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indd 2 13/12/2012 11:14:10


EXPEDIENTE

EDITOR Aline Akemi Freitas Flávio Amaral Garcia


Mestra em Direito pela PUC/SP; Assessora da Secretaria Execu-
Cerdônio Quadros tiva da Secretaria-Geral da Presidência da República; Advogada
Mestre em Direito Empresarial pela Ucam/RJ; Doutorando em
Direito Público pela Universidade de Coimbra – Portugal
(in memoriam – 1938-2011)
Aline Paola C. Braga Câmara de Almeida Flavio Corrêa de Toledo Jr.
DIRETOR Mestra em Direito Econômico pela UGF/RJ Servidor aposentado do TCSP
Angelo Iadocico Allan Vinicius de Moura Flavio Hiroshi Kubota
Administrador de Empresas Auxiliar de Fiscalização Financeira do TCSP; Bacharel em Direito
pela UnG; Pós-graduado em Direito Civil pela FMU e em Admi- Especialista e Mestrando em Direito Constitucional pela
Bacharel em Direito
nistração Pública pela UTFPR Universidade de Lisboa; Procurador Federal

EDITORA ADJUNTA Alvaro Lazzarini (in memoriam) Floriano Azevedo Marques Neto
Fernanda Freire dos Santos Desembargador do TJSP; Presidente do TRESP, aposentado Doutor em Direito Público pela USP
Advogada; Bacharela e Mestranda em Direito Constitucional André Saddy Geilton Costa da Silva
pela PUC/SP; Pós-graduada em Direito Ambiental pela USP e Doutor Europeu pela UCM; Professor da Faculdade de Direito e do Juiz de Direito e Juiz Eleitoral no Estado de Sergipe; Mestrando
em Direito da Comunicação pela ESA-OAB/SP Mestrado em Direito Constitucional da UFF/RJ; Diretor-Presidente em Direito pela PUC/PR (Minter PUC/PR-UNIT
do CEEJ e sócio do escritório de consultoria Saddy Advogados

CONSELHO DE ORIENTAÇÃO Antonio Carlos Alencar Carvalho George Ávila Matos


Procurador do Distrito Federal; Especialista em Direito Público e Pós-graduando em Direito Público pela UNIT/SE
DAS PUBLICAÇÕES Advocacia Pública pelo IDP/DF
Gina Copola
Antonio Carlos Torrens Advogada; Pós-graduada em Direito Administrativo pela FMU/SP
Adilson Abreu Dallari Doutorando em Sociologia pela UFPR
Guilherme Carvalho e Sousa
Professor Tit. de Direito Administrativo da PUC/SP
Antonio Cecílio Moreira Pires Advogado; Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo
Dinorá Adelaide Musetti Grotti Mestre e Doutorando em Direito do Estado pela PUC/SP; Profes- UniCeub/DF; Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP
Mestra e Doutora em Direito do Estado pela PUC/SP sor de Direito Administrativo da Universidade Mackenzie/SP
Guilherme Luis da Silva Tambellini
Ivan Barbosa Rigolin Audrey Gasparini Graduado em Direito pela USP; integrante da Assessoria Jurídica
Juíza Federal em São Paulo; Mestra em Direito Público pela PUC/SP do TCSP (Gabinete do Conselheiro Sidney Beraldo)
Advogado
Bernardo Guimarães Loyola Gustavo Justino de Oliveira
Ives Gandra da Silva Martins Diretor de Licitações e Contratos do MPRJ Pós-Doutor em Direito Administrativo pela Faculdade da Univer-
Professor Emérito da Universidade Mackenzie/SP sidade de Coimbra–Portugal; Professor de Direito Administra-
Carlos Mário da Silva Velloso tivo da USP
Jair Eduardo Santana Ministro do STF, aposentado
Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP Helita Barreira Custódio
Celso Antônio Bandeira de Mello Livre-docente pela USP
Jessé Torres Pereira Junior Professor Tit. da Faculdade de Direito da PUC/SP
Heraldo Garcia Vitta
Desembargador do TJRJ
Christianne de Carvalho Stroppa Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP
Márcio Cammarosano Mestra em Direito Administrativo pela PUC/SP; Professora de
Direito Administrativo da PUC/SP Hidemberg Alves da Frota
Mestre e Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP
Agente Técnico-Jurídico do MPAM
Maria Sylvia Zanella Di Pietro Cláudia Honório
Professora Tit. de Direito Administrativo da USP
Mestra em Direito do Estado pela UFPR Hugo de Brito Machado
Juiz do TRF5ªR, aposentado
Cláudio Ferraz de Alvarenga
Odete Medauar Conselheiro do TCSP, aposentado Ibraim José das Mercês Rocha
Professora Tit. de Direito Administrativo da USP Mestre e Doutorando em Direito pela UFPA; Procurador do
Clèmerson Merlin Clève Estado do Pará; Diretor do Ibap/SP
Ovidio Bernardi Professor Tit. das Faculdades de Direito da UFPR e da UniBrasil/PR
Doutor em Direito pela USP
Cynthia de Fáthima Dardes Jair José Perin
Advogado da União na PRU4ªR
Toshio Mukai Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP; Advogada;
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela USP Consultora e Assessora Jurídica Jamile Gonçalves Calissi
Mestra e Doutoranda em Direito Constitucional pela Instituição
Daniel B. Lima Faria Corrêa de Souza Toledo de Ensino–Bauru/SP
Procurador do Município de São Leopoldo/RS
COLABORADORES João Gabriel Lemos Ferreira
Daniel Ferreira Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos
Airton Rocha Nóbrega Mestre e Doutor em Direito do Estado (Direito Administrativo)
Advogado e Professor da UCB/DF pela PUC/SP João Parizi Filho (in memoriam)
Aldem Johnston Barbosa Araújo Denilson Marcondes Venâncio Procurador do Estado de São Paulo, aposentado; Advogado
Especialista em Direito Administrativo e em Direito Tributário
Assessor Jurídico da Diretoria de Vigilância em Saúde da Secre- pela PUC/SP; Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP; José Antonio de Aguiar Neto
taria de Saúde do Recife/PE Doutorando em Direito Administrativo pela PUC/SP Coordenador do MPOG

Alécia Paolucci Nogueira Bicalho Diogo de Figueiredo Moreira Neto José Augusto Delgado
Graduada pela Faculdade de Direito Milton Campos/MG; Advo- Professor Tit. de Direito Administrativo da Ucam/RJ Ministro do STJ, aposentado
gada Especializada em Contratações Públicas
Edvaldo Pereira de Brito José de Castro Meira
Livre-docente pela USP e Professor Emérito da UFBA Ministro do STJ, aposentado
Alexandre Cairo
Procurador da Fazenda Nacional/DF; Membro do Núcleo de Egle dos Santos Monteiro José Paulo Dorneles Japur
Defesa da União, da AGU, criado para atuar junto ao TCU Mestra em Direito do Estado pela PUC/SP Advogado; Bacharel em Direito pela UFRGS
Alexandre Manir Figueiredo Sarquis Emerson Garcia José Roberto Pimenta Oliveira
Doutorando e Mestre em Ciência Econômica pela UnB/DF; Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP;
Auditor do TCSP Universidade de Lisboa; Membro do MPRJ Procurador da República do Estado de São Paulo
Alexandre Santos de Aragão Eneida Bastos Paes José Souto Maior Borges
Mestra em Direito e Políticas Públicas pelo UniCeub/DF; Espe-
Professor das Pós-Graduações em Direito do Estado da UERJ cialista em Vigilância Sanitária e Monitoramento de Mercado Professor Tit. de Direito Tributário da UFPE
pela UnB/DF; Graduada em Ciências Jurídicas pela UFOP/MG;
Alice Gonzalez Borges Coordenadora do Núcleo de Elaboração Normativa e Acordos Juarez Freitas
Professora Tit. de Direito Administrativo da UCSAL/BA da Assessoria Jurídica da CGU Professor Tit. e Coordenador da Pós-graduação da PUC/RS

I
JAN/15
EXPEDIENTE

Kiyoshi Harada Maria Garcia Remilson Soares Candeia


Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro Professora de Direito Constitucional e Previdenciário da PUC/SP Auditor Federal de Controle Externo do TCU

Lair da Silva Loureiro Filho Maria Lúcia Miranda Alvares Rodolfo da Rosa Schöntag
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela USP Pós-graduada em Direito Administrativo pela UFPA
Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ
Laís de Almeida Mourão Maria Tereza Pantoja Rocha
Advogada do Cepam/SP Procuradora do Estado do Pará Rosemeire da Silva Cardoso Ramos
Pós-graduanda em Gestão de Políticas Públicas pela USP;
Leandro Luis dos Santos Dall’Olio Mariana Mencio Agente da Fiscalização Financeira do TCSP; Advogada
Especialista em Finanças pela FGV; Agente da Fiscalização Doutoranda em Direito Urbanístico pela PUC/SP;
Professora de Direito Administrativo e Constitucional da FMU/SP
Financeira; Chefe do TCSP Sérgio Ciquera Rossi
Leandro Sarai Marinês Restelatto Dotti Secretário-Diretor-Geral do TCSP
Doutorando e Mestre em Direito Político e Econômico e Advogada da União
Sergio de Andréa Ferreira
Especialista em Direito Empresarial pela Universidade
Mackenzie/SP; Graduado em Direito pela Universidade São
Mário Henrique de Barros Dorna Desembargador do TRF2ªR, aposentado
Advogado; Bacharel em Direito pela PUC/SP
Judas Tadeu/SP; Advogado Público
Mauro Roberto Gomes de Mattos Sérgio Ferraz
Lenir Santos Advogado especializado em Direito Administrativo Procurador do Estado do Rio de Janeiro, aposentado; Doutor em
Advogada Especialista em Direito Sanitário Direito pela UFRJ
Leonardo Coelho Ribeiro Oswaldo Albanez
Pós-graduando pela Escola de Direito da FGV; Advogado
Economista e Orçamentista Público em São Paulo Sérgio Honorato dos Santos
Bacharel em Direito; Especialista em Políticas Públicas pela
Lesley Gasparini Patrick Roberto Gasparetto FCC–UFRJ
Mestre e Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP
Juíza Federal em São Paulo
Paulo Roberto Barbosa Ramos Sylvio Toshiro Mukai
Lúcio Feres da Silva Telles Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de
Mestre e Doutorando em Direito do Estado pela PUC/SP
Mestrando em Direito Constitucional pela PUC/SP

Lucival Lage Lobato Neto


Granada–Espanha; Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP Thaís Boia Marçal
Especialista em Direito Público; Advogada
Pós-graduado em Ciências Contábeis pela FGV, Pedro Paulo de Almeida Dutra
Professor Tit. da Faculdade de Direito da UFMG
em Direito Civil e em Direito Processual Civil pela Ucam/RJ e em Tônia Magalhães Chalu Mendes
Direito Público pela UnP/RN
Pedro Tavares Maluf Advogada; Especialista e Mestranda em Direito Administrativo
pela PUC/SP; Professora da Cogeae PUC/SP
Luis Roberto Barroso Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP
Ministro do STF
Pericles Ferreira de Almeida Uadi Lammêgo Bulos
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP; Presidente
Luiz Henrique Antunes Alochio Procurador do Estado do Espírito Santo
da Sociedade Brasileira de Direito Constitucional (SBDC)
Doutor em Direito da Cidade pela UERJ; Mestre em Direito
Tributário e Empresarial pela Ucam/RJ; Procurador do Município
Rafael Carvalho Rezende Oliveira
de Vitória/ES
Procurador do Município do Rio de Janeiro/RJ Vitor Rhein Schirato
Doutor em Direito do Estado pela USP; Advogado
Marcelo Harger Rafael de Almeida Ribeiro
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP
Assessor de Gabinete do Prefeito de Bauru/SP Wálteno Marques da Silva
Márcia Walquiria Batista dos Santos Rafael Ramires Araujo Valim Advogado e Consultor em Licitações e Contratos
Advogado; Mestre e Doutorando em Direito Administrativo
Doutora em Direito Público pela USP; Procuradora-Geral da USP pela PUC/SP Weida Zancaner
Professora de Direito Administrativo da PUC/SP
Márcio dos Santos Barros Raimundo Márcio Ribeiro Lima
Advogado; Professor e Mestre em Administração Pública pela Professor Especialista de Direito Administrativo da UnP/RN; Yaisa Aurélio Honorato dos Santos
FGV/RJ Procurador Federal da AGU Advogada e Especialista em Direito Público e Tributário

ORIENTAÇÃO NDJ CORPO JURÍDICO

Aniello dos Reis Parziale Adriane Maria Gonçalves Marcos Nicanor da Silva Barbosa
Gerente
Gilberto Bernardino de Oliveira Filho Meire Cristina O. da Silva – Pesquisadora
Jéssica Ciléia Cabral Fratta

DIRETORIA

Angelo Iadocico Martinho Alves da Costa Edna Lopes Quadros Ricardo Lopes Quadros
Diretor Diretor Comercial Diretora de Recursos Humanos Diretor de Vendas

Os artigos e pareceres assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. As opiniões e julgamentos neles expressos não representam
necessariamente a posição desta Editora.
Os acórdãos e decisões publicados neste Boletim são cópias fiéis divulgadas pelos Tribunais, com adaptações de forma para publicação.
As questões práticas são oriundas da Orientação NDJ e dos eventos promovidos pela Editora e refletem o posicionamento do nosso Corpo Jurídico.

*E DITORA NDJ
*B D A – BOLETIM DE DIREITO ADMINISTRATIVO *B D M – BOLETIM DE DIREITO MUNICIPAL *B L C – BOLETIM DE LICITAÇÕES E CONTRATOS

*Marcas Registradas — Propriedade e todos os direitos reservados à


EDITORA NDJ LTDA. – NOVA DIMENSÃO JURÍDICA
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II
JAN/15
SUMÁRIO

DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES formação, sem prejuízo da responsabilidade social que envolve
o ato – Não revogação do Dec. nº 80.419/1977 pelo Dec. nº
FACETAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO CHINÊS: A REFORMA DE 3007/1999 – Ato internacional recepcionado no Brasil com status
2014 DA LEI DO PROCESSO ADMINISTRATIVO A JUSTIÇA ADMI de lei ordinária (STJ) 75
NISTRATIVA DE SEGURANÇA PÚBLICA O SISTEMA DE CARTAS E
VISITAS (Hidemberg Alves da Frota) 1 COMPENSAÇÃO FINANCEIRA PARA A EXPLORAÇÃO DE RECURSOS
MINERAIS (CFEM) – Acondicionamento/embalagem de água
A ARBITRAGEM NOS CONTRATOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E mineral em garrafas – Não caracterização como processo de
A LEI Nº 13.129/2015: NOVOS DESAFIOS (Rafael Carvalho Rezende transformação industrial – Valor correspondente que integra a
Oliveira) 25 base de cálculo da CFEM – Beneficiamento configurado (STJ) 82

O DIREITO À NOMEAÇÃO IMEDIATA DE CANDIDATO APROVADO ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS – Professor substituto e
EM UM CONCURSO PÚBLICO, DIANTE DA DESISTÊNCIA DE OUTRO tradutor e intérprete da Linguagem Brasileira de Sinais (Libras) –
EM MELHOR COLOCAÇÃO OU PELAS VACÂNCIAS CAUSADAS PELO Possibilidade – Conceito de “cargo técnico ou científico” que não
PEDIDO DE EXONERAÇÃO OU DEMISSÃO FORMULADO PELOS remete essencialmente a cargo de nível superior, mas à atividade
PRÓPRIOS CANDIDATOS APROVADOS E NOMEADOS NO CERTAME desenvolvida, em atenção ao nível de especificação, capacidade e
(Gustavo Brugnoli Ribeiro Cambraia) 39 técnica necessários para o correto desenvolvimento do trabalho –
O JULGAMENTO DA RCL. Nº 4.335/AC E O PAPEL DO SENADO FE Interpretação da al. b do inc. XVI do art. 37 da CF (STJ) 88
DERAL NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE (Flávio
PODER DE POLÍCIA – Anvisa – Autuação de empresa por veiculação
Quinaud Pedron) 50
de propaganda de iogurte em todo o território nacional atribuindo
efeitos e propriedades terapêuticas/medicamentosas para o trato
JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS
intestinal – Inobservância das disposições legais sanitárias – Auto
CONSTITUIÇÃO DE ESTADO MEMBRO – Dispositivo que impede de infração precedido de notificações – Inexistência de ofensa ao
servidor público estadual de substituir, sob qualquer pretexto, devido processo – Produto enquadrado como alimento – Legiti-
trabalhadores de empresas privadas em greve, ressalvada a le- midade de ato regulamentar – Proteção à saúde da população
gislação federal – Constitucionalidade – Ausência de comprome- (TRF1ªR) 93
timento das competências do Governador – Mera explicitação de
ADMISSÃO NO SERVIÇO PÚBLICO – Provimento de cargo efetivo
prática desabonada pela Constituição Federal (STF) 67
– Descumprimento pelos gestores de deveres constitucionais e
ENSINO SUPERIOR – Diploma de graduação emitido por estabe- legais quanto à comprovação da adequação orçamentária e fiscal
lecimento estrangeiro – Pretensa revalidação automática em uni- da despesa – Registro excepcional do ato de admissão – Instaura-
versidade brasileira – Não cabimento – Determinação de processo ção de procedimento autônomo de apuração de responsabilidade
seletivo – Verificação da capacidade técnica do profissional e sua em curso (TCRN) 98

1
FEV/16
SUMÁRIO
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

Facetas do Direito Administrativo


chinês: a reforma de 2014 da Lei do Processo
Administrativo – a Justiça Administrativa de Segurança
Pública – o sistema de cartas e visitas1

Hidemberg Alves da Frota


Agente Técnico-Jurídico do Ministério Público do Estado do Amazonas; Assessor de Procurador de Justiça; Pós-Graduado (Especialista) em Direito
Público: Direito Constitucional e Direito Administrativo pelo Ciesa

1 Introdução. 2 A pirâmide normativa do ordenamento jurídico chinês. 3 A baixa influência do Direi-


to Constitucional, do Direito legislado e do Poder Judiciário na evolução do Direito Administrativo
chinês. 4 A Administração Pública em Juízo: aspectos da reforma de 2014. 4.1 Um diploma legislativo
para ações judiciais de Direito Administrativo. 4.2 A ênfase da reforma de 2014 no acesso ao Poder
Judiciário. 4.3 As hipóteses de cabimento de impugnação judicial contra a Administração Pública da
RPC. 5 A Justiça Administrativa de Segurança Pública e o Direito Administrativo sancionador. 5.1 As
prisões administrativas. 6 O xinfang zhidu: sistema de cartas e visitas. 7 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO1 fatual revestida do objetivo de caluniar ou difamar


Ainda que a China tenha ascendido, em 2009, (CHINA, 2015a; CHINA, 2015b).
ao patamar de maior parceira comercial do Brasil “e À vista desse cenário, almeja-se neste artigo fa-
principal fonte de investimentos estrangeiros no País” miliarizar a comunidade jurídica de língua portuguesa
(HOLANDA, 2015, p. 68-69), pouco se conhece, na co- com facetas peculiares ao Direito Administrativo
munidade jurídica brasileira, acerca do ordenamento chinês, atinentes (1) às fontes normativas que influen-
jurídico e da organização estatal da República Popular ciam a modelação da legislação administrativista, (2)
da China (RPC). a aspectos relevantes da reforma de 2014 da Lei do
O controle administrativo e jurisdicional do ato Processo Administrativo (LPA), (3) à Justiça Adminis-
administrativo, mediante provocação, repousa o seu trativa e as prisões administrativas, a título de longa
alicerce constitucional no art. 41 (1) da Constituição manus do Sistema de Segurança Pública e do Direito
chinesa de 1982, reformada em 2004,2 o qual fran- Administrativo Sancionador, e (4) ao sistema de cartas
queia aos cidadãos da RPC (1) o direito de criticarem e visitas (xinfang zhidu), como não apenas serviço
e apresentarem sugestões a quaisquer órgãos ou formal de ouvidoria governamental e partidária, mas
agentes do Estado chinês, bem como (2) o direito de também instância informal de reforma de decisões
apresentarem aos órgãos estatais competentes recla- administrativas e judiciais, com esteio no exame da
mações e acusações ou denúncias contra quaisquer legislação da RPC, combinado com a análise da lite-
órgãos ou agentes estatais, por violação da lei ou ratura especializada de língua inglesa, constituída,
negligência no cumprimento de deveres funcionais, em sua maioria, por artigos científicos de juristas de
proibida, em todo caso, a invenção ou a distorção nacionalidade ou ascendência chinesa.

1. Artigo originariamente publicado na Revista Digital de Direito


2 A PIRÂMIDE NORMATIVA DO ORDENAMENTO
Administrativo, Ribeirão Preto, v. 3, n. 1, p. 184-216, jan./jun. 2016. JURÍDICO CHINÊS
2. Jianlong Liu vislumbra em tal norma constitucional (art. 41, § 1º, da
Constituição chinesa) a expressão do direito humano fundamental ao
A pirâmide hierárquica do Direito Positivo da RPC
acesso à Justiça (LIU, 2015, p. 215). compõe-se de seis patamares (CHINA, 2015i; FANG,

1
JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

2015, p. 913-914; LIU, 2015, p. 4; PEERENBOOM, sobre a Legislação da RPC), assim como os regu-
2002, p. 271):3 lamentos autônomos ou separados, expedidos
por Assembleias Populares de áreas ou zonas na-
1. Em primeiro plano, a Constituição de 1982, cionais autônomas, cujos habitantes apresentam
reformada em 1988, em 1993, em 1999 e em aspectos diferenciados em termos étnicos ou de
2004 (art. 78 da Lei sobre a Legislação da RPC). nacionalidade (art. 116 da Constituição).
2. Em segundo plano, as leis aprovadas ou 5. Em quinto plano, as nominadas regras (atos
reformadas pela Assembleia Nacional Popular,4 administrativos normativos) subdivididas em regras
seja em sua composição plenária, seja por meio governamentais, ditadas por Governos Populares
do seu Comitê Permanente (arts. 62, § 3º, e 67, locais,6 e em regras ministeriais, ditadas por órgãos
§ 2º, ambos da Constituição chinesa, c/c art. 79, e entidades vinculadas ao Conselho de Estado7 (arts.
caput, da Lei sobre a Legislação da RPC). 73 a 77 e 80 da Lei sobre a Legislação da RPC).
3. Em terceiro plano, os chamados regula- 6. Em sexto plano, os documentos normativos,
mentos administrativos, é dizer, as regulamen- assim entendidos os atos normativos dos Governos
tações do Conselho de Estado (art. 79, parágrafo e das Assembleias Populares que não se enquadram
nas demais espécies de atos estatais (supramencio-
único, da Lei sobre a Legislação da RPC), o órgão
nados), quer legislativos, quer administrativos.
máximo do Poder Executivo do Governo Central,
presidido pelo Primeiro-Ministro da RPC.5 3 A BAIXA INFLUÊNCIA DO DIREITO CONSTITU
4. Em quarto plano, os denominados regu- CIONAL, DO DIREITO LEGISLADO E DO PODER
lamentos locais, ou seja, as regulamentações JUDICIÁRIO NA EVOLUÇÃO DO DIREITO ADMI
das Assembleias Locais Populares (art. 80 da Lei NISTRATIVO CHINÊS
Ainda que repouse no cume da pirâmide norma-
3. A classificação acima exposta matiza a interpretação do Direito Po- tiva do ordenamento jurídico chinês a Constituição,
sitivo chinês com as classificações doutrinárias de Anyu Fang, Jingjing os Tribunais Populares, inclusive o Supremo Tribunal
Liu e Randall Peerenboom. Fang adota classificação quadripartite de
tal pirâmide normativa, ao unificar os três últimos patamares daquela, Popular, ressentem-se de manifesta regra de compe-
por meio desta divisão: (1) Constituição, (2) leis da Assembleia Nacio- tência que lhes respalde o exercício do controle de
nal Popular, (3) regulamentos administrativos do Conselho de Estado e constitucionalidade, atribuição que o Direito Positivo
(4) regulamentos das Assembleias Locais Populares, assim como regras
baixadas pelos Governos Populares locais e pelos Ministérios centrais confere, explicitamente, tão só à Assembleia Nacional
(FANG, 2015, p. 913-914). Já Liu opta por classificação tetrapartite: (1) Popular e ao seu Comitê Permanente (CHINA, 2015a;
Constituição, (2) leis da Assembleia Nacional Popular e do seu Comitê
Permanente, (3) regulamentos administrativos do Conselho de Estado, CHINA, 2015b; CHINA, 2015i; FANG, 2015, p. 913,
(4) regulamentos das Assembleias Locais Populares em geral e dos Comi- HAND, 2015, p. 62).
tês Permanentes das Assembleias Locais Populares de nível provincial e
(5) regras, sejam as regras governamentais de Governos Populares locais À Assembleia Nacional Popular, em sua compo-
de nível provincial, sejam as regras ministeriais, editadas por Ministé-
rios centrais, comissões e agências vinculadas diretamente ao Conselho
sição plenária, cabe, entre outras atribuições, (1) su-
de Estado (LIU, 2015b, p. 4). Peerenboom, por sua vez, abraça classifi- pervisionar a aplicação da Constituição, bem como (2)
cação hexapartite: (1) Constituição; (2) leis (emanadas da ANP e do seu reformar ou anular leis que, editadas pelo seu Comitê
Comitê Permanente); (3) regulamentos administrativos (promanados do
Conselho de Estado). (4) regulamentos locais (baixados por Assembleias Permanente, forem consideradas, pela ANP, inadequa-
Populares de províncias, regiões autônomas, cidades diretamente vincu- das, (3) além de anular os nominados regulamentos
ladas ao Governo Central e as cidades de maior expressão); (5) regras,
divididas em regras governamentais (editadas por Governos Populares
autônomos ou regulamentos separados que, embora
de províncias, regiões autônomas, cidades diretamente vinculadas ao chanceladas pelo seu Comitê Permanente, contrariem
Governo Central e as cidades de maior expressão) e em regras ministe- a Constituição ou violem as balizas legais destinadas
riais (editadas por Ministérios centrais, comissões, agências e entidades
vinculadas diretamente ao Conselho de Estado), e (6) documentos nor-
mativos (atos normativos dos Governos e Assembleias Populares não
enquadrados nas categorias precedentes) (PEERENBOOM, 2002, p. 271). 6. Na conjuntura específica das províncias e regiões autônomas, as regras
dos Governos Populares das Províncias e Regiões Autônomas prevalecem
4. A despeito da Assembleia Nacional Popular situar-se, sob o prisma sobre as regras dos Governos Populares de cidades de maior expressão
formal, na cúspide da estrutura organizacional do Estado chinês, a situadas nas áreas administrativas das próprias províncias e Governos
realidade político-institucional da China mostra que o cerne do poder Populares. Inteligência do art. 80, parágrafo único, da Lei sobre a Legislação
político irradia do Comitê Permanente do Politiburo do Partido Comunista da RPC (CHINA, 2015i).
Chinês (LIU, 2015b, p. 1).
7. As regras dos Departamentos do Conselho de Estados sujeitam-se à
5. Conforme se infere dos arts. 85, 86, 88 e 89 da Constituição chinesa chancela de Ministérios ou Comissões do Governo Central (art. 75, caput,
(CHINA, 2015a; CHINA, 2015b). da Lei sobre a Legislação da RPC) (CHINA, 2015i).

2
JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

à adaptação de leis e regulamentos administrativos cional, segundo preceitua o art. 67, §§ 1º e 4º, da
às peculiaridades de determinadas nacionalidades Constituição, c/c art. 42, §§ 1º e 2º, art. 43 e art.
chinesas (art. 62, §§ 2º e 15, da Constituição chinesa, 47 da Lei sobre a Legislação da RPC.
c/c art. 88, § 1º, e art. 66, parágrafo único, ambos
Em que pese a competência da Assembleia Nacional
da Lei da Legislação da RPC) (CHINA, 2015a; CHINA,
2015b; CHINA, 2015i). Popular e do seu Comitê Permanente de exercerem o
controle abstrato de constitucionalidade e apesar da com-
Já ao Comitê Permanente da Assembleia Nacional petência do Comitê Permanente de definir a interpretação
Popular, entre outras atribuições, incumbe (CHINA, jurídica do Estado chinês, o controle de constitucionalida-
2015a; CHINA, 2015b; CHINA, 2015i; FANG, 2015, p. de pelo Poder Legislativo é raramente exercido (CHINA,
913; HAND, 2015, p. 62): 2015i; FANG, 2015, p. 913; HAND, 2015, p. 62).
1. Efetuar o controle de constitucionalidade A inércia da Assembleia Nacional Popular e do
e de legalidade, por meio de procedimentos de seu Comitê Permanente, no tocante ao desempenho
anulação, (1) dos regulamentos administrativos, do controle concentrado de constitucionalidade, con-
(2) das decisões e (3) das ordens do Conselho de jugada com a ainda (1) incipiente aplicação direta de
Estado, na esteira do art. 67, § 7º, da Constituição. direitos constitucionais pelo Poder Judiciário,9 (2) a
2. Anular regulamentos locais e decisões de carência de autonomia dos Tribunais Populares para
órgãos estatais das províncias, regiões autônomas o exercício independente do controle externo da Ad-
e Municipalidades diretamente vinculadas ao Go- ministração Pública, bem assim (3) a relutância dos
verno Central, quando contrárias não só à Cons- Magistrados de se desincumbirem desse aspecto da
tituição e às leis (emanadas, repisa-se, da ANP), função jurisdicional do Poder Judiciário, (4) a deficitária
como também aos regulamentos administrativos formação técnico-jurídica dos Magistrados e demais
(baixados, lembre-se, pelo Conselho de Estado), profissionais do Direito, (5) o reduzido conhecimen-
nos termos do art. 67, § 8º, da Constituição, c/c to, por contingente significativo do povo chinês, dos
art. 88, § 2º, da Lei da Legislação da RPC. seus direitos e (6) o temor reverencial, por parcela
3. Anular regulamentos autônomos ou sepa- expressiva de administrados, das autoridades admi-
rados que, apesar de aprovados pelos respectivos nistrativas (uma espécie de transferência psicológica
Comitês Permanentes das Assembleias Locais a estas dos papéis sociais de pais e mães), redunda na
Populares de províncias, regiões autônomas baixa efetividade do Direito Constitucional Positivo e
e Municipalidades diretamente vinculadas ao na sua parca ressonância na modelação da legislação
Governo Central, contrariem a Constituição ou administrativista (FANG, 2015, p. 913; HAND, 2015, p.
violem as balizas legais para a adaptação de leis 62-72; PEERENBOOM, 2002, p. 9, 12, 17).
e regulamentos administrativos às peculiaridades
O aprimoramento do Direito Administrativo chinês
de determinadas nacionalidades chinesas, con-
vê-se prejudicado também pela ausência de controle
soante reza o art. 88, § 1º, c/c art. 66, parágrafo
único, ambos da Lei da Legislação da RPC. Essas disposições legais encontram-se em harmonia com a Constituição
chinesa, ao conferir ao Comitê Permanente da ANP o múnus de
4. Fixar a interpretação oficial e definitiva da interpretar a Constituição e as leis (art. 67, §§ 1º e 4º) (CHINA, 2015a;
ordem jurídica8 e, portanto, da ordem constitu- CHINA, 2015b; HAND, 2015, p. 62).
9. Embora o ano de 2001 tenha sido considerado auspicioso para o
fomento à aplicação de normas constitucionais pelo Poder Judiciário da
8. Conforme a Lei da Legislação da RPC, a competência de formular China, quando, no caso concreto Qi Yuling, o Supremo Tribunal Popular
a exegese jurídica a ser adotada pelo Estado chinês, com força de lei, autorizou o Superior Tribunal Popular da Província de Shandong a invocar
compete ao Comitê Permanente da Assembleia Nacional Popular, que o direito constitucional à educação, a posterior pressão do Partido
deve assentar a interpretação oficial do ordenamento jurídico, quando (1) Comunista da China (contrária à judicialização de matérias constitucionais)
indispensável clarificar-se o sentido específico de dado dispositivo legal e impediu a formação de uma jurisprudência consolidada em prol da
(2) nas circunstâncias nas quais fatos supervenientes tornarem necessário aplicação direta de comandos constitucionais e da análise de controvérsias
esclarecer o contexto em que deve ser aplicada determinada lei. O Comitê constitucionais em processos judiciais (HAND, 2015, p. 63-69). De toda
Permanente da ANP exerce essa função interpretativa oficial, mediante sorte, pondera-se que, de modo gradativo, o Poder Judiciário da RPC tem
provocação (1) do Conselho de Estado, (2) da Comissão Militar Central, aumentado sua relevância no desenvolvimento do Direito Constitucional
(3) do Supremo Tribunal Popular, (4) da Suprema Procuradoria Popular, da PRC, à medida que serve de caixa de ressonância de litigantes que
(5) de comitê especial da própria ANP e (6) de comitês permanentes provocam a tutela judicial com a finalidade não apenas de obterem
de províncias, além (7) de regiões autônomas ou Municipalidades determinado provimento jurisdicional, mas também de suscitarem dada
diretamente vinculadas ao Governo Central. Inteligência dos arts. 42, questão constitucional e de compelirem o Estado chinês a se posicionar
§§ 1º e 2º, 43 e 47 da Lei sobre a Legislação da RPC (CHINA, 2015i). a respeito (BALME; DOWDLE, 2009, p. 7).

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

judicial da razoabilidade do ato administrativo, em pro- duas semanas por ano11 (CHINA, 2015i; FANG, 2015, p.
cessos judiciais administrativistas, sob o pálio da Lei do 913-914; LIU, 2015, p. 4; PEERENBOOM, 2002, p. 271).
Processo Administrativo (LPA), uma vez que o critério De toda sorte, ao se comparar a evolução do Di-
da razoabilidade é invocado apenas nas vias recursais reito Administrativo Positivo da China contemporânea
administrativas redigidas pela Lei da Reconsideração (ciclo inaugurado, no plano formal, com a alvorada da
Administrativa (LRA) (HE, 2015, p. 263). Constituição chinesa de 1982, marco das reformas
Como empecilho ao aperfeiçoamento do Direito políticas, institucionais, administrativas e jurídicas
Administrativo da RPC, destaca-se, demais disso, a que iniciaram o período do burocratismo pragmáti-
circunstância de que (1) a maioria dos litígios judi- co12) com a fase inicial da República Popular da China
ciais administrativistas concerne ao ataque a atos (formalmente, durou de 1949 a 1982, assinalada pelo
emanados de autoridades estatais de modesto relevo idealismo revolucionário, com destaque aos anos de
1949 a 1976), nota-se, na atualidade, maior prestígio
na estrutura organizacional da Administração Pública
ao Direito Legislado (FANG, 2013, p. 1-12, p. 102-159;
(“weak administrative authorities”) e, lado outro, (2)
PEERENBOOM, 2002, p. 7, 9, 12, 17).
o fato das impugnações revestidas de controvérsias
mais complexas e sensíveis, com maior repercussão De fato, durante o ciclo revolucionário (1949-
geral, não chegarem às barras do Poder Judiciário (ao 1982), com apogeu na Era Mao Tsé-Tung (1949-1976),
se limitarem, tais demandas, a tramitação no seio do as bases normativas da Administração Pública chinesa
Estado-Administração, atendo-se, por exemplo, aos residiam mormente nas diretrizes do Partido Comu-
lindes do sistema de reconsideração administrativa), nista da China e nos atos administrativos normativos
em razão tanto do receio e desinteresse de Magistra- do Conselho de Estado (os precitados regulamentos
dos de intervirem na atuação de órgãos e agências do administrativos), inclusive em regulamentos interna
corporis desconhecidos da sociedade em geral (atos
Poder Executivo, quanto das limitações institucionais e
secretos, sem publicação na imprensa oficial ou qual-
políticas ao efetivo controle judicial da Administração
quer outra forma de divulgação ao público), ao passo
Pública (HE, 2015, p. 267-268).10
que, durante o ciclo do burocratismo pragmático
De outra banda, conquanto o Direito legislado (de 1982 aos dias atuais), os reflexos jurídicos das
da Assembleia Nacional Popular prepondere hierar- reformas políticas, institucionais e administrativas
quicamente não apenas sobre os atos legislativos principiadas na primeira metade da década de 1980
das Assembleias Locais Populares (regulamentos lo- ampliaram, de modo paulatino e significativo, o leque
cais) e das Assembleias Populares de zonas ou áreas
autônomas nacionais (regulamentos autônomos 11. Além da sessão ordinária anual da Assembleia Nacional Popular,
ou regulamentos separados), como também sobre afigura-se possível a convocação de sessões extraordinárias, a critério
do Comitê Permanente da ANP ou mediante o voto favorável de mais
os atos administrativos normativos do Conselho de de 1/5 dos deputados (art. 61, § 1º, da Constituição chinesa). O Comitê
Estado (regulamentos administrativos), dos Ministé- Permanente, ao contrário do Plenário da ANP, desempenha atividades
cotidianas, por meio de reuniões administrativas, de que participam o
rios centrais, comissões, agências e outras entidades Presidente, os Vice-Presidentes e o Secretário-Geral daquele Comitê (art.
vinculadas diretamente ao Conselho de Estado (regras 68, §§ 1º e 2º, da Constituição chinesa) (CHINA, 2015a; CHINA 2015b).
ministeriais) e dos Governos Populares locais (regras 12. A despeito do período do burocratismo pragmático começar,
formalmente, com o advento da Constituição chinesa de 1982, foram
governamentais), as leis infraconstitucionais da ANP precursores das reformas políticas, institucionais, administrativas e
também evidenciam acanhada influência na modela- jurídicas que marcariam os anos 1980 o restabelecimento, em 1978, do
Ministério Público (Procuradoria Popular) e, em 1979, do Ministério da
ção da legislação administrativista, devido (1) à quanti- Justiça (também chamado de Ministério do Judiciário), bem assim das
dade considerável de cláusulas genéricas contidas em Associações de Advogados, em 1979, de Pequim e de Xangai, fenômenos
tais diplomas legislativos, (2) ao expressivo grau de corolários da ascensão, em 1977, de Deng Xiaoping à liderança política da
RPC, momento a partir do qual a cúpula do Partido Comunista da China
delegação normativa pela ANP ao Conselho de Estado tem buscado implementar “o socialismo com características chinesas”,
e (3) à reduzida atividade legiferante da ANP, que ape- matizando a manutenção do intervencionismo estatal, do planejamento
de raiz socialista, do regime autoritário e do controle do Estado chinês,
nas se reúne, em sua composição plenária, durante via PCC, sobre dirigentes de sociedades empresárias e os trabalhadores
com (1) a descentralização administrativa, (2) a abertura às forças do
mercado, a investimentos estrangeiros, ao empreendedorismo privado, à
10. A tibieza do controle judicial da Administração Pública chinesa transferência de tecnologia e à produtividade econômica e (3) o fomento
evidencia-se, a título ilustrativo, pela escassez de julgamentos de ações à indústria de bens de consumo e ao aumento do poder aquisitivo do
judiciais contra atos administrativos em que tenha sido invocado, pelo povo chinês (BRUNET; GUICHARD, 2012, p. 116-120; FANG, 2013, p. 126;
Poder Judiciário, o instituto do abuso de poder (YU, 2015a, p. 61-81). KISSINGER, 2011, p. 388-389, 426-428).

