insistiu. — Você sabe que pode.
Ela hesitou, depois disse em uma voz sem cor.
— Não, eu não o farei.
— Algum dia — ele murmurou — tu me servirás e te regozijarás
com tal serviço e esse será o teu triunfo. Eu te possuo e eu te possuí
desde aquela noite diante do altar em que destruíste o teu atormen‑
tador. Foi quando fizeste a tua escolha, precisamente naquela noite.
A imortalidade te acena. Volta­‑te para mim e vem.
E, muito lentamente, ele sumiu entre as ondas.

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Vinte e Um

ra uma tarde de domingo com o sol brilhante. Um coche de


entregas parou em frente de uma bela mansão em Saint­‑Pierre
e um mensageiro mulato caminhou até a porta, carregando um pa‑
cote grande. Angelique, usando um vestido simples e a touca engo‑
mada e toda franzida de uma governanta ocultando seus cachos
louros, foi até a porta para abri­‑la. Quando viu a caixa, franziu a
testa, colocou uma moeda na mão do cocheiro e pegou o pacote
sem dizer uma palavra ou sequer mostrar um sorriso.
— Angelique?
A jovem se virou ao escutar seu nome e viu a condessa entrando
no vestíbulo ao sair da sala de visitas. Estava usando um de seus
ridículos vestidos parisienses, com longas anquinhas balançando
atrás da saia. A transpiração escurecera o tecido abaixo de seus bra‑
ços. Nunca que eu vou conseguir tirar essas manchas, pensou Angeli‑
que desdenhosamente. Nessa manhã, ela a ajudara a ajeitar o cabelo
em uma espécie de cacho de salsichas vermelhas, que agora pren‑
diam frouxas no calor da tarde.

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Lara Parker

— Chegou o vestido novo de Josette? Deixe­‑me vê­‑lo!


Angelique colocou a caixa sobre um banco ao lado da escada‑
ria, desatou o laço e ergueu­‑lhe a tampa. O vestido dentro da cai‑
xa de papelão era de tafetá impermeável em uma tonalidade clara
de azul­‑turquesa.
— Mas o que é isso? — protestou a condessa, nem um pouco
satisfeita. — Este não é o vestido que eu encomendei. Era para ser
cor de vinho e bordado com pérolas...
— Mas... é um lindo vestido, Madame! — disse Angelique,
muito espantada.
— É uma coisa atroz! — exclamou sua patroa. — Josette ficaria
pavorosa nesse horrível tom aguado. Azul­‑turquesa é a cor mais feia
do mundo e, pior ainda, o vestido é simples demais para o baile!
Ah, como estou magoada! É isso que eu ganho por comprar alguma
coisa em Martinica! Essa gente de cor alforriada não merece a mí‑
nima confiança! E pensar que aquela liberta afirmou ser costureira!
— O que faremos com o vestido, Madame?
— Deverá ser devolvido imediatamente. Chame o cocheiro!
Angelique correu porta afora e olhou rua acima e rua abaixo,
mas já não havia o menor sinal do coche. Ela ficou parada ali por
um momento, olhando para as amplas varandas das casas pintadas
de amarelo­‑limão e para os jardins em que cresciam árvores cheias
de botões escarlates. Ângulos brilhantes de luz pintalgavam os tetos
de telhas vermelhas, as paredes cor­‑de­‑coral e os postigos lavanda,
mas uma sombra pairou sobre seus olhos, tal como se recordasse os
sonhos desfeitos de sua infância.
Por um instante, ela se imaginou correndo rua abaixo atrás do
coche, lançando­‑se contra a porta, abrindo­‑a e saltando para o in‑
terior, a fim de ser transportada às ocultas para um novo mundo.
Respirou profundamente, suas narinas farejando a fragrância do
mar e então estremeceu e dobrou os braços ao redor de si mesma.
Como ela andava inquieta! Seus ossos pareciam ter enfraquecido e
um descontentamento vago desceu sobre seu espírito quando ela se
virou para entrar novamente na casa.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Josette espiou pela porta do salão e, quando viu Angelique, seu


rosto se dividiu em um sorriso travesso.
— Angelique! — cochichou. — Como você pode me deixar so‑
zinha com este tirano? Venha para cá comigo!
Seus olhos castanhos cintilavam e seus cabelos castanho­
‑avermelhados cascateavam por seus ombros.
— Não posso. Tenho de falar com a senhora condessa. Acredito
que ela vai precisar me mandar para o centro da cidade.
— Ah, venha! Honestamente, eu não posso aprender essa dança
sem você!
No momento seguinte, Angelique havia relutantemente assumi‑
do uma pose elegante em frente à sua jovem ama, enquanto o ins‑
trutor de dança, um jovem com ares afetados, sentava­‑se no banco
do harpicórdio e contemplava as duas com desaprovação enquanto
contava os passos de acordo com os compassos da melodia. Josette
ergueu os olhos para o alto ao lhe escutar as instruções, enquanto
Angelique hesitantemente se movia ao redor da peça com ela, a cai‑
xa com o vestido temporariamente esquecida.
— E um e dois e gire e faça uma curvatura! — ele gritava com
uma voz fina e anasalada, enquanto martelava desafinadamente
nas teclas. As jovens executavam os movimentos com gravidade.
Josette se movia com graça, seu corpo esbelto mostrando uma agi‑
lidade natural por baixo de seu vestido de organdi branco e seu
torso mantido sempre ereto. Angelique, com a saia de tecido gros‑
seiro de seu uniforme de criada girando ao redor de seus calcanha‑
res, espelhava com precisão os movimentos de Josette, enquanto
faziam cortesias, sorriam, cruzavam para o lado oposto e giravam
nos calcanhares para repetir toda a série, pensando somente no
desperdício de seu tempo e no esforço vão para aprender a tal dan‑
ça, uma vez que ela, naturalmente, não seria convidada para ir ao
baile e, se fosse como acompanhante, não seria para dançar.
— Não! Não! Não é pela esquerda! — protestou o mestre de
dança impacientemente, erguendo seu queixo pequeno com petu‑
lância. — Qual é o problema com você, Josette? Tem de dobrar para

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Lara Parker

a direção oposta, caso contrário vai descobrir que ficou sem parte‑
naire! E aí não fará a menor diferença quão bonito é seu rosto, por‑
que vai ficar vermelho de vergonha!
Ele se ergueu para demonstrar, assumindo o papel feminino e
erguendo a mão de pulso lânguido para que Angelique a tomasse.
— E dum, ti, dum — falou em falsete, tornando­‑se o som de seu
próprio harpicórdio e marcando o passo da quadrilha com estilo e
elegância. — Titi dum, titi dum, titi dum, dum, dum!
Ao som da palavra “titi”, Josette explodiu em gargalhadas, tom‑
bando em uma poltrona, seu vestido amassando­‑se em mil pregas.
— Ah, Monsieur Beauregard, por favor, dê-nos um descanso!
Essa dançaria toda me deixa com a cabeça rodando!
— E se mademoiselle não tiver aprendido os passos até a noite
de sábado, como é que vai ficar? — indagou ele, mordendo as
palavras ferozmente.
— Ora, estamos em Martinica, monsieur. Ninguém vai conhe‑
cer os passos certos. Além disso, eu sei que todo mundo quer dan‑
çar é a calendá!
— Ai, mademoiselle, que coisa mais escandalosa! — gritou ele,
seu pomo de Adão subindo e descendo no seu pescoço fino, como
se estivesse fazendo força para engolir alguma coisa desagradável.
— Essa dança vulgar estaria muito abaixo do nível desta distinta
família, espero eu.
— Por quê? Você não sabe que até as freiras católicas foram vis‑
tas dançando a calendá! Não é verdade, Angelique?
— Justo na capela e na véspera de Natal — confirmou Ange‑
lique, sem erguer a voz. — As coitadas ficaram muito envergo‑
nhadas. Contudo, mademoiselle — avisou­‑a discretamente —,
muitos dos convidados serão gens du couleur, pessoas já nascidas
aqui na ilha e eles certamente vão evitar a calendá e dar prefe‑
rência à quadrilha.
— Ora, eles são tão pretensiosos, esses nouveaux­‑riches! —
riu­‑se Josette. — As mulheres deles vão usar ainda mais joias
que a condessa!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— E máscaras, para esconder suas peles morenas! — zom‑


bou Angelique.
— Mas e quanto à milícia, mademoiselle? — entoou o mestre
de dança. — Esses jovens oficiais que vieram a serviço desde a
França? Segundo penso, eles terão aprendido a dançar a quadrilha
muito bem!
— Eles vão estar no baile? — indagou Josette, subitamente
mais séria.
— Mademoiselle, a sua família é a mais rica e mais poderosa de
Martinica e este baile comemora seu décimo­‑oitavo aniversário.
Já é tempo para que a senhorita aprenda a se conduzir como uma
jovem dama — reprovou­‑a Monsieur Beauregard, sentando­‑se
novamente ao harpicórdio. — Portanto, vamos parar com essa
procrastinação. Vamos, vamos, vamos! — insistiu, começando a
tocar. — E um e dois e...
Mas quando se virou para elas, as duas jovens haviam fugido.

* * *

A noite já bastante adiantada, Angelique ainda estava trabalhando


na cozinha. Todos os candelabros de prata tinham de ser polidos
antes do aniversário, e a condessa a designara para essa tarefa.
Quando acabasse, ainda teria de passar a grande toalha de linho e
precisaria acender o fogão a lenha para aquecer o ferro. E ainda
tinha de levantar cedo na manhã seguinte para ir fazer as compras
semanais na feira. Como os festejos se realizariam dentro de dois
dias, a casa inteira estava em torvelinho. O relógio acabara de ba‑
ter meia­‑noite quando escutou uma batida tímida na porta de en‑
trada dos criados. Foi surpreendida pela visão de um garotinho
negro parado na calçada.
— Me discurpe, senhorazinha — disse ele, com voz assustada.
— Sim, o que é?
— Esta é a mansão da famía du Prêis? — perguntou ele.
— Sim, é. O que posso fazer por você? — redarguiu Angelique.

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Lara Parker

— Eu tô percurando a senhorazinha qui mora aqui.


— Josette? Já se deitou faz tempo. Quer deixar um recado?
— Não, senhorazinha, a qui eu quero atendi por Angelique.
— Está bem, então, Angelique sou eu. O que você quer a estas horas?
— Pur favô, senhorazinha, foi meu pai qui mi mandô aqui pra ti
encontrá. Minha irmãzinha tá morrendo e nóis percisa da tua ajuda.
Angelique olhou por cima de um ombro para ver se havia al‑
guém escutando, depois saiu para a noite e fechou a porta por trás
de suas costas.
— Eu não posso ajudá­‑la — explicou. — Vocês tem de chamar
um médico.
— Nóis num tem ninhum dinhero pra pagá dotô, senhorazinha.
— Bem, então um dos curandeiros de vocês...
— Meu pai diz qui eli conhece tua mãe quando ela trabaiava em
Trinité. Qui tu aprendeu mágica cum ela. Pur favô, senhorazinha,
eli tá só la sentadu du ladu da cama, chorando cum o chapéu nas
mão. Eu achu qui eli morre também, só di chorá.
— Que doença é?
— Tá di barriga inchada e dura qui nem um coco grandi.
— Se você esperar aqui, eu lhe trarei algumas ervas — disse ela,
voltando­‑se para entrar novamente na cozinha.
— Num, senhorazinha, pur favô, tu vem também — ele pediu
em voz lastimosa.
— Qual o seu nome, menino? — ela indagou gentilmente.
— Nicaise, senhorazinha.
— Escute bem, Nicaise. Eu desisti de toda a magia. Há muito
tempo, quando minha mãe morreu. A magia não é boa, é coisa
ruim. Vem do lado escuro, não vem da luz. Entendeu?
Nicaise se agarrou em seu braço e começou a chorar:
— Ai, senhorazinha, pur favô, num mi faiz vortá sozinho pru
meu pai, eli chora tantu!
— Mas é melhor que o seu pai cure a sua irmã com o amor dele
ou que sua própria luz permita que ela se recupere. As crianças são
fortes. A magia sempre tem um preço.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Mais, senhorazinha, a sinhora num fala sério. Qui mal podi


tê im curá uma criancinha? Num percisa fazê mágica ninhuma. A
senhorazinha só vem i toca nela. Pur favô, venha i toqui na barri‑
guinha dura dela...
Angelique sentiu seu coração se comover.
— Tudo bem, eu irei então. Mas pelo menos tenho de pegar mi‑
nha bolsa. Espere aqui.

* * *

Um quarto de hora mais tarde, ela seguia Nicaise pelas ruas es‑
curecidas de Saint­‑Pierre, tendo somente uma lanterna de óleo
trazida pelo menino para lhe iluminar o caminho. Depois de ca‑
minharem por uma certa distância, ela viu um grande edifício à
direita com muitas janelas, todas iluminadas e, quando se apro‑
ximaram mais, ela escutou música e gargalhadas. Era o bairro em
que ficavam os quartéis e os jovens soldados ficavam acordados
até tarde, bebendo na taverna da esquina. Através de uma das
vidraças, ela avistou três dos soldados, que estavam sentados ao
redor de uma mesinha muito perto da janela e usavam as casacas
escarlates que ela sempre tivera esperança de avistar novamente.
Enquanto passava, escutou trechos de sua conversa, as vozes rou‑
cas pelo efeito do rum.
— Ah, la belle affranchie, La Martiniquaise (a bela liberta marti‑
nicana) — entoava um deles, desafinadamente. — As garotas da
ilha, doces, maduras, prontas para serem apanhadas!
Angelique se surpreendeu ao escutar o sotaque norte­‑americano
e hesitou por um momento, olhando através das vidraças.
— Martinica é famosa por suas mulheres — concordou outro.
— Decerto havia alguma tribo de gente bonita na África e todas
elas são descendentes dela.
Gargalhadas rudes e palmadas sobre o tampo da mesa aborrece‑
ram Angelique e Nicaise a puxou pela manga.
— Ai, vamo, senhorazinha, temo de andá depressa!

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Lara Parker

Ela já ia recomeçar a caminhada, quando escutou o sotaque


norte­‑americano novamente.
— Por aqui, as mulheres têm grande encanto — comentou a voz
— mas não têm fortuna!
— Bem, a gente não casa com elas, não é, Barnabas? — disse o
soldado sentado do lado oposto da mesa, erguendo o copo. — É
claro que vai chegar um dia em que você terá de se comprometer
para o resto da vida com uma única mulher — a não ser que você
morra em nossa viagem de volta... Portanto viva, homem, pelo
amor de Deus! Viva enquanto pode!
Ela engoliu em seco, a respiração trancada na garganta. Teria es‑
cutado o nome corretamente? Olhou novamente através da janela,
como pregada no lugar, enquanto o jovem se erguia. Pôde ver­‑lhe as
feições claramente à luz das lamparinas.
Era ele! O rapaz chamado Barnabas... Forte agora, de uma beleza
máscula e rude, seus olhos ainda brilhantes e seus cachos negros
que lhe caíam sobre a fronte da mesma maneira atrevida do rapazi‑
nho que conhecera. Usava o casaco apertado de um oficial da mari‑
nha, cheio de alamares dourados, e seu capacete enfeitado com uma
pluma branca fora colocado sobre a mesa. Ela sorriu, exultante de
vê­‑lo ali, vivo e feliz. Pelo menos ele escapara, pensou com um en‑
tusiasmo trêmulo.
Ela jamais confirmara antes se ele fora capaz de se salvar depois
que o ajudara a descer pela escada de cordas para o escaler. E ele
estava aqui mais uma vez... Em Martinica! O rapaz ardiloso e ousa‑
do que ela conservara vivo em seus sonhos. Mas ele era de berço
aristocrático e se tornara agora um oficial da marinha. Consideran‑
do sua posição, era impossível para ela se apresentar e renovar seu
conhecimento. De qualquer modo, qualquer relacionamento amo‑
roso, fosse com quem fosse, lhe fora proibido para sempre.
Relutantemente, ela se afastou e seguiu Nicaise. Logo as ruas não
eram mais calçadas e o caminho se transformara em uma viela es‑
treita e empoeirada, retorcendo­‑se entre árvores raquíticas e barra‑
cos de peça única se apertando uns contra os outros. Quando

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

chegaram à choupana, Angelique se curvou para passar pela porta


baixa e sentiu um odor pungente. Erguendo a lanterna, viu a crian‑
ça deitada no catre.
O pai da menina ergueu seus olhos molhados enquanto Angeli‑
que se inclinava sobre a criança enferma, que estava enrolada em
farrapos e empapada de suor.
— Traga­‑me um pouco de água — ordenou a Nicaise — e al‑
guns retalhos de pano limpo.
Quando ele lhe trouxe a água em um balde de madeira, ela não
esperou mais que ele encontrasse alguma coisa limpa dentro do
barraco, porém rasgou uma tira da barra de sua saia e a mergulhou
dentro do balde. Começou a lavar a criança, refrescando­‑a,
limpando­‑lhe o rosto e espremendo o pano para que um pouco de
água lhe pingasse nos cabelos e lhe esfriasse a testa. Os olhos da
menina pareciam vazios, mas usava minúsculos brincos de ouro
nos lóbulos das orelhas. Era esguia e perfeitamente formada, exceto
pelo ventre inchado e Angelique não pôde evitar a lembrança dos
delicados membros castanhos de Chloé. Mas pôde ver imediata‑
mente que era um caso perdido.
— Está com uma febre maligna — disse ao pai. — Ou a febre se
abate ou ela morre. Continue a banhá­‑la e assopre em sua pele
quando estiver seca. Ela tem de ser mantida fresca.
O homem era humilde, pegou o pedaço de pano sem discutir e
começou a fazer o que ela lhe mandara, suas mãos cobertas de veias
grossas tremendo e sua boca balbuciando de esperança. Ela se vol‑
tou para Nicaise:
— Vá até o poço e traga mais água. Tem de estar limpa e fria.
Colocando a lanterna de modo a iluminar bem, ela abriu sua
bolsa. Bem em cima, colocado descuidadamente sobre os demais
conteúdos, ela avistou o amuleto, o breve que sua mãe lhe fizera
e que ela parara de usar anos antes, quando entrara ao serviço da
condessa. Segurou­‑o por um momento entre os dedos. Ainda
podia sentir o formato irregular da caveirinha da jararaca e a
forma mais arredondada da selenita, a pedra­‑da­‑lua, pequena e

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Lara Parker

dura. Num impulso, ela amarrou o cordão novamente ao redor


de seu pescoço.
— Tenho de ferver água! — disse ao pai da menina. Então foi
tirando as bolsinhas, uma a uma, cheirando o conteúdo e soltando
pitadas de diversos pós na palma de sua mão. Seus movimentos
eram rápidos e eficientes, mas disfarçavam sua trepidação interior.
Enquanto o pai fazia uma pequena fogueira no chão de terra, ela
esperou, tentando apaziguar seus maus pressentimentos. Tinha
medo de provocar o Espírito Negro.
Sem dúvida não será uma boa ação que irá atraí­‑lo, pensou. Se eu
não invocar nenhum dos loás e não recitar nenhuma encantação, não
devo despertá­‑lo. Vou usar simplesmente um medicamento herbal.
Isto não tem como prover dele. Isso não o chamará para meu lado.
Assim que o chá ficou pronto, ela levou a cuia até a criança.
Ergueu­‑lhe a cabeça, apoiando­‑lhe o pescoço frouxo.
— Tome isto! — ordenou. — Você vai se sentir melhor.
A garota estava agora semidesperta e tomou alguns golinhos, en‑
quanto o pai lhe observava todos os movimentos de sua posição
agachada sobre a esteira. Esperaram sob a luz difusa da lâmpada de
óleo, mas após uma hora, não surgiu qualquer mudança. A criança
olhava para Angelique com olhos suplicantes, seus lábios frouxos,
sua respiração um guincho torturado. Nicaise permanecia em pé
junto à porta, seus braços caídos ao longo do corpo. O velho come‑
çou a chorar novamente.
Nicaise deu um passo hesitante em sua direção, escrutinando o
rosto de Angelique com um olhar aguçado.
— Temo que não possa fazer mais nada — disse­‑lhe ela.
— Toca na barriga dela — sussurrou Nicaise. Ela o olhou sem
saber o que responder. — Pur favô, senhorazinha, pur favô.
— Eu não posso.
— Pur favô, senhorazinha, só uma veiz.
Angelique respirou fundo, estendeu o braço lentamente e to‑
cou de leve no estômago distendido da menina, gentilmente,
tranquilizadoramente, lutando para manter a mente clara, mas

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

consciente da centelha que se estava acendendo, tal como ela sa‑


bia que se acenderia. Ela estremeceu quando a chama antigamen‑
te familiar flutuou em suas entranhas; ela se encolheu
interiormente, mas não tentou apagá­‑la. Sentiu o fogo rugir atra‑
vés de todo o seu corpo e descer por seu braço como um espinho
relampejante. A criança entrou em convulsão e um odor pesti‑
lento encheu o ar. Quando ergueram os farrapos, viram que ela
soltara através dos intestinos uma massa líquida e nojenta. Den‑
tro de um quarto de hora, seu estômago se amaciara e encolhera
e toda a sua pele estava fresca.
O pai sentou­‑se ao lado dela, segurando­‑lhe a mão, novas lágri‑
mas lhe escorrendo pelas faces, desta vez sem amargura.
— Eu ti dô minha bença, moça — disse com voz trêmula. — Tu
feiz um milagre aqui! Mais cumo é qui eu posso ti pagá?
— Só existe um jeito — ela respondeu. — Isto que eu fiz deve
permanecer em segredo para sempre. Vocês não podem contar a
ninguém sequer que eu estive aqui.
Ela fitou o velho diretamente nos olhos e ele concordou em silên‑
cio com a cabeça.
Angelique emergiu para a noite. Estava tremendo, sentia­‑se
exaurida, porém mais viva do que se percebia havia anos. Correu
pela senda estreita, escutando a música da água corrente. Em Saint­
‑Pierre, os sons de fontes escondidas em jardins, dos restos das chu‑
vas escorrendo pelas sarjetas, pequenos riachos que corriam
serpenteantes desde as montanhas, todos os ruídos da água esta‑
vam sempre presentes. Ela tropeçou ao atingir um caminho calça‑
do de pedras redondas que terminava por uma cascata de degraus
irregulares que mal conseguia discernir à luz da lua e logo desceu
para o bulevar mais largo.
Novamente exultante, sua mente estava ocupada por um único
pensamento. Barnabas ainda estaria na taverna? Ela teria possibili‑
dade de olhá­‑lo novamente, nem que fosse de relance? Mas seu âni‑
mo se arrefeceu quando viu que os quartéis estavam escuros. Então
ela escutou o ruído dos passos de alguns dos soldados que haviam

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Lara Parker

sido corridos da taverna para que o dono a pudesse fechar por den‑
tro, suas risadas ecoando pela rua vazia.
Seu caminho ia naquela direção e havia um lampião ainda aceso
na esquina quando ela passou pelos oficiais embriagados, seu cora‑
ção batendo apressado dentro do peito, não de receio, mas impelido
por alguma emoção inexplicável, e no momento em que passou por
baixo do círculo de luz do lampião, ela se voltou de passagem para
eles. A luz lhe recaiu em cheio no rosto.
Ao enxergá­‑la, Barnabas interrompeu seus passos trôpegos, pren‑
deu a respiração e a fitou diretamente nos olhos, como num transe,
cheio de confusão, como se ela fosse uma visão inesperada que lhe
fora trazida pela alta madrugada. Olharam um para o outro por um
longo momento antes que, incapaz de respirar, ela se escondesse nova‑
mente na escuridão. Porém, mesmo enquanto ela se retirava para den‑
tro da noite, sem olhar para trás, podia sentir que seus amigos não
conseguiam puxá­‑lo consigo. Ela sentia seus olhos cravados em sua
nuca, seguindo­‑a fixamente, como o reflexo da lua sobre a água segue
um viandante solitário em sua marcha ao longo da areia da praia.

* * *

A manhã seguinte estava linda, aquecida pelo sol que se erguia aci‑
ma do Mont Pelée, enquanto Angelique iniciava suas rondas através
do mercado. Os odores de flores, doces, frutas e pão recém­‑saído do
forno perfumavam o ar enquanto os vendedores montavam suas
barraquinhas. Carroças de hortaliças e legumes, porcos e galinhas,
jumentos carregados de achas de lenha e seus condutores desciam
continuamente para o interior da praça.
Angelique, satisfeita com o movimento, foi indo de tenda em
tenda, uma das primeiras a fazer suas escolhas. Ela demonstrava
uma atitude cortês e uma graça incomum para uma criada. Sentia
uma exuberância pouco familiar e estava consciente de que o corte
de seu vestido simples cor de alfazema favorecia seu corpo esbelto
enquanto se movia pela praça.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Quando estendeu a mão para pegar algumas mangas empilha‑


das no alto de uma carroça, voltou­‑se levemente ao se erguer na
ponta dos pés, como se estivesse em um passo de dança. Sentia seu
ser inteiro imbuído de uma estranha euforia, como se tivesse o vi‑
gor dos brotos de primavera. Ao contemplar seu reflexo no fundo
polido de uma caçarola de estanho, distinguiu sua cabeleira de um
louro pálido e seus olhos claros e luminosos no fundo das órbitas
escuras. Sorrindo para si mesma, trocava saudações alegres com os
outros, embora mantivesse sua habitual reserva, certa distância dos
mercadores, qual se tivesse escolhido permanecer em um mundo
separado que pertencia apenas a si mesma.
Vendo uma banca que vendia maçãs douradas, foi irresistivel‑
mente atraída pelas cores vibrantes. Estendeu a mão e pegou uma
delas, que ficou girando na palma da mão, tentando decidir se com‑
prava e comia uma imediatamente ou se levava um saco cheio delas
para casa, quando uma voz masculina falou baixinho a seu ouvido:
— Sem dúvida, a mão de Eva não era tão encantadora, nem seu
pulso tão delicado.
Girou nos calcanhares e ergueu os olhos, que fitaram direta‑
mente o rosto de Barnabas. Instantaneamente a massa de gente que
se movia a seu redor se transformou em uma mancha embaciada e
a única coisa que conseguia ver era o seu semblante. O rapazinho de
sardas e sorriso alegre ainda estava escondido por detrás daquela
fisionomia, mas agora os traços tinham sido cuidadosamente escul‑
pidos e o rapaz era diabolicamente belo. Os olhos eram escuros e
profundos, sombreados por sobrancelhas grossas. Mas brilhavam
com uma cintilação tão espantosa, que pareciam desprender fagu‑
lhas, tão fixos nos dela que seu coração pulou dentro do peito, por‑
que o olhar era tão penetrante e ao mesmo tempo, tão familiar. Ela
sentiu o sangue correndo para ruborizar­‑lhe o rosto, mas conseguiu
mostrar um sorriso lento e secreto.
— Tenha cuidado — respondeu­‑lhe. — A Árvore do Conheci‑
mento do Bem e do Mal faz brotar frutos amargos.
Ele passou de leve a ponta dos dedos sobre a casca da maçã.

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— Você vai me oferecer este fruto?


Ela baixou os olhos para sua própria mão, que se arrepiara e tre‑
mia como se a casca da maçã fosse sua pele.
— E por que você pensa que esta maçã veio do Jardim do
Éden? — indagou.
— Porque... onde quer que você esteja, minha dama... só pode
ser o Paraíso.
Ela enrubesceu novamente com o galanteio, mas deu­‑lhe as cos‑
tas e começou a colocar as maçãs uma a uma dentro do saco. Ao
terminar, entregou as moedas à esposa do granjeiro. Barnabas não
tirava os olhos de cima dela.
— Eu a estive observando — disse­‑lhe — enquanto se movia
pela praça do mercado.
— E se aqui é realmente o Jardim do Paraíso, quem é você? —
disse ela, com medo de erguer os olhos. — É a primeira criação de
Deus... à sua perfeita imagem e semelhança? Ou é aquele outro fu‑
lano, a quem eu devo temer?
— O primeiro a ser criado por Deus? Eu preferia ser o primeiro
a ser aceito por você.
— Meu primeiro? Mas não o meu último? — disse ela, olhando­
‑o de esguelha, sob o véu das pestanas. — Esse seria o paraíso de
uma tonta...
— Escute, eu a conheço de algum lugar? — perguntou ele,
abruptamente.
— Eu... eu não sei... — obtemperou a jovem. Seria possível que
ele a reconhecesse?
Sua testa se estreitou quando franziu os supercílios.
— Esses seus olhos, como miosótis azuis... Alguma coisa me é
familiar em você. Qual é o seu nome, senhorita?
— Vai­‑se desapontar, Monsieur. Meu nome não é Eva. E já que
não fomos apresentados formalmente, acho que não seria correto
de minha parte dizer­‑lhe meu nome.
Ela ficou surpresa com sua própria arrogância. Mas ele era tão
direto e atrevido, que não pareceu nem um pouco desencorajado.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Entendo perfeitamente. Bem, meu nome é Barnabas Collins.


E é uma honra conhecê­‑la, Mademoiselle Mistério...
Tomou­‑lhe a mão livre e inclinou­‑se para beijá­‑la como era de
praxe e, depois de um momento em que a contemplou diretamente
nos olhos, virou­‑a para cima para beijar­‑lhe a palma. Ela puxou a
mão, consciente do calor de sua respiração contra sua pele.
— Senhor, eu o previno, não tome novas liberdades.
— Minha querida dama, eu apenas desejo dar um passeio junto
consigo através da praça. Quero inaugurar esta bela manhã com
uma linda mulher a segurar­‑me o braço. É quanto basta para que eu
sinta uma felicidade do tipo mais raro. Você ao menos dará uma
volta comigo?
Seu tom era brincalhão, quase de zombaria, contudo sob a troça e
o bom humor ela percebeu uma ansiedade que a desarmou. O rapa‑
zelho atrevido que invadira sua liteira e fechara­‑lhe as cortinas atrás
de si tantos anos antes ainda se achava ali, mas quando a jovem se
permitiu olhá­‑lo diretamente no rosto, ela percebeu que por detrás de
seus olhos se ocultava uma urgência que a comoveu profundamente.
Ela inclinou a cabeça para ele e sorriu. Ele tomou­‑lhe o braço
gentilmente e caminharam por entre as barraquinhas até sair do
mercado e entrar na parte mais tranquila da praça. Ele a conduziu
até uma grande figueira cujos ramos se abriam em frente à arcada
e caminharam para a sombra. Os ramos pesados formavam um
teto de folhas verdes e prateadas como uma abóbada erguida aci‑
ma de suas cabeças.
Finalmente, para quebrar o silêncio, ele falou:
— Você se levantou junto com o sol. Está fazendo tão cedo as
compras para sua família?
Pouco inclinada a revelar que era apenas uma criada, mas sem
querer tampouco mentir­‑lhe, ela respondeu simplesmente:
— Sim, eu sempre venho bem cedo, antes que a multidão se ajun‑
te ao redor das tendas; assim eu posso escolher os melhores artigos.
Sorriu­‑lhe novamente e depois desviou as vistas para indicar o
mar com um aceno da testa.

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Lara Parker

— Além disso, estou sempre curiosa para saber quais são os na‑
vios que chegaram ao porto no decorrer da semana.
— Você estava procurando por minha escuna? — indagou ele.
Ela teve um momento de susto. Como ele poderia saber que era
o seu veleiro que ela sempre ansiava por ver de novo?
— Mas e por que eu faria isso? — indagou calmamente. — Eu
não sei qual é a sua escuna, meu caro Monsieur.
— Bem, você é de Martinica?
— Vivi aqui toda a minha vida... — concordou ela, examinando­
‑o melhor. Conseguiu perceber que aquele colarinho engomado lhe
sufocava um pouco o pescoço e que o tecido de gabardine vermelha
de sua casaca apertava seu peito musculoso. Ele se tornara um ho‑
mem fisicamente poderoso, alto, de ombros largos, vigoroso e enér‑
gico. Seu olhar era tão intenso, que a fazia sentir­‑se desconfortável
e, para evitar enfrentar­‑lhe os olhos, ela colocou uma das mãos so‑
bre a superfície lisa do tronco grosso e de coloração negro­
‑acinzentada da figueira e olhou por cima da cabeça dele. Ele seguiu
seu olhar para as massas de folhas verdes na parte de cima e mais
claras do lado inferior, onde se achavam os veios.
— Ei, olhe só, repare onde nós estamos — disse ele, fingindo sur‑
presa, inclinando­‑se contra ela, sua respiração soprando sobre seu sem‑
blante. — É como se fosse o interior de uma caverna, um esconderijo
secreto em que poderíamos viver juntos, ocultos do mundo inteiro...
A sugestão de intimidade era clara e ela deveria ter se sentido
ofendida, mas de algum modo aquele início de namorico parecia
suficientemente inocente, uma coisa totalmente momentânea,
agradável demais para ser cortada.
Uma brisa ergueu os galhos e uma nuvenzinha de folhas enros‑
cadas se desprendeu e flutuou pelo ar, redemoinhando até o solo.
— Ah, sim — ela murmurou, sentindo um pouco de tontura
e um leve delírio. — Um lugar muito seguro, até que venha a
primeira tempestade...
— Mas veja só como os galhos estão carregados! — disse ele, ti‑
rando uma folha de seu ombro. — Esta árvore é muito antiga, é

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

velha e sábia. Eu a conheço muito bem. De fato, é minha amiga ín‑


tima e já entretive conversações muito sérias com ela.
Com um sorriso amplo, ele esquadrinhou­‑lhe o rosto, para des‑
cobrir como reagia às suas evidentes lorotas.
— Outro dia — prosseguiu — ela concordou comigo que nos
daria abrigo e nos protegeria e que nunca revelaria a ninguém onde
nos encontrávamos...
— Mas e de quem é que estamos nos escondendo? — ela indagou.
Ele sacudiu a cabeça lentamente e o sorriso que se espalhou por
sua fisionomia sugeriu um reconhecimento, como se ele tivesse en‑
contrado alguém tão espirituosa quanto ele. Mas debruçou­‑se sobre
ela novamente e ela teve uma recordação súbita de um quadro que
vira certa vez na biblioteca dos du Prés, em um livro de gravuras
reproduzindo pinturas de museus europeus: O Soldado e a Jovem.
De fato, havia estudado a imagem muitas vezes, saboreando tudo
quanto ela sugeria. A camponesa ingênua, segurando um saco de
compras contra a saia, enquanto olhava para o homem tão bonito
em seu uniforme vistoso, que obviamente lhe dizia palavras seduto‑
ras que lhe despertavam as paixões inconscientes e lhe comprome‑
tiam a virtude. Sentiu­‑se tal como se estivesse parada de repente
dentro do quadro, só que as intenções de seu soldado não eram tão
transparentes, nem tampouco ela era tão inocente assim.
O coração de Angelique parecia estar correndo em consequência
das atenções tão irresistivelmente potentes que não provinham ape‑
nas de qualquer homem, mas justamente do homem que povoara
seus sonhos durante tantos anos, o homem­‑menino que invadira seu
santuário, percebendo através de seu disfarce a menina assustada que
ela era realmente e rindo de sua própria descoberta da charada.
Ele havia sussurrado: “Mas você não é realmente uma deusa, é?”
Ela conseguia sentir o uangá ao redor de seu pescoço, dentro do
qual a selenita ainda dormia. Ele demonstrara estar encantado com
ela então e, de algum modo, ela confiara nele. Tal qual confiava
agora, tal qual se sentia novamente atraída por ele. Ela sentia que
seus mil anos de solidão se desvaneciam nesse único instante.

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Lara Parker

Ele cruzou os braços e se apoiou contra o tronco negro­


‑acinzentado da árvore.
— Mas você não me indagou por que eu estou acordado tão
cedo. Acha que eu vim aqui para comprar verduras?
— Não, em absoluto — respondeu a jovem, tirando uma
fruta de seu saco e olhando para ela. — Acho que você veio
atrás de maçãs — sugeriu, seus olhos dançando enquanto mor‑
dia a polpa amarelada.
Ele lhe contemplou a boca por um instante.
— Eu nem me deitei a noite passada — comentou. — A vida é
brilhante demais para ser desperdiçada com o sono, você não acha?
— Eu tampouco descansei a noite passada — ela confessou, sa‑
boreando o gosto.
— De fato? Estava com seu amante?
— Cavalheiro, eu não tenho amante.
— Ah, mas vai ter — insistiu ele. — Posso ver no jeito que você
caminha, na forma como seus olhos brilham. Você é uma chama
para as mariposas.
— E você não faz versos para todas as outras moças?
— Não, a poesia não é um de meus dotes mais fáceis. Mas de
fato, eu nunca me senti realmente inspirado antes. Qual foi o feitiço
que lançou sobre mim, minha dama?
— Ora, nenhum que eu saiba, cavalheiro — respondeu­‑lhe,
olhando­‑o diretamente. Seus olhos pareciam escondidos em covas
profundas, cercados de sombras da cor da alfazema. Ela mordeu
novamente sua maçã, enquanto ele prosseguia.
— E se eu lhe disser que a vi durante a noite passada em uma rua,
sob a luz de um lampião e que você também me viu? Você se recorda,
não é verdade? Eu somente estou aqui porque, depois disso, não con‑
segui dormir, mas saí a passear ao longo da praia, pensando: “Meu
Deus, como seria ser amado por uma mulher tão bela assim?”.
Ela se sobressaltou com suas palavras.
— Cavalheiro! Como monsieur pode afirmar que nem se deitou
quando passou a noite inteira sonhando?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ele estendeu a mão para a maçã, tirou­‑a dela e levou­‑a até a boca.
— O que foi que lhe perturbou o sono? — perguntou, enquanto
mastigava lentamente o pedaço que tirara da maçã.
— Eu... eu não acho que lhe interessaria.
— Mas por que diz isso?
— Porque... não foi por qualquer motivo frívolo.
— Estou ainda mais curioso.
Mais uma vez, ela sentiu uma vaga de confiança cálida.
— Muito bem, cavalheiro, eu lhe direi, se quer saber. Eu... fui cha‑
mada para visitar uma garotinha que estava muito doente. Fiquei
metade da noite com ela e cuidei dela e eu... eu acho que fui capaz de...
— Salvar­‑lhe a vida.
— Sim.
— Você é feiticeira?
— Está troçando de mim, Monsieur.
— Perdoe­‑me, eu me expressei mal. Quero dizer, você tem habi‑
lidades médicas?
— Minha mãe é que tinha o talento da cura.
— E você? Pode curar... com um toque de sua mão?
— Eu não sei. Quem sabe você mesmo me diz... — sugeriu An‑
gelique. Hesitou por um momento, achando que seria uma impru‑
dência, então colocou a mão sobre uma de suas faces. — Está
sentindo alguma coisa estranha? — perguntou. Sua mão tremeu ao
sentir as pontas dos fios de sua barba começando a crescer.
Ele fechou os olhos, o mesmo sorriso delicioso brincando em
suas feições e esticando­‑lhe os lábios. Depois disse:
— Ahhhh! Muito mais do que estranha... Sua mão está fresca,
mas onde toca, me sobe um calor... Estou certo de estar sentindo
um formigamento...
Ela puxou a mão depressa, novamente ruborizada. Ele era mais
vaidoso do que ela pensava e, pior ainda, também era desonesto.
Mas ele apenas sorriu seu sorriso terno, obviamente encantado.
— Eu sempre ouvi dizer que as mulheres de Martinica eram for‑
mosas — sussurrou, tocando­‑lhe de leve no braço. — Mas nunca

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Lara Parker

soube, até agora, ao ver como você é linda, até que ponto isso podia
ser verdade.
Inclinou­‑se para ela.
— Você me permitiria dar­‑lhe um beijo?
Ela sentiu em seu hálito o odor adocicado da maçã e ansiou por
erguer seu rosto para ele. Mas se conteve e recuou.
— Está troçando de mim, cavalheiro, mais uma vez — afirmou.
— Além disso, o senhor já beijou a palma de minha mão.
Para sua surpresa, ele lhe estendeu a sua, com a palma para cima.
— Então, você deve pagar minha transgressão — declarou.
Ela se espantou com o tamanho da mão dele, seus dedos lon‑
gos e esguios.
— Minha mão é sua para fazer o que quiser...
Ela colocou sua própria mão sob as costas da dele e abriu­‑lhe os
dedos completamente. Percebeu que estava prendendo a respiração
por mais de um minuto e teve a impressão de que seu corpo pegaria
fogo caso se movesse. De alguma forma, conseguiu dizer:
— Talvez... eu pudesse ler sua mão... dizer qual seria sua fortuna...
— Por favor, faça­‑o...
Ela olhou fixamente para baixo, os pensamentos girando ao re‑
dor de sua mente. Sua visão se embaciou e ela não conseguia ler a
verdade expressa nas linhas. Mesmo que achasse que quiromancia
era coisa de crianças, ela queria falar o que lhe surgiu ao coração.
— Eu vejo um barco no mar distante — começou — e um
grande torvelinho a bordo. Você foi ameaçado de morte e arriscou
várias vezes a vida para salvar seus camaradas. Você sofreu gran‑
demente, mas nunca abandonou sua coragem e nunca foi menos
do que valente e ousado.
Ele olhou para ela, meio atarantado, mas então seu rosto se
obscureceu:
— Ora, você poderia dizer tais coisas a respeito de qualquer ma‑
rinheiro e possivelmente seriam verdadeiras.
Ela franziu a testa enquanto lhe contemplava a palma da mão e
então sacudiu a cabeça.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— O que foi? — ele indagou. — O que mais você vê?


— Enjoo? — indagou ela, pretendendo estar confusa. — Um
marinheiro enjoando?
Ele jogou a cabeça para trás, soltando uma gargalhada.
— Mas como você poderia saber disso? Esse foi sempre o meu
segredo... — confessou e, a seguir, tocou­‑a de leve com a outra mão.
— Vamos lá, me diga mais.
— Vejo que você é impulsivo, mutável e que se encoleriza fa‑
cilmente — afirmou ela, franzindo a testa. — Tem grande irreve‑
rência para com os costumes e as autoridades. Você gosta de
quebrar as regras...
Ergueu os olhos e ele concordou, insistindo para que continuasse.
— Também é um líder nato, cheio de recursos, generoso e alta‑
mente favorável àqueles que encontra em dificuldades. Diga­‑me
uma coisa... Por que é sempre tão duro consigo mesmo?
Seus olhos se escureceram, como se ela tivesse tocado uma corda
oculta, mas deu de ombros, fingindo indiferença.
— Vejo outro homem por trás de todo o cinismo aparente e
zombaria inconsequente — prosseguiu ela, agora a fitá­‑lo direta‑
mente nos olhos. — Alguém que deseja explorar os mistérios mais
profundos da vida... uma paixão por ternura que nunca foi satis‑
feita... e... fome de amor. Você tem uma natureza tempestuosa
cujos objetivos não podem ser impedidos, qualquer que seja o
custo. Se deixar tal natureza florescer em seu coração, descobrirá
uma grande felicidade.
Ele a contemplou, cheio de confusão.
— Quem é você?
— É verdade ou não é?
— Nem a menor palavra — desmentiu baixinho. Mas seus olhos
luziam e ele parecia estar forçando um sorriso. — Como leitora de
mãos, minha querida, você é uma completa amadora.
— Pois muito bem. Se eu não lhe agrado, Monsieur, vou seguir o
meu caminho — disse ela, fazendo menção de se retirar.
Barnabas empalideceu.

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Lara Parker

— Minha cara senhora, por favor, não creia que eu quis ser in‑
grato. É somente que... por favor, por favor, perdoe­‑me. Eu sou...
um tolo desajeitado! — afirmou e, após uma pausa, prosseguiu:
Meu mais profundo desejo é visitá­‑la e conhecer sua família.
Seu coração se encolheu ao ouvir­‑lhe o pedido.
— Isso é impossível — declarou em um tom que pretendia ser
desdenhoso. — Lamento que você tenha exaurido qualquer opor‑
tunidade que pudesse ter tido de me visitar.
Ela se virou para ir embora, mas ele se interpôs em seu caminho.
— Mademoiselle, você precisa acreditar em mim quando eu dis‑
se que não pretendia em absoluto ser grosseiro consigo. Eu estava
apenas fingindo que minha sorte fora lida incorretamente. De fato
foi... foi muito mais exata do que eu estava disposto a admitir. Eu...
eu sei que tudo isso é um truque, mas — para falar a verdade — eu
não sei de que maneira você foi capaz de enxergar tão claramente
no fundo de minha alma. Por favor, me permita acompanhá­‑la, a
fim de que eu possa demonstrar, deste momento em diante, a mais
absoluta civilidade.
Ela olhou seu rosto, mostrando uma expressão tão ferventemen‑
te sincera enquanto aquela mistura absurda de palavras tombava de
sua boca, que percebeu precisar arrancar­‑se imediatamente daquele
lugar, antes que ela beijasse aquela boca e se humilhasse além de
toda possibilidade de salvação. Ela deu­‑lhe as costas e correu, o saco
de maçãs balançando contra suas coxas.
Ele a viu partir e desta vez não a seguiu.

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Vinte e Dois

carruagem finalmente partira e Angelique deu a volta e en‑


trou na casa. Tudo estava tranquilo agora, depois da histéri‑
ca partida para o baile. Ela subiu a escadaria até o quarto de
Josette, em que meias, camisolas, saias, sandálias, fitas e capas es‑
tavam espalhadas pelos móveis ou jogadas descuidadamente pelo
chão, atiradas por toda parte no excitamento do vestir. Automati‑
camente, ela ajeitou os tapetes enroscados, alisou a colcha sobre a
cama e foi juntando as peças de roupa descartadas, dobrando­
‑as cuidadosamente e pondo cada uma em seu devido lugar no
guarda­‑roupa ou nas cômodas. Chegando até o toucador, ela
guardou na devida gaveta cada joia que tinha sido posta de lado e
amontoada sobre o tampo ou que até mesmo caíra no chão. Cada
ornamento era lindo e lhe cochichava fantasticamente sobre even‑
tos da existência encantada de Josette: um camafeu de marfim
— presente de aniversário de seu pai; a cruz de diamante — uma
herança de família; um colar de granadas intercaladas com péro‑
las — mandado trazer de Paris pela condessa.

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Lara Parker

Foi neste momento que ela percebeu quão profundamente ela in‑
vejava Josette, que nunca parecia notar quando alguma coisa era fina
ou preciosa. Não era absolutamente de admirar que Josette fosse tão
encantadora, já que ela se movia em um mundo sem faltas, nunca
passara a menor necessidade, nenhuma de suas ações jamais tivera
consequências. Mesmo que ela ainda fosse invariavelmente generosa
e delicada, sempre fora protegida por sua condição social e se movia
com a arrogância inconsciente das classes superiores, aquela certeza
de que seus privilégios eram naturais e nunca passariam.
Inicialmente, as lágrimas de Angelique somente arderam nas
comissuras de seus olhos e formaram­‑lhe uma bola na garganta,
mas enquanto ela passava as mãos carinhosamente sobre a tampa
da caixa de joias, ela viu os pontos escuros brotando um a um no
cetim rosado que fora aplicado com o maior esmero para recobrir
o cofre metálico.
Sentiu­‑se irritada por sucumbir à pena de si mesma. Ela tentou
convencer­‑se de que essas joias não passavam de objetos sem vida,
mas ela sabia perfeitamente que não sentia desejo de sua posse, mas
sim daquilo que eles representavam, as coisas que ela realmente de‑
sejava desde o centro de seu ser: conforto, futuro prometedor e, aci‑
ma de tudo, afeição.
Já fazia cinco anos que ela trabalhava para a família du Prés
como a dama de companhia da condessa e tinha a impressão de que
esta seria sua vida para sempre. Ela vivia um dia de cada vez, da
aurora ao crepúsculo, lutando para experimentar um certo conten‑
tamento e buscando esquecer seu passado. O encontro com Barna‑
bas na praça do mercado só servira para inflamar seu apetite por
mudanças. Sua aparência, seus galanteios, tudo lhe prometia um
êxtase inalcançável e só lhe restara a insatisfação. As alegrias do
amor lhe seriam negadas para sempre?
Ela dobrou a camisola de seda que Josette usaria essa noite após
retornar do baile e colocou­‑a sobre o travesseiro. Josette se precipi‑
tava sobre a própria vida cheia de entusiasmo. Cada dia lhe trazia
novas delícias inesperadas, enquanto a vida de uma criada consistia

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

sempre em arranjar e preparar as vidas dos outros. Seu trabalho era


invisível, nunca era notado e muito menos elogiado; somente algu‑
ma tarefa que não tivesse tido tempo de fazer ou que ficara inacaba‑
da merecia algum comentário. E todos os objetos que ela tocava, a
bacia, o acolchoado, os grampos, os sapatos, tudo pertencia à outra,
somente existia para o prazer da outra.
A riqueza era como um rio de águas mansas sobre cuja superfície
se flutuava, pensou Angelique. Josette ganhava coisas bonitas o tem‑
po todo, sem qualquer motivo particular e já recebera tantos presen‑
tes naquele dia de seu aniversário... lembranças de admiradores,
mimos dos amigos de André, seu pai, até regalos de completos estra‑
nhos que buscavam sua boa vontade porque desejavam obter algum
favor de sua família. Alguns tinham sido aceitos com exclamações de
alegria e postos de lado, outros dos pacotes nem sequer haviam sido
abertos. Josette não era responsável por essa atitude casual. Ela podia
adquirir qualquer bugiganga que visse em uma vitrine, frequente‑
mente objetos que, uma vez adquiridos, eram postos de lado sem ja‑
mais receberem um segundo olhar. A coisa mais difícil para Angelique
suportar era este desperdício — como uma fatia de bolo de que se
provara uma única colherada para depois abandonar o resto no pra‑
tinho sem ao menos um segundo olhar.
No momento de sair do quarto, Angelique viu em um canto
do assoalho a caixa que continha o vestido turquesa que fora re‑
jeitado e que fora confeccionado pela costureira de Saint­‑Pierre.
Impulsivamente, ela retirou o vestido da caixa, desdobrou­‑o e
colocou­‑o diante de seu corpo, indo olhar­‑se ao espelho. A cor
subiu até seus olhos, fazendo com que eles cintilassem. Momentos
depois, ela o havia vestido.
O ajuste não era perfeito, porque o corselete era de decote baixo
e apertado para um corpo menos cheio; seus seios se destacavam
sobre a gola baixa e a cintura ficava tão justa que quase não conse‑
guiu fechar todos os colchetes. O vestido fora feito sob medida para
Josette, que era mais magra do que ela. Mas as mangas bufantes
flutuavam desde seus ombros e a saia, que a condessa nem sequer se

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Lara Parker

incomodara em retirar do invólucro, era formada por metros e me‑


tros de tecido brilhante cuja tonalidade anil flutuava para realçar­
‑lhe os olhos. Ela borrifou um pouco da água de rosas de Josette em
seu pescoço e sobre o colo e ergueu a cabeça diante do espelho,
cheia de orgulho de sua aparência.

* * *

Ela nem sequer recordava de como saíra de casa. Flagrou­‑se apenas


alguns minutos depois, já andando pelas ruas. O teatro ficava a vá‑
rios quarteirões de distância, mas ela já começara a caminhar na‑
quela direção, na direção do baile, tentando não pensar no que
poderia dizer caso a família du Prés a visse por lá. Sua determina‑
ção montante a tornara temerária. Ela não dava a mínima. Na hora,
pensaria em alguma coisa. Ela tinha o direito de ir. E realmente,
não havia pegado nada que não lhe pertencesse, nenhuma joia, nem
sequer uma fita, somente umas gotas de água­‑de­‑colônia e um ves‑
tido que ninguém queria. Os grilos e sapinhos cantavam na noite
cálida. A seguir, escutou a música e antes que se passassem mais que
alguns momentos, já pisava no pavimento da praça.
O pátio calçado de lajotas diante do teatro estava superlotado de
carruagens e liteiras, e havia cavalos atados a todos os lampiões em
que os pavios encharcados de óleo queimavam alegremente. Um
vasto bando de negros entusiasmados e ruidosos se comprimia dos
dois lados da entrada; eles tinham vindo para olhar os blancs nasci‑
dos na França, os bequês, que eram os crioulos brancos que descen‑
diam dos antigos colonizadores e uns poucos mulatos que haviam
sido convidados para o baile. A multidão se separou para lhe dar
passagem, suspirando e murmurando, parecendo não perceber que
ela chegara sozinha e viera a pé. Para eles, era apenas uma outra
bela senhora da sociedade, afirmou para si mesma, embora seu co‑
ração batesse mais rápido.
Ela tremia com o pensamento de ter de enfrentar a condessa ou
André, caso um deles a visse, mas a alegre música ligeira da orques‑

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

tra de câmara e o zumbido das vozes desceram pelas escadas em sua


direção e ela sentiu­‑se cada vez mais atraída e seguiu em frente.
Subiu por uma das grandes escadarias curvas, suas saias flutuando
sobre os degraus de mármore europeu, com a cabeça erguida bem
alto. Passando sob um dos arcos das portadas, ela pausou um mo‑
mento na escuridão do vestíbulo.
O teatro transbordava de foliões barulhentos. Todos os ricos se‑
nhores de engenho estavam presentes, tão bem vestidos quanto
suas famílias, mas eram ofuscados pelos grupos de damas mulatas
que se vestiam com roupas tão suntuosas, que pareciam mais apro‑
priadas para o Théâtre de l’Opéra de Paris. Seus cabelos negros e
lustrosos estavam penteados para cima, em toucados elaborados e
misturados com flores, com joias valiosas pendendo dos pescoços e
orelhas. Muitas das mulheres, do mesmo modo que seus acompa‑
nhantes igualmente resplandecentes, usavam máscaras de penas ou
de renda, que lhes cobriam os rostos, revelando apenas olhos bri‑
lhantes e lábios pintados de carmim através de seus orifícios.
Angelique percebeu que todos os proprietários e mercadores de
Martinica haviam recebido convites para o baile, não importava a
tonalidade de suas peles. André du Prés era notoriamente liberal com
relação a essas coisas, principalmente porque era esperto o suficiente
para perceber que lhe era vantajoso aceitar todos os recém­‑chegados
ao mundo comercial, fosse qual fosse a sua cor. Mas seu coração pu‑
lou uma batida ao enxergar diversas pessoas que reconheceu. Entre
elas estavam Monsieur Santurin, sua esposa e suas duas filhas cujos
rostos demasiadamente compridos lembravam caras de éguas e que
algumas vezes vinham visitar a residência du Prés. Horrorizada com
a possibilidade de ser identificada por essa gente, que certamente a
denunciaria, ela se misturou com um grupo de cintilantes mulheres
“de cor”; uma das matronas, cujo vestuário era particularmente gla‑
moroso, pareceu notar seu embaraço e lhe piscou um olho.
— Gostaria de uma máscara, minha querida? — inquiriu. —
Vou sair daqui a pouco com meu acompanhante e não preciso mais
da minha. Além disso... ela combina muito bem com seu vestido.

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Lara Parker

Angelique olhou para a máscara. Era feita de um tecido fino em que


haviam sido pregadas as penas iridescentes do peito de um pavão. Uma
máscara! — mas era uma forma de disfarce deliciosamente perfeita!
— Muito obrigada — falou com simplicidade, colocando­‑a so‑
bre o rosto e dobrando os arames finos por trás de suas orelhas.
A dança começou de novo e a orquestra era meio desafinada,
mas seu entusiasmo compensava a falta de afinação e se lançou va‑
lentemente a executar uma polca. Subitamente, o salão inteiro esta‑
va cheio de pares girando descuidadamente. Um menino escravo
caminhava entre eles, desviando­‑se habilmente, com uma bandeja
cheia de taças de rum e ela apanhou uma delas. Sem pensar, ela a
levou aos lábios e a esvaziou, justo no momento em que a melodia
alegre terminava e muitos dos convivas começaram a pedir que to‑
cassem uma quadrilha.
Subitamente, ela sentiu um braço forte ao redor de sua cintura e
um jovem decidido, embora um tanto desajeitado, a puxou para a
longa fila dupla que se formava ao longo do salão. Foi então que ela
percebeu Josette, lá na outra ponta, cercada de pretendentes. Ange‑
lique temia chegar ao meio da pista de dança, onde poderia ser vis‑
ta tão facilmente, mas antes que se pudesse desvencilhar, começou
a música do promenade lento, a figura de passeio que iniciava a dan‑
ça complexa, e ela foi forçada a permanecer em seu lugar, fazendo
cortesias, cruzando para o lado oposto, girando novamente e mais
outra vez, de cada vez encontrando um novo par.
De algum modo, no meio de todo aquele brilho gritante, ela não
percebera as casacas escarlates. Da décima vez em que girou, viu os
botões de latão e as casas bordadas com elaborados brandemburgos
de fio de ouro antes de olhar para o rosto do próximo homem na
fila. Ficou surpreendida ao ver que era Barnabas.
— Ahá! — exclamou ele. — Eis uma mulher misteriosa! — decla‑
rou ao vê­‑la mascarada e segurou­‑lhe a mão firmemente para
conduzi­‑la ao longo da fila. Deu um passo para trás e se curvou extra‑
vagantemente perante a cortesia discreta da jovem, mas no momento
em que a fitou nos olhos, seu reconhecimento foi instantâneo.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Mas é você! — ele proferiu, incrédulo. Angelique cruzou por


trás dele, arrastada pelo movimento contínuo da dança e os olhos
de Barnabas a seguiram enquanto ela prosseguia de par em par ao
longo da linha até que a quadrilha terminou. Então, no tempo que
ela levou para respirar fundo, ele estava a seu lado, segurando­‑lhe
ambas as mãos.
— Juro por Deus, desta vez você não vai me fugir! — afirmou.
— Porque não a soltarei. Ah, mas isto parece um sonho! Orei fer‑
ventemente para encontrá­‑la aqui!
Os violinos começaram a tocar.
— Escute — ele prosseguiu. — É uma valsa. E estou com você.
Dance comigo!
— Não, eu não quero dançar mais, Monsieur...
Suas palavras de resistência foram engolidas pelo crescendo das
cordas enquanto ele a fazia girar pelo meio da multidão. Primeiro, ela
estava nervosa demais para o acompanhar na dança ainda desconhe‑
cida, mas de cada vez que perdia um passo, ele era forte o bastante
para erguê­‑la e colocá­‑la novamente sobre os pés no lugar exato em
que deveria ter pisado. A música foi ficando mais alta e os dançarinos
giravam ao seu redor. Finalmente, ela se abandonou ao ritmo fácil e
praticamente não sentia mais seus pés tocarem o piso. Ela podia per‑
ceber a energia de seu corpo enquanto ele a segurava e a força de suas
coxas ao movimentarem suas botas de gala. O odor de seu corpo era
como musgo e a estonteava. Quando a música acabou, ela quase caiu
e encostou­‑se nele, embriagada pelo ritmo constante da melodia. En‑
tão ergueu os olhos para ele e viu seu sorriso amplo e franco.
Ele a conduziu para fora do salão de baile e até a balaustrada do
balcão que dava para a praça e ali ficaram parados os dois, acaricia‑
dos pelo ar embalsamado da noite.
— Tire a máscara — ele cochichou. — Quero ver seu rosto
novamente.
Ele mesmo tomou a iniciativa, estendeu as mãos para os arames e
gentilmente retirou­‑lhe o adereço, revelando as feições que já conhe‑
cia. Ao contemplá­‑la, ele começou a dar risadinhas de divertimento.

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Lara Parker

— Por que está rindo? — ela indagou, desconfiada.


