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EXAMES DE LARGA ESCALA E POLÍTICAS DE ACCOUNTABILITY

EM EDUCAÇÃO: IMPACTOS NO COTIDIANO ESCOLAR1


Claudia Fernandes2

Hoje, refletir sobre a relação entre avaliação e educação nos exige uma extensa
reflexão acerca de alguns processos sociais contemporâneos sem os quais ficaria
impossível entender a massiva presença, nos sistemas de ensino, em especial os
públicos, dos testes de larga escala.
Este artigo não pretende esgotar tal reflexão dado a complexidade dos aspectos
envolvidos na referida relação, bem como o espaço dedicado a esse texto.
É importante fazer um recorte de análise, sendo este relativo às incoerências
encontradas entre os discursos dos textos das políticas quanto à concepção e a finalidade
da avaliação para os processos escolares e educacionais e as práticas pedagógicas
cotidianas dos docentes nas escolas. Ou seja, esse texto abordará aspectos relativos às
políticas de avaliação, bem como resultados de pesquisas3 que apontam implicações
significativas no cotidiano das escolas, com alterações em suas práticas de gestão do
tempo e espaço da escola e da sala de aula, com a forte presença dos exames
estandardizados.
Primeiramente, é importante chamar atenção para a questão da qualidade da
educação, temática que apresenta estreita relação com o debate acerca do papel social da
escola e da avaliação escolar. Em outro texto, argumentamos que qualidade é um termo
polissêmico, construído sócio-historicamente e que, portanto, não pode ser tomado
como absoluto, sem implicações político-pedagógicas no âmbito das políticas e práticas
educativas. A ênfase das políticas educacionais tem se voltado para os resultados do
desempenho dos estudantes em exames de larga escala, para o empreendedorismo, a
performatividade e a competitividade (FERNANDES e NAZARETH, 2011).
A qualidade em educação escolar nos remete a outra questão que também
precisa ser debatida e que está fortemente relacionada com a avaliação em educação que
é o projeto de sociedade que nós temos e que queremos.
Desde os anos 90, as políticas de avaliação externa, com foco nos testes de larga
escala, têm tomado a cena dos diferentes sistemas educativos estaduais ou municipais
no Brasil, direcionando os currículos, definindo aquilo que vai ser ensinado nas escolas,
criando os standards de aprendizagem. Esse é um aspecto que precisa ser largamente
debatido pelos profissionais da educação.

1
Texto publicado na Revista Nuevamérica, n.134, abril-jun. 2012, p.62-67.
2
Professora da Escola de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO. Coordenadora do GEPAC (Grupo de
Estudos e Pesquisas em Avaliação e Currículo) certificado pelo CNPq
3
Têm sido realizadas pesquisas com foco nos exames de larga escala e seus impactos na escola
de ensino fundamental pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Avaliação e Currículo (GEPAC)
coordenado por mim e pela professora Andréa Fetzner, na UNIRIO.
As políticas tomam o Índice da Educação Básica (IDEB) como indicador de
qualidade e como guia de ações, uma vez que é o índice oficial utilizado pelo
MEC/INEP. A prática de tomar o IDEB como indicador de qualidade vem se
naturalizando, inclusive, entre pesquisadores como, por exemplo, critérios para escolha
de uma boa escola. Entretanto, argumenta-se que há problemas com a legitimidade dos
resultados dos exames – utilizados para o cálculo do IDEB – tanto no que tange à sua
gênese/concepção quanto à sua aplicação nas escolas. Há também problemas do ponto
de vista técnico com o cálculo do IDEB (SOARES, 2011).
A naturalização da utilização dos testes no cotidiano da escola traz outra
inquietação. No âmbito das secretarias de educação municipais e estaduais, os testes de
larga escala são elaborados e até, muitas vezes, aplicados por empresas privadas pagas
pelas prefeituras por tal serviço. A transferência de verbas públicas para o setor privado
também se naturaliza e há certa aceitação, porque tais serviços são apresentados como
melhorias para a qualidade da educação escolar oferecida.