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

de leis formais a estatuírem mecanismos de controle resses secundários, próprios de agências administrativas,
do Estado-Administração,13 o que ocasionou o relati- de Governos Populares Locais e de autoridades estatais
vo aumento de demandas judiciais e administrativas (PEERENBOOM, 2002, p. 18).
de Direito Administrativo, apesar das resistências
de ordem cultural, política e institucional, vigorosas 4 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM JUÍZO: ASPEC
ainda na atualidade (FANG, 2013, p. 1-12, p. 102-159; TOS DA REFORMA DE 2014
PEERENBOOM, 2002, p. 7, 9, 12, 17). Em 1º .11.2014, na décima primeira sessão do
Todavia, a maior influência na gênese da legis- Comitê Permanente da Assembleia Nacional Popular
lação administrativista chinesa radica, até hoje, no da República Popular da China, decidiu-se pela reforma
Conselho de Estado, não só em virtude da sua intensa do ato legislativo oficialmente intitulado Lei do Processo
atuação normativa (por força da sua competência Administrativo da RPC, também denominada, na litera-
originária de cunho regulamentar e de atribuições tura jurídica anglófona, de Lei do Litígio Administrativo,14
normativas a ele delegadas pela Assembleia Nacio- alteração legislativa corporificada na Ordem nº 15, bai-
nal Popular, bem como da amplitude temática das xada pelo Presidente daquela República, cuja vigência15
suas regulamentações administrativas, a abarcarem principiou em 1º.5.2015 (CHINA, 2015j; CHINA, 2015l).
a maioria das questões políticas, sociais e econômi-
cas da China contemporânea), como também em Essa reforma, em novembro de 2014, da Lei do
decorrência de cerca de 70% das leis submetidas à Processo Administrativo da RPC constitui a sua primei-
apreciação da Assembleia Nacional Popular e do seu ra alteração, ocorrida poucos meses após completa-
Comitê Permanente derivar de projetos de lei cuja dos 25 anos de sanção presidencial (GLÜCK; TONG,
iniciativa legislativa e elaboração couberam ao próprio 2015; ZHIANG, 2015, p. 1).
Conselho de Estado (LIU, 2015b, p. 4). A redação primeva de tal diploma legislativo fora
A mitigada repercussão do Direito legislado na aprovada na 2ª sessão da 7ª Assembleia Nacional
legislação administrativa deve-se também ao usual Popular da RPC, sancionada em 4.4.1989, via Ordem
descompasso entre as balizas legais nacionais e as nº 16, também promanada do Presidente da referida
regulamentações levadas a efeito por agências admi- República, com entrada em vigência em 1º.10.1990
nistrativas e órgãos governamentais locais (PEEREN- (CHINA, 2015l).16
BOOM, 2002, p. 18).
4.1 Um diploma legislativo para ações judiciais de
Explica-se: ainda que as leis emanadas da Assem- Direito Administrativo
bleia Nacional Popular, em sua composição plenária, e do
seu Comitê Permanente estejam, muitas vezes, imbuídas Cuida-se do que se poderia nominar, de forma
de dispositivos de conteúdo genérico, por consequência mais didática, como a Lei do Processo Judicial Adminis-
da legítima finalidade de que sejam preservadas as es- trativo ou, mais precisamente, a Lei da Administração
pecificidades regionais, a ausência de meios eficazes de Pública em Juízo, haja vista que enfeixa o conjunto de
controle da ampla margem discricionária na aplicação
e na interpretação dos atos legislativos nacionais, pelos 14. Na literatura jurídica de língua inglesa, refere-se a tal diploma legislativo
agentes governamentais e administrativos, ocasiona a (inclusive em papers da lavra de juristas chineses) como Administrative
Litigation Law, Administrative Procedure Law e Chinese Administrative Suit
frequente deturpação, por meio de atos regulamentares Law (LIU, 2015, p. 205; YU, 2015a, p. 1; ZHANG, 2015a, p. 1).
de agências administrativas e dos Governos Populares 15. Acolhe-se a ponderação de que a vigência alude ao intervalo de tempo
Locais, do sentido e do teor das normas legais de Direito durante o qual dada norma jurídica possui força vinculante, ao passo que
Administrativo de alcance nacional, em benefício de inte- o vigor concerne à efetividade dos seus efeitos jurídicos (GAGLIANO;
PAMPLONA FILHO, 2008, p. 56, 59, 65).
16. A Lei do Processo Administrativo é um dos frutos jurídicos das
13. Dois exemplos de diplomas legislativos que hoje disciplinam matérias contínuas reformas administrativas (a exemplo das ocorridas em 1982,
de Direito Administrativo antes reguladas, à moda de decretos autônomos, 1988, 1993, 1998, 2003 e 2008), delineadas com o propósito de (1)
pelos chamados regulamentos administrativos: (1) A Lei das Sanções equacionar problemáticas socioeconômicas surgidas com o rápido
Administrativas de Segurança Pública (LSASP), sancionada em 1º.3.2006, crescimento e desenvolvimento da economia chinesa, (2) consolidar
que ab-rogou o Regulamento sobre Sanções Administrativas de Segurança as instituições estatais, (3) garantir a estabilidade social, (4) promover
Pública, de 5.9.1986, revisado em 12.5.1994 (CHINA, 2015m; CHINA, a segurança jurídica, (5) salvaguardar a esfera jurídica de investidores
2015q); (2) e a Lei da Reconsideração Administrativa (LRA), sancionada em estrangeiros e (6) assegurar a competitividade e o vigor econômicos, pela
29.4.1999, que ab-rogou o Regulamento da Reconsideração Administrativa, expansão do comércio exterior, transferência de tecnologia avançada e
de 24.11.1990, revisado em 9.10.1994 (CHINA, 2015d; CHINA, 2015h; manutenção de investimentos estrangeiros (FA; LENG, 2015, p. 1; PEI,
CHINA, 2015p; OHNESORGE, 2015, p. 141; WANG, 2015b, p. 160-161). 2015, p. 832; WANG, 2015a, p. 100-104).

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

normas processuais destinado a reger a parcela dos cia jurisdicional de processar e julgar, de maneira
feitos sob os auspícios do Poder Judiciário da RPC (e independente, sem a interveniência externa (seja de
não da Administração Pública chinesa ou de Tribunais órgãos administrativos e entidades públicas, seja de
vinculados ao Estado-Administração da China) que di- indivíduos), ações judiciais relacionadas a matérias de
zem respeito a litígios judiciais entre a Administração Direito Administrativo (CHINA, 2015l).
Pública (polo passivo) e administrados (polo ativo).
O referido dispositivo legal previra ainda a possi-
Em outras palavras, conquanto a denominação bilidade de que, em cada Tribunal Popular, houvesse
oficial de Lei do Processo Administrativo da República órgãos jurisdicionais fracionários (“divisões adminis-
Popular da China possa, na óptica de juristas de países trativas”, na dicção do art. 3º da LPA) especializados
de língua oficial portuguesa e espanhola, entre outras, em causas administrativistas (CHINA, 2015l).
levar à conclusão precipitada de que consiste em lei
de regência dos processos administrativos encetados 4.2 A ênfase da reforma de 2014 no acesso ao Poder
no seio da Administração Pública chinesa, em verdade Judiciário
consubstancia a disciplina legal a que se curvam os A despeito dos órgãos judiciais (consoante se de-
processos judiciais da seara da Justiça comum concer- preende do atual teor do art. 1º da LPA)19 continuarem
nentes a conflitos de interesse entre a Administração imbuídos da competência jurisdicional de processar e
Pública (demandada) e administrados (demandantes), julgar ações de Direito Administrativo, a nova redação
uma vez que tal diploma legislativo regula o direito do art. 3º da LPA voltou-se à efetividade do acesso ao
público subjetivo dos administrados de processarem, Poder Judiciário (CHINA, 2015j), ao impor aos Tribu-
no âmbito do Poder Judiciário, autoridades adminis- nais Populares, como desdobramento do direito do
trativas (GLÜCK; TONG, 2015; ZHIANG, 2015, p. 1). jurisdicionado de provocar a tutela judicial, o dever de
Tendo em mira a sua denominação oficial (ainda receberem (e, por conseguinte, de conhecerem das)
que tecnicamente imprecisa, aos olhos dos juristas ações judiciais administrativistas que contemplem os
lusófonos e hispanófonos, entre outros) e, lado outro, seus respectivos pressupostos processuais.
a necessidade de padronizar a terminologia a ser em- Embora, a rigor, desnecessário, porque redun-
pregada neste estudo, optou-se por a ela se referir, ao dante (exprime espécie de truísmo), o atual conteúdo
longo deste paper, como LPA, com a ressalva, lembre- do art. 3º da LPA, quando prescreve o respeito, pelo
-se, de que constitui diploma legislativo a balizar a Poder Judiciário, ao direito de ação e preceitua o pro-
composição dos litígios, sob a alçada da Justiça comum cessamento, na forma da lei, pelos órgãos judicantes,
chinesa, entre administrados (parte requerente) e a da parcela de ações judiciais administrativistas que,
Administração Pública (parte requerida). de fato, deva ser recebida,20 cuida-se de reforço nor-
Com efeito, o art. 3º17 da LPA, em sua redação
primitiva, conferira ao Poder Judiciário, composto unidades administrativas (1) com estatura de Prefeituras de províncias ou
de regiões autônomas, (2) em Municipalidades diretamente vinculadas ao
pelo sistema de Tribunais Populares,18 a competên- Governo Central, a províncias ou a regiões autônomas e (3) e em Prefeitu-
ras autônomas. Os Tribunais Populares Superiores funcionam nas unidades
administrativas (1) de províncias, (2) de regiões autônomas e (3) de Munici-
17. Inspirando-se na cuidadosa tradução brasileira, realizada por Virgílio palidades diretamente vinculadas ao Governo Central, conforme exegese do
Afonso da Silva (2008, p. 9), da obra Teoria dos Direitos Fundamentais art. 18, §§ 1º, 2º e 3º, do art. 23, §§ 1º, 2º, 3º e 4º, e do art. 26, §§ 1º, 2º e
(Theorie der Grundrechte), de Robert Alexy, neste artigo jurídico, na 3º, todos da Lei Orgânica dos Tribunais Populares da RPC (CHINA, 2015o).
medida do possível, adaptaram-se à técnica legislativa e à praxe jurídica 19. Eis o atual teor do art. 1º da Lei do Processo Administrativo (alterado
brasileiras as referências aos dispositivos normativos estrangeiros e pela reforma de 2014), ad litteram: “A fim de assegurar o julgamento
internacionais invocados ao longo deste paper, com vistas a facilitar a imparcial e célere, pelos Tribunais Populares, de causas administrativistas,
familiarização, pelo leitor brasileiro, de normas dimanadas do exterior. resolver conflitos administrativos [‘settle administrative disputes’],
18. Os Tribunais Populares consubstanciam os órgãos judiciários do Estado proteger os direitos lícitos [‘lawful rights’] e interesses dos cidadãos, de
chinês, à luz do art. 123 da Constituição chinesa de 1982, reformada em pessoas jurídicas e de outras organizações e supervisionar o exercício, na
1982, 1988, 1993, 1999 e 2004 (CHINA, 2015a; CHINA, 2015b). Integram o forma da lei, do poder por agências administrativas, esta Lei é elaborada
sistema judiciário da RPC (1) os Tribunais Populares Locais de vários níveis [‘is developed’] em consonância com a Constituição” (CHINA, 2015j,
(subdivididos em Tribunais Populares de Base, em Tribunais Populares Inter- tradução livre nossa para o português) (Citaram-se, em colchetes, trechos
mediários e em Tribunais Populares Superiores), (2) os Tribunais Militares e da tradução anglófona que podem suscitar controvérsia interpretativa na
outros Tribunais Especiais e (3) o Supremo Tribunal Popular, na esteira do art. comunidade jurídica de língua portuguesa).
124 (1) da Constituição da RPC, c/c art. 2º, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei Orgânica dos
Tribunais Populares, de 5.7.1979, reformada em 2.9.1983 (CHINA, 2015a; 20. As paráfrases da nova redação do art. 3º da LPA mencionadas no corpo
CHINA, 2015b; CHINA, 2015o). Os Tribunais Populares de Base funcionam deste artigo jurídico foram extraídas da tradução anglófona realizada pelo
em unidades administrativas situadas (1) no nível de condado, (2) no nível portal jurídico Law Info China (http://www.lawinfochina.com), verbo
municipal, bem como (3) com estatura de condados autônomos e (4) de ad verbum: “Article 3 The people’s courts shall protect the right of a
distritos municipais. Os Tribunais Populares Intermediários funcionam nas citizen, a legal person, or any other organization to file a complaint, and

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

mativo empregado, em 2014, pelo legislador reforma- LPA,23 de evitar a obstrução do acesso ao Poder Judiciá-
dor, com a finalidade de remediar um dos principais rio (ZHANG, 2015a, p. 1) também se revela presente em
entraves à efetividade das impugnações judiciais tal comando legal, quando o indicado artigo proíbe, de
contra a Administração Pública chinesa, concernente modo expresso, a atuação de agências administrativas e
à relutância dos Tribunais Populares de processarem de seus funcionários que vise a interferir nos Tribunais
regularmente tais demandas, em virtude destes fato- Populares e a impedir que estes recebam ações judiciais
res inter-relacionados (KINKEL; HURST, 2015, p. 484, de Direito Administrativo (CHINA, 2015j).
486; ZHANG, 2015a, p. 1; ZHANG, 2015b, p. 118):21
A atual redação do art. 3º da LPA também deter-
1. O excesso de ingerências externas, prejudi- mina que a autoridade estatal encarregada de chefiar
ciais à independência judicial (o Partido Comunis- a agência administrativa situada no polo passivo da lide
ta da China e os Governos Populares representam comparecerá à audiência judicial ou delegará tal in-
acentuadas fontes de interferência exterior no cumbência a funcionário público da respectiva agência
Poder Judiciário). administrativa dotado de situação funcional relevante.
2. O receio de Magistrados de se indisporem Essa imposição legal direciona-se a prevenir
com o Poder Executivo, em um panorama ins- circunstância comum no cotidiano forense da China,
titucional em que as agências governamentais, referente a audiências de instrução probatória de
quando condenadas em Juízo, por vezes, retaliam ações judiciais contra a Administração Pública, em que
não apenas os administrados (autores das respec- o Poder Executivo, fazendo-se presente apenas por
tivas ações judiciais), como também os órgãos intermédio do advogado de defesa, deixa de designar
judiciários que proferiram decisões contrárias à agente estatal para prestar depoimento, inviabilizando
Administração Pública. a adequada instrução probatória (ZHANG, 2015a, p. 5).
3. A dependência de órgãos do Poder Judiciá- Lado outro, o § 1º do novo art. 26 da LPA (an-
rio de recursos humanos, financeiros e materiais tigo art. 25) impõe a presença, no polo passivo do
fornecidos por órgãos do Poder Executivo cujos litígio judicial, tanto da agência administrativa au-
atos são julgados por aqueles (verbi gratia, situa- tora da decisão administrativa primeva, quanto da
ções em que Tribunal Popular local julga ações agência administrativa que, ao negar provimento
judiciais contra provimentos administrativos do ao recurso administrativo (remédio processual no-
mesmo Governo Popular local do qual provêm minado, pela legislação chinesa, de “reconsideração
os recursos públicos que asseguram o funciona- administrativa”)24 interposto em face daquele decisum
mento daquela Corte).22
A tônica da reforma de 2014 da Lei do Processo aparelhamento de órgãos locais do Ministério Público, da Justiça e do
Sistema de Segurança Pública (KINKEL; HURST, 2015, p. 487). Em 12.11.2013,
Administrativo, refletida na nova redação do art. 3º da o Comitê Central do Partido Comunista da China lançou nova plataforma de
reformas, inclusive de âmbito judiciário, seara em relação à qual se incluem
(1) a centralização do custeio dos Tribunais Populares e da nomeação dos
accept, according to the law, administrative cases that shall be accepted. magistrados, (2) a criação de Tribunais Populares Regionais (distanciados
Administrative agencies and the employees thereof may not interfere da influência direta de autoridades locais), (3) o fomento da formação
with or impede the acceptance of administrative cases by the people’s técnico-jurídica de Magistrados e advogados, (4) a promoção de campanhas
courts. The person in charge of an administrative agency against which a de educação jurídica, (5) a expansão de serviços de assistência jurídica,
complaint is filed shall appear in court to respond to the complaint, or, if (6) o aprimoramento dos mecanismos de controle da discricionariedade
he or she is unable to appear in court, authorize a relevant employee of administrativa e (7) de responsabilização de agentes governamentais, (8) o
the administrative agency to appear in court” (CHINA, 2015j). aperfeiçoamento da legislação relativa aos meios de impugnação e revisão
de atos estatais e (9) ao cumprimento de decisões judiciais (PEERENBOOM,
21. Em complemento ao conjunto de ponderações assinaladas pelos 2015, p. 189, 198, 201).
pesquisadores acima enumerados, mencione-se o magistério de
Randall Peerenboom, ao acentuar que as propostas de reforma da LPA 23. As paráfrases da nova redação do art. 3º da LPA mencionadas no corpo
(materializada em 2014) visaram a ampliar a jurisdição do Poder Judiciário deste artigo jurídico foram extraídas da tradução anglófona realizada
pelo portal jurídico Law Info China (http://www.lawinfochina.com), verbo
chinês em matérias de Direito Administrativo, como reação (1) ao número
ad verbum: “Article 3 The people’s courts shall protect the right of a
relativamente baixo de ações judiciais contra a Administração Pública citizen, a legal person, or any other organization to file a complaint, and
ajuizadas a cada ano e (2) à relutância dos Tribunais Populares de julgarem accept, according to the law, administrative cases that shall be accepted.
casos controversos (PEERENBOOM, 2015, p. 190). Administrative agencies and the employees thereof may not interfere
22. A fim de atenuar a influência política de Governos Populares locais with or impede the acceptance of administrative cases by the people’s
sobre os Tribunais Populares locais e de diminuir a disparidade em termos courts. The person in charge of an administrative agency against which a
de remuneração e de formação técnico-jurídica entre os Magistrados complaint is filed shall appear in court to respond to the complaint, or, if
he or she is unable to appear in court, authorize a relevant employee of the
das zonas urbanas e rurais, advoga-se o custeio, pelo Governo Central,
administrative agency to appear in court” (CHINA, 2015j).
dos órgãos judiciários locais, meta a que o Conselho de Estado da RPC,
em 2008, comprometeu-se a implementar. Cerca de dois anos antes, em 24. O sistema de reconsideração administrativa consiste em mecanismo de
2006, o Governo Central destinara 5,93 bilhões de renminbis (RMB) ao controle interno que permite à Administração Pública chinesa, sem a intervenção

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

administrativo primitivo, ratifica o ato decisório da se alterasse a decisão administrativa recorrida (CHINA,
instância administrativa de origem (CHINA, 2015h; 2015l; CHINA, 2015j; ZHANG, 2015a, p. 5).
CHINA, 2015j; CHINA, 2015l). A reforma de 2014 da LPA igualmente fomenta o
Ao mesmo tempo, o § 4º do novo art. 26 da LPA direito à efetiva tutela judicial, ao se acautelar contra
determina a presença, no polo passivo do feito judicial previsíveis estratagemas do Poder Executivo de impedir
de Direito Administrativo, somente da agência admi- o cumprimento de eventuais condenações judiciais da
nistrativa que fora incumbida de apreciar o “pedido de Fazenda Pública, ao prescrever que a multa diária por
reconsideração” (cuja natureza jurídica corresponderia, inadimplemento de decisão judicial – astreinte, na lin-
no processo administrativo brasileiro, ao recurso hie- guagem processual civil brasileira, vocábulo jurídico de
rárquico próprio, porque direcionado à agência admi- inspiração francesa (SILVA, 2010, p. 152) – seja suportado
nistrativa de hierarquia superior),25 caso esta entidade, pelo patrimônio da autoridade administrativa (pessoa
na qualidade de instância revisora administrativa, tenha natural), e não mais pelo erário (GLÜCK; TONG, 2015).
se quedado inerte durante o prazo legal para julgar tal 4.3 As hipóteses de cabimento de impugnação judi-
impugnação administrativa (CHINA, 2015j). cial contra a Administração Pública da RPC
Por meio dessas inovações legislativas, almeja-se Com o propósito de ampliar o espectro do controle
inibir as circunstâncias em que a autoridade adminis- judicial do ato administrativo, a reforma de 2014, ao
trativa rejeita o recurso administrativo ou se mantém renumerar para art. 12 o outrora art. 11 da LPA, acres-
silente, com a finalidade oculta de não compor o futuro centou-lhe, em caráter exemplificativo (numerus aper-
processo judicial, uma vez que, de acordo com a reda- tus), 12 (doze) – em vez das antigas 8 (oito) – hipóteses
ção antiga do § 1º do art. 25 da LPA, caso improvido o legais de cabimento de ações judiciais de administrados
recurso administrativo endereçado à instância revisora contra a Administração Pública27 (CHINA, 2015j):
(denominado de “pedido de reconsideração”, porém, 1. Impugnações a sanções administrativas,
no processo administrativo brasileiro, correspondente, a exemplo de penalidades administrativas con-
lembre-se, ao típico recurso hierárquico próprio),26 o substanciadas em (a) prisões administrativas, (b)
posterior ajuizamento de impugnação judicial resulta- em suspensões ou (c) revogações de licenças ou
ria na compulsória presença, no polo passivo da lide permissões, (d) em suspensões de atividades de
judicial, apenas da autoridade administrativa a quo produção ou de comércio, (e) em confiscos de
(da qual emanara a decisão inicialmente atacada na renda de origem ilícita, (f) em confiscos de proprie-
via administrativa), de maneira que a autoridade ad- dade ilícita, (g) em multas e (h) em advertências.
ministrativa ad quem integraria o feito judicial tão só
2. Impugnações a medidas administrativas
do Poder Judiciário, revisar atos administrativos de efeitos concretos, com
compulsórias, tais quais restrições à (a) liberda-
espeque nos princípios explícitos da legalidade, da imparcialidade, da de pessoal, (b) sequestros de bens (“seizure”),
publicidade (“openness”), da celeridade (“promptness”) e da conveniência
popular (conjugados com os princípios implícitos da eficiência, da economicidade
(c) apreensões de bens (“impoundment”), (d)
e da razoabilidade, segundo se depreende da literatura especializada), com o indisponibilidades patrimoniais (“freezing of
propósito de assegurar a adequada implementação de leis e regulamentos, nos property”) e (e) exercício do poder de polícia
termos do art. 4º da Lei da Reconsideração Administrativa (LRA), sancionada,
rememore-se, em 29.4.1999, que ab-rogou o Regulamento da Reconsideração (“administrative enforcement”).
Administrativa, de 24.11.1990, revisado em 9.10.1994 (CHINA, 2015d; CHINA,
2015h; CHINA, 2015p; GAO, 2015, p. 32; OHNESORGE, 2015, p. 141; WANG, 3. Impugnações contra (a) indeferimentos de
2015b, p. 160-161; WANG, 2015c, p. 86).
pleitos na via administrativa, bem como em virtude
25. Em outros dizeres, os processos de reconsideração administrativa, (b) do silêncio administrativo (após escoado o prazo
na conjuntura chinesa, constituem, em realidade, não na reapreciação
do pleito pela autoridade que decidiu em desfavor do administrado, mas legal de resposta), além de impugnações a atos deci-
em recursos administrativos, por intermédio dos quais os administrados sórios administrativos relativos a (c) licenciamentos.
solicitam da instância revisora administrativa (hierarquicamente superior)
a reforma do decisum impugnado (LICHTENSTEIN, 2015, p. 17). 4. Impugnações a decisões administrativas que
26. No Direito Processual Administrativo brasileiro, o pedido de reconsideração reconheceram a (a) titularidade ou (b) o direito de
“significa um pedido de reexame de uma decisão, dirigido à mesma autoridade uso de recursos naturais, como o solo, os recursos
que a editou”, ao passo que o recurso hierárquico próprio constitui “o pedido
de reexame dirigido à autoridade administrativa hierarquicamente superior minerais e hídricos, assim como recursos naturais
àquela responsável pela decisão”, de que se diferencia o recurso hierárquico
impróprio, justamente porque este se direciona à autoridade “que não detém
vínculo de hierarquia com a autoridade ou órgão responsável pela decisão 27. Os 12 (doze) itens acima consignados são, em verdade, paráfrases dos
impugnada” (MEDAUAR, 2013, p. 429). §§ 1º a 12 da atual redação do art. 12 da LPA, respectivamente.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

relacionadas a florestas, morros, pradarias, terrenos A par disso, o novo art. 25 da LPA (correspon-
baldios, áreas entremarés e áreas marítimas. dente ao antigo art. 24) permite ao sujeito passivo
5. Impugnações a decisões administrativas ati- de determinada ação administrativa (ou ao terceiro
nentes à intervenção do Estado na propriedade priva- interessado) impugná-la perante a Justiça comum,
da, quanto (a) a desapropriações, (b) a requisições e pela via da reclamação.
(c) a indenizações relacionadas a ambos os institutos. Portanto, à luz da interpretação sistemática da
6. Impugnações relativas à recusa ou à falha LPA, tendo como ponto de partida a função residual
de agência administrativa de cumprir (a) o dever do § 12 do seu atual art. 12 (mencionado, por último,
de agir e (b) de adimplir, a contento, outros deveres na enumeração acima), nota-se que são admissíveis
legais e responsabilidades concernentes a direitos em Juízo (na esfera da Justiça comum) quaisquer ações
pessoais e reais, bem assim (c) a outros direitos e cuja causa de pedir concirna à alegação, pelo autor,
interesses protegidos pelo ordenamento jurídico. de ofensa, pela Administração Pública da PRC (mor-
mente, por suas agências administrativas), de direitos
7. Impugnações a ações administrativas preju- e interesses acolhidos pela ordem jurídica chinesa e
diciais (a) à autonomia da gestão empresarial e (b) de que seja titular a parte requerente, contanto que
a direitos referentes a bens imóveis rurais. consistam em impugnações a atos administrativos de
8. Ações judiciais contra agências adminis- efeitos concretos, já que o regime jurídico-processual
trativas que supostamente incorreram em abuso da LPA não contempla o controle judicial de atos ad-
de poder, (a) ao obstarem ou (b) restringirem a ministrativos de caráter apenas genérico e impessoal
competividade empresarial. (KINKEL; HURST, 2015, p. 480).
9. Ações judiciais cuja causa de pedir (na lin- Ademais, por meio da interpretação sistemática
guagem processual civil brasileira)28 se paute na da LPA, detecta-se a ênfase legislativa, inaugurada em
alegação de que determinada agência administra- 1989 e reiterada em 2014, de enumerar, exemplifica-
tiva requereu a prática de atos contrários à ordem tivamente, hipóteses de ações judiciais a atacarem
jurídica ou inexigíveis, relacionados, por exemplo, provimentos administrativos corporificados (a) em
(a) à captação ilícita de recursos financeiros ou (b) sanções administrativas e (b) em interferências esta-
ao indevido rateio de despesas financeiras. tais na atividade de empresa, na ordem econômica e
10. Ações judiciais cuja causa de pedir se ba- no direito de propriedade.
seie na suposta mora de agência administrativa, Desse modo, a LPA, em suas redações original
materializada no inadimplemento (a) de indeni- (1989) e contemporânea (2014), ecoa as reformas
zação, (b) de subsídio mínimo de alimentação ou legislativas deflagradas pelo Governo Central na pri-
(c) de benefício de seguridade social. meira metade da década de 1980, para ampliar, em
11. Ações judiciais cuja causa de pedir consista benefício da comunidade empresarial, o leque de
em aventado descumprimento, por determinada meios de impugnação, perante a Justiça comum, de
agência administrativa, (a) ao previsto em lei ou atos da Administração Pública, inaugurada pela Lei do
em acordo, bem como (b) na indevida alteração Imposto de Renda das Joint Ventures Sino-Estrangeiras
ou rescisão de acordo, por exemplo, a respeito de 1980, seguida do Código de Processo Civil de 1982
de concessões públicas e indenizações em conse- (KINKEL; HURST, 2015, p. 481-482).
quência de desapropriações de imóveis urbanos.
É coerente com o art. 3º da Lei sobre a Legislação
12. Ações judiciais cuja causa de pedir diga da RPC, de 15.3.2000, o qual, ao definir o conjunto
respeito a outras hipóteses (critério residual) de de normas principiológicas e ideológicas em que de-
desrespeito, por agência administrativa, a direitos vem se inspirar as leis infraconstitucionais chinesas,
pessoais, direitos reais e demais direitos e interes- preconiza a deferência a princípios que priorizam,
ses agasalhados pelo ordenamento jurídico. como tarefa central, o desenvolvimento econômico
(“principles of taking economic development as the
28. Invocou-se, para fins didáticos, o constructo jurídico da causa de pedir, central task”)29 (CHINA, 2015i).
com este sentido (DIDIER JR., 2008, p. 400): “A causa de pedir é o fato ou
conjunto de fatos (fato(s) da vida juridicizado(s) pela incidência da hipótese
normativa) e a relação jurídica, efeito daquele fato jurídico, trazidos pelo 29. Tradução anglófona oficial da Assembleia Nacional Popular da RPC
demandante como fundamento de seu pedido”. (CHINA, 2015i).

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

5 A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA DE SEGURANÇA de cunho extrajudicial) pela diferença fundamental de


PÚBLICA E O DIREITO ADMINISTRATIVO SAN que, na República Popular da China, agasalha-se, desde
CIONADOR a década de 1950, Justiça Administrativa composta por
órgãos de segurança pública e presidida pelas autori-
O Estado chinês, apesar de se assemelhar ao dades policiais, em que prepondera a ênfase na Justiça
Estado nipônico no que concerne, especificamente, à Substancial e na eficiente e flexível persecução dos
atribuição ao Poder Judiciário do múnus de processar ilícitos administrativos, em detrimento seja do controle
e julgar ações de particulares em desfavor da Adminis- externo da atividade policial, pelo Ministério Público e
tração Pública,30 distingue-se da estrutura organizacio- pelo Poder Judiciário, seja de formalidades e garantias
nal japonesa dos Poderes de Estado (modelada para processuais inerentes ao devido processo legal e ao
funcionar sem a presença de Tribunais administrativos Estado de Direito, déficit de accountability que a torna
mais vulnerável a arbitrariedades (LI, 2015a, p. 398-399,
30. A título de comparação com este outro relevante ator geopolítico do 401-402; LI, 2015b, p. 171).
Extremo Oriente, vê-se que no Japão também se radica no Poder Judiciário,
e não na Justiça Administrativa, a competência jurisdicional para processar Conquanto existisse, mesmo na Era Maoísta
e julgar ações de administrados em face da Administração Pública. É que,
na conjuntura político-jurídica japonesa ulterior à Segunda Guerra Mundial (1949-1976), verdadeira Justiça Administrativa do
(1939-1945), prepondera a interpretação restritiva do art. 76 da Constituição Sistema de Segurança Pública, cuja principal faceta
pacifista e democrática de 1946, exegese constitucional segundo a qual se
proscrevem, no Japão, os Tribunais administrativos e, em consequência, foram (e são) as prisões administrativas (concebidas
transferiu-se, integralmente, à Justiça Comum nipônica a incumbência
de compor litígios entre a Administração Pública e os administrados na década de 1950, em uma conjuntura política mar-
(OHNESORGE, 2015, p. 114-115). Conforme a exegese predominante acerca cada, de 1949 a 1953, pelos julgamentos em massa, a
do art. 76 da Constituição japonesa de 1946, veda-se a existência de Tribunais
administrativos no Japão, em virtude daquela norma constitucional, entre título de depuração ideológica da sociedade e do Es-
outras prescrições, agasalhar esta proibição (herança de um dos esboços tado chineses), não houve no período revolucionário
da Constituição de 1946, aquele encabeçado pelo Comandante Aliado
no Japão, General Douglas MacArthur, o MacArthur Draft): “Nenhum (de 1949 a 1982, com auge na Era Maoísta, de 1949
tribunal extraordinário será estabelecido, bem como nenhum órgão ou
agência do Poder Executivo terá poderes judiciais finais” (JAPÃO, 2015b, a 1976), nem há no período do burocratismo prag-
tradução livre nossa; OHNESORGE, 2015, p. 114-116; TSUJI; 2015, p. 171, mático (de 1982 em diante), Cortes Administrativas
180). Essa adoção extremada dos princípios da unicidade de jurisdição e da
separação de Poderes contrasta com o contexto político-jurídico anterior, independentes dos Poderes Executivo e Judiciário,
sob a égide dos arts. 60 e 61 da Constituição imperial de 1889, a chamada incumbidas de processar e julgar ações de administra-
Constituição Meiji, em que o Tribunal Administrativo Especial (ou Tribunal
Especial do Litígio Administrativo), extinto em 1948, processava e julgava, dos contra a Administração Pública chinesa, inclusive
com exclusividade (obstada, portanto, a interveniência do Poder Judiciário),
feitos relacionados a supostas medidas ilegais praticadas por autoridades suas agências administrativas (FANG, 2013, p. 1-12, p.
do Poder Executivo, de que resultava, naquela tessitura constitucional, 102-159; LI, 2015a, p. 398-399; LI, 2015b, p. 171; LI,
a interdição à revisão judicial dos atos administrativos (JAPÃO, 2015c;
MATSUI, 2015, p. 17; OHNESORGE, 2015, p. 115). Apesar do atual panorama 2015c, p. 150-166; LI, 2015d, p. 810).
constitucional do Japão, inaugurado em 1946, o Conselho de Reforma
do Sistema Judiciário nipônico (shihōkaikaku iinkai), em junho de 2001, Em suma, a Justiça Administrativa da República
ao influxo da intenção do Governo japonês de adotar políticas públicas
de estímulo à eficiência estatal, com vistas à retomada do crescimento Popular da China cinge-se aos órgãos de segurança
econômico, expediu recomendações finais destinadas ao Primeiro-Ministro pública (LI, 2015c, p. 180).
do Japão, por intermédio das quais preconizou, entre outras propostas, o
advento de Tribunais administrativos ou de ramos especializados do Poder
Judiciário em matéria administrativa, com o desiderato de colmatar o
As normas gerais do Direito Administrativo san-
baixo desenvolvimento do controle jurisdicional da Administração Pública cionador chinês corporificam-se na Lei de Sanções Ad-
japonesa, déficit histórico que permanece na atualidade e reflete a tímida
presença do Direito Administrativo na formação jurídica e nas carreiras ministrativas (LSA)31 (CHINA, 2015g), sancionada em
jurídicas daquele país, bem como espelha a superlativa autocontenção do 17.3.1996, cujo caráter de lex generalis evidencia-se,
Poder Judiciário nipônico, no exercício do controle do Poder Executivo e dos
atos administrativos, o que tem se abrandado a partir de 2002, mediante a contrario sensu, na Lei das Sanções Administrativas
avanços discretos, ilustrado por interpretações judiciais mais dilatadas das
hipóteses de intervenção do Poder Judiciário elencadas na Lei de Litígios
de Segurança Pública (LSASP),32 sancionada quase dez
em Matéria Administrativa (tradução livre inspirada na tradução anglófona,
Administrative Case Litigation Act (LCLA)), a Lei nº 139, de 16.5.1962, e pela
reforma de 2004 de tal diploma legislativo (também alterado em 1989, 1996, 31. Em língua inglesa, traduzida como Law of People´s Republic of China
1999 e 2007), ante a influência, entre outros fatores, das recomendações Administrative Penalty. Aprovada em 17.3.1996, pela quarta sessão da
finais de tal Conselho (JAPÃO, 2015a; MATSUI, 2015, p. 18-19; NOTTAGE; Oitava Assembleia Nacional Popular, e sancionada na mesma data, por
GREEN, 2015, p. 130, 134-135, 138, 141-143; OHNESORGE, 2015, p. 120- meio da Ordem nº 63 do Presidente da RPC (CHINA, 2015g).
121). Ante essa compleição constitucional do Japão, debate-se, em sua
comunidade jurídica, como alternativa à Justiça Administrativa, a gênese de 32. Em língua inglesa, traduzida como Law of the People’s Republic of China
novos órgãos jurisdicionais especializados do Poder Judiciário (a exemplo on Penalties for Administration of Public Security. Aprovada em 28.8.2005,
dos ramos especializados em propriedade intelectual e em Direito de pela décima sétima reunião do Comitê Permanente da Décima Assembleia
Família, já existentes) e de agências reguladoras independentes (TSUJI, Nacional Popular, e sancionada em 1º.3.2006, por meio da Ordem nº 38
2015, p. 176-175, 171-170, paginação decrescente). do Presidente da RPC (CHINA, 2015m).