— Estava pensando em todas aquelas pobres moças que abando‑
nei. Eu assinei os cartões de dança de tantas delas...
— Então vá encontrá­‑las...
— Eu quero mesmo é ficar aqui, com você...
— Não são realizados muitos bailes em Martinica e...
— Eu tenho um segredo para lhe contar. Quando a vi pela pri‑
meira vez, na madrugada daquela noite, sob a luz do lampião, eu a
segui até sua casa.
— Você me seguiu? Estou chocada, senhor. O que foi que viu?
— Eu vi quando entrou pela porta lateral de sua casa. Esperei
para ver se podia enxergá­‑la novamente, nem que fosse de relance e
fui recompensado por sua visão através das vidraças da janela de
seu quarto, trançando seus cabelos louros à luz de velas.
— Você não devia ter me espiado. Por que fez isso?
— Deixe­‑me perguntar­‑lhe uma coisa. Você acredita ser possível
alguém se apaixonar à primeira vista?
— Acredito que seja possível para certas pessoas, Monsieur. Con‑
tudo, lamento lhe dizer que o amor e eu não temos um relaciona‑
mento feliz. De fato, acho que somos inimigos figadais.
— Inimigos? Realmente? Ahá! — proclamou ele, pretendendo
estar em posição de sentido. — Finalmente, encontrei minha voca‑
ção ou, pelo menos, o meu objetivo na vida. Eu me tornarei seu
campeão e meu dever será derrotar todos os seus adversários.
— E se o amor for o único adversário que tenho?
— Então, eu forçarei o amor a se submeter, a dobrar­‑se perante
minha vontade ou então atravessarei o peito do amor com meu sabre!
— gabou­‑se o oficial, seus olhos dançando divertidos, enquanto ele
empurrava para frente uma espada imaginária, seu braço roçando­
‑lhe a saia antes que recolocasse a arma em uma bainha invisível.
— Então você mataria o amor para possuí­‑lo? — ela indagou.
— Sim. Se fosse necessário.
— Mas... nesse caso você ficaria sem nada — ela observou. E
suas próprias palavras a impressionaram.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Ou então, com tudo... — ele murmurou, inclinando­‑se para


ela. Nesse momento, ela teve a visão de outro rosto queimado de
sol, um rosto que se esforçara tanto para esquecer e virou o rosto
para o lado.
Barnabas segurou­‑lhe o queixo na concha da mão, fazendo­‑a
virar­‑se de novo para ele.
— Ah, mas você me confunde... O que é isso que você tem, tão...
secreto... fascinante. Algum mistério dorme dentro de você. Não fui
capaz de parar de pensar em você desde que a vi.
As imagens de Thierry lutando para se segurar na amurada do
barco, do mar limoso e vazio de vida, do Maligno em pé em sua
carruagem negra se sucederam como relâmpagos dentro de sua
mente. Mas o que ela havia feito? Deixara­‑se imergir tanto nas delí‑
cias daquele flerte, que tinha olvidado suas terríveis limitações.
Egoisticamente, ela permitira a Barnabas que a perseguisse e agora
o colocara em um terrível perigo. Sentindo o coração a afundar­‑se­
‑lhe no peito, ela percebeu com total certeza de que não poderia
sustentar esta insensatez por mais tempo.
— Isso que você vê dentro de mim é algo de que deveria ter medo
— disse rapidamente.
— Como sempre se tem medo de uma nova aventura e, ainda
assim, se anseia por vivê­‑la.
— E se eu lhe dissesse que eu não sou... Que eu não sou aquilo
que você acredita ser a verdade sobre mim?
— O que eu acredito? Mas eu nem sei em que acreditar! Eu só sei
que, caso sonhasse com uma mulher perfeita, em toda a sua formo‑
sura e seu mistério, essa mulher seria você.
— Eu não sou como as outras jovens de Martinica. Eu não fui
criada da maneira habitual — começou ela, lutando para se fazer
clara, mas seus pensamentos estavam confusos devido à sua pro‑
ximidade. Ela sentiu quando ele passou um braço ao redor de
sua cintura.
— Eu já sei que não existe nenhuma outra igual a você —
lisonjeou­‑a.

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Lara Parker

— Você fala de amor — ela explodiu —, mas como poderia


amar uma bruxa?
— Uma... o quê? — indagou ele, recuando um pouco para
examiná­‑la melhor.
— É verdade — disse ela, sem respirar, antes de perder a cora‑
gem. — Você até me perguntou de brincadeira se eu era uma... des‑
sas criaturas estranhas. Seus instintos estavam corretos. Você deve
me acreditar quando eu lhe digo que isso é assim, porque... existem
certas restrições sobre meus atos... Eu... eu fui proibida de...
Ela parou, debatendo­‑se na consciência de que suas palavras não
faziam o menor sentido para ele. Como ela lhe poderia explicar o Espí‑
rito Negro que a guardava, especialmente quando ele, Barnabas, um
homem de carne e osso, a olhava daquele jeito, obviamente enamorado.
— Mas você não é realmente uma bruxa, é? — indagou, seu bra‑
ço se apertando ao redor da cintura dela.
— Mas eu sou. Eu viajei até os mais distantes panoramas da
mente. Já executei encantamentos que o deixariam aterrorizado.
Seus olhos escuros flamejaram. Em vez de sentir medo, ele
estava intrigado.
— Diga­‑me uma coisa que já fez e veja se eu me aterrorizo com
ela — desafiou.
Ela hesitou um momento, pensando em horrores que nunca
lhe poderia revelar, porém sabendo que deveria avisá­‑lo firme‑
mente, para que se mantivesse a distância. Finalmente, contou­‑lhe
uma coisa simples.
— Eu tenho o poder de criar fogo.
Ele prendeu a respiração e puxou­‑a para mais perto de si.
— Mas você já fez isso, minha dama — sussurrou. Suas palavras
somente o haviam excitado. Ele puxou­‑a contra si, moldando seu
corpo contra o dele, beijando­‑lhe o pescoço, respirando o perfume
de sua pele e então, desajeitadamente a princípio, depois com maior
insistência, ele achou os lábios dela com sua boca e a beijou suave‑
mente, depois profundamente, com tal ansiedade que ela pensou
que seu coração se partiria.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Nem teve consciência dos murmúrios do povaréu que se apertava


contra o gradil do terraço, até que finalmente abriu os olhos, lutando
para respirar, sua cabeça em rodopios. Escutou vozes excitadas e
diversas mãos apontavam para o Mont Pelée, o vulcão que se loca‑
lizava no centro da ilha. Ela se voltou, apavorada com o que poderia
ver. Gases alaranjados se projetavam do alto da montanha e explo‑
sões de fagulhas tracejavam o céu noturno.
— Veja só! — murmurou Barnabas. — Mont Pelée está respi‑
rando fogo!
— O Deus está se virando no leito! — gritou uma mulher.
Um homem exclamou:
— Ele está zangado por ter sido despertado!
Angelique sentiu arrepios a percorrer­‑lhe o corpo.
— O Deus? O Deus do vulcão? — Barnabas perguntou ao ho‑
mem que exclamara.
— O Deus que guarda a entrada do mundo inferior — respon‑
deu o outro. — Baron Cimetière. O Deus da morte.
Houve uma súbita explosão como se um trovão ribombasse e o
céu foi rasgado por arcos brilhantes. O estômago de Angelique se
contraiu quando ela viu a lava escorrendo da beira da cratera, ro‑
chas derretidas tombando e soltando centelhas e faíscas de fogo.
Barnabas estava encantado.
— Mas olhe só para isso! Espantoso! Como acontece uma
coisa dessas?
— Mas você não sabe? — redarguiu ela, tremendo do seu lado.
— Não faço a menor ideia... — confessou o oficial.
— Todas estas ilhas são a ponta de vulcões — explicou ela. De
algum modo, ela precisava lhe contar, mas foram outras as palavras
que saíram de seus lábios. — São montanhas de uma terra que fica
abaixo do mar, com campinas de algas e florestas de coral...
Ele a observava, fascinado. Por que ela lhe estava falando agora
justamente dos lugares que mais amava?
— E... vivendo nesse mundo se encontram as criaturas mais be‑
las da Terra — ela prosseguiu e então sua voz pareceu partir­‑se. —

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Lara Parker

Mas por debaixo disso tudo, há um santuário negro e é nele que


Pelée dormita.
— Mas por que ele ficou tão zangado? — ele indagou, mais para
fazer de conta que a estava levando a sério.
— É porque... eu estou aqui, com você — ela afirmou, seus olhos
cheios de lágrimas.
— Posso ver­‑lhe o fogo refletido em seus olhos. Ah, agora eu
entendo... Ele está com inveja, ele anseia por você tanto quanto eu,
ele queima com o mesmo desejo...
— Sua troça ridícula zomba de minha sinceridade, Barnabas. O
que eu lhe estou dizendo é a mais pura verdade!
Ele a apertou mais contra seu peito.
— Eu acredito em você. Existe um velho ditado que afirma que
os Deuses invejam os mortais quando eles se apaixonam... Esta é a
noite mais feliz de minha vida!
Novamente seu fervor juvenil e sua autoconfiança ousada o ar‑
rastavam além do alcance de suas vagas palavras de admoestação.
— Você não deve me tentar, Barnabas — disse Angelique, final‑
mente. — Eu jamais posso me apaixonar...
— Mas por que diz isso?
Ela lutou para tornar tudo claro, mas suas palavras não eram
mais do que enigmas.
— Todas as coisas... tudo no mundo tem sua sombra... O luto...
é o reflexo do amor. Eu não tenho o direito de amar, Barnabas.
Aprendi isso muitos anos atrás.
— Mas você é tão linda! Você foi feita para amar...
Nesse instante, ela escutou uma voz familiar e olhou sobre o om‑
bro para ver Josette, que se movia em direção ao balcão, dois jovens
inclinados para ela, cochichando.
— É tarde demais! — gritou Angelique, desesperadamente. —
Você precisa me deixar em paz, é tarde demais!
E ela se desvencilhou de seus braços, saindo na direção oposta e
correndo por uma das escadarias, afastando­‑se dele e entrando pela
noite adentro.

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Vinte e Três

a tarde seguinte, Angelique estava no andar de cima, sentada


no quarto de Josette, consertando a saia que forrava o vestido
usado por Josette na noite anterior. Alguém pisoteara na barra du‑
rante a valsa e causara o rasgão. Angelique sorriu ao pensar que ela
e Josette tinham acabado por dançar a mesma melodia e a outra
nunca soubera que ela havia estado lá. Em razão de sua fuga, Ange‑
lique voltara cedo, muito antes da família e tivera tempo de passar
o vestido azul e repô­‑lo cuidadosamente dentro de sua caixa. Per‑
feitamente em segurança, sua noite roubada mais parecia ter sido
um sonho — um sonho que não poderia ter repercussões e que
jamais se realizaria. Contudo, ela deixava sua mente permanecer
naquela lembrança agradável e tremia de prazer a cada vez que re‑
cordava os beijos insistentes de Barnabas.
Escutou vozes no andar térreo, vozes masculinas e concluiu sem
dar importância, que era André recebendo visitantes. André du Prés
gerenciava prudentemente os canaviais, mas a fonte verdadeira de sua
fortuna eram empréstimos cuidadosamente distribuídos entre os

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Lara Parker

outros senhores de engenho e cobrados no devido prazo. Ele era um


investidor arguto e se tornara credor de muitos dos novos proprietá‑
rios cheios de esquemas imprudentes que frequentemente fracassa‑
vam, resultando na aquisição de suas propriedades, expandindo
Trinité cada vez mais. Ou, se os seus produtos fossem finalmente ven‑
didos e pagos, ele recebia os empréstimos com altos juros. Contudo,
Angelique já convivera com a família du Prés um tempo suficiente
para saber que André tinha um grave defeito. Ele adorava jogar, do
mesmo modo que o homem que acreditava ser seu pai durante tanto
tempo, Théodore Bouchard. Algumas noites, os visitantes do sexo
masculino não vinham pagar empréstimos contraídos com ele, mas
cobrar as flagrantes dívidas de jogo de André, centenas de livres per‑
didas para sempre sobre o pano verde das mesas de jogo.
A anágua era volumosa e o forro grosso se descosturara em uma
grande extensão; assim Angelique, embora sempre com o capricho
que a condessa lhe exigia, estava costurando o mais rápido que po‑
dia, quando espetou um dedo com a agulha. Com medo de man‑
char o algodão branco, ela pôs o dedo na boca, esperando que o
sangue estancasse e se ergueu, caminhou até o corredor e se encos‑
tou casualmente na balaustrada. André conversava animadamente
com seu visitante no vestíbulo e quando ela avistou a casaca escar‑
late, seu coração pulou. Era Barnabas que estava ali!
É claro que ele sabia onde ela morava. Ele a seguira na primeira
noite em que a vira e agora estava cumprindo sua promessa. Ele ti‑
nha vindo para visitá­‑la. Mas imediatamente ela se tornou cônscia
de que quaisquer esperanças vagas que tivesse entretido estavam
desfeitas para sempre. Ela se assustou ao perceber que estava aper‑
tando o corrimão da balaustrada com ambas as mãos. Os nós de
seus dedos estavam totalmente brancos, como se jamais tivesse cor‑
rido sangue através de suas juntas.
Quando os dois homens entraram na sala de visitas, ela pôde
escutar André falando efusivamente e sem parar.
— Palavra de honra, os Collins! Mas eu sei perfeitamente quem
o senhor é, cavalheiro, tão bem quanto conheço sua família, que é

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

famosa por todas as ilhas! — afirmou. — Sem falar no senhor mes‑


mo, Mr. Collins! Ora, eu devo dizer que você é uma espécie de herói
local, pois não é? Conseguiu escapar de um bando de flibusteiros!
Adoraria escutar essa história! Becê! — a última palavra era o nome
de seu criadinho negro, que trabalhava como pajem. — Traga co‑
nhaque! Aqui para a sala de visitas!
Angelique foi descendo as escadas silenciosamente e se ocul‑
tou ao lado da porta da sala de visitas para escutar a conversa.
Agora André e Barnabas estavam discutindo a revolução que es‑
tourara na França.
— Pois eles acabaram fazendo, não foi? Pobre Louis, foi assassi‑
nado! O melhor dos reis, uma pessoa tão humana, levado ao cada‑
falso pela ferocidade de seu próprio povo!
— E desde então a França não conheceu um momento de paz
— era a voz de Barnabas.
— A guilhotina! Meu Deus, que cena horrorosa deve ter sido
aquela! — lastimou­‑se André. — Você sabia que eles querem
trazer um desses malditos engenhos para Guadalupe? Uma in‑
venção do Diabo!
— Contudo, senhor, o comércio floresce em Martinica, mesmo
agora que os britânicos estão ameaçando tomar as ilhas — comen‑
tou Barnabas. — Nossos navios tiveram passagem livre garantida,
mas somente até essa data.
— E que espetáculo mais patético nós apresentaremos, cavalhei‑
ro! — lamentou­‑se André. — O senhor não acha? Martinica vai
cair sem dar sequer um gemido... Pensando bem, eu pessoalmente
não me importo nem um pouco. Essa tal República me enfurece!
Mas o governo anterior sempre pensou que as colônias existiam
exclusivamente para o benefício do reino. Vocês já resolveram a sua
disputa no que se refere ao direito divino dos reis. As nossas estão
apenas começando.
— Parece estar bastante tranquilo por aqui...
— Se quer saber, meu amigo, é a calmaria que precede o furacão.
— Mas o baile da noite passada foi o auge da elegância descuidada.

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Lara Parker

Angelique teve uma sensação de náusea na boca do estômago.


Inclinou­‑se contra a parede para combater uma leve vertigem.
— Você esteve presente? — exclamou André. — Uma reunião
brilhante, se é que eu mesmo a posso elogiar. O teatro foi um local
excelente, esplêndido, todo iluminado como estava!
— Até mesmo o Mont Pelée contribuiu com uns fogos de ar‑
tifício espetaculares.
— Ah, foi uma coisa gloriosa mesmo! E o melhor foi que essa
parte do espetáculo não me custou um centavo! — declarou André,
com uma gargalhada. — Era como se o próprio vulcão estivesse
pagando um tributo à minha filha em seu aniversário!
— Ah, sim a sua filha. Monsieur du Prés, eu acho que até dancei
com ela ontem. A sua filha é parecida com o senhor?
— Como assim?
— Ela tem os seus olhos azuis?
— Ah, não, não... Josette tem olhos escuros, que herdou da
mãe dela, Deus guarde sua alma. Minha filha tem cabelos casta‑
nhos e é desusadamente bela — uma criatura deliciosa, a alegria
de meu coração e se desenvolveu como uma esplêndida jovem! Ela
teve todos os melhores tutores, a melhor educação possível, esse
tipo de coisa... todas as influências decentes que uma jovem dama
obteria na própria Paris... O senhor quer ficar mais um pouco,
Mr. Collins, para jantar conosco?
— Seria um prazer.
— É maravilhoso ter um cavalheiro da América do Norte para
discutir o cenário político. Olhe, você e eu deveríamos organizar
uma caçada. Recentemente adquiri uns mosquetes excelentes. E
gostaria mesmo que o senhor conhecesse Josette. Mas devo adverti­
‑lo: há uma boa chance de que o senhor se apaixone por ela...
— O senhor também hospeda outra jovem nesta casa, que tenha
estado presente no baile? Uma de cabelos louros?
Angelique sentiu sua garganta se apertar ao ouvir a resposta de André.
— Não, apenas uma, somente Josette, lhe garanto. Mas estou
certo de que o senhor ficará encantado com ela. Pensando bem, nós

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

temos uma criada com cabelos claros, a Angelique, mas ela não nos
acompanhou ao baile.
Ao ouvir esta sentença condenatória, Angelique sentiu seus joe‑
lhos enfraquecerem.
— Uma criada... — escutou Barnabas murmurando.
Bem, esse era o final de seu pequeno estratagema, ele agora havia
desvendado o seu mistério. Ela disse a si mesma que não se impor‑
tava. Fora ela que o rejeitara, mais de uma vez até, que o impelira
para longe dela em seu terror. Mesmo que ela não o tivesse feito, ele
provavelmente se teria aproveitado dela, apenas tirado vantagem —
era o que esses rapazes ricos costumavam fazer sempre — e depois
a descartaria “igual uma luva usada”, como se costumava dizer. Era
uma sorte que ele tivesse ficado sabendo de sua posição social ver‑
dadeira antes que ela enfraquecesse e sucumbisse a novos avanços
da parte dele. Ela continuou a escutar a voz de André, agora marte‑
lando o assunto dos canaviais.
— Nós necessitamos de um estoque inexaurível de maquinaria
humana para a colheita da cana­‑de­‑açúcar...
Escravos, pensou ela. Necessários para criar a tessitura das belas
vidas de seus senhores... Indispensáveis e invisíveis. E entre os es‑
cravos e seus amos havia um oceano que não poderia jamais ser
cruzado. O rancor pela sua situação, mesmo que fosse uma criada
livre, ardeu como uma ferroada em seu coração e a antiga cólera
cresceu como chamas dentro de seu peito. Se ela tivesse aquela for‑
tuna e usasse aquele sobrenome, teria marchado abertamente para
a sala de visitas e se regozijaria com a expressão de espanto no rosto
de Barnabas quando ele a visse.
— Quanto mais tempo se irá passar antes que vocês sejam força‑
dos a libertar seus escravos? — inquiriu Barnabas.
— Quem sabe? — respondeu André. — Esse rio de sangue negro
é muito fundo e se alarga nesta ilha a cada dia que passa. Há certos
momentos, meu rapaz, em que eu me desespero. A vida me parece
uma mercadoria perecível que é concluída violentamente ou que, ao
se prolongar, fica envolvida em dores...

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Lara Parker

Esta última observação escutada por Angelique pareceu­‑lhe uma


profecia lamentosa proferida por sua própria alma.

* * *

Ela permaneceu trancada em seu quarto durante quase todo o jan‑


tar, pois não tinha forças para correr o risco de avistar­‑se com Bar‑
nabas. Somente por um momento rápido ela cruzou pela porta da
sala de jantar, enquanto ia tomar sua própria refeição na cozinha.
André estava relatando a história de sua vida e sua voz se tornara
melíflua por efeito do rum.
— Meu avô era um refugiado e desembarcou em Dominica com
apenas quinze francos no bolso. Hoje, somente a minha plantação
vale cento e sessenta e sete mil francos.
— E a que o senhor deve tanto sucesso? — indagou Barnabas
educadamente, fingindo um interesse que não sentia. Ela escutou a
voz de Josette respondendo à pergunta.
— Prudência, cuidado e temperança — declarou ela, com uma
voz muito alegre. — Meu pai sempre afirmou que um bom julga‑
mento e um caráter firme são os fatores decisivos para a aquisição
de uma fortuna e não os altos e baixos do mercado do açúcar.
— Quer saber qual é o meu segredo? — acrescentou André. —
Eu nunca empresto dinheiro a esses senhores de engenho amance‑
bados que têm filhos mestiços!
Todos riram alegremente.
Mais tarde, nessa noite, quando ela estava acendendo as lâm‑
padas, uma de suas obrigações habituais, Angelique percebeu que
o óleo da lanterna do corredor estava baixo e foi buscar o com‑
bustível necessário. Ao abrir o portão para ir ao galpão que ficava
no lado de fora, ela deparou com um jovem parado na rua em
frente à mansão.
No momento em que ele a avistou, chamou­‑a roucamente:
— Angelique!
No instante seguinte, Barnabas estava a seu lado.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— É esse o seu nome, não é? Angelique — disse suavemente,


tomando­‑lhe as mãos. — Já faz mais de uma hora que estou aguar‑
dando aqui, com a vaga esperança de que você aparecesse. Suportei
aquela ceia interminável e monótona sem a ver sequer de relance,
mas você estava lá o tempo todo, escondida em algum lugar da
casa, não estava?
Ele tremia e seu rosto estava contraído, como se sentisse uma dor
física. À luz do lampião, seu rosto assumira uma coloração amare‑
lada e seus olhos jaziam ocultos em profundas sombras.
— Eu preciso conversar com você — ele cochichou. — Você
pode vir ao meu alojamento mais tarde, ainda hoje à noite?
— Não, Monsieur. Como é que pode me pedir uma coisa dessas?
— Eu não a violarei. Dou­‑lhe minha palavra de cavalheiro. Pode
ter plena confiança em mim — afirmou ansiosamente e ela viu as
gotas de suor se formando na testa dele.
— Sem dúvida, o senhor sabe que me está pedindo uma coisa
impossível. Fiquei lisonjeada com suas atenções, mas agora que o
senhor conhece a verdade a meu respeito...
— Que quer dizer com isso?
— Ora, que eu não passo de uma dama de companhia, senhor,
que não pertenço à nobreza e nem sequer tenho fortuna. Pensei que
já tivesse percebido isso em nosso encontro na praça do mercado,
ao ver o meu vestido...
— Seu vestido? — disse ele, esquecendo as precauções e rindo.
— Mas você estava linda! Você tem uma aparência tão delicada!
Deveria ser uma princesa... com seu jeito de andar, com a elegân‑
cia de seu corpo. Eu achei encantador o vestido que usava então...
Pois as élégantes de Paris não se vestem às vezes como camponesas
para se divertir?
— Eu não saberia dizer, senhor — afirmou, seu coração afun‑
dando dentro do peito. — Agora, por favor, desculpe­‑me, mas eu
tenho meus deveres a cumprir e é hora de voltar para casa.
— Angelique, por favor, não vá! Eu lhe suplico! Estive em agonia
desde a noite passada, tentando descobrir um jeito de vê­‑la novamente.

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Lara Parker

Tenho ânsia de saber mais coisas a seu respeito. Se não pode ir hoje à
noite, então amanhã. Pode me encontrar em uma taverna ou no teatro
ou até mesmo na catedral, se preferir! Não importa onde. Só me diga
que eu poderei vê­‑la de novo!
Ela hesitou e pressentiu que sua resolução estava se abalando.
— Angelique... Por favor, diga que vai me encontrar...
— Na praça, então, junto da fonte — disse ela, com um suspiro.
— Eu estarei lá amanhã à tardinha, pelas seis horas.

* * *

Ao entardecer do dia seguinte, quando ela chegou à praça, ele já a estava


esperando e ela ficou a observá­‑lo de longe por alguns momentos, antes
que ele a avistasse. Ele tinha colocado distraidamente um dos pés sobre
o meio­‑fio da calçada ao redor da fonte e olhava para o mar. Tinha dei‑
xado no alojamento a casaca de seu uniforme e usava apenas os calções
e as botas sob uma camisa branca e frouxa de algodão que complemen‑
tava suas feições finamente modeladas e seus cachos escuros.
A visão dele mexeu com seus sentimentos de uma forma tal que
ela não esperava e sentiu uma fraqueza nas pernas. A luz que ainda
caía sobre a fonte iluminava o ar ao redor dele, criando uma espécie
de aura por trás de sua cabeça, como se a água fluindo de uma con‑
cha erguida pela mão do próprio Dioniso estivesse sendo derrama‑
da sobre folhas de acanto.
Quando ele a avistou, endireitou­‑se ansiosamente, seu rosto ace‑
so de prazer e seus olhos acariciando seus movimentos enquanto
ela se aproximava. Ela tinha a impressão de estar flutuando sobre o
chão. Ele avançou e tomou­‑lhe ambas as mãos e ela tremeu ante a
intensidade de seu olhar. As pessoas não olham umas para as outras
dessa maneira, pensou. Vivem juntas durante anos e praticamente
não se veem. Mas este olhar era íntimo e desconfortável demais,
difícil de sustentar com seus próprios olhos. Contudo, ela sentia
que, caso afastasse as vistas, esta sensação de que o tempo havia
parado se perderia para sempre.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Vamos dar um passeio juntos — disse ele, gentilmente. — A


noite está tão linda. Segurou­‑lhe a mão e colocou­‑a ao redor de seu
braço. Caminharam sem falar durante um quarto de hora, percor‑
rendo a avenida larga e arborizada. Depois ele a levou por uma tra‑
vessa em direção ao cais. Ele era grande, muito mais alto que ela e
seus passos mais largos também. De vez em quando ela precisava
dar uns passinhos rápidos para poder acompanhá­‑lo.
Os dois pararam e ficaram olhando para o mar, sobre o qual já
nascera a lua, provocando um risco de luar refletido sobre as ondas.
Sentaram em um murinho de pedra que cercava o largo do atraca‑
douro. O ar estava fragrante com o aroma de madressilvas e plumé‑
rias e os sapinhos coquis coaxavam no mesmo ritmo de uma banda
cigana que tocava diante do teatro. Barnabas segurava­‑lhe o braço
firmemente, como se temesse que ela novamente lhe fugisse através
da noite e lhe falava com voz profunda e sonora, com um leve toque
de rouquidão que dava a suas palavras um caráter de segredos ocultos
a sete chaves e que ninguém mencionara por longo tempo.
Ele lhe contou sua vida como filho de um armador de navios no
estado do Maine, sua matrícula e estada no internato de uma esco‑
la particular na Inglaterra e sobre a casa em que morava em Collins‑
port, uma pequena cidade que levava o nome de sua família. Falou
dos anos que passara viajando no mar, suas longas escapadas e até
mesmo lhe relatou uma história longa e fascinante de como fora
capturado por bucaneiros. Ela escutou com o coração transbordan‑
do, mas não falou nada. Este enfrentamento com a morte o havia
modificado muito, afirmou ele. A experiência o transformara e
constituíra dentro dele qualquer caráter moral que hoje possuísse.
Ele praticamente derramou sua vida inteira em seu colo, con‑
fidências que ela nunca esperara ouvir, de como se envergonhava
profundamente por sua família possuir e traficar com escravos
ou sobre o fato de que sempre se sentira afastado de seu pai, ne‑
nhum dos dois jamais demonstrando aprovação pelo outro.
Revelou­‑lhe sua solidão desesperada, seu distanciamento de seus
camaradas. Contou­‑lhe que fora temerário e desafiador durante

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Lara Parker

toda a juventude, não porque gostasse de contar vantagem, mas


num esforço para se furtar a uma aversão furiosa por tudo que
constituía seu próprio mundo.
Ela compartilhou sua vida com ele também, pelo menos as par‑
tes que lhe podia revelar, sua infância à beira­‑mar, o laço estreito
que sentia com o oceano. Falou­‑lhe do pequeno convento em que as
freiras a haviam ensinado a ler, sua camaradagem com Josette, seu
aprendizado com os tutores pagos para ensinar sua jovem ama,
cujas aulas devia acompanhar a fim de entusiasmá­‑la e seu árduo
aprendizado como criada de uma condessa parisiense. Divertiu­‑o
com seus conhecimentos sobre a mecânica intrincada da produção
de açúcar na plantação dos du Prés, sendo capaz de relatar de forma
humorística, até mesmo ridícula, as dificuldades por que passava
seu patrão em sua plantação de cana­‑de­‑açúcar. Falou de seu amor
por Shakespeare e outros poetas ingleses que lera e lhe contou em
caráter de confidência que sempre mantivera um diário no qual re‑
gistrava todos os seus pensamentos e lembranças. Ele bebia cada
palavra que brotava de seus lábios, fazia comentários generosos e a
encorajava a prosseguir. Mas o tempo todo parecia a vítima de um
torvelinho interior, uma espécie de intoxicação que reprimia com
tremendo esforço.
Eles caminharam por mais de uma hora até que ele parou em
frente de uma mansão elegante. Havia uma aranha, como chama‑
vam a um tipo de charrete pequena, estacionada em frente e um
cavalariço estava parado à porta, o cavalo amarrado a uma argola
embutida no pavimento.
— É aqui que alugo meus aposentos particulares — disse ele. —
E já mandei preparar o jantar.
Seu primeiro pensamento foi o de que ele mandaria a charrete
levá­‑la em casa e ficaria ali. Ela concordou com a cabeça e se virou
para a aranha, mas ele segurou­‑lhe a mão e fez com que ela parasse.
— Por favor, dê­‑me a honra de jantar comigo — pediu, seus
olhos tão negros e seu tom de voz tão lastimosamente ansioso, que
ela ficou confusa.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

A luz de velas lhe acenava de um apartamento lindamente mobi‑


liado e revestido de tapeçarias de veludo sobre lambris de carvalho.
Ela avistou uma toalha branca, o brilho da prataria e a porcelana
translúcida. Com uma solicitude hesitante, ele a conduziu até a
mesa. Ela estava agudamente consciente da sua alegria por sua pre‑
sença em seus aposentos e se esqueceu de tudo o mais no abraço
fácil do refinamento. Parecia­‑lhe que ela sempre soubera que esse
poderia ser o seu tipo de vida. Luxos com os quais ela apenas so‑
nhara eram tão naturais nele quanto a areia da praia e ele a tratava
como se ela fosse sua igual em tudo.
Ela sentiu seu nervosismo e ficou surpresa quando ele lhe servia
o vinho e desajeitadamente virou sua taça com o gargalo da garrafa.
Amaldiçoando a si próprio, ele resmungou uma desculpa enquanto
o vermelho se espalhava como uma flor gigante sobre o linho bran‑
co. Cobriu a mancha rapidamente com seu próprio guardanapo e
ela percebeu, como já o fizera anteriormente, como suas mãos eram
grandes, musculosas e primitivas por baixo dos punhos franzidos
de sua camisa. Ele a olhou de esguelha, sondando se ela o achara
inadequado. Seus olhos eram muito separados, castanho­‑escuros e
luminosos sob as sobrancelhas pesadas, protegidos por cílios longos
e escondidos em órbitas fundas e sombreadas. Seu nariz era formi‑
dável, quase grande demais para um rosto cujo perfil a fazia lem‑
brar das cunhagens de moedas romanas que vira reproduzidas em
livros, dotado de caráter e de força, contudo permeado daquela
qualidade humana que sugeria que até mesmo os líderes de imensos
impérios partilhavam das preocupações de pessoas ordinárias.
Depois de acabarem de jantar e enquanto bebericavam as últi‑
mas gotas do vinho, ele se reclinou no encosto da cadeira e a ficou
contemplando. A noite estava cálida e úmida, mas em um grau
acariciante, embora o ar entre eles parecesse palpável e espesso.
Barnabas parecia superficialmente calmo, mas Angelique percebia
perfeitamente o frenesi dos sentimentos turbulentos girando em al‑
gum ponto das profundezas de sua alma, sentimentos que ele con‑
trolava com a maior dificuldade.

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Lara Parker

— Você me disse que jamais amará alguém — começou ele. —


Agora precisa me contar qual é a razão para isso...
Ela suspirou. Aquecida pelo vinho, sentindo­‑se langorosa no
conforto de seu apartamento, ela tinha a impressão de que suas di‑
ficuldades pertenciam a um passado esmaecido, enquanto no mo‑
mento presente a única coisa que ela desejava era usufruir dos
sentimentos deliciosos que fluíam em ondas através de seu corpo.
— Existe alguém mais? — indagou ele. — Outro homem em
sua vida que já a reclamou para si? Algum amante que eclipsou
todos os demais?
Ela só conseguiu sacudir a cabeça. Olhou para Barnabas. De al‑
gum modo, ela sempre percebera que podia confiar nele, mesmo
quando não passava de uma criança e ele lhe dera de presente a se‑
lenita ou quando ele lhe falara com delicadeza no tombadilho da
escuna, pensando que era apenas um menino malcheiroso. Lutou
para lhe dar uma resposta. Finalmente, explicou:
— Todas as pessoas que amei no passado foram tiradas de mim.
Existe algo dentro de mim que é perigoso, que fere os que me ro‑
deiam, algum poder obscuro que não compreendo...
— O que a leva a dizer isso? — ele pressionou.
— Foi­‑me dito uma vez... há muito tempo... pelo...
— Um adivinho?
— ... sim...
Ele a contemplou com tanta compaixão, que lhe pareceu que to‑
das as suas mágoas eram apenas sonhos amargos e que, enfim, ela
estava despertando.
— Ai, minha doce senhora... — murmurou ele, qual um trovador.
Os olhos dela se encheram de lágrimas e, por mais que tentasse
impedir, elas se avolumaram e desceram­‑lhe pelas faces. Inexplica‑
velmente, justo agora em que ela desejara tanto ser forte, estava
chorando e ele não a impedia, somente a contemplou até que ela
conseguiu encontrar novamente sua voz e disse:
— Por que você indaga isso? — falou tristemente. — Que im‑
portância tem?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Porque eu encontrei a mulher que quero amar — declarou


ele, com completa isenção de ânimo, quase com inocência. Ela não
tinha certeza de tê­‑lo escutado corretamente. — Eu soube disso no
momento em que pus meus olhos sobre você — prosseguiu. —
Soube que a desejava profundamente e desde esse momento não fui
capaz de pensar em nada mais. Apenas temo que você se esquecerá
de mim quando eu retornar para os Estados Unidos.
— Eu nunca o esquecerei. Como pode sequer sugerir uma
coisa dessas?
Inconscientemente, sua mão segurou o uangá que lhe pendia do
pescoço. As suas palavras caíam de sua boca como uma cascata.
— Preciso dizer­‑lhe que tenho a mais profunda consideração
por você. Você não é simplesmente bela, é inteligente e possui força
de caráter. E uma qualidade que poucas mulheres possuem, embora
pretendam dispor dela... mistério. Você não se parece com qualquer
outra mulher que eu tenha conhecido; existe algo dentro de você
que desperta o que há de melhor em mim; tudo o que sei é de mi‑
nha ânsia em possuí­‑la. Nada mais importa. Eu não sei como pode‑
ria ser mais honesto ao lhe descrever meus reais sentimentos.
— O que eu temo, Monsieur, é que possa lamentar suas palavras
generosas em alguma ocasião futura...
Ela se interrompeu ao ver que ele caíra de joelhos a seus pés e lhe
segurava as mãos.
— Ai, por favor, não se ajoelhe...
— E quanto a você, Angelique? — ele perguntou, beijando­‑lhe
as mãos com fervor. — Você também tem sentimentos com rela‑
ção a mim?
Sua cabeça rodopiava e não fazia a menor ideia de como lhe
poderia responder.
— Eu estou profundamente lisonjeada por sua oferta e quero
dizer “sim” ao que me indaga, com todo o meu coração, mas... eu
tenho medo... de que você tenha sido apanhado por uma tormenta
de seus próprios sentimentos... por um entusiasmo temerário, que
passará tão logo cheguem os momentos de sobriedade.

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Lara Parker

Ela viu alguma coisa dardejar de seus olhos, um rápido piscar,


como se ele tivesse escutado algo de inesperado em sua resposta.
— O que me disse? — falou Angelique baixinho, agudamente
temerosa de estar indo além do que ele desejava, de demonstrar um
atrevimento indevido. — Estou correta em presumir que isso tudo...
é uma proposta de casamento?
— Mas é claro! — ele respondeu, sem a menor hesitação. — Sim,
claro que é, minha querida, o que mais poderia ser? Eu a desejo com
todo o meu coração. Ai, meu Deus, eu a amo! Quero passar minha
vida a seu lado e não suporto a ideia de que qualquer outro a possa
ter em meu lugar!
— Mas todos os códigos da sociedade nos separam. A diferença
de nossas posições sociais poderá fazer com que você mude de ideia
com o decorrer do tempo...
— Angelique, eu tenho uma fortuna! Mais do que suficiente
para nós dois! — disse ele às pressas, quase como se ficasse irritado
com a necessidade de uma explicação.
Encarou­‑a por um momento, então se ergueu para abrir outra
garrafa de vinho. Quando falou de novo, Angelique pôde notar que
ele lutava consigo mesmo, como se estivesse lutando em uma bata‑
lha feroz sendo travada em seu interior.
— Meu pai não tem um casamento feliz — confessou final‑
mente. — Minha mãe é uma mulher excelente, mas ele não a ama.
Eu nem sei se ele é capaz de sentir amor. Portanto, infelizmente,
ela se embriaga.
— Meu... meu pai também era um ébrio. Tornava­‑se deprava‑
do e imprevisível quando estava bêbado... e agia muito cruel‑
mente comigo.
— Eu não consigo entender isso! Muitas vezes, ela já está tão
bêbada de tarde, que nem pode descer para jantar. Ela bebe porque
se sente miseravelmente solitária. E ele também o é! Meu pai reuniu
uma fortuna imensa construindo veleiros e comerciando, mas seu
coração está falido. Se os sentimentos humanos fossem moedas, ele
seria um mendigo.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Eu irei conhecê­‑lo?
— Espero que nunca seja forçada a encontrá­‑lo. Você não gos‑
taria dele.
Barnabas sentou­‑se de novo e tomou­‑lhe as mãos outra vez; pa‑
recia se sentir agora mais à vontade com seus sentimentos.
— Eu aprendi a avaliar mais as coisas sutis — prosseguiu, com
grande urgência na voz. — Jurei para mim mesmo que teria amor
em minha vida. Quero uma mulher que seja a companheira de
minha alma e creio firmemente que essa mulher é você. Caso você
me aceite, Angelique, voltarei daqui a um ano, quando entrarei
em posse de minha fortuna pessoal. Então eu a levarei para a
América do Norte comigo.
— A América do Norte! Um lugar tão distante... talvez seja segu‑
ro... Eu nem sei o que dizer.
— Então diga que sim.
Por um momento ela se sentiu transfixada, sua cabeça dando
piruetas com as emoções conflitantes que experimentava. Ele disse‑
ra que a amava, logo este homem que ela adorara a distância por
tanto tempo. Ele lhe pedira para casar­‑se com ele. Mas ele era irre‑
fletido e impetuoso e talvez não soubesse exatamente o que queria.
As velas do candelabro ressaltavam os planos e sombras de suas fa‑
ces e supercílios e seus olhos profundos a investigavam em busca de
uma resposta. O que ela poderia fazer? Seria possível que ela pudes‑
se escapar das forças cruéis que lhe controlavam a vida? Onde an‑
daria o espírito maligno que possuía sua alma? Teria se afastado
dela para sempre? Já se haviam passado tantos anos... Seria possível
que ela tivesse sido finalmente alforriada?
Recordou­‑se da aurora sobre o oceano, quando o nevoeiro mati‑
nal obscurece o horizonte e o grande abismo é cercado de brumas.
Como o mar parecia protegido e próximo a ela quando ainda en‑
volto na luz prateada do luar. Certa vez, quando estava mergulhada,
ela ficara por baixo de um imenso cardume de mães­‑d’água, aque‑
las bem redondas que chamavam de “medusas da lua”, seus corpos
transparentes flutuando acima de sua cabeça, mil discos azul­‑claros

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Lara Parker

translúcidos e perolados, navegando ao sabor das ondas, seus lon‑


gos filamentos balançando. Ela ficara encantada com sua beleza,
mas não podia mais prender a respiração e não poderia subir à su‑
perfície no meio delas por medo de se queimar em seus tentáculos
finíssimos. O que ela fizera naquele dia? Subira à superfície sem ser
ferida por elas ou fora a maré que as levara para longe?
— Diga que sim... — insistiu ele, inclinando­‑se para lhe beijar as
mãos e era como se toda a obumbração dentro da qual vivera por
tanto tempo se dividisse e saísse para os lados, permitindo à luz
brilhante do céu irradiar­‑se sobre ela. Ela estava mais assustada do
que jamais se sentira na vida, mesmo em seus piores momentos,
mas se percebia incapaz de evitar e pronunciou palavras que nunca
sonhara escutar sendo proferidas por seus lábios.
— Sim, eu irei consigo, Barnabas...
— E você me ama? Quero ouvi­‑la dizer isso!
— Sim, sim, eu o amo. Eu realmente o amo com todo o meu ser.
Eu sempre o amei e o amarei para...
Ele a ergueu em seus braços e seu beijo roubou­‑lhe todo o fôle‑
go. Seus lábios a provavam como se ela fosse inteira feita de doçu‑
ra e ele os chupava e os percorria com a língua até que sua boca se
derreteu na dele.
— Eu te quero... — sussurrou ele, sua voz rouca de excitamento
e ela percebeu que ele tremia todo enquanto a apertava contra seu
corpo e a beijava vezes sem conta.
Sua boca se moveu para seu pescoço e para o colo de sua gargan‑
ta, em que ela podia sentir o tremor de sua própria pulsação. Então
ele caiu desajeitadamente a seus pés e, colocando as mãos ao redor
de sua cintura, enterrou o rosto nas dobras de suas saias. Ela podia
sentir o calor de sua respiração através do tecido e sentiu novamen‑
te sua juventude impetuosa e a violência incontida de sua paixão.
Ele se pôs em pé. Tremendo violentamente, como se ele pudesse
espatifar­‑se com a ferocidade de seu desejo, ele lhe disse com voz rouca:
— Eu vou levá­‑la para casa agora. Prometi que não a violaria e
sou um homem de palavra.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ele caminhou até a porta, girou e estendeu­‑lhe a mão. Mas ela


permaneceu imóvel, como se estivesse no meio de um transe e, após
um momento, ele retornou para ela. Seus olhos estavam luminosos
e ela pensou que ele era tão belo como um Deus, quando ele suspi‑
rou e a tocou de leve em uma das faces.
— Venha — disse­‑lhe. — Antes que seja tarde demais.
Só haviam caminhado alguns quarteirões quando começou a
chover e as correntes subterrâneas de Saint­‑Pierre, que eram sua
música e sua vida secreta, começaram a saltar de cada vale e colina,
esvaziando­‑se nas sarjetas que percorriam as ruas calçadas.
— Talvez devêssemos voltar — disse ele, mas então, ao olhar
para ela, sacudiu a cabeça e sorriu. — Eu não posso confiar em mim
mesmo se ficarmos sozinhos de novo naquele quarto.
Então ele passou o braço sobre os ombros dela para impedir que
escorregasse e a impeliu pela calçada.
A chuva era torrencial, mas ao mesmo tempo cálida e acari‑
ciadora e seguiram caminhando até que chegou um ponto em
que não mais se incomodaram com suas roupas ensopadas. Ca‑
belos e vestimentas pingavam sem parar. Um pensamento zum‑
biu dentro de sua cabeça como o rugido de uma tromba d’água
e ela percebeu que estava prendendo a respiração, mortalmente
certa do que a aguardava. Ela deslizaria pela calçada coberta de
água e quebraria o pescoço, ou o céu se escureceria mais ainda e
um relâmpago lhe rasgaria a carne. Mas o único som era o do
martelar da chuva e a única coisa que podia ver eram alguns
metros do caminho à sua frente.
Ela começou a sentir que fora capturada por uma corrente sub‑
marina, fluindo desde as montanhas em uma jornada inexorável
até o mar. Se ela devia ser interrompida, preferia mesmo que fosse
agora, antes que seu coração estivesse totalmente perdido. Mas
onde estava ele, o Espírito Negro que a proibira de amar? Por que
não dava sinal de si? Subitamente, ela foi empolgada por um desafio
imprudente. Sim, ela o desafiaria, provocaria sua vinda. Caso ele
viesse, a quem poderia destruir? Barnabas era forte demais, estava

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Lara Parker

feliz demais. Ela ergueu os olhos para ele através das bátegas de chu‑
va e ele lhe sorriu, seus olhos rebrilhantes de sua vitalidade feroz.
Tentado por seu olhar, Barnabas parou diante do muro alto do
jardim de uma rua deserta. Sua mão a segurou pela cintura e a
puxou para si.
— Só mais um beijo... — disse­‑lhe mansamente.
Sem mais pensar nas possíveis consequências, ela se soltou con‑
tra ele em total abandono, o medo se dissolvendo em seu próprio
ácido. Ele a apertou contra as pedras do muro e ela tomou coragem
e respondeu com a mesma ânsia. Ele beijou­‑lhe a liquidez da boca,
bebendo a chuva que escorria de seus lábios. Beijou­‑a ritmicamente,
empurrando­‑se contra ela, sentindo as formas de seu corpo por
baixo da saia e das anáguas saturadas de água. Ela sentia seu cora‑
ção pulando dentro do peito, enquanto deliberadamente punha de
lado todas as precauções e lançava um repto ao Diabo, como se
soubesse que ele não se atreveria a se apresentar.
Barnabas ergueu­‑a em seus braços e a carregou por um breve
trecho até o lugar em que o muro se erguia entre o jardim e a rua.
A água pingava de seu rosto enquanto ele a esmagava contra o
peito e ela podia ouvir o trovejar de seu coração — não aquele
baixo profundo, mas um tamborilar furioso, tão brilhante e duro
quanto a chuva. O som a assustou e ela se recordou da ocasião em
que a arrebentação a varrera contra um recife e ela temera que os
corais lhe rasgassem a pele.
Lutou para se libertar, mas agora ele a apertava contra si com tal
ferocidade, que ela chegou a ter medo de que lhe quebrasse o corpo
com a força de seus braços. Ele procurou até achar uma brecha no
muro e a carregou para dentro até o jardim abrigado.
Então, como se estivesse em transe, ela descobriu que estava dei‑
tada em um degrau coberto de musgo, uma corrente de água pas‑
sando por baixo dela. Barnabas a apertava contra si, ainda a
beijar­‑lhe o rosto molhado. Percebeu que suas costas estavam nuas
contra o martelar da chuva e que seus seios escorregavam agora
diretamente contra o peito dele. Ele esticou uma das mãos por bai‑

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

xo dela, de permeio ao fluir da água, onde suas pernas estavam ago‑


ra desnudas e ela se transformou na corrente, ondulante e sinuosa
contra ele. Quando ele se moveu para dentro dela, ela sentiu como
se estivesse prendendo a respiração sob a água por milhares de anos
até que, finalmente, uma lufada de ar lhe encheu os pulmões e ela
foi de novo capaz de inspirar outra vez.
Depois, os dois caminharam para sua casa em silêncio e quando
chegaram à porta lateral, ele lhe disse simplesmente:
— Vai me encontrar amanhã de noite?
E ela respondeu:
— Sim, amanhã e amanhã e amanhã...
— Boa noite, então e que todos os teus sonhos sejam doces.
Beijou­‑a docemente e a apertou contra si por um longo momen‑
to, depois se voltou e desapareceu a caminhar pela noite adentro.
Assim que chegou a seu quarto, sem maiores incidentes, foi até a
janela e olhou para fora. A chuva havia parado e o céu estava claro
e tão profundo quanto o mar. Tremendo, mas ainda desafiante, ela
esperou e depois pronunciou uma espécie de prece:
— Poder das Trevas, você me deixou em paz por muitos anos.
Ainda se encontra aí a me observar? Está tão determinado como
sempre a controlar minha vida e meu coração?
Não escutou a menor resposta, nem o mínimo sinal de qualquer
presença. Somente as estrelas brilhantes em suas órbitas distantes
cintilaram sobre ela, frias e silenciosas.
Na noite seguinte, ela foi diretamente aos aposentos de Barnabas.
Enquanto sentia suas mãos lhe tirarem o vestido, imaginava se sequer
havia existido antes desse dia e seu corpo parecia suspenso em uma
expectativa arrebatada. Ele beijou­‑lhe as palmas das mãos que agora
adejavam sobre o rosto dele e depois seus seios doloridos, que pare‑
ciam pular em direção à sua boca. Ele acariciou­‑lhe os braços macios
até que se lhe enroscaram ao redor do pescoço e então suas mãos a
apalparam, descendo pela curva do estômago e movendo­‑se para os
lados em direção à rotundidade de seus quadris, acariciando os ossos
cobertos de carne macia e depois errando lentamente até o lado interno

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Lara Parker

de suas coxas. Seu toque irradiava ondas de prazer através dela,


uma delícia tão intensa que ela quase chorava. Seu corpo a enchia
de perplexidade, e toda a magia que aprendera até aquele instante
empalidecia perante estes novos segredos, que a penetravam tão pro‑
fundamente que chegavam até o centro de seu ser, tão vívidos e velo‑
zes, que ela perdeu toda memória de si mesma e todo desejo para
conhecer ou compreender qualquer outra força que não fosse esta: o
poder daquele amor que tudo consumia.

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Vinte e Quatro

urante três semanas encantadas os dois amantes se encontra‑


ram mais ou menos às escondidas em todos os momentos pos‑
síveis, roubando aqui e ali intervalos de privacidade: uma conversa
no mercado, uma caminhada pela praia, um encontro nos aposen‑
tos de Barnabas durante a madrugada. Frequentemente, a aurora já
despontava quando Angelique retornava à mansão dos du Prés e
penetrava silenciosamente pela porta da cozinha. Cada encontro
era tornado agridoce pelo conhecimento de que o tempo de que
dispunham voava depressa e que seu navio em breve velejaria de
volta aos Estados Unidos.
Os encontros clandestinos eram combinados aos cochichos e a
dor de não poderem revelar seu caso de amor era um impedimento
cruel. Mas os beijos nas sombras eram mais valiosos que a luz do sol
e suas entrevistas furtivas capitosas de ardor.
Uma tarde em que se haviam escondido à sombra dos destroços
de uma escuna abandonada na praia, disse Angelique:

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Lara Parker

— Eu não consigo mais suportar estes encontros às escondidas.


Mais cedo ou mais tarde, teremos de contar a todos. Não podemos
esclarecer tudo de uma vez?
Barnabas lhe respondeu:
— Eu quero proclamar o nosso amor ao mundo inteiro. Eu con‑
tarei a todos sobre você assim que retornar. Você tem de confiar em
mim. Assim que minha herança estiver legalmente garantida e meu
pai não puder me deserdar ou interditar o que recebi de meus avós,
estaremos livres para nos amarmos abertamente.
— Sua fortuna não é importante para mim. É a você que eu amo.
— Querida, você quer que vivamos na miséria?
— Você vai me escrever?
Ele pensou por um momento.
— Como espera que eu faça isso? Uma carta entregue à casa em
que você mora será certamente aberta por Madame du Prés, mesmo
que endereçada em seu nome.
— E como eu poderia lhe escrever?
— E para que endereço mandaria? Meu pai... — ele suspirou e a
apertou com firmeza entre os braços. — Minha querida, o tempo
passará depressa e então eu retornarei. Não vamos nos preocupar
com coisas triviais. Você vai me esquecer?
— Nunca!
— E eu jamais a esquecerei.
Na manhã seguinte, quando a escuna de Barnabas levantou âncora,
o porto estava amortalhado de neblina. A escuna flutuou como um
navio fantasma entre o nevoeiro rodopiante que cobria o mar. Enquan‑
to Angelique contemplava do cais, ela pensava que o navio parecia um
quadro, suas velas brancas contra o fundo mais claro da névoa, suas
formas arredondadas como conchas descoloridas pelo sal e pelo sol, à
medida em que elas se afastavam para dentro do nevoeiro do nada.

* * *

Josette e Angelique prosseguiram em suas vidas como boas compa‑


nheiras, mas a cada estação, um abismo cada vez mais largo se abria

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

entre elas. A vida de Josette agora incluía visitas a outros canaviais


junto com a condessa, algumas vezes por semanas a fio, enquanto a
parisiense expatriada que se aborrecia tão facilmente buscava estí‑
mulos e distrações para aquilo que ela referia pela expressão: “Esta
ilha coberta por uma jângal infernal e superlotada de almas infelizes”.
Josette era convidada para chazinhos e bailes em Saint­‑Pierre e en‑
controu um grupo de jovenzinhas ricas, que pertenciam aproxima‑
damente a seu nível social. Nos intervalos, Angelique era solicitada
muito mais do que antes para atender às necessidades das duas pa‑
troas e ela experimentava uma dificuldade cada vez maior em exe‑
cutar suas tarefas de criada, sabendo que em breve ela receberia
uma fortuna por meio do casamento. O tempo passava lentamente
para ela e tudo era saudade e melancolia.
De maneira semelhante, Josette parecia cada vez mais concen‑
trada em si mesma. Ela passava horas sozinha, tocando seu novo
piano e cantando canções de amor doces e lamentosas, desenhando
em sua prancheta ou escrevendo longas cartas para suas amigas que
estivessem viajando pelo estrangeiro. Estas cartas pareciam ocupar
uma porção cada vez maior de seu tempo e ela começou a ir a pé até
o centro ou, caso estivessem em Trinité, a percorrer a longa exten‑
são da avenida cercada por árvores que pareciam uma colunata
para buscar sua correspondência. Angelique ansiava para enviar
uma carta sua a Barnabas embora soubesse que isso não era possí‑
vel e desejava extremadamente que alguma carta dele de algum
modo chegasse a suas mãos.
Frequentemente, as cartas de Josette eram o assunto de uma
intensa conversação com a condessa, que se tornara sua confiden‑
te, à medida que a jovem ainda em desenvolvimento buscava o
conselho e a experiência de uma dama da alta sociedade. Às ve‑
zes, Angelique escutava de passagem trechos de conversa prove‑
nientes das portas fechadas do boudoir, como a condessa chamava
sua saleta particular.
— Você deve manter sua reserva, Josette, e não parecer gostar
demais dele. Lembre­‑se de que os homens amam as caçadas. Não
responda imediatamente, mas espere durante uma semana ou duas,

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Lara Parker

então alegue várias ocupações e responsabilidades familiares que


sugiram diversões. Conte­‑lhe a respeito de uma viagem excitante
ou de eventos sociais importantes, de tal modo que ele acredite que
você se mantém ocupada demais para pensar nele. É melhor fazer
com que ele apenas imagine os seus sentimentos. Mas sempre o re‑
corde do prazer que sentiu por ter recebido a carta dele — de al‑
guém que você admira muito profundamente —, caso contrário,
ele poderá perder o interesse e se escapar...
Ficou óbvio para Angelique que Josette tinha um pretendente
especial, mas nesse ponto ela nunca se abria com ela e Angelique
não podia evitar imaginar qual dos rapazes que vinham visitar a
residência dos du Prés era o feliz cavalheiro. Um senhor de engenho
de Lamartine tinha um filho jovem e robusto que frequentemente
se assentava na sala de visitas com o chapéu nas mãos e que parecia
tão aparvalhado pela beleza de Josette, que mal conseguia pronun‑
ciar uma palavra, mas simplesmente ficava ali parado, assistindo
enquanto ela tocava o piano, com uma dor aguada parecendo bro‑
tar de seus olhos.
Um jovem proprietário abastado parecia ser o favorito de Mon‑
sieur du Prés, já que os dois conversavam durante horas quando ele
vinha fazer uma visita, enquanto Josette esperava pacientemente na
sala de visitas pelo final da conversa. André adorava profundamen‑
te dar conselhos sobre negócios ao jovem empresário empreende‑
dor que parecia predestinado a ganhar uma fortuna com o açúcar.
Havia vários cavalheiros que o pai dela não aprovava, mas ele
mordia a língua e nunca repreendia ou pressionava a filha, pois ele
parecia confiar nela implicitamente. Muitas vezes, Angelique
imaginava como teria sido possuir um pai tão afetuoso, que lhe
atendesse a todos os caprichos. Ela invejava o pai de Josette tanto
quanto a invejava de todas as outras formas.
Um jovem oficial diabolicamente belo frequentemente se encon‑
trava com Josette do lado de fora da porta lateral da casa em Saint­
‑Pierre e algumas vezes Angelique podia escutar as risadas
descontroladas de Josette provocadas pelas observações feitas por

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

ele. Certa ocasião, ela o surpreendeu quando ele se inclinava sobre


Josette para cochichar alguma coisa bem baixinho, sua mão apoia‑
da contra a parede, quase como se a estivesse prendendo sob seu
braço e ela sentiu uma ferroada de inveja ao se recordar da mesma
casaca escarlate do uniforme e dos beijos famintos de Barnabas.
Mas eram as cartas que chegavam do estrangeiro que pareciam
tornar Josette delirantemente feliz e ela as mantinha atadas com
uma fita azul e escondidas em um compartimento chaveado de sua
escrivaninha. Quem poderia ser esse pretendente? Saint­‑Pierre es‑
tava sempre apinhada de comerciantes, mercadores e oficiais da Eu‑
ropa e da América do Norte e muitos deles vinham cortejar a jovem
herdeira du Prés. Quando menos, era a riqueza de seu pai que a
tornava um magneto, um ímã que atraía constantemente tanto os
cavalheiros legítimos como os caçadores de dotes. Finalmente, An‑
gelique decidiu que o jovem oficial diabolicamente belo deveria ser
o favorito, já que suas atenções eram tão bem recebidas.
Um dia, Josette foi encontrar a carruagem do correio e o posti‑
lhão lhe entregou uma carta que a deixou extasiada. Ela correu de
volta rua abaixo até sua casa, as madeixas de seus cabelos escuros se
enroscando umas nas outras, a saia e as anáguas balançando ao
redor de seus tornozelos. Ela correu escadas acima e se escondeu em
seu quarto durante todo o resto da tarde. Naquela noite, as portas
da sala de visitas ficaram cerradas para ocultar uma conversa longa
e séria entre a jovem e seu pai e Josette emergiu da entrevista com
um sorriso beatífico no rosto.
Na manhã seguinte, Josette chamou Angelique a seu quarto e,
após abraçá­‑la pela primeira vez em meses, contou­‑lhe efusivamente:
— Ah, Angelique, eu estou tão feliz! Estou noiva!
— Ai, Mademoiselle...
— Recebi uma proposta de casamento que me tornou maravi‑
lhosamente feliz! Ontem à noite, Papai me deu seu consentimento e
eu queria lhe contar primeiro, antes que ficasse sabendo por qual‑
quer outra pessoa. Estou tão apaixonada, que acho que meu cora‑
ção vai explodir!