A avaliação em larga escala como justificativa para as políticas de


accountability em educação
A avaliação em larga escala tem servido para justificar as políticas educacionais
contemporâneas. Fica-nos o importante trabalho de desvelar, para além do discurso,
qual a política educacional que os testes pretendem justificar.
Para tal trabalho, destacamos a necessária reflexão e produção de conhecimento
por meio das pesquisas. Para compreender os efeitos dos testes e nos aprofundarmos na
reflexão acerca das políticas educacionais, é fundamental observarmos e investigarmos
o cotidiano das escolas. O que vem acontecendo nas escolas com a naturalização da
aplicação de testes de larga escala? Seu projeto político-pedagógico se altera? Os
professores modificam suas práticas? Os estudantes se reorganizam a partir dos
resultados? Os planejamentos se modificam? Os tempos e espaços se alteram? A
formação docente também sofre mudanças, bem como a gestão? Inúmeras podem ser as
perguntas e infinitas as respostas.
O cotidiano da escola está sendo marcado por uma rotina de treinamento e
aplicação de testes. Alguns resultados de pesquisa têm apontado que as práticas são
alteradas em seu cotidiano, especialmente quando os exames vêm acompanhados de
uma política de meritocracia. Tal política tem causado impactos nos cotidianos das
diferentes escolas. Esses impactos podem ser positivos, ou seja, trazer de fato
crescimento e compromisso para o projeto da escola, bem como podem ter efeitos
negativos, danosos, do ponto de vista educativo e até ético.
São efeitos que se relacionam a um projeto de sociedade. O que queremos:
prêmios em dinheiro para os diretores, professores ou salários dignos? Estudantes que
sabem responder bem questões de teste ou que pensem? Os testes trazem conteúdos que
são básicos. Mas e os demais conhecimentos e saberes que não se restringem a
conteúdos? A capacidade de argumentação, a questão da oralidade, do raciocínio,
desenvolvimento do pensamento, a construção de conceitos? Além disso, há o problema
em relação à forma como esses conteúdos são tratados nos testes de larga escala. Isso
não seria problema, a princípio, caso as questões do testes não estivessem sendo
utilizadas como exercícios de aula para treinamento para os testes. E caso, os descritores
das provas não estivessem sendo utilizados para orientar os planejamentos, muitas
vezes, avalizados por orientações emanadas das próprias secretarias. Entendemos que
estas questões são seriíssimas do ponto de vista do projeto de escola que queremos, e
em última instância, o projeto de nação que queremos.
Nas pesquisas, considerando a complexidade e as diferenças existentes no
cotidiano das escolas, temos observado que uma boa parte dos professores4 entende que
aplicar um teste, uma prova, é uma forma fidedigna de avaliar seu aluno, tomando o
exame como um instrumento capaz de avaliar a aprendizagem. As pesquisas têm
mostrado que, apesar dos professores afirmarem que compreendem a avaliação como
um processo que envolve diferentes etapas e momentos, boa parte se satisfaz com a
aplicação dos testes para orientar seu trabalho e para designar uma nota ou conceito aos
seus alunos. Da mesma forma, que no nível macro, entendem que aplicar uma prova e
gerar um índice basta para avaliar o sistema educacional. Esses professores acreditam
ser esta uma avaliação legítima, e que com ela, consegue-se fidedignidade dos
resultados da aprendizagem. Portanto, há um grupo que ainda entende avaliação como
medida, embora, em seu discurso, não mais apareça dessa forma, uma vez que a
perspectiva da avaliação formativa tem se tornado hegemônica nas prateleiras das
livrarias, nas aulas de graduação das licenciaturas, nos textos legais. Há outro grupo de
professores que acredita ser impossível medir aprendizagem; que entende os testes
como propiciadores de algumas informações/ dados para a formulação de políticas, mas
não para acompanhar as aprendizagens de seus alunos e para orientar seus
planejamentos.
A escola contemporânea apresenta conflitos epistemológicos (que, aliás, sempre
existiram) muito latentes no cotidiano de suas práticas educativas, seja nas salas de aula,
seja na gestão. Essas diferenças podem e deveriam desafiar-nos a pensar qual escola
queremos. Entretanto, as pesquisas têm mostrado que as escolas vêm alterando as suas
relações pedagógicas, mexendo na organização dos seus tempos, nos seus espaços, nos
seus currículos, para trabalhar a partir dos exames que chegam, sejam os da Secretaria,
sejam os do Governo Federal.
Finalizamos chamando a atenção para o fato de que são os resultados da
avaliação de larga escala que permitem que os estudantes da Escola Estadual Indígena
Dom Pedro I, da área rural de Santo Antônio do Içá, no Amazonas, que ocupou o último
lugar no ENEM 2009 e que foi capa de reportagem do jornal O Globo, na ocasião,
se mantenham na Escola Dom Pedro I5 e que os estudantes que estão nas escolas
particulares do Rio de Janeiro e de São Paulo, costumeiramente as primeiras nos
rankings, também se mantenham nas mesmas. Os estudantes não permanecem em suas

4
Refiro-me a todos os profissionais envolvidos com o pedagógico e o ensino que trabalham na
escola: professores, diretores, coordenadores pedagógicos, orientadores.
5
http://oglobo.globo.com/educacao/enem-2009-revela-que-das-mil-piores-escolas-do-pais-973-
sao-estaduais-2977786#ixzz1tkELpTeE
escolas, mas em suas posições sócio-econômicas, perpetuadas pela educação escolar,
sob a égide da “avaliação para a qualidade”. Fica fácil observar pelos resultados, que o
problema da classificação das escolas é sócio-econômico, antes de ser educacional e que
muito menos, é um problema dos estudantes. Como comparar os incomparáveis?
Avalia-se para se justificar as políticas, e como a avaliação não é neutra, nem
destituída de ideologia e de poder, ela justifica e legitima resultados e ações.

Referências
FERNANDES, Claudia de O. e NAZARETH, Henrique Dias Gomes. A retórica por
uma educação de qualidade e a avaliação de larga escala. Impulso, Piracicaba • 21(51),
63-71, jan.-jun. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767, PP.
63-71. Acesso em 02/05/2012.

SOARES, José Francisco. Análise dos pressupostos educacionais e estatísticos do


Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Anais do 10º Encontro de
Pesquisa em Educação da Região Sudeste.
http://www.fe.ufrj.br/anpedinha2011/anais/anais.php. Acesso em 02/05/2012.

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