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anos depois, em 1º.3.2006,33 cujo art. 3º, por sua vez, que cerceiam a liberdade pessoal, no que se refere
prevê, nos casos omissos, a aplicação subsidiária da ao exercício não só da função normativa (prescrição
LSA em processos administrativos sancionadores de de tipos e punições administrativas, conforme atrás
segurança pública34 (CHINA, 2015m). explanado), como também da função jurisdicional
(aplicação de sanção administrativa no caso concreto):
Despontam, ainda, diplomas legislativos e atos conquanto, de modo genérico, o art. 20 da LSA confira,
administrativos normativos de abrangência local. em regra, aos órgãos administrativos dos Governos
Essa pluralidade de atos legislativos e administrativos Populares locais, a partir do nível de distrito, a com-
na esfera do Direito Administrativo Sancionador é petência jurisdicional para o exercício da potestade
inferida do Capítulo II (arts. 8 a 14) da própria Lei de sancionadora prevista na própria LSA, a parte final do
Sanções Administrativas, intitulado “Tipos e Criação seu art. 16 adstringe aos órgãos de segurança pública
de Sanções Administrativas”, do qual se depreende, a competência para impor penalidades administrati-
inclusive, a possibilidade jurídica de normas adminis- vas restritivas da liberdade pessoal.
trativas e legislações locais inovarem a ordem jurídica,
ampliando, para além do Direito Legislado, o leque de À luz do referido art. 20 da LSA, depreende-se que
penalidades administrativas (CHINA, 2015g). a potestade administrativa sancionadora abrange não
apenas o Governo Central, mas também as unidades
Em outros dizeres, na seara do Direito Administra- administrativas situadas nos primeiros níveis de maior
tivo sancionador chinês, mitigam-se os princípios da relevância político-administrativa abaixo do Governo
legalidade em sentido estrito e da reserva de lei formal, Central, quais sejam o nível provincial (1º nível), o
na medida em que se faculta a criação de sanções nível prefeitural (2º nível) e o nível distrital ou de
administrativas, por meio de regras e regulamentos condado (3º nível).35
administrativos, salvo as punições limitadoras da liber-
dade pessoal (art. 10 da LSA). Permite-se o advento de Em consonância com os arts. 16 e 20 da Lei de
legislações locais a estatuírem sanções administrativas, Sanções Administrativas, de 1996, o art. 91 da Lei das
exceto as concernentes (1) à restrição da liberdade Sanções Administrativas de Segurança Pública, de
pessoal e (2) à cassação de licença de estabelecimento 2006, preceitua que as sanções administrativas em
empresarial (art. 11 da LSA) (CHINA, 2015g).
35. Acima do nível de condado ou distrital situam-se os níveis provincial
Ao mesmo tempo, confere-se a Ministérios e (1º nível) e prefeitural (2º nível), ao passo que abaixo do nível de condado
comissões vinculadas ao Conselho de Estado, assim ou distrital posicionam-se os níveis de cantão (4º nível) e de comuna ou
comunitário (5º nível). É que, a despeito da diversidade terminológica
como aos Governos Populares, a potestade normativa das traduções difundidas no Ocidente acerca da divisão administrativa
da China, verifica-se a predominância, atualmente, da classificação
de cominarem punições administrativas de (1) adver- de 5 (cinco) níveis (de cima para baixo): 1. Nível provincial (Shengji),
tência disciplinar e (2) multa, se silente a legislação em composto por (a) províncias, (b) regiões autônomas, (c) regiões especiais
administrativas (Hong Kong e Macau) e (d) Municipalidades diretamente
sentido amplo, isto é, nas circunstâncias em que se vinculadas ao Governo Central; 2. Nível prefeitural (Diji), composto por
denota faltante norma legal ou administrativa a coibir (a) cidades com estatura de Prefeituras, (b) Prefeituras, (c) Prefeituras
autônomas e (d) ligas; 3. Nível de condado ou nível distrital (Xianji),
o descumprimento de determinada espécie de ordem composto por (a) condados, (b) distritos, (c) cidades com estatura de
administrativa (arts. 12 e 13 da LSA) (CHINA, 2015g). condados, (d) Municípios ou distritos, (e) distritos especiais e (f) áreas
ou distritos florestais, bem como (g) condados autônomos, (h) bandeiras
Consoante assinalado em linhas anteriores, há e (i) bandeiras autônomas; 4. Nível de cantão (Xiangji), composto por
(a) cantões, (b) cidades, (c) subdistritos, (d) burgos, (e) distritos públicos
maiores limitações ao exercício do poder punitivo do oficiais, (f) cantões étnicos ou de nacionalidades, assim como (g) sumu e
Estado, quando se trata de sanções administrativas (h) sumu étnicos; 5. Nível de comuna ou nível comunitário (Cunji), cidades
com estatura de (a) comunas ou comunidades, (b) comitês ou grupos
de bairros, vizinhanças, vilas, povoados ou aldeias, (c) comunidades,
(d) comunidades residenciais, (e) bairros, (f) vilas, povoados ou aldeias
33. A Lei das Sanções Administrativas de Segurança Pública, por meio administrativas, (g) vilas ou aldeias naturais e (h) gacha. Assim se conclui
do seu art. 119, ab-rogou o diploma legislativo intitulado Regulamento mediante o cotejo entre (1) a padronização estabelecida em 2013, pelo
sobre Sanções Administrativas de Segurança Pública (em língua inglesa, Governo dos Estados Unidos da América, por meio do Comitê de Nomes
traduzida como Regulations of the People´s Republic of China on Estrangeiros (Foreign Names Committee) do Conselho sobre Nomes
Administrative Penalties for Public Security), de 5.9.1986, revisado em Geográficos dos Estados Unidos (United States Board on Geographic
12.5.1994 (CHINA, 2015m; CHINA, 2015q). Names), órgão interno da agência federal denominada Serviço Geológico
dos Estados Unidos (United States Geological Survey (USGS)), (2) as
34. Art. 3º da LSASP, in litteris: “Artigo 3º Aplicam-se as disposições desta classificações adotadas pelas Wikipédias de línguas francesa, espanhola,
Lei [Lei das Sanções Administrativas de Segurança Pública] ao processo italiana, inglesa e portuguesa e (3) a redação dos arts. 30 e 95 a 111 da
de aplicação de penalidades [administrativas] de segurança pública; e nos Constituição chinesa, de acordo com a tradução anglófona oficial de 2004
casos em que não forem aplicáveis as disposições desta Lei, aplicar-se-ão e a tradução lusófona não oficial de 1999 (China, 2015a; China, 2015b;
as pertinentes disposições da Lei da República Popular da China sobre Estados Unidos da América, 2015, p. 6-7; Wikipédia, 2015; Wikipedia,
Sanções Administrativas” (CHINA, 2015m, tradução livre nossa). 2015a; Wikipedia, 2015b; Wikipedia, 2015c).

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matéria de segurança pública serão aplicadas por Relativamente às prisões administrativas, de acordo
órgãos de segurança pública36 vinculados a Governos com a classificação doutrinária difundida em 2012 por
Populares do nível distrital ou superior, no âmbito Enshen Li, há quatro espécies: (1) Laodong Jiaoyang (“ree-
dos quais as delegacias de polícia poderão aplicar ducação por meio do trabalho”), (2) Shourong Jiaoyu (“de-
as sanções de advertência e multa até quinhentos tenção educacional”), (3) Qiangzhi Jiuedu (“reabilitação
iuanes37 (CHINA, 2015m). compulsória de drogas”) e (4) Zhi´an Juliu (“detenção para
Daí se percebe que o arcabouço normativo do a preservação da ordem pública”) (LI, 2015a, p. 398-399).
Direito Administrativo sancionador da China norteia-se No tocante a essa classificação divulgada em 2012
por ampla gama de atos normativos legais e infralegais, por Li, ressalva-se a posterior revogação, em 28.12.2013,
quer de alcance nacional, quer de abrangência local, de toda a legislação chinesa relativa à reeducação pelo
na qual prevalecem (1) os temperamentos à reserva trabalho (o denominado sistema Laojiao), de sorte que,
de lei formal e (2) a ampla autonomia normativa dos na atualidade, restam abolidas, no ordenamento jurídico
Governos Populares posicionados abaixo do Governo chinês, as sanções administrativas de trabalho forçado,38
Central, exceto quanto a sanções administrativas que cuja proscrição se atribui à finalidade do Presidente Xi
cerceiam a liberdade pessoal: trata-se matéria restrita Jinping de reformar o Estado chinês e o seu sistema polí-
ao Direito legislado das unidades administrativas de tico39 (CHINA, 2015c;40 DELURY, 2015).41
maior envergadura (de estatura igual ou superior ao
nível de distrito), cuja aplicação se comete, em caráter 38. Laojiao consiste na abreviatura da precitada locução Laodong Jiaoyang
exclusivo, aos órgãos de segurança pública (aos órgãos (LI, 2015a, p. 398). A “reeducação por meio do trabalho” (Laojiao) não
policiais vinculados a unidades administrativas de nível se confunde com a “reforma por meio do trabalho” (Laogai): enquanto
a primeira dizia respeito à sanção administrativa (a mais conhecida
igual ou superior ao de distrito reserva-se a aplicação espécie de prisão administrativa), expressão do poder decisório da Justiça
não só de sanções administrativas que tolhem o status Administrativa, composta por autoridades policiais, a segunda concerne à
sanção penal, decorrente de sentença penal prolatada pelo Poder Judiciário,
libertate, mas também a todas as punições adminis- ou seja, pela Justiça comum (KRINKEL; HURST, 2015, p. 474).
trativas relacionadas à segurança pública) (CHINA, 39. Em que pese o aparente caráter alvissareiro da abolição das punições
2015g; CHINA, 2015m; LI, 2015a, p. 398-399, 401-402; administrativas de trabalho forçado, o South China Morning Post (jornal
diário sediado em Hong Kong) noticiou, no primeiro semestre de 2014, a
LI, 2015b, p. 171). repressão política, por meio do aparato policial chinês, haver substituído
tais medidas administrativas por prisões provisórias de cunho processual
5.1 As prisões administrativas penal, de maneira que a perseguição política, via órgãos de segurança
pública, não teria diminuído, mas apenas substituído os trabalhos forçados
O Capítulo II da Lei das Sanções Administrativas pelas prisões cautelares (YU, 2015b). Antes, em novembro de 2013, na
influente Foreign Affairs, o historiador John Delury, especializado em
de Segurança Pública elenca 4 (quatro) espécies de assuntos chineses, já advertia para a permanência de outros meios estatais
sanções administrativas sob a égide de tal diploma de repressão política, a exemplo das demais espécies (atrás mencionadas)
de prisão administrativa, além da vigilância domiciliar e de julgamentos
legislativo: (1) advertência, (2) multa, (3) prisão ad- contra atos “subversivos” (DELURY, 2015). Harry Wu e Cole Goodrich –
ministrativa e (4) revogação de licenças baixadas por vinculados à Fundação Laogai (Laogai Foundation), destinada à pesquisa e
à denúncia da parcela das violações de direitos humanos levadas a efeito,
órgãos de segurança pública (CHINA, 2015m). na República Popular da China, por meio de prisões políticas –, em paper
publicado na primeira metade de 2014, vaticinaram que, se as autoridades
Já o Capítulo III da LSASP tipifica 4 (quatro) espécies policiais chinesas fossem privadas, em caráter absoluto, do poder de
de ilícitos, a título de infrações administrativas contra a decretar prisões administrativas prolongadas, aumentariam (como, de fato,
aumentaram, conforme o noticiado) os casos de prisões judiciais por ofensas
segurança pública em sentido amplo, é dizer, atos que políticas (WU; GOODRICH, 2015, p. 4). Randall Peerenboom, reconhecido
(1) perturbam a ordem pública (Seção 1), (2) prejudicam especialista no Direito chinês, alertou, em artigo jurídico publicado no
segundo semestre de 2014, para o perigo não só de que cresça o emprego
a segurança pública (Seção 2), (3) infringem direitos ati- (1) de outras espécies de prisão administrativa ou, ainda, (2) de prisões com
nentes à pessoa e à propriedade (Seção 3) e (4) obstam menor grau de regulamentação, mas também de que (3) outras hipóteses
legais de encarceramento sejam concebidas (PEERENBOOM, 2015, p. 203).
a administração social (Seção 4) (CHINA, 2015m).
40. Em 28.12.2013, na sexta sessão do Comitê Permanente da Assembleia
Nacional Popular da RPC, decidiu-se pela revogação da Resolução de
1º.8.1957, que chancelava o posicionamento à época do Conselho de
36. Segundo pesquisas estatísticas de Xin He, professor de Direito da Estado, favorável às penalidades de trabalho compulsório (CHINA, 2015c).
Universidade da Cidade de Hong Kong (City University of Hong Kong), No mês anterior, em 12.11.2013, o Comitê Central do Partido Comunista
veiculadas em artigo jurídico publicado no segundo semestre de 2014, a da China, ao trazer à baila nova plataforma de reformas, posicionou-se pela
maioria das matérias relativas a “pedidos de reconsideração administrativa” eliminação de todas as modalidades não apenas de prisões administrativas,
diz respeito ao Sistema de Segurança Pública, assim como a questões como também de prisões ilegais em geral (PEERENBOOM, 2015, p. 202).
relativas a recursos naturais do solo e ao bem-estar social e laboral (HE,
2015, p. 263). 41. A Agência de Notícias Xinhua (vinculada ao Governo chinês) atribuiu
a abolição do sistema Laojiao a 2 (dois) casos notórios, em que trabalhos
37. Optou-se pela grafia “iuane” (unidade da moeda chinesa, o atrás forçados foram aplicados com desvio de finalidade: (1) O caso de Tang Hui,
mencionado renminbi – RMB), tal como adotada pelo Dicionário Houaiss que protestara em público pela condenação à pena de morte das pessoas
da Língua Portuguesa (Instituto Antônio Houaiss, 2009). que sequestraram, estupraram e sujeitaram à prostituição compulsória sua

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A despeito de revogada, in totum, a disciplina externo, agravada pela frágil formação jurídica
jurídica das sanções de reeducação pelo trabalho, de parcela expressiva de membros do Poder Ju-
remanescem, no ordenamento jurídico da República diciário42 (e dos demais profissionais do Direito).
Popular da China, as demais espécies de prisões admi-
4. A dificuldade de aprimoramento dos
nistrativas, cujos regimes de execução, inspirados no mecanismos de accountability e de aplicação de
abolido sistema Laojiao, propendem ao arbítrio, aquém preceitos normativos que agasalham direitos e
dos padrões internacionais de proteção aos direitos hu- garantias dos administrados, devido (a) à resis-
manos (LI, 2015d, p. 813; WU; GOODRICH, 2015, p. 2). tência dos hierarcas do Ministério da Segurança
Permanecem, pois, relevantes estas críticas da lite- Pública43 e de líderes políticos provinciais e locais,
ratura especializada ao sistema punitivo administrativo (b) à exacerbada influência política de autori-
chinês (LI, 2015a, p. 398-399, 402-411; LI, 2015b, p. dades policiais, em detrimento da densidade
171-173, 208-209; LI, 2015d, 810-813; PEERENBOOM, política da Magistratura e dos integrantes do
2002, p. 9, 12, 17; WU; GOODRICH, 2015, p. 2-4): Ministério Público, e (c) à ascendência de líderes
políticos provinciais e locais sobre o aparato de
1. A vulnerabilidade à corrupção estatal e
segurança pública, em prejuízo do controle e do
à ingerência política, semeadas não apenas por
peso político do Governo Central.
integrantes do Partido Comunista e da comunida-
de empresarial, como também por autoridades 5. O desvirtuamento das prisões administra-
policiais que exercem cargos públicos ou pressão tivas. Embora devessem promover a educação
política em altos escalões governamentais e por moral e jurídica, a orientação profissional e o
líderes políticos influentes nos órgãos de segu- incentivo ao trabalho produtivo, denotam (a)
rança provinciais e locais. baixa eficácia no fomento à (re)inserção social
(ilustrada pela reincidência no (e o crescimento
2. A tendência de imposição de prisões ad-
do) consumo de drogas e prostituição) e (b) ser-
ministrativas por autoridades policiais pautada
vem de meio de persecução estatal a dissidentes
na invocação de atos administrativos normativos
políticos, a minorias étnicas, a segmentos religio-
de segurança pública, com esteio em ampla
sos e a pessoas classificadas como “riscos sociais”,
margem discricionária, à revelia de um efetivo
devido processo legal e do respeito aos marcos a exemplo da parcela de usuários de drogas e
constitucionais, sem a esclarecedora apresenta- prostitutas que, em razão de estarem desem-
ção de indícios fundados de conduta ilícita, nem pregados e desprovidos, na localidade em que
a posterior apuração dos fatos (sob o crivo do se encontram, de vínculos familiares e sociais,
contraditório e da ampla defesa), com tempo de recebem sanções administrativas mais rigorosas.
encarceramento extrajudicial, por vezes superior
6 O XINFANG ZHIDU: SISTEMA DE CARTAS E VI
(a) ao divisado, em abstrato, na norma jurídica
correspondente, (b) ou, em concreto, no ato SITAS
administrativo sancionatório, ou, ainda, à guisa No xinfang zhidu, também chamado de sistema
de comparação, (c) ao período máximo previsto de cartas (xin = carta) e visitas (fang = visita), bem
para prisões processuais penais.
3. A escassa possibilidade, mormente nos 42. O Estado chinês tem se empenhado em colmatar a deficitária formação
técnico-jurídica dos membros do Poder Judiciário. Em meados de 2005,
níveis locais, de haver, de modo efetivo, quer o cerca da metade do contingente de Magistrados da RPC possuía diploma
exercício, na via administrativa, do direito de de- de nível superior, crescimento de 6,9%, comparado com a década anterior
fesa, da assistência advocatícia e do recurso à ins- (LICHTENSTEIN, 2015, p. 24). O art. 9º, § 6º, da Lei dos Juízes da RPC, de
28.2.1995, conforme a redação insculpida pela sua reforma de 30.6.2001,
tância superior, quer a intervenção independente preconiza o treinamento técnico-jurídico dos Juízes que ingressaram na
e técnica do Poder Judiciário e, por conseguinte, Magistratura antes da entrada em vigência da lei reformadora de 2001, ao
a carência de mecanismos eficazes de controle mesmo que estabelece requisitos de escolaridade de nível superior e fixa
tempo mínimo de prática jurídica para os novos integrantes dos Tribunais
Populares, estatuindo especificamente para os novos integrantes dos
filha, então pré-adolescente de 11 anos de idade, bem como (2) o caso de Tribunais Populares Superiores e do Supremo Tribunal Popular requisitos
Ren Jianyu, servidor público de baixo escalão do Condado Autônomo de temporais diferenciados de prática jurídica, inversamente proporcionais
Pengshui Miao e Tujia, que reencaminhou, em rede social, mensagens em à titulação acadêmica (quanto maior a titulação acadêmica, menor o
prol da democratização da China e com críticas ao ex-líder político Bo Xilai, período mínimo indispensável de prévia prática jurídica) (CHINA, 2015f).
além de haver adquirido, pela Rede Mundial de Computadores, camisa
com os dizeres “Melhor morto que sem liberdade” (DELURY, 2015; WU; 43. Na literatura jurídica de língua inglesa, referido como “Ministry of
GOODRICH, 2015, p. 1-2). Public Security (MPS)” (WU; GOODRICH, 2015, p. 3).

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como de sistema de reclamações e petições, o cidadão sociedade chinesa, porquanto o serviço de cartas e
encaminha missiva ou solicita o agendamento de au- visitas deve (1) abarcar todos os níveis de Governos
diência, endereçado (1) a membro do Partido Comu- Populares (arts. 1º a 5º, 7º e 9º), (2) estender-se a
nista da China e/ou (2) a órgão público especializado organizações sociais, a sociedades empresárias e a
em receber essas petições administrativas, tais quais instituições situadas fora da estrutura dos Poderes
departamentos ou divisões de cartas e visitas (na de Estado (art. 49), notadamente quando se trata
ausência, por exemplo, em nível local, de repartições de reclamações quanto ao desempenho de agentes
públicas específicas, o administrado se reporta a fun- e entidades do setor público ou, ainda, de agentes
cionários públicos cujas atribuições dizem respeito a e entidades do setor privado que prestam serviços
esse mister), com a finalidade de levar ao conheci- públicos, atuam em matéria de interesse público ou
mento de hierarcas do Partido e/ou de autoridades são controlados pelo Estado (art. 14), e (3) ter como
estatais de alto escalão informações e ideias sobre destinatários (leia-se: autores de cartas e visitantes)
matérias de interesse público, assim como opiniões, cidadãos da RPC, estrangeiros, apátridas, pessoas ju-
sugestões e críticas sobre a atuação do Poder Públi- rídicas e demais organizações,44 inclusive estrangeiras
co, além de reclamações, recursos administrativos e (arts. 2º e 50) (CHINA, 2015e).
pleitos em geral, inclusive como caixa de ressonância
da insatisfação social com Governos Populares locais No contexto peculiar do sistema de cartas e visi-
e com a corrupção e a ineficiência na seara do Poder tas, o Dec. nº 431/2004, permite, em seu art. 2º, que
Judiciário (FANG, 2013, p. 1; LO, 2015, p. 120; MATSU- a manifestação do administrado materialize-se por
ZAWA, 2015, p. 82; WAYE; XIONG, 2015, p. 11, 24, 33; intermédio de informações, comentários, sugestões
WANG, 2015d, p. 155; WONG, 2015, p. 239). e reclamações, transmitidas via correspondência
(convencional), correio eletrônico (e-mail), fac-símile
Consiste em meio de pacificação social, contra-
(fax), telefonemas e visitas, entre outros (cuida-se de
peso às limitações do regime autoritário, por meio do
elenco exemplificativo) (CHINA, 2015e).
qual os Governos Populares e o Partido Comunista da
China estabelecem canais diretos de comunicação Em geral, de acordo com o art. 17 do Dec. nº
com a população, com o fim (1) de reforçar a confiança 431/2004, os meios de comunicação são em formato
no Estado chinês e na ideologia socialista difundida escrito, a exemplo de correspondência (convencional),
pelo PCC, (2) de atenuar o déficit de participação e-mail e fax, e, em caso de reclamações (em regra, escri-
popular nos processos decisórios estatais, (3) de mi-
tigar, de forma pontual e momentânea, as restrições 44. O Dec. nº 431/2004 não esclarece quais seriam as demais organizações
à liberdade de expressão e (4) de aproximar, autori- a que aludem os seus arts. 2º, 26 e 31, isto é, o ato normativo em tela
dades estatais e partidárias, dos diversos segmentos não dilucida em que consistem as organizações não enquadradas (ou
não enquadráveis) como pessoas jurídicas. O mesmo se percebe na Lei
da sociedade, ao conhecerem e, em determinadas si- do Processo Administrativo, a qual se refere, igualmente, não apenas a
tuações, atenderem demandas individuais e coletivas, pessoas jurídicas [“legal persons”], como também a outras organizações
[“other organizations”], a exemplo da atual redação (reformada em
salvaguardando direitos (à revelia, por vezes, das for- 2014) dos seus arts. 1º, 3º, 11, 25, § 2º, 26, § 4º, 29 e 40. Nesse sentido,
malidades do due process of law), informando-se, ao também, a Lei da Reconsideração Administrativa, arts. 1º, 2º, 5º, 6º, 7º,
9º, 10, 16, 19, 20 e 30. Apesar de parecer despicienda a menção à “outra
mesmo tempo, (5) acerca de relevantes questões de organização” ou a “outras organizações” (exempli gratia, arts. 2º, 26 e 31
interesse público, como também (6) da performance do Dec. nº 431/2004) e ainda que soe suficiente a referência genérica a
de agentes públicos de baixo escalão e de autoridades pessoas jurídicas, é crível a hipótese de que o emprego de tais expressões
jurídicas indeterminadas (“outra organização” ou “outras organizações”)
locais (MINZNER, 2015, p. 117-118, 135-136). tenha o propósito de incluir os entes despersonalizados no rol de autores
de cartas e de visitantes (Dec. nº 431/2004), bem como de autores quer
Atualmente, como reflexo da tentativa do Esta- de ações judiciais de Direito Administrativo, sob o pálio da Lei do Processo
do chinês de aproximar o sistema de cartas e visitas Administrativo, quer de requerimentos administrativos de reconsideração,
à moda chinesa, é dizer, com natureza jurídica de nítidos recursos
do formalismo próprio do devido processo legal, o hierárquicos, sob a égide da Lei da Reconsideração Administrativa. A
regulamento do xinfang zhidu consubstancia-se no plausibilidade de que essas expressões indeterminadas constituam
evidências da promoção, pelo Estado chinês, do amplo acesso aos seus
Dec. nº 431, baixado em 10.1.2004, pelo Conselho de sistemas de demandas e impugnações é fortalecida ao se constatar, no
Estado da RPC, cuja entrada em vigência ocorreu em amplo elenco de possíveis peticionários na seara do xinfang zhidu, a
presença, na qualidade de eventuais requerentes, não só de pessoas físicas
1º.5.2005 (CHINA, 2015e). e organizações de origem estrangeira, como também de apátridas, nos
termos do art. 50 do Dec. nº 431/2004, correspondente, neste aspecto,
O Dec. nº 431/2004 mantém a vocação do xinfang aos arts. 70 a 73 da redação original da LPA e ao art. 41 da LRA (CHINA,
zhidu de alta capilaridade na máquina estatal e na 2015e; CHINA, 2015h; CHINA, 2015l; CHINA, 2015j).

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tas, mas passíveis de serem verbais, reduzidas a termo processual, ensejará eventual protocolização, no igual
pelo órgão competente, em caso de apresentação oral, prazo de 30 (trinta) dias, de novo recurso hierárquico,
efetuada mediante visita, pelo interessado, ao serviço de direcionada, por sua vez, à autoridade imediatamente
cartas e visita, em vez do envio de correspondência ou da superior ao julgador do recurso hierárquico.46
protocolização de peça escrita), devem contemplar (mes- A apreciação do expediente administrativo, pela
mo as reclamações verbais, transcritas posteriormente) instância decisória de origem, deve ocorrer em 60
requisitos formais atinentes (1) à explicitação do nome (sessenta) dias, prorrogáveis, em casos complexos, pelo
do interessado e do seu endereço (equivalente, na práxis prazo inexcedível de 30 (trinta) dias (art. 33 do Dec.
processual brasileira, à qualificação do peticionário), as- nº 431/2004). Os eventuais julgamentos do recurso
sim como (2) dos seus pedidos, além (3) dos fatos e dos hierárquico e da revisão administrativa cingem-se ao
motivos em que se baseia (na prática forense brasileira, prazo mais exíguo de 30 (trinta) dias (arts. 34 e 35 do
estes últimos requisitos correspondem, em essência, às Dec. nº 431/2004). A revisão administrativa comporta,
razões de fato e de direito ínsitas à causa de pedir da no entanto, a realização de audiências, destituída de
petição inicial) (CHINA, 2015e). prazo normativo certo (art. 35 do Dec. nº 431/2004).
Conforme se infere do art. 16 do Dec. nº 431/2004, Uma vez indeferido o pedido de revisão administrativa,
os Governos Populares situados no nível distrital ou não serão conhecidas, pelo sistema de cartas e visitas,
de condado (3º nível de unidades administrativas) novas petições que, relativas àquele caso concreto,
ou acima (1º e 2º níveis de unidades administrativas, continuem a ecoar a mesma irresignação do autor (art.
de âmbitos provincial e prefeitural, respectivamente) 35 do Dec. nº 431/2004) (CHINA, 2015e).
deverão contar com departamentos administrativos Tradição imperial chinesa adaptada ao maoísmo
de cartas e visitas (CHINA, 2015e). na primeira metade da década de 1950,47 na qualidade
É possível, ainda, na forma do art. 16 do Dec. nº de ferramenta de governança espraiada por todos os
431/2004, que os Governos Populares situados no níveis de governo e todos os órgãos administrativos,
nível distrital ou de condado ou nos dois níveis acima, legislativos e judiciários da RPC, o sistema de cartas e
visitas, ao plasmar, em caráter extraoficial, meio alter-
bem como os Governos Populares do nível de cantão
nativo de impugnação de atos do Poder Público, não
ou cidade (4º nível de unidades administrativas)45
só mantém sua vitalidade nos dias atuais, mas também
designem equipes (unidades de atendimento) ou
experimenta o assoberbamento de demandas,48 diante
agentes públicos especializados no serviço de cartas
da insatisfação popular e de conflitos sociais crescentes
e visitas, os quais poderão fazer visitas ao local de (CAVALIERI, 2015, p. 4; HUMAN RIGHTS WATCH, 2015,
moradia do peticionário (art. 12), a fim de ter contato p. 8; LO, 2015, p. 120; MINZNER, 2015, p. 110-120;
presencial com o interessado e intercambiar com ele
ideias a respeito do objeto do expediente administra-
46. O atual regramento recursal do xinfang zhidu é referido, pela literatura
tivo (CHINA, 2015e). especializada, como sistema de duplo apelo: enquanto o primeiro recurso
hierárquico é nominado de fucha, o segundo recurso hierárquico se intitula
O sistema recursal, aos olhos dos arts. 34 e 35 do fuhe (MINZNER, 2015, p. 42).
Dec. nº 431/2004, traduz-se no Direito Público subjeti- 47. Para o aprofundamento das matrizes históricas e culturais do sistema
vo de que a decisão adotada pelo órgão administrativo xinfang zhidu, mostra-se oportuna a leitura da obra do historiador Qiang
Fang, tese de doutorado convertida em livro-texto, em que se debruçou
competente (incumbido de apreciar a matéria objeto sobre a evolução do sistema de cartas e visitas e de outros sistemas de
do requerimento ou de outro expediente da lavra do processamento e julgamento de demandas estatais, sejam administrativas,
sejam judiciais, durante o ciclo imperial (dinastia Zhou, de 1046 a 256
interessado, encaminhado ao órgão decisório pelo a.C., dinastia Han, de 202 a 220 a.C., dinastia Jin, de 265 a 420, dinastia
serviço de cartas e visitas) seja impugnada, no prazo do Estado de Wei, no Norte da China, de 386 a 584, dinastia Liang, de 502
a 557, dinastia Sui, de 589 a 618, dinastia Tang, de 618 a 907, dinastia
de 30 (trinta) dias, por intermédio de recurso admi- Song, de 907 a 1279, dinastia Mongol Yuan, de 1279 a 1368, dinastia
nistrativo revestido da natureza jurídica de recurso Ming, de 1368 a 1644, e dinastia Quing, de 1644 a 1911), bem como o
ciclo republicano de 1912 a 1949 (subdividido nos períodos de 1912 a
hierárquico, pois que dirigido à autoridade imedia- 1927 e de 1928 a 1949), a primeira fase da República Popular da China,
tamente superior, a qual, se não prover tal remédio de 1949 a 1982, e a quadra reformista, de 1982 em diante, com breves
considerações acerca do contexto posterior a 2005 (FANG, 2013, passim).
48. De acordo com a organização não governamental Human Rights Watch,
45. Sobre os níveis das unidades administrativas da RPC, confira nota de as estatísticas oficiais do Governo chinês informam que, de 2003 a 2007,
rodapé a respeito, consignada na seção deste artigo atinente à Justiça houve 10 milhões de expedientes administrativos deflagrados por usuários
Administrativa. do sistema de cartas e visitas (HUMAN RIGHTS WATCH, 2015, p. 8).

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WANG, 2015d, p. 155; WAYE; XIONG, 2015, p. 11, 24, crença (refutada, sob o prisma estatístico) de que
33; XIE, 2015, p. 24-25; ZHANG, 2015c, p. 4). o sistema de cartas e visitas é o mais eficiente na
resolução de conflitos.51
Desse modo, apesar da aparente similitude com
as ouvidoras dos órgãos públicos e entidades estatais 3. A tendência comportamental de parcela
brasileiras, o xinfang zhidu, em realidade, exprime, do povo chinês se valer do xinfang zhidu como
no mundo fático, para além da moldura formal deli- estratégia para burlar formalidades e balizas pro-
neada pelos seus marcos regulamentares, verdadeira cessuais dos sistemas administrativo e judiciário.
via oblíqua de ataque a atos estatais em geral, sejam 4. A visão popular de que o sistema de cartas
administrativos, sejam judiciais (em particular, deci- e visitas reveste-se de menor formalismo que
sões judiciais relacionadas a matérias administrativas outras instâncias estatais decisórias (adminis-
e, sobretudo, cíveis), em decorrência da conjunção trativas e judiciais), conjugada com a afinidade
dos seguintes fatores (CAVALIERI, 2015, p. 4; MAT- da sociedade chinesa com meios alternativos de
SUZAWA, 2015, p. 82; MINZNER, 2015, p. 125-126; resolução de conflito, porque imbuídos de apa-
PEERENBOOM, 2002, p. 9, 12, 17; WANG, 2015d, p. rência paternalista52 e conciliatória (ou de menor
155; WAYE; XIONG, 2015, p. 11, 24, 33; XIE, 2015, p. carga contenciosa), em prol do ideal da harmonia
25-26; ZHANG, 2015c, p. 4-8, 28, 64): social53 (a mediação, no sistema de cartas e visi-
tas, é divisada pelo art. 14 do Dec. nº 431/2004).54
1. O excesso de poder (em sentido amplo)49
fomentado pelo arcabouço regulatório e pela prá-
xis, (a) ao proporcionarem aos órgãos de cartas e 51. Segundo se conclui do cruzamento de informações feito por Taisu Zhang
(veiculado em artigo jurídico de sua autoria, publicado em 2006), com espeque
visitas dos Governos Populares a compleição típica nos levantamentos estatísticos registrados pela literatura especializada,
de esferas de controle da Administração Pública enquanto o sistema de cartas e visitas experimenta taxa de resolução de
conflitos da ordem de 0,2%, os litígios administrativos judicializados possuem
e do Poder Judiciário dotadas de potestade deci- taxa de sucesso de 20% a 30% (ZHANG, 2015c, p. 27-28).
sória, convolando aqueles Governos, de maneira 52. Reprisa-se: à luz da tradição paternalista chinesa, condiciona-se,
informal ou por força de regulamentos (por exem- culturalmente, o administrado a cultivar temor reverencial das autoridades
administrativas, qual criança receosa de contrariar a autoridade moral de
plo, atos regulatórios locais da década de 1990), seus pais, um dos motivos da relutância, verificada em parcela expressiva
em instâncias revisoras de atos administrativos e de cidadãos da RPC, de se impugnarem os atos administrativos nas
decisões judiciais, ou (b) expandindo, no âmbito vias administrativa e/ou judicial, conjugado, entre outros fatores, pelo
diminuto grau de consciência jurídica de segmentos da sociedade chinesa
local, o espectro de intervenção do Poder Judiciá- (PEERENBOOM, 2002, p. 9, 12).
rio, ao lhe conferirem atribuições coincidentes com 53. A aspiração a uma sociedade harmônica traduz influência, na cultura
competências próprias da Administração Pública.50 chinesa, do confucionismo, ajustada à propaganda político-ideológica do Partido
Comunista da China e do Governo Central (CHOUKROUNE, 2015, p. 497).
2. A baixa credibilidade dos órgãos judiciais 54. A promoção de mecanismos alternativos de resolução de conflitos
e administrativos, devido à formação técnica de- constitui política pública da RPC, com ressonância no Poder Judiciário,
abraçada, desde 2006, pelo Supremo Tribunal Popular, diretriz pretoriana
ficiente de seus quadros e à percepção popular consolidada mediante orientação jurisprudencial assentada em 6 .3.2007
de que se encontram contaminados de corrupção e em 24.7.2009, a ponto de configurar critério para a promoção de
Magistrados, os quais, quando não alcançam metas de conciliação,
(conjuntura agravada pela falta quer de remé- tornam-se suscetíveis de sanções disciplinares (CAVALIERI, 2015, p. 5-6;
dios judiciais eficazes, quer de imparcialidade e WAYE; XIONG, 2015, p. 20, 24-32). O art. 29, § 6º, da Lei dos Juízes da RPC
preconiza a premiação de Magistrados que se destacaram orientando as
independência do Poder Judiciário), somada à atividades dos Comitês Populares de Mediação (CHINA, 2015f). À vista
dessa tessitura, marcada pelo intervencionismo judiciário, em favor métodos
de resolução consensual de conflitos, o exercício da função jurisdicional
49. O excesso de poder em sentido estrito concerne à conduta do agente enfatiza a resolução da contenda, em detrimento da proteção de direitos
público de ir além do demarcado na regra de competência. Diz respeito à (WAYE; XIONG, 2015, p. 20-21). Destaca-se, ainda, a alvorada da Lei da
espécie do gênero abuso de poder, construção jurídica de matriz francesa Mediação Popular, de 28.8.2010 (em consonância com o art. 111 da
e italiana. O abuso de poder se biparte no excesso de poder e no desvio Constituição chinesa), a qual criou rede nacional de mediação, coordenada
de poder: enquanto que, no excesso de poder, o agente extrapola os pelo Departamento de Justiça do Conselho de Estado, em parceria com os
poderes previstos na regra de competência, no desvio de poder, embora Departamentos de Justiça dos Governos Populares locais correspondentes
proceda “nos limites de sua competência”, age com finalidade diversa da ao nível de condado ou distrito ou superior, encarregados, juntamente com
prevista na regra de competência (GARCIA, 2008, p. 306). No entanto, no as Cortes de Justiça locais, de orientar os Comitês Populares de Mediação,
parágrafo acima, a acepção de excesso de poder relaciona-se igualmente órgãos colegiados de base comunitária (compostos por moradores ou
à concentração em demasia de poder nos órgãos de cartas e visitas. habitantes das aldeias) incumbidos, de ofício ou por provocação, inclusive
em momento prévio à apreciação do caso concreto por órgão local do
50. Sintomática a informação, trazida a lume por Carl F. Minzner, Poder Judiciário ou do Sistema de Segurança Pública, de celebrar acordos
em artigo jurídico publicado em 2006, de que 70% dos expedientes extrajudiciais (passíveis de facultativa homologação judicial), invocando e
administrativos do serviço de cartas e visitas da Assembleia Nacional aperfeiçoando todos os meios lícitos de resolução alternativa de conflitos
Popular consubstanciam impugnações a decisões judiciais de primeira (inteligência dos arts. 5º, 7º, 11 e 17 do mencionado diploma legislativo)
instância (MINZNER, 2015, p. 119). (CHINA, 2015a; CHINA, 2015b; CHINA, 2015n).