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Lara Parker

— E quem é o feliz cavalheiro? — indagou Angelique, menos


curiosa que por cortesia.
— Ah, não posso lhe dizer por enquanto: ainda é segredo. Papai
e o pai dele devem trocar seus consentimentos, fazer os arranjos
sobre o dote, essas coisas todas, porque ele é um homem de grande
riqueza e possui uma enorme mansão na Nova Inglaterra, Angeli‑
que! Eu vou ser a senhora de uma imensa propriedade!
— Na América do Norte?
— Sim! Eu vou viajar em breve para a América do Norte, mas
será só por algum tempo, porque nós vamos morar um pouco lá e
um pouco aqui e minha mais cara esperança é a de que você me
acompanhe nessa viagem. Eu não sei o que poderia fazer sem você!
Angelique sentia as costumeiras pontinhas de inveja que faziam
parte de todas as suas conversas com Josette, mas ela ao mesmo
tempo se divertia internamente com a coincidência delirantemente
irônica de que as duas poder­‑se­‑iam tornar vizinhas algum dia.
— Estou tão feliz por você, Mademoiselle — declarou, sem malí‑
cia. — Você merece toda a felicidade...
— Você quer vir comigo ao centro hoje para procurar tecidos?
Josette tinha o hábito encantador de se inclinar em direção aos
interlocutores quando conversava com eles e colocar­‑lhes uma das
mãos no braço a fim de garantir sua atenção. Ela segurou o braço
esquerdo de Angelique e falou com uma voz muito séria:
— A condessa insiste que meu vestido de casamento deveria ser
encomendado em Paris, mas os famosos costureiros de lá deixaram
de ser absolutamente confiáveis desde que se iniciou aquilo que Pa‑
pai chama de Reino do Terror. E eu soube que existe renda da Bél‑
gica em Martinica! Não seria a coisa mais linda? Por favor, diga que
virá comigo!
Assim, na tarde seguinte, André foi caçar as cabras montesas
pelo mato rasteiro das encostas da ilha juntamente com alguns de
seus colegas senhores de engenho e Angelique e Josette entraram na
pequena “aranha” e rodaram até o centro de Saint­‑Pierre até a ofi‑
cina de uma costureira que estava em voga. A mulher era mulata

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

clara e extremamente solícita, tirou todas as medidas de Josette


para seu vestido de casamento e depois abriu diante dela metros e
mais metros de peças de tecidos finíssimos para que Josette esco‑
lhesse. Ela demorou bastante tempo para se decidir, considerando
cada peça antes de finalmente se resolver por uma seda cor­‑de­
‑creme que fora importada do Oriente. Estivera guardada no esto‑
que durante uma década, devido a seu alto preço, desde que um
exótico navio mercante proveniente da Índia fizera uma escala em
Saint Thomas e custava a bagatela de sessenta livres o metro.
Na semana seguinte, Josette foi fazer a primeira prova. O bri‑
lho do vestido tinha o lustro das pérolas e favorecia tanto a com‑
pleição de marfim de Josette, que ela ficou parecida com um
bibelô de porcelana.
Angelique armazenou em sua mente cada detalhe dos preparati‑
vos de Josette, pensando que em breve chegaria o dia em que ela
participaria de uma delícia semelhante. Muito antes do que ela es‑
perava, o ano já findara, aquele ano longo e agonizante desde que
Barnabas havia partido e todas as manhãs ela acordava pensando
no dia em que ele retornaria para torná­‑la sua noiva oficial. En‑
quanto cumpria suas tarefas domésticas ou caminhava pela horta,
sua esperança a mantinha viva por meio de uma antecipação ansio‑
sa, sentia­‑se sempre perdida em um devaneio delicioso, lembrando
as horas que haviam gozado juntos e imaginando sua felicidade fu‑
tura. Frequentemente ela pensava no ateliê da costureira e fantasia‑
va ir até lá para comprar o tecido para seu próprio vestido de
casamento, um tafetá azul aguado, pálido como gelo, da cor da peça
que ela avistara na prateleira de cima do depósito. E dizia a si mes‑
ma que o corpete teria pérolas verdadeiras.
Uma tarde, quando já pensava não conseguir mais suportar a
espera, ela passou pela porta do ateliê da costureira ao retornar do
mercado, um dia em que fora até lá a pé. Ela decidiu mandar fazer
outro vestido para usar quando Barnabas retornasse.
Daquele dia em diante, ela economizou cada centavo de seu ma‑
gro salário e conservava as moedas cuidadosamente escondidas em

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Lara Parker

uma bolsinha bem guardada. Seria como o vestido de uma dama de


qualidade, feito exatamente sob medida e executado com elegância
e estilo, o primeiro dos muitos que algum dia ela veria pendurados
em seu guarda­‑roupa.
No dia em que ela foi escolher o pano, Angelique permitiu ré‑
dea solta à sua imaginação enquanto seus olhos saboreavam as
cores vibrantes das sedas e tafetás nas peças dobradas sobre as
prateleiras do ateliê. Enquanto seus dedos acariciavam os estofos
luxuosos à mostra, ela se perdeu entre as nuances lindas e recor‑
dou os tons de vermelhão e lima dos corais nos recifes em que
costumava nadar quando criança. Escolheu um pano de cetim da
cor do ouro mais pálido, que escorrera como metal líquido contra
sua mão quando o erguera.
Enquanto o tecido de musselina era cortado e preso a seu corpo
com alinhavos, a costureira girava e se remexia a seu redor, sua
boca cheia de alfinetes, empurrando e ajeitando os pedaços de
pano no lugar, murmurando comentários a respeito do formato
gracioso do corpo de Angelique, ao mesmo tempo lhe garantindo
que o vestido seria um acréscimo encantador a seu guarda­‑roupa.
A prova foi um prazer inesperado, porque a costureira era ao mes‑
mo tempo habilidosa e delicada e Angelique sentia­‑se deliciada
por estar em pé diante da vitrine do ateliê, através da qual os tran‑
seuntes podiam vê­‑la sendo tratada com toda a cortesia demons‑
trada a um cliente respeitado.
Ela recordava os anos em que Thaïs a vestira como uma pequena
deusa e prendia flores à sua saia com alfinetes de segurança, quando
notou a passagem de um jovem negro que descia pela calçada e a
seguir dobrou para a praça. Alguma coisa em seu passo e em seu
porte lhe eram familiares e Angelique se aproximou mais da vitrine
para ver se era alguém que conhecesse. Teve certeza então de
reconhecê­‑lo. Correu até a porta da loja e chamou:
— Césaire!
O jovem se virou ao ser chamado e ela soube que não se enganara.
Era seu velho amigo. Quando ele a viu, a princípio uma expressão

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

de surpresa lhe perpassou o rosto, então a confusão desapareceu


quando ele viu quem era e um sorriso amplo se lhe espalhou pelas
faces enquanto ele se virara para caminhar em sua direção, seus
olhos reluzindo.
— Angelique, guria, é tu mesmo? Como tu cresceu!
— Césaire! Sim! Como vai? Meu Deus, nunca pensei que o veria
outra vez!
Ela queria abraçá­‑lo, mas aquele monte de alfinetes não o permi‑
tiria e foi até bom, porque uma jovem branca jamais poderia abra‑
çar um homem negro nas ruas de Martinica.
— Mas o que é que tu tá fazendo aqui, guria? E que troço todo é
esse? Está vestida de lona de vela presa com alfinetes?
— Estou tirando as medidas para um vestido que mandei fazer,
seu bobo! Ai, Césaire, faz anos não vejo você!
— Eu fui ver o mundo, guria, atravessei os mares entre ele.
— E você retornou à África?
— Fui à África, sim, depois fui à Venezuela e à Filadélfia! Eu
paro em Guadalupe quando não estou a bordo, porque a escravidão
já foi abolida nessa ilha. Não é como aqui, em que os bacrás olham
através do cara como se ele não existisse, quando tem a pele preta.
Em Guadalupe, os brancos têm medo da guilhotina!
Angelique pôde perceber perfeitamente que Césaire se transfor‑
mara em um homem orgulhoso, sua pele da cor de mogno enverni‑
zado e olhos afogueados. Ele devia estar pensando em quanto ela
mudara também, porque lhe disse:
— Tu virou uma linda mulher também, dá pra ver. Já ficou rica
e pode mandar fazer tuas roupas. Não é mais dama de companhia
em Trinité?
Ela baixou os olhos, imaginando porque estava envergonhada
em dizer que ainda era, mas ergueu o queixo orgulhosamente no
momento seguinte e afirmou:
— Ainda sou, Césaire, ainda trabalho para as pessoas com quem
você me deixou, a família du Prés, só que agora é aqui, na cidade...
— Bem, então para que esse vestido todo emperiquitado?

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Lara Parker

— Ah, Césaire, minha sorte está a ponto de melhorar...


Ele sorriu e virou o rosto de lado para fitá­‑la nos olhos.
— Sim, vejo claramente agora. Tu tá apaixonada! Tô certo ou não?
— Como adivinhou?
— Dá pra ver pelo jeito dos teus olho. Que é que tu tá pensan‑
do? Já tive uma porção de garotas bonitas e quando elas gostava
de mim era esse o brilho nos olho delas. Bem então, quem é o
feliz mortal?
— Ai, você nem vai acreditar quando eu lhe contar... Ele estava
naquela escuna em que navegamos para Hispaniola — o oficial cuja
vida salvamos — você lembra dele?
— É claro... Era um cavalheiro de posses.
— Um belo cavalheiro que mora no Maine. Rico e membro de
uma família poderosa.
O rosto de Césaire se ensombreceu.
— E o que é que tu tá fazendo, apaixonada por um cavalheiro rico?
— Ele me pediu em casamento, Césaire! E logo, logo em seguida
ele vai retornar para Martinica e me levar com ele!
— Mas isso é um sonho, Angelique. E tu vai te dar mal se tu não
desistir dele. Um barquinho de pesca aqui das ilhas nunca alcança
um navio mercante de alto bordo, por mais favorável que sopre o
vento na popa dele...
— Não estou sonhando, Césaire.
Ele hesitou um momento e depois disse:
— Só espero que tu seja feliz, guria. Nunca vou me esquecer do
soldadinho que pulou dentro do meu carroção. Nunca conheci
nem antes nem despois ninguém tão corajosa como tu. Não quero
te ver de coração partido.
Deu um suspiro e olhou por cima do ombro.
— Meu barco sai com a maré baixa. Só vim pra praia buscar
estas coisa que eles fabrica na forja daqui — explicou­‑lhe, mostran‑
do um punhado de argolas de ferro.
— Você vai voltar? Vai voltar e me fazer uma visita quando
estiver aqui?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Primeiro eu vou pra França, Angelique, vou trabalhar num


estaleiro em Marselha. Vão passar muitos ano antes que eu possa
voltar pra ti vê. Te cuida bem e procura ser esperta!
— Talvez eu possa vê­‑lo no Maine...
— No Maine, então! — concordou ele e foi embora.
Ao ver Césaire partir, Angelique sentiu­‑se mais solitária do que
nunca, especialmente agora que Josette havia recebido a feliz notí‑
cia de que seu noivo estava velejando desde a América do Norte
para lhe fazer uma visita. Uma estada prolongada com suas amigas
favoritas no canavial de Trois Islets a mantivera ocupada por mais
de um mês, mas agora que a data se aproximava da chegada de seu
cavalheiro, ela retornara a fim de tomar as providências necessárias
para recebê­‑lo adequadamente em sua casa.
Fizeram pastéis e bolos na cozinha, as toalhas de linho foram
todas passadas a ferro, a prataria polida e um porco estava sendo
engordado em um cercado junto ao galpão dos fundos. A condessa
insistira em alimentar um ganso à força com um funil, preso num
engradado para engordar bem, para depois fazer patê do seu fígado,
embora ela se queixasse de que os gansos de Martinica eram infe‑
riores aos da França. Compraram grande quantidade de siris que
eram mantidos em baldes de água salgada, enquanto ocra e outras
ervas doces eram colhidas no jardim e até mesmo uma tartaruga foi
mantida em um tanque, para depois fazerem dela uma sopa sabo‑
rosa. Angelique foi igualmente envolvida em toda aquela excitação,
porque estava agora extremamente curiosa em conhecer a identida‑
de do pretendente de Josette e sua própria ansiedade era aliviada
pelo delírio infeccioso de sua jovem ama.
Na tarde em que o jovem cavalheiro deveria chegar, Josette foi in‑
capaz de sair de seu quarto até que Angelique tivesse penteado seus
cabelos castanhos com perfeição, prendido o colar de granadas e pé‑
rolas ao redor de seu pescoço e avermelhado seus lábios com suco de
beterraba moída. Enquanto Angelique prendia os colchetes nas cos‑
tas do vestido de organdi de Josette, a jovem quase desmaiou de exci‑
tação e Angelique foi obrigada a segurá­‑la para mantê­‑la em pé.

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Lara Parker

— Angelique, eu estou tão enamorada! Acho que vou desmaiar!


— A senhora está linda, mademoiselle. Vai conquistar­‑lhe o coração...
— Sim, sim! Eu tenho de ficar linda, o mais linda que puder,
porque nem sei se ele vai se lembrar do meu rosto!
— Mas como pode dizer uma coisa dessas? É claro que ele
vai lembrar!
— Mas pode ser que ele tenha esquecido! — disse Josette, depois
que finalmente se controlou, respirou fundo e marchou em direção
à porta. — Sabe por quê? É que nós trocamos muitas cartas — ele é
um poeta, suas cartas são tão lindas! — Mas eu só o encontrei uma
vez e já faz mais de ano! Estou tão assustada!
Antes que Angelique pudesse responder a esta confissão espanto‑
sa, Josette já correra porta afora, contivera o passo e estava descendo
dignamente a escadaria até o vestíbulo. Angelique foi atrás dela e se
debruçou na balaustrada, olhando para baixo e viu que André espe‑
rava com um homem alto e jovem, usando um casaco de veludo cor­
‑de­‑anil e um colete de brocado, seu físico bem constituído e seus
cabelos escuros cortados rentes. Foi apresentado a Josette, que lhe fez
uma bela curvatura e ele se inclinou para lhe beijar a mão. Os mur‑
múrios de suas vozes subiram até Angelique enquanto trocavam pa‑
lavras de cortesia e André os conduzia para a sala de visitas.
Quando o jovem cavalheiro seguiu Josette, ele se voltou e olhou
para a escadaria, no alto da qual Angelique aguardava. Seus olhos
eram escuros e penetrantes e a fitaram do fundo de órbitas fundas
e negras. Nesse instante, seu coração subiu­‑lhe à garganta. Sentiu
como se tivesse levado um golpe na boca do estômago e todo o ar
tivesse sido expulso violentamente de seus pulmões. Mas isso não
podia ser verdade! O noivo de Josette era justamente o seu amante
por quem ela havia esperado tanto tempo... era Barnabas Collins!

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Vinte e Cinco

assaram­‑se vários dias e Angelique permanecia atormentada.


Barnabas chegava todas as manhãs e ele e Josette saíam para
passear em uma carruagem pequena. Com base nas descrições ex‑
tasiadas de Josette, Angelique ficou sabendo que tinham ido visi‑
tar suas amigas em Trois Islets e em Fort Royal, em que suas
famílias abastadas possuíam pequenos canaviais. Aquela área era
mais refinada do que Saint­‑Pierre e rapidamente se tornara o cen‑
tro da alta sociedade local.
Ela perpassava suas lembranças, tentando entender o que pode‑
ria ter acontecido, incapaz de suportar a enormidade de seu desa‑
pontamento. Mas como ele parara de amá­‑la? Não lhe parecia
possível. Por que ele a abandonara e escolhera Josette? A dor de sua
rejeição progressivamente se tornava maior do que ela podia supor‑
tar e, embora se controlasse durante os dias, cada noite ela escapava
para seu quartinho e chorava desconsoladamente, recebendo o flu‑
xo das lágrimas como um alívio para seus espasmos viscerais de
ressentimento e de ciúmes.

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Lara Parker

Enquanto o tempo passava, ela fortaleceu a determinação de vê­‑lo


novamente, falar com ele e fitá­‑lo diretamente nos olhos. Ela o confron‑
taria, forçá­‑lo­‑ia a admitir o que havia feito, que ele apenas a pedira em
casamento para poder fazer amor com ela, que ele a havia seduzido e
depois a abandonara. Finalmente, ela escutaria a verdade dos próprios
lábios dele. Agora era a cólera que crescia dentro dela como uma onda
montante até que lhe encheu o coração completamente.
Ela escutou Josette dizer a seu pai o nome da hospedaria em que
Barnabas estava parando e despachou­‑lhe uma missiva curta em
que lhe requeria uma entrevista. Esperou vários dias sem receber
resposta, indo buscar a correspondência na carruagem de posta to‑
das as tardes, com uma expectativa que lhe cortava o coração. Mas
nunca havia nada para ela. Cada dia só lhe trazia uma ansiedade
maior e uma agonia que lhe dominava a mente, provocada por um
espanto e incompreensão tais que quase a levavam à loucura. E
quando outro dia se passou sem que lhe viesse qualquer resposta,
ela decidiu que nessa mesma noite ela se avistaria com ele, mesmo
sem ter sido convidada.
Abrindo a gaveta de seu guarda­‑roupa, ela retirou o vestido de
cetim dourado que lhe custara tanto e o colocou nas costas de uma
cadeira. Entre as coisas que Josette lhe tinha dado, encontrou algu‑
mas joias de pouco valor, um corselete e anáguas, sandálias de ce‑
tim e um xale. Arranjou seus cabelos do mesmo modo que tantas
vezes penteara Josette, em pequenos cachos aprumados sobre o
alto da cabeça e colocou um par de brincos com pequenas opalas
e diamantes nas orelhas. Ao se contemplar no espelho, seus olhos
estavam de um anil cintilante de que saíam fagulhas de fogo.
Convenceu­‑se de que sua aparência era a de uma dama de qualida‑
de, com cintura delicada, um busto encantador, sua massa de ma‑
deixas douradas e olhos que se tornavam ainda mais vivos quando
os brilhantes em suas orelhas captavam a luz. Por um momento, o
rancor que tempestuava em seu coração se apaziguou e ela teve cer‑
teza de ser capaz de reconquistá­‑lo. Como ele não poderia mais
amá­‑la do mesmo modo que ela o amava?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

O vestido era sedoso contra sua pele quando ela saiu pela porta
do quartinho com uma vela na mão e desceu as escadas silenciosa‑
mente. Já passava das onze horas e a casa estava escura e tranquila
quando ela chegou ao vestíbulo enegrecido pela noite. Tropeçou em
uma pilha de casacos e botas que fora amontoada junto à porta.
Sem dúvida, André participara aquele dia de alguma expedição de
caça pelas redondezas com alguns dos senhores de engenho seus
amigos. Parou ao notar o estojo de couro que continha suas pisto‑
las. Hesitando, ajoelhou­‑se, prendeu a vela no chão com uma gota
de cera e abriu a valise.
As duas pistolas jaziam sobre um fundo de veludo, coronha con‑
tra cano, encaixadas uma contra a outra como dois amantes. Inca‑
paz de resistir, ela segurou uma das armas e sustentou­‑a na palma
da mão. Era pesada e fria e o cano refletiu o brilho da vela. A bala
ainda estava na câmara. Num impulso, ela prendeu a pistola sob seu
xale e abriu a porta para a rua.
A noite estava embalsamada, o ar espesso e cálido e uma brisa
gentil abanava as longas frondes das palmeiras. Passando a fonte
em que a água ainda fluía do cálice de Dioniso, ela pensou em sua
primeira noite com Barnabas e seu coração se endureceu de raiva
outra vez. Se não conseguisse nada mais, ela pelo menos teria uma
satisfação. Encontrou a hospedaria e suportou o olhar salafrário do
porteiro, que apontou para a porta do quarto de Barnabas. Então,
prendendo a respiração, ela caminhou até a porta e bateu de leve.
— Sim? — sua voz revelava irritação com o visitante inesperado.
A porta se abriu e ali estava ele, seu rosto inclinado em sua dire‑
ção. Usava um chambre de seda e por sobre a gola ela avistou os
músculos de seu peito, cobertos de pelos negros. Ela já esquecera de
como ele era alto e de como seus ombros eram maciços. Seus olhos
se arregalaram de espanto quando a viu parada junto à porta.
— Angelique!
— Sim... Barnabas. Você pensou que eu não viria, no final
das contas?
Ele tentou esconder seu embaraço.

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Lara Parker

— Que surpresa mais agradável!


Ela estaria detectando aborrecimento ao redor de sua saudação?
Não tinha certeza.
— Eu tinha de vir vê­‑lo. Esperei por tanto tempo pelo seu retor‑
no a Martinica — que voltasse para mim — e agora...
— Eu... eu sei... Eu sei — disse ele, tropeçando nas palavras. Ela
percebeu que ele estivera bebendo. — Lamento tanto, minha queri‑
da. Pretendia me avistar com você assim que me fosse possível...
— Você recebeu minha carta?
De repente, ela se tornou muito cônscia do peso da pistola escon‑
dida em seu xale, que ela segurava firmemente com as duas mãos.
— Sim, sim... Eu tinha toda a intenção de respondê­‑la... Mas...
tem sido muito difícil para mim... Josette é...
— Você está noivo de Josette? É verdade mesmo?
— Por favor, entre — disse ele, gentilmente, parecendo notar pela
primeira vez que ela estava parada do lado de fora. Tomou­‑a pelo bra‑
ço, conduzia­‑a para dentro e fechou a porta sem fazer barulho. O seu
toque provocou um calor que se lhe expandiu pelo corpo inteiro. Ele
respirava apressadamente e ela percebeu o tremor da mão que a segu‑
rara. Sua inquietação contribuiu para aumentar sua própria coragem.
— Deixe­‑me servir­‑lhe uma taça de vinho — disse­‑lhe com a
voz ressonante que ela recordava tão bem. — Vamos sentar juntos
aqui perto da janela, olhando para o mar, enquanto eu lhe dou uma
explicação completa.
Nesse momento preciso o bater rápido de seu coração se tran‑
quilizou. Ela podia sentir o calor do sangue na ponta de seus dedos
e seus braços e pernas ficaram permeados de vitalidade, como se
todo o seu corpo tivesse deixado de ser carne e se tornado em luz
pulsante. Caminhou até a janela, sentindo seu vestido fluir sobre o
tapete, porém não sentou. Em vez disso, ela se virou para ele, o bri‑
lho das velas em seu rosto e permaneceu em pé como uma chama
ardente, esperando que ele falasse primeiro.
Ele olhou para ela por um momento e então, para sua total
surpresa, exclamou:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Meu Deus, como você é bela!


E então ela soube que ele ainda a desejava, mesmo que isso não
significasse nada mais.
— Os seus... os seus olhos... são hipnóticos... Eu havia esquecido...
Ele repuxou a gola do chambre ao redor do pescoço para es‑
conder o peito e amarrou o cordão com mais firmeza ao redor da
cintura e então foi até o compartimento das bebidas em busca de
conhaque. Um grande espelho de moldura dourada subia da
parte de trás da cômoda e se apoiava contra a parede, refletindo
o quarto inteiro e ela ficou olhando para suas costas enquanto
ele se curvava para pegar a garrafa. Ela escutou o barulho da
garrafa de bacará batendo contra os copos, como se as mãos dele
estivessem tremendo. Foi então que ela se decidiu e tirou a pisto‑
la das dobras de seu xale.
A porta do compartimento das bebidas não fechou direito e foi
se abrindo lentamente de novo, enquanto ele tentava desajeitada‑
mente retirar a tampa de vidro da garrafa. Ao perceber que se
abrira, ele bateu a porta de novo com tanta ferocidade, que a ma‑
deira rachou. Ficou parado ali, estupefato com o que fizera, obvia‑
mente lutando para se controlar, antes de olhar para o espelho e
ver pelo reflexo que ela erguera a pistola e a apontava diretamente
em sua direção.
Girou nos calcanhares no mesmo instante:
— Meu Deus!
— Você esperava que eu permanecesse em silêncio, Barna‑
bas, para aceitar sua traição pacificamente, como uma dama
bem­‑educada?
— Por favor... minha querida... guarde isso...
— Encontrei esta pistola no estojo de André. Seu futuro sogro,
Barnabas. Muito adequado, você não acha? E vou disparar, se me
der vontade. Desta distância é impossível errar. Agora me dê uma
razão para que eu não abra um enorme buraco em seu peito traiço‑
eiro, já que o lugar em que deveria estar seu coração está mesmo
oco e vazio?

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Lara Parker

— Angelique, por favor... é perigoso... realmente, você não tem a


intenção — balbuciou ele. — Por favor, sente­‑se e... tome uma taça
de vinho...
Então, ele ergueu os olhos da arma e a encarou, com uma ex‑
pressão estranha no rosto, muito difícil de se ler, depois recuou um
passo e se encostou na cômoda. Seu rosto pareceu desabar.
— Pois muito bem, se quer atirar, atire — disse ele, contrito.
— Sei muito bem que mereço. Liberte o mundo de um patife
desprezível que ficará feliz ao se sentir libertado finalmente de
tantos meses de tortura. Ficaria mais do que satisfeito que você
fizesse por mim o que eu não reuni coragem suficiente para fazer
comigo mesmo...
Suas palavras a aparvalharam por um momento, mas não se
deixou enganar.
— Ora vamos, Barnabas, duas mulheres apaixonadas por você e
está com vontade de morrer? Eu acho que está mesmo é apavorado
com a perspectiva! Quando possibilidades tão excitantes para sua
vida futura estão logo à frente? Diga­‑me a verdade!
— Eu estou... — disse ele, respirando fundo — provisoriamen‑
te... noivo de Josette.
— Provisoriamente? — ela retrucou, com ar de troça. — Para
mim, isto significa que você já fez sua escolha e me deixou de fora.
Uma vida superficial, uma vida de deveres conjugais e sociais, uma
vida de atender aos caprichos e exigências de uma criança mimada,
que é sentimental, sem a menor dúvida, mas totalmente artificial.
Ela foi destinada a se casar com algum rapazinho bonito e galante,
que esteja disposto a se lhe sentar aos pés e colocar­‑lhe doces na
boquinha... É ela que você prefere em vez daquela que chamou —
são as suas palavras — de companheira de sua alma? Uma mulher
apaixonada que o conhece bem, que o adora e que devotará sua vida
à sua felicidade? Diga­‑me então e fale de uma vez! Meu braço está
cansando e só o peso pode apertar o gatilho!
— Angelique! Olhe para mim! Não entende que ninguém pode
ocupar o seu lugar?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela sentiu o quarto girar­‑lhe ao redor e fechou os olhos por um


momento. Ele percebeu sua vacilação e acrescentou rapidamente:
— Você tem de me acreditar. Estive atormentado, vergastado
de remorso...
Ela baixou a pistola, subitamente sentindo­‑se fraca.
— Estive sonhando com você, ansiando por você — prosseguiu ele.
— Pode até ser, mas não veio me buscar — disse ela. — E quan‑
do finalmente retornou, não foi para me ver. Eu é que o amo. Sou
eu que me acho em tormento. Sou eu que quero morrer...
Ela mantinha a pistola afastada, seu braço agora doía e tremia e,
inopinadamente, o cano da arma se virou para seu próprio peito.
Ele deu um salto para frente e agarrou o cano, girando­‑o para um
lado e lutando para arrancar a arma de suas mãos. Os olhos dela se
arregalaram e, subitamente, a arma disparou.
Barnabas gritou:
— Não! — mas a bala espatifou o espelho e dezenas de lâminas
como facas brilhantes saltaram da parede e se espalharam por todos
os lados, cobrindo o assoalho. Angelique ficou parada, de boca aber‑
ta, olhando para o buraco negro da parede onde estivera o espelho.
— O espelho! — ela gritou. — Está vendo? Eu quebrei o espelho!
Ela tremia tanto, que parecia a ponto de desmaiar.
Ele passou­‑lhe um braço ao redor da cintura, tirou a arma de sua
mão com gentileza e conduziu­‑a até uma poltrona, então se ajoelhou
diante dela, sem medo de se cortar nos fragmentos espalhados. Ela
não parava de tremer e ele lhe acariciava as mãos e as mechas dos
cabelos, procurando acalmá­‑la, falando em voz trêmula e hesitante.
— Não foi nada... tome... beba um pouco de vinho... se acalme...
vamos, beba isto... você sabe que eu lhe sou devotado. Você me deu
uma grande felicidade.... Quer me escutar?
Ela provou o vinho enquanto ele lhe falava baixinho:
— A única explicação que lhe posso realmente dar é que foi o pai
de Josette que sugeriu nosso casamento como sendo alguma coisa
monetariamente benéfica para ambas as nossas famílias. Eu nunca
levei a ideia a sério. Para lhe falar com franqueza, nem me passou

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Lara Parker

pela cabeça que ela pudesse me aceitar. Eu só a encontrei uma vez.


Ela nunca me deu o menor encorajamento enquanto eu estava aqui
e... enquanto isso, eu encontrava... tanta alegria com você...
Ele a contemplou, seus olhos escuros registrando o resultado do
que lhe dizia. E ela podia ler nos olhos dele o torvelinho em que se
achava sua mente e a luta que ele travava para encontrar as palavras
certas para lhe dizer.
— Depois... que eu saí de Martinica, tinha todas as intenções do
mundo de voltar para você. Mas era impossível para nós dois trocar‑
mos cartas e ao mesmo tempo manter nosso caso de amor em segre‑
do, tal como era necessário na ocasião. Ao mesmo tempo em que
— Josette e eu — começamos a nos escrever abertamente, apenas
bilhetes amigáveis no princípio. E depois de passado algum tempo,
percebi que o afeto que ela sentia por mim se estava desenvolvendo.
Angelique se contraiu e virou o rosto para um lado. Ele se apres‑
sou, as palavras saindo agora aos jatos de sua boca.
— Você precisa entender que minha família se tornou extre‑
mamente importante para mim no decorrer do último ano e fui
forçado a reconhecer minhas obrigações como o único filho de
um rico magnata dos estaleiros e transações comerciais. Meu
pai... ele nunca aprovou nenhuma de minhas aventuras. Pensei
que receberia a minha parte da fortuna no final do ano... mas meu
pai executou manobras legais para procrastinar a transmissão de
minhas propriedades, dependendo de... quer dizer... Você precisa
entender que, caso eu me casasse com você, seria destituído de
minha herança. Eu não seria capaz de lhe oferecer nada. Ele sim‑
plesmente encararia o meu amor por você como mais uma do que
sempre chamou de minhas “escapadas degeneradas” e a usaria
como uma desculpa para me deserdar.
— E é isso que você pensa de mim? Que eu o amei por causa de
sua fortuna?
Mas agora que ela entendia o que ele estava dizendo, Angelique
se tornou mais cônscia da forma como ele a olhava, havia uma fome
contida que se assemelhava a brasas se apagando em seu olhar. Ele

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

estremecia e sua voz estava ardente de sentimentos, mas ela mal


prestava atenção ao que ele respondera enquanto estudava os pla‑
nos e sombras de seu rosto, seduzida da mesma forma que antes por
seu rosto apaixonado. Tentou concentrar­‑se no simples prazer que
sentia simplesmente por contemplá­‑lo, depois de ter sonhado com
ele por tanto tempo.
Ele continuava:
— Ao passo que esta união que fora proposta entre nossas duas
famílias, a de Josette e a minha, foi a primeira vez em toda a minha
vida que posso recordar de sua aprovação para qualquer coisa que
eu jamais tivesse feito e, à medida em que os meses se passavam, ele
começou a presumir que o nosso matrimônio estivesse definitiva‑
mente resolvido ou, como ele falava, que “seria uma conexão que
não podemos nos dar ao luxo de perder”.
Ela percebeu que havia um laivo de amargura em seu tom de voz.
— E quanto a Josette... ela não passa de uma criança jovem e
inocente... e acabou se apaixonando por mim...
Angelique o fitou diretamente nos olhos:
— Josette é minha patroa, Barnabas. Você espera que eu viaje
com ela para a América do Norte? Carregando dentro do peito meu
coração em chamas? Sem falar com você? Sem dizer uma só palavra
a ninguém? É isso que você espera de mim?
Ele sacudiu a cabeça, inclinou­‑se e lhe beijou as mãos. Ela as pu‑
xou para longe.
— Então me diga alguma coisa mais! — ela exclamou. — Diga
alguma coisa mais que me permita desprezá­‑lo, porque o meu dese‑
jo é sentir ódio por você! Quando eu o olhar a partir de agora, que‑
ro ver somente feiura e deformidade. Liberte­‑me. Você consegue?
Repila­‑me. Tão ardilosamente como me persuadiu...
Ele se ergueu e se afastou e ela também se levantou, apoiando­
‑se à mesa.
— Se quer saber, eu me apresentei como um bode expiatório
perante o sacrificador — disse­‑lhe amargamente. — Não importa
quanto eu escoiceie e solte balidos, meu destino está selado. O que

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Lara Parker

você quer que eu faça? Se eu exigir amor de onde nenhum existe,


somente poderei criar uma antipatia maior.
Ele se voltou para ela, enquanto Angelique prosseguia:
— A cólera... embora meu coração esteja impando de cólera...
somente o irá afastar ainda mais. Eu podia ser generosa, supo‑
nho, perdoá­‑lo e liberá­‑lo de toda a responsabilidade para comi‑
go, mas não farei isso. Eu jamais o perdoarei. Eu quero mesmo é
que você morra!
Ela pôde ver a dor nos olhos dele, enquanto seu rosto ia ficando
acinzentado. Sua voz tremeu e ela vacilou.
— Não, nem sequer na raiva existe satisfação para mim aqui. Por‑
tanto, por que motivo tolo eu vim? Se precisa saber, foi somente para
olhá­‑lo nos olhos e escutar sua voz uma vez mais, para permanecer
junto a você. Porque você ainda é o meu amado. E o preço que paguei
foi o abandono de meu orgulho. Este pequeno prazer transitório foi
comprado e pago com humilhação e vergonha. Mas eu paguei o pre‑
ço com alegria, porque eu o amava e ainda amo, apesar de tudo.
A vela no castiçal da janela começou a cuspir fagulhas e a chama
ameaçou apagar­‑se na cera derretida. Barnabas foi até a cômoda,
pegou outra vela grossa e a acendeu na flama moribunda. Ele con‑
servou a mão em concha ao redor da nova luz até que ela se ergueu,
forte e vibrante. Segurando­‑a firmemente com seus dedos enormes,
ele forçou o cabo contra a cera derretida até que ela endureceu o
suficiente para manter a vela no lugar.
— Sinto ainda a mesma atração por você que sempre senti —
explicou, com voz angustiada. Uma brisa suave soprou pela janela e
o ar cálido acariciou os dois. — Estar aqui neste quarto com você,
sentir sua presença misteriosa, é como se estivesse a sonhar.
— E por que me diz estas coisas? Não vê que me insulta ao me
oferecer esperança? Só me diga, há alguma forma agora para nós
dois nos unirmos novamente?
Após um longo momento, ele respondeu baixinho:
— Não...
— E seu desejo é que eu vá embora?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Sim...
— Então... adeus, Barnabas.
Ela se moveu lentamente em direção à porta. Podia sentir­‑lhe a
fome a segui­‑la como se ele a segurasse com a própria mente. Colo‑
cou a mão na maçaneta e se voltou para ele uma última vez, fitando­
‑o diretamente nos olhos, pensando no êxtase que sentiria ao toque
renovado de sua boca sobre a dela. Sabia perfeitamente que ele viria
abraçá­‑la caso ela quisesse. Sentiu a chama crescendo dentro de seu
peito enquanto seus olhos permaneciam fitos uns nos outros e um
sentimento de poder irradiante fluiu de dentro dela.
— Angelique — murmurou ele, sua voz um sussurro esfarrapa‑
do. — Por favor... Por favor, não vá embora...

* * *

Aquele ponto alto na floresta tropical de onde o regato fluía, sain‑


do de uma lagoa escondida, somente podia ser alcançado através
da água. E após isso, a subida era tortuosa, sobre uma espécie de
escada gigantesca de rochas prateadas. Angelique olhava para trás
e ria enquanto levava Barnabas cada vez mais alto, até onde a cas‑
cata se derramava sobre suas mãos e pés, que pareciam líquidos
desde os pulsos e tornozelos e a névoa que subia do lugar em que
a água batia no regato era tão fina, que parecia também liquefazer
a própria luz iridiada do sol.
A floresta que os rodeava parecia mais luxuriante do que ela ti‑
nha imaginado; eles vinham subindo a encosta durante horas até as
profundezas do jângal e foi um grande alívio chegar ao topo. Atrás
do véu que brotava da beira da cascata, encontraram uma câmara
escavada na rocha, em que as avencas cresciam como saias delica‑
das e o rugido da água ao tombar obscurecia todos os demais sons.
Ali, escondidos do mundo inteiro, eles contemplavam de mãos da‑
das a luz do sol irisando a cascata e, esticando as mãos através da
cortina, podiam brincar que estavam tentando segurar a prata da
água entre os dedos.

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Lara Parker

Os dois amantes tinham passado muitas horas roubadas um com


o outro e tinham sido horas de felicidade incrível. O casamento de
Josette ainda continuava planejado para o futuro próximo, mas An‑
gelique se prendia ao conhecimento de que continuaria pertencendo
a Barnabas houvesse o que houvesse e que, embora tivesse de se con‑
tentar com o papel de amante, sabia que era sua verdadeira amada. E
de algum modo se consolava com a crença fugaz de que ele ainda
mudaria de ideia a respeito de Josette e que o casamento nunca se
consumaria. Algumas vezes, quando estavam juntos, ela percebia
que ele ficava meio inquieto com o passar do tempo ou até mesmo
demonstrava algum remorso com relação à outra e um princípio de
ira surgia dentro dela, mas no momento em que se encontrava entre
seus braços, sabia que ele perdia todo o desejo de estar em qualquer
outro lugar e ela sempre desculpava seus momentos de dúvida como
sendo passageiros e sem a menor importância.
Josette, que não tinha a menor suspeita da vida secreta de Barna‑
bas, nunca parava de tagarelar alegremente sobre a corte que ele lhe
fazia. E como era amargo para Angelique ver a felicidade nos olhos
de outrem. Como resultado das confidências inocentes de Josette,
Angelique percebeu que Barnabas nem sequer tentara beijá­‑la uma
única vez e o desprezo pela outra aumentava em seu coração. O
costume e a educação determinavam que até mesmo um casal de
noivos de sua classe social jamais poderiam ficar sozinhos.
Barnabas se ergueu e parou de pernas abertas sobre o precipício,
seu corpo magnífico silhuetado contra o ar, a água da cachoeira a se
derramar ao redor dele. Angelique ao mesmo tempo sentia piedade
e raiva. A beleza dele a seduzia, mas a insensibilidade que demons‑
trava com relação à sua agonia lhe apertava o coração. Ao observá­
‑lo, sentiu um impulso macabro que lhe dizia como seria fácil
empurrá­‑lo para a morte. Como ele estava vulnerável ali, equilibra‑
do à margem da vida, inconsciente de qualquer perigo, sem fazer a
menor ideia de que ela pudesse nutrir pensamentos que o pudessem
ameaçar. Pela arrogância de sua postura, ela percebeu que ele se
sentia como um jovem Deus a contemplar seu mundo.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela avançou e colocou seu corpo por detrás do dele, inclinando­‑se


contra ele e apalpando­‑o, correndo seus dedos através dos pelos espessos
de seu torso. Novamente, pressentiu dentro de si aquele impulso perver‑
so. Bastaria um leve empurrão e ele desapareceria, tombando para a
morte no meio daquela solidão luxuriante e obscura. Ninguém jamais
encontraria seu corpo e ele jamais a torturaria outra vez. Ela estremeceu
com o pensamento e prendeu a respiração, soltando as mãos que o rode‑
avam e apoiando as palmas contra suas costas. Então, ele se virou,
puxou­‑a contra si e a beijou e agora a água da cascata molhava os dois.
À medida que a luz do dia diminuía, eles ficaram deitados na gra‑
ma ao lado da lagoa, enquanto Angelique contemplava os reflexos
florescendo na superfície das águas tranquilas. Em algum ponto pro‑
fundo da memória, ela recordou as frases do Bokor: “Você consegue
alcançar a indiferença? Eu penso que não. Você irá prender­‑se à vida e
ignorar a morte de onde ela provém. Você buscará o amor e ele se trans‑
formará em ciúme e o ciúme em rancor e este buscará vingança, porque
por baixo de todas as suas cores do arco­‑íris existe uma poça escura de
desespero e porque o seu caminho é o caminho do desejo”.
Ela nunca entendera o que ele quisera dizer com isso. Apenas sabia
que ele estava falando da magia que ela rejeitara. Tudo aquilo perten‑
cia ao passado. Agora ela se sentia feliz por ter escolhido uma vida
normal, livre de feitiçaria, porque ela renunciara a seus poderes e ex‑
pulsara o Diabo de sua vida para sempre. Indiferença? Ela jamais po‑
deria ser indiferente às alegrias da paixão. Seus longos anos de solidão
haviam passado. Tudo o que importava era que havia encontrado o
amor e que era somente isso que ela jamais desejaria.
— Olhe — ela falou. — Há duas coisas em tudo. Primeiro, vêm
as nuvens flutuando, depois os picos altaneiros e o azul do céu e
tudo isso se repete nessa lagoa.
— Ah, sim — concordou ele. — Você tem toda a razão, esse la‑
guinho é um espelho.
Mas ao redor das margens, formas escuras se manifestavam por
entre o brilho cortado pela sombra dos galhos, e tais sombras eram
seus entes opostos.

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Lara Parker

— O que você vê? — ela indagou.


— Hummm... Vejo passarinhos voando de lado — disse ele,
com ar de troça. — Peras cortadas ao meio, borboletas de uma asa
só, esqueletos...
— Duas mãos... polegar contra polegar — retorquiu ela, mais
seriamente. — As árvores cumprimentando suas gêmeas...
— As conchas bivalves se abrindo como leques, orquídeas, o
sexo de uma mulher...
— E a lua já caiu dentro da água como se fosse um peixe...
Houve uma pausa.
— Eu te amo, Angelique — disse ele, baixinho.
Ela percebeu como cada objeto ao longo da margem da lagoa
encontrava o ritmo de seus próprios desejos. Ela sorriu, ele a atraiu
e agora a nuvem que surgira no final da tarde, mergulhada nas
águas, presa em um círculo de ondulações, tornou­‑se um osso
branco. Ele acabara de dizer que a amava, e um fragmento de verso
que decorara havia tantos anos também ondulou em sua lembran‑
ça: “Ah, não jures pela lua, porque a lua é inconstante...”
Eles continuaram deitados na grama por mais algum tempo e
ela pensou, enquanto ele se inclinava sobre ela, em como a natureza
ama sua própria semelhança, como Narciso que morreu por adorar
tanto sua própria imagem. E agora ela era a forma da forma dele
enquanto ele se movia sobre ela e os dois se abriram e fecharam
como as asas de uma mariposa recém­‑saída do casulo, não mais
uma crisálida, secando­‑as antes de experimentar seu primeiro voo.
— Eu não posso viver sem você — murmurou ele. — Diga que
será minha para sempre.

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Vinte e Seis

oston era, sem a menor dúvida, o lugar mais espantoso que ela
podia imaginar. As ruas eram apinhadas de gente e de carrua‑
gens. Muitos prédios encantadores se alinhavam ao longo das ave‑
nidas ensombreadas por árvores antigas. Os mercadores vendiam
de tudo no mercado, desde prataria até hortaliças e Angelique não
pôde deixar de notar que as distinções de classe eram muito me‑
nos importantes aqui do que em Martinica. Os escravos eram ra‑
ros, embora a pobreza de muitos brancos fosse mais aparente.
Mas o mendigo e o artesão pareciam misturar­‑se sem problemas
pelas ruas com os membros da classe média e os verdadeiros opu‑
lentos e havia energia no ar, um senso de promessa.
André desejara tirar umas últimas férias junto com sua filha e nave‑
gara com ela primeiro para Nova York. Era lá que comprariam a maior
parte de seu enxoval e depois ele lhe mostraria a cidade e viajariam um
pouco para o sul para que ela visse o Capitólio da jovem nação.
Certa de que Josette já deveria estar em Collinswood, mesmo que
não houvessem recebido qualquer mensagem a respeito, a Condessa

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Lara Parker

Natalie du Prés finalmente se decidiu a sair de Boston com Angeli‑


que e embarcar em uma diligência pela estrada costeira para a via‑
gem de dois dias até Collinsport. Ela não queria chegar cedo demais
para não sofrer uma má acolhida, mas sem elas duas, Josette não
teria nem criada, nem companheira, caso fossem necessárias. An‑
gelique estava exultante, porque sua longa espera de três meses es‑
tava a ponto de acabar.
Começaram a jornada bem cedo. Angelique olhava melancolica‑
mente pela janela da carruagem para as paisagens rurais que pare‑
ciam correr em direção inversa. A chuva caía sem parar sobre uma
sucessão lúgubre de campos incultos. Passaram por bosques cerca‑
dos por muros baixos de pedras encaixadas, cujas árvores altas es‑
tavam despidas de folhas pelo adiantado da estação, seus galhos
negros e finos destacando­‑se contra a brancura do céu como uma
gravura em água­‑forte. Ela não estava preparada para a escala de
tons acinzentados que predominava na paisagem e muito menos
para o frio cortante. Sua capa fina era uma doação de última hora
que a condessa retirara de sua própria bagagem e mal conseguia
afastar o gelo de seus ossos e se o seu coração não estivesse batendo
tão ferozmente, ela não pararia de tremer. Suas mãos pareciam fei‑
tas de gelo, e nuvens de condensação saíam de seu nariz ou de sua
boca quando falava, mas o calor lhe percorria o corpo ferozmente.
Ela queimava de antecipação, esperando pelo primeiro momento
em que ela e Barnabas estariam de novo em presença um do outro.
Ela estava certa de que desmaiaria de felicidade.
Ela e a condessa pernoitaram em uma pequena hospedaria de
aldeia, em que parecia que toda a população masculina da região se
havia reunido aquela noite para beber até que o calor do álcool lhes
corresse pelas veias. As gargalhadas e brincadeiras ruidosas entra‑
ram noite adentro, até alta madrugada e tanto ela como a condessa
ficaram felizes de poder voltar à carruagem na manhã seguinte, que
mais não fosse para conseguirem dormir. Na tarde desse dia, a rota
circulava por entre rochedos que despencavam em direção a um
mar rugindo em fúria e os cavalos labutavam para conseguir vencer

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

a longa subida. Tinham a impressão de que o solo da estrada era


composto inteiramente de grandes calhaus, que entravam sob as
rodas e sacudiam as passageiras sem a menor misericórdia.
— Acho que não consigo suportar isto por muito tempo mais
— queixou­‑se a condessa. — Esta estrada é imperdoável e tenho a
impressão de que estamos atravessando uma enorme pocilga!
Angelique olhou pela janela e viu o que parecia serem pedaços
do céu voando pelo ar antes de rebentar­‑se contra o chão.
— Condessa, olhe! — exclamou assustada. — O que pode ser isso?
— Isso, Angelique, é a saraiva, uma chuva de pedras, como a
chamam os camponeses! Você nunca tinha visto nada de parecido,
não é mesmo? — disse a condessa, desdenhosamente. — Tempo
horrível! A chuva se está transformando em pedaços de gelo, mas
logo vão derreter e a estrada vai se virar em um lamaçal!
Ao ver a saraivada caindo, uma sensação estranha tomou conta
de Angelique. Ela nunca vira o Maine ou suas praias desnudas, mas
alguma coisa lhe parecia familiar naquilo tudo, alguma recordação
vaga de um tempo esquecido em que ela não era filha do mar e seu
mundo fora azul e dourado. Sua mente tentou relacionar aqueles
delicados ramos de árvores, que pareciam feitos a bico de pena so‑
bre papel branco com o mundo grosso, verde e lustroso das folha‑
gens de Martinica. Porém, logo desistiu e sua lembrança se mesclou
com a realidade. Era aqui que ela passaria a morar, nesta zona sel‑
vagem, fria e abandonada, que parecia se estender mais e mais até
abranger distâncias imensas. Se estivessem em Martinica, já teriam
dado a volta na ilha e voltado ao ponto de partida mais de uma vez,
depois de uma viagem tão longa.
Subitamente, a carruagem deu um solavanco e Angelique, que
estava no banco de trás, foi jogada para frente e caiu nos braços
da condessa.
— Eu já sabia que teríamos algum contratempo! — exclamou a
condessa, engolindo em seco, porque o veículo tinha parado com‑
pletamente. O cocheiro estava chicoteando os cavalos e podiam
sentir como a carruagem se esforçava para seguir em frente e como

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Lara Parker

os arreios estavam distendidos pelo esforço dos animais; mas não se


movia sequer um centímetro. Depois de alguns minutos, o cochei‑
ro abriu a porta lateral.
— Pois é, madames, acho que nos atolamos na lama!
— Bem, e você não consegue escavar com uma pá, meu bom
homem? — respondeu a condessa, totalmente exasperada.
— É o que pretendo fazer, madame, só vim lhe avisar. Mas não es‑
tamos muito longe, de fato, acho que uns oitocentos metros de distân‑
cia da fazenda Collinswood. Assim que eu conseguir soltar esta roda, o
carro nos leva lá em seguida, não vai demorar nem um pouco!
— Bem, trate de apurar, está bem? Antes que nós duas morra‑
mos congeladas aqui dentro!
Então haveria mais uma demora, quando a espera já lhe parecia
intolerável. Angelique não conseguia mais se conter.
— Se está tão perto assim, eu posso ir até lá e pedir ajuda —
ofereceu­‑se.
— O quê, menina? Você está maluca? — disse a condessa. —
Ora essa, já está quase anoitecendo e a chuva está gelada, ainda bem
passou o granizo. Acho que o melhor é confiar na força do cocheiro
e em sua habilidade com a pá!
— Mas, senhora, e se ele não conseguir? Não podemos passar a
noite aqui. Eu não poderia deixar a senhora passar por um sofri‑
mento desses...
— Tolice, criança. Em vez disso, ajeite melhor esse cobertor em
volta de minhas pernas, se está mesmo tão preocupada comigo...
Mas Angelique já pulara fora da carruagem, levantando as saias
para não se arrastarem na lama e deu a volta por trás do veículo
para falar com o cocheiro agachado junto à roda.
— Collinswood fica nesta mesma estrada, senhor?
— Sim, senhorita, pena que não conseguimos chegar lá antes da
roda se enfiar na droga desta valeta aqui. Os cavalos estão cansados e...
— De que jeito é a casa?
— Ora, senhorita, é a segunda casa estrada acima — fica um
pouco para fora do caminho, há um caminho bem cuidado e tem

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

uma porção de colunas altas e brancas e um pórtico arredondado.


Há um outro lugar grande primeiro, mas este ainda está sendo
construído, vai ser uma grande mansão, mas... Quer dizer, senhori‑
ta, você não vai querer ir a pé até lá, quer?
Mas Angelique já estava a uns cem metros estrada acima, cor‑
rendo, sem se importar com a lama em suas botas ou a chuva cain‑
do sobre seus ombros. Seu único pensamento era rever o rosto de
seu amado Barnabas. Seu coração batia violentamente e ela temia
que fosse rebentar de entusiasmo, tão ansiosa estava por revê­‑lo.
Sua mente estava tão cheia da promessa de exultação, que pratica‑
mente voou pelo caminho inteiro e pareceu­‑lhe que somente alguns
minutos haviam passado antes de estar em frente das largas colunas
que protegiam a grande porta de madeira maciça. Escutou vozes lá
dentro, discutindo com algum calor, e então um homem gritou:
— Amor! Ora, amor... Amor é só uma palavra impressa nessas
novelas que escrevem para mulheres idiotas!
Seguiu­‑se a resposta de outra voz masculina, em tom baixo, qua‑
se murmurando e a voz furiosa gritou novamente:
— Uma mulher não é um futuro!
Mas que discussão seria essa? Poderia estar sendo travada entre
Barnabas e seu pai? Seria possível que ele estivesse argumentando a
seu favor?
Ela ergueu a aldrava de bronze e deixou cair a argola com es‑
trondo. A porta se abriu e lá estava ele, parado à sua frente, usan‑
do uma casaca cor de vinho, seus cabelos escuros caindo sobre a
testa e parcialmente recobrindo seus lindos olhos, agora arregala‑
dos de espanto.
— Barnabas! — ela exclamou, seu coração aos pulos, pensando
que iria desmaiar de alegria. Queria que ele a puxasse para a segu‑
rança de seus braços, mas ele não fez o menor movimento, ficou
simplesmente olhando para ela, desajeitadamente, sem pronunciar
uma palavra.
— Está surpreso? — ela indagou, seus olhos dançando. Ela disse
a si mesma que a presença do outro homem cuja voz ela escutara,

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Lara Parker

porém não vira até aquele momento, o impedia de qualquer de‑


monstração de reconhecimento.
— Espantadíssimo — respondeu ele, finalmente. — Não esperá‑
vamos a chegada da condessa no mínimo por mais uma semana
— declarou, com um movimento rápido de seus olhos, como se
quisesse virar a cabeça a fim de olhar para trás e depois hesitasse.
— E onde está ela? Por que você chegou até aqui a pé?
— Ah, suas estradas, Monsieur! — disse ela, sorrindo novamen‑
te, cheia de embaraço. Ela deveria ser um belo espetáculo, pensou,
sua capa pingando água, seus cabelos emaranhados sob o capuz.
— A carruagem está enterrada na lama... completamente atolada!
— A que distância daqui?
— Longe demais para minha patroa caminhar — afirmou An‑
gelique. O que ela queria era inclinar­‑se para frente e murmurar:
“Mas não é longe demais para que eu voasse a distância toda para
poder vê­‑lo...” Ela se sentia como uma garotinha, tonta de euforia.
Ela fixou os olhos nos dele, buscando em vão por uma mensagem
silenciosa que lhe comunicasse que ele estava tão feliz por vê­‑la
quanto ela se sentia.
Em vez disso, para seu desapontamento, ele a convidou a entrar
com certa insegurança, como se estivesse encabulado. Ao erguer o
capuz, ela viu a sala que havia imaginado mil vezes já, cálida, en‑
cantadora e acolhedora, todo o mobiliário da mais alta qualidade.
Sem dúvida, ele era ainda mais rico do que ela supusera e percebeu
como seus laços familiares deveriam ser fortes, ainda que não tão
fortes — disse para si mesma — como seu compromisso secreto.
Ela avançou alguns passos e viu um homem mais velho, bastan‑
te elegante, com cabelos louros agrisalhando­‑se e enormes suíças,
parado em pé ao lado da lareira.
— Pai — disse Barnabas —, esta é Angelique. — Ela é... a dama
de companhia da Condessa du Prés.
Ela fez uma curvatura elegante. Portanto, tinha sido realmente
com seu pai que ele estivera discutindo. Monsieur Collins sênior
usava um colete de veludo de que pendia uma larga corrente de

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

ouro que deveria estar presa a um relógio guardado em um de seus


bolsos e tinha um ar de desalento exaurido sob sua aparência irritá‑
vel. Angelique só pôde imaginar que ele sofrera algum grande desa‑
pontamento em um determinado momento de sua vida. Barnabas
ordenou que preparassem as acomodações para a condessa e sua
criada. Então ele disse, referindo­‑se à condessa:
— Tenho de ir buscá­‑la.
Angelique respondeu imediatamente:
— Eu o acompanharei.
— Isso não será necessário.
Era sua imaginação ou ele estava com medo de olhar para ela?
— Ah, mas é muito necessário para minha patroa! — ela decla‑
rou com ar determinado, lançando­‑lhe um olhar brilhante. Voltou­
‑se para Joshua Collins e novamente fez uma profunda vênia ao
homem mais velho.
— É um grande privilégio estar em sua casa finalmente —
declarou­‑lhe, com um sorriso. Mas Monsieur Collins apenas resmun‑
gou qualquer coisa e lhe virou as costas e ela sentiu uma pontada
daquele antigo ressentimento que conhecera tantas vezes em Marti‑
nica. Ele a tratara como a uma serva: invisível, ordinária, facilmente
substituível. A cólera cresceu dentro dela e o sangue lhe subiu às faces.
Ela não era nenhuma dessas coisas, pensou. Agora chegara sua vez
e logo ela arrancaria de si o seu disfarce de criada. Ela era uma mu‑
lher linda, e assim que dispusesse de joias e vestidos, ninguém jamais
deixaria de reparar nesse fato. Tinha plena certeza de que Barnabas
nunca acharia alguém que a pudesse substituir em seus braços.
O estábulo estava quente. Com a chuva caindo lá fora, o vapor
subia dos corpos dos animais. O cheiro adocicado dos cavalos, de
mistura com o feno, e até mesmo o de seu esterco, a deixava deli‑
rante. Recordou­‑se da alegria que sentira das outras vezes em que
estivera ao lado de Barnabas, quando o mundo inteiro parecia
encantado e as palavras que corriam por seus pensamentos eram
como poemas. Ela esperou enquanto o cavalariço e o tratador atre‑
lavam a charrete, ansiosa para erguer os olhos e fitar Barnabas, mas

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Lara Parker

temendo trair sua ansiedade. Então o veículo estava pronto e ela


subiu para sentar­‑se a seu lado.
Para seu desapontamento, o tratador também ergueu seu corpo
enorme e obeso para o assento da charrete. Carregava um machado
e quando a viu olhando fixamente, interpretou que fosse por causa
de sua ferramenta.
— É para cortar galhos e colocar na frente das rodas da carrua‑
gem — explicou­‑lhe em uma voz pastosa e Angelique observou
imediatamente que ele era um tanto retardado.
— Boa ideia, Ben — falou Barnabas. Este Ben era forte como um
touro; não era simplesmente gordo, os músculos de seu pescoço se
destacavam junto à gola de sua camisa grossa. Ele sentou do outro
lado dela e ficou olhando para os dois com um olhar apagado, sua
presença impedindo qualquer conversa mais íntima.
Barnabas estendeu a mão e pegou um pesado cobertor de couro,
enrolando­‑o sobre ela e sobre si mesmo, mostrando­‑lhe um rápido
sorriso que logo diluiu seus temores. Ela sentia o calor de seu corpo
por baixo do cobertor enquanto os cavalos troteavam, puxando a
charrete estrada abaixo e ela se sentiu banhada de felicidade. Ela
julgava poder continuar ali por toda a eternidade, sentindo­‑se abra‑
çada por sua proximidade e satisfeita com isso. Fechou os olhos e
desejou que o tempo parasse, que a viagem durasse para sempre.

* * *

Horas depois, quando a Condessa du Prés finalmente chegou a


Collinswood, usando seu enorme chapéu ornado de plumas de
avestruz e com as mãos enfiadas em um regalo de pele enfeitado
com penas para combinar, Joshua Collins se mostrou quase tão
desdenhoso como o fora com sua dama de companhia, só que ela
respondeu com grosseria correspondente. Eles ficaram parados no
vestíbulo, trocando insultos em fintas de esgrima verbal.
— Esta área em que o senhor mora é um deserto de emoções e
cortesia! — proclamou a Condessa du Prés.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Então acho que a senhora deveria ter ficado em Boston, já que


gosta tão pouco daqui! — retorquiu o dono da casa. Angelique se
regozijou que o primeiro encontro dos dois fosse tão pouco cordial,
porque isto se refletiria sobre Josette. Teve de sorrir discretamente
ao ouvir a próxima observação da condessa.
— Nunca faz calor neste lugar? E alguma vez a chuva para?
Deu­‑se conta de que era exatamente nisso que ela estava pensando.