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Em que pese o xinfang zhidu figurar como es- na possibilidade jurídico-processual de revisão judi-
coadouro da frustração popular com a Administração cial de sanções administrativas e de interferências
Pública e o Poder Judiciário chineses, a maioria dos estatais na atividade de empresa, na ordem econô-
expedientes não é respondida, silêncio administra- mica e no direito de propriedade.
tivo que serve de ensejo a protestos coletivos e a
Conquanto ausentes da RPC Tribunais Adminis-
reações violentas (MATSUZAWA, 2015, p. 82).
trativos especializados no controle dos atos admi-
7 CONCLUSÃO nistrativos, existe, desde a década de 1950, Justiça
Administrativa de Segurança Pública, presidida por
Embora a Constituição chinesa de 1982, refor- autoridades policiais, em que prepondera a ênfase
mada nos anos de 1988, 1993, 1999 e 2004, e as na Justiça substancial e na eficiente e flexível per-
leis infraconstitucionais defluentes da Assembleia secução dos ilícitos administrativos, em detrimento
Nacional Popular, em sua composição plenária, e seja do controle externo da atividade policial, pelo
do seu Comitê Permanente, situem-se no cume da Ministério Público e pelo Poder Judiciário, seja de
pirâmide normativa do ordenamento jurídico da formalidades e garantias processuais inerentes ao
República Popular da China, a maior influência na devido processo legal e ao Estado de Direito, déficit
modelação da legislação de Direito Administrativo de accountability que a torna mais vulnerável a ar-
chinesa deve-se, ainda, ao Conselho de Estado, seja bitrariedades.
no cumprimento de atribuições regulamentares
originárias, seja no exercício de função normativa As normas gerais do Direito Administrativo San-
delegada pela ANP, em virtude da inércia do Poder cionador chinês corporificam-se na Lei de Sanções
Legislativo quanto ao desempenho do controle Administrativas (LSA), sancionada em 17.3.1996, lex
abstrato de constitucionalidade, ao caráter ainda in- generalis secundada da Lei das Sanções Administrati-
cipiente do controle judicial do Poder Executivo, ao vas de Segurança Pública (LSASP), sancionada quase
desconhecimento, por segmentos do povo chinês, dez anos depois, em 1º.3.2006, bem como de atos
dos seus direitos e ao temor reverencial de admi- e administrativos normativos de abrangência local.
nistrados em relação a autoridades administrativas. O arcabouço normati vo do Direito Adminis-
A legislação administrativista também reflete os trativo sancionador da China norteia-se por ampla
efeitos das assimétricas regulamentações levadas a gama de atos normativos legais e infralegais, quer
efeito pelos Governos Populares locais, que detur- de alcance nacional, quer de abrangência local, na
pam o sentido e o teor dos marcos legais nacionais, qual prevalecem (1) os temperamentos à reserva de
demarcados pela ANP. lei formal e (2) a ampla autonomia normativa dos
A Lei do Processo Administrativo (LPA) con- Governos Populares posicionados abaixo do Gover-
substancia o diploma legislativo que disciplina as no Central, exceto quanto a sanções administrativas
impugnações judiciais contra atos concretos da Ad- que cerceiam a liberdade pessoal, já que se trata de
ministração Pública chinesa, a serem processadas e matéria restrita ao Direito legislado das unidades
julgadas pela Justiça comum (Tribunais Populares). administrativas de maior envergadura (de estatura
igual ou superior ao nível de distrito), cuja aplica-
A reforma de 2014 da LPA fomentou o direito à
ção se comete, em caráter exclusivo, aos órgãos de
efetiva tutela judicial, ao estabelecer mecanismos le-
segurança pública (aos órgãos policiais vinculados a
gais que dificultam seja o indevido não recebimento
unidades administrativas de nível igual ou superior
ou não conhecimento de ações judiciais dessa natu-
ao de distrito reserva-se a aplicação não só de san-
reza, seja estratagemas do Poder Executivo de obs-
ções administrativas que tolhem o status libertate,
truir a instrução probatória e o efetivo cumprimento
mas também a todas as punições administrativas
de eventuais condenações judiciais da Fazenda Pú-
relacionadas à segurança pública).
blica. Além disso, ampliou o rol exemplificativo de
ações cuja causa de pedir relacionem-se à alegação Ante a revogação, em 28.12.2013, de toda a
de ofensa, pela Administração Pública, a direitos e legislação chinesa relativa à prisão administrativa
interesses do jurisdicionado-administrado, com foco de reeducação pelo trabalho (o denominado sistema

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Laojiao, abreviatura de Laodong Jiaoyang), rema- Populares locais e com a corrupção e a ineficiência
nescem três espécies de prisões administrativas: (1) na seara do Poder Judiciário.
Shourong Jiaoyu (“detenção educacional”), (2) Qian-
Consiste em meio de pacificação social, con-
gzhi Jiuedu (“reabilitação compulsória de drogas”) e
trapeso às limitações do regime autoritário, por
(3) Zhi´an Juliu (“detenção para a preservação da or-
meio do qual os Governos Populares e o Partido
dem pública”), cujos regimes de execução, inspirados
Comunista da China estabelecem canais diretos de
no abolido sistema Laojiao, propendem ao arbítrio,
comunicação com a população, com o fim (1) de
aquém dos padrões internacionais de proteção aos
reforçar a confiança no Estado chinês e na ideologia
direitos humanos.
socialista difundida pelo PCC, (2) de atenuar o déficit
O microssistema de prisões administrativas de participação popular nos processos decisórios
tende à corrupção estatal e à ingerência política, à estatais, (3) de mitigar, de forma pontual e momen-
ampla margem discricionária da autoridade policial, tânea, as restrições à liberdade de expressão e (4)
à ausência de meios eficazes de controle admi- de aproximar autoridades estatais e partidárias dos
nistrativo e judicial, à realização de prisões ilegais diversos segmentos da sociedade, ao conhecerem e,
(com frequência, desprovidas de indícios fundados em determinadas situações, atenderem demandas
de conduta ilícita e de motivação que evidencie a individuais e coletivas, salvaguardando direitos (à
adequação e necessidade do cerceamento da liber- revelia, por vezes, das formalidades do due process
dade de locomoção e, ao mesmo tempo, imbuídas of law), informando-se, ao mesmo tempo, (5) acerca
de longo período de encarceramento, sem prévio de relevantes questões de interesse público, como
julgamento ou efetiva investigação dos fatos, em também (6) da performance de agentes públicos de
dissonância com as balizas do devido processo legal baixo escalão e de autoridades locais.
e do direito de defesa), e, lado outro, encontra-se O sistema de cartas e visitas, ao plasmar, em
propenso a resultar em baixa (re)inserção social dos caráter extraoficial, meio alternativo de impugna-
sancionados e no desvirtuamento de suas finalidades ção de atos do Poder Público, não só mantém sua
reeducacionais, em prol da repressão incondicionada vitalidade nos dias atuais, mas também experimenta
a opositores políticos do Estado chinês e do Partido o assoberbamento de demandas, diante da insatis-
Comunista da China, assim como a minorias, margi- fação popular e de conflitos sociais crescentes. O
nalizados, usuários de drogas e prostitutas. xinfang zhidu exprime, no mundo fático, para além
No xinfang zhidu, também chamado de sistema da moldura formal delineada pelos seus marcos
de cartas (xin = carta) e visitas (fang = visita), bem regulamentares, verdadeira via oblíqua de ataque a
como de sistema de reclamações e petições, o cida- atos estatais em geral, sejam administrativos, sejam
dão encaminha missiva ou solicita o agendamento judiciais (em particular, decisões judiciais relaciona-
de audiência, endereçado (1) a membro do Partido das a matérias administrativas e, sobretudo, cíveis).
Comunista da China e/ou (2) a órgão público espe-
cializado em receber essas petições administrativas, REFERÊNCIAS
tais quais departamentos ou divisões de cartas e AFONSO DA SILVA, Luís Virgílio. Nota do tradutor.
visitas (na ausência, por exemplo, em nível local, In: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.
de repartições públicas específicas, o administrado Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Ma-
se reporta a funcionários públicos cujas atribuições lheiros, 2008. p. 8-13. (Teoria & Direito Público, v. 1)
dizem respeito a esse mister), com a finalidade de
BALME, Stéphanie; DOWDLE, Michael W. Intro-
levar ao conhecimento de hierarcas do Partido e/ou
duction: Exploring for constitutionalism in 21st cen-
de autoridades estatais de alto escalão informações
tury China. In: BALME, Stéphanie; DOWDLE, Michael
e ideias sobre matérias de interesse público, assim
(Ed.). Building constitutionalism in China. New York:
como opiniões, sugestões e críticas sobre a atuação
Palgrave Macmillan, 2009. Cap. 1, p. 1-20.
do Poder Público, além de reclamações, recursos ad-
ministrativos e pleitos em geral, inclusive como caixa BRUNET, Antoine; GUICHARD, Jean-Paul. O
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24
JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

A arbitragem nos contratos da Administração Pública


e a Lei nº 13.129/2015: novos desafios

Rafael Carvalho Rezende Oliveira


Doutor em Direito pela UVA/RJ; Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ; Pós-graduado em Direito do Estado pela Uerj;
Procurador do Município do Rio de Janeiro; Professor do IBMEC/RJ, da Emerj e dos cursos de Pós-graduação da FGV/RJ e Ucam; Membro do Idaerj;
Consultor Jurídico

1 Introdução. 2 Mecanismos de resolução de conflitos administrativos: negociação, mediação, arbi-


tragem e os dispute boards. 3 A superação dos obstáculos tradicionais à arbitragem na Administra-
ção Pública. 3.1 A releitura do princípio da legalidade, eficiência e juridicidade. 3.2 A interpretação
adequada do princípio da indisponibilidade do interesse público no âmbito da Administração Pública
democrática e consensual. 3.3 O princípio da publicidade e a confidencialidade na arbitragem: uma
conciliação necessária. 3.4 Críticas e vantagens da arbitragem na Administração Pública. 4 Desafios
na interpretação e na aplicação da Lei nº 13.129/2015. 4.1 Arbitrabilidade subjetiva (Administração
Pública) e objetiva (direitos disponíveis). 4.2 Arbitragem de direito e a vedação da arbitragem por
equidade. 4.3 A publicidade da arbitragem na Administração Pública. 4.4 Regulamentação e autono-
mia federativa. 4.5 Cláusula compromissória e compromisso arbitral. 4.6 Arbitragem e a relativização:
prerrogativas administrativas. 4.7 Arbitragem ad hoc ou institucional. 4.8 Árbitro ou Tribunal arbitral.
4.9 Escolha do árbitro ou instituição arbitral: inexigibilidade de licitação. 5 Conclusões. Referências.

1 INTRODUÇÃO 2 MECANISMOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS


O presente artigo pretende abordar a utilização ADMINISTRATIVOS: NEGOCIAÇÃO, MEDIAÇÃO,
da arbitragem em contratos celebrados pela Admi- ARBITRAGEM E OS DISPUTE BOARDS
nistração Pública. Inicialmente, é necessário destacar que a arbi-
Ressalvadas algumas previsões legislativas es- tragem revela importante instrumento de resolução
peciais, o tema não era expressamente previsto na extrajudicial de conflitos.
Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem), o que gerava Destacam-se, como principais métodos alterna-
debates doutrinários sobre a juridicidade da arbitra- tivos ao Poder Judiciário de solução de conflitos (Al-
gem nos contratos da Administração. ternative Dispute Resolution – ADR’s), a negociação,
Todavia, a Lei nº 13.129, publicada no DOU do a mediação, a conciliação e a arbitragem.
dia 27.5.2015, alterou a Lei de Arbitragem para es- A negociação, a mediação e a conciliação são
tabelecer, de forma expressa, que a Administração formas de autocomposição de conflitos, uma vez
Pública direta e indireta, por meio da autoridade que as partes, com ou sem o auxílio de terceiro,
competente para realização de acordos e transações, solucionarão suas controvérsias.
poderá estabelecer convenção de arbitragem de
direito (e não por equidade) para dirimir conflitos Na negociação, as próprias partes buscam a
relativos a direitos patrimoniais disponíveis, respei- solução do conflito, sem a participação de terceiros.
tado o princípio da publicidade (art. 1º, §§ 1º e 2º e Em relação à mediação e à conciliação, a dife-
art. 2º, § 3º, da Lei nº 9.307/1996). rença entre os instrumentos é tênue. Enquanto na
A recente alteração legislativa e a atualidade do mediação, o mediador, neutro e imparcial, auxilia as
tema justificam a análise das vantagens e dos limites partes na composição do conflito, na conciliação, o
da arbitragem nas contratações públicas. conciliador, mantida a neutralidade e imparcialidade,

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JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

pode exercer papel mais ativo na condução do diá- boards, utilizados de forma pioneira nos Estados
logo, apresentação de sugestões e na busca pelo Unidos na década de 1970, durante a construção do
acordo.1 Eisenhower Tunnel no Colorado. O dispute board,
também conhecido como Comitê de Resolução de
A arbitragem, por sua vez, representa forma
Conflitos, pode ser considerado órgão Colegiado,
de heterocomposição de conflitos, pois o terceiro,
geralmente formado por três experts, indicados pelas
expert e imparcial (árbitro), por convenção privada
partes no momento da celebração do contrato, que
das partes envolvidas, decide o conflito e não o
tem por objetivo acompanhar a sua execução, com
Estado-Juiz.2
poderes para emitir recomendações e/ou decisões,
A doutrina diverge sobre a natureza jurídica da conforme o caso.6
arbitragem, sendo possível mencionar três entendi-
A principal diferença entre a arbitragem e os
mentos: a) contratual ou privatista: sustenta a natu-
disputes boards está no fato de que, no primeiro
reza contratual da arbitragem, pois a sua instituição
caso, a disputa será submetida ao árbitro, que não
e os poderes do árbitro dependem da manifestação
integra ou acompanha a execução do contrato, e no
de vontade das partes;3 b) jurisdicional ou publicista:
segundo caso, a controvérsia será dirimida pelo Co-
defende a natureza jurisdicional do processo arbitral,
legiado de experts, que integra a relação contratual
uma vez que os árbitros são Juízes de fato e de direito
e acompanha a sua execução, com melhores condi-
que solucionam conflitos de interesse, cuja decisão
ções, em tese, de prevenir e solucionar problemas,
não está sujeita à homologação do Judiciário;4 e c)
em virtude da redução da assimetria de informações
intermediária ou mista: ao lado da autonomia de
e da celeridade da decisão.
vontade das partes na instituição e na definição
da extensão da arbitragem, destaca o seu caráter Os disputes boards, apesar da reduzida utiliza-
público, mas não estatal, no processo de solução ção no Brasil,7 podem representar um importante
e pacificação de conflitos.5 Adotamos, no presente instrumento de solução de controvérsias, especial-
ensaio, o terceiro entendimento. mente nos contratos de grande vulto econômico e
complexidade da Administração Pública, tal como
Além dos métodos tradicionais de resolução de
ocorre, por exemplo, nos contratos de infraestrutura.
conflitos, é possível mencionar, ainda, os dispute
Recentemente, três diplomas legais confir-
1. Sobre a distinção entre mediação e conciliação, vide: <http://www.cnj. maram a tendência na utilização de mecanismos
jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-mediacao>. Acesso em: 2 jun. 2015. extrajudiciais de solução de conflitos e pacificação
Em razão da importância da autocomposição de conflitos, o CNJ editou a
Resolução nº 125/2010 que dispõe sobre a política judiciária nacional de social. Ao lado da Lei nº 13.105/2015, que instituiu
tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Ju- o novo CPC e estabeleceu a arbitragem, a concilia-
diciário e prevê a oferta pelos órgãos judiciários de mecanismos de solu-
ções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como ção e a mediação como importantes instrumentos
a mediação e a conciliação. Destaque-se, ainda, a instituição da Câmara de solução de controvérsias (art. 3º, §§ 1º, 2º e 3º),
de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), no âmbito
da Advocacia-Geral da União (AGU), que tem procurado reduzir a litigio- vale destacar também a Lei nº 13.129/2015 e a Lei
sidade entre órgãos e entidades administrativas.
2. A previsão da arbitragem no ordenamento jurídico é antiga, cabendo 6. Sobre o tema, vide: WALD, Arnoldo. A arbitragem contratual e os
mencionar, exemplificativamente: Constituição/1824 (art. 160); Código dispute boards. In: Revista de arbitragem e mediação. v. 2, n. 6, 9-24,
Comercial/1850; Dec. nº 3.084/1898; Código Civil/1916 (arts. 1.037 e jul./set. 2005; VAZ, Gilberto José; NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Os
1.048); Dec.-Lei nº 2.300/1986 (art. 45); Código de Processo Civil/1973 dispute boards e os contratos administrativos: são os DBs uma boa
(arts. 1.072 e 1.102); Constituição/1988 (art. 114, § 1º); Lei nº 9.307/1996 solução para disputas sujeitas a normas de ordem pública? In: Revista
(Lei de Arbitragem); Código Civil/2002 (arts. 851 e 853); Código de Pro- de arbitragem e mediação. v. 10, n. 38, p. 131–147, jul./set. 2013. Na
cesso Civil/2015 (art. 3º, § 1º). forma do regulamento da International Chamber of Commerce (ICC),
3. BOLZAN DE MORAIS, José Luis; SPENGLER, F. M. Mediação e arbitragem: existem três tipos de dispute boards: a) Dispute Review Boards (DRBs):
alternativas à jurisdição! 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. emitem recomendações sobre determinada controvérsia, sem caráter
p. 183. vinculante imediato; b) Dispute Adjudication Boards (DABs): decidem as
controvérsias contratuais, com caráter vinculante; e c) Combined Dispute
4. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Boards (CDBs): emitem recomendações e, em determinados casos,
Lei nº 9.307/96. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 45; THEODORO JÚNIOR, decidem disputas contratuais. Disponível em: <http://www.iccwbo.org/
Humberto. A arbitragem como meio de solução de controvérsias. In: products-and-services/arbitration-and-adr/dispute-boards/dispute-
Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil. n. 2, nov./dez. 1999, p. 12. board-rules/#article_4>. Acesso em: 2 jun. 2015.
5. CÂMARA, Alexandre de Freitas. Arbitragem: Lei nº 9.307/96. 4. ed. Rio 7. Mencione-se, por exemplo, a utilização do dispute board na construção
de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 12-15. da linha amarela do Metrô de São Paulo.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

nº 13.140/2015, que trataram, respectivamente, da Conforme será demonstrado a seguir, os referi-


arbitragem e da mediação nas relações envolvendo dos obstáculos são apenas aparentes e não inviabi-
a Administração Pública. lizam a arbitragem na Administração.
No presente ensaio, destacaremos a utilização da
3.1 A releitura do princípio da legalidade, eficiência
arbitragem nas relações contratuais administrativas.
e juridicidade
3 A SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOS TRADICIONAIS O primeiro obstáculo normalmente apresen-
À ARBITRAGEM NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA tado à arbitragem nos contratos da Administração
Não obstante a constitucionalidade da arbitra- refere-se à ausência de autorização expressa na Lei
gem tenha sido declarada pelo STF,8 por ausência de de Arbitragem.
violação ao art. 5º, inc. XXXV da CRFB, permaneceu Trata-se de tese apoiada na interpretação tra-
o debate sobre a sua viabilidade jurídica nas relações dicional e liberal do princípio da legalidade admi-
jurídico-administrativas. nistrativa, segundo a qual a Administração Pública
O STF, em precedente anterior à Constituição somente pode fazer o que a lei autoriza.
(caso Lage), admitiu a arbitragem em relações fazen- Todavia, o princípio da legalidade deve ser rein-
dárias.9 Por outro lado, o STJ, ao tratar de contratos terpretado a partir do fenômeno da constitucionali-
celebrados por empresas estatais, admitiu a utilização zação do Direito Administrativo, com a relativização
da arbitragem nos respectivos ajustes.10 O TCU, em da concepção da vinculação positiva do administra-
algumas oportunidades, afirmou que a utilização da dor à lei.
arbitragem nos contratos administrativos, sem previ-
são legal específica, violaria o princípio da indisponi- Em primeiro lugar, não é possível conceber a
bilidade do interesse público.11 atividade administrativa como mera executora me-
cânica da lei, sem qualquer papel criativo por parte
Em resumo, é possível encontrar ao menos três do aplicador do Direito, sob pena de se tornar des-
obstáculos tradicionais à arbitragem nos contratos da necessária a atividade regulamentar. A aplicação da
Administração Pública: a) princípio da legalidade; b) lei, tanto pelo Juiz como pela Administração Pública,
indisponibilidade do interesse público; e c) princípio depende de um processo criativo-interpretativo,
da publicidade, que iria de encontro à confidenciali- sendo inviável a existência de lei exaustiva o bastante
dade, típica da arbitragem.12
que dispense o papel criativo do operador do Direi-
to. De fato, o que pode variar é o grau de liberdade
8. STF – SE 5.206 AgR/EP – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – Tribunal Pleno conferida pela norma jurídica.13
– DJ de 30.4.2004, p. 29 (Informativo de Jurisprudência do STF 254).
9. STF – AI nº 52.181/GB – Rel. Min. Bilac Pinto – Tribunal Pleno – DJ de Ademais, com a crise da concepção liberal do
15.2.1974, p. 720.
princípio da legalidade e o advento do Pós-positi-
10. STJ – REsp. nº 612.439/RS – Rel. Min. João Otávio de Noronha – 2ª vismo, a atuação administrativa deve ser pautada
Turma – DJ de 14.9.2006, p. 299; STJ – MS nº 11.308/DF – Rel. Min. Luiz
Fux – 1ª Seção – DJe de 19.5.2008. não apenas pelo cumprimento da lei, mas também
11. TCU – Decisão nº 286/1993 – Plenário – Rel. Min. Homero Santos – DOU pelo respeito aos princípios constitucionais, com o
de 4.8.1993; TCU – Acórdão nº 587/2003 – Plenário – Rel. Min. Adylson objetivo de efetivar os direitos fundamentais.
Motta – DOU de 10.6.2003; TCU – Acórdão nº 906/2003 – Plenário – Rel.
Min. Lincoln Magalhães da Rocha – DOU de 24.7.2003; TCU – Acórdão nº Desta forma, a legalidade não é o único parâme-
1099/2006 – Plenário – Rel. Min. Augusto Nardes – DOU de 10.7.2006. O
Tribunal, posteriormente, admitiu a arbitragem nos contratos celebrados tro da ação estatal que deve se conformar às demais
por sociedade de economia mista (Petrobras), versando exclusivamente normas consagradas no ordenamento jurídico. A
sobre “a resolução dos eventuais litígios a assuntos relacionados à sua
área-fim e a disputas eminentemente técnicas oriundas da execução dos legalidade encontra-se inserida no denominado
aludidos contratos”. TCU – Acórdão nº 2094/2009 – Rel. Min. José Jorge – princípio da juridicidade que exige a submissão da
DOU de 11.9.2009. Todavia, nessa última hipótese, os contratos não seriam
administrativos propriamente ditos, mas privados da Administração e, atuação administrativa à lei e ao Direito (art. 2º, pa-
portanto, submetidos, naturalmente, ao Direito Privado. rágrafo único, inc. I, da Lei nº 9.784/1999). Em vez
12. Registre-se que a PEC 29, que se transformou na EC nº 45/2004,
chegou a prever a proibição de utilização da arbitragem por entidades
de Direito Público, mas a vedação não foi aprovada e inserida na redação 13. GIANNINI, Massimo Severo. Derecho Administrativo. Madrid: MAP,
final da emenda. 1991. v. I, p. 111.

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JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

de simples adequação da atuação administrativa a X, da Lei nº 9.478/1997, art. 35, inc. XVI, da Lei nº
uma lei específica, exige-se a compatibilidade dessa 10.233/2001, art. 11, inc. III, da Lei nº 11.079/2004).
atuação com o chamado “bloco de legalidade”.14 Conforme afirmado anteriormente, a nosso ver,
O princípio da juridicidade confere maior im- a ausência de lei, com a previsão de utilização ampla
portância ao Direito como um todo, daí derivando da arbitragem em todos os contratos administrati-
a obrigação de se respeitar inclusive a noção de vos, não era fator impeditivo para sua efetivação,
legitimidade do Direito. A atuação da Administração uma vez que o art. 54 da Lei nº 8.666/1993 determi-
Pública deve nortear-se pela efetividade da Constitui- na a aplicação supletiva dos princípios da teoria geral
ção e deve pautar-se pelos parâmetros da legalidade dos contratos e das disposições de Direito Privado
e da legitimidade, intrínsecos ao Estado Democrático aos contratos administrativos.
de Direito.
É inerente ao contrato administrativo a possibi-
No tocante à arbitragem na Administração Públi- lidade de sua extinção antes do advento do termo
ca, sempre sustentamos que a ausência de previsão final, por razões de interesse público, por inadim-
expressa na Lei de Arbitragem não inviabilizaria a plemento das partes ou por outras razões previstas
utilização desse mecanismo de solução de controvér- em lei, sendo razoável admitir que o Poder Público,
sias, especialmente por permitir a melhor efetivação apoiado no princípio da eficiência administrativa e no
do princípio da eficiência.15 princípio da boa administração, estabeleça cláusula
No campo das contratações estatais, a arbitra- arbitral para solução eficiente (técnica e célere) das
gem em contratos privados da Administração Pública controvérsias contratuais.
(ex.: contratos celebrados por empresas estatais, Registre-se também que o art. 55, § 2º da Lei nº
contratos de locação em que a Administração é 8.666/1993, ao exigir a estipulação de “[...]cláusula
locatária) sempre contou com maior aceitação da que declare competente o foro da sede da Adminis-
doutrina e da jurisprudência, especialmente em tração para dirimir qualquer questão contratual [...]”,
razão da preponderância da aplicação do regime não impede a pactuação da arbitragem.16
jurídico de Direito Privado e pela ausência, em regra,
das cláusulas exorbitantes, na forma do art. 62, § 3º, Em verdade, a referida norma não exige que
inc. I, da Lei nº 8.666/1993. todas as controvérsias sejam dirimidas pelo Judiciá-
rio, mas apenas prevê a cláusula de eleição de foro,
Todavia, mesmo nos contratos administrativos, mesmo porque a arbitragem não afasta, de forma
a arbitragem representa uma solução eficiente para absoluta, a via jurisdicional (ex.: arts. 6º, parágrafo
solução de controvérsias contratuais que digam res- único; 11, parágrafo único; 13, § 2º; 20, §§ 1º e 2º;
peito às questões predominantemente patrimoniais 22-A, 22-C, 33). Em suma: a cláusula de eleição de foro
ou técnicas (direitos disponíveis). não é incompatível com a cláusula arbitral.17
Tanto é verdade que a arbitragem em contratos A utilização da arbitragem, por certo, produziria
administrativos já contava com previsão em diplomas consequências positivas para as partes contratantes,
legais específicos (ex.: art. 5º, parágrafo único, da Lei
nº 5.662/1971, arts. 5º e 23-A da Lei nº 8.987/1995,
16. A exigência contida no art. 55, § 2º da Lei nº 8.666/1993 é afastada
art. 93, inc. XV, da Lei nº 9.472/1997, art. 43, inc. nos seguintes casos: a) licitações internacionais para a aquisição de bens
e serviços cujo pagamento seja feito com o produto de financiamento
concedido por organismo financeiro internacional de que o Brasil faça
14. Sobre o princípio da juridicidade, vide: OTERO, Paulo. Legalidade parte, ou por agência estrangeira de cooperação; b) contratação com
e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à empresa estrangeira, para a compra de equipamentos fabricados e
juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003; ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho entregues no exterior, desde que para este caso tenha havido prévia
dúctil. Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2003. p. 39-40; MERKL, autorização do chefe do Poder Executivo; e c) aquisição de bens e serviços
Adolfo. Teoría general del Derecho Administrativo. Granada: Comares, realizada por unidades administrativas com sede no exterior (art. 32, § 6º
2004. p. 206; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A constitucionalização do c/c o art. 55, § 2º, ambos da Lei nº 8.666/1993).
Direito Administrativo: o princípio da juridicidade, a releitura da legalidade
administrativa e a legitimidade das agências reguladoras. 2. ed. Rio de 17. SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O cabimento da
Janeiro: Lumen Juris, 2010; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso arbitragem nos contratos administrativos. In: RDA n. 248, maio/ago. 2008,
de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 87. p. 123; CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário
à Lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 48-49; SALLES, Carlos
15. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos Alberto de. Arbitragem em contratos administrativos. Rio de Janeiro:
administrativos. 5. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 255-257. Forense, 2011. p. 245.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

especialmente por permitir que as disputas de pluralista, existem diversos interesses públicos e
contratuais, que envolvem interesses disponíveis, privados em constante conexão, de modo que natu-
sejam solucionadas por meio de Juízos técnicos, oriun- ralmente poderão emergir eventuais conflitos entre
dos de árbitros escolhidos pelas partes, e em espaço interesses considerados públicos (ex: a criação de
reduzido de tempo. uma hidrelétrica e a necessidade de desmatamento
de área florestal de conservação permanente), entre
Em nossa opinião, a previsão genérica da utiliza-
interesses denominados privados (ex: o direito à
ção da arbitragem por pessoas capazes, constante da
intimidade e o direito à liberdade de expressão) e
redação originária da Lei de Arbitragem, já legitima-
entre interesses públicos e privados (ex: a servidão
va, portanto, a adoção do instituto pela Administra-
administrativa de passagem estabelecida em imóvel
ção. De qualquer forma, em razão da celeuma sobre
particular para utilização de ambulâncias de deter-
o tema, inclusive nos órgãos de controle, é oportuna
minado nosocômio público).
a alteração promovida pela Lei nº 13.129/2015, que
permite de forma categórica a arbitragem na Ad- No âmbito do Estado Democrático de Direito, a
ministração Pública, conferindo segurança jurídica Administração Pública é caracterizada pelo consen-
à questão. sualismo na determinação e na efetivação das fina-
lidades públicas. Supera-se o modelo liberal “agres-
3.2 A interpretação adequada do princípio da sivo” de atuação da Administração por mecanismos
indisponibilidade do interesse público no âm- consensuais de satisfação do interesse público.18
bito da Administração Pública democrática e Em consequência, na eterna tensão entre auto-
consensual ridade e liberdade, a Administração Pública passa a
Outro obstáculo normalmente apresentado à atuar de forma mais concertada com os interesses da
arbitragem na Administração Pública seria o princípio sociedade, evitando o uso da coerção e prestigiando
da indisponibilidade do interesse público. o uso do consenso, da participação dos administra-
dos nas decisões públicas.
Contra a possibilidade de previsão contratual
da arbitragem, argumenta-se, por exemplo, que não Em vez de impor unilateralmente a sua vonta-
seria lícito ao particular (árbitro) decidir sobre o cor- de aos particulares, a Administração Pública deve
reto atendimento do interesse público inerente ao buscar, na medida do possível, o diálogo com os
contrato da Administração, cabendo ao agente pú- destinatários da decisão administrativa. Trata-se
blico a interpretação sobre a correta aplicação da lei. da substituição da “Administração autoritária” por
uma “Administração consensual”. A Administração
Contudo, a interpretação adequada do referido Pública, com essa nova fisionomia, deixa de lado os
princípio demonstra a compatibilidade da arbitragem atos unilaterais de imposição e passa a se utilizar de
nas relações jurídicas estatais. instrumentos consensuais, como os contratos, para
No âmbito de uma sociedade plural e demo- a satisfação das necessidades públicas.19
crática, é natural a existência de interesses públicos Por esta razão, proliferam os instrumentos de
diversos e eventualmente colidentes, cuja aplicação parcerias entre a Administração Pública e os parti-
depende da ponderação de interesses, o que justifica culares (ex.: contratos, contratos de gestão, termos
a disposição de determinados interesses em detri- de fomento, termos de colaboração etc).
mento de outros.
Em síntese, a própria celebração de acordos, em
Desta forma, o processo de interpretação e apli- sentido amplo, pela Administração Pública envolve
cação das normas jurídicas pelos agentes públicos naturalmente a disposição de interesses públicos,
envolve, em certa medida, disposição de interesses com a definição do caminho mais adequado para a
públicos.
E isso se dá porque, em verdade, nunca existiu 18. SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em busca do acto
administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003. p. 40.
um único “interesse público” e nem tampouco um
19. ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o Direito Privado: contributo
interesse privado, concebidos abstratamente e de para o estudo da actividade de Direito Privado da Administração Pública,
forma cerrada. Muito ao contrário, em uma socieda- Coimbra: Almedina, 1999. p. 44.

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satisfação do interesse público por meio das cláusu- A arbitragem, portanto, não se opõe ao interesse
las pactuadas.20 público. Ao contrário, o instituto pode ser o caminho
para o melhor atendimento do interesse público ao
Ainda que a arbitragem envolva a submissão
garantir a solução de base consensual e eficiente.
do conflito contratual à decisão do árbitro, terceiro
imparcial em relação às partes contratantes (hetere- 3.3 O princípio da publicidade e a confidencialidade
composição de conflitos), não se pode olvidar a exis- na arbitragem: uma conciliação necessária
tência da base consensual no acordo que submete
determinada avença à arbitragem.21 Por fim, outro óbice tradicional à arbitragem nas
relações administrativas é o princípio da publicida-
É inerente, no campo da contratação pública, de, consagrado no art. 37, caput, da CRFB, uma vez
que a Administração tenha certa margem de liberda- que as arbitragens são normalmente submetidas à
de para definir, inclusive, a melhor forma de solução confidencialidade.
das possíveis controvérsias que poderão surgir em
seus contratos, abrindo-se caminho para o processo Ocorre que a publicidade, em nosso sentir, não
inviabiliza a utilização da arbitragem nas contrata-
arbitral ao invés do processo judicial.
ções públicas.
Não se trata de dispor do interesse público para
Em primeiro lugar, a confidencialidade, ainda que
satisfazer outra categoria de interesse, mas de definir
seja comum nas arbitragens, não constitui caracterís-
o melhor caminho para atender o interesse público
tica obrigatória e impositiva do procedimento arbitral.
previamente definido nas cláusulas contratuais.22
Vale dizer: o interesse público já foi definido e dispos- A própria utilização da arbitragem depende,
to previamente pelo Estado e em ordem decrescente como visto anteriormente, do prévio consenso das
de abstração: Constituição, lei, atos regulamentares partes, que podem preferir a via arbitral, ainda que
e ato administrativo individual/contratos. haja a publicidade do procedimento, o que acontece-
ria, de qualquer forma, na via judicial. Nesse caso, as
O árbitro não dispõe sobre o interesse público, decisões, o julgamento e os demais atos praticados
mas se o contrato foi cumprido corretamente ou não devem ser públicos e transparentes.23
pelas partes.
Em segundo lugar, o princípio constitucional da
publicidade não impede o sigilo de documentos ou
20. Aliás, é tradicional a distinção entre interesse público primário e
secundário. No primeiro caso, o interesse público relaciona-se com a procedimentos em casos excepcionais. É o que ocorre,
necessidade de satisfação de necessidades coletivas (justiça, segurança por exemplo, nos próprios processos judiciais, sub-
e bem-estar) por meio do desempenho de atividades administrativas
prestadas à coletividade (serviços públicos, poder de polícia, fomento metidos ao segredo de Justiça, bem como em relação
e intervenção na ordem econômica). No segundo caso, o interesse aos documentos respaldados pelo sigilo e/ou reserva
público é o interesse do próprio Estado, enquanto sujeito de direitos e
obrigações, ligando-se fundamentalmente à noção de interesse do Erário, de jurisdição.
implementado por meio de atividades administrativas instrumentais
necessárias para o atendimento do interesse público primário, tais como Registre-se, neste ponto, que a Lei nº 12.527/
as relacionadas ao orçamento, aos agentes públicos e ao patrimônio 2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI), permite o
público. Os adeptos da dicotomia costumam afirmar a supremacia e
indisponibilidade do interesse público primário, mas não do secundário. sigilo em duas hipóteses: a) informações classifica-
ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del Diritto Amministrativo italiano. das como sigilosas, consideradas imprescindíveis à
2. ed. Milão: Giuffrè, 1960. p. 197. Sobre a discussão atual e releitura
do princípio da supremacia do interesse público, vide: OLIVEIRA, Rafael segurança da sociedade ou do Estado (art. 23); e b)
Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: informações pessoais relacionadas à intimidade, vida
Método, 2015. p. 35-38.
privada, honra e imagem (art. 31).
21. De forma semelhante, vide: TEPEDINO, Gustavo. Consensualismo na
arbitragem e teoria do grupo de sociedades. In: Revista Forense n. 903, Em consequência, a publicidade na arbitragem
Rio de Janeiro: RT, 2011. p. 9-26. envolvendo a Administração Pública não afasta a
22. Segundo Eros Grau, após afirmar que não há nenhuma correlação
entre disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais e
disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público conclui: “Daí 23. Alguns autores, como José Emilio Nunes Pinto, sustentam que o
porque, sempre que puder contratar, o que importa disponibilidade de princípio da publicidade determinaria apenas o envio de informações sobre
direitos patrimoniais, poderá a Administração, sem que isso importe o andamento do procedimento arbitral, envolvendo a Administração, aos
disposição do interesse público, convencionar cláusula de arbitragem”. órgãos de controle interno e externo. PINTO, José Emilio Nunes. A
GRAU, Eros. Arbitragem e contrato administrativo. In: RTDP, 32, São Paulo: confidencialidade na arbitragem. In: Revista de arbitragem e mediação,
Malheiros, 2000. p. 20. n. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 2005. p. 25-36.

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confidencialidade e o sigilo de atos e documentos Com efeito, as vantagens da arbitragem su-


que possam colocar em risco a segurança da socie- peram as críticas. Além da compatibilidade formal
dade ou do Estado ou que envolvam informações e material com a juridicidade, a utilização da arbi-
pessoais relacionadas à intimidade, vida privada, tragem nas relações jurídico-administrativas apre-
honra e imagem das pessoas. senta diversas vantagens, tais como: a) celeridade
e flexibilidade procedimental: prazos reduzidos,
3.4 Críticas e vantagens da arbitragem na Adminis- limitação de recursos e possibilidade de fixação das
tração Pública regras procedimentais pelas partes (arts. 21, 23 e
30 da Lei de Arbitragem); e b) tecnicidade, espe-
Conforme destacado nos tópicos anteriores, a
cialização e confiabilidade: a decisão arbitral possui
arbitragem na Administração Pública encontra res-
maior potencial de aceitabilidade pelas partes, que
paldo no ordenamento jurídico, o que foi ratificado
indicaram os árbitros de sua confiança, com elevado
pelo art. 1º, § 1º, da Lei de Arbitragem, alterado pela
conhecimento técnico (jurídico e/ou extrajurídico)
Lei nº 13.129/2015.
sobre o assunto objeto do julgamento (art. 13 da Lei
Isto não significa dizer que a utilização da arbi- de Arbitragem).
tragem nas relações estatais seja imune às críticas.
Em resumo, as principais desvantagens seriam: a) re- 4 DESAFIOS NA INTERPRETAÇÃO E NA APLICA
ceio quanto à independência dos árbitros e possível ÇÃO DA LEI Nº 13.129/2015
tratamento preferencial aos interesses privados em Não obstante os avanços trazidos pela Lei nº
detrimento dos interesses públicos; b) inexistência 13.129/2015, que afasta a polêmica da utilização da
de mecanismos institucionais de garantia de “coe- arbitragem pela Administração, é preciso destacar
rência jurisprudencial”, com a prolação de decisões que o legislador deixou diversas questões em aberto,
diferentes para casos semelhantes; e c) déficit de especialmente no tocante ao procedimento arbitral,
responsabilidade democrática (accountability).24 como será demonstrado nos tópicos seguintes.
Entendemos, no entanto, que as referidas críti-
4.1 Arbitrabilidade subjetiva (Administração Públi-
cas não possuem o condão de inviabilizar a arbitra-
ca) e objetiva (direitos disponíveis)
gem nas relações estatais. Quanto à independência
do árbitro, além de inexistir dados concretos que A arbitrabilidade, que significa a possibilidade
demonstrem a tendência ao tratamento preferencial de um litígio ser submetido à arbitragem voluntária,
aos interesses privados em relação aos interesses pode ser dividida em duas espécies: a) subjetiva
públicos ou a maior independência de Magistrados (ratione personae): refere-se às pessoas que podem
em relação aos árbitros, certo é que a imparcialida- se submeter à arbitragem e b) objetiva (ratione
de do árbitro seria garantida por meio do consenso materiae): diz respeito às questões que podem ser
das partes na sua escolha. No tocante à ausência de decididas por meio da arbitragem.25
“coerência jurisprudencial”, esse fator deve ser so- Em relação à arbitrabilidade subjetiva, o art. 1º
pesado pelas partes no momento em que decidirem da Lei de Arbitragem sempre permitiu a sua utiliza-
submeter a questão à arbitragem, mas de qualquer ção por pessoas capazes, regra que foi repetida no
forma o árbitro não deve desconsiderar a legislação art. 851 do Código Civil.
e a jurisprudência dominante, especialmente dos
Atualmente, o art. 1º, § 1º, da Lei de Arbitra-
Tribunais Superiores. Por fim, em relação ao déficit
gem, alterado pela Lei nº 13.129/2015, estabeleceu,
de responsabilidade democrática, a legitimidade da de forma expressa, a possibilidade de utilização da
arbitragem repousa na sua base consensual e não arbitragem pela Administração Pública direta e indi-
impede a atuação dos órgãos de controle (ex.: Tri- reta (arbitrabilidade subjetiva) para dirimir conflitos
bunais de Contas, Ministérios Público). relativos a direitos patrimoniais disponíveis (arbitra-
bilidade objetiva).
24. Sobre as vantagens e desvantagens da arbitragem, vide: CORREIA, J.
M. Sérvulo. A arbitragem dos litígios entre particulares e Administração
Pública sobre situações regidas pelo Direito Administrativo. In: Revista de 25. OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Arbitragem de litígios com entes públicos.
Contratos Públicos. Belo Horizonte, n. 5, set. 2014/fev. 2015, p. 177-184. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2015. p. 11-12.

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Desta forma, no tocante à arbitrabilidade sub- Nesse ponto, seria oportuno que a legislação
jetiva, as pessoas jurídicas de Direito Público (entes mencionasse expressamente a possibilidade de
da Federação, autarquias e fundações estatais de aplicação dos usos, costumes, equidade e regras
Direito Público) e as pessoas jurídicas de Direito Pri- internacionais do comércio nas arbitragens interna-
vado (empresas públicas, sociedades de economia cionais envolvendo a Administração Pública direta
mista e fundações estatais de Direito Privado) podem e indireta.28
prever a arbitragem como forma de solução de suas
controvérsias. 4.3 A publicidade da arbitragem na Administração
Quanto à arbitrabilidade objetiva, as questões Pública
submetidas à arbitragem devem envolver direitos A arbitragem na Administração Pública deve
patrimoniais disponíveis.26 Trata-se, a nosso ver, de respeitar o princípio da publicidade, na forma do
assunto inerente às contratações administrativas, art. 37, caput, da CRFB e do art. 2º, § 3º, da Lei nº
uma vez que o contrato é o instrumento que encerra 9.307/1996, alterada pela Lei nº 13.129/2015.29
a disposição, pela Administração, da melhor forma
de atender o interesse público. Saliente-se, ainda, que a publicidade e a transpa-
rência na atuação administrativa são fundamentais
Destarte, as questões que podem ser objeto da
para efetividade do controle social (sociedade civil)
contratação administrativa são, em princípio, dispo-
e institucional (Procuradorias estatais, Ministério
níveis, passíveis de submissão à arbitragem.27
Público, Tribunais de Contas etc.).
4.2 Arbitragem de direito e a vedação da arbitra- Conforme destacado anteriormente, a confiden-
gem por equidade cialidade do procedimento arbitral cede espaço para
Quanto aos critérios de julgamento, a arbitra- publicidade, inerente aos processos envolvendo a
gem pode ser dividida em duas espécies: a) arbitra- Administração Pública, o que não impede o sigilo em
gem de direito e b) arbitragem por equidade. situações excepcionais, quando houver em risco a
Nas questões envolvendo a Administração Pú- segurança da sociedade ou do Estado ou informações
blica, a arbitragem tem que ser de direito e não por pessoais relacionadas à intimidade, vida privada,
equidade, conforme expressamente previsto no art. honra e imagem das pessoas.
2º, § 3º, da Lei nº 9.307/1996.
4.4 Regulamentação e autonomia federativa
Trata-se de exigência respaldada no princípio
da legalidade, mas é oportuno destacar que, espe- É importante ressaltar desde logo que o mane-
cialmente no campo das arbitragens internacionais, jo da arbitragem para resolução de controvérsias
a utilização de critérios extralegais (costumes, equi- contratuais envolvendo a Administração decorre
dade etc.) é comum na solução das controvérsias,
o que é corroborado pelo art. 2º, § 2º, da Lei nº 28. Sustentamos, em outra oportunidade, a importância da aplicação
da lex mercatoria nas relações comerciais internacionais que envolvem
9.307/1996. o Estado, bem como a possibilidade de submissão à arbitragem como
forma alternativa de solução de lides. OLIVEIRA, Rafael Carvalho
Rezende. Princípios do Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Método,
26. O art. 852 do Código Civil dispõe: “É vedado compromisso para solução 2013. p. 49-50. Sobre a importância da lex mercatoria no “Direito
de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não Administrativo Global”, vide: KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico;
tenham caráter estritamente patrimonial”.
STEWART, Richard B. The emergence of Global Administrative Law. Law
27. De forma semelhante, Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara and Contemporany Problems, North Carolina: Duke University School
afirmam: “Com essa demarcação, a Lei de Arbitragem afastou de seu of Law, v. 68, n. 3 e 4, p. 17 e 29, 2005. Nos contratos de concessão do
âmbito de aplicação apenas os temas que não admitissem contratação petróleo, por exemplo, o art. 44, inc. VI, da Lei nº 9.478/1997 dispõe
pelas partes. Numa palavra, a lei limitou a aplicação do procedimento que o contrato estabelecerá que o concessionário estará obrigado a
arbitral às questões referentes a direito (ou interesse) passível de “adotar as melhores práticas da indústria internacional do petróleo e
contratação. 6 Para evitar confusão terminológica – que propicie um obedecer às normas e procedimentos técnicos e científicos pertinentes,
falso embate em face do princípio da indisponibilidade do interesse inclusive quanto às técnicas apropriadas de recuperação, objetivando
público –, passaremos a designar este requisito como a existência de um a racionalização da produção e o controle do declínio das reservas”.
direito negociável”. SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O
cabimento da arbitragem nos contratos administrativos. In: RDA n. 248, 29. No setor portuário, o art. 3º, inc. IV, do Dec. nº 8.465/2015 dispõe
maio/ago. 2008, p. 120. que “todas as informações sobre o processo serão tornadas públicas”.

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diretamente da Lei de Arbitragem e, portanto, não “convenção através da qual as partes submetem um
está condicionada à regulamentação.30 litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, poden-
do ser judicial ou extrajudicial” (art. 9º).
A desnecessidade de regulamentação para
implementação da arbitragem nas relações admi- Na primeira hipótese, a cláusula arbitral será
nistrativas não afasta, contudo, a pertinência da inserida no edital e na minuta do contrato admi-
edição de normas regulamentares, especialmente nistrativo. Na segunda hipótese, mesmo ausente a
pelo fato de que a Lei de Arbitragem, alterada pela previsão de arbitragem na avença, as partes, em co-
Lei nº 13.129/2015, deixou de abordar diversas mum acordo, submeterão a controvérsia contratual
questões que podem ser especificadas ou detalhadas à arbitragem.
no campo regulamentar tais como: viabilidade de
A cláusula compromissória se divide em duas
compromisso arbitral e desnecessidade de previsão
categorias: a) cláusula compromissória cheia: opção
no edital/contrato; relativização de prerrogativas
pela arbitragem, com a definição prévia das ques-
processuais; utilização da arbitragem ad hoc ou
tões relacionadas à instituição e ao procedimento
institucional; arbitragem monocrática ou Colegiado
arbitral (art. 5º da Lei de Arbitragem); e b) cláusula
arbitral; (des)necessidade de licitação para escolha
compromissória vazia (ou em branco): apenas define
do árbitro ou instituição arbitral; dentre outras
a submissão do contrato à arbitragem, sem qualquer
questões.
definição ou detalhamento sobre a instituição e as
Além da possibilidade de edição de decretos características do procedimento arbitral.
federais sobre o tema (ex.: Dec. nº 8.465/2015 que
dispõe sobre arbitragem no setor portuário), abre-se Mencione-se, ainda, a possibilidade de pac-
a possibilidade para edição de normas específicas tuação da denominada cláusula escalonada, que
estaduais, distritais e municipais sobre a matéria (ex.: determina a tentativa de solução da controvérsia por
Lei nº 19.477/2011 do Estado de Minas Gerais), desde meio da mediação antes da instauração da arbitra-
que respeitem as normas gerais da Lei de Arbitragem, gem (cláusula med-arb) ou durante o procedimento
uma vez que a arbitragem, nos contratos da Admi- arbitral (cláusula arb-med). Com isso, prestigia-se
nistração, envolve matéria inserida na competência a autocomposição dos conflitos, por meio da me-
legislativa concorrente dos entes da Federação. diação, inclusive nas hipóteses em que as partes
pactuaram a arbitragem.
4.5 Cláusula compromissória e compromisso ar- A partir da classificação acima, verifica-se que
bitral o problema da cláusula vazia é a impossibilidade de
De acordo com o disposto no art. 3º da Lei de instauração imediata da arbitragem para resolver
Arbitragem, a convenção de arbitragem é gênero que o conflito, pois inexistentes os elementos mínimos
se divide em duas espécies: a) cláusula compromis- para o procedimento arbitral, o que pode ensejar, in-
sória: “convenção através da qual as partes em um clusive, a propositura de ação judicial para definição
contrato comprometem-se a submeter à arbitragem da forma de instituição do Juízo arbitral (arts. 6º e
os litígios que possam vir a surgir, relativamente a 7º da Lei de Arbitragem). A cláusula compromissó-
tal contrato” (art. 4º);31 e b) compromisso arbitral: ria cheia, por esta razão, garante maior celeridade
ao procedimento, o que demonstra a sua utilização
30. Registre-se que, durante a tramitação do Projeto de Lei nº 7.108/2014, preferencial nos contratos administrativos.
foi debatida a necessidade de regulamentação da arbitragem para sua
aplicação por parte da Administração Pública. Todavia, o texto final da Não há consenso quanto à juridicidade de sub-
proposta não contou com tal exigência, o que ratifica a aplicabilidade direta missão de controvérsias contratuais ao compromisso
da arbitragem, independentemente de regulamentação.
arbitral, sem previsão, portanto, de cláusula arbitral
31. A cláusula compromissória se divide em duas categorias: a) cláusula
compromissória cheia: opção pela arbitragem, com a definição prévia no edital de licitação e no contrato.
de questões relacionadas à instituição e ao procedimento arbitral; e b)
cláusula compromissória vazia: apenas define a submissão do contrato à Existe o argumento de que o compromisso arbi-
arbitragem, sem nenhuma definição ou detalhamento sobre a instituição
e as características do procedimento arbitral. A cláusula compromissória
tral poderia acarretar vantagem ao contratado, que
cheia, como se percebe, garante maior celeridade ao procedimento. não foi disponibilizada no momento da realização

33
JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

da licitação aos demais interessados, o que violaria 4.6 Arbitragem e a relati vização: prerrogati vas
o princípio da impessoalidade.32 administrativas
Todavia, tem prevalecido a juridicidade do com- A estipulação de cláusulas exorbitantes nos
promisso arbitral nos contratos da Administração contratos da Administração não obsta a utilização
Pública, sob o argumento de que a resolução de da arbitragem. Nesse caso, o árbitro decidirá sobre
controvérsias contratuais envolvendo direitos dis- os efeitos patrimoniais oriundos da efetivação das
poníveis deve ser pautada pela melhor solução em referidas cláusulas.35
cada caso concreto.33 Ora, se é possível a resolução Ademais, algumas prerrogativas reconhecidas à
consensual de questões contratuais, inclusive com a Fazenda Pública não se aplicam ao processo arbitral,
celebração de acordos, com maior razão deve ser ad- senão vejamos:
mitida a escolha, pelas partes, da alternativa arbitral. a) inaplicabilidade dos prazos diferenciados
Ademais, a Lei de Arbitragem, ao tratar da Ad- (art. 188 do CPC/1973 e art. 183 do CPC/2015)
ministração Pública, utilizou a expressão genérica ao processo arbitral: o procedimento arbitral é
“convenção de arbitragem” (art. 1º, § 2º, da Lei de definido pelas partes na convenção de arbitra-
Arbitragem), gênero que inclui a cláusula e o com- gem ou, de forma supletiva ou por delegação
promisso arbitral, sendo certo que a forma arbitral das partes, pelo árbitro ou Tribunal arbitral, na
de solução de controvérsias decorre diretamente da forma do art. 21 da Lei de Arbitragem.
lei e deve ser considerada pelos interessados que b) ausência de reexame necessário (art.
participam da licitação.34 475 do CPC/1973 e art. 496 do CPC/2015) na
Sustentamos, por isso, que o compromisso arbi- arbitragem: não há previsão de duplo grau e de
recursos no processo arbitral, que é desenvol-
tral pode ser utilizado para solução de controvérsias
vido em única instância e a decisão arbitral não
administrativas. Todavia, revela-se interessante e
está sujeita à homologação judicial (art. 18 da
conveniente a estipulação prévia de cláusula arbitral
Lei de Arbitragem).
cheia nos editais e contratos administrativos, em razão
da maior celeridade ao procedimento, sem olvidar a c) ausência de isenção relativa à taxa judi-
maior facilidade de definição da forma de solução de ciária, custas ou emolumentos na arbitragem: os
controvérsias antes da própria existência do conflito. valores devidos ao Tribunal arbitral e aos árbitros
devem ser suportados pelas partes em razão dos
serviços prestados, sendo oportuno ressaltar que,
32. TCU – Decisão nº 286/1993 – Rel. Min. Homero Santos – DOU de
4.8.1993. no próprio processo judicial, a Fazenda Pública fica
33. Nesse sentido decidiu o STJ: “Processo civil. Recurso especial. Licitação.
sujeita à exigência do depósito prévio dos hono-
Arbitragem. Vinculação ao edital. Cláusula de foro. Compromisso rários do perito, na forma da Súmula nº 232/STJ.
arbitral. Equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Possibilidade. [...]
5. Tanto a doutrina como a jurisprudência já sinalizaram no sentido de que d) incompatibilidade das regras relacionadas
não existe óbice legal na estipulação da arbitragem pelo Poder Público, à fixação do valor dos honorários de sucumbência
notadamente pelas sociedades de economia mista, admitindo como
válidas as cláusulas compromissórias previstas em editais convocatórios no processo judicial (art. 20, § 4º do CPC/1973 e
de licitação e contratos. 6. O fato de não haver previsão da arbitragem no art. 85, § 3º do CPC/2015) ao processo arbitral:
edital de licitação ou no contrato celebrado entre as partes não invalida os honorários, na arbitragem, são definidos, em
o compromisso arbitral firmado posteriormente. [...] 11. Firmado o
compromisso, é o Tribunal arbitral que deve solucionar a controvérsia. princípio, pelo compromisso arbitral, conforme
12. Recurso especial não provido.” (STJ – REsp nº 904.813/PR – Rel. Min. previsto no art. 11, inc. VI, da Lei de Arbitragem.
Nancy Andrighi – 3ª Turma – DJe de 28.2.2012). De forma semelhante:
AMARAL, Paulo Osternack. Arbitragem e Administração Pública: aspectos e) inaplicabilidade do regime do precatório
processuais, medidas de urgência e instrumentos de controle. Belo ou da requisição de pequeno valor: a arbitragem
Horizonte: Fórum, 2012, p. 77 e ss. No setor portuário, o art. 6º, § 3º do
Dec. nº 8.465/2015 dispõe que “a ausência de cláusula compromissória revela procedimento extrajudicial de solução de
de arbitragem no contrato não obsta que seja firmado compromisso controvérsias, inexistindo, portanto, “senten-
arbitral [...]”.
ça judiciária” (art. 100 da CRFB). Assim como
34. TALAMINI, Eduardo. Arbitragem e Parceria Público-Privada (PPP). In:
TALAMINI, Eduardo; JUSTEN, Monica Spezia (Org.). Parcerias Público-
-Privadas: um enfoque multidisciplinar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 35. De forma semelhante, vide: LEMES, Selma M. Ferreira. Arbitragem na
2005. p. 351. Administração Pública. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 144.

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JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

ocorre nos pagamentos espontâneos de valores o que garante, em tese, maior segurança jurídica às
relativos aos contratos e acordos em geral, que partes. Além disso, a Câmara de Arbitragem tem a
não decorram de sentença judicial, o pagamento vantagem de contar com regulamento próprio e pres-
do valor definido na arbitragem independe de tar serviços de secretaria às partes, com a elaboração
precatório, salvo se houver necessidade de exe- de documentos, recebimentos das manifestações,
cução judicial da decisão arbitral condenatória, realização de audiências e outros atos que serão
que possui natureza jurídica de título executivo praticados ao longo do procedimento.37
extrajudicial (art. 31 da Lei de Arbitragem).
4.8 Árbitro ou Tribunal arbitral
4.7 Arbitragem ad hoc ou institucional
Na arbitragem, a controvérsia pode ser decidida
A Lei de Arbitragem, alterada pela Lei nº por árbitro único ou por Tribunal arbitral (três ou
13.129/2015, não tratou sobre a necessidade de mais árbitros, sempre em número ímpar).
instituição de arbitragem ad hoc ou institucional,
Apesar de a questão não ser abordada na Lei nº
o que, em princípio, confere discricionariedade ao
9.307/1996, entendemos que a arbitragem que envol-
administrador público para escolha por um desses
ve a Administração Pública não deve ser submetida,
caminhos em cada caso concreto.
em regra, à arbitragem monocrática, mas ao Colegiado
Enquanto na arbitragem ad hoc (ou arbitragem arbitral, formado por no mínimo três árbitros.
avulsa) o procedimento é definido pelas partes e/
Isto porque o debate por árbitros integrantes de
ou pelos árbitros, na arbitragem institucional (ou
colegiado arbitral tem maior potencial de qualificar
arbitragem administrada) as regras procedimentais
a decisão a ser proferida, que, enfatize-se, não será
encontram-se previamente definidas por determina-
submetida à revisão superior. O colegiado arbitral
da Câmara arbitral.
conferiria, portanto, maior legitimidade à decisão.
A arbitragem ad hoc teria, de um lado, a vanta-
É recomendável que os entes federados, em
gem de reduzir custos, uma vez que não haveria a
suas normas específicas, estabeleçam preferencial-
necessidade de contratação de instituição privada
mente a utilização de Colegiados arbitrais ao invés
(câmara de arbitragem) para prestação de serviços,
de árbitros isolados para solução de litígios oriundos
mas, de outro lado, a desvantagem de acarretar
de contratações administrativas, notadamente nos
insegurança para as partes, com a maior proba-
casos de grande vulto econômico.38
bilidade de impasses na definição e nas questões
cotidianas inerentes ao procedimento arbitral (exs.: 4.9 Escolha do árbitro ou instituição arbitral: inexi-
escolha da infraestrutura e dos recursos humanos gibilidade de licitação
para os serviços de secretaria; definição dos valores
dos honorários dos árbitros e forma de pagamento; Questão interessante envolve a necessidade ou
indefinição na escolha do árbitro presidente quando não de licitação para contratação do árbitro e/ou do
houver impasse entre os coárbitros indicados pelas Tribunal arbitral.
partes etc.), o que pode frustrar e/ou retardar a so- Inicialmente, é preciso destacar que o objeto
lução da controvérsia, bem como a propositura de da contratação possui grau de incerteza, seja na
ações judiciais para resolução de impasses.36 própria execução do serviço, que depende do sur-
Não obstante a discricionariedade administra- gimento da controvérsia contratual, seja no valor
tiva na definição do tema, entendemos que o ideal devido, que pode variar de acordo com a extensão
seria a utilização da arbitragem institucional, com a
escolha de Câmara de Arbitragem já existente, com 37. No Estado de Minas Gerais, por exemplo, o art. 4º da Lei nº
experiência e reconhecida pela comunidade jurídica, 19.477/2011 dispõe que o Juízo arbitral instituir-se-á exclusivamente por
meio de órgão arbitral institucional. De forma semelhante, o art. 4º, § 1º,
do Dec. nº 8.465/2015 prevê a preferência pela arbitragem institucional,
devendo ser justificada a opção pela arbitragem ad hoc.
36. Sobre as vantagens da arbitragem institucional em relação à arbitragem
ad hoc, vide: MUNIZ, Joaquim de Paiva. Curso de Direito arbitral: aspectos 38. Em âmbito federal, o art. 3º, inc. V, do Dec. nº 8.465/2015, que trata da
práticos do procedimento. 2. ed. Curitiba: CRV, 2014. p. 64; PEREIRA, Ana arbitragem no setor portuário, impõe a submissão ao Colegiado formado
Lucia. A função das entidades arbitrais. In: Manual de arbitragem para por no mínimo três árbitros, em questões cujo valor econômico seja
advogados. CEMCA/CFOAB, 2015. p. 88-91. superior a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais).

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

da controvérsia que será submetida ao Juízo arbitral, do certame, por si só, envolve custos), certo é que
vulto econômico e/ou complexidade técnica. a realização da licitação, após a instauração das
controvérsias, também teria o inconveniente de
Ademais, no tocante à arbitragem institucional,
gerar morosidade para instituição da arbitragem e,
cada Câmara de arbitragem possui regulamento
portanto, para solução da questão.
próprio, com regras sobre o procedimento arbitral,
bem como listagem de árbitros indicados às partes e Constata-se, com isso, que a contratação da Câ-
tabelas de taxas administrativas, honorários de árbi- mara e do árbitro envolve singularidade e indefinição
tros e outras despesas, o que demonstra a existência quanto à prestação exata do serviço. A inexistência
de variáveis que justificariam, em tese, a ausência de critérios objetivos para escolha de árbitros e de
de licitação.39 Câmaras distintas, com regulamentos arbitrais pró-
prios, revela inviabilidade de competição.
Outro fator determinante para escolha da
Câmara arbitral é a sua reputação, questão que A contratação dos árbitros, em princípio, não
envolve subjetividade incompatível com o processo se submete à licitação, uma vez que se trata de hi-
de licitação. pótese de inexigibilidade de licitação que encontra
fundamento no art. 25, inc. II, da Lei nº 8.666/1993.40
Além da contratação da Câmara de arbitragem,
o Poder Público deve indicar o árbitro, cuja notória Nesse sentido, por exemplo, o art. 7º, § 3º do
especialização, aliada à singularidade do caso, justi- Dec. nº 8.465/2015, que trata da arbitragem no
ficaria a inexigibilidade de licitação. setor portuário, dispõe que “a escolha de árbitro ou
de instituição arbitral será considerada contratação
Na hipótese de arbitragem submetida à análise direta por inexigibilidade de licitação [...]”.
de árbitro monocrático, a manifestação de vontade
É possível, por fim, a utilização do credencia-
do Poder Público não seria suficiente, pois depende-
mento por parte da Administração Pública. Após o
ria da concordância da outra parte. Ou seja: o Poder
cumprimento dos requisitos básicos e proporcionais,
Público e a sociedade empresária, que estão em
fixados pela Administração, todas as instituições ar-
conflito, contrariam o árbitro. Não se trata, portan-
bitrais poderiam realizar o credenciamento perante
to, de contrato tipicamente administrativo, mas de
o Poder Público. Nesse caso, a escolha da instituição
contrato celebrado pelo Poder Público e a sociedade
arbitral credenciada seria realizada, em cada caso,
empresária interessada de um lado e o árbitro como pelo particular interessado na resolução da disputa.41
contratado de outro lado.
Lembre-se que o credenciamento não pressu-
Em relação à arbitragem submetida ao Cole- põe a realização de licitação. A partir de condições
giado arbitral, a Administração Pública não tem o previamente estipuladas por regulamento do Poder
poder de estabelecer, isoladamente, todos os as- Público para o exercício de determinada atividade,
pectos do objeto contratado. Isto porque a escolha todos os interessados que preencherem as respecti-
do Presidente do Colegiado arbitral será realizada, vas condições serão credenciados e poderão prestar
normalmente, pelos dois árbitros indicados, cada os serviços. Não há, portanto, competição entre
um, pelas partes interessadas. interessados para a escolha de um único vencedor.42
Em qualquer caso, a licitação seria inconvenien-
te para o atendimento célere e eficiente do interesse 40. RIBEIRO, Maurício Portugal; PRADO, Lucas Navarro. Comentários à Lei
de PPP – Parceria Público-Privada: fundamentos econômico-jurídicos. São
público. De lado a impertinência de licitação para Paulo: Malheiros, 2007. p. 291.
contratação da arbitragem antes da existência da 41. Essa é a opinião, também, de Gustavo da Rocha Schmidt. Após
controvérsia, que revelaria a realização de despesas sustentar a inexigibilidade de licitação, com fulcro no art. 25, inc. II, da
públicas para objeto futuro e incerto (a realização Lei nº 8.666/1993, o autor sugere a possibilidade de credenciamento.
SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Arbitragens nos conflitos envolvendo a
Administração Pública. Texto pendente de publicação e gentilmente
cedido pelo autor.
39. Em sentido contrário, sustentando a necessidade de licitação para
contratação da instituição arbitral, vide: FITCHNER, José Antonio. A 42. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos
confidencialidade no projeto da nova lei de arbitragem – PLS nº 406/2003. administrativos. 5. ed. São Paulo: Método, 2015. p. 93; JUSTEN FILHO,
In: ROCHA, Caio Cesar Vieira; SALOMÃO, Luis Felipe (Coord.). Arbitragem e Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15.
mediação: a reforma da legislação brasileira. São Paulo: Atlas, 2015. p. 185 ed. São Paulo: Dialética, 2012. p. 49.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

5 CONCLUSÕES GRAU, Eros. Arbitragem e contrato administrati-


A juridicidade da utilização da arbitragem nos vo. In: RTDP, 32, São Paulo: Malheiros, 2000.
contratos da Administração Pública foi consagrada, JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à Lei de
definitivamente, pela Lei de Arbitragem, alterada Licitações e Contratos Administrativos. 15. ed. São
pela Lei nº 13.129/2015. Paulo: Dialética, 2012.
Entretanto, diversas questões permanecem em KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART,
aberto, o que revela a conveniência de fixação de Richard B. The emergence of Global Administrative
parâmetros pela doutrina e pelas normas regulamen- Law. Law and Contemporany Problems. North Ca-
tadoras que serão editadas pelos entes federados. rolina: Duke University School of Law, v. 68, n. 3 e
Por esta razão, o presente ensaio apresentou 4, 2005.
parâmetros que devem ser observados nas arbi- LEMES, Selma M. Ferreira. Arbitragem na Admi-
tragens envolvendo as contratações públicas, com nistração Pública. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
o objetivo de conciliar essa importante forma de
resolução extrajudicial de conflitos com os princípios MERKL, Adolfo. Teoría general del Derecho Ad-
da Administração Pública. ministrativo. Granada: Comares, 2004.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso
REFERÊNCIAS de Direito Administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro:
AMARAL, Paulo Osternack. Arbitragem e Admi- Forense, 2009.
nistração Pública: aspectos processuais, medidas de MUNIZ, Joaquim de Paiva. Curso de Direito
urgência e instrumentos de controle. Belo Horizonte: Arbitral: aspectos práticos do procedimento. 2. ed.
Fórum, 2012. Curitiba: CRV, 2014.
BOLZAN DE MORAIS, José Luis; SPENGLER, F. M. OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Arbitragem de li-
Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição! 2. tígios com entes públicos. 2. ed. Coimbra: Almedina,
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 2015.
CÂMARA, Alexandre de Freitas. Arbitragem: Lei OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Di-
nº 9.307/96. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 4. ed. 2005. reito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Método, 2015.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e proces- _____. Licitações e contratos administrativos. 5.
so: um comentário à Lei 9.307/96. 2. ed. São Paulo: ed. São Paulo: Método, 2015.
Atlas, 2004.
_____. Princípios do Direito Administrativo. 2.
CORREIA, J. M. Sérvulo. A arbitragem dos litígios ed. São Paulo: Método, 2013.
entre particulares e Administração Pública sobre
situações regidas pelo Direito Administrativo. In: _____. A constitucionalização do Direito Ad-
Revista de Contratos Públicos. Belo Horizonte, n. 5, ministrativo: o princípio da juridicidade, a releitura
set. 2014/fev. 2015. da legalidade administrativa e a legitimidade das
agências reguladoras. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o Direito
Juris, 2010.
Privado: contributo para o estudo da actividade de
Direito Privado da Administração Pública. Coimbra: OTERO, Paulo. Legalidade e Administração
Almedina, 1999. Pública: o sentido da vinculação administrativa à
juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003.
FITCHNER, José Antonio. A confidencialidade no
projeto da nova lei de arbitragem – PLS nº 406/2003. PEREIRA, Ana Lucia. A função das entidades ar-
In: ROCHA, Caio Cesar Vieira; SALOMÃO, Luis Felipe bitrais. In: Manual de arbitragem para advogados.
(Coord.). Arbitragem e mediação: a reforma da le- CEMCA/CFOAB, 2015.
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GIANNINI, Massimo Severo. Derecho Adminis- na arbitragem. In: Revista de arbitragem e mediação.
trativo. Madrid: MAP, 1991. v. I. n. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 2005.

37
JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

RIBEIRO, Maurício Portugal; PRADO, Lucas Na- TEPEDINO, Gustavo. Consensualismo na arbi-
varro. Comentários à Lei de PPP – Parceria Público- tragem e teoria do grupo de sociedades. In: Revista
-Privada: fundamentos econômico-jurídicos. São Forense n. 903, Rio de Janeiro: RT, 2011.
Paulo: Malheiros, 2007. THEODORO JÚNIOR, Humberto. A arbitragem como
SALLES, Carlos Alberto de. Arbitragem em con- meio de solução de controvérsias. In: Revista Síntese de
Direito Civil e Processual Civil. n. 2. nov./dez. 1999.
tratos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
VAZ, Gilberto José. NICOLI, Pedro Augusto Grava-
SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Arbitragens nos con- tá. Os dispute boards e os contratos administrativos:
flitos envolvendo a Administração Pública. Texto pen- são os DBs uma boa solução para disputas sujeitas a
dente de publicação e gentilmente cedido pelo autor. normas de ordem pública? In: Revista de arbitragem
SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. e mediação, v. 10, n. 38, p. 131–147, jul./set. 2013.
Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: WALD, Arnoldo. A arbitragem contratual e os
Almedina, 2003. dispute boards. In: Revista de arbitragem e mediação.
v. 2, n. 6, 9-24, jul./set. 2005.
SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arru-
da. O cabimento da arbitragem nos contratos admi- ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil. Ley,
derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2003.
nistrativos. In: RDA n. 248, maio/ago. 2008.
TALAMINI, Eduardo. Arbitragem e Parceria Pú- COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO:
blico-Privada (PPP). In: TALAMINI, Eduardo; JUSTEN, OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A arbitragem nos con-
Monica Spezia (Org.). Parcerias Público-Privadas: tratos da Administração Pública e a Lei nº 13.129/2015:
um enfoque multidisciplinar. São Paulo: Revista dos novos desafios. BDA – Boletim de Direito Administrativo,
Tribunais, 2005. São Paulo, NDJ, ano 33, n. 1, p. 25-38, jan. 2017.

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JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

O direito à nomeação imediata de candidato aprovado em um concurso público,


diante da desistência de outro em melhor colocação ou pelas vacâncias causadas
pelo pedido de exoneração ou demissão formulado pelos próprios candidatos
aprovados e nomeados no certame

Gustavo Brugnoli Ribeiro Cambraia


Procurador do Estado de Minas Gerais; Advogado

1 Introdução. 2 Sobre a previsão constitucional do instituto jurídico do concurso público. 3 Sobre o


direito do candidato aprovado em um concurso público de ser nomeado para ocupar o cargo ou o em-
prego público oferecido à população nesse certame e o entendimento do STF no RE nº 598.099/MS.
4 Sobre o direito dos candidatos aprovados fora do número das vagas oferecidas no concurso público
e o entendimento registrado no RE nº 837.311/PI. 5 Sobre o prazo que a Administração Pública possui
para convocar os candidatos nas hipóteses tratadas no RE nº 598.099/MS e no RE nº 837.311/PI. 6 Sobre
o prazo em que a Administração Pública deve convocar sucessivamente os candidatos aprovados em
um concurso público quando aqueles anteriormente nomeados pelo Poder Público não tomam posse.
7 Sobre as vacâncias ocorridas durante o prazo de validade de um concurso público, causadas pelo
pedido de exoneração ou demissão formulado pelos próprios candidatos aprovados e nomeados no
certame, quando ainda há candidatos classificados aguardando. 8 Sobre as possíveis exceções às regras
estabelecidas nos itens 6 e 7 desse estudo. 9 Conclusões. Referência.

1 INTRODUÇÃO Pública, de convocar os candidatos aprovados em


A regulamentação conferida ao instituto jurídico um certame público quando ocorrem vacâncias ou
do concurso público, previsto no art. 37, inc. II, da quando um candidato convocado não toma posse,
CF, ainda é insipiente. Não existe uma lei nacional foram deixadas de lado.
regulando esse tema e, apenas recentemente, o STF O primeiro problema diz respeito ao tempo con-
produziu dois1 leading cases, que abordam esse as- ferido à Administração Pública para convocar, suces-
sunto com maior profundidade. sivamente, os candidatos aprovados em um concurso
Nesses dois julgados produzidos pelo STF, foi público, quando aqueles anteriormente nomeados
mencionado o princípio da acessibilidade aos cargos pelo Poder Público não tomam posse.
públicos e foram apresentadas normas construídas A segunda dessas questões também se relaciona
pelo Poder Judiciário para regular o dever da Ad- com o tempo. Entretanto, ela diz respeito às vacân-
ministração Pública, direta ou indireta de convocar cias ocorridas durante o prazo de validade de um
candidatos aprovados dentro e fora do número de concurso público, causadas pela desistência de can-
vagas oferecidas em um certame público, em diversas didatos aprovados e nomeados no próprio certame,
situações distintas. quando ainda há candidatos classificados esperando
Entretanto, apesar desses recentes esforços uma convocação. Mesmo que o STF tenha abordado
realizados pelo STF, duas questões relevantes, que esse tema em um terceiro julgado,2 ele não esgotou
dizem respeito ao dever imposto à Administração o assunto.