* * *

Assim que se instalou em seu quartinho junto ao corredor da cria‑


dagem, Angelique olhou a seu redor, sentindo desprezo pelo mobi‑
liário simples e pela lareira de tijolos a descoberto, que nem sequer
haviam sido rebocados. Mas que engraçado, pensou, ao ver uma
velha roca encostada a um canto, uns restos de lã meio desenrola‑
dos do fuso que havia muito tempo não era girado. Estava ali sim‑
plesmente para lhe deixar bem claro que seu lugar nesta casa era o
de uma empregada? Mas não era ocasião de reagir como uma crian‑
ça mimada; tinha de se preparar para a visita que tinha certeza che‑
garia mais cedo ou mais tarde. Abriu sua arca de viagem e dela tirou
um vestido simples, com motivos florais e depois arranjou os cabe‑
los diante do espelho manchado de um toucador capenga e com o
tampo marcado pelo uso, para que ele lhe escorresse sobre os om‑
bros e cachos macios. Estudou sua imagem desapaixonadamente.
Jamais esqueceria as palavras de desprezo que um dia lhe lançara a
condessa: “Você pensa que é bonita? É por isso que eu já a peguei se
olhando num espelho tantas vezes? Você não é bonita, Angelique.
Mas Josette... ela sim, é linda!”
É claro que ela não tinha as faces pálidas de Josette, caracterís‑
ticas de uma mulher da aristocracia, como uma patrícia romana,
mas seu rosto era muito bem formado, talvez o nariz e a boca
fossem um tanto pequenos, mas seus olhos eram profundos e
langorosos. Nesse momento, ela percebeu que nunca parecera
mais desejável, pois sua pele estava corada e seus olhos ainda mais

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meigos por força de seus anseios. Ela sentia todos os seus senti‑
dos estremecendo, sua necessidade dele era quase uma dor físi‑
ca, ardia pelo seu toque, pela calidez de seu corpo em que se
derretera tantas vezes.
Sentou­‑se na beirada da cama estreita e enrolou os braços contra
a coluna de torneado simples, encostando o rosto contra o mogno
macio. Depois, deixou que sua mente brincasse com as imagens de
sua última noite juntos em Martinica, com as águas da cachoeira,
com os borrifos e a névoa que subia dela, com a escuridão da caver‑
na, com a água de sabor doce que bebera de seus lábios, com a chu‑
va fina e cálida que molhara seus rostos e suas bocas, com a
interpenetração de seus corpos sobre o riachinho que descia pela
escada durante sua primeira vez e sentiu uma pulsação irresistível
em suas partes mais íntimas.
Quando, finalmente, a hora foi ficando tardia e os trovões ri‑
bombavam através do negrume da noite, enquanto a chuva batia
contra sua janela entre a cintilação dos relâmpagos, Angelique não
pôde mais suportar a espera e desceu pé ante pé pelo corredor. Ela
subiu pela longa escadaria e algum tipo de instinto a conduziu até a
porta de Barnabas, ou talvez fosse simplesmente pelo fato de que
era a única em que uma faixa de luz aparecia pela fresta da porta
junto à soleira. Ela bateu de leve na madeira com a ponta das unhas.
— Quem é? — indagou a voz dele. Passou­‑se um longo momen‑
to antes que ele a abrisse e ela se jogou para dentro do quarto.
— Um fantasma do seu passado! — exclamou, enquanto se jogava
em seus braços. — Ai, meu querido! Esperei que descesse para me
ver... Não consegui aguentar mais! Estava rebentando de saudade!
— exclamou, enquanto o beijava, seus olhos sorridentes. — Por que
você não foi me ver? É orgulhoso demais? Não sabe quanto o amo?
Inclinou­‑se contra ele, apertando­‑se contra seu peito, seus mús‑
culos frouxos de alívio, suspirando, murmurando sem parar.
— Depois que você saiu da ilha, eu sonhei com você todas as
noites, eu escutava sua voz a me chamar pelo nome... Estava tão
ansiosa para ficar com você de novo... abrace­‑me!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela se apertou contra ele, seus dedos cravados em sua casaca de


veludo e beijou­‑lhe o rosto e os lábios, deslizando velozmente para
seu arrebatamento. Custou a sentir, mas finalmente percebeu sua
resistência, notou que ele a empurrava com gentileza, em vez de
abraçá­‑la. Beijou­‑lhe a boca novamente, mas não obteve resposta.
— Ai, sua boca está com o gosto desta casa fria! — exclamou.
— O que aconteceu?
— Eu não me sinto frio para com você, Angelique, mas quero
ficar. Eu tenho de ficar — disse baixinho. — Eu não posso mais
fazer isso. Eu não devo. Por favor... você tem de perceber...
Ele ergueu a mão direita lentamente, em um gesto envergonhado.
— Foi um grande erro...
Sua cabeça girou, ela sentiu uma fraqueza invadi­‑la, como se
todo o sangue tivesse descido para os pés.
— O quê? O que é que foi um grande erro?
— Foi... Foi a minha fraqueza que me levou... — ele balbuciou,
afastando­‑se dela.
— Que o levou a fazer o quê?
— A... a amar você... Foi uma coisa errada... Sinto muito...
Ela percebeu que ele se sentia angustiado, lutando com as pala‑
vras antes de proferi­‑las.
— Quando ficamos juntos da última vez... Eu ainda não tinha
certeza se ia me casar ou não... Sabia que Josette me amava, mas
nem sonhava que fosse amá­‑la também...
— Você ama Josette? Josette, essa menina de sangue fraco? Quer
dizer que... quando você chegou até a porta hoje à tardinha... que
não ficou feliz em me ver?
Ele a contemplou por um momento.
— Eu fiquei surpreso ao vê­‑la. Nunca esperei que você viesse. Fiquei
confuso com sua aparência, seus olhos estavam ocultos pelo capuz...
Ela mordeu os lábios, esperando que ele dissesse o que ela ansia‑
va por ouvir, mas não escutou nada de parecido.
— Por favor, tente entender, Angelique. Você e eu não po‑
deremos nunca... Não existe nenhuma possibilidade... de nos

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casarmos. Eu sei que a levei a entender que isso poderia ser possível,
porém meu pai...
— Seu pai! E desde quando você gosta de seu pai? Ele... não
é você!
Ela se atirou contra ele novamente, segurando­‑lhe os braços e
olhando para seu rosto.
— Onde está o homem que eu amei? Um rapaz tão rebelde e
apaixonado? Nunca esperei... que mostrasse tanta fraqueza! Não é
possível que não tenha a coragem de dizer à sua família o que real‑
mente deseja da vida! Você sabe que me ama!
Barnabas virou­‑lhe as costas.
— Não, você está errada — disse, após uma pausa. — Sim, eu a
amei. Você é uma mulher linda... fascinante mesmo, mas... talvez re‑
almente eu não tenha o seu tipo de coragem. Tenho outras coisas a
considerar, coisas que são mais importantes. Eu sei que é difícil para
você entender isso... mas o meu dever é para com... minha família.
Ela o contemplou sem saber como reagir, sem compreender, en‑
quanto ele lutava por encontrar as palavras certas e não achava
nada. Então, ele pareceu tomar uma resolução e voltou­‑se para ela,
com os olhos apertados.
— A verdade é que... eu acabei me enamorando de Josette. Agora
eu a amo com todo o meu coração. E se você dá valor ao poder do
amor tanto quanto diz, respeitará meus sentimentos. Agora por fa‑
vor, lamento muito, não quero ferir os seus, mas... tenho de lhe pe‑
dir para sair daqui.
— Sair? — disse ela, implacavelmente. — Antes que você se ar‑
rependa de todas essas palavras tolas que acabou de pronunciar?
Houve uma longa pausa, antes que ele murmurasse:
— Sim.
— Você não me quer mais.
Seguiu­‑se outro longo minuto de silêncio.
— Não.
Seus olhos se encheram de lágrimas e, orgulhosa demais para
deixar que ele as visse, ela correu para a porta.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

De volta a seu quartinho, ela soluçou amargamente, como se o


pranto pudesse deslocar aquele peso esmagador que sentia sobre seu
peito, como se uma adaga sem fio tivesse sido enfiada profundamen‑
te, rasgando tudo em seu caminho. Chorou até se engasgar nas pró‑
prias lágrimas, tossindo, soluçando, seu peito subindo e descendo
violentamente com o esforço, o tempo todo imaginando que lhe es‑
cutava os passos lentos ao longo do corredor, que a porta se abriria e
que ele entraria em seu quarto para tomá­‑la em seus braços. Ela sen‑
tia uma agonia rascante, como se estivesse sendo rasgada pelas garras
aduncas de algum monstro indiferente e cruel. A descrença se mistu‑
rava ao desespero e ela percebeu que aquela total rejeição da parte de
Barnabas, sua frieza, sua completa falta de sentimentos para com ela
era a única reação por que não havia esperado.
Ela estivera preparada para fugir com ele, ir para bem longe, su‑
portar a miséria e o infortúnio, demonstrar­‑lhe simpatia pela perda
de sua herança, permanecer a seu lado através de todas as tribula‑
ções, arranjar um emprego para ajudá­‑lo, escravizar­‑se totalmente
a ele. Tinha imaginado uma série de aventuras, dificuldades e final‑
mente, um retorno, para o abraço de sua família.
Mas isto ela nunca imaginara. Jamais teria acreditado que Josette
pudesse ser uma rival significativa com relação a ela. Ela pensara em
Josette apenas como um meio para viajar até a Nova Inglaterra —
onde poderia ficar perto de Barnabas — julgara­‑a simplesmente um
instrumento para finalmente os dois ficarem juntos. Ela teria mesmo
suportado que se realizasse esse estúpido casamento de conveniência,
desde que ela permanecesse sua amante e sua amada. Mas como
poderia ter sido tão cega? Nada a havia preparado para este vazio,
este vácuo inacreditável que seria agora seu futuro. E o que seria
dela? Para onde ela iria? Como ela poderia permanecer nesta casa,
portando­‑se como uma criada, vendo Barnabas todos os dias, humi‑
lhada, invisível, contemplando como ele se portava carinhosamente
com Josette e imaginando que ele fazia amor com ela todas as noites.
Ela se ergueu, foi até a janela e colocou a palma da mão contra a
vidraça. Estava tão frio. As árvores escuras retorciam seus galhos

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Lara Parker

desnudos em formas macabras destacadas pelos relâmpagos. A cha‑


ma da vela sobre o tampo de seu pequeno toucador bruxuleou e
morreu e no negror tiritante, iluminado intermitentemente por
raios brilhantes, sua mente começou a peneirar as possibilidades
que lhe restavam, classificar os canais que poderia navegar, escolher
entre os cursos de ação que ainda se lhe abriam.
O que teria induzido Barnabas a falhar em sua resolução e su‑
cumbir a suas ambições mais profundas? Aquela fidelidade a seu
pai e a seus deveres para com a família não passava de uma postura
que ele havia adotado. Pelo menos disso tinha plena certeza. De que
forma ela poderia enfraquecê­‑lo, distraí­‑lo dessa resolução?
Por um momento, uma noção brincou em seu consciente: qual‑
quer encantamento bobo poderia despertá-lo para seus verdadeiros
sentimentos. Mas imediatamente lamentou ter considerado essa
ideia: já não podia aceitar a magia como uma opção.
Retornou para a cama, deitou­‑se e ficou olhando para o teto ene‑
grecido pela escuridão da noite, revelado por lampejos da tempesta‑
de. Sua mente arguta começou a buscar soluções e ela ficou mais
tranquila. Um pensamento muito claro emergiu. Ele a amava since‑
ramente, mas de algum modo se esquecera de que a amava; ou an‑
tes, o que era provavelmente o mais verdadeiro, ele tinha decidido
que não lhe convinha mais amá­‑la. A melhor maneira de esclarecer
a mente era um encontro com a morte. Frente a frente com sua
mortalidade, a criatura humana sempre percebe, em uma rápida
centelha de percepção, o que lhe é realmente importante. Uma es‑
caramuça com a morte... era isso! Era disso que ela precisava para
fazer Barnabas retornar à razão.
O único problema seria como criar um incidente desses, já que
ela abandonara seus feitiços e poções havia tantos anos. Será que
valia a pena remexer um pouco nessa área proibida? Ela teria de
ser extremamente cuidadosa: a última coisa que desejava era cha‑
mar novamente a atenção do Espírito Negro. Ela tinha abandona‑
do seus poderes e ele a deixara em paz; tinham sido esses os termos
de sua trégua. Mas alguma coisa minúscula, quase imperceptível,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

teria sido tão simples... Ah, mas como isso era tentador! Ela tinha
de quebrar a resolução de Barnabas de alguma forma. Decidiu­‑se
a ser paciente. Com este plano florescendo em sua mente, ela fi‑
nalmente adormeceu.

* * *

Uma oportunidade se apresentou bem antes e muito mais facil‑


mente do que ela poderia ter previsto. Novamente se dedicara a seus
deveres de criada com modéstia e firmeza. A condessa dependia
dela para tantas tarefas triviais, que muitas vezes ela imaginava se a
mulher seria capaz de se vestir sozinha, quanto mais pentear seus
próprios cabelos. Ela se ocupava com uma sucessão infindável de
pequenos consertos e cerziduras, de erguer e novamente baixar as
bainhas das saias de seus vestidos e anáguas, com a perpétua lava‑
gem e remoção de manchas, sem mencionar a escolha do tipo per‑
feito de renda para rematar seus corpetes ou decidir quais de suas
muitas joias combinariam melhor com o vestido que usaria. Algu‑
mas vezes ela sentia que era a hábil manipuladora daquele mane‑
quim que passava por ser uma mulher elegante e a quem ela servia.
Cada dia era ela quem a soltava no mundo, transformada, vestida e
penteada com a maior elegância e somente ela sabia o trabalho que
tais transformações requeriam.
Uma menina chamada Sarah, a irmã caçula de Barnabas, fre‑
quentemente vinha ao quarto de Angelique para brincar com ela.
Ela tinha apenas seis anos, mas sua presença conduzia Angelique de
volta à sua própria infância e ela recordava o tempo em que vivera
com sua mãe. Frequentemente ela pensava no homem que havia
crido ser seu pai e de quantas vezes ela o desafiara. Lembrava de sua
obsessão precoce em decifrar o livro de feitiços e aprendê­‑los de cor.
Sua determinação e sua coragem é que a haviam salvo. Era difícil
acreditar que houvera um tempo em que fora adorada como deusa
pelos escravos africanos e mais ainda que a própria Erzulie tivesse
de fato abraçado seu espírito.

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Sarah era uma menina cheia de imaginação, perfeitamente ca‑


paz de se deixar mergulhar nas histórias que Angelique lhe contava
com tanta habilidade. Só que não eram histórias de fadas. Seus
olhos se arregalavam com as descrições das cerimônias de que ela
realmente participara. Aqueles negros dançando de pés descalços
sobre carvões em brasa. Aqueles outros que entravam em profun‑
dos transes com o ritmo de seus tambores e cantavam e dançavam
até cair. O que particularmente a encantava eram as histórias sobre
a escravidão em Martinica e sobre os soldados que vinham da Fran‑
ça para combater as rebeliões. Em certa ocasião, ela trouxe um pe‑
queno soldado de madeira de seu quarto de brinquedos para
mostrá­‑lo a Angelique e o esqueceu ao ser chamada para jantar.
Angelique ficou segurando o brinquedo entre as mãos e o con‑
templou detalhadamente. Era de madeira pintada, a casaca azul,
com um tricorne, um chapéu de três bicos na cabeça e um dos bra‑
ços móvel, segurando um pequeno mosquete. Recordou­‑se, com
um sorriso de ternura, da primeira vez que encontrara Barnabas em
seu uniforme, embora as cores fossem diferentes, como ele lhe pa‑
recera elegante e ela soube num relance que aquele brinquedo lhe
pertencera quando fora menino. Ela o colocou em um dos bolsos de
seu vestido amplo.
Enquanto seus planos começavam a tomar forma e ela ia se tor‑
nando mais esperançosa, seu humor foi ficando mais alegre. O ver‑
so de uma poesia cantava em sua mente: Pareça uma flor inocente,
mas por dentro seja uma serpente.
Ela até mesmo sorria enquanto ia buscar o xale que a condessa
esquecera na sala de visitas, parando para admirar os móveis, o bri‑
lho do mogno envernizado e a textura dos brocados das cortinas,
imaginando que um dia estas riquezas poderiam lhe pertencer.
Ela tirou o soldadinho de brinquedo do bolso do vestido e o es‑
tava contemplando enquanto sorteava as possibilidades que lhe su‑
geria, quando Jeremiah, o tio de Barnabas, apareceu na sala.
Angelique se recordou de tê­‑lo visto anteriormente, muitos anos
antes, naquela noite de carnaval em Martinica, quando se realizara

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

aquele festival durante o qual encontrara seu sobrinho pela primei‑


ra vez. Foi imediatamente surpreendida por seu rosto bonito e seu
comportamento respeitoso. Como ele parecia diferente de seu ir‑
mão, Joshua Collins, tão arrogante e abrupto ou de Barnabas, tão
volátil, apaixonado e rebelde. Quando Jeremiah viu o boneco, pare‑
ceu reconhecê­‑lo.
— Você sabe o que é isto? — indagou ela.
— Um membro do regimento — respondeu­‑lhe, sorrindo. —
Um velho soldado.
— Era seu?
— Não, era de Barnabas — esclareceu­‑lhe, de boa vontade. —
Esses soldadinhos eram seus brinquedos favoritos quando ele era
menino. Deveria estar no quarto de brinquedos.
Portanto, sua intuição fora correta.
— Então vou pô­‑lo de volta lá — disse ela.
— Muito bem — concordou o outro. Ela pensou avistar uma
centelha de interesse em seus olhos, mas extinguiu­‑se quase tão
logo como havia surgido. — Quer que eu o leve? — ele indagou,
quase como se quisesse conversar um pouco mais com ela.
Ela podia sentir um laivo de melancolia contida em sua nature‑
za, como se sua vida não tivesse propósito, nenhuma fonte de vita‑
lidade salvo seu próprio trabalho na gerência do estaleiro. Talvez,
em sua condição de irmão mais moço, ele tivesse permanecido sob
o pulso de ferro de Joshua Collins por ainda mais tempo que Bar‑
nabas, até o ponto em que ele, Jeremiah, tivesse perdido todo e
qualquer gosto por aventuras. Como ele é vulnerável, pensou ela. São
justamente aqueles que se resignaram a uma vida sem romance que se
tornam mais suscetíveis ao chamado do amor.
— Pode deixar, vou ficar mais um pouquinho com ele — res‑
pondeu com simplicidade. — Quero olhar um pouco mais...
— É claro.
— É um brinquedinho tão fascinante...
— Tudo bem — disse ele, meio desajeitado. — Fique com ele
todo o tempo que quiser...

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Ela lhe manteve o olhar. Ele era o perfeito joão­‑bobo. Mas seu
papel seria mais tarde. Por enquanto, a única coisa de que ela
precisava era do bonequinho, caso ela se decidisse a usá­‑lo, para
causar a Barnabas mais dor e sofrimento que ele jamais experi‑
mentara em toda a vida.

* * *

Naquela noite, Angelique sentou­‑se junto à janela, contemplando o


céu noturno. A lua estava enrolada em névoas e o luar flutuava fra‑
camente sobre a água. Aqui o mar era frio, ela pensou, não repre‑
sentava qualquer chamado ameaçador de um abraço cálido, parecia
somente um abismo negro e assustador. Não obstante, ela sentia
um anseio por sua força quando esmagava suas ondas contra a praia
áspera. Já fazia tanto tempo desde que ela tentara executar qualquer
espécie de feitiçaria e imaginava se seus poderes estavam apenas
adormecidos ou se realmente tinham secado e morrido. A última
vez que o Espírito Negro lhe falara tinha sido muitos anos antes e
ela o havia esconjurado. Mas ela não tinha a menor necessidade dele
agora, absolutamente nenhuma.
Ela desencavou do fundo da arca a caixa de madeira que trouxe‑
ra consigo de Martinica, que permanecera intocada por tanto tem‑
po, mas que ela não se sentira nunca capaz de deixar para trás. Ela
desenrolou o pano que a envolvia e abriu a tampa. As latinhas esta‑
vam ali dentro, os pequenos frascos, os saquitéis cheios de pós. Ela
estremeceu e lentamente baixou a tampa de novo, enrolando a cai‑
xa em seu invólucro. Ouviu então uma batida em sua porta e ela
enfiou a caixa embaixo da cama.
Angelique ficou surpresa ao ver que seu visitante era Barnabas,
parado na semiescuridão do corredor. Nunca lhe parecera mais bo‑
nito, com seu colete de seda e sua camisa branca de tecido fino e as
mangas bufantes que chamavam de “mangas de poeta”, derramando­
‑se em pregas delicadas sobre suas mãos fortes. Alguns cachos de
cabelos negros caíam­‑lhe sobre a testa, parcialmente ocultando­‑lhe

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

os olhos, que queimavam como carvões e ela podia ver pela manei‑
ra como se postava diante dela, a cabeça inclinada para frente, as
pernas separadas, que estava tentando apresentar­‑se com uma es‑
pécie de atitude fria.
— Posso entrar? — disse baixinho. Ela deu um passo para o
lado e permitiu­‑lhe a entrada com um surto de esperança. Ela sabia
que ele viria, mais cedo ou mais tarde. Ela não precisava de encan‑
tamentos, quando ela própria possuía tanto poder sobre ele.
— Eu quero lhe dizer como lamento tudo isso — começou ele — e
que estou profundamente arrependido pelo que ocorreu entre nós.
Angelique esperou, sem dizer nada, sentindo a pulsação latejar­
‑lhe na garganta.
— Eu admito que possa ter tirado vantagem de você e a tratado
com menos respeito do que lhe devia. Mas... seguramente eu não
fui seu único amante, e Martinica é... um lugar encantado. Um lu‑
gar de sonhos. Eu... o que eu vim aqui para lhe dizer é que... não há
razão para que não possamos ser amigos.
— Apenas amigos? — ela murmurou.
— Sim e por que não? Você é devotada a Josette e ela também a
adora. Tudo que eu desejo é... que todos fiquemos satisfeitos. Você
não percebe, o nosso... caso de amor em Martinica será sempre uma
lembrança acalentadora. Eu jamais deixarei de pensar em você com
afeição. Porém agora, nós dois temos papéis diferentes na vida.
Você tem um novo papel a executar em sua vida, dissera­‑lhe seu
pai. Uma função que você pode desempenhar com orgulho. Sugiro que
o faça. Suplico­‑lhe que o faça. Eram palavras que ela nunca esquece‑
ria — palavras que a haviam mergulhado em uma vida de desola‑
ção para cumprir os caprichos de um homem sem coração.
— E qual é o meu papel? — indagou amargamente. — O de
criada da condessa?
Barnabas a contemplou, com uma dor indescritível em seus olhos.
— Angelique...
— Eu sou sua serva — disse ela, simplesmente.
— Não.

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— E você é meu amo.


— Angelique... por favor...
— O que você realmente quer, no fundo de seu coração? — ela
sussurrou. — Neste momento? — pressionou, dando um passo em
sua direção. — Por que realmente veio até aqui?
Ela o viu estremecer e ele ergueu a mão direita para tapar a boca.
Angelique pensou em todas as vezes em que aquela mão a tocara,
em que aqueles dedos a haviam acariciado, como agora esfregavam
seus lábios separados, aqueles lábios cheios que ela beijara com tan‑
to abandono. Lembrou da ocasião em que ele lhe dissera que pode‑
ria viver dentro de sua boca. Percebia como ele estava lutando com
seus sentimentos e seu coração doía de tanto que o desejava.
Ela foi até ele e o abraçou.
— Eu te amo — disse com voz trêmula. — Eu farei qualquer
coisa para que seja feliz — disse­‑lhe enquanto o beijava de leve, de‑
pois mais profundamente. Seu corpo se ergueu contra o dele e disse
num sussurro. — Lembre­‑se daquelas noites em Martinica. Nin‑
guém jamais se amou como nós dois. Você se lembra, não lembra?
Ele gemeu baixinho, suas mãos a apalpando, dobrando­‑a contra
seu corpo. Ela murmurou, com a boca perto de seu ouvido:
— Se todas aquelas promessas que fizemos foram apenas doces
mentiras momentâneas e nada mais, então minta para mim de
novo. Que importância tem?
Ela deixou escorrer de seus lábios as afirmações silenciosas de
seu coração.
— Minta­‑me outra vez — sussurrou, apertando­‑se contra ele e
sentindo que toda a sua resolução estava enfraquecendo.
Ele a ergueu nos braços e a carregou até a cama e ela se espantou
com seu súbito ardor. Suas mãos se moveram por todo o seu corpo,
seus dedos apertando a carne por baixo do pano de seu vestido. Ela se
sentia dentro do mar, na maré montante e a arrebentação das ondas
contra os penedos trovejava­‑lhe aos ouvidos. Os beijos dele eram vio‑
lentos e insistentes e sua respiração ofegante junto a suas orelhas,
como o ruído do vento no interior de uma caverna. Seus dedos lhe

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

ergueram a saia e se moveram por baixo dela e, quando encontraram


seu lugar secreto, sentiu o corpo inteiro latejar em resposta. Seu peso
estava agora sobre ela e a esmagava e, mesmo enquanto ela percebia,
com uma fisgada de despeito, que o desejo que ele sentia por ela
superara­‑lhe a razão, que ela realmente o capturara em uma armadi‑
lha de ternura, ela ainda se deixou escorregar para o momento veloz
do amargo alívio, deslizou de sua praia segura e ergueu os quadris
para receber aquele doce peso, encurvando­‑se como transportada
por uma imensa onda arquejante que a arrastava, derrubava, erguia e
a lançava até o ponto mais profundo de todas as águas do oceano.
Depois que tudo passou, ela flutuava em um remanso tranquilo
antes de se voltar para ele e perceber que seu rosto estava sombreado
de remorso. Ela percorreu as linhas de seu rosto com a ponta dos
dedos, pensando em como ele se transformava depois de fazer amor
e imaginando por que razões isso poderia acontecer.
Ela sorriu e cochichou:
— Viu só? Nada pode nos separar...
Ele se ergueu e vestiu as roupas, envergonhado, inquieto.
Ela o observava e então disse calmamente:
— Eu lhe disse que você não pode me resistir.
— Admito que você é difícil de resistir. Eu perdi... o controle.
— Quando duas pessoas estão apaixonadas, nada pode impedi­
‑las de quererem ficar juntas.
— Eu acho... que seria melhor que nós dois... não nos encontrás‑
semos mais... sozinhos — disse ele, hesitantemente.
— E como você vai conseguir ficar longe de mim?
— Eu irei. Eu devo. Josette chegará em breve. Angelique... é ela
que eu amo.
— Não, Barnabas, você apenas pensa que a ama. Você está sim‑
plesmente tentando convencer a si mesmo de que a ama.
— Eu vou casar com ela.
— Seu casamento nunca será mais do que uma falsidade. Dentro
de uma semana, já estará lamentando seu ato. Ela jamais será capaz
de torná­‑lo feliz.

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Ele se voltou para ela e a contemplou. Seus olhos estavam aver‑


melhados e havia um cansaço em seu tom que a deixou com von‑
tade de chorar.
— Esta será nossa última vez, Angelique. Por favor, creia­‑me e
não torne as coisas mais difíceis do que já são.
Seu coração se encheu de um súbito rancor por ele. Ele era fraco
e desonesto e simplesmente a usara mais uma vez. Ela lhe permitira
agir assim, humilhara­‑se em um esforço desesperado de reacender
seu amor por meio do desejo. Ela era uma idiota.
— Vá então. Deixe­‑me em paz. Saia daqui agora! — disse­‑lhe em
um tom de voz cruel.
Ele caminhou até a porta e se virou.
— Não há algum jeito de que possamos ser amigos? — falou
desamparadamente.
— Ora, Barnabas — respondeu­‑lhe bem baixinho. — Eu sempre
estarei mais perto de você do que jamais poderá imaginar.

* * *

Chegaram notícias de que o navio transportando Josette e André


para Nova York tinha sido soprado para fora de seu curso por uma
tempestade e que sua chegada se atrasaria por mais de uma semana.
Josette estava ansiosa por se reunir ao noivo e, como André tinha
negócios a tratar na cidade, ele a enviara em uma diligência escolta‑
da até Collinsport.
O tempo para a estada de pai e filha em Nova York foi bas‑
tante abreviado, mas Josette sempre dera um jeito de percorrer
as lojas e comprar os artigos da última moda. Quando chegou a
Collinswood, estava usando um capote bordô que descia até o
assoalho, frouxo nas costas e com uma cauda flutuante. Trazia as
mãos protegidas por um regalo de pele de raposa e em seu chapéu
estava preso um buquê de rosas da cor da alfazema, que desciam
sobre seus cabelos castanhos e estes caíam em cachos encantado‑
res sobre seus seios. Seu rosto estava radiante quando ela abraçou

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Angelique com uma afeição incontida. Barnabas apareceu, sua


respiração ofegante e, enquanto Angelique observava, seu cora‑
ção cheio de inveja, Josette se lhe lançou nos braços e trocaram
beijos com grande ternura.
— Josette, meu amor, seja bem­‑vinda a seu novo lar — disse­‑lhe
calorosamente. Era impossível não perceber que sua devoção era
genuína. Ele quase brilhava ao olhar para ela. Levemente encabula‑
da, Josette se virou para Angelique.
— Minha bagagem já subiu?
— Sim, minha senhora.
— Bem... então quer verificar enquanto desfazem as malas?
Josette se demonstrava tão gentil como sempre, jamais condes‑
cendente ou grosseira, mas sua entonação era clara. Ela queria ficar
a sós com ele.
É claro que Josette era encantadora e a tratava com grande doçu‑
ra, sempre insistindo que Angelique era sua amiga e não sua criada
e esta tinha plena certeza de que ela novamente a tomaria por con‑
fidente, compartilhando com ela os sentimentos que nutria por
Barnabas. Angelique seria forçada a escutar atentamente, como fi‑
zera tantas vezes no passado, consolando­‑a, demonstrando com‑
preensão, comiserando­‑se com seus pequenos aborrecimentos, por
mais que o demônio venenoso do ciúme já se enroscasse em seu
estômago, pronto para saltar, enquanto cuspia seu gosto amargo no
fundo de sua boca.
Assim que lhe sobrou um tempo para retornar a seu quartinho,
Angelique abriu uma gaveta em seu toucador e retirou o brinquedo.
Suas mãos tremiam e seus braços pareciam ter perdido a sensibili‑
dade. O soldadinho era resistente e parecia pronto para entrar em
batalha, tão confiante em si mesmo quanto o homem que represen‑
tava. O lenço que ela encontrara facilmente entre as roupas de Bar‑
nabas era desajeitado e grande demais, mas trazia seu monograma
e serviria para seu propósito.
— Acorde, soldadinho — cochichou, sua voz tensa e ao mesmo
tempo muito mais doce que de costume. — Chegou a hora de

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Lara Parker

cumprir o seu dever. Minha patroa chegou para preparar seu ca‑
samento. Mas não vai haver casamento algum, não é mesmo?
Cuidadosamente, ela passou o baraço ao redor do pescocinho.
— Apenas uma leve pressão — disse ela. — Vamos somente
apertar levemente seu colarinho... Só um pouquinho...
Como ela ansiava estar presente para observar, mas isso não era
necessário: podia imaginar perfeitamente a cena em sua mente. En‑
tão ela respirou profundamente e invocou a pulsação do fogo. Ela
estremeceu de imediato enquanto o calor corria através de seu cor‑
po, como uma serpente de chamas, dançando por seus braços e des‑
cendo até as mãos. Como era simples!
Pronto! Estava acontecendo! Ela soube com os olhos da mente.
Barnabas beijava Josette na sala de visitas quando parou, confuso,
sentindo um desconforto inesperado, depois seus olhos mostrando
pânico ao sentir­‑se engasgado, levando as mãos à garganta.
— Barnabas, o que foi? — gritou Josette, assustada, depois his‑
térica, enquanto Barnabas caía sobre uma poltrona, abrindo o cola‑
rinho, os dedos segurando o pescoço.
— Eu não consigo respirar...
Angelique apertou o nó só mais um pouquinho. Sorriu en‑
quanto sentia a força correndo através dela, uma sensação física
e agradável, o prazer aumentando, quase como se ela estivesse lá,
junto com ele, abraçando­‑o, sentindo seu membro viril dentro
de seu corpo.
— Eu... alguma coisa está me sufocando... a sala... está ficando
mais escura... Josette... onde está você?
Ele gemia, tentou se erguer, mas caiu no chão, derrubando a pol‑
trona. Josette gritou, atordoada, completamente incapaz de fazer
outra coisa a não ser chamar os criados. Vários apareceram e Bar‑
nabas foi levado para seu quarto. Mandaram chamar um médico.
Diversas horas se passaram e Angelique decidiu ir ver como es‑
tava Barnabas. Josette estava sentada em uma poltrona ao lado de
sua cama, chorando de fazer pena. Ela ergueu os olhos avermelha‑
dos pelo pranto.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Ai, Angelique, o que eu vou fazer?


— Como ele está, Mademoiselle?
— Está piorando. Estou com medo que esteja muito pior! O mé‑
dico não conseguiu fazer nada por ele!
Angelique sentiu um assomo de orgulho.
— O doutor veio?
— O doutor esteve aqui e afirmou que medicamente não
existe nada de errado com ele. Mas é como... como se alguma
coisa o tivesse atacado... A expressão de seus olhos, o jeito que
segurava a garganta...
— Há alguma coisa que eu possa fazer?
— Quer se ajoelhar e rezar comigo, Angelique?
— É claro, minha senhora...
Angelique se ajoelhou ao lado de sua patroa, depois se voltou
para ela, com as mãos postas, como se tivesse sido movida por um
impulso súbito e disse:
— Quem sabe, já que você pretende rezar por ele, seria útil ter a
sua medalha de São Pedro, abençoada na igreja de Saint­‑Pierre de
Martinica... A senhora a trouxe consigo?
— Ah, sim! Estava em minha bagagem!
Angelique se ergueu como se a fosse buscar, mas Josette se levan‑
tou primeiro e a impediu.
— Deixe que eu mesma pego — disse ela, ofegante, obviamente
feliz por ter uma desculpa para se ausentar por um momento. —
Por favor, fique cuidando dele...
Ela saiu às pressas. Assim que ficaram a sós, Angelique olhou
para sua vítima.
— Barnabas — cochichou, sua boca bem perto do ouvido dele —
você é um homem tão tolo e parece tão patético deitado aí, desse jeito...
Ele estava coberto de suor frio, sua pele acinzentada, sua boca se
movia sem emitir qualquer som. Ela o tocou de leve na garganta e
ele abriu os olhos.
— Em que está pensando? — disse ela, baixinho, sem rancor.
Esperou enquanto ele olhava para ela, seus pulmões torturados, os

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Lara Parker

olhos remelentos, lutando para falar. Então ela lhe perguntou, com
uma calma que espantou a si própria.
— Há alguma coisa que deseje me dizer?
— Estou morrendo — disse ele, num estertor, sua voz fraca e
dificultosa. Angelique sentiu um espasmo de medo. Mas não, ele
não podia estar para morrer... Era ainda cedo demais e o lenço não
fora apertado tanto assim. Ela começou a se recordar de alguma
coisa, uma memória angustiante e enterrada no poço das lembran‑
ças e, de repente, seu coração começou a bater mais depressa.
— Eu estou morrendo... — repetiu ele, tão baixinho que ela mal
conseguia escutá­‑lo. — Sinto a morte pairando a meu redor...
— Não! Não, você não pode morrer! — disse ela, aproximando­
‑se o mais perto que pôde dele, sua respiração misturada à dele.
— Angelique... por favor... me ajude...
— Eu te amo! Se você morrer, não terei mais ninguém no mundo!
Então a lembrança subiu de onde estava enterrada e a atingiu
como um golpe de adaga.
Chloé!
Ela se ergueu de um salto, disparou pelo corredor até seu quarti‑
nho, o coração saltando pela boca. Suas mãos tremiam quando ela
foi buscar o soldadinho do fundo da gaveta.
Chloé!
Ela puxou o lenço fora, mas descobriu que estava tão apertado
ao redor do pescoço do bonequinho, que não o conseguia desatar!
Mas não tinha apertado tanto, pensou, um pânico gelado a lhe
percorrer as veias, revivendo o pesadelo de tantos anos antes,
afogando­‑se em sua autorrepreensão. Ela matava as pessoas a quem
amava. Ela mesma destruía suas chances de felicidade. O que ela
faria se ele morresse? O que ela faria se o perdesse? Ela ficaria sozi‑
nha, completamente sozinha!
Desesperadamente, ela remexeu nas gavetas de seu toucador,
procurando uma tesoura, um canivete, nada! Repuxou o nó mais
uma vez. Tinha de se afrouxar! Era preciso! Seguiu­‑se um momen‑
to doentio de impotência, as pontas de seus dedos cravando­‑se no

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

pano de seda, as unhas se quebrando, insensíveis à dor, até que, fi‑


nalmente, sentiu uma laçada afrouxar­‑se, enfiou a ponta de um
dedo por baixo do nó e puxou até que se soltasse.
Dentro de sua mente, ela viu Barnabas ofegando, resfolegan‑
do, engolindo ar desesperadamente em grandes haustos que
quase lhe faziam explodir os pulmões, enquanto Josette o abra‑
çava, cheia de alegria.
— Foi uma coisa tão assustadora — disse ele, após se acalmar,
abraçando­‑a. — Eu escutei a morte... cochichando ao meu ouvido...
Angelique ficou sentada ali, inerte, contemplando o soldadinho
entre suas mãos feridas. Mas como eu pude ser tão descuidada? —
pensou. Eu não devo jamais feri­‑lo outra vez. Se ele tivesse morrido,
eu teria ficado sem nada, sem ninguém... Não posso lançar um encan‑
tamento sobre Barnabas de novo. Tenho de descobrir outra maneira,
alguma outra forma de perturbar o mundo ao seu redor, destruir­‑lhe a
esperança, para que ele venha me procurar em busca de consolação... e
então eu serei dele.

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Vinte e Sete

erta manhã, uma carruagem entrou pelo caminho e provocou


grande agitação junto à porta principal. Uma porção de fardos
havia chegado de Paris com o enxoval de Josette para o casamento
e a lua de mel, que seria realizada em Martinica. Os fardos foram
desfeitos e as caixas que continham retiradas com cuidado e trazi‑
das para o andar superior pela criadagem e, uma vez que Josette
havia ido até a cidade com a condessa, coube a Angelique o dever de
desfazer as embalagens. Enquanto ela desamarrava os cordões, pen‑
sava em como se transformara desde sua chegada àquele país, como
se sua natureza inteira tivesse sido envenenada pelos ciúmes. Nunca
seu ódio por Josette fora mais amargo.
Sob o abraço macio dos tecidos de embalagem, ela encontrou
roupa interior de seda, anáguas de renda e vestidos de cetim ou
tafetá com magníficos bordados, pregas e babados. Encontrou
luvas e sapatinhos do mais fino couro de gamo e bonés cremo‑
sos, em que as fitas e as flores de pano disfarçavam totalmente
a armação de palha.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Um chapéu em particular era tão lindo, que Angelique não conse‑


guiu evitar experimentá­‑lo e, no momento em que o colocou sobre os
cabelos e se olhou no espelho, sentiu um peso no coração. Sua beleza
lhe causava agora somente pena, era tão escondida pela sua indumen‑
tária e toucas de criada, que ela pensou nos corais ocultos sob o mar,
em seus jardins de cores cintilantes, mas que, quando quebrados e
expostos ao sol, desbotavam em seguida e empalideciam, como as
cores pastel de seus uniformes sem graça de criada. Contemplou seu
rosto por baixo do chapéu, tão sedutor, tão favorável ao formato de
seu rosto, destacando a nuance e o brilho de seus olhos e a desespe‑
rança de sua situação parecia maior do que ela poderia suportar.
Foi justo nesse momento que a porta se abriu de repente e Josette
apareceu, corada de entusiasmo.
— Eles chegaram! Os pacotes chegaram! De Paris! Ai, Angeli‑
que, deixe eu ver!
Josette correu até a cama e ergueu um vestido que a criada havia
estendido sobre ela, listrado de azul e branco, que parecia ronronar
enquanto se desdobrava contra seu corpo. Foi só no momento em
que se virou para o espelho que viu Angelique, a qual, em sua con‑
fusão, esquecera de tirar o chapéu.
— Ai, mas que lindo! — ela exclamou. — Você ficou encantado‑
ra nesse boné!
Então, ela lhe mostrou um sorriso travesso.
— Angelique — disse depressa, segurando­‑lhe o braço, como
era seu costume. — Vamos experimentar todos os vestidos — as
duas juntas, você e eu!
— Ah, mas não posso — protestou Angelique. — Não são meus.
— Mas aí eu lhe dou um de presente — disse Josette, impetuosa como
sempre, embora piscasse de súbito e a expressão de seu rosto se modificas‑
se por um momento, ao imaginar se não estaria sendo generosa demais.
— Mas quando eu o poderia usar, Mademoiselle?
— Ah, nem sei! Mas que diferença isso faz? Ande logo, experi‑
mente este! — disse ela, jogando­‑lhe um vestido de tafetá cinzento
por cima da colcha do leito.

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Lara Parker

Alguns minutos depois, as duas jovens admiravam­‑se mutua‑


mente enquanto faziam poses em frente ao grande espelho, suas
cinturas naturalmente esbeltas ainda mais apertadas pelos esparti‑
lhos e seus braços delicados revestidos de babados macios. Josette
puxou Angelique para seu lado e passou um braço sobre seu ombro,
enquanto as duas paravam diante do espelho.
— Olha só para nós! — ela sussurrou, encantada. — Não faze‑
mos um par formoso? Você é ainda mais linda do que eu!
— Isso não é verdade, Mademoiselle. Você é que é linda.
— Mas juntas nós representamos todo o encanto da feminilida‑
de. Você com esses cabelos dourados e brilhantes e eu com meus
olhos escuros e profundos. Que pena que algum homem não pode
se casar com nós duas! — riu­‑se brejeiramente, deliciada pela ideia.
Enquanto Angelique contemplava seus reflexos entre as moldu‑
ras douradas, pensou amargamente, sim, era a pura verdade. Josette
era justamente o seu oposto, não somente em coloração, mas em
temperamento. Era como se todo o rancor que se aferventava em
seu coração tivesse sugado toda e qualquer inimizade da parte de
sua patroa, de tal modo que a jovem de cabelos escuros era toda
pureza, confiante e aberta, enquanto seu próprio caráter fora cor‑
rompido por forças malignas que a haviam tornado desconfiada e
fechada para o mundo. E ela soube que estas coisas nunca muda‑
riam, a um ponto tal que lágrimas amargas lhe subiram aos olhos,
tão subitamente que não conseguiu contê­‑las.
— Ah, não, por favor, não chore! — exclamou Josette e correu
até a cama, pegando o chapéu que a vira usando antes. — Tome —
disse ela. — Eu quero que você fique com ele. Não importa que
nunca venha a usá­‑lo. Ande, pegue...
— Eu não posso. Realmente, não posso — recusou Angelique,
sacudindo a cabeça.
— Ah, mas vai poder, senão eu fico muito zangada, muito zan‑
gada mesmo — disse Josette, com um sorriso malicioso. Ela agar‑
rou a mão de Angelique e a puxou para a cama, sem se importar se
amassaria os vestidos estendidos sobre ela. — Escute — ela falou,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

sentando­‑se ao seu lado. — Nós vamos arranjar um belo rapaz para


se casar com você. Eu não posso aguentar ser a única de nós duas a
ser feliz agora. Assim que eu me casar, pretendo me dedicar total‑
mente a casar você também. Vou ser a sua casamenteira! E aí você
vai poder usar este chapéu, eu lhe prometo!

* * *

Chegara o tempo em que precisaria renovar seu estoque de ervas e


pós. O mais importante seria conseguir alguém que a ajudasse, um
ajudante que fosse capaz de lhe conseguir as coisas de que necessi‑
tava. Angelique percebeu como tinha sido descuidada, quão facil‑
mente ela poderia ter despertado suspeitas. Enquanto caminhava
pelo bosque, procurando pés de meimendro, que ali chamavam de
“dama-da-noite” e que era mortalmente venenoso, ela deparou
com o faz­‑tudo semirretardado, cujo nome ela recordou ser Ben, e
que aparecera de repente atrás dela, movendo­‑se sem fazer barulho.
— O que tu está fazendo com essas folhas? — indagou ele,
mal­‑humorado. Ela estremeceu e se virou para trás, assustada
e ruborizada.
— Estou procurando ervas comestíveis — improvisou. — Mi‑
nha patroa... gosta de comer misturadas com a salada. Ela apertou
os olhos. Mas é uma sorte, pensou, que esse sujeito seja um imbecil,
caso contrário jamais acreditaria em uma história tão boba.
— E o que tu pensa que é isso?
— Folhas de louro — respondeu, muito segura de si.
— Mas não é. Isso aí é dama-da-noite, é mortal e venenosa.
— Venenosa? — ela fingiu surpresa.
— Eu já vi umas vacas comerem esse troço e morrerem. Elas
morrem depois de sofrerem uma porção de dores.
— Ah, mas estou tão contente que você me disse — mentiu a
jovem, virando no chão a cesta de folhas. Olhou para ele com gen‑
tileza. — Seu nome é Ben, não é?
Ele concordou.

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Lara Parker

— Eu já o encontrei antes — comentou ela com naturalidade.


— Lembro quando você deu um jeito de erguer a roda da carrua‑
gem da condessa para fora daquela vala. Ora, você tem a força de
dois homens e... e ainda conhece ervas muito bem...
Justamente como ela esperava, o homem ficou bem­‑humorado
com seus elogios.
— Eu te conheço também. Tu é a criada da condessa.
— Meu nome é Angelique. Espero que nos tornemos amigos.
— Eu... eu nem deveria estar falando contigo. Se Mister Joshua
Collins souber, vai mandar me chicotear.
— Prometo que não conto a ninguém — disse ela, tocando­‑lhe
o braço.
— Quase nenhuma mulher quer falar comigo. Elas não gostam
— confessou ele.
— Bem, eu gosto. Gosto muito de conversar com você — afir‑
mou, com um sorriso caloroso, enquanto a ideia de que ela estava
flertando com o infeliz se formava em sua mente.
De volta a seu quartinho, Angelique preparou dois pós, esma‑
gando ervas em um almofariz com um pilão, derramando junto
uma porção de suco de meimendro feito com as folhas que havia
recuperado depois que Ben lhe dera as costas, mais uma gotinha de
seu próprio sangue que pingara após cravar um alfinete na ponta de
um dedo. Então ela olhou para o fogo baixo crepitando em sua la‑
reira. Ela chamou algumas vezes o nome de Ben, em voz baixa e
dentro de alguns momentos, lá estava ele, batendo­‑lhe à porta.
Ele parecia ainda mais apalermado que de costume enquanto ela
o deixava entrar e disse:
— Eu nem sei o que tou fazendo aqui...
— Eu quis que você viesse e você me atendeu — respondeu ela
diretamente. Ele ficou espantadíssimo com as palavras, mas não
perdeu tempo. Um sorriso lascivo se espalhou por seu rosto grossei‑
ro e ele tentou agarrá­‑la desajeitadamente, mas ela se desvencilhou
com um passo de dança e lhe ofereceu a poção.
— Primeiro, beba isto...

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— E depois?
— Depois, veremos — disse ela, ardilosamente.
Ben engoliu o elixir sem hesitação, piscou os olhos e ficou olhan‑
do para ela em uma estupidez apatetada.
— Como se sente?
— Estranho.
— É porque não tem mais sua força de vontade — disse ela, se‑
veramente. — Minha vontade é a sua vontade. Você fará tudo quan‑
to eu lhe disser: doravante, será meu escravo.
Ele tentou se sacudir para se livrar do que lhe parecia ser apenas
um capricho bobo de mulher, mas ela podia discernir o embaça‑
mento em seus olhos que indicava como a poção estava progressi‑
vamente a fazer efeito. Ele balançou nos pés, levemente estonteado,
segurou­‑se no braço da poltrona velha, encarou o assoalho por um
momento, como se estivesse tentando recordar de onde se encon‑
trava, depois ergueu os olhos para ela, preocupado e imbecilizado.
— Agora que você bebeu a poção, está em meu poder — disse
ela, em voz baixa. — E eu o protegerei de todos os maus espíritos,
até mesmo da própria morte! — proclamou, segurando sua mão
imensa, quase uma pata de animal. — Suas mãos serão as mãos que
eu usarei quando as minhas forem pequenas demais, seus braços
empregarei quando os meus forem fracos demais — continuou, en‑
trelaçando seus dedos delicados entre seus dedos grossos. — Dora‑
vante estaremos unidos por cadeias invisíveis que jamais poderão
ser quebradas — concluiu.
Então ela retirou a mão e andou até o toucador, pensou por um
momento e se virou. Ben permanecia parado no mesmo lugar,
contemplando­‑a em total estupor.
— Eu preciso de uma teia de aranha retirada de um carvalho
vivo. Nem sequer um fio da teia pode ser partido. Vá buscar para
mim. Agora vá. Tenho coisas importantes a fazer.
Ben girou nos calcanhares e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
Quando retornou, bastante tempo depois, tinha recuperado a voz; sua
atitude era cautelosa, mas demonstrou uma certa curiosidade.

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— Tive de tirar três antes de encontrar uma que estivesse perfei‑


ta — explicou. — Para que é que tu quer?
Angelique pegou a teia de aranha, que ele havia enroscado cui‑
dadosamente ao redor de um galhinho com uma forquilha.
— É para pôr num vestido — afirmou. Os olhos de Ben se
iluminaram.
— Um vestido! Bem que eu queria ver! — falou com os lábios
frouxos e suas palavras saíam embaralhadas, como se nadassem na
saliva que se formara em sua boca.
— Não é para mim. É para esta mulher.
Ela caminhou com o galhinho e a teia entre as mãos até uma
boneca feita de argila sem grande capricho, que estava parada em pé
sobre a mesinha em que escrevia.
— Tua boneca não tem cabeça.
— Isso não tem importância, porque a mulher é Josette. E o ves‑
tido de teia de aranha será preso contra seu corpo por uma madeixa
do cabelo de seu amante.
— E como é que tu vai pegar um cacho do cabelo de Mister Barnabas.
— Não vai ser de Barnabas — disse ela, sentindo a pulsação de
seu excitamento, enquanto sorria para Ben. — Vai ser de Jeremiah.
O amante de Josette em breve será Jeremiah.
Ben riu, uma gargalhada que lhe brotava do fundo da garganta,
que a irritou profundamente. Ainda que ele fosse obrigado a fazer
exatamente tudo o que lhe mandasse, ainda a estava tratando com
familiaridade, como se os dois fossem iguais.
— Jeremiah? Tou seguro que tu entendeu mal — disse ele.
— Ben, diga­‑me uma coisa. O que um homem mais odeia em
uma mulher?
— Não sei muita coisa sobre as mulheres.
— Vamos supor que você fosse casado com uma mulher, como
você gostaria que ela fosse?
— Ora... que fosse só minha, acho eu.
— E o que você faria, caso ela não lhe fosse fiel?
Ben se enfureceu enquanto imaginava a situação.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Eu... Eu matava ela!


Angelique sorriu.
— Barnabas não vai matá­‑la — afirmou. — Porém, posso ver
perfeitamente o seu rosto... Posso escutar­‑lhe a voz... quando a
mandar de volta para casa! E serei eu quem o confortará!
Ben ficou furioso.
— Tu não pode obrigar ela a fazer isso! Eu vou contar pra ele!
— Mas é claro que você não vai fazer isso nem nada parecido
— disse ela, sua voz escaldante. — Se você abrir a boca para dizer
qualquer palavra contra mim, ficará mudo para o resto da vida!
Ela viu a percepção completa finalmente se alojar no cérebro di‑
minuto de Ben. Ele ficou boquiaberto.
— Tu é uma bruxa! — disse com um espanto atoleimado.
Angelique sorriu novamente perante a simplicidade de seu cérebro.
— Sim, eu sou uma bruxa. E você agora é meu ajudante.

* * *

Mais tarde, naquela noite, ela se sentou diante do fogo e ficou olhan‑
do para a figurinha de argila parada sobre sua mesinha.
— Sim, Miss Josette. Não, Miss Josette — proferiu amarga‑
mente. Seu coração estava frio como pedra e ela inteira se sentia
cheia de ressentimento.
— Ela pensa que pode me dar ordens o dia inteiro — murmurou
Angelique para si mesma. — Mas dentro deste quarto, sou eu que
lhe dou as ordens e ela vai ter de me obedecer.
Ela recordou a alegria que sentira ao chegar a Collinswood.
Como ela fora tola, tão absurdamente ingênua. Quando ele cessara
de amá­‑la e por quê? Seus próprios sentimentos de amor também se
haviam modificado. O que tinha sido uma devoção cálida e alegre
que lhe percorria o corpo inteiro agora se transformara em uma
fixação torturante. Seu amor fora empenado, retorcido, corrompi‑
do até mostrar uma forma totalmente diversa, mais cortante e mais
oblíqua. Era como se uma semente se tivesse virado dentro da terra

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Lara Parker

e mostrado seu lado mais escuro para o sol, antes de brotar como
uma erva daninha pior que uma urtiga.
Talvez ela sempre tivesse sido assim e apenas houvesse reprimido
sua verdadeira natureza até este momento. Ela pensou em seus lindos
recifes de coral junto às praias de Martinica e naquela espantosa va‑
riedade de vida que se desenvolvia junto aos corais. Ela recordou ago‑
ra de que os naturais da ilha, quando lançavam as redes para capturar
os peixes maiores, nunca comiam nenhum dos peixes brilhantemen‑
te coloridos que nadavam entre os recifes, caso estes lhes ficassem
presos nas redes. A carne daquelas criaturas lindas e cintilantes,
cheias de barbatanas ondulantes, em determinadas épocas do ano,
nunca se sabia bem quando, se tornava extremamente venenosa.
Quando ela aprenderia afinal que nada lhe cairia no colo sem
esforço, que nada era realmente previsível. Segundo todas as apa‑
rências, Barnabas se cansara dela. Ela poderia ser capaz de seduzi­‑lo
a outras horas roubadas de carinho e de prazer, mas quem ele agora
realmente desejava era Josette, com toda a sua inocência e vulnera‑
bilidade. Aquele seu olhar familiar, aquela afeição profunda que ela
enxergara no fundo de seus olhos, aquele sorriso encantador, tudo
aquilo seria agora concedido somente a Josette, como se ele estives‑
se executando um papel em uma peça de teatro, já tivesse decorado
suas falas e agora as repetisse, sem dar a mínima para o fato de que
outra jovem atriz a substituíra no papel de ingênua.
Ela tinha de admitir que ele agora demonstrava uma atitude
constante e determinada para com Josette, de fato, agia com ela de
uma forma muito mais séria do que jamais se portara consigo mes‑
ma. Ai, como ela lamentava agora ter ido ao seu quarto na noite em
que usara seu vestido de cetim dourado pela primeira vez! Se ao
menos ela tivesse deixado as coisas como estavam, ela o poderia ter
reconquistado depois de seu casamento com Josette. Mas sem ter o
menor direito sobre ele, ela lhe dera tudo quanto ele desejava.
Ela certamente não era como Josette. Ela nunca experimentara o
luxo de passear por jardins bem cuidados, rindo das tolices que lhe
diziam os jovens cavalheiros que a cortejavam, confiante de que

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

estava magnificamente vestida e penteada, sabendo que todos quan‑


tos punham as vistas sobre ela a achavam formosa. Os dons caíam
sobre Josette como a chuva cai do céu.
Josette nunca tivera a menor preocupação, nunca temera coisa
alguma... Ah, mas isso estava a ponto de mudar.
— Eu vou criar uma nova vida para ela — falou baixinho para o
quarto vazio. — Eu vou lhe dar uma vida de que ela terá tanto nojo,
que somente uma coisa lhe restará a fazer. Este será meu presente
para ela. Este será meu dom. E esta é também — completou com
uma percepção melancólica — a única escolha que me resta...

* * *

Depois que Ben lhe trouxe o anel e o cacho dos cabelos de Jeremiah,
sem que se desse ao trabalho de indagar como os conseguira, Angeli‑
que dispunha de tudo quanto necessitava para seu feitiço. Ela envol‑
veu a boneca com um lenço de Josette e repassou a madeixa de
cabelos escuros através da argola do anel a fim de distribuir e mistu‑
rar os óleos. Era a mais simples das bruxarias, todavia, enquanto ela
começava a entoar as velhas palavras, fórmulas criadas desde o início
dos tempos, ela sentiu­‑se subitamente enfraquecer. Uma sombra lhe
percorria a mente e ela parecia estar girando em um redemoinho.
Ela segurou a beirada da mesinha para se firmar e, tão logo seus
pensamentos clarearam, ela começou de novo. Quando falou, as
chamas do fogo por detrás dela, pularam para cima, como se fos‑
sem um eco despertado por sua voz para lhe responder. Ela sentiu a
pulsação familiar adejar por seus ombros e pescoço e as palavras
começaram a nadar no mesmo ritmo do latejar de seu cérebro e ela
farejou aquele odor acre que recordava de tanto tempo atrás.
— O óleo do anel de Jeremiah prenderá os cabelos em um cinto
para a teia do amor.
Ela colocou a delicada teia de aranha com o máximo cuidado
para que não se rompesse sobre a cabeça que recentemente moldara
e os fios ondularam e se grudaram na argila fresca.

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Lara Parker

— A teia do amor capturará Josette e os fios da teia serão fortes


como o ferro — determinou, fechando os olhos e murmurando. —
Josette ama Jeremiah. Josette ama Jeremiah. Josette ama Jeremiah.
Enquanto o poder latejava, seu corpo se enrijecia e espasmos de
prazer pulsavam em suas partes mais íntimas. Então, ela foi domi‑
nada por uma tontura e desmaiou. Tombou no assoalho e ficou
caída ali durante um quarto de hora, antes de recobrar a consciên‑
cia e se recordar do que havia feito.

* * *

As coisas principiaram lentamente, mas Angelique não se podia im‑


pedir de sentir­‑se fascinada pelo progresso do encantamento. Josette
colocara o seu vestido listrado nessa manhã, um que era, de fato, de
longe sedutor demais para sua índole, mas servia em sua figura de‑
licada como o esmalte sobre uma boneca de porcelana. Ela então
caprichosamente insistiu que Angelique lhe penteasse os cabelos em
forma de arco, projetando­‑se para os lados e fazendo com que suas
massas de cabelos castanhos caíssem soltas para lhe recobrir os om‑
bros, deixando visível o pescoço.
Angelique sorriu para si mesma ao escutar Josette iniciar uma
discussão infantil com Barnabas sobre se o deixaria ou não beijá­‑la
essa manhã. Estava certa de que os efeitos da magia estavam come‑
çando a se manifestar e que ela precisava apenas ser paciente e espe‑
rar para ver os resultados. Josette já estava se portando feito uma
namoradeira tonta.
Angelique ficou intrigada quando Barnabas lhe pediu que o en‑
contrasse na sala de visitas. Quiçá ele já estivesse começando a
cansar­‑se de sua noiva frívola. Mas no momento em que lhe viu o
rosto, seu corpo inteiro se contraiu. Ele parecia mais zangado do
que jamais o vira antes.
— O que você sabe a respeito disto? — indagou friamente,
estendendo­‑lhe uma grande caixa quadrada.
— Nada — ela respondeu simplesmente.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Acho que você sabe.


— Por que eu saberia? O que tem nessa caixa? — indagou, mais
curiosa do que assustada.
— Um presente de casamento — disse ele com um sarcasmo
arrepiante. — Abra a caixa e veja você mesma.
Angelique hesitou por um momento e então, colocando a caixa
sobre a mesa do centro, ergueu a tampa. O choque provocado pela
visão congelou­‑lhe o sangue e a fez erguer­‑se de súbito. Dentro da
caixa, disposta de modo a encará­‑la, estava um crânio humano, um
crânio branco de dentes expostos, usando uma peruca grossa de fos‑
cos cabelos castanhos! Ela deu dois passos para trás, cheia de nojo.
— Foi você quem mandou?
— É claro que não!
— Obviamente, foi enviada por alguém que não aprova nosso
casamento.
— Mas como eu poderia? Eu nem sequer saí da propriedade des‑
de o dia em que cheguei!
— Em quem mais eu posso pensar, então? — acusou­‑a, com
um olhar tão frio e cheio de desprezo que as lágrimas lhe subi‑
ram aos olhos.
— Você está agindo como se nem sequer me conhecesse, como
se não soubesse coisa alguma a meu respeito — protestou — quan‑
do me conhece tão bem!
Uma onda de desespero a percorreu.
— Você sabe que eu jamais faria qualquer coisa que lhe
provocasse o ódio! — exclamou, fugindo da sala para escon‑
der as lágrimas.
De volta a seu quartinho, Angelique foi até a janela e ficou olhan‑
do para fora sem ver, esforçando­‑se para retomar o controle de si
mesma. Só podia pensar em um único ser que pudesse possuir um
senso de humor tão tétrico e tão vil.
Teria ele estado sempre à volta dela, pairando por perto, espe‑
rando que ela enfraquecesse? Seus longos anos de abstinência e au‑
torrestrição não significavam nada? Teriam desaparecido como

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Lara Parker

uma seca interminável que é dissolvida por uma única chuvarada?


Ele havia retornado e viria buscá­‑la, mesmo que ela tivesse pratica‑
do somente uns encantamentos bobos, aquilo que o Bokor denomi‑
nara de “mexer com seus brinquedinhos”. Contudo, tinham sido o
bastante. Ela girou nos calcanhares e olhou em volta do quartinho,
sentindo­‑se totalmente indefesa.
— Você está aqui? Está comigo agora? — sussurrou.
Ficou esperando sem invocar, sem despertar a força e escutou
atentamente. Não ouviu qualquer som, não houve nenhuma pertur‑
bação no ar, nada em absoluto, apenas o silêncio que tremulava com
as batidas de seu coração. Será que valia a pena arriscar­‑se a seu retor‑
no? Ela era só uma criança quando ele lhe aparecera pela primeira
vez. Tinha sido jovem demais para desafiá­‑lo e tampouco sabia como
se proteger. Em algum lugar, nas profundezas de sua alma, encontrava­
‑se o poder para combatê­‑lo e ela precisava voltar­‑se para o interior
mais íntimo de si mesma, a fim de despertar e brandir esse poder.
Mas primeiro tinha de parar com estas feitiçarias infantis, indignas
de seus talentos e que somente haviam servido para perturbar a longa
trégua que protegera sua alma até então. Ela prometeu a si mesma
que não executaria mais nenhum encantamento.

* * *

Contudo, sua resolução era fútil, porque o feitiço já se mani‑


festava. Para seu desalento, naquela noite Josette desceu o corre‑
dor a caminho do quarto de Jeremiah. Ela usava uma camisola
fina cor de lavanda, impudicamente reveladora e seu rosto estava
corado. Ela caminhava como se estivesse em transe. Estava tão
concentrada no que fazia, que nem sequer viu Angelique, que vie‑
ra prepará­‑la para dormir, como fazia todas as noites, depois que
a condessa a dispensava.
Josette bateu à porta de Jeremiah e, quando ele respondeu­‑lhe,
falou­‑lhe em voz baixa, abafada mas ardente. Angelique não teve
meios de saber o que se passara, mas Josette retornou a seu próprio

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

quarto profundamente perturbada e envergonhada. Ela se jogou


sobre a cama sem falar e recusou­‑se a ser consolada.
O encantamento havia começado a funcionar, pensou Angelique
e não havia mais nada que ela pudesse fazer para impedi­‑lo, mesmo
que tivesse tido vontade.
Na manhã seguinte, ela casualmente encontrou Jeremiah na
sala de visitas. Ele parecia perturbado e introspectivo, mas apro‑
veitou a presença da criada para lhe indagar a respeito do estado
de ânimo de Josette.
— Como estava sua jovem ama quando você a deixou ontem
à noite?
— Ah, muito bem, senhor.
— Ela se sente feliz aqui?
— Ora, senhor, é claro, ela está muito feliz.
— Você não acha que ela esteja de algum modo... abalada?
— Absolutamente não, senhor — insistiu. — Ela está... exata‑
mente como era em casa.
Ela viu a insinuação atingir o alvo. O queixo de Jeremiah se
apertou e ele sacudiu a cabeça resignadamente. Ele estava tendo di‑
ficuldade em acreditar no que Josette havia feito. Realmente, como
se poderia procurar qualquer depravação em um caráter tão imacu‑
lado? A virtude intocada de Josette era tão óbvia quanto a aurora.
Angelique sentiu uma onda de piedade por ela, mas logo a des‑
cartou sem lhe dar maior atenção. Por que somente Josette dever­
‑se­‑ia escapar aos caprichos do fado? Ela sabia que Jeremiah estava
pretendendo contar a Barnabas que sua noiva não merecia confian‑
ça. O orgulho de Barnabas seria ferido e sua arrogância diminuiria
de súbito, mas ele jamais aceitaria casar­‑se com Josette se descobris‑
se que ela era inconstante.

* * *

A conversa de fato ocorreu nessa mesma tarde. Josette, ainda se


sentindo humilhada por sua atitude impensada, permaneceu

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Lara Parker

trancada no quarto e mandou Angelique avisar que não estava se


sentindo bem. Depois de transmitir sua mensagem e suportar o
desapontamento evidente na fisionomia de Barnabas, Angelique
permaneceu no corredor, escutando a conversa que ele entabula‑
ra com Jeremiah.
— Não acha Josette encantadora? — perguntou Barnabas, ino‑
centemente. — Você já percebeu a atenção com que ela escuta e a
maneira gentil com que se movimenta? A única coisa que eu não
entendo é por que ela me escolheu. Eu não a mereço.
Jeremiah murmurou algumas palavras de assentimento, procu‑
rando uma forma de abordar um assunto tão difícil diante de tanta
adoração. Acabou dizendo:
— Talvez você não conheça Josette tão bem quanto pensa...
— Meu Deus, Jeremiah, o que o leva a dizer uma coisa dessas?
— Você sempre me disse que eu tinha uma percepção acurada
do caráter das pessoas.
— E você acha que alguma coisa está errada com ela? Você não
gosta dela?
— Sim, mas é claro que eu gosto dela — disse com hesitação e
depois acrescentou, a despeito de si mesmo. — Gosto demais até.
— Ela também gosta de você, se é isso que o está preocupando.
De fato, acho até que ela tem ciúmes de você, de nossa amizade. Ela
espera profundamente por sua aprovação.
— E de que modo você pensa que ela irá buscar minha aprovação?
— Santo Deus, Jeremiah, como você está sério! Ela não tem a
menor necessidade de ir buscar a sua aprovação. Talvez seja o con‑
trário, você é que está com ciúmes... Estou certo? Não acha que eu
tive uma sorte fabulosa?
Jeremiah hesitou e depois pareceu desistir de seu intento inicial.
— Você é afortunado por ser capaz de amá­‑la tão inteiramente —
acabou por dizer. — E mais ainda por confiar nela tão completamente.
O ciúme explodiu novamente no coração de Angelique, aliado à
cólera de que suas conjurações não haviam culminado em uma re‑
velação das impropriedades de Josette. A frustração fortaleceu­‑lhe a

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

determinação e ela decidiu desistir de seu plano inicial de fazer com


que Josette suportasse a dor do amor não correspondido que ela
mesma conhecia tão bem. Chegara a hora de Jeremiah responder e,
de fato, desejar os avanços de Josette.
Mas desta vez, ela foi atrapalhada por uma trepidação interior,
uma inquietude espiritual que tornou difícil a criação de uma nova
poção. Ela descobriu a erva de que precisava na mata próxima e o
catalisador estava guardado em uma bolsa que mantivera por tanto
tempo dentro da caixa. Ben era o encarregado de levar a Jeremiah
todas as noites uma taça de chocolate e derramaria a poção dentro
da bebida se ela ordenasse, mesmo contra a vontade. O plano não
tinha falhas, mas sua execução frustradoramente estática. Ela teve
dificuldade em se concentrar, porque sabia que estava usando ape‑
nas truques superficiais, mas tinha medo de chegar mais fundo.
Enquanto trabalhava, as palavras do Bokor explodiram em
sua mente. “Você pode fazer com que alguém o ame?” — ela inda‑
gara e ele lhe respondera: “Você me paga seu dinheiro e depois
aguenta as consequências”.
Um elixir de amor era difícil de fazer, porque o encantamento
interferia com a mão do destino. Ela jamais usaria esse feitiço em
Barnabas. Ele tinha de voltar para ela como voltara a Martinica,
porque a desejava, porque a queria, porque era devotado somente a
ela. Ela tinha pleno conhecimento de que ele a amava e que precisa‑
va somente suprimir os impedimentos à plena manifestação desse
amor. O que ela precisava fazer era eliminar Josette da maneira
mais rápida e indolor que fosse possível.
Não obstante, sua amargura turvava a claridade de seus pensa‑
mentos e um miasma rodopiante se movia dentro de seu cérebro,
enfraquecendo­‑lhe o corpo inteiro. Sua saudade de Barnabas inter‑
feria com sua capacidade de realizar as escolhas que permitiriam a
realização de seus objetivos. Ela estava certa de que lançar este en‑
cantamento era a decisão correta, mas parecia estar perdendo a ha‑
bilidade de se enfocar. A única coisa de que tinha certeza era sua
determinação para impedir o casamento. Josette deveria fugir com

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Lara Parker

Jeremiah. Então Barnabas perceberia como tinha se enganado com


relação à noiva e até que ponto Angelique o amava. Ela se prendeu a
essa crença com todas as suas forças.

* * *

Naquela mesma noite, os dois apaixonados se encontraram à luz da


lua junto à fonte de mármore presidida por uma estátua de Diana,
inexplicavelmente atraídos um para o outro. Contudo, para extre‑
mo desgosto de Angelique, a Condessa du Prés seguiu Josette sub­
‑recepticiamente até o jardim, enquanto ela saía de casa. Pior ainda,
ela observou de certa distância, escondida por um arbusto do jar‑
dim, como Josette e Jeremiah faziam juras de amor aos pés da Deu‑
sa Caçadora, mas de uma forma claramente estilizada e trocando
beijos hesitantes. A artificialidade de seu encontro convenceu a
condessa, que era vaidosa, mas não estúpida, de que Josette estava
agindo contra os verdadeiros desejos de seu coração.
Como resultado, Angelique passou a encontrar alguma dificul‑
dade da parte da condessa, que apresentava uma ressonância na‑
tural com o sobrenatural e se orgulhava de ser capaz de realizar
alguns truques idiotas como a leitura do futuro por meio de um
baralho de tarô. Estes talismãs da profecia continuavam a revelar,
segundo ela afirmava, uma “força maléfica” que de algum modo
residia na casa. Mas a condessa podia realmente perceber que Jo‑
sette estava agindo de forma muito diferente de sua verdadeira
maneira de ser, salvo no que tangia à força de sua elasticidade e
capacidade de recuperação.
O caráter de Josette era dotado de uma integridade tão completa,
que ela era capaz de lutar contra o feitiço inconscientemente com
cada fibra de seu ser. A magia a capturava e a forçava a agir de uma
forma contrária a seus princípios, mas depois dos arroubos de pai‑
xão com o tio de seu noivo, ela se sentia desconsolada e perseguida
pelos remorsos. Ela ficou mal­‑humorada, cheia de segredos, o que,
por sua vez, aumentava ainda mais as suspeitas da condessa.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Mas apesar da vigilância de sua patroa, Angelique estava con‑


vencida de que o encantamento alcançaria seus objetivos. Tentou
controlar sua ansiedade, constantemente imaginando dentro de sua
cabeça a expressão do rosto de Barnabas quando ele finalmente
percebesse que Josette o estava traindo. Ela ignorava a maneira ne‑
gligente como ele a tratava, prendendo­‑se à crença de que ele estava
reprimindo seus verdadeiros sentimentos. Mas o Espírito Negro fez
outra aparência insidiosa, quase como se estivesse provocando An‑
gelique. A marca do tridente do diabo apareceu misteriosamente
em uma das mãos de Josette.
Josette ficou profundamente alarmada ao contemplar o símbolo
maligno, esfregando­‑o como se estivesse com as mãos sujas de ter‑
ra, mas não sentiu maior pavor do que Angelique, que instantanea‑
mente compreendeu a origem da marca.
— Mas o que pode ser isso? — indagou Josette, apavorada. —
Não quer sair!
— Não faço ideia, minha senhora.
— Talvez seja alguma batida que eu dei sem sentir...
A marca era aberrante e muito mal desenhada, como se o diabo
estivesse fazendo algum esforço desajeitado para ajudar Angelique
em sua empresa. Ela achou um pretexto para examiná­‑la mais de
perto e achou que fosse uma coisa tão ridícula que quase riu. Pres‑
sionada a consolar sua jovem ama de algum modo, ela inventou:
— Eu tinha uma marca parecida com essa em uma das pernas
quando era criança — comentou e como era irônico que, ao
oferecer­‑lhe comiseração, tivesse lhe contado a verdade envolvida
em uma mentira. — Eu consegui remover aos poucos com água de
rosas — acrescentou.
Confiando­‑se aos cuidados e ministrações de sua criada, Josette
permitiu que Angelique esfregasse a marca com água de rosas. A
colônia estava em um frasco sobre o toucador de Josette, que Ange‑
lique secretamente havia batizado com umas gotas de seu elixir de
amor. A complicada teia de mentiras estava prendendo a todos eles
dentro de suas malhas.

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Lara Parker

A marca efetivamente desapareceu com a lavagem com água de


rosas, porém no dia seguinte, para o pavor de Josette e a cólera de
Angelique, lá estava ela de novo, tão escura quanto antes; pior ain‑
da, uma marca igual surgira na mão de Jeremiah. Angelique sabia
que os dois namorados perplexos tentariam apagar os tridentes so‑
zinhos, dentro do quarto de Josette, sem pensarem em tirar a colô‑
nia de seu toucador e que suas esfregações furiosas não resultariam
em nada, somente em carícias inevitáveis e, finalmente, em um
abraço ainda mais inevitável.
Era como se o próprio Diabo a estivesse assistindo agora, traba‑
lhando a seu lado, criando feitiços tão infantis quanto os dela, a fim
de provocá­‑la e troçar dela. Ele não se apresentou e não lhe falou
uma palavra, mas ela sabia que se encontrava nas sombras, marcan‑
do passo, esperando sua hora.

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Vinte e Oito

inalmente André du Prés chegou de Nova York para a celebra‑


ção do matrimônio de sua filha. Angelique sentiu­‑se curiosa‑
mente alegre ao vê­‑lo e ele a saudou com civilidade, aliviado por ver
um rosto familiar, embora se mostrasse irritadiço e formal, como
sempre, sentindo­‑se ignorado e desprestigiado ao ver que ninguém
da família Collins se apresentara para recebê­‑lo.
— Angelique, minha cara — disse ele, com uma inclinação ca‑
sual da cabeça — onde diabos se meteu todo o mundo?
Ela sorriu, ao ver que para sua visita André havia adquirido um
belo terno de lã azul­‑clara, que mascarava adequadamente a ampli‑
dão de sua cintura e que estava usando uma cartola de proporções
magníficas da mesma tonalidade.
— Vou dizer a Josette que o senhor chegou — disse ela, sentindo
pela primeira vez uma pontada de culpa ao perceber que este ho‑
mem bem­‑intencionado seria magoado pelo comportamento de
sua filha. Quando Joshua Collins saiu de seu escritório, André pa‑
receu desajeitado e intimidado pelas maneiras impecáveis do outro.

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Lara Parker

Que coisa bem triste, pensou ela, já que André, na verdade, possui
muito mais propriedades e dinheiro vivo.
Mas André era “rico como um crioulo” conforme corria o dita‑
do, e o dinheiro proveniente do açúcar não era considerado na épo‑
ca “dinheiro antigo”, não da mesma forma que a riqueza derivada
dos estaleiros e do comércio mercante. De acordo com Joshua
Collins, os senhores de engenho caribenhos eram gentinha da Eu‑
ropa que tinha conseguido superar suas origens inferiores. Contu‑
do, pensou Angelique amargamente, Joshua por certo não se
opunha àquela união que traria uma riqueza incontável para a fa‑
mília Collins, mesmo que não lhe aumentasse o prestígio.
André percebeu imediatamente que sua filha estava insegura.
Ele não poderia se demonstrar mais compreensivo e solícito ao
pressentir a situação e mais uma vez Angelique invejou Josette por
possuir um pai tão amoroso que lhe demonstrava uma afeição tão
doce e permanente.
Naquela noite, enquanto tomavam uma bela garrafa de vinho
francês, a condessa entreteve uma longa conversa com o irmão e lhe
contou tudo o que havia ocorrido desde sua chegada a Collinsport,
inclusive o comportamento inesperado e inaceitável de Josette. Os
dois se sentiam muito à vontade um com o outro, afetuosos e felizes
de poder trocar confidências novamente e Angelique foi enviada
para buscar outra garrafa na adega de Joshua. Sorrindo para si mes‑
ma sobre a reação a ser manifestada pelo patriarca ao descobrir a
perda inesperada, ela atiçou o fogo da lareira e acrescentou dois to‑
quinhos, garantindo­‑se uma desculpa para permanecer por mais
algum tempo no salão luxuoso.
— Deus que me perdoe se eu deixar que ela se case com um ho‑
mem que não ama! — explodiu André. — Qual desses fulanos ela
realmente quer?
— André, escute­‑me — pediu a condessa. — Eu cheguei à con‑
clusão, por mais ridículo que possa parecer, que Josette se encon‑
tra sob algum tipo de encantamento, que... existe uma bruxa
nesta casa ou algum demônio cruel, forçando Josette a cair nos

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

braços de Jeremiah. Tenho certeza de que eles não se amam de


verdade. Ela está agindo como se estivesse em transe.
— Isso é besteira! Sabe de uma coisa, Natalie? Sua imaginação
foi excessivamente estimulada pelo tempo em que morou nas ilhas.
Josette sempre foi uma menina caprichosa e nunca sabia o que real‑
mente desejava. Eu sempre a adorei e sempre a mimei, você sabe
muito bem disso, cansei de lhe comprar coisas que ela descartava
logo em seguida e mais ainda, você sabe disto tão bem quanto eu,
embora muitos daqueles peralvilhos metidos a elegantes lá da ilha
estivessem sempre circulando ao redor dela e lhe fazendo a corte o
tempo todo, ela nunca esteve em companhia de verdadeiros cava‑
lheiros. Barnabas foi o primeiro e Jeremiah, embora seja um pouco
mais velho, é um rival bastante óbvio.
— Mas ele é tio de Barnabas e sempre foram os melhores ami‑
gos desde que Barnabas era menino. Não importa se você quer
acreditar em bruxaria ou não, o que eu acho é que este casamento
está em perigo.
— Bem, então vamos suspender essa porcaria infernal de uma
vez! Vamos navegar de volta para Martinica e que o diabo leve
todos eles!
— Não, é o contrário. Eu acho que Josette deve se casar com
Barnabas imediatamente. E quanto mais cedo, melhor!
Angelique, segurando o atiçador entre as chamas por um tempo
longo demais, subitamente se deu conta que já estava muito quente
e quase lhe queimara os dedos. Ela largou o instrumento na lareira,
sua ponta ainda no fogo, indecisa sobre como fazer para retirar o
objeto dali. A condessa escutou o ruído, deu­‑se conta de sua presen‑
ça e virou­‑se para ela.
— Está dispensada, Angelique. Pode sair.
Mas ela não foi além do corredor. Sentia que suas pernas não a
conduziriam até seu quarto e se inclinou contra a balaustrada da
escadaria, sentindo a cabeça rodar. O casamento estava planejado
para ocorrer daí a semanas e ela pensara dispor de tempo suficiente
para aperfeiçoar suas manipulações. A esse ponto, o romance entre

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Lara Parker

Jeremiah e Josette estava em ponto morto. De fato, ambos lutavam


desesperadamente contra a atração, porque ambos dispunham de
um senso de conveniências profundamente entrincheirado.
— Você quer fazer com que eles casem antes dessa cerimônia
elaborada que todos estamos planejando com um esforço tão estrê‑
nuo? Segundo me fizeram acreditar, esse maldito casamento seria o
principal evento social da estação. Pois já não convidaram uma
enorme lista de gente?
André assumira o papel de advogado do diabo e mesmo através
da porta, Angelique conseguia perceber que sua voz se acalorara em
função do vinho ingerido.
— Eu sei disso — respondeu a condessa. — Tudo por aqui é tão
controlado, tão aborrecido. Nos trópicos, as decisões se derretem
como cubinhos de gelo, mas por aqui as geleiras são muito duras...
e permanentes.
— Eu não sei se posso culpar Josette — disse André, com um
elemento em sua voz que Angelique jamais percebera antes: algo de
pensativo e levemente melancólico. Ela deslizou para a parede por
trás da porta para poder captar cada nuance.
— Diga­‑me, Natalie, agora que está mais velha e mais sábia, da
mesma forma que eu, o que... quando você era jovem... o que pen‑
sava do amor?
— Amor, André? Minha Nossa Senhora, eu nem me lembro
mais! Era... ora, muito bem, era um arrebatamento! Era uma felici‑
dade inegável e irresistível!
— Sim, ah, sim... — murmurou ele. — Irresistível... arrebata‑
mento... Eu nunca lhe contei isto antes, Natalie, por mais íntimos
que sempre tenhamos sido, mas Marie não foi meu único e verda‑
deiro amor. Ela foi uma esposa devotada e eu sempre gostei muito
dela. De fato, sempre a respeitei. Ela vinha de uma boa família,
como você sabe muito bem e a união foi arranjada por ambas as
famílias, como era apresentável. Eu casei com ela para agradar nos‑
so pai e devo dizer que nunca lamentei minha decisão. De fato, fi‑
quei profundamente enlutado quando ela faleceu. Era uma mulher

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

amorosa e doce e me deu esta filha encantadora que é a luz de mi‑


nha vida. Mas ela não era a mulher que povoava meus sonhos.
— Ah... mas então, quem era?
André suspirou profundamente.
— Nunca admiti isto antes a qualquer alma viva — declarou,
um tanto pomposamente — mas a verdade é que eu nunca real‑
mente soube. Eu era jovem, um rapaz esbelto e robusto, se é que
posso descrever a mim mesmo desta forma... você ficaria espantada
se tivesse me visto então. Ah, sim, eu era jovem e aventureiro e cheio
de presunção. Adorava cavalgar. Naquela época, a maior parte de
Martinica ainda era bastante selvagem e eu tinha um cavalo mag‑
nífico que levava para o mar. Alguma vez você andou a cavalo mar
adentro durante a maré alta?
— Não, eu não, nunca... santo Deus!
— Você não pode imaginar a sensação de montar um cavalo
nadando. Aquele animal poderoso, espalhando a espuma das on‑
das, fendendo as águas, flutuando, esticando as patas para tocar na
areia do fundo, pulando sobre as ondas que se esbatiam contra a
praia, atravessando as cristas e meio mergulhando sob as águas,
depois tomando impulso no fundo e galopando de novo até a su‑
perfície... é uma sensação inacreditável! Quando eu estava em seu
dorso, eu me sentia... como um Deus!
— E como foi que você encontrou essa mulher?
— Hein? Ah, sim, certa manhã bem cedo, eu galopei quilôme‑
tros a fio pela linha da costa, bem onde as ondas se quebravam, uma
grande distância de onde eu morava, quando vi uma jovem juntan‑
do conchas ou mexilhões, junto à linha da maré. Puxei as rédeas e
fiquei olhando de longe. Ela usava um pedaço de tecido enrolado no
corpo, multicor, com todas as tonalidades que os corais mostram
sob a água, era graciosa como uma dançarina, de fato, me deixava
encantado cada vez que se abaixava para pegar seja lá o que estives‑
se juntando e colocar dentro de uma cesta que trazia pendurada no
braço esquerdo, balançando junto aos quadris — relatou. — Eu
simplesmente não lhe posso dizer o que me aconteceu, mas senti­‑me

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Lara Parker

totalmente atraído por ela. Ela era, bem... irresistível, como se não
fosse uma mulher real, mas uma visão que eu precisava confirmar
antes de me animar a lhe dar as costas. Foi a mesma coisa que ver
uma dessas aves raras que aparecem ocasionalmente na floresta da
ilha, sabe a que me refiro, com plumagem tão bela, que a gente vai
se arrastando devagarinho para mais perto, quase sem respirar, só
de perceber como é magnífica, sabendo que simplesmente se preci‑
sa observar mais de perto para ver melhor...
— Sim, eu sei — disse a condessa. — Isso eu também já fiz.
— Eu recordo que deixei o cavalo solto para pastar e mergu‑
lhei no mar, acho que pensando que podia, ou esperando poder
nadar para mais perto, oculto pelas ondas, observando sem ser
visto. Acho que eu temia que ela simplesmente desaparecesse
caso me enxergasse...
— E depois você diz que eu é que peguei a imaginação dos ilhéus...
— Quando eu caminhei para fora do mar, ela ergueu os olhos e
me sorriu e, você não deve ficar chocada com isto, Natalie, mas eu
percebi imediatamente que ela era uma quadrarona, uma mulata
três quartos branca.
— Sabe, eu ia lhe perguntar... naturalmente...
— A pele dela era cor de mel e tinha longos cabelos negros e olhos
que pareciam os de uma tigresa. Era de uma beleza total e absoluta.
Não me disse uma palavra, somente se virou e acenou para que a se‑
guisse ao longo da praia até sua cabana, tal qual estivesse me esperan‑
do... — ele sorria com a reminiscência. — Eu caminhei atrás dela,
naturalmente e ainda posso recordar seus cabelos negros balançando
às suas costas, caindo abaixo da cintura em uma cascata luxuriante,
e abaixo deles havia uma fresta no vestido, você entende? Eu avistava
aquela parte dourada de sua pele entre a cintura e acima das nádegas
e depois a curva mais ampla que estava coberta pelo tecido do vestido
de algodão, um... pareu, como eles chamam.
Após uma breve pausa, ele continuou:
— Ela me levou para dentro e sua cabana cheirava a hortelã e
louro e percebi que o mesmo cheiro emanava dela, fragrâncias her‑

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

bais, especiarias... Havia maços de flores secas pendendo do teto.


Ela me alimentou, cuidou de mim e... cantava para mim, Natalie!
Eu me lembro dessas canções com sabor de mel. Ela era como uma
deusa entrevista num sonho — era como uma flor, mas não umas
dessas flores de papel que vocês usam nos chapéus, essas coisinhas
frouxas e frágeis — explicou. — Nem uma flor comum de jardim,
ela me fazia pensar em uma orquídea, essas que crescem bem no
alto das árvores, que não são parasitas, mas epífitas, que vivem da
umidade do ar — cerosas, firmes, como a madrepérola do interior
de uma concha, como se tivesse um lustro próprio, seus olhos escu‑
ros e sua boca como o centro delicado de uma orquídea...
— E você ficou com ela?
— Se eu fiquei? Mas é claro que fiquei! Dias, semanas, nem me
lembro mais. Eu só posso dizer que ela foi a única mulher que eu
realmente desejei. Ela me deu isso que você falou... arrebatamento...
E eu nunca me esqueci dela.
— E por que você não...
— Por que não me casei com ela? Ah, sim... — suspirou. — Bem,
certa manhã eu me acordei e ela tinha saído por um motivo ou ou‑
tro... Feito o idiota que eu era naquele tempo, saí pela praia até en‑
contrar meu cavalo, voltei para casa e, dentro de seis meses, me
tornara um respeitável homem casado, no “rol dos homens sérios”,
como diziam e Marie era minha esposa.
— E você nunca retornou?
— Você consegue acreditar nisso? Eu sou mesmo um bastardo
insensível. Pois nunca voltei. Não, estou mentindo. Anos depois,
muitos anos depois, eu estive naquela parte da praia e encontrei a
cabana, mas estava derruída e abandonada. Ela não estava mais lá.
Não, Natalie, eu nunca mais a encontrei.
Angelique só não desmaiara porque apoiara as costas firmemen‑
te contra a parede, arrepios erguendo os pelos finos de seus braços.
Ergueu a mão direita até o rosto e retraçou cada uma de suas feições
com a ponta dos dedos, depois massageou o pescoço e acabou cru‑
zando os braços firmemente contra o peito. Era quase impossível

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Lara Parker

acreditar no que ouvira. André era seu pai! Mas é claro! Ela tinha
seus olhos e seus cabelos muito claros e, se não fosse por um truque
cruel do fado, também portaria seu nome. Ela sempre acreditara
que tinha formação aristocrática, que era uma dama no coração e
na alma e agora sabia que tudo era verdade. O ressentimento explo‑
diu novamente através dela. De algum modo, essa revelação apenas
a deixou mais desconsolada. Encontrara seu verdadeiro pai!

* * *

O dia fora extremamente frio e escuro, e o vento chicoteava os


ramos das árvores, que se esbatiam contra as vidraças, arranhando­
‑as como espectros suplicando passagem através dos vidros. Os
trovões rugiam a distância, avisando da aproximação de uma
tempestade e finos riscos perfuravam o céu sombrio quando caí‑
am os relâmpagos. Angelique estava parada junto à janela, pen‑
sando que nunca vira um sol tão lúgubre, tão impotente contra a
escuridão, enquanto fracas réstias de luz se projetavam timida‑
mente através das nuvens.
A amargura e a histeria combatiam dentro dela pelo controle
de suas emoções. O casamento fora antecipado para aquela noite
e agora ela cria não haver nada mais que pudesse fazer. Ela havia
derramado um pouco mais da poção de amor na água de rosas
de Josette, mas ela não gostava muito de perfumes e não chegara
a usá­‑la. Uma oferta para massagear­‑lhe a testa com a água de
rosas fora recusada.
Contudo, Angelique ainda se prendia à ideia de casar­‑se ela mes‑
ma com Barnabas, como se sua vida inteira estivesse em jogo. Cada
revés cruel apenas fortalecia sua resolução. Os pensamentos cor‑
riam apressados dentro de sua mente. Jeremiah! Ele era sua única
esperança! Contudo, nessa tarde mesma ele prometera a André que
sairia de Collinsport. O que ela poderia fazer? Ele garantira que
tomaria a primeira diligência para fora da cidade, empacotara seus
pertences às pressas e mandara encilhar seu cavalo. Embora ele

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

soubesse que Joshua nunca o perdoaria caso viesse a saber, tanto ele
como Josette haviam reconhecido sua situação vergonhosa e o es‑
cândalo iminente que estraçalharia a família. Confuso e irado, ele
tomara a galante decisão de sacrificar seu trabalho nos estaleiros e
renunciar a seu amor por Josette, apesar do fato de que ele se sentia
mais fortemente atraído por ela do que jamais estivera por qualquer
outra mulher durante toda a sua vida.
Depois de uma busca desesperada, Angelique encontrou Ben
cortando lenha atrás da casa. Com a aproximação da tempesta‑
de, a casa precisaria de um bom estoque de achas e toquinhos.
Quando ele a viu, riu de sua cara, um gargalhada aguda, que
mais parecia um latido.
— Não tinha mágica bastante no teu bruxedo! Tu não conse‑
guiste pegar ele!
Ela apertou a capa ao redor do corpo, estremecendo com o golpe
do vento gelado.
— Escute­‑me, Ben... Preciso fazer outro encantamento. Consiga­
‑me qualquer coisa de Jeremiah. Uma coisinha pequena.
Ben se ergueu em toda a sua estatura, parecendo uma torre ao
lado dela e ele sentiu o cheiro rançoso e acre de seu suor.
— E por que não vai buscar tu mesma?
— O quê? Eu jamais entraria no quarto de um cavalheiro. Uma
dama não faz esse tipo de coisa e nunca darei o menor motivo para
que Barnabas se envergonhe de mim!
Houve um golpe de trovão e o vento sacudiu os topos das árvores
em um frenesi caótico.
— Por que tu percisa machucar as pessoa?
— Apenas firo aquelas que me feriram primeiro.
— E o que foi que Miss Josette te fez?
— Ela me tirou o homem que eu amo!
— Ele ama ela e não tu! Não dá pra ver? — exclamou, soltando
uma casquinada fanhosa, seguida de um grunhido no fundo da
garganta que mais parecia emitido por uma fera que por um ser
humano. Ela ficou furiosa.

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Lara Parker

— Ben, você é estúpido e retardado! Não tem capacidade para


entender nada. Você pensa que o curso do amor verdadeiro não
pode ser alterado nunca? Barnabas terá todas as razões para parar
de amá­‑la. Ela pertencerá a outro homem!
— E por que tu tá fazendo isso com ele?
Ela deu um suspiro de irritação.
— Estou fazendo porque o amo!
Ben ergueu o machado e ficou passando os dedos calosos sobre
o fio da lâmina.
— Mr. Barnabas foi sempre bom pra mim. Eu não gosto de fazer
nada que deixe ele infeliz.
— Você me subestima, Ben. Eu vou devotar minha vida a
fazê­‑lo feliz.
— Mr. Joshua me trata feito um escravo, mesmo eu sendo bran‑
co, mas Mr. Barnabas disse que eu posso sair daqui e ir trabalhá só
pra ele, quando ele se casar com Miss Josette. Eu não quero machu‑
car Mr. Barnabas nem Miss Josette.
O homem deu um passo em direção a Angelique e ela viu a pro‑
fundidade do rancor em seus olhos, gerado por anos e anos de servi‑
dão sem esperança. Ela despertara esse ódio quando o forçara a
obedecê­‑la. Homens ignorantes são perigosos quando se enraivecem.
— Tu é uma bruxa! — ele gritou, a saliva pingando de seu lábio
inferior frouxo. Seus olhos estavam injetados de sangue e os mús‑
culos de seus braços se projetaram contra o tecido da camisa en‑
quanto ele erguia o machado. — Eu vou mesmo é ti matá!
Houve um súbito estalar de um raio e uma espiral enlouqueci‑
da ziguezagueou pelo céu por detrás dele enquanto o estrondo
violento de um trovão o pegava de surpresa. Nesse mesmo instan‑
te, Angelique ergueu a mão e sentiu seu corpo se dobrar com a
força de sua vontade.
— Fique aí mesmo onde está, Ben — disse­‑lhe em uma voz que
parecia feita de gelo. — Nem tente chegar mais perto.
Ela respirou fundo e era como se a eletricidade dispersa pelo raio
serpenteasse através do chão abaixo dela e saísse por seus dedos.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Você jamais poderá me fazer mal, Ben — sibilou como uma


cobra. — Tenho poderes que me protegem e você é um imbecil
ainda pior do que eu pensava. Se você tentar me bater com esse
machado, a lâmina vai­‑se virar contra si e você partirá seu próprio
crânio em dois.
Ben ficou paralisado, o braço que erguia o machado ainda er‑
guido no ar. Ele parecia uma estátua erigida na praça da cidadezi‑
nha em honra ao humilde trabalhador braçal. Apenas seus olhos
se moviam, cheios de terror. Seus lábios se moviam, mas ele não
conseguia falar.
— Está sentindo, Ben? — perguntou­‑lhe friamente e ele confir‑
mou com a cabeça, lentamente. — Percebeu que jamais poderá me
ferir? E agora, me prometa que nunca mais me ameaçará?
Ele anuiu novamente.
— Então, eu o libertarei.
Ela baixou o braço, e o corpo de Ben estremeceu dos pés à cabe‑
ça, enquanto seus dedos se abriam e deixavam o machado cair no
solo. Ele ficou olhando para ela de cara amarrada, seus olhos vidra‑
dos, como se sua mente se tivesse transformado em areia.
— Agora vá me conseguir aquilo de que eu preciso.
Ele girou nos calcanhares e entrou na casa, arrastando os pés.
Angelique permaneceu onde estava por alguns momentos, imó‑
vel, abalada e perturbada. O uso de seus poderes a enfraquecera e
estava apalermada pela veemência da raiva de Ben. Um sentimento
de completa solidão invadiu­‑lhe o espírito. Olhou para os ramos
desnudos das árvores, que se destacavam contra o céu branco como
gravados em água­‑forte e sentiu o cheiro amargo do ar. O sol agora
desaparecera totalmente, engolido pelo nevoeiro e rajadas gélidas
de vento sacudiam as vidraças da velha mansão, fazendo os vidros
chocalharem contra os caixilhos como esqueletos encolerizados
dentro de seus ataúdes.
Então ela escutou um som estranho, uma espécie de chiado,
como se o ar estivesse coberto por uma nuvem de grilos, e formas
escuras voaram sobre sua cabeça em voos rasantes e sem destino

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Lara Parker

certo, soltando grasnidos finos como se fossem corvos minúscu‑


los. Eram morcegos, dardejando em pares frenéticos de dentro de
uma das chaminés, em que ela avistou um grande buraco negro,
aberto como uma boca desdentada. Os morcegos moravam na‑
quela chaminé!
Alguma coisa a deixou curiosa. Tateou em busca de um tijolo
solto e encontrou um lugar em que o reboco se havia afrouxado
com a umidade. O tijolo deslizou para um lado, revelando o inte‑
rior cavernoso da parede da chaminé e ela viu que ainda havia uma
multidão de morcegos lá dentro, ondulando, batendo uns nos ou‑
tros em busca da luz da abertura e se esticando através dela para se
aventurarem no exterior durante esse final da tarde tão escuro a fim
de caçarem seu alimento como o faziam todas as noites.

* * *

Novamente em seu quarto, Josette parecia que voltara à normalidade,


entusiasmada, transbordando de felicidade enquanto se vestia para a
cerimônia, e Angelique foi obrigada a assisti­‑la mais uma vez, aper‑
tando as pressões e enfiando nas casas os botõezinhos minúsculos
que desciam pelas costas de seu vestido branco, alisando as rendas e
as sedas e arranjando as flores em seus cabelos. E o tempo todo An‑
gelique sentia que seus próprios ossos eram facas a cortá­‑la por den‑
tro e seu coração bombeava veneno em suas artérias. Ela não parava
de dizer a si mesma: André também é meu pai: tudo isto poderia ter
sido meu. Barnabas é o homem que amei desde criança, que habitou em
meus sonhos, que me ensinou todos os mistérios do amor. Ele é o aman‑
te de tudo quanto sou, o companheiro de minha alma. Como posso per‑
mitir que ele se entregue a ela? Como posso deixar que se case com outra?
A condessa estava sentada em uma chaise longue, as pernas es‑
ticadas enquanto se recostava, exclamando sem parar a respeito
do vestido:
— Minha querida, você está belíssima! É a noiva mais formosa
que já vi!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Angelique estava ficando frenética. Por maior que fosse sua má


vontade, Ben roubara para ela um lenço azul de cambraia que per‑
tencia a Jeremiah e agora ela pediu permissão para retornar por um
momento a seu quarto.
— Eu tenho uma coisinha que quero lhe dar — disse a Josette,
sua voz saindo fraca como se estivesse a ponto de desmaiar.
Assim que se viu sozinha, Angelique percebeu que o lenço era
realmente grande demais enquanto ela o dobrava em uma roseta
desajeitada, desesperadamente forçando o tecido a assumir a forma
de uma flor, enquanto a chuva lhe batia à janela. Ela retornou ao
quarto de Josette e estendeu a mão apressadamente para a colônia
de água de rosas, que borrifou sobre a flor artificial, derramando
um pouco sobre o tampo do toucador e deixando o lenço mancha‑
do e frouxo. Era um encanto impotente e agora tinha a certeza de
que nunca funcionaria.
— O que você tem para mim, Angelique? — indagou Josette,
docemente. Mas franziu a testa quando viu o objeto.
— É... é um amuleto, Mademoiselle, para lhe dar sorte.
Angelique forçou alegria em sua voz e se inclinou para pren‑
der a roseta no vestido de Josette com um alfinete longo. O te‑
cido de algodão pálido contrastava violentamente com a seda
delicada e a flor estava malfeita e deformada. Tornou­‑se evi‑
dente nesse momento que Josette estava combatendo seus pró‑
prios demônios em conflito, porque reagiu nervosamente, sua
voz estridente.
— Ah, mas eu não vou usar isso, de jeito nenhum!
— Mas por quê, Mademoiselle?
— Porque é... bem, é grande e desajeitado demais. Não combina
com meu vestido.
— Mas é para lhe trazer felicidade...
— Por favor, Angelique, não é hora de ir atrás de superstições bobas!
Angelique virou­‑lhe as costas, a agonia de seu desespero forçan‑
do lágrimas a seus olhos. Josette ficou atônita.
— Mas o que é isso? Por que está chorando? Está brava comigo?

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Lara Parker

— Eu não tinha nada para lhe dar, Mademoiselle, nenhum pre‑


sente para seu casamento. Só alguma coisa feita por mim, com todo
o meu coração. E você a odiou!
— Mas, Angelique...
— Eu... eu falhei com você...
Josette olhou para a condessa em busca de apoio, mas por uma
vez na vida, aquele árbitro de todas as coisas adequadas sentiu
compaixão por Angelique e ela respondeu ao que julgou ser um
gesto de ternura.
— Ora, use logo esse tal de amuleto, ela que deixe meio escondi‑
do. Que importância tem? Vai deixar a outra feliz e ela sempre te
serviu tão bem...
Josette se voltou para Angelique, lutando contra seu desejo sim‑
ples de ficar com seu vestido impecável. Finalmente, sua gentileza
prevaleceu sobre a vaidade.
— Está bem, eu usarei o amuleto — concordou.
— Muito obrigada, Mademoiselle — respondeu Angelique, com
uma cortesia e se ajoelhou para prender a flor com um alfinete em
um lugar da saia longa que chamasse menos a atenção.

* * *

Os convidados para o casamento esperavam na sala de visitas que a


noiva aparecesse e o ministro evangélico, que fora chamado à man‑
são praticamente sem aviso prévio, começou a ficar perturbado
com a demora e depois a lançar olhares embaraçados para o noivo,
que aguardava em pé junto ao altar improvisado já havia bastante
tempo. A condessa foi enviada para trazer Josette de uma vez por
todas e retornou com uma expressão de perplexidade no rosto.
— Ela não está no quarto — disse com uma voz infeliz. —
Josette não está em seu quarto e não a achei em parte alguma.
Ela desapareceu...
Para total espanto de Angelique, o feitiço os havia dominado e os
dois apaixonados infelizes tinham fugido juntos! Quando descobriram

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

que tanto Josette como Jeremiah estavam ausentes, mesmo que a


partida de Jeremiah já fosse esperada, houve grande consternação
por toda a casa. André estava mais do que desolado e Barnabas fi‑
cou desarvorado quando soube que dois cavalos estavam faltando
no estábulo e o cavalariço, após ser interrogado, revelou a contra‑
gosto que eles tinham saído juntos estrada afora. Ele lutou contra as
suspeitas que o torturavam, insistindo pateticamente:
— Jeremiah e eu somos como dois irmãos. É inconcebível que
ele jamais fizesse qualquer coisa por trás de minhas costas, ele ja‑
mais me enganaria...
Quase histérico com sua preocupação pela segurança de Josette,
Barnabas convenceu André a saírem pelos bosques ao redor da casa
em busca da noiva, mesmo que a tempestade ainda estivesse em
plena fúria. Eles levaram suas pistolas para a eventualidade de que
ela tivesse sido raptada ou estivesse em algum outro perigo. Mas
Angelique sabia que não encontrariam nada e rezava para que,
quando ele finalmente aceitasse a amarga realidade de que Josette o
traíra, se voltasse para ela, em busca de consolo. Ele estaria tão mu‑
dado, tão contrito... Envergonhada como se sentia por sua interfe‑
rência, Angelique percebia que não houvera qualquer outra maneira
de impedir o casamento. O casal provavelmente já fora se casar em
alguma pequena igreja das cercanias e deveria estar escondido em
qualquer hospedaria à beira da estrada. Além disso, estavam felizes
juntos agora, enamorados um do outro, portanto, que diferença fa‑
zia? Ela só precisava esperar até que Barnabas se recordasse de
quanto ela significara para ele em Martinica. Então ela o teria entre
seus braços novamente.
Mas o homem exausto e desiludido que retornara de sua busca
em vão mal prestou atenção nela quando a viu de passagem no ves‑
tíbulo. Ele realmente encontrara um xale de Josette, rasgado e en‑
roscado no galho de uma árvore e o segurava entre as mãos,
contemplando­‑o como se fosse um talismã.
— Alguma notícia? — ela indagou, fingindo preocupação.
— Nada de importância.

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Lara Parker

— Você tem de tirar essas roupas ensopadas e depois descansar


um pouco, senão pode adoecer de novo. Deve estar exausto depois
de tudo o que passou.
Ela queria abraçá­‑lo, mas a frialdade de sua atitude a impediu.
Ele a fitou e pareceu perceber o que ela estava pensando. Amarga‑
mente, quase com ressentimento, ele declarou:
— Apesar de tudo o que passei, eu ainda a amo. Está entendendo
isso? Não importa o que aconteceu ou que possa vir a acontecer, eu
sempre a amarei.

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Vinte e Nove

ventualmente, Josette e Jeremiah retornaram, nervosos e apá‑


ticos, incapazes de se defender por sua aventura temerária e
sem sentidos, sem poderem explicar seus motivos sequer a si mes‑
mos. Barnabas, anestesiado pelo choque, insistiu em se entrevistar
a sós com os dois.
— Vocês se casaram? — indagou sem preâmbulos, sua voz cheia
de desânimo.
Josette olhou para ele, seus olhos marejados de lágrimas.
— Sim — declarou desamparadamente. — Nós nos casamos.
— Exijo uma explicação... desta perfídia... desta traição!
— Não temos nenhuma para lhe dar — admitiu Jeremiah. —
Simplesmente, não pudemos evitar, qualquer que tenha sido a razão.
Barnabas ficou enfurecido. Puxando uma luva da mão de Jere‑
miah, ele bateu com ela em seu rosto abismado.
— Então, vamos lutar! — gritou. — Tenho de me vingar desta desonra!
Jeremiah aceitou o insulto com estoicismo. Não tinham outra
saída senão um duelo.

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Lara Parker

Toda a família lhes suplicou que reconsiderassem, cada um ten‑


tando, de uma forma ou de outra, que se controlassem. Mas Barna‑
bas estava com uma ideia fixa, determinado a se vingar de uma forma
ou de outra e Jeremiah aceitava seu desejo como se estivesse em tran‑
se. O remorso oprimia tanto seu espírito, que ele preferia morrer.
Também Angelique tentou fazer Barnabas mudar de intenção,
mas ele não lhe deu ouvidos. Na manhã do duelo, o mais que ela
conseguiu foi forçá­‑lo a aceitar uma medalha que o protegeria e,
quase sem notar o que fazia, ele consentiu que ela prendesse a cor‑
rente ao redor de seu pescoço.
Contudo, conforme ocorreu, ele não tinha a menor necessidade
de seu amuleto. Quando os dois rivais deram os passos determina‑
dos pelo protocolo e se voltaram frente a frente, somente Barnabas
apontou com intenção de matar. Quando Jeremiah caiu, Josette,
seu ser inteiro destroçado pela perda de seu verdadeiro amor e por
ver seu marido quase morto, voltou­‑se para Barnabas com uma
acusação histérica:
— Você é um monstro! Você é um doido! Não era capaz de su‑
portar a nossa felicidade! Você matou o único homem que eu real‑
mente amei na vida!
Após o duelo, Josette passava o tempo todo ao lado da cama de
Jeremiah, chorando como se sua própria vida tivesse terminado.
Barnabas mirara diretamente na cabeça e metade do rosto de Jere‑
miah tinha sido arrancada, sua cabeça inteira enrolada em atadu‑
ras. Ele nunca respondia e realmente, nunca mais falou. Todos os
moradores da casa sabiam que ele não sobreviveria, que era somen‑
te uma questão de tempo até que tudo terminasse. Barnabas não
tinha coragem de olhar para Josette e, à medida que os dias passa‑
vam, ele se foi tornando mais responsivo a Angelique, que mais não
fosse para aceitar seus muitos gestos de bondade para com ele.
Uma noite ele estava sentado junto à lareira, abatido e desconso‑
lado e apaticamente permitiu a ela que lhe massageasse a testa.
— Você vê — ela comentou calmamente — eu ainda lhe posso
ser útil!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela podia sentir o calor que brotava de seu corpo para a ponta
dos dedos e estava encantada com o prazer de tocá­‑lo finalmente,
acariciando­‑o e bebendo o néctar de sua presença.
Porém, a mente de Barnabas estava distante dali e praticamente
não percebia que ela estava ali, muito menos o que estava fazendo.
— Sua dor de cabeça passou? — perguntou gentilmente.
Ele se assustou com suas palavras.
— O quê?
— Estava imaginando em que você pensava...
— Eu estava devaneando... Diga­‑me... O que você pensa do Re‑
verendo Trask?
Angelique considerou­‑lhe a questão. Em consideração aos cons‑
tantes protestos da condessa de que algum tipo de bruxaria estava
acontecendo na casa, tinham mandado chamar de Salem um famo‑
so caçador de bruxas.
— Eu acredito que, se existe algum bruxo por aqui, ele ou ela
deve ser encontrado e destruído — respondeu Angelique. — O Re‑
verendo Trask é um clérigo devoto, não é verdade?
— Eu acho que ele não passa de um charlatão e um hipócrita,
ainda por cima.
— Mas se a governanta for realmente uma bruxa, ele não a
descobrirá?
Phyllis Wick, a tutora de Sarah, uma recente adição ao pessoal
doméstico, tinha causado na família inteira a impressão de ser uma
mulher muito estranha. Ela era altamente excitável e nervosa e não
demonstrava boas maneiras ou qualquer encanto social. Raramen‑
te falava com alguém e nunca sorria. Até mesmo Sarah, em geral
tão confiante, tinha medo dela. Angelique estava satisfeita com o
fato de que as suspeitas gerais se enfocavam na governanta, o que
desviara dela qualquer possível atenção.
— Phyllis Wick não é capaz de fazer mal a ninguém — refu‑
tou Barnabas.
— Mas de que outra forma você pode explicar as coisas estra‑
nhas que vêm acontecendo recentemente nesta casa?

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Lara Parker

— Eu estou convencido de que a governanta não tem nada a


ver com isso.
Angelique viu a oportunidade de argumentar com ele sobre o
assunto, e sentiu que não podia se dar ao luxo de perdê­‑la.
— Você deve admitir, Barnabas, que nem sempre foi o melhor
juiz a respeito do caráter das mulheres...
— Você está se referindo a Josette — disse ele, amargamente,
mordendo a isca.
— Você a julgou da maneira adequada? Você acreditava que ela
o amava, mas será que algum dia realmente o amou? Ela o enga‑
nou. Com um membro de sua própria família.
— Por favor, Angelique, não...
Ele se levantou e se afastou dela, sua cólera brotando.
— Você não suporta ouvir a verdade?
— Eu não quero sequer pensar nela.
— Por quê? Porque ainda a ama?
— Não.
— Você a odeia?
— Sim.
— Então, diga. Diga que a odeia!
— Eu... eu a desprezo!
Seu rosto estava contorcido em um ricto de dor. Quando ela viu
sua expressão, sentiu uma onda de fraqueza fluir através dela e lu‑
tou firmemente contra a sensação, dizendo com amargura:
— Com o tempo você realmente sentirá isso...
— É o que eu sinto agora!
Ele parecia sincero ou, no mínimo, resoluto. Incapaz de se con‑
ter, ela se aproximou dele, hesitou e então se moveu contra o peito
dele, esperando que a envolvesse nos braços, puxando­‑o para si e
sentindo o calor de seu corpo contra o dela.
— Barnabas... houve um tempo em que você me amou. Se per‑
mitir a si mesmo, poder­‑me­‑á amar novamente. Sabe que eu o amo
com todo o meu coração. Eu posso fazê­‑lo esquecer todas as suas
tristezas, descartar todos os seus desapontamentos. Não vai me dar
uma oportunidade para torná­‑lo feliz?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ele a contemplou do alto de sua estatura, uma expressão indefinível


em seu olhar, e ela sentiu que um tremor o percorria por inteiro.. A tensão
dos últimos dias havia aprofundado as linhas de seu rosto e uma profun‑
da exaustão parecia enrolada ao redor de seu espírito como uma morta‑
lha. Sua voz saiu­‑lhe muito fraca, quase um suspiro, quando ele disse:
— Sim, eu te darei...
Seu coração se inundou de alegria.
— Você virá a meu quarto esta noite?
Ele concordou com a cabeça, sua respiração quente em seu rosto.
— Promete?
— Sim. Sim, eu prometo.
Nessa noite, contudo, Jeremiah soltou o último suspiro e a casa
ficou envolta em melancolia. Vários membros da família andavam
para cima e para baixo pelo corredor, algumas vezes espiando Jo‑
sette, que pranteava junto ao leito dele, uma expressão vazia em seu
rosto. Foi Joshua que finalmente se animou a entrar e cobriu a figu‑
ra imóvel com um lençol, ordenando aos criados que envolvessem o
corpo em uma mortalha. Jeremiah seria enterrado no mausoléu da
família Collins, naturalmente. A família usou o funeral como uma
desculpa para finalmente abandonar a Casa Velha e se mudar para
a nova mansão, Collinswood, que acabara de ser completada e se
tornara a mansão mais bela de todo o país.

* * *

Certa noite, como ela fizera todas as demais noites, Angelique


aguardava em seu quarto na nova ala dos criados, mas sabia que
Barnabas não viria procurá­‑la. Agora que ele finalmente respondera
de novo a seus avanços, ela se sentia frenética com a ideia de que
Josette se tornara livre novamente. Ela sentava à beira da cama,
olhando para o saco de ervas aberto em seu colo. Incapaz de resistir,
ela retirou do pescoço o uangá enrugado e desatou o nó ressequido.
A selenita brilhou novamente, tão vibrante como sempre tinha es‑
tado e, enquanto ela a rolava na palma da mão, foi subitamente as‑
solada por um acesso de soluços provocados por seu desamparo.

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Lara Parker

Ela sentia que farpas de rancor e de ciúmes rasgavam seus pen‑


samentos em fitas esgarçadas. Josette nunca dera a Barnabas qual‑
quer motivo de esperança. Cada momento, desde seu casamento
desafortunado, ela se portara como uma esposa fiel e uma viúva
devotada a Jeremiah, de acordo com sua natureza virtuosa e verda‑
deira. Contudo, ela podia perceber que Barnabas nutria esperanças,
mesmo assim. No fundo de seu coração, ele ansiava para se unir
novamente com Josette. Maldito Jeremiah, por que você tinha de
morrer? Tinha sido a mais cruel das brincadeiras do destino, depois
que seu encantamento funcionara tão milagrosamente. Mas ela não
podia controlar tudo. O Bokor tinha profetizado corretamente, a
morte de Jeremiah fora a consequência de seus próprios atos.
“Quando seu coração se tornar em pedra, então eu a buscarei. Até
então, você nunca saberá quando seus poderes lhe falharão!” Fora o pró‑
prio diabo que pronunciara essas palavras. Perfeitamente consciente de
que estava cortejando o desastre, Angelique saiu da casa às escondidas
logo antes do bater da meia­‑noite. Ela levava consigo aquela pistola que
infligira a ferida fatal em Jeremiah, agora recarregada, que roubara no
quarto de Barnabas. Enquanto cruzava o amplo gramado a caminho
do cemitério, seu coração batia selvagemente e sua garganta se apertava
firmemente de puro pavor. Será que ela recordava o despacho? Ela nun‑
ca invocara os mortos desde que o Bokor lhe ensinara a encantação em
Martinica — um feitiço perigoso, difícil de executar e ainda mais difí‑
cil de controlar. Mas era necessário que o falecido Jeremiah permane‑
cesse próximo a Josette e que ainda insistisse que ela lhe pertencia.
Angelique recusou­‑se a pensar a respeito dos resultados.
O mausoléu brilhava de brancura à luz do luar e ela se aproxi‑
mou da porta com uma determinação renovada. Puxou o anel de
ferro e a pesada porta da cripta se abriu. O túmulo de mármore de
Jeremiah jazia sobre um pedestal. As folhas de acácia caíram de
seus dedos sobre o catafalco e ela as girou de mistura a um punhado
de torrões de terra que recém-escavara do solo do cemitério ao lado.
Acendeu cada uma das quatro velas brancas que trouxera e as pren‑
deu firmemente nos quatro cantos do aposento. Quando escutou

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

um trovão a distância, seu coração ecoou o estrondo. Ela se ergueu


e ficou imóvel como uma estátua, mas quando levantou a pistola,
percebeu que sua mão tremia. Ela disparou o primeiro tiro e a ex‑
plosão reverberou em seus ouvidos como se os estivesse rasgando,
enquanto a bala ricocheteava nas paredes interiores, seguida de las‑
cas arrancadas da pedra, caindo e tilintando sobre o piso. Em uma
voz trêmula, mas que surgira de um lugar selvagem dentro de sua
alma, um local obscuro que era mais profundo que qualquer me‑
mória, ela começou o encantamento.
— Espírito de Jeremiah, que agora empalideces e que partes den‑
tre nós, eu te conjuro a retornar à terra dos vivos! Vem para mim
agora e obedece à minha vontade!
Ela se endureceu, apavorada com o choque violento que sabia
estar por vivenciar, temendo a dor que cresceria dentro de suas en‑
tranhas; mas nada aconteceu, somente uma vibração profunda que
brotava das pedras da construção. Ela reuniu coragem:
— Não desapareça, Jeremiah, não fuja, porque você é necessário aqui
outra vez. Não se reúna ainda a seus antepassados, mas erga­‑se e cami‑
nhe entre nós, para que possamos conhecê­‑lo e suportar sua presença.
O teto rugiu e as pedras sob seus pés pareceram mudar de posi‑
ção e então se sacudiram, subindo violentamente, como se uma ex‑
plosão tivesse ocorrido nas profundezas da terra, porém logo a
seguir voltaram a seu devido lugar. Ela ergueu a pistola uma segun‑
da vez e disparou a outra bala. Desta vez foi o sepulcro que estreme‑
ceu e ela ficou parada ali, cheia de horror ao ver que a pesada lápide
de mármore, incrivelmente, rangia com um som rascante e desliza‑
va para o lado expondo o ataúde e a abertura negra que estava den‑
tro dele. Houve um movimento como uma chama bruxuleante e a
mão amarela do cadáver se ergueu, procurando apoio no ar.