1. (1) RE nº 598.099/MS e (2) RE nº 837311/PI. 2. RE nº 916.425/BA.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

Numa análise perfunctória, essas últimas ques- vo número de pessoas que servem ou laboram, chega
tões parecem guardar uma menor relevância, ante a ser surpreendente que tão pouca atenção tenha
os importantes temas enfrentados pelo STF nesses sido dispensada pelo legislador para esse importante
julgados. Mas essa impressão não é a mais adequa- instituto jurídico. É fato que deve haver um marco
da. Trata-se de temas extremamente sensíveis para legislativo claro e compreensivo regulando esse tema.
aqueles que se aventuram nos dificílimos concursos
Até hoje, apenas a doutrina e a jurisprudência
públicos que são oferecidos no Brasil.
debruçaram-se verdadeiramente sobre esse assunto,
Ademais, a resposta para todas elas parte da e o tratamento adicional dispensado pela Constitui-
análise do instituto jurídico previsto no já mencionado ção da República a esse instituto jurídico se limita a
art. 37, inc. II, da CF. normas pontuais, tais como aquelas estabelecidas
nos incs. III e IV do art. 37 da nossa Constituição,
2 SOBRE A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO INS verbis:
TITUTO JURÍDICO DO CONCURSO PÚBLICO
III – o prazo de validade do concurso público
Tal como foi dito anteriormente, o concurso pú- será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual
blico é um instituto jurídico previsto no art. 37, inc. II, período;
da CF, que possui a seguinte redação: IV – durante o prazo improrrogável previsto no
II – a investidura em cargo ou emprego público edital de convocação, aquele aprovado em concurso
depende de aprovação prévia em concurso público público de provas ou de provas e títulos será convo-
de provas ou de provas e títulos, de acordo com a cado com prioridade sobre novos concursados para
natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na assumir cargo ou emprego, na carreira;
forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para
Nesse ponto, é importante ressaltar que o edi-
cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação
tal funciona como uma verdadeira lei do concurso
e exoneração;
público, uma vez que nele são definidas as regras
A redação utilizada nesse dispositivo não é aci- que vinculam tanto os candidatos quanto a própria
dental. Salvo as excepcionais hipóteses expressamen- Administração Pública na condução do certame nele
te previstas na Constituição da República, em que um previsto. No entanto, não se pode esquecer que
cargo ou emprego público pode ser preenchido sem a essas regras são estabelecidas unilateralmente pela
prévia aprovação em um concurso público, tal como Administração Pública e, repita-se, com base em
ocorre, por exemplo, nas contratações temporárias ou parâmetros cujo tratamento pela legislação guarda
com as vagas reservadas aos advogados e membros pouca densidade.
do Ministério Público nos Tribunais ou no caso dos Dentre as principais questões esquecidas pela
ex-combatentes,3 as contratações realizadas pelo Po- principal fonte normativa do Direito encontra-se o di-
der Público devem ser precedidas da realização dessa reito do candidato aprovado em um concurso público
espécie de procedimento administrativo. de ser nomeado para ocupar o cargo ou o emprego
Esse procedimento administrativo, que deve ser público oferecido à população nesse certame.
aberto a todos os interessados e rege-se, essencial-
mente, através de um sistema meritório,4 representa 3 SOBRE O DIREITO DO CANDIDATO APROVADO
a principal via de acesso da população a cargos e EM UM CONCURSO PÚBLICO DE SER NOMEA
empregos públicos no País. DO PARA OCUPAR O CARGO OU O EMPREGO
PÚBLICO OFERECIDO À POPULAÇÃO NESSE
Ademais, considerando a enorme importância de CERTAME E O ENTENDIMENTO DO STF NO RE
diversas funções que são reservadas aos detentores Nº 598.099/MS
desses cargos e empregos públicos, além do expressi-
Apesar de o concurso público representar a
principal via de acesso aos mais diversos cargos e
3. Constituição da República, Ato das Disposições Constitucionais Transi-
tórias, art. 53, inc. I. empregos públicos, que compõem a estrutura da
4. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo.
Administração direta e indireta dos entes federados
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 503. do Brasil, até recentemente não havia certeza se o

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

candidato aprovado em um certame teria ou não o DF8 e o AgRgRE nº 306938/RS, além do próprio enun-
direito de ser nomeado pelo Poder Público. ciado nº 15 da Súmula do STF, verbis:
Desde antes da promulgação da Constituição da Dentro do prazo de validade do concurso, o can-
República de 1988, o entendimento em vigor era que didato aprovado tem o direito à nomeação, quando o
o candidato aprovado, dentro ou fora do número de cargo fôr preenchido sem observância da classificação.
vagas oferecidas pela Administração em um concurso Sobre esse assunto, também se faz oportuno re-
público, possuía apenas uma mera expectativa de ser gistrar a lição da autorizadíssima Maria Sylvia Zanella
nomeado pela Administração Pública.5 Logo, o Poder Di Pietro:9
Público poderia deixar de nomear os candidatos classi-
Durante muito tempo a jurisprudência adotou,
ficados em um certame público, dentro ou fora do nú- predominantemente, o entendimento de que “não há
mero das vagas oferecidas, se assim bem entendesse. direito adquirido à nomeação de candidato aprovado
Esse mesmo entendimento foi observado após em concurso público”.
1998, tal como consta na ementa do MS nº 21870/ O direito à nomeação só era assegurado nos casos
DF,6 verbis: de preterição, causada pela contratação de pessoal
Constitucional. Administrativo. Servidor públi- não aprovado em concurso público10 ou quando a
co. Concurso público. Direito à nomeação. Súmula Administração Pública nomeava candidatos fora da
15-STF. I. A aprovação em concurso não gera direito à ordem de classificação.11
nomeação, constituindo mera expectativa de direito.
Por outro lado, data venia, esse entendimento
Esse direito somente surgirá se for nomeado candidato
não aprovado no concurso ou se houver o preenchi-
vai de encontro ao comportamento que a sociedade
mento de vaga sem observância de classificação do espera do Poder Público, na condução de um pro-
candidato aprovado. Súmula 15-STF. II. Mandado de cedimento administrativo de tamanha importância.
segurança indeferido. Ora, quando o Poder Público convoca, através da pu-
blicação de um edital, interessados em desempenhar
No mesmo sentido, vale a pena citar o RE nº
determinado cargo ou emprego público, imagina-se
143807/SP,7 julgado em 1994, o AgRgAgI nº 501.573-1/
que os eventuais candidatos aprovados nesse concur-
so devam ser ulteriormente nomeados.
5. RE nº 87191/RJ – DJ de 17.3.1978. Ementa: 1. O art. 21 da Lei nº 4.881-a,
de 6.12.1965, foi revogado pelo art. 25 da Lei nº 5.539-68 2. Caso de mera Além de pagar o valor da inscrição nesse certame, os
expectativa de direito, e não de direito adquirido. 3. A Lei nº 4.929/1966 não
e aplicável aos concursos para seleção de pessoal docente de grau supe- candidatos de um concurso público precisam se dedicar
rior, como previsto nos arts. 10 e seguintes da Lei nº 4.881-a de 6.12.1965, ao estudo, sacrificando o convívio social e familiar, para
alguns dos quais foram revogados pelo art. 22 da Lei nº 5.539/1968, pois
esse outro concurso, regulado por normas especiais, tem sede jurídica lograr êxito nas dificílimas provas elaboradas pela Admi-
própria, cuja revogação deve ser feita em termos expressos ou diretos,
como se lê no par 2, do art. 2, da Lei de Introdução do Código Civil. 4. Re-
nistração. Logo, a Administração Pública só deve publicar
curso Extraordinário a que se nega conhecimento. um edital quando tiver certeza que precisa preencher as
6. DJ de 19.12.1994. vagas que anuncia. Do contrário, a Administração Pública
7. I. Concurso público: exigência incontornável para que o servidor seja investi- estaria abusando da boa-fé e da confiança daqueles que
do em cargo de carreira diversa. À vista da Constituição de 1988, consolidou-se se aventuram pelos concursos públicos.
definitivamente no STF que – ressalvado exclusivamente o provimento deri-
vado mediante promoção – que pressupõe a integração de ambos os cargos
na mesma carreira –, são inadmissíveis quaisquer outras formas de provimen-
to do servidor público, independentemente de concurso público, em cargo 8. Concurso público: direito à nomeação: Súmula nº 15/STF. Firmou-se o
diverso daquele do qual já seja titular a qualquer título, precedido ou não a entendimento do STF no sentido de que o candidato aprovado em con-
nova investidura de processo interno de seleção ou habilitação: precedentes. curso público torna-se detentor de mera expectativa de direito, não de
II. Direito Constitucional intertemporal: caso de direito adquirido inexistente. direito à nomeação: precedentes. O termo dos períodos de suspensão das
O provimento de cargo público, quando antecedido de qualquer modalidade nomeações na esfera da Administração Federal, ainda quando determi-
de seleção ou habilitação dos candidatos, é um procedimento, que só com o nado por decretos editados no prazo de validade do concurso, não impli-
ato final de nomeação ou equivalente gera direito à posse; antes – ainda que ca, por si só, na prorrogação desse mesmo prazo de validade pelo tempo
findo o processo seletivo – o provimento e a investidura são objeto, como é correspondente à suspensão (DJ de 26.8.2005).
curial, de mera expectativa de direito: por isso, frustra-as de imediato a super-
veniência de norma constitucional que subordine a validade do provimento 9. DI PIETRO, p. 600.
do cargo a processo seletivo diverso, qual o concurso público. Não sendo o 10. AI-AgR nº 777.644 – Rel. Min. Eros Grau – 2ª Turma – decisão unânime
provimento esperado um efeito jurídico, ainda que futuro, da seleção finda – DJe de 14.5.2010; e AI-AgR nº 440.895 – Rel. Min. Sepúlveda Pertence
sob o regime anterior, sequer será necessário cogitar de aplicabilidade ime- – 1ª Turma – decisão unânime – DJ de 20.10.2006.
diata ou retroatividade mínima da Constituição vigente: esta simplesmente
regerá os pressupostos de validade do ato de provimento a ser praticado na 11. SS-AgR nº 4196 – Rel. Min. Cezar Peluso – DJe de 27.8.2010 – Plená-
sua vigência: tempus regit actum (DJ de 14.4.2000). rio do STF.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

Outrossim, seria estranho se o Poder Público a) previsão em edital de número específico de


anunciasse a necessidade de provimento de cargos vagas a serem preenchidas pelos candidatos aprova-
públicos e, após a realização de um concurso público, dos no concurso público;
diante da lista concreta dos candidatos classificados, b) realização do certame conforme as regras
revelasse qualquer relutância em nomeá-los. Essa do edital;
conduta poderia ser interpretada como uma violação c) homologação do concurso e proclamação dos
ao princípio da impessoalidade, já que a Administra- aprovados dentro do número de vagas previsto no
ção só teria demonstrado a real falta de premência das edital, em ordem de classificação, por ato inequívoco
nomeações quando soube quem seria efetivamente e público da autoridade administrativa competente.
convocado.
Esse entendimento foi fundamentado, em grande
Aliás, essa atuação imprevisível da Administração parte, no princípio da acessibilidade aos cargos públi-
Pública relativa à nomeação dos candidatos também cos, desenvolvido pela Min. Cármen Lúcia Antunes
enfraqueceria o próprio instituto jurídico do concurso na sua obra Princípios constitucionais dos servidores
público. Ora, com toda essa imprevisibilidade, torna- públicos, tal como se observa nesse mesmo voto pro-
-se muito mais difícil atrair os melhores profissionais, ferido pelo Min. Gilmar Mendes no RE nº 598.099/MS:
que certamente pensariam duas vezes antes de inves-
O direito à nomeação constitui um típico direito
tir tantos recursos num certame público. Afinal, aos
público subjetivo em face do Estado, decorrente do
melhores candidatos não bastaria o mérito sem que
princípio que a Min. Cármen Lúcia, em obra doutriná-
ele viesse acompanhado de muita sorte.
ria, cunhou de princípio da acessibilidade aos cargos
A bem-vinda mudança do entendimento ante- públicos (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios
rior do STF veio com o julgamento do já mencionado constitucionais dos servidores públicos. São Paulo:
RE nº 598.099/MS. Aliás, veja-se o seguinte trecho Saraiva; 1999. p. 143). Na ordem constitucional brasi-
extraído do voto do Min. Gilmar Mendes, Relator leira, esse princípio está fundado em alguns princípios
desse recurso: informadores da organização do Poder Público no
Estado Democrático de Direito, tais como:
Assim, é possível concluir que, dentro do prazo
de validade do concurso, a Administração poderá a) o princípio democrático de participação polí-
escolher o momento no qual se realizará a nomeação, tica, que impõe a participação plural e universal dos
mas não poderá dispor sobre a própria nomeação, a cidadãos na estrutura do Poder Público, na qualidade
qual, de acordo com o edital, passa a constituir um de servidores públicos;
direito do concursando aprovado e, dessa forma, um b) o princípio republicano, que exige a partici-
dever imposto ao Poder Público. pação efetiva do cidadão na gestão da coisa pública;
De fato, se o edital prevê determinado número
c) o princípio da igualdade, que prescreve a igual-
de vagas, a Administração vincula-se a essas vagas,
dade de oportunidades no acesso ao serviço público.
uma vez que, tal como já afirmado pelo Min. Marco
Aurélio em outro caso, “o edital de concurso, desde Nesses termos, a acessibilidade aos cargos pú-
que consentâneo com a lei de regência em sentido blicos constitui um direito fundamental expressivo da
formal e material, obriga candidatos e Administração cidadania, como bem observou a Min. Cármen Lúcia
Pública” (RE nº 480.129/DF, Rel. Min. Marco Auré- na referida obra.
lio, 1ª Turma, DJ de 23.10.2009). Nesse sentido, é
possível afirmar que, uma vez publicado o edital do Esse direito representa, dessa forma, uma das
concurso com número específico de vagas, o ato da faces mais importantes do status activus dos cidadãos,
Administração que declara os candidatos aprova- conforme a conhecida “teoria dos status” de Jellinek.
dos no certame cria um dever de nomeação para a A existência de um direito à nomeação, nesse
própria Administração e, portanto, um direito à no- sentido, limita a discricionariedade do Poder Público
meação titularizado pelo candidato aprovado dentro quanto à realização e gestão dos concursos públicos.
desse número de vagas. Respeitada a ordem de classificação, a discriciona-
Esse direito à nomeação surge, portanto, quan- riedade da Administração resume-se ao momento
do se realizam as seguintes condições fáticas e da nomeação, nos limites do prazo de validade do
jurídicas: concurso.

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Também vale a pena registrar o comentário de sidade de nomeação do aprovado durante o período
Maria Sylvia Zanella Di Pietro12 a respeito desse jul- de validade do certame, a ser demonstrada de forma
gado: cabal pelo candidato.

Esse entendimento vem sendo, em boa hora, Assim, o direito subjetivo à nomeação do can-
relativizado pelo STF e pelo STJ. Se o Poder Público didato aprovado em concurso público exsurge nas
realiza o concurso, que é um procedimento oneroso, é seguintes hipóteses:
porque necessita de pessoal para preenchimento dos 1 – Quando a aprovação ocorrer dentro do nú-
cargos vagos. Não tem sentido e contraria o princípio mero de vagas dentro do edital;
da razoabilidade o Poder Público deixar de nomear os
candidatos aprovados em consonância com o edital. 2 – Quando houver preterição na nomeação por
Menos justificável ainda é a hipótese cogitada no não observância da ordem de classificação;
inciso IV do artigo 37 da Constituição, em que a Admi- 3 – Quando surgirem novas vagas, ou for aberto
nistração Pública inicia outro concurso público quando novo concurso durante a validade do certame ante-
existem candidatos habilitados em concurso anterior. rior, e ocorrer a preterição de candidatos de forma
Nesse mesmo RE nº 598.099/MS foram estabe- arbitrária e imotivada por parte da administração nos
lecidas exceções a essa regra, que se baseiam em termos acima.”
situações “excepcionalíssimas”. Essas situações devem Vencido o Min. Marco Aurélio, que se manifestou
ser, ao mesmo tempo, supervenientes à publicação contra o enunciado. Ausentes, nesta assentada, os
do edital, imprevisíveis, graves e não devem permitir Min. Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Presidência do Min.
outra saída para a Administração Pública. Ricardo Lewandowski. Plenário, 9.12.2015.

Por outro lado, nesse julgamento, tratou-se ape- Nesse julgado, o STF fixou o entendimento que
nas da situação dos candidatos aprovados em con- mesmo aqueles candidatos aprovados fora do núme-
curso público dentro do número das vagas oferecidas ro das vagas oferecidas no concurso público e que
no certame pela Administração Pública. No entanto, não foram tratados no RE nº 598.099/MS possuem
isso não significa que os candidatos aprovados fora do um eventual direito de compelir o Poder Público a
número de vagas não tenham direito algum. convocá-los. Ainda que eles não possam, em regra,
exigir a sua nomeação pelo Poder Público, não obs-
4 SOBRE O DIREITO DOS CANDIDATOS APROVA tante surjam novas vagas durante o prazo de validade
DOS FORA DO NÚMERO DAS VAGAS OFERECI do concurso público, eles não foram deixados à mercê
DAS NO CONCURSO PÚBLICO E O ENTENDIMEN da discricionariedade da Administração.
TO REGISTRADO NO RE Nº 837.311/PI
Perceba-se que o surgimento de novas vagas
Em 2015, o STF avançou na análise dos direitos durante o prazo de validade de um concurso público
dos candidatos aprovados em concursos públicos, não determina a convocação dos candidatos classifi-
dessa vez voltando a sua atenção para aqueles clas- cados fora do número das vagas oferecidas no edital.
sificados fora do número das vagas oferecidas no Entretanto, se a própria Administração demonstra
certame público. No julgamento do RE nº 837.311/ que precisa, inequivocamente, convocar novos can-
PI, foi fixada a seguinte tese: didatos, ela não pode preterir aqueles classificados e
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto que ainda podem ser convocados.
do Relator, fixou tese nos seguintes termos: “O surgi- Essa seria uma inequívoca violação ao princípio
mento de novas vagas ou a abertura de novo concurso da impessoalidade, já que o Poder Público demons-
para o mesmo cargo, durante o prazo de validade do
traria que precisa prover certas vagas e, ao mesmo
certame anterior, não gera automaticamente o direito
tempo, resistiria a essa necessidade, apenas porque
à nomeação dos candidatos aprovados fora das vagas
previstas no edital, ressalvadas as hipóteses de preteri- não pretende nomear pessoas determinadas em colo-
ção arbitrária e imotivada por parte da Administração, cações que extrapolam o número das vagas oferecidas
caracterizada por comportamento tácito ou expresso no certame público.
do Poder Público capaz de revelar a inequívoca neces- Em suma, se é verdade que a nomeação dos
candidatos aprovados em concurso público além do
12. DI PIETRO, p. 600. número de vagas do edital está sujeita à discriciona-

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riedade da Administração Pública, não menos verda- 837311/PI, o direito subjetivo à nomeação do candi-
deiro é que essa discricionariedade deve ser exercida dato aprovado em concurso público é configurado:
legitimamente.13 1 – Quando a aprovação ocorrer dentro do nú-
É importante destacar que, nesse aresto, men- mero de vagas dentro do edital;
cionou-se, inclusive, que a existência de candidatos 2 – Quando houver preterição na nomeação por
classificados fora do número das vagas oferecidas, não observância da ordem de classificação;
ainda não convocados, não impede a abertura de um 3 – Quando surgirem novas vagas, ou for aberto
novo concurso público para o mesmo cargo. Ademais, novo concurso durante a validade do certame ante-
nele também foi dito que rior, e ocorrer a preterição de candidatos de forma
o administrador público tem a prerrogativa de avaliar arbitrária e imotivada por parte da administração nos
se escolherá os piores colocados de um concurso pú- termos acima.
blico que está na validade, dentre os que se encontram Com relação ao prazo que a Administração Pú-
além das vagas, ou se prefere os melhores colocados
blica possui para efetuar a nomeação em cada uma
de um novo processo seletivo.
dessas três hipóteses acima, a solução para esses
Entretanto, nessa última hipótese, as nomeações casos parece clara.
de candidatos aprovados no novo certame público
No primeiro caso, quando o candidato é apro-
devem ocorrer após o término do prazo de validade vado dentro do número de vagas oferecidas em um
do concurso precedente e sem que isso “configure concurso público, a Administração pode escolher o
qualquer transtorno para a sociedade”. Ou seja, o melhor momento dentro do prazo de validade de
administrador não pode agir com má-fé, deixando um concurso público para realizar a nomeação, tal
escoar propositadamente o prazo de validade de um como foi expressamente dito no RE nº 598.099/MS.
concurso público quando já existe uma inquestioná- Ora, o Poder Público ainda não escolheu o momento
vel necessidade da nomeação de candidatos porque dentro do prazo de validade do certame a partir do
prefere aqueles melhores classificados em um novo qual ele precisa prover uma ou mais vagas oferecidas,
certame público. Isso configuraria uma preterição independentemente do candidato que irá ocupá-la.
intolerável pelo ordenamento jurídico. Assim, ainda há um grau de discricionariedade para
É natural que a Administração se programe, a Administração Pública.
estimando uma necessidade futura de servidores ou Na segunda e terceira hipóteses, quando a Admi-
empregos públicos, realizando periodicamente con- nistração não observar a ordem de classificação nas
cursos públicos para atender a essa demanda futura. suas nomeações ou surgirem novas vagas, aliadas à
No entanto, essa necessidade precisa ser, de fato, necessidade premente do Poder Público de prover
futura, e não meramente disfarçada. os cargos vagos, o direito à nomeação é imediato.
Além disso, tão importante como o direito à no- Ou seja, a Administração deve convocar, em regra,
meação dos candidatos que se enquadram nas hipó- de imediato, os próximos candidatos classificados no
teses tratadas no RE nº 598.099/MS e RE nº 837.311/ certame público.
PI é o prazo que a Administração Pública dispõe para Apesar de a conclusão registrada no parágrafo
efetuar essas nomeações. imediatamente anterior não haver sido expressamen-
te registrada no RE nº 837.311/PI, ela é a única que
5 SOBRE O PRAZO QUE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLI se coaduna com a discussão travada nesse julgado.
CA POSSUI PARA CONVOCAR OS CANDIDATOS
Ora, não seria possível conceder qualquer prazo
NAS HIPÓTESES TRATADAS NO RE Nº 598.099/
MS E NO RE Nº 837.311/PI adicional para que a Administração corrija o seu erro,
após nomear candidatos fora da ordem de classifica-
Tal como pode ser observado a partir da inter- ção ou preteri-los injustificadamente depois do sur-
pretação conjunta do RE nº 598.099/MS e do RE nº gimento de novas vagas. Em ambos os casos, existe
uma flagrante violação ao princípio da impessoalidade
13. Retirado do voto do Relator Min. Luiz Fux do RE nº 837.311/PI. na Administração Pública, que não pode ser tolerado.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

Outrossim, na segunda hipótese, a Administração o restante prazo de validade do concurso público


esgotou a sua discricionariedade quando, dentro do em que as nomeações ocorreram, para convocar o
prazo de validade de determinado concurso público, próximo candidato classificado. Por exemplo, se a
resolveu preencher os cargos ou empregos públicos Administração convoca os dez primeiros candidatos
nele previstos. Já na terceira hipótese, é impossível classificados em um certame público, cujo prazo de
conferir maior prazo à Administração Pública para validade é de dois anos, para preencher as dez vagas
efetuar as nomeações, já que isso significaria prote- oferecidas, mas apenas oito tomam posse, ela poderia
ger, ainda que por algum tempo, uma “preterição dos escolher qualquer momento dentro desses dois anos
candidatos de forma arbitária”. para convocar os próximos dois candidatos classifica-
dos nas colocações onze e doze.
Assim, a Administração Pública deve corrigir as
hipóteses dois e três de plano, ainda que o concurso Entretanto, o raciocínio mencionado no pará-
ainda possua um longo prazo de validade pela fren- grafo imediatamente anterior viola flagrantemente
te. A Administração Pública não pode mais escolher, o princípio de impessoalidade. Além disso, entender
dentro desse lapso temporal, quando ela pretende que a Administração possui qualquer discricionarie-
corrigir essas duas situações. dade nesse aspecto significa ignorar o “transtorno
para a sociedade”, expressamente coibido no RE nº
Consequentemente, como o Poder Público já 837.311/PI. Ora, se a própria Administração diz que
demonstrou que ele precisa prover imediatamente precisa prover a vaga imediatamente, indicando que
um determinado cargo ou emprego público, pouco a sociedade não pode mais prescindir por mais tempo
importa qual é a pessoa natural que irá ocupar aquela da atuação daquele servidor ou empregado público,
vaga, desde que essa pessoa natural esteja classificada ela não tem qualquer justificativa para postergar a
em um concurso público ainda não expirado e que a nomeação seguinte.
nomeação respeite a ordem de classificação.
Se a Administração afirma que precisa preencher
Por outro lado, apesar das claras lições registra- uma determinada vaga de imediato, nomeando um
das nesses dois leading cases, tal como dito acima, candidato aprovado em concurso para ocupá-la, caso
permanecem duas dúvidas importantes sobre os este candidato não se apresente para tomar posse ou
direitos dos candidatos aprovados dentro e fora do apresente a sua desistência por escrito, o Poder Públi-
número das vagas oferecidas pela Administração em co deve tornar sem efeito a convocação precedente e
concurso público. chamar o próximo candidato classificado no certame
público com igual premência. Trata-se, essencialmen-
6 SOBRE O PRAZO EM QUE A ADMINISTRAÇÃO te, da mesma situação, salvo pelo nome da pessoa
PÚBLICA DEVE CONVOCAR SUCESSIVAMENTE natural que irá ocupar aquela vaga.
OS CANDIDATOS APROVADOS EM UM CON
CURSO PÚBLICO QUANDO AQUELES ANTERIOR Dizer o contrário, tal como foi dito acima, signifi-
MENTE NOMEADOS PELO PODER PÚBLICO NÃO caria criar uma distinção, sem nenhum amparo legal,
dentre os próprios candidatos aprovados em concurso
TOMAM POSSE
público. Seguindo esse raciocínio, a Administração
Nesse ponto, faz-se oportuno abordar diretamen- Pública poderia dizer que tem interesse na ocupação
te a primeira das questões formuladas na introdução imediata de determinado cargo ou emprego público
desse breve estudo, não enfrentada expressamente pelo candidato classificado na primeira colocação em
pelo STF no RE nº 598.099/MS ou no RE nº 837.311/ um concurso público. Entretanto, caso este não aceite
PI, relativa à obrigação imposta à Administração tomar posse, a Administração Pública poderia dizer
Pública de convocar sucessivamente os candidatos que o mesmo cargo público só precisa ser ocupado no
aprovados em um concurso público quando aqueles último dia do prazo de validade do concurso público
anteriormente nomeados pelo Poder Público não pelo candidato classificado na posição seguinte.
tomam posse.
Esse raciocínio é ainda mais perigoso quando
Numa análise apressada dessa questão, seria se considera o prazo máximo de validade de um
possível imaginar que a Administração possui todo concurso público, dois anos, além da possibilidade

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

de sua prorrogação por um idêntico período.14 Não em colocação superior. Direito subjetivo à nomeação.
há como se conceber que a Administração afirme Precedentes.
precisar prover imediatamente uma vaga com o 1. O Plenário desta Corte já firmou entendimento
candidato classificado na primeira colocação e pos- no sentido de que possui direito subjetivo à nomeação
sa eventualmente esperar quase quatro anos para o candidato aprovado dentro do número de vagas
nomear o candidato classificado em segundo lugar, previstas no edital de concurso público (RE 598.099-
na falta de interesse revelada exclusivamente pelo RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, e RE nº 837.311-RG, Rel.
primeiro colocado após a convocação formal deste Min. Luiz Fux).
pelo Poder Público. 2. O direito à nomeação também se estende ao
candidato aprovado fora do número de vagas previstas
Outrossim, na última hipótese em comento, caso
no edital, mas que passe a figurar entre as vagas em
a Administração pudesse escolher livremente qual- decorrência da desistência de candidatos classificados
quer outro momento, dentro do prazo de validade em colocação superior. Precedentes.
de um concurso público, para convocar o candidato
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
seguinte na ordem de classificação, isso poderia servir
como um mecanismo para burlar o entendimento Note-se que a desistência mencionada nesse
manifestado pelo STF no RE nº 598.099/MS e no RE julgado ocorreu dentro do prazo de validade do con-
nº 837.311/PI. curso público SAEB/01/2008, promovido pelo Estado
da Bahia, ali analisado. Mas essa decisão foi proferida
Ainda que a Administração Pública nomeie pron-
pelo STF muito após o término do prazo de validade
tamente todos os candidatos nas hipóteses mencio-
desse concurso. Ou seja, esse problema não foi ex-
nadas no RE nº 598.099/MS e no RE nº 837.311/PI,
pressamente analisado pelo STF nesse aresto.
caso algum deles não aceite a convocação, o Poder
Público teria todo o restante do prazo de validade do Entretanto, essa questão já foi enfrentada pelo
concurso público para convocar o candidato na ordem STJ, em acórdão proferido pela 1ª Seção daquela eg.
de classificação subsequente. Corte em 16.6.2010, qual seja o MS nº 15.230/DF.
Aliás, veja-se parte do voto proferido pelo seu Relator,
Supondo que a Administração Pública faça a con- o Min. Herman Benjamin:15
vocação seguinte no último dia do prazo de validade
do certame público e, ainda assim, o próximo candi- No mérito, está patente que tem direito à sua
nomeação para a única vaga do certame.
dato não aceite a convocação, é possível imaginar que
o próximo candidato na ordem de classificação seja A interpretação conferida pela autoridade coa-
prejudicado. Ora, caso este candidato tivesse interes- tora parte de premissa equivocada ao expressar que,
se em assumir o cargo ou o emprego público em tela, “havendo apenas uma vaga para o cargo de Engenhei-
a Administração poderia deixar de convocá-lo, devido ro Agrônomo na localidade de Belo Horizonte/MG, só
pode ser autorizada a convocação de até dois candi-
à expiração do prazo de validade do concurso público
datos, o que foi feito pela Administração” (fls. 109).
em que ele foi aprovado.
Tal assertiva seria verdadeira se os candidatos
Mesmo que essa discussão não tenha sido trava- convocados não tivessem desistido da vaga. Essa é,
da expressamente no RE nº 598.099/MS ou no RE nº aliás, a ratio da Portaria MP nº 450/2002, que, em
837.311/PI, isso não significa que ela contrarie essas seu art. 1º, § 3º, menciona ser possível convocação
duas decisões. Aliás, nesse ponto, vale a pena registrar de candidatos aprovados e classificados até o limite de
a ementa do AgRgRE nº 916.425/BA, relatado pelo 50% a mais do quantitativo original de vagas.
Min. Luís Roberto Barroso em 28.6.2016: Veja-se, por exemplo: se o edital previr 10 vagas
Direito Administrativo. Agravo regimental em e considerar como aprovados e classificados aqueles
recurso extraordinário. Concurso público. Candidato que o estiverem no quantitativo de até 3 vezes o
que passa a figurar dentro do número de vagas pre-
vistas no edital. Desistência de candidato classificado 15. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documen
to/mediado/?componente=ATC&sequencial=12836084&num_registro-
=201000941881&data=20110201&tipo=51&formato=PDF>. Acesso em:
14. Art. 37, inc. III, da CF. 19 set. 2016.

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número original de vagas, significa que teremos 30 publicada no DOU de 18.6.2009. Logo, o prazo de va-
candidatos aptos à nomeação, e que os 10 primeiros lidade desse certame findou-se apenas em 18.6.2011.
classificados já são detentores do direito subjetivo à Ademais, o já mencionado voto do Min. Herman
nomeação. Com o permissivo editado na aludida Por- Benjamin foi proferido em 24.11.2010.16
taria Ministerial, havendo interesse e possibilidade, a
Administração poderá convocar os demais candidatos Ou seja, é inquestionável que a 1ª Seção do STJ
classificados em até metade do número de vagas ori- reconheceu o direito à imediata nomeação da im-
ginalmente previsto, ou seja: poderão ser chamados petrante, aprovada inicialmente fora do número de
os candidatos classificados entre o 11º e o 15º lugar, vagas oferecidas em um concurso público, devido à
pois 5 serão as vagas extras que, embora não previstas desistência de candidatos mais bem classificados,
no edital, terão autorização específica para sua criação
colocando-a dentro do número das vagas oferecidas,
extraordinária.
bem antes do término do prazo de validade desse
O raciocínio da Administração estaria correto certame.
apenas na hipótese em que ambos os candidatos apro-
vados na 1ª e 2ª colocação tivessem sido nomeados 7 SOBRE AS VACÂNCIAS OCORRIDAS DURANTE O
e empossados, sem desistência das vagas dentro do PRAZO DE VALIDADE DE UM CONCURSO PÚBLI
período da validade do certame. Nesse caso, a Admi-
CO, CAUSADAS PELO PEDIDO DE EXONERAÇÃO
nistração já teria exercido seu poder discricionário de,
OU DEMISSÃO FORMULADO PELOS PRÓPRIOS
além de nomear o candidato para a única vaga original,
criar uma segunda vaga mediante o óbvio arredonda- CANDIDATOS APROVADOS E NOMEADOS NO
mento in bonam partem daquele quantitativo singular. CERTAME, QUANDO AINDA HÁ CANDIDATOS
Todavia, o caso dos autos não se insere nessa situação, CLASSIFICADOS AGUARDANDO
pois o cargo permanece ainda vago. No que tange às vacâncias ocorridas durante o
Portanto, é evidente que houve equívoco inter- prazo de validade de um concurso público, causadas
pretativo da autoridade coatora ao negar o direito da pelo pedido de exoneração ou demissão formulado
impetrante à nomeação. pelos próprios candidatos aprovados e nomeados no
Não há como concluir de outra forma. Não faria certame, quando ainda há candidatos classificados
sentido lógico negar o ingresso de candidato aprova- aguardando, a Administração Pública também tem o
do e classificado como “próximo da fila” após longo dever de nomear, imediatamente, o próximo candi-
procedimento seletivo, com dotação orçamentária e dato classificado.
claros indícios de necessidade de prover deficiência
em recursos humanos. Pensar o oposto é estimular o É fato que a situação narrada acima é ligeira-
desperdício de verba pública com processos seletivos mente distinta daquela mencionada no item 6 desse
que destoam de sua finalidade principal: a de suprir estudo ou mesmo no RE nº 837.311/PI. Ora, ao con-
a carência objetivamente demonstrada de pessoal. trário da hipótese tratada no item 6, a Administração,
Diante do exposto, confirmo a medida liminar e ainda que por algum tempo, conseguiu preencher
concedo a segurança para determinar que a Adminis- determinado cargo ou emprego público, com os
tração proceda à nomeação definitiva da impetrante candidatos devidamente aprovados em concurso
no cargo de Engenheiro Agrônomo, nos termos do público e, consequentemente, nomeados. Ademais,
Edital nº 01/2008. diferentemente do que ocorreu no RE nº 837.311/PI,
As regras do concurso público mencionado no não surgiram novas vagas, já que se trata das mesmas
voto acima transcrito foram especificadas no Edital vagas oferecidas no concurso.
do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) nº Entretanto, os fatores mais relevantes para essa
01/2008, publicado no Diário Oficial da União (DOU) discussão são a necessidade já revelada pela Admi-
de 10.12.2008. Lá consta que o prazo de validade nistração Pública de preencher imediatamente esses
desse certame era de dois anos, contados a partir da cargos ou empregos públicos, a contratação regular
homologação do seu resultado final, vide item 1.2
desse documento. 16. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documen
to/mediado/?componente=ATC&sequencial=12836079&num_registro-
A homologação do resultado final desse concur- =201000941881&data=20110201&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em:
so público, registrada no Edital MDA nº 01/2009, foi 19 set. 2016.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

de servidores ou empregados públicos e as vacâncias Pública o dever de nomear um candidato aprovado


desses mesmos cargos a pedido dos próprios servi- dentro do número de vagas em um concurso público,
dores ou empregados recém-nomeados, dentro do tal como previsto no RE nº 598.099/MS.
prazo de validade do certame público. Entretanto, não é qualquer fato novo que pode
Desse modo, tal como ocorre no MS nº 15.230/ representar uma exceção às conclusões registradas
DF, julgado pelo STJ, analisado no item 6 desse estudo, nos itens 6 e 7 desse estudo ou à regra principal esta-
assim como no RE nº 837.311/PI, não é dado à Admi- belecida no RE nº 598.099/MS. Veja-se o entendimen-
nistração diferenciar entre os candidatos classificados to manifestado pelo próprio Relator do RE nº 598.099/
no certame público, que devem ser convocados de MS, o Min. Gilmar Mendes, sobre esse ponto:
maneira sucessiva, sem nenhuma postergação, para Não se pode ignorar que determinadas situações
suprir a deficiência nos quadros causada pelo pedido excepcionais podem exigir a recusa da Administração
de demissão ou exoneração formulado pelo candidato Pública de nomear novos servidores. Para justificar
precedente. o excepcionalíssimo não cumprimento do dever de
nomeação por parte da Administração Pública, uma
Tanto faz se o candidato apresentou sua desis- vez já preenchidas as condições acima delineadas, é
tência antes da nomeação ou se ocupou o cargo ou necessário que a situação justificadora seja dotada das
emprego público durante alguns meses antes de pedir seguintes características:
o encerramento do seu vínculo com o Poder Público.
a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores
O que importa é que esse cargo ou emprego continua
de uma situação excepcional devem ser necessaria-
vago, apesar da necessidade premente revelada pela mente posteriores à publicação do edital do certame
Administração de ocupá-lo, e que o prazo de validade público. Pressupõe-se com isso que, ao tempo da
do concurso público realizado para provê-lo ainda publicação do edital, a Administração Pública conhece
não acabou. suficientemente a realidade fática e jurídica que lhe
A Administração Pública já revelou o momento a permite oferecer publicamente as vagas para preen-
chimento via concurso.
partir do qual ela não pode mais tolerar a vacância de
um determinado cargo ou emprego público. Conse- b) Imprevisibilidade: a situação deve ser determi-
quentemente, se esse mesmo cargo, após a contrata- nada por circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis
ção ou posse de um candidato, torna-se vago a pedido à época da publicação do edital. Situações corriqueiras
deste, o Poder Público tem o dever de remediar a ou mudanças normais das circunstâncias sociais, eco-
nômicas e políticas não podem servir de justificativa
situação de imediato, convocando, em ato contíguo,
para que a Administração Pública descumpra o dever
o próximo candidato classificado no certame público. de nomeação dos aprovados no concurso público
conforme as regras do edital.
8 SOBRE AS POSSÍVEIS EXCEÇÕES ÀS REGRAS ES
TABELECIDAS NOS ITENS 6 E 7 DESSE ESTUDO c) Gravidade: os acontecimentos extraordinários
e imprevisíveis devem ser extremamente graves, impli-
Mesmo que a Administração Pública tenha, em cando onerosidade excessiva, dificuldade ou mesmo
regra, o dever de nomear imediatamente o próximo impossibilidade de cumprimento efetivo das regras
candidato classificado em concurso público nas hi- do edital. Crises econômicas de grandes proporções,
póteses mencionadas nos itens 6 e 7 desse estudo, é guerras, fenômenos naturais que causem calamidade
fato que essa regra possui exceções, ainda que raras. pública ou comoção interna podem justificar a atuação
excepcional por parte da Administração Pública.
Perceba-se que as desistências dos candidatos
regularmente nomeados ou os pedidos de demissão d) Necessidade: a solução drástica e excepcional
de não cumprimento do dever de nomeação deve ser
ou exoneração de servidores ou empregados públicos
extremamente necessária. Isso quer dizer que a Ad-
dentro do prazo de validade do próprio concurso pú- ministração somente pode adotar tal medida quando
blico em que eles foram nomeados pode coincidir com absolutamente não existirem outros meios menos
o surgimento de um novo fator que venha a extinguir gravosos para a lidar com a situação excepcional e
a necessidade da Administração Pública de prover o imprevisível. Em outros termos, pode-se dizer que
cargo ou emprego público correspondente. Aliás, fato- essa medida deve ser sempre a ultima ratio da Admi-
res novos podem até mesmo retirar da Administração nistração Pública.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

Logo, é possível que, por exemplo, uma hecatombe ficado em um certame público quando o candidato
econômica causada por uma grave comoção interna anteriormente nomeado apresenta, por escrito, sua
no país, ocorrida de maneira imprevisível após a publi- desistência à vaga ou quando ele não toma posse no
cação do edital de um concurso público possa retirar prazo estipulado pela Administração.
o direito à nomeação imediata de um candidato, que
Outrossim, a Administração Pública também tem
passou a figurar dentro do número das vagas ofereci-
o dever de nomear imediatamente o próximo candi-
das, numa das hipóteses narradas nos itens 6 e 7 desse
dato na ordem de classificação de um certame público
breve estudo. Entretanto, isso somente poderá ocorrer
quando ocorre um pedido de demissão ou exoneração
quando a Administração Pública não puder compati-
de um empregado público ou servidor, respectivamen-
bilizar de nenhuma outra forma as medidas tomadas
te, dentro do prazo de validade do concurso em que
para debelar essa crise com a nomeação em comento.
este servidor ou empregado público foi nomeado.
Outrossim, devido à já mencionada excepciona-
Por fim, as conclusões registradas nesse estudo,
lidade desses casos, essa decisão tomada pelo Poder
construídas a partir da interpretação do escopo dos
Público deve ser expressamente motivada, em ato a
institutos jurídicos nela mencionados, além dos princí-
ser levado ao conhecimento do público, através das
pios que regem a Administração Pública, demonstram
vias adequadas. Ou seja, a Administração Pública não
o quanto o Brasil precisa de um marco legislativo claro,
pode deixar que o prazo de validade de um concurso
com maior densidade, que regule os concursos públi-
público escoe em silêncio, e muito menos que esse
cos. Do contrário, dependeremos apenas de interpre-
silêncio possa ser interpretado como uma justificati-
tações criadas pela doutrina e pela jurisprudência.
va capaz de cumprir com os quatro requisitos acima
especificados, extraídos do RE nº 598.099/MS. REFERÊNCIA
9 CONCLUSÕES DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Adminis-
trativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
Ao final desse estudo, é possível concluir que a
Administração Pública tem o dever de nomear ime-
diatamente todos os candidatos que se enquadram COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO:
nas situações previstas no RE nº 837.311/PI. Ou seja, CAMBRAIA, Gustavo Brugnoli Ribeiro. O direito à no-
a Administração Pública não tem mais discricionarie- meação imediata de candidato aprovado em um con-
dade para escolher o melhor momento, dentro do curso público, diante da desistência de outro em melhor
prazo de validade do concurso público, para realizar colocação ou pelas vacâncias causadas pelo pedido de
as nomeações nas hipóteses ali mencionadas. exoneração ou demissão formulado pelos próprios candi-
datos aprovados e nomeados no certame. BDA – Boletim
Ademais, o Poder Público também tem o dever de Direito Administrativo, São Paulo, NDJ, ano 33, n. 1,
de convocar, de plano, o próximo candidato classi- p. 39-49, jan. 2017.