* * *

O Reverendo Trask conduziu um interrogatório intenso com cada


membro da família Collins e de sua criadagem. Ele gastou pouco tempo

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Lara Parker

com Angelique, que logo o convencera de que era uma católica­‑romana


praticante educada por freiras em Martinica, uma papista francesa exe‑
crável, mas que era, sem dúvida, inocente de um conluio com o demô‑
nio. Foi uma infelicidade, não obstante, que Barnabas fosse forçado a
testemunhar o questionamento de Josette por Trask. Ela parecia ainda
mais encantadora do que antes, porque seu luto a revestia de uma espé‑
cie de resignação etérea. Seu véu de viúva em renda negra lhe encobria
parcialmente o rosto, revelando a magnífica delicadeza de seus traços.
Angelique observava Barnabas e pôde notar logo que ele estava
comovido. Era impossível que ele sentisse desprezo por Josette con‑
forme havia afirmado, porque sua expressão manifestava total re‑
morso e completa simpatia para com ela. Ironicamente, fora o
sofrimento que atribuíra maior profundidade ao caráter de Josette.
Ela adquirira uma expressividade comovedora imaculada por qual‑
quer traço de orgulho, e novos traços de percepção e sensibilidade
se irradiavam de seus olhos. Sua gentileza e humildade impressio‑
naram até o austero Reverendo Trask. Mas quando ele lhe segurou
as mãos e descobriu a marca do tridente que retornara à palma da
mão de Josette, exclamou de imediato:
— Isto é um sinal! Um sinal do Diabo! O Diabo destrói a bon‑
dade e a pureza onde quer que as encontre!
— Por favor... é só um hematoma... — protestou Josette, em
desamparo.
— É a marca do Diabo! — ele trovejou, agourentamente. — É a
marca que ele coloca naqueles que quer seduzir!
E no momento seguinte fez seu pronunciamento mais perturbador:
— Você está possuída!
Barnabas franziu a testa e um negror desceu sobre seu semblan‑
te. Até esse momento, ele não fora ao quarto de Angelique, conso‑
ante lhe prometera. Quando ela o confrontara certa manhã, ele
simplesmente a encarara e lhe dissera:
— Lamento muito, Angelique. Eu não posso lhe dar o que você quer.
— Mas por quê? — ela perguntou, embora já soubesse o que ele
lhe diria.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Porque... eu amo Josette. Eu ainda a amo. Eu sei que é difícil


para você entender. Também é difícil para mim. Eu... eu ainda a
amo. Apesar de tudo o que ela fez, eu a adoro.
— Você já esteve com ela... depois?
— Sim, mas só para trocar umas poucas palavras.
— O que foi que ela lhe disse?
— Não disse nada, salvo que Jeremiah era seu esposo legítimo e
que ela se manteria fiel à sua memória.
Angelique se regozijou secretamente; contudo, simultaneamen‑
te, ela quase se comoveu até as lágrimas. Correu até ele e segurou­
‑lhe o rosto entre as mãos.
— Olhe para mim, Barnabas, por favor, lembre­‑se do nosso pas‑
sado. Eu poderia encher­‑lhe a vida de felicidade. É só isso que eu
quero. Você sabe que é verdade, não sabe? Deixe­‑me amá­‑lo, deixe­
‑me dar­‑lhe alegria. Eu posso... Eu lhe darei...
Mas ele colocou os dedos delicadamente sobre sua boca para
interromper­‑lhe as palavras e lhe disse com gentileza:
— Não faça isso... Não se torture. Tente entender, é Josette quem
eu quero. Eu jamais vou parar de querê­‑la. Não sou mais capaz de
amar ninguém, exceto Josette.
— Mas ela o enganou! Ela o traiu!
Ele se virou para o fogo da lareira, uma expressão confusa no rosto.
— Talvez... o que aconteceu... não tenha sido inteiramente cul‑
pa dela. Talvez ela se encontre sob alguma espécie de... de feitiço
— disse ele, rindo fracamente, como a troçar do ridículo de sua
própria conjectura.
Angelique sentiu seu coração se endurecer e se afastou dele.
— Em resumo, o que você está me dizendo, mais uma vez, é que
eu não sou boa o suficiente para você, que não passo de uma criada.
— Angelique... por favor. Isso não é verdade.
— Você acabou de dizer que prefere acreditar que ama uma
mentirosa maquinadora, intrigante, que o enredou com suas ma‑
nhas, que não tem o menor sentimento por você, mas que é dona de
um rico dote do que a mim, que sempre lhe fui atenta e devotada...

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Lara Parker

— Angelique... você é uma mulher linda. Eu estou sozinho ago‑


ra. Seria tão fácil para mim fingir que... que é de você que eu gosto.
Eu poderia fazer amor com você de novo sem a menor dificuldade,
com o maior prazer... Mas isso não seria justo com você, não enten‑
de? Seria uma crueldade de minha parte enganá­‑la, dar­‑lhe espe‑
ranças... Você não vê?
Mas é claro que ela não podia ver. Mais uma vez ele lhe permiti‑
ra esperar, conduzira seus sonhos mais brilhantes ao limiar de uma
nova existência, só para lhe mostrar que era apenas a beira de um
abismo, em que a mergulharia sem a menor piedade, totalmente
sem misericórdia, para que ela se afundasse na escuridão. Um gosto
amargo lhe subiu à boca.
— Não, Barnabas. A sua crueldade já se manifestou em Marti‑
nica — disse com firmeza. — Foi lá que você me enganou. Há
muito tempo.

* * *

A pequena boneca de pano de Sarah se escondia no fundo de uma


gaveta do toucador de Angelique, lado a lado com algumas das lon‑
gas marombas de prender os cabelos de Josette em seus elaborados
penteados. Angelique caminhava incessantemente pelo quarto, o
rancor e a cobiça a encher­‑lhe a alma. A essa altura, já estava muito
além de qualquer receio de que o Diabo viesse a perceber sua feiti‑
çaria ou mesmo que sua necessidade de vingança pudesse destruir
uma criança inocente. Ela estava estupefata com sua própria frieza
e com seu desejo irrefreável de fazer com que Barnabas sofresse.
Um mar de sofrimento não seria suficiente para fazê­‑lo pagar pela
rachadura que abrira em seu coração.
Certa vez, ela fora uma criança mais ou menos da idade de Sa‑
rah. Aquele homem desesperado que acreditava ser seu pai a havia
aprisionado e a utilizado como um encanto maléfico para manipu‑
lar seus escravos. Será que ela era diferente dele? Finalmente, ela
entendera até que ponto chegava seu projeto insidioso. Talvez ela

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

partilhasse de seu sangue vil, que sua maldade lhe corresse através
das veias, no final das contas. Mesmo assim, ela abriu a gaveta e
agarrou a boneca num repelão, invocando a serpente de fogo tão
facilmente como se tivesse inspirado um pouco mais fundo até en‑
cher os pulmões.
Tremendo de ódio, ela disse:
— Sarah... sua irmãzinha querida... Quando você a vir sofrendo,
Barnabas, irá sofrer do mesmo modo — disse mais para si mesma.
Depois, com uma careta de raiva, acrescentou: — Você vai se arre‑
pender de ter me abandonado, Barnabas. Algum dia você vai dese‑
jar nunca ter parado de me amar.
Então, com a intenção mais malevolente, ela cravou a primeira
maromba no pano macio e azulado, depois outra e enfim, uma ter‑
ceira. Com os olhos da mente, ela viu Sarah gritar e cair no chão, o
olhar assustado da governanta, a família acudindo ante seus gritos
e, sobretudo, o rosto angustiado de Barnabas.
Algumas horas depois, quando Angelique escutou a batida à sua
porta, rapidamente escondeu a boneca sob seu travesseiro. Bem a
tempo, porque Barnabas abriu a porta violentamente sem esperar
que ela atendesse, seu rosto contorcido de preocupação.
— Você viu a bonequinha de Sarah? — perguntou aos gritos.
— Aquela bonequinha azul com o aventalzinho branco. Ela está
chorando e pedindo por ela e não conseguimos encontrá­‑la em
parte alguma.
— Não — respondeu ela, gelidamente. — Por que a boneca ha‑
veria de estar logo aqui?
— Pensei tê­‑la visto apanhá­‑la algum tempo atrás.
— Peguei mesmo e a coloquei no meio dos brinquedos dela. Por
favor, saia de meu quarto e não me incomode novamente.
Ele deu alguns passos, lançando os olhos ao redor, como se tives‑
se certeza de que veria a boneca em algum lugar do quarto.
— É que ela ficou tão doentinha, assim de repente! Está cho‑
rando pela bonequinha... Eu já a procurei pela casa inteira. Pensei
que... talvez...

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Lara Parker

— Sarah está doente?


— Sim. É inacreditável. Ela sentiu dores terríveis e desmaiou
de repente.
— Pobre menina! Vocês já chamaram um médico?
— Sim, é claro, mandamos buscar e ele veio imediatamente, mas
diz que não há nada que possa fazer. Mamãe está histérica. A famí‑
lia inteira está completamente abalada de dor. O médico... ele dis‑
se... que ela pode não passar deste dia.
— Onde ela diz que está doendo?
— Ah... nem sei... parece que é no ombro e no estômago. Ela
soluça sem parar e depois grita e se dobra toda como se estivesse
sendo apunhalada. Ai, meu Deus! Isso é mais que eu posso supor‑
tar! Ela é tão pequena e eu a amo tanto. Eu acho que ela não vai
conseguir sobreviver...
Ele pareceu ficar estonteado, sentou­‑se aos pés da cama e enter‑
rou o rosto nas mãos.
Angelique foi até onde estava Barnabas e colocou­‑lhe a mão so‑
bre o ombro.
— Escute­‑me, Barnabas... Há uma possibilidade que eu possa
ajudar sua irmãzinha.
— Você? Como pretende saber mais do que o médico?
— Eu... eu tive uma doença certa vez... uma coisa muito pa‑
recida com o que você está descrevendo. Quando era bem meni‑
na. Quase morri. E teria mesmo morrido, se minha mãe não
soubesse o que fazer. Ela me fez um chá com umas ervas curati‑
vas. Depois que eu bebi, em seguida fiquei boa. Quer que eu faça
o chá para Sarah?
— Mas de que vai adiantar um chazinho?
— Pode ter algumas propriedades restauradoras. Não custa ten‑
tar. Mal não vai fazer.
— Tudo bem. Estou disposto a tentar qualquer coisa —
disse­‑lhe, enquanto a contemplava com um vago interesse. —
Agora me lembro que uma vez você me disse que sua mãe era
uma curandeira...

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela caminhou até o pequeno toucador, seus modos enganadoramen‑


te calmos, embora seu pulso latejasse violentamente e se virou para ele.
— Caso eu curasse Sarah, você ficaria grato, não ficaria?
— Mas é claro! Eu me sentiria em dívida para com você o resto
de minha vida!
— Há uma forma bastante simples de pagar essa dívida.
— Angelique, eu lhe darei qualquer coisa que me peça, mas não
acredito que chás herbais ou poções possam...
— Há uma coisa que eu quero. Mais que qualquer outra no mundo.
— Se você conseguir curar Sarah, eu a darei a você — disse
ele, exausto.
— Eu quero que você se case comigo.
— Casar com você!?
— O preço é alto demais?
— Mas, Angelique...
Ele soltou um longo suspiro, olhando para ela com total incredulidade.
— Se ela viver... você me fará sua esposa?
Ele hesitou, depois soltou outro suspiro profundo.
— Eu farei qualquer coisa, sim, sim, qualquer coisa, natural‑
mente, desde que você encontre um meio de lhe salvar a vida.
Depois que Sarah bebeu o chá que ela lhe serviu carinhosamente,
Angelique retornou a seu quartinho e removeu os alfinetes longos e fi‑
nos, lentamente, um a um. O sentimento de aperto em seu coração rela‑
xou. Percebeu que sentira um grande alívio porque Sarah não morrera.
Uma grande piedade pela criança a dominou e lágrimas quentes rolaram
de seus olhos. Era vergonha o que sentia? Mas tudo em que conseguia
realmente pensar era que Barnabas lhe seria tão grato, experimentaria
um tão grande regozijo, que ele voltaria a seu quarto a qualquer momen‑
to para lhe agradecer e abraçá­‑la finalmente. Mas ele não veio.

* * *

Na manhã seguinte, ela o encontrou lendo um livro na sala de visi‑


tas e seu coração transbordou de amor quando o avistou.

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— Barnabas... Bom­‑dia!
— Angelique.
— Como está Sarah?
— Muito melhor. É espantoso, sua doença desapareceu tão rapi‑
damente como viera.
Mas por que ele não dizia nada? Na noite anterior, ele estivera
disposto a barganhar com ela, mas agora parecia não lembrar de
nada! Não era possível que tivesse esquecido da promessa. Ela ten‑
tou acalmar sua ansiedade, mas sua impaciência era tanta que, uma
vez que ele não mencionava seu compromisso para com ela, teria de
introduzir o assunto ela mesma.
— Barnabas.
Ele ergueu os olhos.
— Quando você dirá à sua família? — indagou, forçando um
tom alegre. — Será uma grande surpresa para eles saber que vamos
nos casar.
— O quê? Nós nunca falamos de casamento...
— Como não? Não vá me dizer que já esqueceu! Ontem mesmo
você prometeu casar­‑se comigo e esta não foi sequer a primeira vez.
— Mas... Eu pensava que Sarah ia morrer! Eu estava desespera‑
do... Perdoe­‑me, mas você deve entender que eu não lhe faria esse
tipo de promessa em qualquer outra situação... Além disso, eu não
acho que o seu chazinho tenha tido algo a ver com a sua recupera‑
ção. Essa medicina herbal é primitiva e... foi uma coincidência, só
isso... Sem dúvida, você compreende...
Angelique virou o rosto, suas faces vermelhas de ódio.
— Não diga mais nada. É claro que eu compreendo. Ah, eu en‑
tendo perfeitamente. Eu o amo, mas você não pode me amar por eu
ser quem eu sou e não pode me aceitar como esposa. Tenho de com‑
preender que você me considera indigna de sua posição. Que você
sempre pensou assim de mim. Sua duplicidade não tem limites.
Você me traiu mais de uma vez em Martinica e agora está a me trair
outra vez, sem a menor piedade, sem a menor vergonha, fazendo­
‑me promessas apressadas só para conseguir o que queria.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Barnabas se ergueu e olhou para as chamas da lareira.


— Deixe­‑me lhe perguntar uma coisa, Angelique. Você poderia me
aceitar, estaria disposta a se tornar minha esposa, poderia suportar vi‑
ver comigo conhecendo meus sentimentos com relação a Josette?
— Tudo o que eu sei é que te amo, mais do que qualquer outra
coisa no mundo... mais do que minha própria vida.
— Então... eu não lhe quebrarei minha promessa.
Ela o encarou, sem acreditar no que ele acabara de dizer. Ele prosseguiu:
— Se você me aceitar... do jeito que eu sou... então eu me casarei
com você, Angelique, e farei o que estiver a meu alcance para tentar
fazê­‑la feliz.
Por um momento ela ficou assombrada. Então ele a fitou nova‑
mente e de algum modo ela encontrou as palavras para responder.
— Eu serei uma esposa obediente e devotada enquanto durar nos‑
sa vida matrimonial — declarou, seu coração subindo às alturas. —
Você é meu mundo e eu o amarei e cuidarei de você para sempre.

* * *

Como era de esperar, o pai de Barnabas explodiu em fúria. Nada


poderia ter inspirado mais sua virulência do que aceitar o casamen‑
to de seu filho com uma mulher abaixo de sua posição social. Ele
tinha certeza de que Angelique estava se aproveitando da fraqueza
de Barnabas após seu desapontamento com Josette e para ele, o ca‑
samento não significava mais do que “um pacto com o diabo”. Ele
insistiu que ela se apresentasse sozinha diante dele.
Enquanto ela aguardava do lado de fora da sala de visitas, An‑
gelique escutou Joshua Collins pontificando perante Naomi, a
mãe de Barnabas.
— Tato? Por que você insiste em tato? Não há a menor necessi‑
dade de tato para falar com uma criada! Por acaso essa camponesa
é sua nora ideal?
Portanto, ele vai ser difícil, pensou ela. Prometeu a si mesma
permanecer contida e respeitosa, mas não se deixar intimidar pelo

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Lara Parker

tirano. Naomi fez que ele se calasse no momento em que ela abriu
a porta e entrou.
— Venha cá — ordenou Joshua. — Não, não se sente. Fique em
pé enquanto eu lhe digo o que tenho a lhe dizer!
Angelique não disse nada, esperando que ele continuasse.
— Então você pretende se casar com meu filho.
— Ele quer se casar comigo, senhor.
— Não foi assim que ele me apresentou a questão. Sua voz estava
totalmente despida de qualquer emoção.
— Mas foi assim quando ele falou comigo, senhor.
Joshua fez uma pausa, enquanto a avaliava.
— Por que você quer se casar com ele?
— Porque eu o amo.
Joshua soltou uma risadinha de troça e deu­‑lhe as costas. Ela
podia perfeitamente perceber o desprezo que ele nutria por ela e
que envenenara seu coração.
— Esta é uma razão — declarou — que acho totalmente
incompreensível...
Ele se voltou para Naomi e declarou:
— Esse tal amor que ela diz sentir surgiu do nada! Talvez eu não
entenda o que é amor.
Naomi contemplou Angelique e ela pensou ver alguma simpatia
registrada no rosto da outra.
Joshua continuava:
— Acho absurdo se falar de amor entre duas pessoas que não po‑
dem ter passado mais do que uma hora em presença uma da outra.
Angelique sentiu que precisava se defender.
— Eu passei muitas horas em companhia de Barnabas.
— Você se aproveitou descaradamente dele em uma hora de
tanto sofrimento.
— As circunstâncias não são importantes. Nós nos teríamos ca‑
sado de qualquer forma.
Joshua encarou­‑a friamente:
— Cavalheiros não têm o hábito de casar com suas servas.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

As palavras a feriram e ela respirou profundamente antes de


responder.
— Eu entrei em sua casa como uma serva, senhor. Mas entendo
que nesta grande democracia em que vocês vivem não é qualquer
crime subir de posição social na vida e mudar suas circunstâncias.
Joshua continuou a observá­‑la cuidadosamente.
— É compreensível que você deseje modificar suas circunstân‑
cias — declarou. — Bem, eu vou lhe fazer uma oferta.
— Eu já tenho a única oferta que desejo, senhor.
— Quanto é que você quer?
Ela foi pega de surpresa. Então era esse o plano dele, suborná­‑la
para ir embora.
— Eu só quero sua boa vontade, senhor. E sua bênção.
Joshua assumiu uma posição orgulhosa, erguendo o queixo:
— Isso... você nunca terá!
Fez uma pausa e seus olhos cinzentos a avaliaram friamente.
— Dez mil dólares — propôs. — Em ouro. Considero isso um res‑
gate bastante pequeno em troca do futuro de meu filho. O que me diz?
Ela sacudiu a cabeça.
— Sem dúvida, o senhor não acredita que eu...
— Você quer mais?
Ele fez uma pausa.
— Vinte mil, então, e assunto encerrado!
Angelique falou lentamente.
— Monsieur Collins, não há soma grande o bastante para me
fazer abandonar Barnabas. Eu amo o seu filho e...
— Vamos, menina, pense no que está fazendo. Você poderia
voltar rica para Martinica. Abrir uma loja ou comprar uma pe‑
quena plantação. Seria admirada. Seria uma senhora de posses
dentro do seu mundo. Ao passo que, caso você insista nesta... nes‑
ta conexão, eu deserdarei Barnabas e você só conseguirá garantir
sua desonra e sua penúria.
Portanto, era assim que seria o negócio. Barnabas ainda não entrara
em posse de sua herança. No passado, antes que ela tivesse convivido

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Lara Parker

com Barnabas em Martinica, tal soma de dinheiro lhe daria tudo


quanto desejava. Mas agora não havia nada que pudesse jamais querer,
salvo o amor do homem a quem adorava. Sua mente estava clara e ela
nunca tivera mais confiança em si mesma do que agora.
— A única coisa que desejo do senhor, Mr. Collins, é que tente
me aceitar. Eu sempre o tratarei com o devido respeito, mas eu não
amo Barnabas por sua fortuna ou por qualquer dinheiro que ele
tenha. Eu o amo por seu belo caráter, sua generosidade e seu espíri‑
to nobre. Só espero que o senhor me dê uma chance de provar o que
digo. Mas se não quiser me dar esta oportunidade, temo que sua
vida será ainda mais solitária do que já é agora.
Seus olhos recaíram sobre Naomi, que ergueu o rosto e lhe
sorriu levemente.

* * *

Mas Joshua foi inflexível e se recusou a mudar de ideia. Ele derra‑


mou toda a sua cólera sobre Barnabas:
— Eu vou deixá­‑lo sem um centavo! Já cortei seu nome de meu
testamento e você não será mais um membro desta família! Vocês
dois saiam desta casa até hoje à noite e nunca mais retornem!
Nunca mais falarei com você! Não sou mais seu pai e você não é
mais meu filho!
Naomi, porém, tinha o coração mais terno e ela passou para
Barnabas a escritura da Casa Velha como presente de casamento,
para que Angelique e Barnabas nela residissem. A cerimônia seria o
mais simples possível; os únicos presentes seriam a própria Naomi,
que se recusava a questionar os motivos ou a castigar seu filho ama‑
do e Ben, que era o único conhecido de Angelique na casa. Joshua
recusou­‑se a aparecer.
Naomi, contudo, aceitou graciosamente Angelique como a noiva
escolhida por Barnabas e até mesmo encontrou um vestido branco
simples para que Angelique o usasse durante o casamento. Ao se
preparar para a cerimônia no seu quarto, Angelique se contemplou

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

no espelho. Ficou desapontada com o vestido, mas não havia nada


que pudesse fazer. Fez alguns ajustes nas mangas e ergueu a barra
da saia para ver se caía com um pouco mais de graça, mas o tecido
era grosseiro e sem caimento. Tristemente, ela se recordou do tafetá
de amarelo aguado que lhe fizera a costureira de Martinica, quando
todos os seus sonhos haviam voado até o céu do amor.
Isso parecia ter sido há tanto tempo, mas agora ela obtivera seu
desejo: ela o conquistara finalmente, se não por amor, então pelo
cansaço e Barnabas estava esperando por ela na sala de visitas. Su‑
bitamente, Angelique recuou abismada, sua respiração presa na
garganta ao ver seu reflexo. Mas isso era impossível! Como poderia
ter acontecido? Sua saia era de um branco puro, sem a menor má‑
cula, mesmo que já usada, mas para seu horror, o vestido que apa‑
recia no espelho estava marcado por riscas de sangue!
— Você está muito bonita — afirmou Naomi, que obviamente
não havia visto nada, enquanto Angelique tentava ocultar sua rea‑
ção ao choque. Mas logo indagou:
— Minha querida, o que foi?
Angelique sentia o medo a se arrastar pela espinha até o pescoço,
mas tentou não revelar.
— É que eu... Eu queria me parecer mais com uma noiva. Você
foi tão generosa em me dar este vestido, mas ele é tão... tão simples...
Naomi foi até onde Angelique estava e pregou um pequeno ca‑
mafeu de ouro e marfim em seu corpete.
— Este broche era de minha mãe — disse ela. — Quero que você
fique com ele — falou, beijando­‑a com gentileza.
Angelique sentiu os pensamentos a rodar em sua cabeça quando
olhou para o camafeu e seus olhos se encheram de lágrimas.
— Ora, minha querida, o que foi? — indagou Naomi. — Por que
está chorando?
— Estou chorando de felicidade — respondeu, o que era em par‑
te verdade. — Já faz tanto tempo que alguém me tratou com genti‑
leza. Sinto­‑me tão grata a você... E jamais a esquecerei, não importa
o que aconteça.

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Lara Parker

Naomi a abraçou com piedade e afeto, quase como se entendesse


o desgosto de Angelique em algum ponto de seu coração.
A cerimônia transcorreu sem incidentes, embora a noiva pare‑
cesse um tanto vaga e distraída. Barnabas pronunciou os votos de
maneira formal, como se os estivesse recitando no palco, porém
manteve valentemente sua dignidade e até sorriu para Angelique
quando ela se comprometeu a amá­‑lo, honrá­‑lo e respeitá­‑lo. Fi‑
nalmente, escutaram as últimas palavras proferidas pelo ministro
episcopal: “Porquanto estes jovens consentiram em se unir pelos sa‑
grados laços do matrimônio e o testemunharam na presença de Deus
e desta congregação eu os declaro Esposo e Esposa. Aqueles a quem
Deus uniu, ninguém os separe”. Mas a única coisa em que Angeli‑
que conseguia pensar era como todo aquele ritual fora totalmente
despido de alegria.
— Nós deveríamos ter tido algumas flores — disse tristemente.
— Eu amo flores e há tantas no lugar de onde eu venho...
— Mas nós temos champanhe — disse Barnabas, com um esfor‑
ço determinado para fingir certa alacridade. — Ben, já que você é o
padrinho, deverá fazer o brinde.
Ben saiu, arrastando os pés, como de costume, e retornou com
uma garrafa de champanhe e taças, colocando­‑as sobre a mesa
que servira de altar, enquanto Naomi e Angelique esperavam em
silêncio. Mas quando Barnabas tirou com cuidado a rolha da gar‑
rafa para que não espocasse e foi servir uma taça para Angelique,
ela sentiu novamente o mesmo arrepio de medo que a percorria
dos pés à cabeça.
Naomi prendeu a respiração e Barnabas recuou, seu rosto uma
máscara de nojo. Para o horror de todos os presentes, o champanha
na taça era escarlate e viscoso.
— Mas o que é isso? — sussurrou Angelique. — Isso não é
champanhe...
— Não — disse Barnabas, estupefato. — É... é sangue!
Ela ergueu os olhos e lhe contemplou a fisionomia, contorci‑
da, confusa, perplexa e saiu correndo da sala de visitas até seu

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

quartinho, em que olhou apavorada ao redor das paredes e pelas


vidraças da janela.
— Você voltou, não foi? Você nunca me deixou em paz! Onde
está agora? — gritou. — Por que precisa me atormentar?
Não houve resposta, somente o arranhar dos galhos contra as
vidraças. Ela correu, abriu os postigos e encarou as árvores negras.
— Responda! Você nunca vai me deixar em paz?
Uma rajada de ar gélido lhe bateu no rosto e ela engoliu em seco
e recuou, batendo os postigos e fechando a janela, mas o trinco não
se encaixou e a janela ficou batendo contra os marcos. Imediata‑
mente, ouviu um som arrastado do lado de fora de sua porta. Girou
nos calcanhares.
— É você, não é? Não é? Responda­‑me!
Incrivelmente, nesse mesmo instante, ela escutou um som como
um tinido, um toque musical que parecia de sininhos, um timbre que
nunca ouvira antes. Era uma caixa de música com a superfície e os
lados incrustados de joias e que fora deixada aberta sobre a tampa de
seu pobre toucador. Tremendo, ela caminhou até o objeto, imaginan‑
do de onde poderia ter vindo. Era lindo, delicadamente trabalhado,
com cupidos barrocos em alto-relevo e o metal era ouro puro. Ela
jamais vira alguma coisa mais bela em toda a sua vida. Seu coração
saltou no peito enquanto ela percebia que devia ser um presente de
Barnabas, um presente de casamento e o tomou nas mãos, hesitante‑
mente. Como podia ter duvidado de seus sentimentos para com ela?
Ele lhe comprara este lindo presente... A caixa tocava delicadamente
uma melodia encantadora, como a chuva batendo em um tambor de
prata e ela escutou com todo o coração. Estava a ponto de ir lhe agra‑
decer, quando a porta se abriu com violência e ele estava parado ali.
Seu semblante estava lívido.
— De onde você tirou isso? — indagou asperamente.
— Estava... estava aqui, sobre o toucador...
— Dê­‑me isso aqui! — ele ordenou, arrancando o objeto de suas
mãos. Instantaneamente, Angelique entendeu.
— É dela, não é? É de Josette!

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Lara Parker

Ele respondeu vagamente:


— Não, é meu.
— Mas você o comprou para ela, não foi?
— Sim. Sim, comprei...
— Mas por que estava aqui? Por que estava no meu quarto? Eu o
encontrei aqui!
— Não faço a menor ideia. Não posso saber como veio parar
aqui. Mas não vai ficar por muito tempo!
Ele lhe deu as costas e saiu a passos largos para o corredor, en‑
quanto ela gritava atrás dele.
— Você a ama! Você ainda a ama!
A porta foi batida em seu rosto. Furiosa, ela pegou a maçaneta e
a abriu de novo, pretendendo segui­‑lo.
— Você a ama...
Ela engoliu em seco e recuou, contemplando uma coisa horroro‑
sa, quase inacreditável, parada no corredor, um homem, mas não
um homem, alguma criatura cujo rosto estava enrolado em farra‑
pos esfiapados, de que escorria sangue e pus. Ela sentiu o fedor de
carne podre e seus olhos arderam com as emanações imundas de
um cadáver ambulante. Alguma coisa naquela figura lhe era fami‑
liar e, por trás da imundície de suas vestes, ela reconheceu o colete
de brocado que pertencera a Jeremiah.
— Nãããão! — ela gritou, recuando. — Não chegue perto de mim!
Mas a aparição se aproximou mais dela, estendendo­‑lhe os bra‑
ços. Quando chegou mais perto, ela divisou por entre os farrapos
das bandagens um de seus olhos, que caíra da órbita e estava balan‑
çando contra o que restava da face, preso por nervos ou veias.
— Por que você está aqui? Quem o mandou?
O que dava para ver dos lábios cortados não se moveu, mas a voz
ecoou de dentro do corpo em decomposição, um monótono gutu‑
ral que saía entre bolhas de catarro.
— Você perturbou meu descanso.
— Não! Não! Não fui eu!
— Você tem de ser punida pelo que me fez. Tem de aprender o
que significa viver sem paz na terra dos mortos.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela firmou os pés onde estava e ergueu o braço, invocando seu


poder a fim de pará­‑lo, mas não sentiu nada e ele continuou a se
aproximar, seus dedos ossudos esticados à sua frente, como os de
um cego. Com a voz mais gelada que pôde formar, invocou o Dia‑
bo, buscando a força dentro de seu corpo frouxo e aterrorizado.
— Eu... eu te invoco, Espírito Negro... Belzebu! Salve­‑me! Devol‑
va este fantasma a seu túmulo! — mas seu encantamento era frágil
e Jeremiah não interrompeu o lento arrastar de seus pés. — Vá ago‑
ra! — ela ordenou aos berros. — Volte para a terra de que você faz
parte! Eu ordeno que você parta!
A voz gemeu fanhosamente.
— Você não dormirá até que eu durma. Você não descansará até
que eu recobre meu repouso eterno.
— Quem o controla? De quem é o poder que você segue? — ela
berrou, histérica agora, mas ele já a segurara e seus gritos eram em
vão. Ele a ergueu em seus braços escorrendo linfa e a apertou contra
si, enterrando seu rosto contra seu peito emaciado e voou com ela,
atravessando a janela e descendo no meio das árvores. Ela desmaiou
e ao despertar, ele estava parado ao lado dela e ela deitada dentro de
um túmulo aberto.
Podia ver as paredes de terra recém­‑escavada a seu redor e farejar
o cheiro pútrido dos mortos enquanto o demônio começava a reve‑
lar o solo bolorento sobre seu rosto.
Ela uivou de pavor.
— Ben! Ben! Ajude­‑me!
Mas seus pulmões se encheram de poeira e a escuridão se fechou
a seu redor. O peso da terra estava sobre seu corpo, apertando­‑a
cada vez mais enquanto o conteúdo de cada pá caía sobre ela e não
havia ar... o ar acabara... em sua tumba solitária.

* * *

A inconsciência se enrolara em torno de sua mente quando ela sen‑


tiu os dedos grossos de Ben em sua boca, arrancando a terra e seu

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Lara Parker

peito se expandia com espasmos de sufocação e tosse enquanto ele


a erguia para fora da cova.
— Dessa vez, você conseguiu, não foi? — disse ele, sem malevo‑
lência. — Alguma coisa se virou contra você, para variar.
À sua maneira áspera, ele tirou a sujeira de seu rosto e escovou­
‑lhe o vestido com as mãos, depois tomou­‑a nos braços e a carre‑
gou, ainda gemendo, de volta para a casa.
Ela soluçava e balbuciava incoerentemente, sua voz abafada con‑
tra o pescoço dele.
— Ele veio me pegar! Ele tentou me matar! Eu nunca mais farei
coisa alguma, Ben... Eu jamais lançarei outro feitiço! Nunca mais!
Ele a colocou na cama vazia e ela se recordou, enquanto ele pu‑
xava as cobertas sobre ela, que esta era sua noite de núpcias, aquela
noite com que sonhara por tanto tempo e por que ansiara tanto
através de seus anos de solidão. Ela tentou segurar o broche que
Naomi lhe dera e descobriu que não estava ali.
— Ben — falou em um murmúrio rouco — por favor... volte até
lá... Eu perdi o camafeu, o presente que me deu a mãe de Barnabas...
encontre­‑o... por favor... Deve estar... no túmulo...

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Trinta

s suspeitas dominavam a mansão dos Collins. Tantas ocorrên‑


cias inusitadas só podiam significar uma coisa — havia
mesmo a presença de uma bruxa entre eles. Mesmo aqueles que
desprezavam as superstições foram afetados. Joshua fervia de des‑
prezo pela ideia absurda, porém era incapaz de explicar aquele es‑
tranho sufocamento de Barnabas, a súbita doença de Sarah e sua
recuperação igualmente rápida, a maneira como Josette revertera
suas afeições, sem mencionar o casamento inexplicável de seu pró‑
prio filho com uma criada comum. Até mesmo Ben fora capturado
na teia da feitiçaria, porque fora descoberto roubando túmulos tar‑
de da noite e estava agora preso na cadeia municipal.
A palavra bruxa era irracional e irresponsavelmente trocada en‑
tre os membros da família Collins, mas nenhum deles, à sua manei‑
ra, era capaz de explicar o que era mencionado como “esses
estranhos acontecimentos”. Chegara o momento em que Angelique
precisava proteger a si mesma. Até Barnabas a contemplava com
uma expressão gélida no olhar. Ela sabia que as pistas apontariam

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Lara Parker

em sua direção se as pessoas começassem a investigar mais seria‑


mente e sua única alternativa era lançar as suspeitas sobre Phyllis
Wick. A desafortunada governanta com sua personalidade lúgubre
seria a culpada perfeita.
A família, tão preocupada com o que a condessa continuava a
referir como “uma força maligna nesta casa”, mas querendo dizer a
Casa Velha, em que Barnabas agora residia com Angelique, tinha
convocado o Reverendo Trask uma segunda vez e ele concordava
em realizar um exorcismo. Barnabas, que se apiedara de Phyllis,
crendo sem hesitar em sua inocência, a abrigara em um dos quartos
do andar de cima, em que ela se escondia das possíveis acusações de
Trask, apavorada demais para enfrentá­‑lo, mas sua fuga somente
reforçara as suspeitas sobre ela. O cenário, portanto, já estava pre‑
parado para que Phyllis Wick fosse exposta como a maléfica.
Angelique se decidiu a construir um castelo de cartas — com um
baralho de tarô. A condessa, que possuía vários deles, deixara um
baralho na sala de visitas. Pareceu adequado que a condessa, que ori‑
ginara toda aquela conversa sobre feitiçaria, fornecesse agora os meios
para que Angelique pudesse lançar o encantamento que a disfarçaria.
Angelique se escondeu em seu antigo quartinho na ala dos cria‑
dos, vazio desde então, em que ela sabia que ninguém a encontraria.
A janela ficava próxima o suficiente da porta da frente para que ela
escutasse a peroração amalucada do charlatão, o Reverendo Trask,
que se preparava para realizar sua invocação. Como seus poderes
eram impotentes em comparação com os dela! Aquele assim cha‑
mado Reverendo, que nem se sabia de que igreja era, não passava de
um prestidigitador inábil, mas ele lhe seria útil apesar disso, porque
seus flácidos esconjuros serviriam a seu propósito.
Delicadamente, ela ergueu o castelo de cartas sobre a mesinha
nua, equilibrando com o maior cuidado os arcanos lindamente
pintados à mão, inclinando­‑os par a par, colocando cartas hori‑
zontais sobre cada duas pirâmides, criando o piso para o próxi‑
mo nível. O castelo de cartas, que normalmente poderia desabar
simplesmente com uma expiração mais forte, permaneceu firme

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

como o construíra e sua leveza lhe daria asas. Ela falou mental‑
mente com o baralho.
— Vocês são as paredes do quarto em que Phyllis Wick está es‑
condida. Vocês são o lugar em que ela se deita agora. Primeiro o
vento enregelante, depois o fogo crestador. Esse quarto está aqui,
totalmente sob meu poder.
Angelique escutou lá da rua a voz anasalada do Reverendo Trask
quando ele iniciou sua invocação:
— Eu invoco os Poderes da Luz para darem combate aos Poderes
das Trevas! Phyllis Wick, eu a previno de que os Poderes da Luz
estão presentes e que em breve a atingirão em sua própria alma! Sua
destruição está próxima! Avance, pois, e se entregue!
Angelique soube então que ele desenhara um sinal de exorcismo
na terra em frente à porta, porque projetou a voz bem alto:
— Phyllis Wick, a poeira agora conhece seu nome e a terra o irá
proclamar até os céus! Avance, pois, antes que os fogos do inferno a
consumam para sempre!
Ela podia imaginar a pobre Phyllis encolhida em um canto do
quarto, com medo de se mexer e até de respirar, atemorizada com
as admoestações de Trask e seus comandos cheios de retidão au‑
toproclamada. Angelique teve uma breve visão de outro lugar em
outra época, durante a qual ela mesma fora uma infeliz acovarda‑
da, mas a imagem se desvaneceu tão rapidamente como tinha
chegado e ela retornou à sua tarefa. A mulher jamais se apresen‑
taria, a não ser que fosse obrigada a fazê­‑lo. Angelique, descar‑
tando os pensamentos sobre a depravação que descobria dentro
de si mesma ou sobre o ser malevolente com quem falava, come‑
çou a encantação. Acendeu uma vela de cera e aproximou a cha‑
ma da frágil habitação que protegia a mulher inocente. Começou
a entoar uma cantilena:
— Eu invoco o Coração do Fogo que queima no interior do Co‑
ração do Gelo!
Ela tremia. Percebia inteiramente o que estava fazendo agora. Ela
caíra tão baixo, que estava pedindo a ajuda do Diabo. Ela podia escutar

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Lara Parker

também os chamados de Trask, tal qual se estivessem trabalhando


juntos, criando uma força com a mescla de suas vontades.
— Espírito do Mal! Apresente­‑se! Apareça diante deste portal!
Cruze das trevas para a luz! Que as fogueiras do Bem te expulsem
em terror e medo!
O castelo de cartas se inflamou e explodiu em chamas, enquanto
Angelique sentia seu corpo engolfado pelo calor. A carga fluía de
seus dedos e brotava de seus lábios, enquanto ela prosseguia mono‑
tonamente com sua cantilena.
— Coração do Fogo — entoou novamente — que queimas no
Coração do Gelo. Fogo que congela e não se consome. Eu invoco o
Olho do Fogo que queima dentro do Olho do Gelo e protege todas
as obras do mal. Eu te invoco para o aposento de minha escolha,
Coração do Fogo, Coração do Gelo, Olho de Fogo do mais gélido
dos males. Eu te ordeno que venhas. Vem e queima. Queima! Quei‑
ma! Queima! Queima!
Angelique sabia que o fogo estava começando a queimar o quar‑
to em que se achava Phyllis, percorrendo o assoalho como serpentes
e que a mulher horrorizada se encolhia de terror.
— Olho do Fogo. Coração do Gelo. Eu te invoco das águas gela‑
das do mundo do além...
Ouviu um som do lado de fora de sua porta, passos apressados,
alguém se aproximando pelo corredor. Os passos pausaram e nesse
instante ela pensou ver a maçaneta de sua porta girar pela pressão
de uma mão invisível. Mas ao mesmo momento, ouviu o grito de
Phyllis Wick:
— Fogo! Socorro! Alguém me ajude! Fogo!
E os passos se moveram rapidamente corredor afora.
Phyllis Wick correu escadas abaixo e caiu nos braços do jubiloso
Reverendo Trask. Ele a apertou junto ao peito enquanto gritava
como um maníaco:
— Os Poderes das Trevas foram conquistados agora! Os Poderes
da Luz triunfaram! Ajoelhe­‑se, feiticeira! Ajoelhe­‑se! Ajoelhe­‑se!
Peguei a bruxa! Peguei a bruxa!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Enquanto o Reverendo Trask conduzia Phyllis para longe, sem


que ela opusesse resistência, Barnabas demonstrou a primeira emo‑
ção de ternura que Angelique vira nele em semanas. Instintivamen‑
te, ele parecia saber que a governanta era inocente e, para irritação
crescente de Angelique, garantiu a Phyllis que ele faria tudo quanto
estivesse a seu alcance para garantir sua libertação.
Barnabas sabia de alguma coisa; Angelique podia sentir isso em
seus modos e perceber na frialdade de seu olhar. Teria sido dele a
mão fantasmagórica do lado de fora de sua porta alguns minutos
antes? Mas se ele suspeitava alguma coisa dela, não tinha a menor
prova disso. Ben era a única pessoa que sabia da verdade. Mas Ben
estava na prisão e se Barnabas fosse visitá­‑lo e Ben dissesse a menor
palavra contra ela, ficaria mudo para sempre.
Contudo, as maneiras glaciais de seu marido e as respostas hos‑
tis a todas as suas perguntas a estavam desgastando. Ele parecia es‑
tar suprimindo uma cólera palpável e ela enchia o ar entre os dois
com um odor ácido. Sempre que ela se dirigia a ele, ele lhe respon‑
dia com algumas palavras indiferentes; e quando ela tentava
acariciá­‑lo, ele se afastava.
Em outros momentos, incrivelmente, ele era quase gentil com
ela e todas as suas esperanças se reacendiam. Mas quando ele se
portava meramente com educação, ela considerava sua civilidade e
polidez como piores que a frialdade. Quando sentia sua antipatia,
ela apenas aguardava que um dia ele perceberia que tudo quanto ela
fizera o fora pelo amor dele. Suas ações, que poderiam parecer tão
impiedosas, eram tentativas desesperadas de recuperar seu amor
por quaisquer meios a seu alcance. Tudo teria valido a pena no mo‑
mento em que ele retornasse para seus braços.

* * *

Certa noite, para sua completa surpresa, ele retornou depois de um


dia inteiro longe de casa, e quando ela lhe perguntou se ele tinha ido
aos estaleiros, ele lhe respondeu com uma cordialidade inesperada:

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— Parece que eu me resfriei enquanto cavalgava para casa vindo


da aldeia — comentou. — Acho que vou tomar um cálice de xerez.
Quer me acompanhar?
Seu convite era tão fora do comum que ela ficou perplexa. Ele
foi ao armário das bebidas e retirou dois cálices. Depois de servir
o xerez, entregou­‑lhe um dos cálices e foi sentar­‑se na poltrona
que ficava junto da lareira. Ela se reuniu a ele cheia de alegria,
sentando­‑se no chão a seus pés. Por um breve momento, ela sen‑
tiu uma onda de felicidade. Embora eles estivessem casados há
várias semanas, ainda não haviam dormido na mesma cama e
ela estava começando a perceber o que ele quisera dizer quando
lhe indicara que ela deveria aceitar o casamento com pleno co‑
nhecimento de que ele não a amava. Talvez esta noite as coisas
fossem diferentes.
— Eu tenho uma proposta — disse ela, alegremente. — Eu gos‑
taria de fazer uma viagem, como se fosse uma lua de mel. Para nos
afastarmos de tudo isto.
Barnabas lhe respondeu com uma voz despida de emoção.
— Eu não acredito que seja jamais possível escapar de tudo o que
aconteceu por aqui.
Ela passou um braço ao redor de seus joelhos, sentiu como ele se
encolhia, mas insistiu.
— Eu posso fazer com que você esqueça tudo — disse­‑lhe sorrindo.
— E como faria isso?
— Eu lhe demonstraria o meu amor.
Ele a observou atentamente e, no momento em que ela estava a
ponto de levar o cálice de xerez a seus lábios, escutaram uma ba‑
tida na porta. Angelique se ergueu para abrir. Naomi entrou, pa‑
recendo preocupada.
— Barnabas! Soube do que aconteceu. Você está bem?
— Sim, estou perfeitamente bem.
— O que quer dizer? — inquiriu Angelique.
— Ele não lhe contou? Ele foi visitar Ben na cadeia e aquele ru‑
fião desesperado acertou­‑lhe a cabeça com uma garrafa e fugiu!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Você esteve visitando Ben? — indagou Angelique, perturbada


pela revelação. O que ele poderia ter descoberto?
Barnabas continuou a tranquilizar sua mãe, suas maneiras
ainda afáveis.
— Realmente, mamãe, ele não me machucou para valer. De fato,
a batida fez com que minha cabeça se desembaralhasse e eu come‑
çasse a ver certas coisas claramente.
Angelique se recordou de seus deveres de anfitriã e ofereceu a
Naomi um cálice de xerez, que ela aceitou com gratidão, precisando
mesmo de alguma coisa para lhe acalmar os nervos. Uma vez que
ela ainda não havia tomado sequer uma gota de seu cálice, Angeli‑
que entregou o seu a Naomi e atravessou a sala para pegar outro
para si própria.
Inexplicavelmente, Barnabas ficou violentamente agitado e in‑
sistiu que estava vendo uma rachadura na beirada do cálice de
Naomi. Sua mãe lhe disse que era só sua impressão e ergueu o
xerez para os lábios, quando ele saltou para frente e desajeitada‑
mente derrubou o cálice da mão dela, derramando o licor na saia
de sua mãe.
— Ai, mamãe, me perdoe! Olhe só o que eu fiz! Estraguei o
seu vestido!
— Por favor, querido, não foi nada — ela respondeu. Angelique
gelou, enquanto as suspeitas abriam caminho desde o coração até
sua mente. Ela esfregou o licor derramado com seu guardanapo,
pegou o cálice vazio do colo de Naomi e caminhou com ele até a
mesa em que fora inicialmente servido. Percorrendo com o dedo a
beirada de cristal, não descobriu qualquer rachadura, muito menos
uma lasca. Cheirou o cálice vazio e detectou nele um inconfundível
cheiro de veneno.
Através da névoa que lhe obnubilava o cérebro, ela escutou Naomi
contando a Barnabas que trouxera com ela um pacote acabado de
chegar da França. Ao contemplar Barnabas mover­‑se com entusias‑
mo para abrir o pacote, ela ficou espantada ao perceber como, mes‑
mo neste momento, ela o amava. Seus movimentos eram vigorosos e

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Lara Parker

enérgicos e seu rosto magnífico talhado em marfim por sombras ele‑


gantes. Ai, que a perfídia pudesse habitar em palácio tão formoso!
Ele se inclinou e desenrolou o pacote, deu um passo para trás e
soltou um suspiro. Era um retrato a óleo de Josette.
— Há um bilhete — disse Naomi, olhando de relance com um
ar culpado para Angelique. — O que ele diz?
Barnabas leu com a voz tensa.
— “Quando meu pai insistiu que este seria seu presente de casa‑
mento para você, eu ri e lhe disse ‘Papai, por que Barnabas precisa de
um quadro com um retrato meu’?”
Sua voz se quebrou antes de ler as palavras seguintes:
— “Ele terá a mim...”
Angelique olhou enquanto ele amassava o bilhete em sua mão e
seus ombros se afrouxavam de exaustão.
— Você ainda a ama, não é? — disse­‑lhe. Ela contemplou seu
rosto sofrido. — Eu estou apenas com ciúmes. É doloroso para mim
vê­‑lo olhando para esse retrato, quando eu o amo tanto.
— Angelique — ele disse severamente. — O que você pensa que
é o amor?
Então ele a odiava. Ele queria vê­‑la morta. A percepção a atingiu com
um golpe no peito e subitamente ela se tornou consciente de que seu
coração se tornara em pedra, tão duro e denso quanto o mais frio ala‑
bastro. Ela não sentia mais absolutamente nada. Barnabas estava enlou‑
quecendo de sofrimento e enquanto ela permanecesse a seu lado, estaria
em perigo mortal. O luto e a tristeza tinham distorcido seu julgamento
até que agora ele se tornara seu pior inimigo. Ela precisava encontrar
uma forma de se proteger, algum jeito de sobreviver à sua raiva e a seus
esquemas contra ela, até que ele retomasse uma certa medida de razão.
Ela tinha agora de vigiar com cautela cada um de seus movimentos.

* * *

Aquela noite, depois que os dois tinham se deitado, ela criou a imagem
de um corpo adormecido em seu leito e se escondeu por trás da porta

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

de seu quarto de vestir. Temendo pelo pior e rezando que estivesse


enganada, esperou envolta na escuridão gelada até que seus braços e
pernas endurecessem e ficassem doloridos de fadiga. O leve brilho do
luar lançava sombras tremulantes através do quarto e ela via seu refle‑
xo no espelho que se erguia do outro lado do aposento. Ela ficou cho‑
cada ao observar que sua imagem estava fantasmagórica e cadavérica,
ali pairada na semiobscuridade, tal como se fosse o verdadeiro reflexo
de sua alma. Justo quando ela estava a ponto de abandonar sua embos‑
cada e mergulhar exausta em sua cama, ela escutou um som do lado de
fora da porta do quarto e a maçaneta girou lentamente. Furtivamente,
Barnabas entrou no quarto e deslizou em direção ao leito.
Ela queria chorar quando vislumbrou a faca erguida em sua mão,
refletindo um lampejo do luar enquanto pairava sobre a cama e de‑
pois descia sem hesitação, impelida pela cólera. Ele apunhalou a col‑
cha e os lençóis macios cruelmente. Então parou, apalermado, largou
a faca e ergueu as cobertas de um puxão para revelar o leito vazio.
Subitamente, certo de que ela o estava observando, ele se virou para
enfrentá­‑la, seu peito ofegante, o rosto contorcido de fúria.
— Você me odeia tanto assim? — ela perguntou, reprimindo
um soluço.
Sua voz era venenosa.
— Você é a bruxa!
Ela sacudiu a cabeça, sem saber o que dizer.
— Eu nunca quis que você soubesse...
— Eu estava escutando do lado de fora de sua porta quando você
obrigou a pobre Phyllis Wick a fugir do fogo. Escutei o seu encanta‑
mento. Agora eu estou a par de tudo.
— Está a par de que eu te amo? Descobriu até que ponto? Que eu
ainda te amo? Que te amarei para sempre?
— Amor? Você e eu definimos essa palavra de maneira diferente,
minha cara! Seu amor é como veneno! Bizarro! Corrupto! Isso
nunca foi amor! Não passa de uma obsessão — uma obsessão per‑
vertida e desorientada. Você me fez desprezar a mim mesmo! Ar‑
ruinou minha vida!

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Lara Parker

Ele se curvou depressa sobre a cama e segurou a faca novamente,


dando um salto em direção a ela, mas Angelique ergueu a mão e o
forçou a parar, preparando­‑se para o relâmpago de fogo que jorrou
através dela. Enquanto ele gritava de dor, ela interrompeu o jato e o
sugou novamente, antes que ele virasse a faca contra seu próprio
peito. Ele a jogou para um canto, e com um rosnado furioso, lançou­
‑se sobre ela com as mãos nuas, cravando­‑as no ar ao redor de seu
pescoço, lutando para conseguir sufocá­‑la.
Mas ela permaneceu firme e não recuou um passo. Contudo, seu
corpo se arqueou para trás enquanto chispas de fogo pareciam bro‑
tar de seus olhos e lhe disse em um cochicho áspero, suas faces
queimadas pelas lágrimas.
— Você não pode me matar. Você não pode me tocar. Eu tenho
muitos poderes, Barnabas. Uma vez, muitos anos atrás, eu tentei
adverti­‑lo, mas você insistiu em me seduzir e agora eu lamento
muito que você tenha de saber a verdade. Você não pode nem che‑
gar perto de mim a não ser que eu o deseje.
Mesmo assim ele empurrou as mãos em direção a ela, cravando­
‑as no ar, ansioso por sua carne e disse:
— Pois eu a odiarei até que possa dar cabo de sua vida! E serei eu
que a destruirei!
— Baixe esses braços, Barnabas — disse ela tranquilamente. —
Se eu ordenasse a seus braços que me envolvessem carinhosamente,
era isso que eles fariam. Mas eu não seria assim tão cruel com você.
— Cruel? E alguma vez você foi qualquer outra coisa senão isso?
A saliva saía aos perdigotos de sua boca e seus lábios se curvaram
para mostrar os dentes, como os de um cão raivoso.
— Você voltou contra mim a única mulher que eu jamais amei.
Desencadeie todos os seus poderes agora! — gritou, praticamente
uivando. — Eu a desafio a fazê­‑lo! Tente o que quiser, jamais pode‑
rá me impedir de amar Josette!
— Eu tampouco farei isso. Eu jamais o quereria para mim desse
jeito. Eu o amei desde o começo porque era um homem e não um
fantoche. Eu não vou transformá­‑lo em minha marionete agora,

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

mesmo que essa fosse a única maneira de tê­‑lo para mim. Quando
nos encontramos pela primeira vez em Martinica, você me desejou
como mulher e não pensou jamais que eu fosse uma feiticeira. Quan‑
do eu lhe disse, não me acreditou, desejou­‑me, perseguiu­‑me, amou­
‑me e seduziu­‑me. Essa é a mulher que está diante de você agora.
— E tudo o que eu vejo agora é uma carne imunda e podre por
baixo de seu exterior reluzente. A bruxaria está em seu coração!
Pense no que fez!
— Naquela noite em que eu cheguei aqui e fui até seu quarto,
não tinha lançado mão ainda do menor feitiço. Tinha resistido e
rejeitado todas as minhas habilidades durante anos. Se você me ti‑
vesse demonstrado seu amor da mesma forma que me amou em
Martinica, nada disso jamais teria acontecido. A culpa é toda sua,
por que você me rejeitou!?
— Porque eu amo Josette! Não consegue aceitar isso? Meu Deus,
Angelique, eu dormi com você! Uma virgem vestal não estaria ar‑
mando toda essa confusão. Essa é a história mais antiga do mundo,
um oficial com uma camponesa. Tenho certeza de que você gozou
com uma porção de “cabos de vassoura” antes de me conhecer!
— Canalha! Como ousa dizer isso? Está cego para a verdade!
Naquela primeira noite, depois que cheguei nesta casa maldita, você
me deixou tão furiosa, que eu não queria amá­‑lo nunca mais! Eu
queria... sim, eu queria era vê­‑lo morto!
Ela respirou fundo, tentando aliviar a dor que sentia no peito.
— Mas quando vi seu sofrimento, não consegui suportá-lo! Eu
desfiz o feitiço! Pois não está vendo? Eu te amo! Eu não poderia
nunca, jamais lhe fazer mal!
— E espera que eu tenha pena de você, só por isso? Foi você...
que deixou... Sarah mortalmente doente, com seu brinquedo... Bem
que eu desconfiei, sua bonequinha e alguns alfinetes! Você usou
isso como um truque para me obrigar a desposá­‑la!
Ela percebeu que o vislumbre total de sua malignidade o estava
enfraquecendo e ele acabou por se virar e seguir em direção à porta.
— Aonde você pretende ir?

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Lara Parker

Ele nem a olhou.


— Eu vou sair desta casa agora. Vou montar em meu cavalo e ir
até Collinsport, onde a denunciarei às autoridades.
— Não. Você não fará nada parecido.
Ele riu amargamente.
— Você pensa que nós dois podemos continuar fingindo que
somos um casal feliz?
— É exatamente o que eu penso. E com o passar dos anos, você
descobrirá que podemos viver uma bela vida juntos.
Ele se virou e a encarou com um olhar de completo desprezo,
como se ela estivesse completamente fora de si. Seus olhos estavam
injetados de sangue e ele balançava levemente enquanto escutava
seu amargo ultimato.
— Se você me deixar — disse ela, sua voz carregada de zomba‑
ria... — Se você falar qualquer coisa contra mim ou tagarelar a meu
respeito com qualquer pessoa neste mundo, se doravante você agir
de qualquer outra forma que não seja como meu esposo devotado...
Então, agora, coisa muito desagradável vai acontecer... com sua
querida Josette.
Ela viu o sangue fugir­‑lhe do rosto.
— Você quer que eu lhe conjure uma visão da morte de Josette?
— Não...
— Pois sabe agora que eu poderia fazer isso perfeitamente, com
a maior facilidade. Agora é claro que não seria real, mas eu poderia
torná­‑la real com um estalo de meus dedos. Que mais não seja por
amor de Josette, você vai permanecer comigo. Para sempre.

* * *

No fim da madrugada seguinte, Angelique acordou com o rugido


dos trovões que atravessavam os céus como uma fanfarra de mil
tambores tocados a um só tempo. O vento subia da terra e pelo dia
inteiro uma chuva fria e lenta tombou de um céu branquicento. Um
leve véu de condensação cobria os galhos das árvores como mangas

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

de gelo e pingava lentamente sobre o solo, enquanto cada ramo re‑


luzia como cristal.
Angelique foi até a janela e olhou para fora. Tudo — os troncos
das árvores, os arbustos, até mesmo o caminho — estava coberto de
gelo. O peso adicional curvava os galhos das árvores em grandes
arcos e cada raminho ou botão reluzia.
Um a um, os ramos das árvores maiores começaram a se que‑
brar, estalando sob o peso excessivo e explodindo como tiros de
pistolas. Cada vez que um galho caía pelo ar parado e silencioso, a
queda era seguida por um som de guizos, uma porção de estalidos
como vidro se fragmentando em estilhaços saltitantes.
Lenta e metodicamente, ela desenhou um par de olhos em um peda‑
ço de papel e o iluminou com uma chama que queimava lentamente.
— Olhos da noite — ela entoou — há um corpo em que vós vos
podeis tornar e que é capaz de ver na escuridão. Vós tendes o poder
de voar em correntes invisíveis do ar e pairar sobre o silêncio. Des‑
cobri onde ele está agora. Dizei­‑me aonde vai. Observai­‑o bem!
Tremendo de frio, ela caminhou para fora da casa e olhou para
a chaminé que parecia vitrificada pelo gelo. Os morcegos não se
haviam aventurado na tempestade e ela podia escutar suas vozes
guinchantes, chilreando e pipilando, enquanto alimentavam seus
filhotes e se acomodavam de cabeça para baixo para dormirem du‑
rante o dia. Ela apertou o tijolo frouxo que encontrara da outra vez
e ele escorregou para o lado com um som rascante, expondo o in‑
terior quente e enfumaçado. A semiobscuridade revelou os corpos
de pelos sedosos pendurados juntos, suas cabeças pendendo en‑
quanto se firmavam nas paredes com as garras, sua asas de couro
fino como papel dobradas para cima sobre suas costas e seus olhos
vermelhos a encará­‑la.