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O julgamento da Rcl. nº 4.335/AC e o papel do


Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade1

Flávio Quinaud Pedron


Doutor e Mestre em Direito pela UFMG; Professor Adjunto do mestrado em Direito Público e da graduação da Faculdade de Guanambi/BA; Professor
Adjunto do IBMEC/MG e da PUC/MG (graduação e pós-graduação); Advogado; membro da ABDPC

1 Considerações iniciais. 2 O desenvolvimento do controle de constitucionalidade na história brasi-


leira e a participação do Senado Federal. 3 A falácia do discurso a favor da objetivação do controle
de constitucionalidade no Brasil. 4 A função do Senado Federal no controle de constitucionalidade
brasileiro. 5 Última reflexão: o equívoco por detrás do argumento da mutação (in)constitucional na
Rcl. nº 4.355/AC. Referências.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS1 Para os Ministros do STF Eros Grau e Gilmar


Mendes, principalmente, o modelo do controle difuso
O debate jurídico trazido pelo julgamento da
é ultrapassado e ineficaz quando comparado com a
Rcl. nº 4.335/AC2 não versa apenas sobre um caso
sistemática do sistema concentrado, sobretudo em
em si – isto é, sobre a inconstitucionalidade da pro-
razão da eficácia erga omnes e do efeito vinculante
gressão de regime para os condenados por crimes das decisões do Tribunal, o que possibilitaria a solu-
considerados hediondos.3 Mais que isso, as conclusões ção processual de um número bem maior de casos e
trazidas pelos votos proferidos marcam uma situação supostamente provocaria a diminuição de processos
de profunda transformação da estrutura do sistema pendentes de julgamento no Judiciário brasileiro.
de controle de constitucionalidade das leis e dos atos
normativos, podendo representar até mesmo a perda Curioso é que esses mesmos Ministros do STF
da linha divisória entre o sistema difuso e o sistema reconhecem que o controle concentrado é uma
concentrado no Brasil. novidade dentro de uma tradição maior do Direito
Constitucional brasileiro, que começou com a primeira
Constituição Republicana (1891) e se manteve até a
1. Artigo originariamente publicado na Revista de Informação Legislativa,
Brasília, ano 52, n. 207, p. 213-237, jul./set. 2015. Constituição de 1988.4
2. Deve ser inicialmente aclarado que a Rcl. nº 4.355/AC foi proposta em O presente texto objetiva explicitar o próprio
2006 perante o STF, recebendo julgamento parcial em 2007, mas somente
veio a ser completamente julgada no primeiro semestre de 2014. Os Min.
entendimento que o STF desenvolve em sua juris-
Sepúlveda Pertence (aposentado), Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski prudência. Assim, a pesquisa tem seu foco na leitura
e Marco Aurélio julgavam inviável a reclamação (não conheciam), mas, de da história institucional que o próprio Tribunal pode
ofício, concediam habeas corpus para que os dez condenados tivessem
seus pedidos de progressão do regime analisados, individualmente, narrar a partir de seus julgados.
pelo Juiz da Vara de Execuções Criminais de Rio Branco. Os votos dos
Min. Gilmar Mendes (Relator) e Eros Grau (aposentado) somaram-se 2 O DESENVOLVIMENTO DO CONTROLE DE CONS
aos demais proferidos, no sentido da procedência da reclamação. Para
ambos, a regra constitucional que remete ao Senado a suspensão da TITUCIONALIDADE NA HISTÓRIA BRASILEIRA E
execução de dispositivo legal ou de toda lei declarada inconstitucional A PARTICIPAÇÃO DO SENADO FEDERAL
pelo STF tem efeito de publicidade, pois as decisões da Corte sobre a
inconstitucionalidade de leis têm eficácia normativa, mesmo que tomadas A participação do Senado Federal aparece pela
em ações de controle difuso.
primeira vez na Constituição de 1934, quando ficou
3. Deve-se lembrar que, à época da propositura da ação, vigorava a Lei
nº 8.072/1990, que, no art. 2º, § 1º, vedava a progressão de regime
para os condenados por crimes hediondos. Mais recentemente, a Lei nº 4. Streck, Cattoni de Oliveira e Lima (2007) explicitam bem a leitura que o
11.464/2007 – ou seja, posterior ao ajuizamento da reclamação – alterou próprio STF faz da tradição do Direito Constitucional brasileiro, que passa
o mesmo dispositivo, determinando o início no regime fechado, mas não por uma subversão. Essa mesma linha de raciocínio é desenvolvida por
mais seu integral cumprimento. Se bem analisada, a Rcl. nº 4.355/AC Cruz (2004, p. 315), para quem o agigantamento do controle concentrado
acabou por ter seu objeto perdido, o que deveria resultar na sua extinção no Brasil é um sinônimo de autoritarismo do STF, acarretando nítidas
sem julgamento do mérito (art. 267, CPC/1973, ou art. 482, CPC/2015). perdas para uma democracia procedimental.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

preservada a sua competência para suspender a eficá- b) quando se contestar a validade de leis ou de
cia da norma declarada inconstitucional pelo STF. Como atos dos Governos dos Estados em face da Constitui-
observam Streck, Cattoni de Oliveira e Lima (2007, p. ção, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do
3), essa realidade institucional já dura mais de setenta Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis
anos. E só com a EC nº 16/1965 é que a redação do art. impugnadas.
101 da Constituição de 1946 passou a trazer a possibi- § 2º – Nos casos em que houver de aplicar leis dos
lidade do controle concentrado no Brasil. Estados, a Justiça Federal consultará a jurisprudência
dos Tribunais locais, e vice-versa, as Justiças dos Esta-
Olhando o texto original da Constituição de 1988,
dos consultarão a jurisprudência dos Tribunais Fede-
havia a previsão apenas das figuras da Ação Direta de rais, quando houverem de interpretar leis da União.
Inconstitucionalidade (ADI), da Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade por Omissão (ADI por omissão) e da Ação Art. 60 – Compete aos Juízes ou Tribunais Fede-
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). rais, processar e julgar:

A Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) a) as causas em que alguma das partes fundar
aparece apenas após a EC nº 3/1993, como uma figu- a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição
federal (MINAS GERAIS, 1981).
ra singular no plano do Direito Comparado (STRECK;
CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 3).5 Aqui e até 1934, as decisões no controle de
Sendo assim, o controle difuso é muito mais an- constitucionalidade apenas podiam atingir as partes
tigo e, por isso mesmo, incorpora a tradição constitu- envolvidas no processo a ser julgado, abrindo para
cional brasileira desde o Dec. nº 848/1890,6 e depois, qualquer juízo ou Tribunal a possibilidade de afirmar
com a Constituição de 1891, com forte elaboração por um entendimento contrário ao esposado pelo STF
Rui Barbosa (CRUZ, 2004, p. 342; VIEIRA, 2008, p. 103; (STRECK, 2002, p. 341). Somente com a nova Cons-
STRECK, 2002, p. 339; BAHIA, 2009, p. 103).7 Os arts. tituição, então, a participação do Senado Federal
59 e 60 da Constituição de 1891 evidenciam, portanto, aparece prevista no art. 91, inc. IV. Desse modo, faz-se
que tal texto assume a natureza concreta e difusa do necessário um olhar mais cuidadoso para entender
controle de constitucionalidade: o porquê de tal escolha por parte dos constituintes.
Art. 59 – Ao Supremo Tribunal Federal compete: Segundo Streck (2002, p. 345) e Vieira (2008, p. 113),
a Constituição de 1934 tinha fortes inspirações na
............................................................................ Constituição alemã de Weimar e na Constituição es-
III – rever os processos, findos, nos termos do panhola de 1931.
art. 81.
O anteprojeto de 1933 trazia como novidades
§ 1º – Das sentenças das Justiças dos Estados, um unicameralismo, a eleição indireta para o cargo
em última instância, haverá recurso para o Supremo
de Presidente da República, um Conselho Supremo e
Tribunal Federal:
a unidade do Poder Judiciário (STRECK, 2002, p. 345).
a) quando se questionar sobre a validade, ou a Todavia, a proposta de unicameralismo não obteve
aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do êxito, e, por isso, o Senado passou a desempenhar a
Tribunal do Estado for contra ela;
função de “Poder Coordenador”, que originalmente
caberia ao Conselho Supremo.
5. Por isso mesmo, pesa até hoje sobre sua criação uma duvidosa
constitucionalidade, como lembram Streck, Cattoni de Oliveira e Lima Dentro de suas funções, portanto, estava a figura
(2007) e Cruz (2004).
da resolução legislativa.8 Assim, no caso de decisão do
6. O Dec. nº 510/1890, também conhecido como Constituição Provisória STF, quer pela via de sua competência originária, quer
da República, já destaca em sua Exposição de Motivos o papel do Judiciário
– citando Marshall – em interpretar e verificar a conformidade das leis com
a Constituição e, com isso, impedir e coibir abusos, quer do Legislativo,
quer do Executivo (VIEIRA, 2008). 8. Interessante é que a leitura do art. 91 da Constituição de 1934 revela
que a configuração do Senado Federal na época era sui generis (VIEIRA,
7. Vieira (2008) lembra que, ao tempo do Império, o Superior Tribunal de 2008, p. 114). O art. 91, inc. II, traz ainda uma inovação que não foi
Justiça, criado com a Carta Imperial, não abordava a disciplina da jurisdição acompanhada pelas constituições que se seguiram – e, segundo Streck
constitucional, uma vez que tal órgão do Judiciário era uma continuidade (2002, p. 348), em sua curta vigência, nem chegou a ser aplicado –, que era
do sistema e da lógica portuguesa. Além do mais, a existência do Poder a possibilidade de o Senado “examinar, em confronto com as respectivas
Moderador a serviço do Imperador retirava qualquer autonomia do leis, os regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, e suspender a
Judiciário. Aliado a isso, o art. 15, incs. VIII e IX, deixava ao próprio Poder execução dos dispositivos ilegais”, o que reforça ainda mais a participação
Legislativo a função interpretativa do Direito (VIEIRA, 2008, p. 101). deste no controle de constitucionalidade brasileiro da época.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

pela via do recurso extraordinário, a declaração de Com isso, não houve transmissão da função de
inconstitucionalidade apenas atingia as partes envol- “coordenação de poderes” da Constituição de 1934,
vidas (inter partes) e, temporalmente, seu efeito era de modo que a atribuição da suspensão da norma
ex tunc. Logo, qualquer outro Magistrado brasileiro inconstitucional com efeitos erga omnes ficou sem
poderia assumir uma postura dissonante diante do seu previsão.
caso pendente de julgamento, a não ser que o Senado
resolvesse se manifestar; a partir daí, a ação do Senado O art. 96 passava a exigir um quórum de maioria
atribuiria a eficácia erga omnes e o efeito ex nunc. absoluta para a declaração; e mais:9 se o Presidente da
República identificasse que tal lei era necessária “ao
É importante registrar que a preocupação com bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interes-
a eficácia das decisões do STF já estava presente nos se nacional de alta monta” (BRASIL, 1934), ele poderia
debates daquele período. Tanto é assim que o Deputa-
submeter novamente ao exame do Parlamento, e, se
do Nilo Alvarenga chegou a apresentar uma proposta
este a confirmasse por dois terços de votos em cada
de emenda que criava uma Corte Constitucional aos
uma das Câmaras, ficaria sem efeito a decisão do
moldes kelsenianos (STRECK, 2002, p. 346); mas tal
Tribunal (VIEIRA, 2008, p. 124; STRECK, 2002, p. 349).
proposta foi negada, o que confirma também a opção
do constituinte e a sua permanência na tradição do O art. 101 da Constituição de 1946 determinou
controle difuso de constitucionalidade no Brasil. a competência do STF para o julgamento do recurso
Também não se pode olvidar que a Constituição extraordinário,10 marcando a opção pela adoção do
de 1934 trouxe a figura da ação direta interventiva – sistema difuso e concreto. Retorna-se, assim, ao bi-
mas esta sem qualquer caráter que pudesse afirmar cameralismo, e, sob tal ótica, o Senado Federal volta
desde já a abertura para um mecanismo de controle a ter a atribuição de suspender a norma declarada
abstrato da constitucionalidade, já que ela acaba inconstitucional pelo STF (art. 64). Mas a “cláusula de
ficando no meio do caminho entre a fiscalização in reserva de plenário” manteve-se para a declaração de
thesi e a realidade em concreto (VIEIRA, 2008, p. 117; inconstitucionalidade – claro que sem a possibilidade
STRECK, 2002, p. 348). Seu procedimento era peculiar de cassação da decisão pelo Legislativo (art. 200).
e merece descrição: primeiro, o Senado Federal edi-
Ainda é importante notar que a ação direta inter-
tava lei de sua competência exclusiva disciplinando a
ventiva é remodelada: além de proteção dos “princí-
intervenção federal (art. 41, § 3º), sob o fundamento
pios constitucionais sensíveis”, o ato supostamente
de que os princípios constitucionais do art. 7º (princí-
pios constitucionais sensíveis) foram atingidos por meio ofensor é que é impugnado e analisado de modo
de ação ou de omissão de um Estado; em seguida, me- direto pelo STF – e não mais o decreto autorizador da
diante provocação do Procurador-Geral da República, o intervenção – e, com isso, a ação direta interventiva
STF avaliaria a constitucionalidade da lei que declarava ganhou contornos muito mais próximos aos atuais.
a intervenção – e não ato ou omissão que afrontava o
art. 7º (VIEIRA, 2008, p. 118; STRECK, 2002, p. 348). 9. “Art. 96 – Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes
poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do
Ao analisar a Constituição de 1937, algumas ob- Presidente da República. Parágrafo único – No caso de ser declarada a
inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República,
servações devem ser feitas: seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse
nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la
(i) O seu contexto de imposição representa novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de
um retrocesso para a ordem democrática brasilei- votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal”
(BRASIL, 1937).
ra (VIEIRA, 2008, p. 121; STRECK, 2002, p. 348); e
10. “Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: [...] III – julgar em
(ii) O Senado Federal é substituído por um recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instâncias
por outros Tribunais ou Juízes: a) quando a decisão for contrária a
equivalente, o Conselho Federal (art. 50), que dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b)
deveria representar legislativamente os Estados quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta
Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c)
– ele era composto por um representante de quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face
cada Estado por eles eleitos e por mais outros dez desta Constituição, ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a
lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal
membros indicados livremente pelo Presidente invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais
da República. ou o próprio Supremo Tribunal Federal.

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

Apenas a partir da EC nº 16/1965 – já no cur- se do Judiciário”, e principalmente diminuir o número


so do Golpe Militar de 1964 – que o STF ganhará a de recursos extraordinários que deveriam ser julgados
competência para processar a representação contra pelo STF (BAHIA, 2009, p. 122).12
a inconstitucionalidade (MAUÉS, 2010, p. 369), de le-
gitimidade exclusiva do Procurador-Geral da República Por meio da EC nº 1/1969, o STF passou a ter com-
(art. 101, al. k, da CR/1946). petência para, no seu Regimento Interno (RI),13 indicar
as causas que, devido à sua relevância,14 apresentas-
Com isso, tem início a implantação da lógica sem questões que ultrapassassem o mero interesse
do sistema abstrato e concentrado de controle da dos litigantes.15 Dessa forma, a Emenda Regimental
constitucionalidade das leis e atos normativos. Como
nº 3/1975 ao RISTF disciplinou que causas não seriam
bem observa Streck (2002, p. 354), o controle de
examinadas pelo Tribunal por já ser pressuposta a
constitucionalidade abstrato e concentrado aqui foi
carência de relevância.16
instituído não como um mecanismo de proteção de
direito e de garantias fundamentais,11 mas, devido à O que se pode perceber é que o critério da rele-
sua eficácia erga omnes, servia muito bem aos inte- vância apenas deixava a cargo da discricionariedade dos
resses do Governo para estabelecer um mecanismo
que fosse efetivo e célere para impedir que Juízes e 12. Segundo Baptista (1976, p. 31), os recursos extraordinários represen-
Tribunais ainda afeitos à ideologia democrática pu- tavam 80% dos feitos submetidos ao STF.
dessem, por meio do controle difuso, tomar decisões 13. O Min. Aliomar Baleeiro, conforme Baptista (1976, p. 32), foi voz
que contrariassem as pretensões governistas. O con- minoritária ao discordar da utilização do Regimento Interno do Tribunal
para destacar tais causas mais relevantes, pois tal ato deveria ser feito por
trole concentrado, então, serviu bem aos interesses meio legislativo pelo Congresso, e não pelo Tribunal. Todavia, a maioria
governistas, possibilitando um freio e um controle do expressou seu entendimento no sentido de que tal solução era inovadora
por estar dando maior independência ao Judiciário, até porque, com
Judiciário brasileiro. isso, estar-se-ia livrando o Tribunal do “inconveniente diálogo” com o
Legislativo, tão volúvel às convicções políticas.
A Constituição de 1967, por sua vez, passou a
14. Esclarece Baptista (1976, p. 35): “[...] a relevância, para esse efeito,
adotar uma fórmula eclética de controle de cons- será apurada especialmente do ponto de vista do interesse público. Em
titucionalidade, e, com isso, passaram a coexistir o princípio, qualquer problema de aplicação da lei é de interesse público.
Mas, na prática, muitas questões têm repercussão limitada às partes, ou
modelo concentrado e o modelo difuso. O art. 45, a pequeno número de casos, e há problemas legais cujas consequências
inc. IV, veiculava a possibilidade de o Senado Fede- são muito reduzidas, mesmo para as partes, servindo antes como pretexto
para manobras protelatórias ou que visam a subtrair o mérito do litígio
ral suspender os atos declarados inconstitucionais ao direito aplicável. Muitas controvérsias sobre o direito processual estão
pelo STF pela via concreta; e o art. 114 dava ao STF a compreendidas nesta última hipótese”.
competência de julgar a representação do Procurador- 15. RISTF: “Art. 327. [...] § 1º Entende-se relevante a questão federal que,
pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais,
-Geral da República por inconstitucionalidade. Ainda, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso
a ação direta interventiva já não precisava de controle extraordinário pelo Tribunal” (BRASIL, 2015).
do Congresso Nacional, bastando um ato emanado 16. “Art. 308. Salvo nos casos de ofensa à Constituição ou relevância da
do Poder Executivo (art. 11, § 2º). E, para pressionar questão federal, não caberá recurso extraordinário, a que alude o seu art.
119, parágrafo único [da EC nº 1/1969], das decisões proferidas: I. nos
o Judiciário, o Ato Institucional nº 6/1969 modificou a processos por crime ou contravenção a que não sejam cominadas penas
composição do STF de 16 para 11 membros, aposen- de multa, prisão simples ou detenção, isoladas, alternadas ou acumuladas,
bem como as medidas de segurança com eles relacionadas; II. nos
tando compulsoriamente diversos Ministros. habeas corpus, quando não trancarem a ação penal, não lhe impedirem
a instauração ou a renovação, nem declararem a extinção da punibilidade;
Como se não bastasse, o controle difuso também III. nos mandados de segurança, quando não julgarem o mérito; IV. nos
foi atingido com a inserção de um pressuposto recursal litígios decorrentes: a) de acidente do trabalho; b) das relações de trabalho
mencionadas no artigo 110 da Constituição; c) da previdência social; d) da
para o recurso extraordinário: a “arguição de relevância relação estatutária de serviço público, quando não for discutido o direito
da questão federal”. Originalmente, sua justificativa se à constituição ou subsistência da própria relação jurídica fundamental; V.
nas ações possessórias, nas de consignação em pagamento, nas relativas
apresentava como medida para tentar solucionar a “cri- à locação, nos procedimentos sumaríssimos e nos processos cautelares;
VI. nas execuções por título judicial; VII. sobre extinção do processo, sem
julgamento do mérito, quando não obstarem a que o autor intente de
11. Maués explicita que a finalidade do controle difuso sempre foi ligada novo a ação; VIII. nas causas cujo valor, declarado na petição inicial, ainda
à proteção dos direitos fundamentais contra deliberações de uma maioria que para efeitos fiscais, ou determinado pelo juiz, se aquele for inexato ou
política, ao passo que “o problema central da defesa da Constituição era desobediente aos critérios legais, não exceda de 100 vezes o maior salário-
a busca de garantias do exercício regular das funções estatais, de acordo mínimo vigente no País, na data do seu ajuizamento, quando uniformes as
com sua concepção da estrutura hierárquica da ordem jurídica” (MAUÉS, decisões das instâncias ordinárias; e de 50, quando entre elas tenha havido
2010, p. 360). divergência, ou se trate de ação sujeita à instância única” (BRASIL, 2015).

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Ministros do STF a definição de causas que iriam julgar. p. 131) afirmassem que se trataria de um processo ob-
O instituto, então, foi de importância ímpar para que jetivo – sem partes e sem contraditório –,20 de modo
o STF pudesse deixar de julgar determinadas causas, que seu foco não está na defesa de direitos subjetivos,
desenvolvendo como escusa uma justificativa de ordem mas em uma suposta defesa da ordem jurídica como
meramente processual (BAHIA, 2009, p. 128). um todo (VIEIRA, 2008, p. 150).21
Antes da sessão, os Ministros receberiam um ex- Outra estranheza fica para o desenvolvimento na
trato e a arguição seria acolhida se pelo menos quatro jurisprudência do STF de duas classes de legitimados
deles se mostrassem favoráveis (art. 328, § 5º, inc. VIII, para proposição do controle concentrado: de um lado,
RI/STF). Uma ata seria publicada para ciência das par- têm-se os legitimados “universais” (art. 103, incs. I, II,
tes, constando quais arguições foram acolhidas e quais III, VI, VII e VIII), que não estão sujeitos ao requisito da
foram rejeitadas. Todavia, a decisão seria irrecorrível pertinência temática; e, de outro, aqueles “especiais”
(art. 328, § 5º, incs. VII e VIII, RI/STF) e não apresentaria (art. 103, incs. IV, V e IX) submetidos a tal exigência.
qualquer fundamentação ou mesmo motivação.17
Ora, se o controle concentrado visa à proteção
Com a Constituição de 1988 e com a expectativa da ordem constitucional, não tendo partes, nem se
de uma reabertura democrática, o constituinte buscou voltando ao interesse subjetivo, qualquer um dos
implementar um plano de ação que compatibilizasse legitimados é tão interessado quanto os demais na
ambos os sistemas de controle de constitucionalidade. proteção da Constituição, de modo que a distinção
De um lado, o sistema difuso se manteve, inclu- traçada é nitidamente paradoxal e injustificada
sive abolindo a arguição de relevância e mantendo (VIEIRA, 2008, p. 156; CRUZ, 2004, p. 380), salvo do
a competência do Senado Federal para editar a ponto de vista pragmático: inviabilizar o acesso irres-
resolução legislativa (art. 52, X);18 de outro, o siste- trito ao STF a fim de que não se tenha um aumento
ma concentrado (art. 102, inc. I, al. a)19 aparentou descontrolado de ações suscitando o controle de
se democratizar, uma vez que passou a permitir, na constitucionalidade.22
forma do art. 103, um número maior de legitimados, Em 1993, a EC nº 3 modificou um pouco as feições
não exclusivamente o Procurador-Geral da República. do controle de constitucionalidade brasileiro, trazen-
Podem agora propor a ADI: o Presidente da Repú- do uma inovação ímpar no Direito Comparado: a Ação
blica; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara Declaratória de Constitucionalidade (ADC), alterando,
dos Deputados; a Mesa de Assembleia Legislativa ou assim, o texto original do art. 102, inc. I, al. a.23 Ante-
da Câmara Legislativa do Direito Federal; o Governa- riormente à EC nº 45/2004, os únicos legitimados para
dor de Estado ou do Distrito Federal; o Procurador- propô-la eram: o Presidente da República, a Mesa do
-Geral da República; o Conselho Federal da Ordem dos Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados e o
Advogados do Brasil; partido político com represen- Procurador-Geral da República. A motivação para sua
tação no Congresso Nacional; e confederação sindical
ou entidade de classe de âmbito nacional. 20. Tal leitura assumida pelo STF, portanto, é destoante de uma concepção
democrática de processo (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001; GONÇALVES, 2001;
O peculiar aqui é que não tardou para que mem- CRUZ, 2004), para a qual o processo é uma espécie de procedimento
bros da doutrina constitucional como Mendes (1999, que deve garantir o contraditório e a simétrica paridade entre as partes.
Dessa forma, a legitimidade do provimento produzido é dependente das
condições de participação e de construção dos seus destinatários. Logo,
a expressão processo objetivo à luz dessa concepção é uma contradição
17. Para uma distinção entre fundamentação e motivação de uma decisão em termos.
judicial, ver Cattoni de Oliveira e Pedron (2010).
21. Essa foi exatamente a lógica esposada pelo STF, com destaque ao
18. A Constituição de 1988 manteve, no art. 97 (“Somente pelo voto da voto do Min. Moreira Alves, no julgamento da ADC nº 1.1/DF, que tinha
maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão como objeto a declaração de constitucionalidade da própria EC nº 3/1993.
especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou
ato normativo do Poder Público”), a exigência da chamada “cláusula de 22. Para ser coerente com sua tese do processo objetivo, o próprio Mendes
reserva de plenário” para os julgamentos em face do controle difuso, (1999, p. 145) rejeita tal concepção.
cuja decisão aponte para a inconstitucionalidade na lei ou ato normativo.
23. “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a
19. “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente:
guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato
ou estadual[...]” (BRASIL, 1988). normativo federal”.

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criação dizia ser a preservação da segurança jurídica suais (contraditório e ampla defesa) para uma atuação
e seu pedido, diferentemente da ADI, era pela decla- efetivamente legitimadora. Desde a ADI nº 3.510/
ração da constitucionalidade da lei ou ato normativo DF, o STF também vem intensificando a realização de
(VIEIRA, 2008, p. 162). “audiências públicas”, o que parece, à primeira vista,
sinalizar uma preocupação do Tribunal com a partici-
À primeira vista, não deixa de ser estranha a sua
pação argumentativa da sociedade.
motivação; afinal, toda norma até sua declaração
jurisdicional definitiva tem a seu favor a presunção Mas, novamente, a postura assumida pelo STF
de constitucionalidade. Sua justificativa é novamente não materializa tal preocupação com a legitimidade
alcançada apenas num plano pragmático: dada a efi- de suas decisões, pois, na etapa de fundamentação
cácia erga omnes e o efeito vinculante de sua decisão, do provimento, os Magistrados deixam de se preo-
nenhum Juízo ou Tribunal inferior poderia apresentar cupar em responder aos argumentos trazidos pela
entendimento diverso ao do STF, forçando, então, sociedade.
uma interpretação padronizada e em conformidade
com o Tribunal,24 e impedindo a dinâmica regular do 3 A FALÁCIA DO DISCURSO A FAVOR DA OBJETI
controle difuso no Brasil; ou seja, a ADC mostrou ser VAÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALI
um importante “instrumento da governabilidade”,25 DADE NO BRASIL
deixando as preocupações democráticas de lado
Nesse quadro sinteticamente traçado anterior-
(STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 4).
mente, é possível verificar que o controle difuso se
Assim, a ADC acabou por representar um mecanismo
desenvolveu ao longo da história institucional brasi-
útil para o enfraquecimento do controle difuso no
leira como a principal modalidade. Todavia, o controle
sistema brasileiro.
concentrado, que apareceu em segundo plano, pau-
Objetivando implementar ainda mais o controle latinamente foi ganhando mais relevância no cenário
concentrado no Direito brasileiro, editaram-se as jurídico-constitucional pátrio. Logo, uma afirmação
Leis nos 9.868/1999 e 9.882/1999, que estabelecem no sentido de que o controle concentrado é a regra
o procedimento para as demandas de controle geral certamente ou despreza ou subverte a história
concentrado. É fácil perceber que nelas o legislador institucional brasileira.
infraconstitucional acabou por ultrapassar os contor-
nos dos institutos fixados na Constituição de 1988 Maués (2010, p. 372) traz dois importantes argu-
(STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 4). mentos que reforçam tal visão:
Vieira (2008, p. 173) parece demonstrar um otimismo (a) a Constituição de 1988 não traz qualquer
injustificado com relação à disciplina constitucional limite ao controle difuso, ainda mais quando se
do amicus curiae no art. 7º da primeira lei, inclusive lembra que os direitos fundamentais foram esta-
afirmando que tal dispositivo consagra uma postura belecidos como dotados de aplicabilidade direta;
de abertura da interpretação constitucional para uma
“sociedade aberta”. (b) tanto a ADC quanto a ADPF impedem uma
monopolização do controle de constitucionalida-
Todavia, este não é o propósito da norma, já que, de pelo STF, uma vez que pressupõem a existência
em comparações com o direito norte-americano,26 de controvérsia judicial relevante para sua propo-
principalmente a versão nacional do instituto, retira situra (Lei nº 9.868/1999, art. 14, inc. III e Lei nº
dos participantes da sociedade as condições proces- 9.882/1999, art. 1º, parágrafo único, inc. I).
O que se vê, na realidade, são medidas de cons-
24. No julgamento da ADC nº 4 (BRASIL, 1999), o STF concluiu pela
possibilidade de deferimento de medida liminar em sede de ADC, o que titucionalidade duvidosa tentando diminuir o acesso
reforça mais ainda seu caráter autoritário. da sociedade aos canais institucionais de discussão
25. “[...] o efeito e a súmula vinculantes caracterizam-se como mecanismos da constitucionalidade das leis e dos atos normativos
de prevenção da divergência sobre a interpretação constitucional, e não
como mecanismos de correção. Eles visam que os juízes se adaptem às
estatais, em razão de um fechamento desses canais
orientações jurisprudenciais do STF, evitando que as dúvidas sobre a pela lógica do sistema concentrado.
constitucionalidade da lei cheguem ao Tribunal dificultando uma nova
análise da questão que ensejou a divergência” (MAUÉS, 2010, p. 371). Entretanto, uma ótica e uma ideologia que
26. Ver Mattos (2010). elevam a todo custo uma leitura de economia e de

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celeridade acabam por advogar a ampliação de meca- Sendo assim, tanto Tavares (2004) quanto Ma-
nismos para a utilização de decisões cunhadas a partir deira (2011) reconhecem que o julgamento da reper-
de eficácia erga omnes e efeito vinculante. cussão geral se dá no modelo do processo objetivo
– já presente nas demandas pelo sistema do controle
Ao que parece, então, escapa aos Ministros
concentrado de constitucionalidade.
Mendes e Grau o fato de que a Constituição de 1988
representa uma opção paradigmática ao Estado De- Dessa forma, os interesses subjetivos das partes
mocrático de Direito, que, por sua vez, traz exigências devem ceder lugar a um interesse público maior: a
normativas de participação democrática da sociedade defesa da ordem constitucional objetiva. Contudo,
nos processos de decisão institucionais, inclusive um problema aparece nessa leitura levada a cabo pela
naqueles que versam sobre (in)constitucionalidade dogmática: “Com a repercussão geral não é qualquer
de normas produzidas por um Legislativo nacional violação à Constituição que vai ser apreciada pelo
(STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 10). Supremo Tribunal Federal, mas somente aquelas que
têm uma repercussão que ultrapasse o caso concreto”
O último ato contra o controle difuso no Brasil
(MADEIRA, 2011, p. 572).
acabou sendo introduzido pela EC nº 45/2004, ao criar
o pressuposto recursal da arguição de repercussão Isso equivale, então, a dizer que o STF não vai
geral para o recurso extraordinário (art. 102, § 3º, mais zelar por toda a Constituição, mas somente pelas
da CR/1988).27 O objetivo foi o desenvolvimento de normas e situações que ele entender como de especial
um “filtro” para os recursos extraordinários, a fim de importância (MADEIRA, 2011, p. 572).
diminuir o número julgado pelo STF. Ter-se-á então, Ora, ao proceder assim, parece olvidar a dogmática
um incidente processual prévio ao conhecimento do de que se estaria criando uma distinção hierárquica
mérito do recurso extraordinário, no qual o STF anali- entre as próprias normas constitucionais; ter-se-iam
sará se a causa apresenta tal repercussão geral. O STF, algumas normas que são mais importantes do que ou-
apenas por dois terços dos seus Ministros, poderia tras – e é o próprio STF que definirá isso –, já que sua
recusar o conhecimento da matéria, por entender violação justifica a intervenção processual do Tribunal
ausente a repercussão.28 e, em outras, essa atuação não é vista como necessá-
Sinteticamente, o propósito seria desenvolver um ria. Algumas lesões à Constituição seriam de segunda
pressuposto recursal, no qual o recorrente deveria ordem e, por isso mesmo, “toleradas” pelo STF.31
demonstrar que seu caso, seja no aspecto jurídico, Desde o início, há críticas ao quórum de 2/3 dos
econômico, político ou social,29 levanta uma questão Ministros para não conhecimento do recurso.32 Para
que ultrapassa o plano de interesse apenas individual, muitos juristas, tratar-se-ia de número elevado, o
materializando um interesse público subjacente (art.
543-A, § 1º, do CPC/1973 e art. 1.032, do CPC/2015).30 Tribunais inferiores. Ora, tal tese apenas pode ser cogitada como adequada
se for considerada também adequada à tese do processo objetivo nos
Tribunais Superiores. Entretanto, isso acaba por deixar transparecer um
27. “§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a problema processual grave: os defensores dessa tese olvidam o fato de
repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos que o recurso extraordinário decorre sempre de uma causa, isto é, de uma
termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, alegação de lesão ou ameaça de lesão à direito pelas partes do processo,
somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus a princípio do autor, e não de uma questão que pode ser resolvida em
membros” (BRASIL, 1988). abstrato. Todavia, ainda assim é possível afirmar que, mesmo a apreciação
judicial em abstrato, como acontece com as hipóteses de controle de
28. Nesse sentido, o § 3º do art. 102 torna, pelo menos a princípio, todo constitucionalidade, constitui-se em discursos de aplicação e, por isso
recurso dotado de repercussão, cabendo ao STF um exame mais detalhado mesmo, depende de uma base fática, não se processando no vácuo (CRUZ,
e o pronunciamento negativo por quórum especial. É claro que, por 2004, p. 246). Ao que parece, esse perfil elitista por parte do Judiciário,
questões de economia procedimental, a análise da repercussão geral só assumido principalmente pelo STF com a tese da natureza objetiva dos
vem depois de esgotada a verificação de atendimento de todos os demais processos destinados a julgamento naquele Tribunal, é transportado para
pressupostos recursais, conforme determina o art. 323, do RISTF. o processamento do recurso extraordinário.
29. Madeira (2011, p. 571) destaca que tais espécies caracterizadoras 31. O perigo, então, dessa leitura reside no fato de que se olvida que
da repercussão geral pelo legislador infra-constitucional são imersas em normas – pelo simples fato de serem objeto de uma deliberação e
imensa subjetividade, mas tal situação não é acidental, é intencional, pois discussão pública e política pelo Legislativo – representam interesses
permite ao STF a discricionariedade de seleção de causas e, com isso, públicos por si sós e, portanto, qualquer forma de violação a uma norma
garante a eficiência desse filtro recursal. jurídica já é uma ofensa ao interesse de toda sociedade; afinal, essa mesma
sociedade espera que suas normas sejam integralmente cumpridas.
30. Para André Ramos Tavares (2004, p. 55), a repercussão geral estaria
presente quando a questão constitucional fosse dotada do atributo da 32. Também no sistema alemão aparece a exigência de 2/3 dos membros
novidade e da multiplicidade, isto é, ela deverá ser inédita e sua decisão do Tribunal para a não apreciação do recurso, favorecendo a lógica de que,
deverá ser útil para a resolução de diversos outros casos pendentes nos em regra, o recurso deverá ser conhecido (JORGE; SARTÓRIO, 2005, p. 186).