* * *

Justamente como suspeitara, não se passou muito tempo antes que


Barnabas marcasse uma entrevista com Josette na casa nova. A cena

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Lara Parker

se desenrolou na mente torturada de Angelique enquanto ela escu‑


tava e observava cada detalhe. Josette estava mais bela do que nun‑
ca, usando um vestido de veludo azul­‑anil e um véu de luto, uma
mantilha negra que lhe recobria o lustro dos cabelos.
— Eu sei que você nunca me enganou de propósito — dizia
Barnabas.
— Meu casamento, mesmo então, parecia um sonho — ela
confessou.
— Eu fiz uma descoberta terrível. Nada disso foi culpa de vocês.
Foi um feitiço lançado sobre vocês por uma bruxa!
— Uma bruxa? Você não pode estar falando a sério! Quem me
odiaria tanto assim? Por quê?
— Mesmo agora a bruxa a está vigiando e planejando sua morte.
— Mas o que eu posso fazer?
— Eu a protegerei. Você não precisa ter medo.
Angelique viu quando Barnabas deu a Josette a caixinha de mú‑
sica cravejada de joias que tocava aquela melodia embaladora e os
olhos de Josette se iluminaram de prazer.
— É linda...
— Destinava­‑se a ser meu presente de casamento para você. Por favor,
guarde­‑a como lembrança de mim. Logo estarei com você novamente.
— Estou tão amedrontada...
— Você deve confiar em mim. Diga ao cocheiro que a leve até a
hospedaria que fica mais perto de Portsmouth. Eu vou até lá para
encontrar­‑me com você.
— Mas eu tenho a sensação de que é você que está em perigo.
Tenho a impressão de que, se o deixar partir agora, posso não vê­
‑lo nunca mais.
— Da próxima vez que me encontrar, eu não mais estarei casado
com Angelique. Não posso lhe dizer nada mais.
— Tem certeza de que não me está dando adeus?
— Pense em mim e saiba que eu a amo. Muito.
Então Angelique viu Barnabas tomar Josette em seus braços e
beijá­‑la ternamente e seu sangue ferveu de raiva.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Quando Barnabas retornou à casa, demonstrou­‑se implacável e


recusou­‑se a responder às acusações de Angelique. Ignorou sua có‑
lera furiosa e se ocupou com uma caixa laqueada que conservava
dentro de sua escrivaninha, dando as costas para suas repreensões.
— Você cometeu um grave erro, Barnabas Collins. Já me traiu
mais uma vez. Está pensando que ao mandar Josette para longe da‑
qui, ela ficará segura. Olhe atrás de si.
Erguendo os olhos indiferentemente, ele a viu apontando para o
retrato de Josette. Não pôde evitar um recuo de horror enquanto a
imagem fresca e delicada da moça de cabelos escuros se transformava
diante de seus olhos em uma bruxa enrugada de cabelos brancos e
ralos, a pele toda pregueada e manchada, a boca um sorriso malevo‑
lente e desdentado. Angelique viu seu susto, mas a seguir, ele se re‑
compôs e se voltou para ela com um olhar imperturbável.
— Por favor, poupe­‑me desses truques lamentáveis — disse fria‑
mente. — Não vai conseguir me assustar assim.
— Você já me foi infiel!
— Não, não fui — ele respondeu com ar cansado.
— Você se encontrou com ela a sós. Qual foi a traição que os
dois planejaram?
— Nenhuma.
— Eu não acredito em você. Você está mentindo agora, do mes‑
mo modo que mentiu o tempo todo em Martinica e irá continuar a
mentir para mim.
Quanto mais passivo Barnabas permanecia, tanto mais a fúria de
Angelique crescia por dentro. Ela percebeu que estava perdendo o
controle, como se estivesse sendo arrastada por uma traiçoeira cor‑
rente submarina e a areia estivesse escorrendo debaixo de seus pés.
— Você a mandou para longe para poder reunir­‑se com ela logo
depois de me matar!
Barnabas a olhou diretamente e ela percebeu que sua expressão era
de um nojo tão completo, que sentiu como se ele a estivesse esbofetean‑
do no rosto. Suas faces se avermelharam com o calor do golpe imagi‑
nário e seus olhos se encheram mais uma vez de lágrimas quentes.

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Lara Parker

— Você pensa que ao enviá­‑la para longe pode me impedir de


mantê­‑lo comigo? Josette até poderia estar em segurança... Mas
ninguém mais está!
Ela subiu as escadas correndo e atingiu o patamar. Parou por um
momento, ao perceber que havia parado de respirar e que seu peito
parecia comprimido por um torno. Correu depois para seu quarto,
em que abriu uma gaveta e arrancou de lá a boneca de Sarah, que
permanecera o tempo todo escondida por baixo de suas roupas.
Ondas negras afogavam seu raciocínio.
A próxima coisa de que tomou conhecimento foi quando parou
diante de Barnabas, com a boneca e as marombas entre os dedos.
— Sarah sentiu uma dor terrível, não foi? Pois foi bem aqui!
Ela apunhalou o ombro de algodão da pequena efígie com a lan‑
ça maligna e pontiaguda. Com sua visão periférica, viu Barnabas
encolher­‑se todo.
— E foi aqui também! — gritou, perfurando de novo a boneca,
suas mãos tremendo.
Seus olhos pareciam queimar e sua visão se embaciou, enquanto
silvava como uma serpente:
— Esta última maromba se destina a seu coração. Ela não mor‑
rerá, a não ser que você me engane de novo, mas já está bem perto
da morte. Muito perto.
A esta altura Barnabas lhe suplicava. Ela podia sentir o som las‑
timoso de sua voz cheia de angústia.
— Pare com isso! Por favor, pare! Retire esses alfinetes, eu lhe
rogo! Farei tudo o que você quiser! Eu jamais a deixarei!
Mas ela já nem o escutava mais. O sangue estrondava em seus
ouvidos e seu coração ressoava como um bombo de orquestra. De
algum modo, escutou a própria voz:
— Eu não creio em você.
Ele remexeu em alguma coisa dentro da caixa laqueada de sua
escrivaninha e rodou em direção a ela. Ela o viu erguer a pistola e
apontar e olhou para o orifício do cano. Viu uma centelha de luz e
escutou um reverbero como um latido. Girou para o lado e para trás

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

com o tiro. A bala rompeu­‑lhe o peito ao lado de um ombro, de que


esguichou sangue e ela sentiu seu corpo transformar­‑se em água
enquanto se amontoava no assoalho. Em um vago estupor, ela en‑
xergou Barnabas, sua forma escurecida, suas pernas bem separadas,
distorcendo­‑se e sumindo, enquanto sua visão se enevoava e ela sen‑
tia o gosto de sangue. Ele se ergueu sobre ela como uma torre, esticou
o braço para pegar a boneca e seus dedos trêmulos removeram as
duas marombas. Então se ergueu e recuou, seus passos cambaleantes.
Ela sabia que estava morrendo. O sangue escorria por entre seus
dedos e a ferida era como uma criatura cheia de tentáculos irra‑
diando dores através de um corpo envolvido em uma onda de ódio
que aumentava cada vez mais. Ela procurou no mais fundo de si
mesma alguma maldição, algum pronunciamento irrevogável de
danação antes que se lhe chegasse o fim. O tambor Batá vibrava,
arrítmico, o som sumindo aos poucos, mas o imenso tambor Ma‑
man ressoava mais forte do que nunca e ela sabia, dentro de seu
violento estupor, que o Espírito Negro viera testemunhar sua prece
por vingança. O assoalho se dissolveu por baixo dela e ela sentiu
como se estivesse flutuando para o alto entre bulcões negros de fu‑
maça. A dor lhe percorria o corpo inteiro e uma volumosa bola de
fogo explodiu no mais fundo de seu ser, atravessando­‑lhe os pul‑
mões e o esôfago como um funil para lhe sair pela boca.
Barnabas balançou ante o choque de sua respiração, como se en‑
frentasse uma ventania de fogo e ela não mais podia ver­‑lhe o rosto.
Ele flutuava em ondas negras e ondulantes e ela escutava a água
correndo, correndo e correndo enquanto se esforçava para falar.
— Você não fez seu trabalho direito, Barnabas! — disse num
estertor. — Ainda não morri. E enquanto ainda posso respirar, eu
executarei a minha vingança! Eu o amaldiçoo, Barnabas Collins!
Você queria tanto a sua Josette... pois bem, você vai tê­‑la! Mas não
da forma que escolheu. Você jamais terá repouso. E jamais será ca‑
paz de amar alguém. Porque quem doravante sentir amor por você...
morrerá. Esta é a minha praga! E você terá de conviver com esta
praga durante toda a eternidade!

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Lara Parker

Em algum ponto do aposento esmaecido, a janela se abriu


lentamente e lá da escuridão o morcego entrou, batendo as
asas com leveza, guinchando inaudivelmente para se orientar,
mudando de direção subitamente, girando ao redor da cabeça
de Barnabas, volteando como um carrossel, até mergulhar so‑
bre seu pescoço. Ele chegou a ver a criatura e ergueu os braços,
tentando afastá­‑la com gestos ineficazes das mãos, sua expres‑
são aparvalhada, depois tomada de horror, enquanto os olhi‑
nhos de contas escarlates rebrilhavam e os dentes aguçados
cintilavam como um par de minúscula adagas. Ele sacudiu os
braços para afastá­‑lo, mas o pequeno vampiro retornou de
cada vez, desviando­‑se de seus golpes ineficientes, descendo de
novo e de novo, até conseguir prender­‑se em seu pescoço com
as garras, enquanto batia as asas coriáceas, firmando­‑se ali
inabalavelmente. Os olhos de Barnabas se dilataram de terror
enquanto os dentinhos lhe rasgavam a carne. Ele berrou, sol‑
tando um uivo alucinado de dor irradiante que era o grito fi‑
nal de sua condenação.

* * *

Quando Angelique recobrou a consciência, estava ainda caída


no assoalho, no mesmo lugar em que tombara, jazendo em uma
poça de seu próprio sangue. Arrastou­‑se até ficar em pé, sua
cabeça rodando de dor, um único pensamento pulsando em seu
cérebro como um prumo de chumbo. Ela não ia morrer desta
vez. Agora sabia disso. A bala lhe atravessara o peito perto do
ombro, a ferida era profunda, mas não fatal. Mas alguma coisa
ocorrera, alguma coisa pavorosa e irreversível, que ela mesma
causara e que ela precisava evitar de algum modo. Segurando­‑se
ao corrimão da balaustrada, lentamente, com grande esforço,
ela se arrastou escadas acima.
Do lado de fora da porta do quarto de Barnabas, escutou Ben
dizendo a ele:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Qualquer um que perdeu tanto sangue como ela tem de estar


morto a essas hora!
Não obstante, de alguma forma ela conseguiu cambalear para
dentro do quarto, apoiando­‑se à parede para não cair e confrontou
a expressão apatetada de Ben.
Barnabas jazia na cama, suando de febre, seus olhos no fundo
das órbitas e enevoados de delírio. De dois cortes profundos em
seu pescoço ainda escorria sangue, formando no travesseiro uma
mancha escura.
— Como ele está? — perguntou a Ben, pensando que desmaiaria
só pelo esforço de falar.
— Está quase morrendo e é por sua causa — disse o outro
com rancor.
— Não! Eu não quero que ele morra! Se ele morrer...
Barnabas se moveu com o som de sua voz e então a encarou, a
acusação em seus olhos, sua voz rouca:
— Uma praga... Ela me rogou uma praga... Fez aparecer um
morcego...
— Ele está variando faz tempo, dizendo que foi um morcego que
mordeu ele — disse Ben, parecendo não acreditar muito naquilo.
— Foi um morcego que fez isso nele? — indagou, apontando para
as marcas das presas.
Ela anuiu lentamente.
— Mas que tipo de monstro tu é? — disse Ben, seu rosto contor‑
cido de descrença.
— Você não pode imaginar como eu lamento — disse ela, com
a voz trêmula. — Ele atirou em mim e eu pensei que ele tinha me
matado — mas já vi que não vou morrer — e eu... Eu não quero
que a maldição o domine. Eu preciso cuidar dele, tratar dele, des‑
cobrir uma forma de curá­‑lo, porque, se ele morrer, será impossí‑
vel remover essa praga e...
— E o quê? O que vai acontecer com ele?
— Uma coisa... irreversível. Se ele morrer, não vai morrer com‑
pletamente... ele se tornará... um dos mortos­‑vivos...

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Lara Parker

— O quê? Não me vem com essa! Morto não volta à vida!


— Sim, alguns voltam, Ben — suspirou ela. — Eles retornam como
monstros e quando retornam, estão amaldiçoados com a vida eterna!

* * *

Jamais ela criara uma poção com tanto cuidado antes. Ela compôs
um antídoto tão poderoso quanto a própria morte, com os antigos
pós que trouxera de Martinica. Então, foi até a chaminé e removeu
o tijolo frouxo. Sem o menor receio, enfiou o braço dentro do in‑
terior cavernoso, tateou até encontrar um morcego adormecido e
fechou os dedos firmemente ao redor do corpo que se debatia;
puxou­‑o para fora pela abertura e, apertando­‑o contra o peito,
levou­‑o de volta para seu quarto. Uma vez lá dentro, enquanto a
criatura lhe arranhava as mãos, ela lhe perfurou o coração e lhe
ordenhou o sangue para dentro de uma caneca.
Sentada à beira da cama de Barnabas, ela esperou que ele acor‑
dasse. Ele variava em seu delírio, murmurando:
— Josette! Espere por mim... Eu já vou...
Então seus olhos se cravaram em Angelique e ele estremeceu
com uma série de espasmos, quase em convulsão, enquanto gritava:
— Saia de perto de mim! Bruxa! Assassina! Não me toque!
Seu coração partido de dor, Angelique sabia que faria qualquer
coisa agora para salvá­‑lo, até mesmo mandar trazerem Josette. Todo
o seu desejo de vingança se esgotara e enfim, tudo considerado, seu
amor por ele era mais forte até que seus ciúmes. Ela se inclinou so‑
bre ele e lhe murmurou ao ouvido:
— Diga­‑me onde ela está — pediu — e eu a trarei para você.
Mas seus olhos lampejaram e ele rouquejou:
— Não! Você nunca a encontrará! Ela agora está a salvo de você!
— gritou e em seguida se deixou cair sobre o leito, exaurido, mur‑
murando — Josette! Eu vou buscá­‑la! Nada me impedirá...
Após alguns momentos de respiração elaborada, ele se afrouxou
da cabeça aos pés e sussurrou roufenhamente:

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Alguma coisa terrível está acontecendo comigo. Posso sentir


uma mudança horrível...
Angelique respondeu baixinho:
— Eu vou ajudá­‑lo.
— Você pode fazer parar? Você pode impedir essa coisa pavorosa?
— Sim — afirmou ela. — Eu não vou deixar que aconteça. Eu
vou salvá­‑lo, prometo.
Levou­‑lhe a caneca até os lábios.
— Beba isto. Vai ajudá­‑lo. Deixe que eu seguro enquanto você
bebe... Beba devagar...
— Isso vai acabar com... esta coisa que me rasga... que corta meu
corpo por dentro?
— Sim. É preciso! — ela afirmou e, enquanto ele bebia, murmu‑
rou para si mesma, baixinho, tão baixinho que ele nem sequer es‑
cutou. — Se ao menos você tivesse me amado, nem que fosse com o
amor fingido com que me amou no passado...
Ela lhe acariciou a testa e falou mais alto:
— Feche os olhos...
Apertou a ponta dos dedos contra sua testa e tentou erguer a escuri‑
dão que encontrou ali para dentro de si mesma. Sua pele estava úmida
e pegajosa e os fios de suas mechas escuras estavam grudados contra os
supercílios. Ela percebia os filamentos da maldição começando sua
metamorfose, envenenando­‑lhe o sangue e se esforçou para puxá­‑los
com as mãos para o interior de seu próprio corpo enfraquecido.
— Feche os olhos — disse novamente — e só abra quando
eu mandar.
— Deixe­‑me dormir — ele murmurou. — Ah, se ao menos eu
pudesse dormir...
— Sim, durma agora. Você vai sobreviver a essa praga. Já não
consegue sentir? A poção está funcionando, eu sei. Não abra os
olhos até que eu mande.
— Não, eu não quero abrir os olhos...
Tremulamente, com uma leve esperança e um pavor cada vez
mais pesado a afundar­‑se­‑lhe no ventre, Angelique caminhou até a

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Lara Parker

janela, temendo que a própria cicatrização de sua ferida estivesse exi‑


gindo a maior parte de seus poderes. Passado o tempo que julgou
necessário para que a poção fizesse efeito, ela estendeu as mãos para
as cortinas vermelho-vivo e, após prender a respiração, abriu­‑as rapi‑
damente, num repelão. A luz do sol se derramou dentro do quarto,
refletindo­‑se em todas as superfícies, fluindo através do leito.
— Abra os olhos, Barnabas, agora!
Ele se retorceu nos lençóis, girando a cabeça para os lados.
— Eu não quero abrir os olhos...
— Abra agora!
Ele os abriu, mas só por um momento. Quando viu a luz do sol,
ele gritou de agonia, o uivo agudo de uma criatura sofrendo uma
dor mortal e cobriu o rosto com as mãos.
— É tarde demais — disse ela, deixando cair o cortinado. — O
que está feito não pode mais ser desfeito...

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Trinta e Um

ngelique permaneceu com Barnabas o dia inteiro, escutando


com o coração pesado enquanto ele variava como um maní‑
aco — clamando o tempo todo por Josette. Algumas vezes, o pâ‑
nico o engolfava e ele olhava fixamente para ela como se estivesse
louco. Certa ocasião, ele lhe pegou a mão, segurando­‑a desespera‑
damente, sem saber de quem era, apertando­‑lhe os dedos com
tanta força, que ela gemeu de dor. Só depois da meia­‑noite ele fi‑
nalmente recaiu em uma espécie de abatimento agitado. Então ela
o deixou e saiu para a noite.
Não havia luar e as estrelas estavam escondidas por uma mortalha
de névoa. As brumas revoluteavam ao redor de seus pés, mas ela já
perdera todo o medo quando o Espírito Negro apareceu diante dela,
sua forma transparente mais distinta agora, embora os planos de seu
rosto passassem intermitentemente de ébano para marfim. Sua voz
era o farfalhar do vento, porém os sons eram quase humanos.
— Um vampiro! Mas que escolha mais interessante, minha que‑
rida. Devo admitir que até mesmo eu fiquei intrigado.

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Lara Parker

— Não deixe que ele morra.


— Mas, Angelique, foi você mesma que provocou isso. Quantas
vezes me disse no passado: “Meus poderes pertencem só a mim.
Eles provêm de mim mesma!”.
Ele soltou uma gargalhada amarga, quase um latido.
— Agora eu sei que isso não era verdade. Eu jamais poderia ter
feito isso sozinha.
— E agora se arrependeu.
— Eu me arrependo com todo o meu coração. Não podia supor‑
tar sua cólera e seu desprezo quando o amo tão profundamente.
Não fui forte o bastante para resistir. Se ao menos eu pudesse retirar
a praga que lhe roguei e começar tudo de novo, eu o deixaria para
ela e conviveria com meu coração partido.
— Mas por que me invocou?
— Por favor... deixe que ele viva.
— Em forma humana, ele sempre a desprezará.
— Entendi isso agora. Aceito isso.
— Você partirá comigo?
— Sim...
Ouviu­‑se um longo suspiro, como se todas as árvores tivessem
inclinado simultaneamente seus ramos.
— Você se esquece, minha querida, de que eu não sou o Senhor
da Criação. Minha província é a morte. Só existe uma forma de ele
permanecer vivo agora e essa é por meio de sua maldição. Então ele
possuirá aquilo que eu sempre lhe ofereci: a imortalidade.
— A vida?
— Sim. A vida eterna.

* * *

Ela aguardou à beira do leito de Barnabas, ainda esperando um mi‑


lagre e derramando sobre ele seus poderes enfraquecidos. Quando
ele morreu nessa noite, foi com o nome de Josette em seus lábios:
“Espere por mim, Josette... Eu voltarei...”.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ele nem sequer soube que soltara seu último suspiro nos braços
de Angelique. Ela lhe beijou o rosto, tão tranquilo agora e depois as
pálpebras que se fechavam sobre seus olhos fundos.
— Eu te amo — disse ela. — Eu te amei desde a primeira vez em
que te vi. E continuarei a amá­‑lo para sempre.
O Espírito Negro estava no quarto.
— Para sempre... — repetiu.
— Sempre o mesmo pacto e sempre as mesmas mentiras — dis‑
se ela, suas lágrimas a cobrir­‑lhe as faces.
— Não, não é o mesmo. Venha comigo agora e me sirva e algum
dia, dentro de alguns séculos, eu a libertarei.
— Não, não vou.

* * *

Ela encontrou o zelador, sentado em seu banco, imerso em seu luto.


O imenso corpo de Ben era sacudido por seus soluços, mas ela sabia
que toda a sua tristeza apenas encheria uma parte mínima de seu
próprio coração dolorido. Ela agia como uma sonâmbula, olhando
em volta sem ver, pensando somente no que deveria fazer.
— Ben. Você precisa me ajudar. Preciso que você corte um azevi‑
nho e me faça uma estaca fina com seu tronco, com vinte e cinco ou
trinta centímetros de comprimento, porém grossa o suficiente para
ser atingida sem quebrar por um martelo de madeira. Mas uma das
pontas deve ser aparada até ficar aguçada como uma agulha.
— E para que você quer isso?
— Faça o que estou lhe dizendo, ou todos morreremos ao cair
da noite.

* * *

Lentamente, Angelique ergueu a tampa do caixão. O rangido das


dobradiças ecoou no interior da câmara secreta que ficava por bai‑
xo do mausoléu e onde seu pai determinara que ele fosse colocado.

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Lara Parker

O odor de guano, de fezes de morcego lhe atingiu acremente as na‑


rinas. Barnabas jazia ali e lhe parecia ainda mais belo em sua morte,
mas havia uma mudança profunda em sua fisionomia. Sua pele pa‑
recia feita de porcelana — translúcida ao redor da caveira — e as
áreas mais fundas sob os ossos malares e dentro das órbitas dos
olhos pareciam nitidamente sombreadas, como se ele fosse o retrato
de um Deus em uma obra­‑prima. Suas madeixas de cabelos finos e
macios se curvavam ao redor das têmporas afundadas e suas so‑
brancelhas haviam ficado mais grossas e hirsutas, como se os pelos
lhe tivessem crescido no túmulo. Um brilho avermelhado se avista‑
va por dentro de seus lábios e suas mãos, as mãos que a haviam
acariciado tantas vezes no passado, estavam postas sobre um colete
de cetim carminado.
Ela não tinha medo, mas tremia, porque seu peito estava inun‑
dado de pena enquanto colocava a estaca sobre seu coração, miran‑
do cuidadosamente. O martelo de madeira pesava em sua mão
quando ela o ergueu acima de sua cabeça, sentindo o latejar de seu
próprio coração, inteiriçando­‑se para desferir um único golpe que
seria o final — a destruição do vampiro, a negação da negação, o
fim de tudo quanto havia amado na vida.
Ela hesitou, sentindo o peso do martelo, durante um momento
e depois por mais um. E então percebeu... que não poderia fazer
isso! Ela não poderia apagar a única luz que remanescia em sua
vida de trevas.
Nesse instante, Barnabas despertou. Seus olhos se abriram de
súbito e ele a encarou com a mais pura malevolência. Um som se‑
melhante a um ronco de animal brotou de seus lábios e sua mão
agarrou­‑lhe a garganta, quase esmagando os finos ossos de seu pes‑
coço. Ela se desvencilhou, a estaca e o martelo caíram no piso; mas
ele saltou do ataúde cheio de leveza e logo estava em pé, esticando­
‑se em sua direção. Apanhou­‑a pelo ombro ainda mal cicatrizado e
o apertou violentamente com as mãos em garra.
— O que você pretendia fazer? — rosnou e depois olhou em
volta, assombrado. — Mas onde nós estamos?

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ela respondeu com a voz trêmula:


— No mausoléu dos Collins.
— Um ataúde! Mas o que eu estava fazendo dentro de um caixão?
Seu espanto somente o tornava mais ameaçador e ele a jogou
contra a parede e começou a andar pelo aposento, qual uma pante‑
ra enjaulada. Ela notou imediatamente que seu corpo estava muito
mais vigoroso — ágil, distendido, poderoso. Qualquer limite à sua
fúria desaparecera, sumira toda e qualquer restrição imposta pela
civilização. Ele se tornara paixão pura e apesar de se sentir congela‑
da de pânico, ela estava ofuscada pelo seu poder.
— Por quê? — ele a encarou com um olhar de fogo, os olhos
emoldurados em carmesim. — Ah, sim, eu lembro agora! O morce‑
go... a febre... deitado em minha cama... Eu sabia que alguma coisa
horrível estava acontecendo comigo. Estava com medo de morrer...
Ela começou a deslizar ao longo da parede em direção à porta, mas
ele notou o movimento e lhe pressentiu a intenção e a puxou para
perto de si, selvagemente, segurando­‑a como se ela fosse uma coisa
sem peso que ele pudesse quebrar em duas a qualquer momento.
— Foi isso que aconteceu, não foi? Eu estava dentro do ataúde
porque... estava morto!
Ela tentou se manter resoluta, mas seus ossos pareciam caniços.
— Sim — disse­‑lhe baixinho. — Você está morto.
— Eu retornei... dos mortos! Mas como?
Encarou­‑a abismado, sem conseguir crer no que se passara.
— Saberá em breve.
Seus olhos se estreitaram.
— Foi você! Você me rogou uma praga! — exclamou, sua voz
uma fúria gelada, como gelo se arranhando contra gelo.
— Eu tentei impedir! — gritou ela. — Eu tentei libertá­‑lo!
— Mas fracassou, não foi? É por isso que está aqui. Queria evitar
que... eu retornasse.
Ele a pôs de volta no chão e a encarou fixamente, sem jamais
piscar, seus olhos de bordas avermelhadas se estreitando e ela sentiu
o cheiro quente de sua respiração.

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Lara Parker

— Está com medo de mim, não está? Mas de que é que tem medo?
É disto em que eu me transformei?
Ela recuou dois passos, tentando colocar o ataúde entre os dois, o
medo a lhe apunhalar o corpo como cacos de vidro de bordas afiadas.
— Está com medo de que seus poderes não funcionem mais comi‑
go? O Diabo que te carregue! Bruxa! Diga logo o que aconteceu comigo!
Foi necessário todo o seu controle para conseguir responder.
— A maldição... o transformou... em um morto­‑vivo.
Ele soltou um longo gemido, balançando como se suas palavras
o tivessem atingido como uma bofetada.
— Mas você só pode viver à noite — ela sussurrou. — Ao nascer
do sol, será obrigado a retornar para este ataúde, para dormir, para
viver escondido dos raios solares ou será destruído pela sua luz.
— Eu me lembro... da praga... que me rogou, bruxa! — disse ele,
aos trancos. — “Quem doravante sentir amor por você — morrerá.”
Não foi isso que você disse? Não foi? Responda logo, maldita!
— Sim...
Seus olhos se injetaram de fogo.
— E você ainda me ama, Angelique... Foi por isso que tratou de
me impedir, não foi?
Ela pressentiu que seu tormento era insuportável, ainda mais do
que sua cólera, enquanto ele se inclinava em sua direção.
— Você sempre soube que seria a primeira, não é?
Ela sacudiu a cabeça, incapaz de falar e ele estendeu um dos bra‑
ços e a puxou cruelmente contra seu peito outra vez. Ela o empur‑
rou fracamente, impotente para resistir enquanto ele a dobrava
contra o ataúde.
— Você mentia ao me dizer que me amava?
— Não! Eu ainda te amo! Eu o amarei para sempre!
— Isto quer dizer então, de acordo com a praga que me ro‑
gou, que terá de morrer! — rugiu ele, apertando­‑a contra si. —
Ame­‑me, Angelique! Abrace­‑me! Beije­‑me, que eu lhe darei o
beijo da morte! Todos os poderes de sua bruxaria não a poderão
salvar agora!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ele prendeu­‑lhe os lábios com os dele e ela sentiu seu coração


pular para fora de sua boca ferida enquanto suas mãos poderosas se
lhe fechavam ao redor da garganta. A dor era escaldante, excrucian‑
te, até que sua respiração lentamente, misericordiosamente, acabou
por cessar e ela se achava finalmente nas águas negras, bem lá no
fundo da corrente insondável em que não havia ar ou luz e as trevas
redemoinhantes a envolveram para sempre. O último som que ela
escutou foi o seu uivo atormentado.
— O que você fez comigo, feiticeira? Eu preferia estar morto a
atravessar a eternidade do jeito que estou agora! Como essa coisa
em que me tornei!

* * *

O Espírito Negro esperava por ela.


— Você ainda me quer? — ela indagou.
— Mais do que nunca. Mais que qualquer outra coisa.
— Mas por quê? — ela perguntou, ainda confusa.
— Eu sou o vazio. Não sou nada sem uma presença — sem uma
mente que me possa imaginar. O que você vê agora é apenas seu
sonho da encarnação do mal.
— Mas você existe?
— Venha, Angelique.
Ele a conduziu cada vez mais profundamente através da escuri‑
dão, até um ponto em que havia um luzeiro do mais frio de todos
os fogos, e ali ele lhe removeu as roupas. Ele retirou a saia de tafetá
e o corpete bordado. Retirou as marombas que lhe conservavam
presos os cabelos e fez com que caíssem soltos por seus ombros nus.
Quando ela objetou, ele respondeu:
— Os caminhos do Submundo são os meus caminhos.
Ele retirou os brincos de suas orelhas e ela suspirou ao saber que os
perdia. Fazia tão pouco tempo que os conseguira. Ele arrancou o
uangá de seu pescoço e ela sentiu as lágrimas correndo ao perdê­‑lo. A
pedra­‑da­‑lua caiu no lodo do chão e ele a pisoteou com desdém. A

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Lara Parker

seguir, ele desamarrou os laços do espartilho que lhe delineava os


seios e abriu as pressões que lhe mantinham as anáguas no lugar. Ele
puxou­‑lhe a camisola sobre a cabeça. Por último retirou as pequenas
peças rendadas de sua roupa interior cuja delicadeza ela amara tanto,
ela começou de novo a protestar fracamente, mas ele lhe disse:
— Não me questione.
Então ela ficou em pé diante dele, nua e sagrada — como todas
as mulheres — a fonte da vida e do amor e por um momento,
resignou­‑se a ser possuída. Mas então ele lhe retirou a pele e os ca‑
belos e a seguir toda a carne dos ossos e ela se perdeu inteiramente
para ele, sua alma se misturando com a alma dele.

* * *

Barnabas fechou o diário e o deixou cair das mãos, mas ele ficou
apoiado sobre seus joelhos. Colocou a mão sobre a capa do livro e
acariciou o que restara do couro danificado com a ponta dos dedos.
A leitura da história de Angelique a trouxera de volta para ele tão
agudamente como se ela tivesse vivido novamente diante de seus
olhos e percebeu que seu coração estava leve e libertado de toda a
sua amargura. Ele soltou um longo suspiro, ergueu­‑se e caminhou
até a janela. Portanto, fora mesmo amor que a motivara o tempo
todo. Ela nunca abrira mão da esperança.
O que teria acontecido, imaginou, se ele tivesse ficado com ela
— antes que ela fosse destruída porque ele mesmo lhe partira o
coração, antes que sua loucura se iniciasse. Mas já fazia tanto, tanto
tempo! Se ao menos ele tivesse partido com ela, se a tivesse tratado
com carinho e a conservado junto de si, aliviando sua dor. Ela o
havia amaldiçoado por meio de sua pavorosa semidivindade, mas
ela lhe deixara a vida — a vida de um monstro —, mas a vida, não
obstante. E ela havia sacrificado sua própria vida por uma chance
remota de realizar a jornada com ele.
Ele sempre amaldiçoara sua existência vil e sobrevivera como uma
criatura em perene tormento, mas agora, imagine o que acontecera.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Hoje estava vivo e ileso novamente, preparado para começar tudo de


novo. Em 1971. Estava livre para viver como um homem normal e
tinha tantas coisas pela frente que poderia desfrutar outra vez. A luz
solar se irradiava ao longo do gramado e Barnabas percebeu que já
era de manhã. Ouviu uma batida à porta.
— Entre.
Júlia apareceu, já vestida inteiramente, animada e sorridente,
com sua atitude usual para com ele, hesitante mas sempre espe‑
rançosa. Ele ficou feliz em revê­‑la e foi até onde ela estava para
envolvê­‑la em um abraço.
— Barnabas, Roger pergunta se você pode ir encontrá­‑lo na sala
de visitas.
— Tudo bem. Diga­‑lhe que descerei imediatamente, assim que
me vestir e... talvez...
Ele apreciou o brilho de seus cabelos louro­‑avermelhados.
— Sim, Barnabas?
— Talvez possamos sair de carro daqui a pouco. Só nós dois.
Gostaria tanto de ficar algumas horas sozinho com você.
Seus olhos se iluminaram com uma felicidade inesperada e
ela sorriu:
— Seria lindo...

* * *

Quando Barnabas chegou à sala de visitas, Roger estava de pé, junto


à lareira, conversando com um visitante. Mostrava­‑se amável e cor‑
dial e irradiando uma energia incomum para esta hora da manhã,
pensou Barnabas.
— Entre, Barnabas — exclamou ele, no instante em que o viu. —
Meu caro rapaz, tenho novas extraordinárias para lhe transmitir.
— O que foi, Roger?
— Ora, estou absolutamente encantado. Recebemos uma oferta
pela Casa Velha! Bem, devo dizer, pela terra, naturalmente. Uma
pessoa que possui tanto a visão como os meios para realizar uma

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Lara Parker

restauração completa. Ah, claro, por favor, desculpe­‑me. Dê­‑me o


prazer de apresentá­‑lo a Miss Antoinette Harpignies.
A mulher alta e de cabelos claros que olhava pela janela voltou­‑se
lentamente enquanto Roger falava. Ela sorriu e caminhou pausada‑
mente em direção a Barnabas, estendendo­‑lhe a mão direita para
cumprimentá­‑lo.
— Mr. Collins — falou — é um prazer tão grande conhecê­‑lo...
Enquanto ela lhe apertava a mão, ele se espantou ao ver que con‑
templava um par de olhos mostrando o azul mais brilhante possível.

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Trinta e Dois

ecordando­‑se que havia prometido encontrar­‑se com Júlia essa


tarde, Barnabas ainda permanecia em pé junto à sua janela olhan‑
do para a larga extensão de gramado que se estendia até o mar. Cenas
perturbadoras de sua vida cintilavam em sua mente e todas pareciam
prenhes de remorsos. Consoante já fizera tantas vezes no passado, Bar‑
nabas conjurou novamente, em uma espécie de pânico desesperado, a
sua sedução irresponsável de Angelique, sua entrega e sua surpreen‑
dente tenacidade no amor; mas descobriu­‑se tentando modificar a his‑
tória, não dizer as palavras que proferira, mas alguma coisa diferente,
alguma observação que retorcesse aquele pesadelo, que lhe permitisse
traçar­‑lhe um novo caminho, de tal modo que tudo quanto transcor‑
rera de uma forma tão trágica pudesse ser reescrito. Como um acionis‑
ta impotente que vira seu dinheiro desaparecer em um investimento
apressado ou um ator que tivesse recusado um papel que deslancharia
sua carreira, Barnabas só queria uma oportunidade para recomeçar e
tentar reescrever o passado. Contudo, só havia uma forma de desenro‑
lar aquele filme e o mesmo roteiro se repetia.

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Lara Parker

O coração apaixonado é como um bússola, pensou ele, a agulha


sempre aponta para o norte verdadeiro. Quebrar­‑lhe o vidro não
muda sua orientação e, mesmo que seja arrancada do mostrador, a
agulha gira novamente e é atraída irresistivelmente para a mesma
Estrela do Norte que marcava a direção do polo. E era isso que sem‑
pre ocorria em seus devaneios; ele dançava através das décadas, ale‑
atoriamente pulando do passado para o presente e de volta a outro
tempo já passado. E como sempre, de cada vez que ele se permitia
essa contemplação vagabunda, ele acabava por reviver o momento
em que vira Josette pela primeira vez, suas roupas de seda farfa‑
lhante, seu sorriso cheio de alegria; e no mesmo instante, sua visão
era incontrolavelmente atraída pela visão derradeira, seu corpo
partido entre as rochas ao pé do penhasco e, ainda mais claramen‑
te, pela maré alta lambendo sua mão branca e imóvel.
Naturalmente, ele não podia ver essas rochas dali da janela, por‑
que o penhasco se erguia entre ele e a espuma das ondas e obscurecia­
‑lhe a vista, mas podia abranger todo o panorama que era a
majestosa propriedade Collinswood, além da qual o grande abismo
do mar parecia erguer­‑se em direção ao horizonte longínquo como
uma laje maciça de ardósia. O imenso abraço do mar o deixava le‑
vemente exaurido e perturbado por pensamentos em torno de sua
própria morte, a qual, pela primeira vez desde sua cura, percebia
como sendo algo de inevitável em seu futuro e sentia­‑se inquieto,
experimentando um temor pouco familiar. O tempo que lhe pare‑
cera ser um fardo tão pesado, se transformara em uma pirâmide de
areia escorrendo através das malhas de uma peneira. Ele olhou para
o espelho que se erguia acima do toucador ao lado de sua cama e
novamente foi atraído por seus reflexos ondulantes, sua própria
imagem que não pudera avistar durante tantos anos, como se pe‑
quenas ondas de mercúrio líquido corressem sobre seu reflexo in‑
termitente. Ele parecia estar mais velho e fechou os olhos,
prendendo o rosto entre as mãos, totalmente esvaziado do conten‑
tamento que sentira somente uma hora antes quando encontrara
aquela mulher na sala de visitas. Sua história não acabara, mas ele

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

não podia mudar­‑lhe a conclusão, por mais que tentasse reentrar no


sonho e tecê­‑lo com um novo viés. Por mais que resistisse, não con‑
seguia evitar a sensação de que retornara ao quarto em que morrera
e logo a seguir, ao momento em que renasci. Ele soltou um gemido
rouco que mais parecia um grunhido e sentou­‑se à beira da cama,
esfregando distraidamente suas faces, suspirando profundamente.
Então estendeu a mão para um pequeno cofre de madeira e inspe‑
cionou sua fechadura.
Fora o encontro com a nova proprietária da Casa Velha que for‑
çara o retorno de todas estas visões e enchera­‑lhe o cérebro justo no
momento em que a leitura final do diário de Angelique o havia es‑
vaziado. Pensamentos terríveis mordiam a parte mais oculta de seu
subconsciente por uma razão muito simples. Aquela mulher era tão
parecida com Angelique, que seus dentes se haviam cerrado e sua
garganta se fechara como se o nó do carrasco se apertasse a seu re‑
dor. Ela parecia, ou pretendia, não conhecê­‑lo e lhe falara como se
dirigisse a um estranho.
— Eu lhe trouxe uma coisa — dissera, seus olhos imensos mera‑
mente curiosos, enquanto uma ruga minúscula se franzia entre
suas sobrancelhas. — Eu não sei se isto é importante ou não, mas
achei esta caixa escondida embaixo do assoalho, sob o tapete de um
dos quartos dos fundos, um que não tinha sido queimado tão com‑
pletamente — explicou­‑lhe, enquanto lhe estendia um pequeno co‑
fre de madeira delicadamente trabalhada, danificado pela fumaça,
mas intacto. — Achei que deveria entregá­‑lo a vocês...
Roger falou:
— Eu lhe disse que não o reconhecia. Parece ser muito antigo.
Por acaso você já o viu antes, Barnabas?
Ele o reconheceu imediatamente, mas esforçou­‑se para disfar‑
çar, quando menos para desviar a tendência de Roger a querer
saber de todos os detalhes sobre qualquer coisa. Se houvesse ainda
qualquer coisa dentro do cofre, ele não a quereria compartilhar
com aquele bisbilhoteiro.
Em vez disso, falou:

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Lara Parker

— Não faço ideia. Deixe­‑me ver.


Quando tomou o cofre das mãos da mulher, seus dedos tocaram
de leve nos dela e uma centelha de repulsa o percorreu. Ele colocou
o objeto embaixo do braço, fingindo desinteresse e falou em um
tom de voz indiferente:
— Acho que sim. Minha mãe uma vez me mostrou esse relicá‑
rio. Parece que pertenceu à minha bisavó.
— Então, provavelmente você deve ficar com ele — admitiu
Roger. — Parece mesmo estar trancado. Só Deus sabe onde an‑
dará a chave...
Depois de alguns novos esforços para demonstrar civilidade,
Barnabas reconheceu que não poderia mais esconder seu descon‑
forto e pediu licença para se retirar. Agora, mais uma vez sozinho
em seu quarto, sentado à beira da cama, examinava a caixa, sua
superfície um tanto obscurecida pela fuligem, mas podia perceber
sob o tisne um marchetado complexo de peças de marfim e a figura
formada por minúsculos pedacinhos de parquete do que lhe pare‑
ceu ser um bergantim pirata, as velas enfunadas, como um mosaico
cujas tésseras eram feitas de muitos tipos diferentes de madeira. O
contraste entre pecinhas claras e escuras sugeria a espuma do mar,
remos brotando dos flancos da galera e a armação completa das
cordas e velames com a imagem de uma deusa pintada no bojo da
vela mestra. Embora não tivesse visto aquele cofre por quase duzen‑
tos anos, recordava­‑se perfeitamente dele.
Usando uma lixa de unhas de metal que encontrou em uma das
gavetas do toucador, forçou a fechadura, lascando de leve a madeira
frágil, mas afrouxando e fazendo soltar a lingueta, que descobriu
ser bastante curta e estreita. Ergueu­‑lhe a tampa. O cheio da poeira
dos sótãos, o odor de coisas guardadas havia muito tempo, subiu até
suas narinas juntamente com um leve aroma de pétalas de rosa res‑
sequidas que haviam sido espalhadas sobre o conteúdo, pétalas que
se desfizeram em cinzas no momento em que as tocou. Abaixo de‑
las, havia uma peça de renda, um trabalho tão delicado que, no
momento em que o puxou, mesmo de leve, esgarçou­‑se­‑lhe entre os

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

dedos. Sob o retalho de renda ele encontrou, enrolado em um teci‑


do mais resistente e contido por uma moldura oval, a pequena
silhueta negra de uma menina, executada no estilo que se popula‑
rizara antes da invenção do daguerreótipo, o primeiro tipo de foto‑
grafia, por meio do qual a imagem de uma criança podia ser
projetada contra um fundo branco em uma espécie de câmara es‑
cura e os contornos traçados em papel negro. A menina estava de
perfil, suas mãos cruzadas diante de seu corpo, o laço de seu aven‑
talzinho erguendo­‑se contra as costas acima de sua saia ampla.
Uma fita lhe prendia os cabelos. Sem suspeitar quem pudesse ser
essa criança, ele pôs a moldura de lado e olhou mais embaixo.
Um broche de ouro reluziu e se abriu facilmente para revelar a
miniatura pintada em esmalte de uma jovem que Barnabas reco‑
nheceu como sendo sua mãe recém­‑saída da adolescência. Havia
também um camafeu de sua mãe, angelicalmente gravado em mar‑
fim, suas feições encantadoras preservadas dentro de um contorno
finíssimo de tinta feita de pó de ouro. Diversas moedas deslizaram
para fora de um pacote de cartas com carimbos ingleses, a que esta‑
va mais em cima datada de 1795 e enviada de Falmouth para Nova
York. Ele sopesou os pence de cobre e soberanos de ouro ingleses
antes de colocá­‑los sobre a cama a fim de olhar mais no fundo. Fi‑
cou surpreso ao descobrir um desenho a bico de pena de seus pais,
executado quando já eram bastante velhos, capturados naquelas
poses artificiais requeridas para longas sessões, seus rostos austeros
como se estivessem a se concentrar em seus muitos desapontamen‑
tos. Estavam sentados lado a lado, porém sem se tocar, como se o
infortúnio lhes tivesse roubado toda a intimidade. Ao vê­‑los assim,
tão amargos e estatuescos, seus olhos se marejaram e ele ficou abis‑
mado. Já se haviam passado tantos anos desde que a emoção o fize‑
ra derramar lágrimas pela última vez.
Por baixo de outro pacote de cartas amarradas com uma fita
azul estava uma aquarela de sua mãe segurando uma criança que
usava uma bata, uma vestimenta de batismo tão comprida, que des‑
cia até o chão por cima de sua saia e ele percebeu que era um retrato

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Lara Parker

de sua infância. Ele encarou por um momento o rosto largo do me‑


nino, congelado em uma expressão de curiosidade. Procurou ainda
mais, baralhando convites de casamento e participações de nasci‑
mento manuscritos, a tinta de um castanho tão desbotado, que os
nomes já não eram legíveis. Havia outros broches, uma aliança de
ouro e uma cruz de diamantes ainda presa à sua correntinha, jun‑
tamente com outras miniaturas representando membros da famí‑
lia, alguns dos desenhos bastante grosseiros, outros muito bem
executados. Ao ver estes objetos, os tesouros de sua mãe, sentiu uma
pesada dor no coração, porque ele sabia quanto ela sofrera por sua
causa e, a despeito de tudo, jamais cessara de amá­‑lo.
Então, justamente no fundo do escrínio, ele encontrou um enve‑
lope amarelado e reconheceu sua própria letra. Os pais sempre
guardam as cartas dos filhos e ela conservara a sua. Com os dedos
trêmulos, ele levantou a carta e abriu o envelope, sabendo de ime‑
diato o que era. Ele a havia escrito em uma tentativa desesperada de
lhe explicar tudo o que lhe havia ocorrido. Quando seus pais ha‑
viam descoberto sua odiosa transformação, seu pai jamais pudera
compreender um destino tão grotesco e somente havia pensado em
como acobertar qualquer vergonha que pudesse recair sobre sua fa‑
mília. Mas sua mãe sempre estivera mais disposta a acreditar que
seu filho jamais pretendera executar atos tão malignos. Quão clara‑
mente ele se recordava de haver escrito as palavras que surgiam
meio embaciadas da página enquanto ele a começava a ler.

Minha muito querida mãe:


Eu sei que não existe qualquer forma de lhe oferecer consolação.
Você assistiu ao pior infortúnio que poderia ser imaginado recair so‑
bre seu filho e eu sei que seu coração deve estar partido. Mas você
também assistiu enquanto eu me prendia ao sonho de uma existência
ao lado de Josette e viu como eu tentei ser­‑lhe fiel. Lentamente, você
percebeu que Angelique fora minha atormentadora, mesmo quando
lhe ofereceu sua doce aceitação e a recebeu como membro da família.
Você nunca lhe assistiu às fúrias ou percebeu o veneno que ela trazia

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

em seu coração. Você acreditou que ela pranteava junto a meu leito de
morte durante minhas horas derradeiras no mundo dos vivos, mas
nunca suspeitou de que ela fosse uma verdadeira feiticeira e jamais foi
capaz de fazer ideia da agonia por que passei ao despertar nas garras
de sua maldição.
Inicialmente, eu pensei que, por algum tipo de milagre, ainda
estivesse vivo. A febre havia passado e eu havia sobrevivido. Acordei
na escuridão, de posse de todas as minhas faculdades, desorientado,
mas consciente e acreditei estar em um leito de hospital dentro de um
quarto com os postigos fechados e as cortinas corridas para evitar a
entrada de luz, preso para minha própria segurança. Sem dúvida, as
cortinas tinham sido cerradas porque a luz do sol algumas horas antes
me havia causado tanto sofrimento. Mas enquanto eu sentia a meu
redor as tábuas envernizadas de meu compartimento, minha exalta‑
ção inicial por retornar à vida se tornou em confusão e imediatamente
em pavor. As paredes pareciam recordar — não! — inconfundivel‑
mente — as de um ataúde! O medo me apertou o coração. Eu teria
então sido enterrado vivo?
Antes de começar a lutar para me libertar, uma espécie de bru‑
ma caiu sobre minha mente que me tornou insensato e uma réstia
de luz cortou a escuridão, juntamente com um bafo de ar frio. Eu
senti uma vibração e ouvi os rangidos do que me pareceu ser uma
porta sendo aberta para dar acesso ao mundo exterior. Involunta‑
riamente apertei os olhos — bem fechados — contra a luz que me
escaldara anteriormente e permaneci imóvel como a morte. Um
cheiro doce e familiar se derramou contra minhas narinas e mur‑
múrios cálidos tocaram­‑me os ouvidos, mas fingi estar adormecido,
paralisado por uma vaga apreensão.
Senti alguma coisa se alojar próxima a meu coração, uma ponta
aguçada ser apertada contra meu peito e outro corpo perto de mim que
se apoiava de forma a transferir seu peso. Incapaz de resistir por mais
tempo, abri os olhos e vi inclinada sobre mim, como se me quisesse con‑
fortar, uma visão embaçada: um vestido listrado de verde, cabelos
amarelos e olhos escuros cheios de lágrimas. Acho que a senhora já

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adivinhou quem era. Houve um farfalhar, senti como se a ponta de


uma lança estivesse perfurando meu colete e meu olhar se fixou no dela.
Seus olhos se arregalaram de medo, um gemido escapou­‑se­‑lhe dos lá‑
bios e, antes que eu pudesse evitá­‑lo, já me havia sentado velozmente e
a segurava pela garganta.
Existe o reino comedido da razão, mas tudo se perde dentro do
archote da raiva. Só um pouco depois alcancei uma leve claridade e
uma avaliação desamparada. Ela tinha nas mãos uma estaca e um
martelo de madeira. Eu havia sobrevivido a seus encantamentos dia‑
bólicos e ela retornara para me destruir. Eu até queria rir daquele
absurdo, mas não tinha ainda conhecimento para compreender que
teria sido muito melhor para mim deixá-la praticar aquele ato a viver
através da eternidade na forma da criatura em que me transformara.
Jamais deveria tê­‑la impedido e, pior ainda, fui um tolo ao matá­‑la;
ela lançara a praga sobre mim e somente ela poderia revertê­‑la. Em
um momento de temeridade, eu mesmo fechei sobre mim as grades de
ferro de meu fado. Mas que praga seria essa, a senhora deve estar
imaginando... Só espere um momento...
Ainda posso ver a expressão de seus olhos, seu rosto contorcido
por um pânico como nada que eu vira até então em qualquer ser
humano. Ela ficou branca como papel e tremia como se estivesse
olhando para um monstro, algo totalmente desumano. Ela trouxera
uma estaca e um martelo de madeira. Mas que tentativa desespera‑
da de se defender poderia ser esta? De onde ela tiraria a força para
me cravar aquela estaca?
Uma constatação raiou lentamente dentro de mim. Pude perceber
que alguma coisa se havia modificado. Anteriormente, tanto quanto
eu recordava o passado, ela sempre fora capaz de impedir­‑me de feri­
‑la apenas com o movimento de um dedo, no máximo com um aceno
de sua mão. Porque mamãe, você precisa me acreditar quando eu lhe
digo que ela era um demônio, realmente uma bruxa, cujos feitiços
sempre me enfraqueciam e deixavam enfurecido. Você sabia que eu
tentei matá­‑la quando ela ameaçou Sarah? Mesmo depois que eu a
alvejei, que lhe atravessei o peito com uma bala, ela continuou viva e

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

encontrou força para me danar com sua maldição. Ela buscara no


fundo de si mesma algum poder virulento e agora eu lhe direi o que
ela fez. Ela invocou um roedor do fundo do inferno, um morcego rai‑
voso, que bateu as asas até meu pescoço, prendeu­‑se à minha pele com
as garras de suas asas, perfurou­‑me a garganta com seus dentes mi‑
núsculos e sugou meu sangue diretamente da jugular. E ela me lançou
uma praga, mamãe, com uma magia tão antiga como as Harpias.
Todo seu ciúme venenoso foi derramado naquela maldição que me
condenaria a uma existência horrível até o fim dos tempos.
Até mesmo Ben me disse, depois de ouvir a notícia de meus lábios:
“Eu não pensei que alguém fosse jamais capaz de matar ela”.
Contudo, eu consegui sentir os ossos de seu pescoço racharem en‑
quanto a força infundia meus braços e muitas vezes refleti desde en‑
tão sobre a amarga ironia de que ela criara um monstro com maior
poder que o dela. Os ossos e cartilagens de seu pescoço se estilhaçaram
e seus olhos se arregalaram enquanto eu a dobrava sobre meu ataúde
e a beijava na boca, tirando dela meu primeiro gosto de sangue hu‑
mano, o sangue dela, escorrendo por minha língua e meus lábios e
descobrindo, para minha surpresa, minha terrível necessidade. Por
que foi nisso que ela me tornou, mamãe, e então ali estava ela, que‑
brada sobre as lajes do piso, seus olhos abertos e congelados naquela
expressão esgazeada da morte.
Angelique! Morta! Que coisa mais incrível, depois que eu lutara
contra ela por tanto tempo. Ela estava usando um vestido de listras
verdes e brancas e as listras pareciam se retorcer como serpentes ao
redor de seu arcabouço desconjuntado, mas ela estava perfeitamente
imóvel e seus olhos cegos me encaravam, seus cabelos amarelos espa‑
lhados ao redor de sua cabeça como um monte de folhas secas e eu me
movi ao redor do aposento, sentindo­‑me imensamente forte, fechan‑
do e abrindo os punhos. Eu conheço este lugar. As pedras do sarcófa‑
go fediam a mofo e as quatro paredes de pedra do aposento pareciam
impenetráveis; o teto formava uma abóbada, um arco elevado de que
pendiam pequenas estalactites como tentáculos de pedra, como se
lágrimas de calcário tivessem pingado através da cobertura durante

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séculos. E então eu percebi que estava dentro do compartimento secre‑


to do mausoléu dos Collins. O santuário mais sagrado de nossa famí‑
lia! Em um instante, eu descobri a pedra do segundo degrau que abria
a entrada secreta, deslizei­‑a para um lado e a porta se abriu com um
estalo do ferrolho.
Para minha surpresa, Ben estava esperando, o pobre Ben atolei‑
mado, tão ansioso para ajudar, tão limitado em sua mente e senti
grande alívio ao vê­‑lo. Ele se virou para me olhar e seu rosto ficou
acinzentado. A senhora há de recordar que Ben tinha a altura e a
força de um gigante, mas que seu coração também era gigantesco,
cheio de bondade até o mais fundo da alma. Mas, como a senhora
também sabe muito bem, ele era um servo sem instrução, totalmente
indefeso, o perfeito vassalo, incapaz de desobedecer às ordens de seu
amo. Então ele ergueu as mãos imensas, mostrando­‑me as palmas em
uma negação inerme.
— Mr. Barnabas é... é mesmo o senhor?
— Ela sabia?
— Sim, ela me disse que o senhor não estava morto de verdade.
Que se ergueria após o pôr do sol. Ela me fez trazer­‑lhe uma estaca e
eu a estava esperando.
— Bem, ela não conseguiu utilizá­‑la e agora temos de encontrar
um lugar para esconder o cadáver dela.
— Ela está morta?
— Sim, eu a estrangulei.
— Eu não pensei que alguém fosse jamais capaz de matar ela.
Ben recuou como se estivesse me vendo pela primeira vez, seu
queixo caído de incredulidade.
— Alguma coisa aconteceu com o senhor, Mr. Barnabas. O senhor
está mudado. Ficou diferente...
— Sim — concordei. — Fiquei diferente. — era tão difícil para
mim dizer isso quanto era para ele acreditar. — Eu não sou mais um
ser humano. — Ben se engasgou, um som de gargarejo saiu­‑lhe da
garganta e sacudiu a cabeça lentamente. Eu precisava de sua ajuda,
mas podia ver que ele poderia me trair por pura estupidez enquanto

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

tentava lhe explicar em termos simples alguma coisa que eu mesmo


não entendia direito. — Eu me tornei... como foi que ela descreveu?
Um dos mortos­‑vivos — disse­‑lhe. — Mas Ben, você precisa guardar
meu segredo. Se contar a qualquer viva alma, eu o matarei.
— Eu... eu não vou contar a ninguém, Mr. Barnabas.
— Está bem. Agora precisamos encontrar uma maneira de dispor
do cadáver de Angelique.
— Eu... eu levo até o mato e enterro ela lá.
Passadas se aproximavam, botas pisando no cascalho. Escutei o
rangido da abertura do portão exterior do mausoléu e o murmúrio
de pessoas falando em voz baixa. Era a senhora, mamãe, junto com
meu pai, cujo rosto quadrado emoldurado pelas suíças aparecia
além das folhas e volutas de ferro do portão. Sua boca reta e dura e
suas sobrancelhas igualmente retas mostravam austeridade e rigi‑
dez e seus olhos azuis e frios mostravam uma expressão avassalado‑
ra enquanto ele lhe dizia: “Vamos encontrar o indivíduo que fez isso
e fazer com que ele seja enforcado”.
A senhora, minha mãe elegante, com seus cabelos escuros e manei‑
ras patrícias, retrucou atrevidamente: “Mas tudo que lhe importa é
somente vingança e punição? Onde se encontram a pena e a tristeza
perante sua perda?” Eu percebi, naturalmente, que a senhora estava
falando a meu respeito. E então a senhora afirmou: “Você nunca
amou nosso filho”.
Eu me precipitei para a aldrava na mandíbula do leão e a puxei
para baixo. A porta da câmara interior deslizou para o lado, abriu­‑se
e eu me lancei para dentro. Fechou­‑se atrás de mim e Ben ficou sozi‑
nho para enfrentar Joshua Collins.
— Stokes! — rugiu meu pai. — Qual é o significado disto?
Ben gaguejou uma resposta.
— Eu... eu vim limpar depois do funeral, varrer as flores murchas...
— Bem, então dê o fora daqui. Eu vim apresentar meus respeitos
a meu filho morto e não tenho necessidade de sua companhia. Minha
doce mãe, sei que a senhora estava sofrendo um luto sem limites, mas
meu pai apenas sentia raiva. Revelar meu segredo desgraçaria a

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família para sempre. Vocês se aproximavam de meu santuário e eu


quase tropecei no corpo que jazia junto ao ataúde.
Angelique já estava fria e ficando rígida quando eu a ergui em
meus braços e a joguei dentro de meu próprio caixão. Não fiz a menor
tentativa de lhe fechar os olhos fixos, e todas as noites depois disso,
quando eu retornava um pouco antes da aurora, recordava­‑me dessa
vez em que ela ficara deitada dentro dele, a marca de seu corpo ainda
na seda mortuária.
Meu pai avançou para a porta secreta e Ben foi incapaz de impedi­
‑lo, mas quando se abriu, um grande morcego voou para fora aos
guinchos, passando rente à cabeça de Joshua e dando­‑lhe um susto.
“Mas que diabo! Que negócio é esse? Como um morcego conseguiu
entrar aí dentro?”
Ben fez uma tentativa hesitante:
— Mr. Collins. O senhor não deve entrar aí...
Meu pai parou junto à porta, percorrendo o aposento com o olhar.
— Não — concordou com um longo suspiro, voltando­‑se para a
senhora. — Não há nada para vermos aí dentro. Somente um ataúde
solitário em que nosso filho foi colocado para seu descanso eterno.
Ai, mamãe, se ao menos eu não tivesse saído, se não tivesse ido a
Collinswood na esperança de poder olhar Josette de relance, nem que
fosse de longe! Se ao menos eu não tivesse caminhado por entre as
árvores até ficar embaixo de sua janela, tentando esconder meu rosto
entre as folhas. Se ao menos minha querida irmãzinha não tivesse me
avistado da porta e gritado: “Barnabas, é você! Eu sei que é você!
Você voltou!” Então eu corri por entre as árvores, um fantasma hor‑
rendo, com minha capa flutuando atrás de mim, prendendo­‑se a ga‑
lhos e espinhos, dando saltos inumanos. Então talvez ela não me
tivesse seguido até o cemitério da família e para dentro do mausoléu,
uma criança adorando uma nova travessura, para se encolher de ter‑
ror diante de meu caixão, ao mesmo tempo em que eu, premido por
uma nova fome inominável me percebia pairando em uma rua escura
próxima às docas, onde as pedras do calçamento eram escorregadias
pela umidade trazida do mar pela brisa e o sino do farol tocava seu

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

aviso melancólico. Um jato de luz intermitente era projetado pela ja‑


nela alta de sua plataforma superior e iluminava as tábuas apodreci‑
das do cais e foi ali que encontrei minha primeira desafortunada que
ainda não encontrara clientes para seus encantos durante essa noite.
Suas costas estavam voltadas para a entrada da taverna Baleia Azul
e as notas do piano que se escutavam fracamente lá de dentro a ten‑
tavam a balançar levemente ao compasso da música. A luz intermi‑
tente que saía pela porta entreaberta destacava­‑lhe a silhueta,
mostrando um chapéu atrevido e uma saia no rigor da moda, sua
vaidade evidente até no meio das trevas.
Descobri que era capaz de me mover como um relâmpago e apareci
tão rapidamente a seu lado, que ela prendeu a respiração, mas com um
olhar de admiração ela me avaliou como sendo um homem rico, pelos
meus calções de linho fino e a bengala de castão de prata sugerindo a
vida privilegiada que a senhora e meu pai me haviam proporcionado.
— O que o traz aqui em uma noite tão bonita, Capitão? — disse­
‑me, com um sorriso atrevido. Eu recuei com a visão de seus dentes
estragados e a pele marcada pela varíola que nenhuma maquiagem
ou sinal falso poderia disfarçar, mas ela colocou uma das mãos em
meu braço. — Meia coroa, Capitão, por um pouco de companhia —
disse ela, sua expressão lânguida e suplicante. — Não se preocupe
com mais nada, eu alugo um quarto em cima da hospedaria.
Foi então que eu percebi pela segunda vez como havia mudado.
Sua boca pintada de um vermelho berrante e os cachos desbotados do
que devia ser uma peruca eram estranhamente atraentes. Ela não era
nada jovem, devia ter mais de cinquenta anos, contudo seus gestos
hesitantes de sedução me encantaram e sua melancólica indicação de
uma vida que se tornara ácida e triste me comoveram e fizeram esten‑
der os braços para ela. Ela hesitou, ainda querendo negociar primeiro
e eu respirei o cheiro azedo de um perfume rançoso tentando disfarçar
as axilas mal lavadas. Gentilmente, afastei as mãos que ela encostara
em meu peito em uma objeção hesitante e senti meus caninos se pro‑
jetarem violentamente de minhas gengivas. Mamãe, eu gostaria de
poder lhe descrever aquela sensação nada familiar, como se minha

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boca tivesse pelos por dentro e minha língua explorava as pontas agu‑
das de minhas presas com espanto. Dobrei­‑a enquanto lutava e fechei
os ouvidos a seus gritos frenéticos. Então meu tormento perante a coi‑
sa odiosa em que me tornara se dissolveu na delícia intensa de lhe
abrir as roupas à força, entrar nela e me fundir com ela, descobrindo
sua jugular ao lhe rasgar o pescoço, enchendo minha boca e minha
garganta com seu néctar surpreendentemente doce.
Ah, mamãe, tente não me desprezar por isto que lhe revelo!
Quase imediatamente, eu a deixei cair no chão, enojado pelo que
havia feito. Pensei em arrastá­‑la para a beira da água, onde a maré
baixa talvez a envolvesse e carregasse mar adentro, mas meramente
a deixei caída onde estava e desapareci no meio das trevas, contem‑
plando sua forma atirada ali, frouxa e torta como uma boneca,
meu segundo assassinato em dois dias. Ela me pareceu igual que
Angelique, pequena e imóvel.
Eu me apoiei na parede de um armazém vazio que dava frente
para o mar, senti o toque dos tijolos cobertos de musgo sujo pelo sal
que era trazido pela brisa marinha, aquela gordura acumulada du‑
rante anos sob a palma de minha mão, fraco, mas saciado, e deslizei
para o solo, sentado como em estupor, meus membros temporaria‑
mente paralisados, minha capa como uma lagoa negra sob minhas
coxas. Olhei lugubremente para o montinho disforme caído sobre as
tábuas da doca. A luz amarela do farol passou por cima dela, depois
a abandonou no escuro.
Eu era a taça e ela fora o vinho.
Eu me conservara vivo e agora sabia claramente que tipo de vida
levaria doravante.
Os primeiros albores da alva começaram a se arrastar pelo mar além
dos molhes e a linha borrada e cinzenta de uma tempestade em aproxi‑
mação revelou fracamente a linha do horizonte, lançando um novo
medo em minha mente. Eu sabia que teria de retornar para o mausoléu.
Tive a impressão de que voara até lá em um único instante e descobri
que Ben havia adormecido ao lado dos degraus de pedra e ficara ali a
noite inteira. Ele acordou, ainda envolvido em pesada letargia.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Mr. Barnabas, o senhor está ferido? Aconteceu alguma coisa?


— Comigo nada, mas aconteceu com alguma criatura desafortu‑
nada... ah, bem, logo vai raiar a aurora e esta é a realidade bizarra...
Fiz uma tentativa para me explicar a Ben como estou me expli‑
cando agora para consigo, mas sabia não ter alternativa senão retor‑
nar para meu caixão.
Porém Ben estava estupidificado e apenas me encarava com
perplexidade.
— Mas... mas o senhor tem sangue na boca... e na camisa...
— Você vai ouvir falar de um ataque que ocorreu na aldeia do
porto — expliquei, consciente da urgência e do aborrecimento em
minha voz. — Eles vão concluir, pelas marcas que encontrarem no
pescoço da pobre mulher, que ela foi atacada por algum animal selva‑
gem. Mas eu... sou eu o culpado.
— O senhor quer dizer que...
— Andei descobrindo, Ben, que adquiri poderes espantosos, mas fui
forçado a aprender mais uma coisa a respeito de minha nova existência.
— E o que é então?
Pensei que não poderia dizer isso, nem sequer ao pobre Ben, mas
as palavras se formaram em minha garganta e fiquei com a boca
cheia d’água.
— Não posso mais sobreviver sem tomar o sangue dos outros.
A resposta de Ben foi um som que parecia um miado fraco,
como o de um gatinho sendo estrangulado. Percebi que meu úni‑
co amigo nesta nova vida não passava de um camponês ignorante
e supersticioso.
— Quando vi Angelique com aquela estaca pousada sobre meu
coração — afirmei­‑lhe — deveria tê­‑la deixado acabar o que preten‑
dia fazer. Preferia agora estar morto a ter de atravessar a eternidade
do jeito que me tornei.
Passei pelo portão de ferro, atravessei meio estonteado pelo meio
dos caixões expostos que ainda guardavam os restos de nossos ante‑
passados e puxei o anel da aldrava em forma de cabeça de leão e já
estava a ponto de me arrastar para a câmara secreta, como uma fera

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ensanguentada se recolhe à sua caverna, mas assim que eu me enfiara


para dentro, escutei a repreensão infantil de minha irmãzinha:
— Barnabas, eu estive te esperando por tanto tempo!
Ela estava sentada em um canto imundo do mausoléu, seus joelhi‑
nhos erguidos para perto do peito, tremendo em sua camisola fina,
aquela cor­‑de­‑rosa com fitinhas e seus olhos brilhavam de travessura
quando ela inclinou a cabeça para um lado. Mamãe, ela era uma
criança tão doce e vivaz! Como deveria estar assustada ali, no meio
de tantos túmulos e quanto ela deveria ter me amado para vir me
procurar logo naquele lugar. Ela me olhou com expectativa e alegria
e, por sua expressão impaciente, percebi que ela estava certa de que eu
a tomaria nos braços e a levaria em segurança para casa.
O que a bruxa me dissera? “Todos os que o amarem terão de morrer!”
Virei o rosto para um lado, horrorizado porque ela me descobrira,
sabendo que meu queixo e minha gravata estavam manchados pelo
sangue de minha última vítima.
— Barnabas, eu sei que é você!
Mas então ela me viu mais claramente e sua voz se transformou
em um lamento agudo. Eu a contemplei, inerme, enquanto a expres‑
são de prazer em seu rosto desaparecia, seus olhos se alargavam e ela
erguia as mãozinhas sobre o rosto para esconder minha visão de seus
olhos assustados. Eu avancei, tentando tranquilizá­‑la, mas ela gritou
como só uma criança consegue gritar, um uivo agudo que nem pare‑
cia coisa deste mundo, que me rasgou o coração e reverberou nas pa‑
redes do mausoléu. Então ela se pôs em pé e, segurando a camisola,
correu em direção ao cemitério envolto nas volutas da bruma.
Porém, Ben logo a encontrou, encolhida na parte externa do
mausoléu, por trás da lápide de Jeremiah, um esconderijo tão ade‑
quado, realmente, porque, como a senhora deve recordar, eu recen‑
temente o matara em um duelo, esperando recuperar minha Josette.
E quando Ben a chamou pelo nome mais de uma vez, Sarah não
respondeu, tremendo e chorando baixinho à sombra do catafalco
de Jeremiah, aterrorizada e muda de horror, enquanto a chuva co‑
meçava a cair.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Quando ele finalmente a carregou para casa, já era tarde demais.


Ela foi ensopada pela tempestade, suas roupas finas grudadas em sua
pele e o choque a deixara muda. Ela não tinha nem força nem vonta‑
de para lutar contra a pneumonia que se instalou em seus pequenos
pulmões. Com a ajuda de Ben, eu dei um jeito de ir vê­‑la enquanto
vocês dormiam, para lhe mostrar meu rosto lavado de sangue e arre‑
pendido. Entrei em seu quarto de dormir silenciosamente e vi todos
aqueles brinquedos jogados pelo chão, uma casinha de bonecas com
minúsculos móveis cuidadosamente dispostos nos quartinhos, um ca‑
valo de pau com a crina emaranhada e uma dama elegante com o
rosto de porcelana virado para baixo, jogada sobre o tapete. Sarah,
sua filhinha amada, estava deitada sob uma colcha de seda e, quando
me aproximei, não pude evitar prender a respiração perante a perfei‑
ção daquela criança, sua pele imaculada como botões de macieira, as
madeixas escuras que cobriam parcialmente suas faces coradas e a
sua boquinha cujos lábios cheios estavam tão vermelhos,que pare‑
ciam ter sido mordidos por uma abelha. Segurei­‑lhe a mão e apertei
seus dedinhos um por um com os meus, refletindo sobre o milagre que
era a vida. Cada uma de suas unhas parecia uma minúscula concha
transparente. Mas ela se acordou delirante e seus olhos arregalados
giraram ao redor até se firmarem em meu rosto.
— Barnabas...
Eu a ergui do travesseiro, sentindo seus ossinhos frágeis e a puxei
para bem perto do coração, minha face contra sua testa fervente. Um
calor forte emanava dela.
— Sarah, eu não pretendia assustá­‑la. Eu te amo tanto...
— Eu te amo, Barnabas — disse ela, num sussurro. — Vou te
amar sempre...
Sua cabeça tombou para frente contra meu peito e ela deu o últi‑
mo suspiro em meus braços. Senti­‑me como se tivesse levado um golpe
em pleno peito: minha respiração parou, meu corpo pareceu encolher­
‑se e fiquei inteiramente dominado por uma convulsão soluçante. A
coisa mais triste é que nenhuma lágrima surgiu. Foi só então que eu
percebi totalmente a enormidade do que lhe tinha feito, causando­‑lhe

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duplamente uma dor que nenhuma mãe jamais deveria suportar.


Tudo quanto a senhora amava lhe fora tirado.
Retornei para o mausoléu em um estupor que me tirava todo o
raciocínio, após ajeitá­‑la de volta em sua caminha, como um cão que
tivesse comido carne podre, envergonhado, com um enjoo que me afe‑
tava a própria alma.
— Fui eu que a matei — repetia sem parar. — Se ao menos ela
não me tivesse visto como eu estava. Se ao menos eu não a tivesse as‑
sustado tanto.
— Não, Mr. Barnabas, não foi sua culpa, a menina foi arteira e a
tempestade é que a matou e mais a febre.
Como era natural em Ben ser gentil e bondoso, mesmo comigo,
mesmo depois de ver em que eu me havia tornado.
Quanto a mim, eu somente podia balbuciar incoerentemente.
— Todos quantos jamais ousaram se apaixonar em minha família
acabaram sofrendo miseravelmente. A pobre Sarinha, com sua tou‑
quinha amassada e a camisola... Em que tipo de criatura eu me tor‑
nei? Como posso fazer as coisas que faço? Uma criança entre os
túmulos, presa por dentro de um portão. Ela me seguiu e acabou por
descobrir o mais aterrorizante de todos os segredos...
Ben ficou parado ali, escutando sem falar, as bochechas frouxas,
seu corpo largo e alto meio encolhido, suas mãos pendendo dos lados,
incapaz de responder, impossibilitado de me acalmar ou consolar. En‑
tão apertou os olhos e lágrimas escorreram de suas pestanas curtas.
Ele começou a sacudir a cabeça.
Comecei a ficar com medo.
— Não se afaste de mim, Ben. Não sou responsável pelo que
aconteceu comigo.
Contudo, eu sabia não ser verdade. No fundo, a culpa fora toda minha.
— Ben, já está ficando tarde e eu tenho de escapar da luz...
A luz! Você me escuta, mamãe? Quão bem Angelique me conhe‑
cia, ao me rogar uma praga de que eu deveria viver eternamente de
noite. Mas viver!? Em que zombaria eu transformei essa palavra.
Porque eu estou morto e nada vive dentro de mim salvo o ódio.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Ben me contemplou, em sua expressão havia uma careta de pie‑


dade e de incompreensão. Mas de certo modo, eu entendia que so‑
mente ele me poderia salvar de mim mesmo.
— Ben, eu tomei uma decisão. Você deve fazer o que Angelique
começou. A estaca e o martelo ainda estão caídos ali, no piso do apo‑
sento em que se encontra meu ataúde. Se eu for até a aldeia e me en‑
tregar pelo assassinato daquela mulher infeliz ou se me expuser ao sol
e for destruído pela luz, trarei a desgraça e a vergonha sobre minha
família para sempre. Não, eu vou me deitar de novo naquele caixão e
é lá que eu permanecerei para sempre, se você me ajudar. — Porém,,
Ben sacudiu a cabeça.
— Por favor, Mr. Barnabas, não me peça para fazer o que eu
não posso.
— Mas a quem mais eu posso pedir? Se você me fizer esse benefí‑
cio, eu estarei em paz quando o sol nascer. A estaca que você cortou é
longa o bastante para perfurar o coração de um homem. Liberte­‑me,
Ben, livre­‑me de uma eternidade de vergonha.
— Mr. Barnabas, eu não posso. Não tenho vontade. Não tenho
força. O senhor sempre foi bom para mim. Eu nunca vou poder fazer
isso com o senhor.
— Você não pode acabar com meu tormento? Você quer me con‑
denar a vaguear para sempre? Você estaria me dando o maior dom da
amizade — o dom da paz!
— O senhor não pode simplesmente seguir como está?
Lutei para convencê­‑lo. Mais do que nunca, eu queria parar de matar.
— Você não entende? — exclamei. — Estas urgências crescem
dentro de mim e é fútil tentar combatê­‑las. São urgências desprezíveis
e pavorosas — são desejos animais, como os de um cachorro louco ou
— de uma hiena encarcerada e torturada. São os instintos mais infe‑
lizes e impiedosos. E sempre existe a possibilidade de que aqueles a
quem eu matar se tornem como eu, se ergam novamente, esfaimados
pela mesma doença. Todos nós vamos matar para viver e viver para
matar novamente, porque a força que impele minha existência infeliz
não pode ser impedida. É a mesma coisa que células cancerosas, que

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destroem seu hospedeiro pela ânsia de se replicarem e reproduzirem,


é a mesma coisa que a cabeça de uma cobra venenosa, que foi cortada
e ainda assim pode picar a mão do caçador e descarregar a peçonha
em seu sangue. Não é por nada que as histórias de vampiros sempre
inspiraram terror e repulsa, sendo odiados e desprezados como coisas
horríveis pela humanidade inteira. Olhe para mim! Eu sou um mons‑
tro! Tornei­‑me um predador sugando a vida de vítimas inermes, víti‑
mas de sua própria inocência. Portanto, Ben, demonstre­‑me este
último gesto de devoção. Diga­‑me que vai fazê­‑lo!
Ben suspirou e colocou sua mão imensa sobre os olhos.
— Tá bom, Mr. Barnabas. Eu faço sua vontade.
Mamãe, você não pode imaginar o alívio que senti. Meu corpo
parecia mais leve e eu soltei um profundo suspiro.
— Depois que eu tiver partido, lembre somente do que havia de
bom em mim. Recorde­‑se de mim como eu era antes.
Ben, o pobre camponês indefeso, dividido entre a lealdade e a obe‑
diência, chorava desesperadamente. Mas assim que me prometeu, eu
percebi que teria de lhe exigir mais outra promessa. E agora eu lhe
admito, mamãe, que este pedido foi ditado pelo mais extremo dos
egoísmos e foi este que me condenou.
— Só mais uma coisa, Ben.
Ele ergueu os olhos remelentos e me encarou.
— Antes de partir, eu preciso vê­‑la mais uma vez.
— Não quer dizer a Miss Josette?
— Sim. Eu posso dar adeus a qualquer outra coisa neste mundo,
justamente neste momento. Porém não a ela.
— Mas ela pensa que o senhor morreu!
— Eu quero ir vê­‑la em silêncio, na calada da noite, quando ela
estiver adormecida. Ela nem saberá que eu estive lá.
— Mas, e se ela se acordar?
— Ela não vai acordar. Eu vou querer acordá­‑la, vou desejar deses‑
peradamente... abraçá­‑la... levá­‑la comigo... — nem pude completar o
pensamento. — Mas eu a amo demais para fazer isso. Retornarei
antes da aurora e você deverá estar me esperando aqui para fazer o

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

que me prometeu. Adeus, meu amigo leal e verdadeiro. Não me falhe!


— disse eu, abraçando­‑o calorosamente.
Fui até o quarto de Josette em minha forma de morcego, pairando
diante de sua janela e a enxerguei dormindo no leito, iluminada pela
luz da lua, o dossel de crochê de sua cama de colunas projetando som‑
bras como teias de aranha sobre a colcha e através de seu rosto e seus
braços. Era como se ela dormisse em uma nuvem, no meio dos acolcho‑
ados de penas e dos lençóis macios. Estava usando uma camisola de
cetim azul que lhe delineava os ombros e seus cabelos escuros se espalha‑
vam sobre o travesseiro. Seus lábios estavam entreabertos e a fragrância
de sua respiração chegou até mim, com odor de hortelã. Atravessei a
janela e pousei no tapete, readquiri minha forma humana e me inclinei
sobre ela, trancando a respiração ao ver suas faces acetinadas, como as
pétalas de uma flor, seu rosto em forma de coração e os cílios escuros que
estremeciam como se ela estivesse vendo alguma coisa em seus sonhos.
Mas o que me atingiu mais profundamente, o que me causou a maior
dor, mais do que sua beleza, mais do que sua pureza, foi minha impo‑
tência perante sua alma leal e altruísta.
Movendo­‑me silenciosamente ao longo do tapete, retirei o anel de
ébano que usava em meu indicador, com a intenção de deixá­‑lo sobre
o tampo de seu toucador, entre suas joias e perfumes. Encarei o espe‑
lho, esperando ver minha figura invasora. Mas não havia qualquer
reflexo. O espelho mostrava somente o contraste de luar e sombras
através do quarto, sua forma adormecida e a lua espiando através das
vidraças ainda fechadas da janela que eu percebi haver cruzado sem
precisar abri-la.
Dei as costas ao espelho bem depressa e retornei à beira de seu
leito, o tempo inteiro gravando em meu cérebro a imagem que preten‑
dia levar comigo para a morte, seu corpo ressonando, envolto em gaze
de seda, seu colo desnudo subindo e descendo entre as pregas de chiffon
delicado, o azulado da lua no travesseiro afundado por seu rosto e
coberto por seus cabelos amarfanhados. Incapaz de me conter, ergui
gentilmente uma de suas madeixas e a enrolei ao redor do dedo de
que retirara o anel. Toquei as rendas de sua camisola, o tricô delicado

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Lara Parker

do acabamento de sua gola. Ergui­‑o por um momento, para espiar


um novo trecho de sua pele e ela gemeu e virou o rosto, como se esti‑
vesse se oferecendo para mim. Notei uma veia em seu pescoço, late‑
jando suavemente.
— Adeus, minha querida Josette — murmurei. Sua boca se abriu
levemente e seus dentinhos reluziram. Lembrei­‑me do seu abandono
em tantos beijos que me dera, da maneira encantadora como flertara
comigo, da forma como baixava os olhos timidamente. Seus seios su‑
biam e desciam enquanto ela dormia e fiquei maravilhado com seu
corpo vivo, quente e cheio de vitalidade e penei só de imaginar como
teria sido senti­‑lo apertado contra o meu. “Somente um beijo...”, pen‑
sei e inclinei­‑me para lhe tocar de leve os lábios com os meus. Uma
sensação de fome tão desesperada cresceu dentro de mim, de tal for‑
ma que eu quase perdi a consciência pela violência do desejo. “Como
posso lhe dar adeus? Mas tenho de dar! Preciso!” Erguendo­‑lhe a mão
branca tão gentilmente quanto podia, coloquei em seu dedo anular o
anel de ébano que tencionara depor sobre o tampo do toucador e um
voto silencioso de casamento escapou de meus lábios.
— Com esta aliança me desposo contigo, Josette...
Seus cílios se sacudiram e temeroso de que ela se acordasse, recuei,
voei até a janela, tomado de pânico e saí para a noite.
Erguendo­‑se de seu travesseiro, ela gritou:
— Barnabas? É você?
Apertando o acolchoado contra o peito, ela olhou ao redor, imagi‑
nando se realmente acontecera alguma coisa ou se fora um sonho,
ainda semiadormecida.
— Pensei ter ouvido sua voz...
Ela se ergueu rapidamente e colocou o chambre sobre os ombros,
então caminhou até a janela. Enquanto olhava para o gramado de
Collinswood, destacado pela luz do luar, imaginei se conseguira ver
minha forma ondulante voando até o meio das árvores. Mas ela ape‑
nas destrancou a janela e se inclinou no peitoril, contemplando a noi‑
te, apoiando somente a ponta dos dedos contra a madeira, seus olhos
castanhos marejados de lágrimas.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Barnabas, eu sei que foi você! Eu escutei sua voz... Você prome‑
teu que voltaria para me buscar e eu sabia que voltaria. Volte para
mim, querido...
Seus olhos percorreram o gramado e as árvores mais além.
— Ou você quer que eu vá até você?
Ajeitei­‑me em meu ataúde, amargo e resignado, mas até certo
ponto em paz, porque Ben já se livrara do outro cadáver que estivera
ali dentro. Pensava somente em Josette e me senti profundamente
confortado pelo pensamento de que não chegara a lhe causar mal.
Finalmente, ela estava livre de mim e era ainda bem jovem. Sua vida
se estendia à frente com a promessa de felicidade. Um grande peso
pareceu ter sido retirado de sobre meu peito e me senti como se estives‑
se flutuando no ar. Fechei os olhos para o mundo, imaginei seu rosto
pairando sobre mim e escutei sua voz suave chamando­‑me pelo nome.
Ah, mamãe, quais são as imagens que não consigo apagar? Seu
grito de espanto ao descobrir meu anel em seu dedo. Ben cavando­‑lhe
o túmulo de suicida, fora do mausoléu. Uma violenta discussão com
Natalie que a trancou no quarto. O som de vidros sendo quebrados.
Sua descoberta da passagem secreta que Joshua mandara construir
dentro da casa. Seus pés escorregando na beirada de Widow’s Hill.
Seu grito de pavor enquanto caía através da noite.
Não tive consciência de que Ben chegara a erguer o martelo para
cravar­‑me a estaca no coração, conforme prometera, mas que Josette
lhe sustara o braço.
Acordei como um suicida acorda após o fracasso de sua escolha
irrevogável pela morte; o alívio e a raiva combatiam em meu peito.
Como não poderia sentir uma vertigem de exaltação ao perceber que
a vida ainda fervia em meu sangue? Mas minha fúria contra Ben
parecia superar qualquer sensação de alegria pelo adiamento do ins‑
tante final e decidi então encontrá­‑lo e torná­‑lo minha próxima víti‑
ma. Seria a punição adequada por sua traição.
Ergui­‑me pesadamente de meu ataúde e, imediatamente, espas‑
mos tão fortes de fome tremeram como uma convulsão através de meu
corpo inteiro que julguei não ser capaz de permanecer em pé. Cambaleei

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Lara Parker

escada acima e soltei a trava da porta para entrar na parte exterior do


mausoléu; quando ela deslizou e se abriu, vi as chamas bruxuleantes
de círios que haviam queimado até os cabos, mas cujos morrões ainda
queimavam na cera derretida e soltavam mais fumaça do que a luz
esmaecida que flutuava levemente no ar parado.
O aposento estava quase totalmente tomado por sombras ondu‑
lantes e pensei que a morta retornara, mas era Josette quem estava
ali, parada junto ao pequeno ataúde branco de Sarah. Ela estava toda
vestida com as roupagens negras do luto e um longo pano de renda lhe
cobria os cabelos, como uma mantilha espanhola. Mas seu vestido
negro era pura perfeição, como eram todas as suas roupas, com baba‑
dos e pregas para complementar sua cintura esguia e seus ombros de‑
licados e ela pegara algumas das rosas brancas que haviam sido
depositadas sobre o ataúde de Sarah e as segurava entre as mãos, pró‑
ximas ao rosto, como se lhes saboreasse a fragrância. Sua face sob o
véu negro era tão pálida quanto as flores, mas seus olhos estavam
brilhantes e reluzentes de pranto.
— Barnabas... meu amor...
As rosas caíram de suas mãos quando ela se moveu em direção a mim.
— Não! — gritei enquanto recuava. — Você não pode chegar
perto de mim!
— Mas... mas por quê? Eu despertei de um profundo sono e pensei
ter escutado sua voz. Alguma coisa me atraiu até aqui, onde eu o vi
pela última vez, quando você...
Ela se interrompeu antes de declarar o óbvio.
— Mas você está vivo! Você voltou para mim!
— Eu não voltei para você. Eu não a convoquei.
— Mas você me chamou! Você esteve em meu quarto. Você me
deixou isto...
Ela ergueu a mão para me mostrar a aliança de ébano e estendeu o
braço para tocar­‑me o rosto. A ponta de seus dedos queimou­‑me a pele.
— Por favor, Josette, você precisa ficar longe de mim. Você tem de
sair deste lugar, precisa ir embora de Collinswood. Para seu próprio
bem, tem de ir para longe, para o mais longe que puder.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Mas por quê? Quando nosso amor nos reuniu novamente...


— Eu lhe suplico, se é que você me ama, esqueça que me viu nova‑
mente. Lembre­‑se disto tudo como um sonho terrível, não mais que
um pesadelo.
— Mas não é um sonho — respondeu­‑me, sua vida brotando de
dentro dela, cheia de ansiedade juvenil, seu rosto uma mescla relu‑
zente de felicidade e descrença.
Desesperadamente, busquei uma explicação que a pudesse satis‑
fazer, sem precisar lhe contar inteiramente a horrível verdade. Final‑
mente, eu lhe disse, incapaz de encontrar outra assertiva:
— Aqui há forças agindo além do nosso controle.
Ela sorriu. Seu sorriso era o de uma comunhão secreta.
— Sim, eu sei. E sei muito bem que forças são essas.
— Você sabe?
Ela se moveu para bem perto, olhou­‑me no rosto, sua boca erguida
para a minha.
— São o meu amor por você e o seu amor por mim.
Novamente eu a empurrei e me forcei a interpor o ataúde de Sarah
entre nós dois.
— Você não pode chegar perto de mim. Vá embora e me esqueça.
O que você não entende é que este é o começo de uma nova vida para
mim, uma vida que você não pode compartilhar e nem ao menos
compreender.
Ela franziu a testa e ergueu a mão direita até a garganta. Seus
traços se turvaram e eu soube que a havia magoado.
— Não! — exclamou. — Eu não o posso esquecer! — sua voz es‑
tava marcada por petulância e exasperação.
— Josette, por favor, vá embora antes que seja tarde demais.
— Não! E não existe nada que você possa fazer ou dizer para me
forçar, Barnabas. Agora que este milagre aconteceu, eu jamais o dei‑
xarei de novo.
Ah, como eu queria acreditar nela com todo o meu ser!
— Não percebe como eu estou diferente? — falei.
Seus olhos se estreitaram enquanto ela me esquadrinhava.

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Lara Parker

— Sim, alguma coisa aconteceu com você. Há uma mudança...


A renda negra do véu caiu­‑lhe sobre os olhos e ela parecia quase
asquerosa com aquelas marcas negras das sombras a lhe marcarem as
faces. Eu tive a premonição de como pareceria dentro de sua mortalha
e minha garganta se apertava quando falei.
— Você não recorda quando eu jazia moribundo em meu quarto?
Não se lembra de quando eu jazia morto dentro de meu ataúde?
— Sim, sim, é claro que recordo, mas você me prometeu que volta‑
ria e eu nunca acreditei que estivesse realmente morto. Agora que está
aqui, isso é tudo que me importa.
Uma ideia começou a florescer no fundo de meu inconsciente e eu
lhe juro, mamãe, que eu a esmaguei e descartei mentalmente. Mas ela
rebrotou e surgiu de novo e de novo e, enquanto persistia, pura ânsia
e convicção, eu acabei por lhe dar uma consideração vergonhosa. E a
rejeitei mais uma vez. Não! Seria errado roubar­‑lhe sua vida para
trazê­‑la para dentro do que eu agora chamava de vida. Eu sabia qual
era a única escolha que me restava, se é que eu a amava. Tinha de
libertá­‑la de mim, de uma forma ou de outra. Creia­‑me, mamãe, eu
pretendia com todo o meu ser apenas convencê­‑la a partir.
— Josette, escute­‑me. A maioria dos homens trocaria suas almas
e todas as suas posses materiais para fazer o que eu fiz. Para retornar
do túmulo, como você diz. Para viver outra vez. Mas não foi escolha
minha. Foi o resultado de uma maldição! E é essa maldição que torna
impossível para nós dois jamais nos reunirmos outra vez.
Os morrões dos círios cuspiram fagulhas ao redor mais uma vez e
longas sombras pintaram as paredes do mausoléu, como se os espíri‑
tos dos mortos se ajuntassem pelos cantos. Josette parecia outro espec‑
tro, movendo­‑se em suas vestes negras. Ela parecia entender e até
mesmo sentir o que estava por trás de meu raciocínio, porque ergueu­
‑me novamente os olhos, seu rosto muito branco sob a mantilha de
renda negra, mas sua voz calma e segura de si.
— Nosso amor é grande o bastante para superar qualquer maldição.
O que significam essas superstições tolas em comparação com nosso
amor? Porque eu sei que você retornou por outro motivo. Você tinha de

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

retornar, Barnabas, porque não conseguia permanecer longe de mim —


insistiu. — Nossos destinos são um só e eu morrerei antes de abandoná­
‑lo. Não percebe como está além de nossos poderes resistir a isso?
Eu podia sentir minha resolução fraquejando, cedendo à sua convic‑
ção que me parecia quase enfeitiçadora. Ela não parecia ingênua, mas
profundamente cônscia de tudo o que estava proferindo e do que isso po‑
deria significar em sua vida. Imaginei nós dois morando em algum país
estrangeiro, vivendo em segredo, porém reunidos. Bastava que eu a tor‑
nasse minha. Tal como se ela estivesse a me ler os pensamentos, disse­‑me:
— Onde quer que você vá, leve­‑me consigo. Nada pode se interpor
entre nós. Eu só quero permanecer com você. Eu não dou a mínima
para maldições ou essas outras coisas que não compreendo. Esse novo
tipo de vida que você está encetando? Começaremos essa vida juntos,
será a nossa vida. Você é minha vida e eu sou a sua!
Ela me abraçou e, desta vez, não consegui empurrá­‑la. Ela se der‑
reteu em meus braços, seu corpo fremente contra o meu, sua fragrân‑
cia me enchendo a respiração. Era como uma criança apertada contra
o colo de sua mãe e eu não tinha mais coragem nem vontade de
afastá­‑la de mim. Ela estremeceu, seu corpo inteiro vibrando de dese‑
jo e eu tentei tomá­‑la com gentileza, sem que ela sentisse a dor da
ferroada de minhas presas, docemente, para que não tivesse medo.
— Abrace­‑me — ela sussurrou — e nada me poderá fazer mal...
Senti o gosto dela e a puxei para mim como uma árvore abraça a
terra com suas raízes e ela deixou sair um longo suspiro que era mais
um soluço.
— Agora não tenho nada mais a temer. Finalmente me sinto segura.
Ainda posso ver o galpão empoeirado em que Ben trabalhava. Ha‑
via tábuas grosseiramente feitas a machado e facão, serras primitivas
e outras ferramentas, barris de madeira, cordas, redes de pesca. Dois
caixões de madeira jaziam lado a lado sobre a serragem e o cheiro
sadio de madeira recém­‑cortada enchia o ar. Ben parecia sombrio e
obstinado, lixando a madeira com movimentos ferozes e chutando as
lascas para os lados. Ele pregava cada prego com mais violência do
que necessário, sacudindo o galpão inteiro com a força de seus golpes.

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Lara Parker

Mas primeiro eu o tivera de convencer.


— Para que o senhor precisa de dois?
— Estou indo embora de Collinswood esta noite, mas não vou
partir sozinho. Um deles se destina a Josette. Eu vou levá­‑la comigo.
Ben, carpinteiro, zelador, servo durante toda a vida, escravo revol‑
tado da morte, me encarou com desprezo, porque já havia adivinha‑
do meus planos. Mesmo agora, a lembrança da recriminação naquele
olhar me causa dó. Ben era instintivamente bom. Sempre resistia ao
mal e sempre tentava proteger aqueles a quem amava. Ah, minha
doce mãe, se ao menos eu tivesse tido sua natureza imaculada!
— Ela não sabe o que espera por ela. Mas como o senhor pode
ser assim tão mau? Se ama ela como diz, não vai fazer isso com
a pobrezinha...
A verdade do que ele dizia atingiu uma consciência como uma
ferroada.
— Foi ela que veio me pedir! Insistiu comigo até me rasgar o co‑
ração e acabou me dominando com suas súplicas. Será que você não
entende? É isso que ela quer. Depois que morrer, ela retornará. Vamos
navegar mar adentro, para outra terra, quem sabe a Inglaterra, para
iniciar lá uma nova vida. Os caixões têm de estar prontos.
— Mr. Barnabas, eu não vou fazer um caixão para ela. Não pode
me obrigar.
Eu estava começando a ficar exasperado.
— Mas você não percebe, Ben, que ela tornará esta vida suportá‑
vel, até mesmo feliz?
Ben atirou o serrote no chão e tirou as luvas de couro. Ele se incli‑
nou para pegar seu casaco surrado.
— Não, Mr. Barnabas, nisto eu não ajudo. Miss Josette é boa. Ela
não merece. O senhor não pode fazer isso.
— Mas acontece que eu já fiz! Não pude resistir. Eu já a transfor‑
mei naquilo mesmo que eu sou agora.
Ele se voltou para mim, seu rosto tomado de horror.
— Tu me prometeu que não ia chegar nem perto dela! Pensei que
tu amava ela!

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

Mamãe, este deve ter sido o ponto mais abjeto de minha vida,
quando me voltei contra meu único amigo. Mas eu estava desesperado
para realizar meu plano. Tinha perdido qualquer vestígio de razão. Fu‑
rioso além de qualquer controle, agarrei Ben pela garganta com ambas
as mãos e o levantei, mesmo sendo tão pesado e mais alto do que eu.
— Ben — rugi —, eu posso matá­‑lo facilmente. Você quer morrer?
Ele lutou inutilmente para se libertar, a ponta de seus pés mal
tocava o chão. Sufocado, ansioso para respirar, ele sacudiu a cabeça
em negativa.
— Então apronte a carruagem. Acabe os caixões a tempo e os leve
para o navio que está no porto!
Descobri que podia vigiar minha amada com os olhos da mente e
a leitura de seus pensamentos me acalmou. Mamãe, escute­‑me e lhe
descreverei o que vi.
Josette não estava nem assustada nem arrependida, mas afundara
em um sonho. A lua se erguia diante de sua janela e lançava raios bri‑
lhantes como o dia ao longo do assoalho. Ela estava deitada sob seus
acolchoados, olhando para o espaço, arrebatadamente, capturada por
um aturdimento feliz. Ela tocou as pequenas feridas que lhe marcavam
o pescoço e suspirou enquanto uma onda de prazer percorria todo o seu
ser. Lânguida de felicidade, ela se espreguiçou e bocejou, depois se er‑
gueu e foi até a janela. O luar era uma força magnética, puxando seus
pensamentos e ela falou como em transe:
— Meu querido, sinto a proteção de um poder maior que o pró‑
prio amor. Fui até o mausoléu. Lembranças tão trágicas. Quem me
poderia ter forçado a ir até lá?
Mas então minha visão foi alterada por sua confusão. De algum
modo, ela perdera o anel de ébano que eu enfiara em seu dedo anular.
— O anel! Ele vai esperar que eu esteja com ele!
Procurando freneticamente, ela derrubou uma lâmpada de cabe‑
ceira. O som do vidro se quebrando foi acompanhado por um riso
distante, oco e sem alegria. Ela retornou para o conforto do luar, mas
o orbe inconstante se escondera por trás das nuvens. Uma tempestade
se aproximava. Trovoadas. Fios de bruma velejaram sobre a lua e

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apagaram­‑lhe a luz. Respiração. Uma porta se trancou com um es‑


trondo. Natalie está presa do lado de fora.
Bater de asas. A caixinha de música começou a tocar sua melodia
arranhada como o som de guizos. Josette ergueu o delicado cilindro
dentro do cofrinho e olhou para a bailarina que rodeava infindavel‑
mente por dentro do vidro. Ela se sentiu como a própria dançarina,
sonâmbula inconsciente, capturada por um pesadelo. E então, ocor‑
reu o inconcebível.
Um cochicho, uma voz disfarçada como sendo a minha, embora
soasse estranha e metálica, a chamou:
— Está pronta para partir, Josette?
— Sim, meu querido — respondeu, olhando em volta, em confu‑
são aparvalhada. — Mas onde você está? Por que não posso vê­‑lo?
— Eu encontrei o anel.
— Ai, estou cheia de remorso.
— Isso não importa. Vou esperá­‑la em Widow’s Hill. Doce e gentil
Josette. Atravesse o painel secreto. Venha para mim.
Ela encontrou o fecho, e a parede se abriu lentamente. Josette desa‑
pareceu pelo corredor escuro e Angelique gargalhou em uma casquina‑
da maligna. Então ela se fez visível! Seu rosto surgiu no quarto como a
lua libertada do céu escuro, branco, fantasmagórico, contorcido de lá‑
grimas. A cama de colunas se contorceu como se estivesse viva, o dossel
se enroscou e ficou todo torto. Até o relógio parou de bater.
Finalmente, eu estava de volta no galpão, sacudindo da mente
aquela visão absurda. Angelique estava morta e enterrada. Eu não
tinha mais nada a recear dela.
Os dois ataúdes estavam acabados e lixados e haviam sido coloca‑
dos juntos dentro da carruagem. Os cavalos pateavam impacientes e
mordiam os freios, inquietos, nervosos com os trovões, seus cascos es‑
talando contra as pedras do calçamento, fazendo a carruagem balan‑
çar. Relâmpagos reluziam a distância e o vento assobiava. Onde ela
poderia estar? Por que ainda não viera?
— Barnabas, está me escutando?
Era uma voz que eu conseguia reconhecer, mas não era a voz dela.

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

— Venha até onde eu estou.


Quem estava me chamando? Era somente uma aberração do ven‑
to, que espiralava pela aleia até o mar? Agora a voz falou de novo e era
o timbre da voz de Josette, embora a inflexão fosse diferente.
— Estou esperando por você em Widow’s Hill.
— Por quê? Por que você foi até lá?
Mas esta não era a voz dela! A verdade me atingiu de repente.
— Não! Josette! Não deixe que ela a engane!
Eu não pensei que alguém fosse jamais capaz de matá­‑la.
Josette, sua camisola coberta por uma longa capa de veludo da cor
da meia­‑noite, mas com o capuz debruado em cetim cor­‑de­‑rosa, cami‑
nhava incoerentemente até a beira do penhasco. Os trovões rugiam no
céu rajado de luar e o vento rasgava as copas das árvores, seus braços
ainda esqueléticos lançando súplicas ao céu com suas garras. A bruma
subia do mar, redemoinhava ao redor de seus pés e ela parou para escu‑
tar o som distante das ondas a esbater­‑se contra as rochas. Olhou para
baixo e estremeceu. Pensou que muitos poderiam ter morrido aqui. E
mais uma vez escutou a gargalhada triste e desesperançada.
— Quem é você?
— Não se preocupe, Josette. Seu precioso Barnabas em breve
estará aqui.
— Angelique? Mas o que você está fazendo aqui?
— Sempre fui sua serva leal e dedicada, mademoiselle. Vim so‑
mente para preveni­‑la. Para lhe mostrar o destino que a aguarda.
Você não pode partir com ele, Josette. Ele é o mal encarnado. Não
sabe que ele pretende matá­‑la?
Ela percorreu as árvores com o olhar, em busca de um rosto que
acompanhasse a voz desencarnada.
— Não! Ele me ama!
— Se ele a amasse, ter­‑lhe­‑ia contado que planeja transformá­‑la
naquilo em que ele se tornou. Primeiro, ele pretende assassiná­‑la —
por meio de uma morte tão brutal quanto vergonhosa. E depois que
você tiver sangrado até morrer, ele a trará de volta à vida. Mas você
não será mais a jovem graciosa que é agora. Será um animal grotesco

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e sedento de sangue. Olhe. Olhe para o penhasco. Olhe para seu futu‑
ro. Veja como será transformada. Veja como você será depois que se
tiver tornado sua noiva.
Josette, hipnotizada pela voz, obedeceu e caminhou até mais perto
da beirada do penhasco. Inicialmente, só avistou o mar se estendendo
até a fímbria do horizonte, distante, uma mistura de roxo e de verde,
com a espuma branca rodeando e caindo por entre as lâminas retor‑
cidas das rochas a seus pés. Então, ao encarar diretamente o abismo,
percebeu a visão que Angelique conjurara para lhe mostrar, uma ima‑
gem que flutuava no nevoeiro, que troçava dela, mesmo em sua con‑
fusão apalermada, porém que conseguiu despertar­‑lhe a vaidade.
Mamãe, eu lhe pergunto agora, em sua condição de mulher, sem dú‑
vida a senhora entenderá, como ela não poderia ter sido iludida por esta
aparição demoníaca? Como uma donzela dotada de tanta beleza pode‑
ria não ser vaidosa? Ela me amava, sem dúvida, mas também amava
seus cabelos castanhos, sua pele de alabastro, seu olhar luminoso. O espe‑
lho sempre lhe devolvera uma imagem viva de total perfeição. Muitas
vezes, ao imaginar que me beijava, ela beijara seu próprio reflexo na lâ‑
mina de cristal do espelho e recuava, maravilhada com a forma que as‑
sumia o amor em seus próprios olhos sombreados pelos cílios longos.
E agora, quando ela contemplava o abismo, que tipo de abomina‑
ção ela viu flutuando sobre ele? Uma prostituta velha e desgastada
vestida de farrapos. As garras do vento erguiam a barra de uma saia
andrajosa, a musselina em trapos flutuava a seu redor. Seus cabelos
brilhantes se haviam transformado em um novelo emaranhado, sua
pele imaculada perdera todo o brilho e seus malares altos e elegantes
se haviam transmutado em fundos emaciados que lhe destacavam os
planos da caveira. Seus olhos ternos estavam afundados e injetados de
sangue, com círculos escarlates ao redor. O sangue pingava­‑lhe dos
lábios e, mais horrível do que tudo o mais, um par de caninos pontia‑
gudos como adagas brilhava de dentro de uma boca cavernosa.
— Não, afaste isso de mim!
Ela cobriu os olhos e estremeceu. Jamais havia sonhado que um
dia pudesse ficar feia. O que ela possuía, senão sua beleza? Sua pai‑

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xão arrebatada surgia de seu dom de coxas de marfim, de seus qua‑


dris elegantes, de sua boca cheia e ansiosa. Era a completa expressão
de seu amor. De fato, eu mesmo me esquecera de quão jovem ela ain‑
da era, mal saída da adolescência, fervente do desejo de se submeter
fisicamente, ansiosa para entregar a seu amante toda a sua perfeição
feminina, como um frasco de vinho raro.
No momento em que cheguei até ela, já a encontrei a menos de um
metro da beirada do abismo, tremendo ao vento e olhando para o céu
noturno em que a lua surgira mais uma vez e algumas estrelas apos‑
tavam carreira contra os rodopios das nuvens. Eu sabia perfeitamente
que aquilo que ela via retratado nas brumas não estava ali, não era
mais do que uma visão assustadora que Angelique conjurara, alguma
coisa que não era real, mas mesmo assim tão aterrorizante que lhe
roubara toda a sua coragem.
— Josette!
Apavorada, ela se virou para mim, seus olhos escuros sem me ver,
sua boca frouxamente aberta. Sua voz saiu rouca e trêmula de medo.
— Não chegue perto de mim. Agora eu sei o que você é e não que‑
ro ser a mesma coisa em que você se tornou — não quero, não quero
virar isso! Prefiro morrer a deixar que faça comigo o que pretende!
Freneticamente lutei para dizer as palavras certas, mas ela apenas
sacudia a cabeça, seus olhos como duas poças negras.
— Fique longe de mim!
— Deixe­‑me puxá­‑la de volta, minha querida — não tenha
medo! Este pesadelo é falso, não somos nós mesmos. Não vai ser as‑
sim, outro sonho nos aguarda...
Pulei em sua direção como um animal que dá o bote contra a
presa e consegui segurá­‑la um instante antes que tombasse no abis‑
mo e com um gemido de alívio, apertei­‑a contra mim. Mas ela solu‑
çava e suplicava:
— Não! Não! Solte­‑me!
E enquanto eu tentava conter­‑lhe o corpo que se debatia, as mãos
que me arranhavam como garras, em meu desespero, somente conse‑
gui pensar em uma forma de impedi­‑la.

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E por um momento eu a possuí. Minhas presas acharam a artéria


que levava a seu coração e seu sangue fluiu para dentro de mim. Mas
mesmo então, quando ela se congelou por um momento, não se entre‑
gou. Uma nova vaga de nojo pareceu dominá­‑la e de novo começou a
bater­‑me com os punhos, conseguiu me empurrar e recuou contra a
beirada final do abismo, em que balançou por um instante infinito,
seu rosto contorcido em um ódio absoluto por mim. Hesitei, chocado
por aquela expressão, não me aproximei como devia ter feito e ela deu
outro passo para trás, sacudindo a cabeça em negativa a minhas sú‑
plicas desesperadas e então um de seus pés calçados em chinelinhos
deslocou uma pedra frouxa e eu não consegui estender os braços com
a rapidez suficiente quando a vi respirar uma última vez e então ela
se virou e pulou de frente pela face lisa do penhasco.
— Josette! — gritei, lançando­‑me na beira do abismo e olhando
para baixo, meu coração um tambor que não parava de rufar. E lá
estava seu corpo quebrado contra as rochas, a espuma girando ao re‑
dor de sua capa negra, puxando­‑lhe os cabelos e fazendo­‑os girar ao
movimento da maré. Ainda estava viva quando saltei lá embaixo,
mas nem me reconheceu mais. As vagas se rebentavam contra os ro‑
chedos, o vento rugia sob o céu listrado de nuvens e luar e por trás de
todo o tumulto, eu pensei escutar a risada maligna de Angelique como
vomitada pelo turbilhão da ventania.
Você jamais será capaz de amar alguém. Porque quem doravan‑
te sentir amor por você — morrerá!
Enquanto o mar se encapelava ao redor de nós, eu me ajoelhei e pe‑
guei o corpo esfacelado de Josette, prendendo­‑a entre meus braços, solu‑
çando pesadamente, mas com as lágrimas presas, gritando sem parar:
— Não! Eu não vou desistir de você! Eu vou conservá­‑la comigo!
Encontrarei uma forma! Não posso viver sem você!
Mas o tempo todo eu já sabia que ela me abandonara para sempre
— que morrera me odiando — que decidira morrer para não ficar co‑
migo. Ela partira definitivamente de minha existência e eu teria de en‑
frentar a eternidade sem ela. Segurei­‑lhe o corpo alquebrado enquanto
a vida fluía para fora dele e beijei­‑lhe a pele úmida dos borrifos salgados

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Sombras da Noite: a Vingança de Angelique

da arrebentação e tentei parar de respirar e me sufocar em sua cabeleira


que agora parecia um maço de algas marinhas enroscadas. Uma de suas
mãos brancas escapou de meu abraço e mergulhou no meio da espuma.
Rosas negras em seus cabelos. Odor de rosas espesso com a podri‑
dão das hastes esmagadas. Rosas carmesim transformadas em ébano.
Pelo menos, ela morrera. Fora libertada do inferno de todos os seus
medos. Tantas vezes a morte é menos terrível do que a vida... Assisti
quando Ben cavou­‑lhe o túmulo no cemitério que cercava o mausoléu
e me senti ainda mais atormentado ao observar com os olhos da men‑
te quando a puseram no ataúde que Ben já preparara de antemão,
usando seu belo vestido de casamento, e depois a depuseram na terra.
Desesperadamente tranquilizei a mim mesmo que, se tivesse algum
poder, era o da maldição dos vampiros. Eu lhe bebera o sangue.
Depois que todos os outros tinham partido, inclusive a senhora e meu
pai e o sol já se pusera, eu fui até sua tumba, deitei­‑me ao lado do mon‑
tículo de terra fresca e cravei os dedos dentro dela. Os lírios que haviam
depositado sobre o túmulo me deixaram enjoado com seu odor adocica‑
do e eu tracei as letras de seu nome na lápide com a ponta do dedo indi‑
cador e a chamei pelo nome. As árvores plantadas ao redor do mausoléu
estalavam no vento e ergui os olhos para os ramos agitados contra a pa‑
lidez do céu, como os braços de suplicantes em preces angustiadas.
— Josette, eu sei que você pode me escutar. Venha para mim.
Sua voz era um murmúrio no vento.
— Não, eu estou morta. Deixe­‑me descansar.
— Eu lhe suplico. Eu lhe imploro. Eu, como seu criador, lhe orde‑
no. Retorne da terra dos falecidos.
Por quanto tempo eu a invoquei? Seriam semanas? Meses? Anos?
Eu só sei que jamais cessava de me deitar ao lado de seu túmulo todas
as noites e suplicar que se reunisse comigo. A essa altura, a senhora já
sabia em que eu me tornara, mas desconhecia a minha obsessão.
— Josette... Você é minha. Venha para mim e voaremos juntos. A
eternidade será o nosso destino.
Ela sempre se recusava. Então em uma noite em que a obumbra‑
ção era ainda mais intensa, enquanto eu era sacudido novamente

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pelos soluços sem lágrimas, ainda mais miserável que de costume, a


tumba se moveu. O solo começou a se erguer.
Ansioso mas exultante, fui esperar por ela em seu quarto escuro e
trancado, sem que qualquer reflexo meu ondulasse no espelho. O re‑
lógio tocava quando uma saia branca, chinelos brancos e bordados
desbotados e cobertos de lama flutuaram ao longo das escadarias.
Ouvi um leve ondular diante da porta.
Ar gélido.
O vento assobiou, veio o silêncio.
Uma forma amortalhada, seu rosto envolvido por faixas de algo‑
dão branquicento. Prendi a respiração. O relógio parou. Ela estava
ali! Frágil e emaciada, como um esqueleto chocalhando dentro de seu
vestido de casamento, seu arcabouço pequeno demais para as roupas,
o tecido pendendo em pregas e dobras de seus ombros.
— Por que você perturbou meu repouso?
Mas meu coração saltava de alegria.
— Você voltou! — Eu mal conseguia falar. — Ah, minha querida,
você ainda me odeia?
Ela permaneceu silenciosa, um espectro branco e quase transpa‑
rente, tão pequena, tão magra... Eu ansiava por abraçá­‑la.
— Você pode me perdoar?
A princípio, ela não respondeu, mas finalmente disse com voz fraca:
— Não tenho nada para perdoar. Não posso sentir mais nada ago‑
ra. Cumpri o meu destino. Você terá de seguir o seu. Não deveria ter
me forçado a visitá­‑lo. Se erguer o meu véu, saberá porquê.
— Não, não, eu não quero erguer seu véu. Sei o que você é, porque
foi eu que a fiz assim. Sua beleza partirá meu coração. Você permane‑
cerá frágil por algum tempo, mas eu a protegerei e a alimentarei e
assim que completar sua transformação em vampira, será mais for‑
mosa do que nunca o foi. Chegue até mim e deixe­‑me abraçá­‑la.
Deite­‑se comigo.
E nas sombras entrecortadas pela lua eu a puxei para mim e
beijei­‑lhe o rosto vezes sem conta através da musselina fina, minha
boca procurando os traços de suas faces, seu nariz, seus lábios, mas

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quando finalmente levantei o véu para beijar­‑lhe a boca, o fedor da


morte subiu dela, mas como o odor de rosas apodrecidas em um vaso
que alguém esquecera de jogar fora. Eu trouxe uma vela para perto de
seu rosto e era como se ela tivesse sido calcinada pelo fogo. A pele caía
em faixas negras, como as camadas de uma cebola podre e um olho
coberto de veias havia caído da órbita e pendia frouxo contra a face.
Vermes verdes saíram da cova da órbita vazia, seu nariz escorrera
para dentro do crânio e sua boca se transformara em uma caverna
sem dentes. Pude sentir­‑lhe os ossos cedendo por baixo da mortalha e
aquilo que fora seu esqueleto desintegrou­‑se em migalhas pulverulen‑
tas entre meus dedos.
E foi assim, mamãe, que eu contemplei a morte face a face. Ela
acabou vindo para mim, arrancada do sepulcro pelo poder de nosso
amor, mas esse poder não fora suficiente, ela demorara demais a me
atender. Tudo está acabado e nunca mais eu a verei. Minha mãe ca‑
ríssima, por que nunca aprendemos a deixar em paz o passado? Por
que tentamos voltar atrás? Eu a matara com minhas próprias mãos.
Olhe onde eu estou agora. Esta casa está deserta. Ninguém de mi‑
nha família, nem sequer a senhora, jamais virá me visitar. Esta foi a
casa das agonias. Mas eu tenho de ficar aqui, nos lugares em que ela
e eu estivemos — com seu retrato, sempre jovem, sempre bela. Tenho
de suportar uma sentença de confinamento solitário e permanecer
sozinho durante milhares de noites.
Eu revejo Ben escavando a sepultura de Josette. Poderia tê­‑lo
agarrado pela garganta e lançado dentro da cova aberta. Mas ele é o
único que vem cuidar de mim, meu único companheiro. Com ele eu
divido minha amargura.
— Há vento esta noite? Está soprando do oceano? Através das árvores?
— Por que pergunta?
— Há estrelas? A névoa está subindo do mar? A lua apareceu?
Esta é a hora em que crescem as unhas dos cadáveres. Quando eu
emergir, quero que a noite esteja bem escura. As estrelas não podem
ver o que acontecerá esta noite, porque eu tenho ações a praticar.
Por que qualquer pessoa deveria viver agora que ela está morta?

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Todos temeram minha praga. Eu os visitarei com uma pestilência


que não lhes deixará nada senão o desejo por uma doce libertação.
Minha raiva explodirá estas paredes. Minha paixão esmagará estas
pedras. Só o que eu quero é destruição. Destruição por toda parte.
Morte. E sangue!
Após uma pausa, disse­‑lhe caprichosamente:
— Eu quero vê­‑la mais uma vez. Olhar para ela uma última vez.
— Mas o senhor sabe que ela tá morta.
Qualquer pessoa que te amar, morrerá.
As rochas no sopé do penhasco. A última coisa que vi foi sua mão
branca e frágil. Aquela água. Aqueles rochedos. Meu pai veio abrir
meu ataúde. Vazio! Portanto, agora ele sabe. Suas premonições são
uma tortura para ele agora e em breve ele aparecerá trazendo corren‑
tes. Ou então, eu irei até Collinswood uma noite dessas, atravessarei
a porta e lhe direi quanto a amo, mamãe, e contarei a meu pai exata‑
mente o que aconteceu. Por mim, ele que faça o que quiser. Eu prefe‑
riria estar deitado em meu ataúde com uma estaca através de meu
coração a continuar do jeito que sou agora.
Angelique! Você está determinada a me manter neste inferno?
Você não me permitirá morrer, mas tampouco matará ninguém mais
e sua maldição está quebrada, porque eu nunca mais irei em busca do
amor. Josette está morta e meu coração foi junto com ela. E ela pode‑
ria ter ficado comigo para sempre.
Portanto, mamãe, este é o meu fadário. Deixarei esta carta sob a
sua porta e voltarei para meu ataúde. A imortalidade, o maior desejo
da alma, me foi concedida, mas não da forma que eu teria jamais
sonhado. Eu sou o emissário do mal, o mensageiro do Diabo e embo‑
ra ainda anseie pelo bem, não está mais em meu poder alcançá­‑lo.
Pronto, a senhora escutou toda a história sórdida e tudo o que lhe
resta é me perdoar.
Se é assim que a eternidade deve ser, então que se inicie!

Seu filho devotado,


Barnabas.

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Depois de dobrá­‑la cuidadosamente, Barnabas recolocou a carta


dentro do escrínio, cobriu­‑a com os demais objetos que havia reti‑
rado e fechou a tampa, mesmo danificada. Ele jamais soubera como
sua mãe lhe recebera a confissão, sua única lembrança dele, porque
seu pai efetivamente viera até o mausoléu logo depois disso e, total‑
mente despido de compaixão, enrolara várias correntes ao redor de
seu ataúde, para mantê­‑lo preso ali dentro. E ali ele permanecera
por quase duzentos anos. Estremeceu só de pensar.
E agora, dentre todas as coisas incompreensíveis, ele estava pronto
para embarcar em uma nova existência como um humilde ser huma‑
no. O fado interviera e lhe dera outra oportunidade de demonstrar
sua coragem e seu caráter, de viver a vida que perdera. A mulher que
encontrara na sala de visitas não era Angelique, mas uma mera estra‑
nha que não lhe representava a menor ameaça. Júlia, que o libertara e
o curara, esperava por ele em seu quarto com boas­‑vindas em seu
coração. Um raio de sol surgiu através das vidraças.
Ele acariciou a marchetaria judiada do cofre de madeira e a pon‑
ta de seus dedos encontrou o formato das velas e dos remos do ber‑
gantim. Ele era o homem que sempre acreditara ser? Poderia aceitar
o futuro como o dom que representava ou estava condenado para
sempre a revisitar o seu passado?
Recostou­‑se novamente na cama e fechou os olhos. Instantanea‑
mente, inexoravelmente, as lembranças retornaram como um enxame.

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Nota da Autora

uando Dan Curtis decidiu ressuscitar Sombras da Noite para


apresentação no horário nobre da televisão em 1991, um dos
escritores me telefonou para indagar se eu conseguia recordar como
fora que Angelique se tornara uma feiticeira. Eu disse que não, jamais
o processo fora mencionado no espetáculo mais antigo, uma série
apresentada em horário diurno. Contudo, a pergunta me intrigou e
assim comecei os passeios imaginários que resultaram neste livro.
Uma vez que eu representei Angelique na novela, resolvi contar a
história toda principalmente do seu ponto de vista. Esta é a história
de Angelique contada como eu a recordo e como acredito que de
fato se passou. Assumo plena responsabilidade por quaisquer dife‑
renças entre esta história e os atributos de caráter ou os eventos re‑
ais apresentados no espetáculo de televisão. Embora me tivesse
esforçado ao máximo, não consegui incorporar cada detalhe e, na
verdade, a mesma Angelique poderia ter muito bem modificado o
relato de sua própria infância nesse diário que permaneceu fechado
ao longo de 175 anos, a fim de servir a seus próprios objetivos.

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Lara Parker

Tenho o maior respeito pelo trabalho dos escritores que me pre‑


cederam e pelos atores que interpretaram seus papéis na série tele‑
visiva e, de fato, uma grande afeição pela própria série, que foi
minha inspiração. Foi minha mais sincera intenção permanecer fiel
à alma de Sombras da Noite e espero ter alcançado este objetivo.

Lara Parker
28 de agosto de 1998

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