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que conduziria a uma permissividade recursal maior partes). Bem coloca, então, a situação Dinamarco
e indesejável, razão pela qual a legislação processual (2010, p. 89-90):
acabou regulando a questão de modo distinto. Ora, quando uma dessas pronúncias (constitucio-
Logo, a Lei nº 11.418/2006, que alterou o Código nalidade ou inconstitucionalidade) vem expressa pelo
Supremo Tribunal Federal no controle concentrado de
de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), acabou por
constitucionalidade, é natural que tenha eficácia erga
dar novas feições ao instituto e um rigor ainda maior omnes porque essa é a função das ações diretas [...]. No
que o dado pelo Texto Constitucional. Pelo texto da controle concentrado! Não ocorre uma tal expansão de
lei processual, o Presidente do Tribunal recorrido (a eficácia, todavia, quando a constitucionalidade da lei é
quo) tem a competência para realizar uma primeira declarada no controle difuso. Se ao julgar um recurso
análise da repercussão geral, podendo considerar extraordinário vem o Supremo Tribunal Federal a decla-
prejudicados todos aqueles que versem sobre matéria rar a inconstitucionalidade, é natural que essa decisão
em que o STF entendeu ausente a repercussão geral tenha grande poder de contaminação, dada a já apon-
tada razão de, imediata ou mediatamente, produzir a
(art. 543-B do CPC/1973 e art. 1.033 do CPC/2015). Ele
ineficácia (sentença constitutiva negativa). Mas, sendo
ainda pode realizar uma seleção por amostragem dos um recurso extraordinário julgado com a conclusão
recursos que seguirão para o STF analisar a presença pela constitucionalidade da lei ou ato impugnado, não
da repercussão geral.33 ocorre essa desconstituição de eficácia nem qualquer
outra consequência parecida. Em perspectiva técnico-
As decisões sobre a repercussão geral deve-
-processual vê-se que, em decisões como essa, não
rão ganhar ampla divulgação e atualização no sítio está o Supremo pronunciando a constitucionalidade
eletrônico do STF (art. 329 do RISTF), de modo a em sede principal (principaliter) mas incidenter tantum:
formarem verdadeiros pontos de referência sobre a constitucionalidade da lei impugnada aparece ali ex-
a admissibilidade ou não dos recursos a partir de clusivamente como fundamento, ou razão de decidir. O
súmulas impeditivas. Sendo assim, segundo o art. decisum, nos processos de controle difuso, consiste na
543-A, § 5º, do CPC/1973,34 a negativa de repercus- conclusão que o Tribunal vier a dar no tocante ao litígio
são geral terá o condão de prejudicar o julgamento pendente entre as partes, concluindo pela procedência
ou improcedência da pretensão do autor. [...] Não ocor-
de mérito dos demais recursos extraordinários que
re pois tal propagação de eficácia e, como vou dizendo,
veicularem a mesma controvérsia. A negativa de a pronúncia de constitucionalidade de uma lei ou de
seguimento poderá ser pronunciada pelo STF se o algum outro ato estatal em sede de controle difuso não
recurso já tiver em sua órbita de competência, ou é dotada de eficácia erga omnes (DINAMARCO, 2010,
mesmo pelo Presidente do Tribunal a quo. Vê-se p. 89-90, grifo do autor).
aqui uma modalidade de indeferimento dos recursos Maués (2010, p. 375) identifica ainda a existência
através de um efeito erga omnes. de uma reação sistêmica ao controle de constitucio-
Todavia, ainda que pesem tais tentativas de nalidade concentrado no Brasil, argumento que en-
redução do espaço do sistema difuso, o fato é que o fraquece ainda mais a tese da preponderância deste
mesmo ainda compõe a nossa tradição e se afirma, sobre o controle difuso. Assim,
continuadamente, como a regra e a tônica do Direito [u]ma primeira hipótese em que seria possível aventar
Constitucional brasileiro, de modo que suas decisões limitações ao exercício do controle difuso refere-se
apresentavam o efeito temporal retrospectivo (ex ao indeferimento da cautelar em ADIn. Como vimos,
tunc) e o efeito pessoal limitado às partes (inter contudo, o STF não aderiu à tese de que essa decisão
possui efeito vinculante, o que significa que o controle
incidental de constitucionalidade pode continuar sen-
33. Aqui, fica clara a deturpação do regramento constitucional: ao passo do exercido sobre a lei cuja eficácia não foi suspensa
que o texto do art. 103-A da CR/1988 considerava a análise caso a caso
do requisito de admissibilidade da repercussão geral, o art. 534-B do pelo STF (MAUÉS, 2010, p. 375).
CPC/1973 e o art. 328 do RISTF falam em julgamento por amostragem,
de modo que a decisão para um caso passa a ter validade para outros que O autor busca ainda destacar outras situações nas
ainda aguardam o julgamento. quais, então, poder-se-ia falar em preponderância: (a)
34. “§ 5º Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá deferimento da medida cautelar em ADC, com efeito
para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos
liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento
de suspender o curso do julgamento de processos que
Interno do Supremo Tribunal Federal” (BRASIL, 1973). discutam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto

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da ação.35 Mas Maués (2010) lembra que, de 1993 até Com isso, tal quadro vem reforçar a importância
2010, essa situação teve pouco impacto, já que ape- do controle difuso para a tradição brasileira, e sua
nas nas ADCs nos 4,36 5, 8, 9, 11, 12 e 18 o mesmo foi compatibilização com o controle concentrado. Logo:
utilizado. O STF reconheceu que a “singularidade da ainda que o ato normativo não seja julgado, pela via
questão” ou as “peculiaridades do caso concreto” po- direta, incompatível com a Constituição, sua aplicação
deriam afastar o efeito vinculante da decisão liminar pode gerar situações inconstitucionais não previstas
de uma ADC;37 (b) improcedência da ADI e da decisão pelo STF, demandando que a lei não seja aplicada à
pela procedência da ADC. Mas, novamente, a própria espécie. Embora não haja declaração de inconstitu-
jurisprudência do STF já assumiu o entendimento de cionalidade, a lei deixa de ser aplicada ao caso, o que
que é possível que, no caso a caso, a lei declarada (in) representa igualmente uma forma de exercício do
constitucional pelo STF em sede de ADI ou ADC possa controle difuso (MAUÉS, 2010, p. 381).
continuar a ser discutida no controle difuso, deixando- E conclui o mesmo autor:
-se de aplicar a decisão anterior.38
O conjunto de casos aqui analisados serve para
exemplificar que o direito brasileiro admite que o Juiz
35. “Como o próprio STF indica quando defere a cautelar em ADC, a afaste o precedente dotado de efeito vinculante, ou a
suspensão dos processos significa que não pode ser prolatada qualquer
decisão que tenha como pressuposto a inconstitucionalidade dos dispositivos súmula vinculante, sem desrespeitar a autoridade da
alcançados pela liminar, além de que, no caso de efeitos ex tunc da cautelar, decisão do STF, sempre que haja novos argumentos,
suspendem-se os efeitos de todas as decisões não transitadas em julgado
que também tenham deixado de aplicar a norma pela mesma razão. À
diferentes daqueles que foram recusados pelo Alto
primeira vista, isso representa suspender a possibilidade do exercício do Tribunal. Por essas razões, devemos concluir que a
controle difuso, monopolizando, ainda que temporariamente, a fiscalização declaração de constitucionalidade em ADIn ou ADC e
da constitucionalidade no STF” (MAUÉS, 2010, p. 376).
a edição de súmula vinculante que declara lei compatí-
36. “No entanto, no julgamento de várias reclamações com base na vel com a Constituição não eliminam a concorrência no
cautelar concedida na ADC no 4, o próprio STF reconheceu como válida a
não aplicação da lei em casos concretos pelos demais órgãos do judiciário. sistema de controle de constitucionalidade do Brasil,
Essa ação teve como objeto a declaração de constitucionalidade, com tendo em vista que permanece possível seu exercício
pedido de cautelar, do art. 1º da Lei nº 9.494/97, segundo o qual: ‘Aplica- no caso concreto. O indeferimento de reclamações
-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo
Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de pelo STF demonstra que o controle difuso continua
26.6.1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9.6.1966, e nos arts. ativo no exercício do juízo de constitucionalidade da
1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30.6.1992’. Como visto, essa lei estendia à lei, elaborando novos argumentos que podem, ao
tutela antecipada um conjunto de limitações já existentes no ordenamento
jurídico para a concessão de liminares em mandado de segurança ou final, ser reconhecidos como válidos pelo próprio STF.
processo cautelar contra o Poder Público” (MAUÉS, 2010, p. 376). Nada melhor para demonstrar o caráter concorrente
37. “[...] o STF firmou jurisprudência no sentido de que, tal como ementado de nosso sistema (MAUÉS, 2010, p. 382).
no julgamento das Rcls. nos 1.105, 1.137, 1.122, ‘A decisão na ADC-4 não
se aplica em matéria de natureza previdenciária’ e editou a Súmula 729,
com o mesmo teor” (MAUÉS, 2010, p. 378). 4 A FUNÇÃO DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE
38. “No julgamento do Agravo Regimental na Reclamação nº 3.034,
DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO
ajuizada pelo Estado da Paraíba, o STF manteve decisão do Presidente
do Tribunal de Justiça da Paraíba, que expedira ordem de sequestro de A partir das colocações anteriores, registra-se
bens do Estado para quitação de precatório, em razão de grave moléstia que é atual e necessária a figura do efeito erga omnes
que acometia a credora da Fazenda Pública. Para o Supremo Tribunal,
essa decisão não conflitava com seu julgamento da ADIn nº 1.662, que
possibilitada pela participação do Senado Federal ao
declarara inconstitucional hipótese similar de sequestro” (MAUÉS, 2010, editar a Resolução Legislativa retirando a eficácia da
p. 379). Outra situação de destaque: “Em decisão monocrática que norma declarada pelo STF.
indeferiu o pedido de liminar na Reclamação nº 4.374, ajuizada pelo INSS,
o Min. Gilmar Mendes também reconhece que o STF pode mudar o seu
entendimento sobre a constitucionalidade da norma em determinadas
É importante a seguinte observação: o Regimento
situações. Nesse caso, a reclamação fundava-se em pretensa ofensa à Interno do Senado Federal (art. 386) admite que tal
decisão do STF na ADIn nº 1.232, que julgara constitucional os critérios
estabelecidos pelo § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/1993 para o recebimento
comunicação, além de feita pelo STF, pode ser enca-
do benefício previsto no art. 203, inc. V, da CF. Na decisão reclamada, a minhada também pelo Procurador-Geral da República
Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Pernambuco afastara ou pela respectiva Comissão de Constituição e Justiça.
o requisito da renda per capita de ¼ do salário mínimo, considerando
que tal critério legal não impede o deferimento do benefício quando
demonstrada a situação de hipossuficiência. Na fundamentação de indivíduo e conceder-lhe o benefício assistencial sem seguir os parâmetros
sua decisão, o Min. Gilmar lembra que o STF mantinha-se firme no do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/1993’. Além disso, as decisões
deferimento de reclamações em casos semelhantes, mas que vinha reclamadas não declaravam a inconstitucionalidade do dispositivo, mas
revendo seu entendimento, baseado em que a reclamação não é um buscavam interpretá-lo em conjunto com a legislação posterior (Leis nos
meio hábil para ‘reexaminar o conjunto fático-probatório em que se 10.836/2004, 10.689/2003 e 9.533/1997), mais vantajosa para a análise
baseou a decisão reclamada para atestar o estado de miserabilidade do da miserabilidade” (MAUÉS, 2010, p. 379-380).

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

Ainda cabem duas discussões: (a) quanto à com- de Casa Legislativa, e não mais de “coordenador” dos
pulsoriedade da edição de tal resolução; e (b) quanto demais Poderes. Mas isso não significa que a tradição
aos seus respectivos efeitos. já assentada tenha sofrido alterações. Por isso mesmo,
Como já se mencionou, a doutrina constitucional o constituinte de 1946 manteve a mesma atribuição
brasileira se divide entre os entendimentos de que a ao Senado Federal. Como demonstra Brossard (1976),
atuação do Senado seria discricionária ou de que seria a tradição se manteve na década de 1970, preservan-
vinculada à decisão do STF. Desse modo, a função do do a respectiva leitura. O mesmo jurista posiciona-se,
Senado seria apenas a de dar publicidade à decisão inclusive, sobre os riscos de o Senado Federal editar
assumida pelo STF anteriormente. uma Resolução exclusivamente a partir de um único
julgado do STF – ainda que tenha sido este unânime.
Lembra Brossard (1976, p. 56) que Lúcio Bit- Para ele, é importante a prudência dos Senadores, que
tencourt foi um dos primeiros a levantar a tese da devem procurar verificar se a decisão do Tribunal não
natureza vinculada. Mas fica então uma pergunta: passa de um caso único e isolado, bem como balizar
qual a diferença, se tanto a decisão do STF quanto a sua decisão política nas leituras e nas interpretações
resolução do Senado são ambas públicas e veiculadas assumidas por outros atores do cenário jurídico na-
no Diário Oficial? Seria então o Senado uma espécie cional – Tribunais inferiores, doutrinadores etc., o
de órgão de registro ou de assessoria de imprensa do
que remete a uma ideia de sociedade efetivamente
Tribunal?
“aberta”. Ao que parece, essa tese não perde de vista,
A resposta para tais questionamentos, e claro, inclusive, que a decisão assumida pelo STF pode ser
para a negativa da tese do caráter vinculado, está eivada de erro (BROSSARD, 1976, p. 63).39
novamente na história institucional brasileira. Como
Outra reflexão também presa ao problema está
já se disse, o Senado Federal, no texto da Constituição
na definição do efeito temporal da Resolução do
de 1934, quando recebeu tal competência, funcio-
Senado. Segundo Cruz (2004, p. 343), a doutrina
nava em uma situação especial, como um “Poder
brasileira majoritária – o que inclui nomes como José
Coordenador” dos demais. Dessa dinâmica e visando
Afonso da Silva (2005), entre outros – advoga a tese
ao equilíbrio, o constituinte – justamente a partir de
uma dinâmica de checks and balances – determinou de que os efeitos temporais da Resolução do Senado
que o efeito erga omnes fosse dependente de uma Federal serão prospectivos, isto é, ex nunc; já outros
deliberação política no Senado Federal, ou seja, o juristas – como Mendes (1999) e Clève (2000), por
ato era discutido e votado pelo órgão, e não apenas exemplo – trazem a tese de que o ato do Senado não
aprovado em caráter automático (mecânico).
39. Ao que tudo indica, é exatamente esse ponto que parece obscurecer
Streck, Cattoni de Oliveira e Lima (2007, p. 4) os votos dos Min. Mendes e Grau na Rcl. nº 4.335-AC; principalmente
destacam então que o “novo” papel que pretendem o último, com uma atitude que pode soar como prepotência e como
arrogância, para quem o Tribunal “está mais ao alto”, devendo a doutrina
os Ministros do STF para o Senado Federal no controle se curvar às suas posições. Mas tal posição não é original. O Min. Grau, em
difuso perde de vista o fato de que ele é composto sua apresentação à obra de Schmitt (2006), Teologia Política, na “versão”
para a língua portuguesa, tenta atualizar e contextualizar a conclusão
por representantes eleitos pelo povo brasileiro que atingida pelo jurista alemão. Se “o soberano é aquele quem decide sobre
exercem uma função importante no que toca à legiti- o estado de exceção”, quem é o “soberano” no Brasil contemporâneo?
Ora, seria de se esperar que um jurista comprometido com a ordem
midade democrática, haja vista o debate público que democrática trazida pela Constituição de 1988 – para não mencionar um
a questão decidida pelo STF poderá promover. Além Ministro do STF, como é o caso de Grau – responderia afirmando que o
soberano é o povo. A resposta de Grau (2006, p. xii) vai por outra via – se
disso, deve-se observar que o seu caráter revogatório já é possível se surpreender com uma resposta que revela um conteúdo
decorre do fato de o ato ter natureza política, e, con- autoritário, muito próximo ao próprio Schmitt (2006), a continuação
consegue ser ainda mais assustadora – e atesta que o soberano é o
sequentemente, eficácia temporal ex nunc; ou seja, Judiciário, mais atentamente o STF. Se a resposta ainda poderia deixar
tem-se aqui uma norma jurídica posterior retirando dúvidas quanto ao fato de Grau ter, realmente, entendido o argumento
schmittiano, essas indagações desaparecem quando se lê o voto na Rcl.
a anterior do ordenamento jurídico. nº 4.335/AC. A saída pela via da mutação constitucional que tomam,
tanto ele quanto Mendes, não deixa de querer revelar que o STF detém o
Entretanto, alguém poderia observar que, a partir controle tanto sobre o direito quanto sobre a exceção schmittiana. E, por
da Constituição de 1946, quando retorna essa atribui- isso mesmo, decorre a proposta de uma mutação sobre o art. 52, inc. X,
da Constituição de 1988. Não é sem propósito, portanto, a crítica que o
ção ao Senado Federal, após a queda do regime jurídi- Min. Pertence faz em seu voto, questionando a legitimidade da mutação
co da Carta de 1937, o Senado volta a ocupar o papel e suas proximidades a um Golpe de Estado.

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se confunde com a revogação da lei, e, por isso mes- política da deliberação do Senado Federal cumpre
mo, teria efeitos de confirmar a inconstitucionalidade, um importante papel no que toca à possibilidade de
sendo, então, ex tunc. abertura de um canal comunicativo para a sociedade.
Ou seja, o Senado Federal não atua apenas como um
Streck, Cattoni de Oliveira e Lima (2007, p. 5) adu-
órgão de uniformização de jurisprudência, mas há
zem então um importante argumento: o STF parece
outra função igualmente importante subjacente.
se esquecer do que significa “suspender a execução”
de uma lei ou de um ato normativo. Ora, uma coisa Ora, tal situação, como o mesmo autor já identi-
é a “retirada da eficácia da lei” própria do controle ficou, marca a oportunidade de que, para a tomada
concentrado, outra é a ação do Senado de retirar do de sua decisão, o Senado Federal se mostre poroso
quadro das leis uma lei declarada inconstitucional no para participações advindas de vários setores da
controle difuso (o que é revogação). Autores filiados sociedade – demais Tribunais, membros da doutrina
à mesma corrente de Mendes (1999) e de Clève constitucional, intelectuais etc. –, pluralizando as ra-
(2000) parecem recair no equívoco de acreditar que zões para uma tomada de decisão. Há então aqui um
a suspensão da eficácia de uma lei é similar ao ato de nítido ganho para uma democracia procedimental, o
revogação. que não pode ser apagado, como quer uma parcela
do STF. Essa abertura para novas razões sobre a (in)
O ato do Senado Federal, até por ser um ato
constitucionalidade da norma, distintas daquelas tra-
de natureza política, é similar ao ato de revogação
zidas pelo STF em sua decisão, provocará um ganho
(STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 5);
qualitativo de legitimidade para a deliberação do
logo, os efeitos preteridos permanecem, permitindo
Senado Federal.
falar no efeito ex nunc, ao passo que a decisão no
controle concentrado visa declarar a nulidade da 5 ÚLTIMA REFLEXÃO: O EQUÍVOCO POR DETRÁS
norma. Nessa lógica, exige-se uma interpretação no DO ARGUMENTO DA MUTAÇÃO IN CONSTITU
sentido de que norma inconstitucional nunca poderia CIONAL NA RCL. Nº 4.355/AC
ter existido, e, por isso mesmo, nunca teria produzido
os seus efeitos, o que determinaria o efeito ex tunc Fica ainda um questionamento importante: já
(STRECK, 2002, p. 377). Assim, que é a tradição do constitucionalismo brasileiro
subjacente ao texto da Constituição de 1988 que fixa
[s]e até o momento em que o Supremo Tribunal decla- não apenas o papel do Senado Federal na dinâmica
rou a inconstitucionalidade da lei no controle difuso, a
do controle de constitucionalidade, mas também a
lei era vigente e válida, a decisão no caso concreto não
sua distinção em face do controle concentrado, qual
pode ser equiparada à decisão tomada em sede de
controle concentrado. Repetindo: a valer a tese de que a legitimidade do STF para decidir alterar por meio de
os efeitos da decisão do senado retroagem, portanto, sua decisão – e não por meio de um processo formal
são ex tunc, qual a real modificação que houve com a da Constituição – suas disposições?
implantação do controle concentrado, em 1965? Na Ora, como bem estabelecem Streck, Cattoni de
verdade, se os efeitos da decisão desde sempre tinham Oliveira e Lima (2007, p. 6), tais características apre-
o condão de transformar os efeitos inter partes em
sentadas pela Constituição de 1988 não são meros
efeitos erga omnes e ex tunc, a pergunta que cabe é:
elementos de um debate entre acadêmicos, mas antes
por que, na prática, desde o ano de 1934 até 1965,
o controle de constitucionalidade tinha tão pouca de tudo, são normas constitucionais que revelam,
eficácia? Desse modo, mesmo que o próprio Supremo quando entendidas sob um pano de fundo maior, a
Tribunal assim já tenha decidido (RSM 17.976), temos tradição constitucional brasileira, e mais, assinalam
que a razão está com aqueles que sustentam os efeitos “um processo de aprendizagem social subjacente à
ex nunc da decisão suspensiva do Senado (STRECK, história constitucional brasileira”.
2002, p. 377, grifo do autor).
Pode-se ainda acrescentar que a manutenção da
Toda a questão, portanto, parece radicar no fato posição assumida por Mendes e Grau em seus votos
de a atuação do Senado Federal ter natureza políti- acaba por violar também um “modelo constitucional
ca, o que os votos dos Min. Mendes e Grau tentam de processo”, já que a decisão em sede de recurso ex-
obscurecer. Mesmo assim, Brossard (1976) já havia traordinário dotada de eficácia erga omnes se faz im-
identificado uma importante questão: a natureza perativa para pessoas que não participaram do debate

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que conduziu a construção do próprio provimento probatórias da parte contrária ou, mesmo, oficiosas
jurisdicional (STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, do julgador; e d) o direito de ser ouvido e julgado por
2007, p. 4). Esse “modelo constitucional”40 é formado um Juiz imune à ciência privada (private informazioni),
por um conjunto de princípios processuais constitu- que decida a causa unicamente com base em provas
e elementos adquiridos no debate contraditório (NU-
cionalizados, dentre eles o princípio do contraditório
NES, 2008, p. 230).
e o princípio da ampla defesa (ANDOLINA; VIGNERA,
1990). Por se tratar de um recurso, é evidente que há Logo, a tese advogada pelos Min. Mendes e
interesses dos sujeitos processuais envolvidos, não Grau acaba por ignorar a dimensão processual, que
sendo cabível afirmar a tese de um julgamento “ob- também é um dos marcos distintivos dos controles
jetivo”, sob pena de contrariedade à própria lógica do difuso e concentrado. A teoria processual democrá-
instituto processual. Assim, lembra Nunes, tica trazida pelas teses de Fazzalari (1996), Andolina
o instituto do recurso apresenta-se como criador de e Vignera (1990), Gonçalves (2001) e Cattoni de
um espaço procedimental de exercício do contraditó- Oliveira (2001) expressa bem as preocupações em
rio e da ampla defesa, permitindo ao juízo ad quem superar uma concepção solipsista de processo, indi-
a análise de questões já debatidas pelas partes, mas cando a necessidade de, em observância ao princípio
levadas, ou não, em consideração pelo órgão julgador democrático, respeitar os espaços de participação de
de primeira instância em sua decisão, ou de questões todos aqueles que são atingidos pela decisão judicial
suscitadas pelo juízo de primeira instância de ofício ou (STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 10).41
sem a participação de todas as partes em seu provi-
mento, implementando, assim, um espaço de debate Importantes ainda são as observações feitas
(NUNES, 2003, p. 148). tanto pelo Min. Pertence quanto por Streck, Cattoni
de Oliveira e Lima (2007, p. 6) no sentido de que tal
É importante então fazer um alerta: o princípio
conclusão traz ainda uma consequência séria: o es-
do contraditório, hoje, não pode mais ser reduzido,
vaziamento da função da súmula vinculante, inserida
como outrora, a um direito de “dizer e contradizer”
na órbita jurídica brasileira pela EC nº 45/2004. Para a
ou à “bilateralidade em audiência”, como querem as
edição de uma súmula vinculante pelo STF, conforme
teorias tradicionais (CINTRA; GRINOVER; DINAMAR-
o art. 103-A da Constituição de 1988,42 precisa-se
CO, 2003, p. 55-56). O contraditório, a partir de uma
de um quórum especial de 2/3 (dois terços) de seus
perspectiva processual democrática, deve ser com-
membros. Já a decisão a que o STF atribui a eficácia
preendido como direito de participação em igualdade
erga omnes, o HC nº 82.959, foi tomada por um quó-
na preparação do provimento, como já faz Fazzalari
rum nada tranquilo, de seis votos a cinco, como lem-
(1996). Explicando melhor, posiciona-se Nunes (2008,
bram Streck, Cattoni de Oliveira e Lima (2007, p. 6).
p. 230):
Em relação às partes, o contraditório aglomera Ao fim, a reconstrução, análise e discussão dos
um feixe de direitos dele decorrentes, entre eles: a) votos acabam por abrir para um questionamento
direito a uma cientificação regular durante todo o mais profundo acerca dos limites e da legitimidade
procedimento, ou seja, uma citação adequada do ato do uso da chamada mutação constitucional. Para
introdutivo da demanda e a intimação de cada evento
processual posterior que lhe permita o exercício efe- 41. Nesse aspecto, é fundamental uma incursão nos aprendizados trazidos
tivo da defesa no curso do procedimento; b) o direito pela hermenêutica para que se possa compreender, como explicam Streck,
à prova, possibilitando-lhe sua obtenção toda vez que Cattoni de Oliveira e Lima (2007, p. 10), que a filosofia da consciência entra
em processo de ruínas a partir da proposta de compreensão intersubjetiva
esta for relevante; c) em decorrência do anterior, o do mundo e do Direito. Também no campo processual, a hermenêutica e
direito de assistir pessoalmente a assunção da prova as teorias processuais democráticas vão apresentar séria oposição à leitura
e de se contrapor às alegações de fato ou às atividades “instrumentalista” do processo, como a levada a cabo por Dinamarco
(1999) e outros.
42. “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por
40. “[...] a estrutura procedimental como espaço intersubjetivo e provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após
comparticipativo dos provimentos, com a marca de nosso ‘modelo reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que,
constitucional’ em sua acepção dinâmica, lastreado institucionalmente a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em
por uma ampla defesa, uma fundamentação adequada das decisões e relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública
por um contraditório dinâmico, em que existe um diálogo genuíno entre direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como
Juiz e partes, e não meramente formal, entendido como princípio da proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”
bilateralidade da audiência” (NUNES, 2003, p. 52). (BRASIL, 1988).

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uma parte da teoria constitucional, a mutação é um É interessante observar que as leituras desenvol-
mecanismo legítimo de “atualização” (alteração) das vidas pelos Min. Mendes e Grau acerca da mutação
normas constitucionais. Todavia, o questionamento constitucional são ainda colidentes entre si. Para o
de Streck, Cattoni de Oliveira e Lima (2007, p. 11) é primeiro, a mutação é instrumental hermenêutico-
crucial: não seria a mutação constitucional uma forma -constitucional, por meio do qual o Tribunal pode
de “substituição do poder constituinte pelo Poder modificar a norma, mas com a preservação do texto
Judiciário”, o que revelaria um grave desvio no campo original; para o segundo, a mutação constitucional
da separação das funções do Estado, comprometendo exige a alteração tanto da norma como do texto nor-
a dinâmica democrática? mativo. Em ambos os casos, fica clara a redução da
estrutura normativa do Direito a um mero conjunto
É verdade que a posição assumida pelo STF
de regras jurídicas, olvidando-se, de modo absolu-
demonstra uma faceta decisionista da função juris- to, uma compreensão do Direito a partir de uma
dicional, principalmente no que tange ao exercício dimensão principiológica; e mais, uma dimensão
dos mecanismos de controle de constitucionalidade, principiológica organizada a partir de uma exigência
já que passam a exercer um papel hipertrofiado, avo- de integridade (DWORKIN, 1999; STRECK; CATTONI
cando uma legitimidade duvidosa para não apenas DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 12). Todo o problema é
“guardar” a Constituição, mas assumir como uma mo- desenvolvido pelos Ministros a partir de uma dico-
dalidade de poder constituinte permanente (STRECK; tomia entre “texto e norma” (STRECK; CATTONI DE
CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 12-13). OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 13), apostando na tese da
Assim, se para o STF a Constituição de 1988 não mutação como a solução taumaturga do problema,
está suficientemente em compasso com o que ele mas que é falha por não problematizar paradigma-
entende por “realidade”, a questão deixa de ser tra- ticamente a questão.
tada sob o ponto de vista de uma discussão pública Ora, a teoria e o conceito de mutação consti-
e democrática sobre a necessidade de reforma/alte- tucional têm sua gênese teórica no pensamento
ração da Constituição pelos canais institucionais que de Laband e Jellinek, nos fins do séc. 19 e início do
o próprio Texto Maior prevê e passa a ser vista como séc. 20, com posterior reformulação e tentativa de
uma saída mais imediatista, qual seja a alteração da sistematização por Dau-Lin, no curso da República de
normatividade constitucional pelo STF.43 Weimar. Em ambos os casos, assim como a posterior
Outra questão também levantada por Streck, teorização de Hesse, o que se vê é a utilização do
Cattoni de Oliveira e Lima (2007, p. 11): não have- mecanismo da mutação constitucional para a reso-
ria, sob a base da tese da mutação constitucional, lução de problemas típicos de paradigmas jurídicos
um problema hermenêutico grave? Ora, a suposta diferentes do assumido pelo Estado Democrático de
correção jurisprudencial desse hiato entre realidade Direito. Isso porque tais propostas de soluções aos
e normatividade não está na verdade encobrindo problemas se dão ainda dentro dos limites de uma
concepção positivista já em crise e descompromis-
uma concepção limitada de compreender o próprio
sada com uma função jurisdicional democrática, que
Direito contemporâneo, que deveria estar afinado a
necessariamente tem que assumir uma interpreta-
um paradigma do Estado Democrático de Direito? Ou,
ção construtiva (DWORKIN, 1999) do Direito, tendo
dizendo de outro modo: não se está tentando lançar
em vista que o Direito é um empreendimento cole-
mão de um instrumental teórico típico da crise do
tivo do qual participa toda a sociedade – na forma
positivismo para solucionar o que parece ser um pro-
de uma comunidade de princípios.
blema do tempo atual (JACOBSON; SCHLINK, 2002)?
Além do mais, deve-se lembrar que todos os au-
43. “Ora, um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não tores que se debruçaram sobre a figura da mutação
pode ‘inventar’ o direito: este não é seu legítimo papel como poder constitucional identificaram que seu emprego se dá
jurisdicional, numa democracia”. “A atividade jurisdicional, mesmo a das
cortes constitucionais, não é legislativa, muito menos constituinte (e assim sempre dentro de limites que, se desobedecidos,
não há o menor cabimento, diga-se de passagem, na afirmação do Min. desnaturam toda a legitimidade de sua aplicação,
Francisco Rezek, quando do julgamento da ADC nº 1, quando este dizia que
a função do STF é a de um oráculo [sic] que ‘diz o que é a Constituição’)”
fazendo com que o produto mental seja, na realida-
(STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p. 12). de, uma mutação inconstitucional.

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Todavia, é espantoso que nenhum dos votos a pode ser evidenciado um agigantamento no plano
favor de sua aplicação, no caso da Rcl. nº 4.335/AC, das funções do Judiciário, o que viria a ser contrário
tenha sequer levado em conta tais limites e suas à ideia de checks and balances adotada pelo consti-
consequências.44 Ao inverso, todos os argumentos tuinte de 1988.
parecem se apoiar apenas em uma racionalidade
A discussão trazida então pelo voto do Min.
instrumental (celeridade, efetividade e segurança
Pertence é importante: será que, ao se lançar mão
jurídica, como razões elevadas a verdadeiros dogmas
no interior do discurso decisório), segundo a qual “os de um recurso como a mutação constitucional, não
fins justificam os meios”. se está aceitando o “triunfo do fato sobre a norma”
e, com isso, correndo o risco de se perder de vista
Por isso mesmo há que avaliar se, no quadro teó- a “força normativa da Constituição” (HESSE, 1991)?
rico da mutação constitucional, seria constitucional
a postura decisória assumida pelos Min. Mendes e Dito de outro modo, a utilização da mutação
Grau.45 Afinal, poderia o STF modificar uma norma constitucional não poderia trazer danos para a su-
presente no texto da Constituição de 1988 versando premacia da Constituição e para o próprio Estado
sobre separação de Poderes, uma vez que o próprio de Direito? Ora, fica claro que o Min. Pertence não
Texto Constitucional, no seu art. 60, § 4º, inc. III,46 im- coaduna com a solução encontrada pelos Min.Men-
pede a alteração pela via da emenda à Constituição? des e Grau, pois tal situação acaba em uma inversão
Logo, se nem mesmo o poder constituinte derivado de valores.
está autorizado pela Constituição a proceder a uma O próprio voto do Min. Barbosa remete ao plano
alteração como essa, o que legitimará o STF? da dogmática constitucional, na qual muitos autores
Fato é que, textualmente, o dispositivo cons- apontam que, para se afirmar a existência de uma
titucional refere-se apenas à figura da abolição mutação constitucional, dois requisitos são impor-
(extinção), mas tal situação deve ser interpretada tantes: (a) o decurso de um período de tempo; e (b)
de modo mais adequado como proteção ao núcleo o desuso da norma – o que revela a fragilidade das
essencial dos princípios, de modo que, sendo assim, pretensões dos Min. Mendes e Grau.
Dessa forma, o julgamento da Rcl. nº 4.335/AC
44. Ora, para os Min. Barbosa e Pertence, no mesmo julgado, a utilização acaba por deixar uma constelação de indagações
da mutação constitucional no caso é totalmente descabida e vilipendiadora
da própria Constituição de 1988. Pertence, mais uma vez, lembra que isso sem solução satisfatória. E mais, acaba por revelar
traz toda a aparência de “golpe de Estado”. a fragilidade teórica da compreensão levada a cabo
45. “Portanto, na Rcl. nº 4.335-5/AC, o conceito e o limite de mutação pelo próprio STF sobre o que seja a mutação constitu-
adotados por Eros Grau desrespeitam a Constituição. Como já dito,
existe uma única maneira de mudar o texto constitucional – chamada de cional. Ora, dos quatro Ministros que até o momento
reforma constitucional – e um único responsável por tal alteração – poder votaram, nenhum compartilhou do mesmo entendi-
Legislativo (titular do poder constituinte derivado). E também existe um
procedimento específico para alterar a Constituição. Ora, o Juiz não é
mento que seus pares, demonstrando a obscuridade
nem competente e nem pode se socorrer do procedimento adequado que ronda tal instituto jurídico, e mais, a relevância
para prover à alteração constitucional. Destarte, uma alteração do texto
constitucional pela via interpretativa jurisdicional (exatamente o que Eros
de um estudo aprofundado sobre suas condições de
Grau propôs) atenta contra a Constituição” (CARVALHO, 2009, p. 25). possibilidade e de limites, quer dogmáticos quer de
46. “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I – legitimidade democrática.
de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do
Senado Federal; II – do Presidente da República; III – de mais da metade Mas há um elemento comum aos votos dados
das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se,
cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º A Constituição
pelos Min. Gilmar Mendes e Eros Grau: a mutação é
não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado resultado da própria leitura semântica da Constitui-
de defesa ou de estado de sítio. § 2º A proposta será discutida e votada
em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se
ção que eles desenvolvem. Isto é, a alegação de que é
aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos preciso adequar a norma a partir do texto normativo
membros. § 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da constitucional a uma realidade ainda é uma forma de
Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número
de ordem. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda supervalorização do texto em detrimento da norma
tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, e também da própria realidade.
secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos
e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda
rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta
Há aqui um paradoxo. Por meio da afirmação
na mesma sessão legislativa” (BRASIL, 1988). de que o Tribunal irá proceder a uma mutação

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DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

constitucional, busca-se exatamente encobrir a di- ccivil_03/constituicao/constituicao46. htm>. Acesso


ficuldade em lidar com outro standard normativo em: 16 abr. 2015.
que não as regras, qual seja a figura dos princípios
_____. Constituição (1967). Constituição da Re-
jurídicos. Tal situação fica muito clara quando se
pública Federativa do Brasil de 1967. Disponível em:
volta aos momentos históricos nos quais a teoria
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
da mutação constitucional foi pensada: a crise do constituicao67.htm>. Acesso em: 16 abr. 2015.
positivismo na Alemanha.
_____. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
Nesse contexto, a solução realista – a autori- Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da
zação de que o Judiciário crie norma substitutiva à União, Brasília, 17 jan. 1973.
Constituição – é, na verdade, outra fase do positivis-
mo jurídico e ainda um apego paradigmaticamente _____. Constituição (1988). Constituição da Re-
injustificado ao texto normativo constitucional pública Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado
(CAMARGO, 2009; NUNES, 2008, p. 191).47 E, como Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1988.
tal, inadequado para um paradigma que se queira _____. Emenda constitucional n. 3, de 17 de
assumir como democrático. março de 1993. Altera os arts. 40, 42, 102, 103, 155,
156, 160, 167 da Constituição Federal. Diário Oficial
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2009. Ministro Sydney Sanches. DJ, 11 fev. 1998. Diário da
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relevância no recurso extraordinário: comentários à _____. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Emenda Regimental n. 3, de 12-6-1975, do Supremo Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasí-
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ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Lei/L11464.htm>.
Acesso em: 16 abr. 2015.
47. Nesse cenário, ganha enorme destaque o julgamento da ADPF nº 132
pelo STF, justamente pela demonstração da capacidade de compreensão _____. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação
dessa dimensão principiológica contida na ordem jurídica. Se os passos
da Rcl. nº 4.335/AC fossem seguidos, o natural seria esperar a afirmação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 3510 / DF.
de que a Constituição passou por uma mutação constitucional para Diário da Justiça Eletrônico, 28 maio 2010.
afirmar o direito de igual tratamento das uniões homoafetivas, mas
essa possibilidade sequer foi cogitada pelo Tribunal. Vecchiatti (2011)
até tenta justificar a decisão pela via da mutação, mas tal argumento
_____. Supremo Tribunal Federal. Plenário.
equivocado já não foi assumido pelos julgadores, e o correto seria, como Reclamação n. 4.355 / AC. Relator: Ministro Marco
faz Dworkin (1985, 2006), compreendê-lo à luz de uma interpretação Aurélio. DJ, 1º set. 2006. Diário da Justiça Eletrônico,
construtiva do Direito, que toma consciência de um processo histórico
de aprendizado ou das “ambições” a que o próprio Direito se reserva. 22 out. 2010.
Afinal, o que a decisão faz é reconhecer a existência de um princípio mais
abstrato, segundo o qual o “Estado não deve tomar decisões apoiadas _____. Supremo Tribunal Federal. Regimen-
em preconceitos sociais” ou, de outra forma, “nenhuma decisão estatal
pode prejudicar um grupo por simples preconceito social” (DWORKIN,
to interno do STF. Brasília: STF, 2015. Disponível
2006, p. 430). em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacao

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JAN/17
DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES

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A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal COMO REFERENCIAR ESTE ARTIGO:
sobre o controle difuso: mutação constitucional e PEDRON, Flávio Quinaud. O julgamento da Rcl. nº 4.335/AC
limites da legitimidade da jurisdição constitucional. e o papel do Senado Federal no controle difuso de constitu-
JusNavigandi, Teresina, ano 12, n. 1498, 8 ago. 2007. cionalidade. BDA – Boletim de Direito Administrativo, São
Disponível em: <http://jus.com.br/ artigos/10253/a- Paulo, NDJ, ano 33, n. 1, p. 50-66, jan. 2017.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Constituição de Estado-membro – Dispositivo que


impede servidor público estadual de substituir, sob qualquer
pretexto, trabalhadores de empresas privadas em greve, ressalvada a
legislação federal – Constitucionalidade – Ausência de comprometimento
das competências do Governador – Mera explicitação
de prática desabonada pela Constituição Federal

ADIn. nº 232/RJ

Requerente: Governador do Estado do Rio de Janeiro

Interessada: Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

Relator: Min. Teori Zavascki

Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Art. 77, inc. XXIII. Impedimento à substituição de traba-
lhadores de empresas privadas por servidores, ressalvada a legislação federal. Legitimidade formal.
ausência de comprometimento das competências do Governador do Estado. Mera explicitação de
prática desabonada pela CF.
1. A experiência jurisprudencial dessa Suprema Corte consolidou ao longo do tempo o entendimento
de que as regras básicas do processo legislativo presentes na Constituição Federal incorporam noções
elementares do modelo de separação (e interação) dos Poderes Públicos constituídos, o que as torna
de observância mandatória no âmbito das ordens jurídicas locais, por imposição do art. 25 da CF.
2. Desde que (a) respeitadas as linhas básicas que regem a relação entre poderes na Federação – no
que se incluem as regras de reserva de iniciativa – e desde que (b) o Parlamento local não suprima
do Governador de Estado a possibilidade de exercício de uma opção política legítima dentre aquelas
contidas na sua faixa de competências típicas, pode a Constituição Estadual dispor de modo singular
a respeito do funcionamento da respectiva Administração Pública.
3. O inc. XXIII do art. 77 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro não retira do Governador do Estado
uma alternativa viável de aproveitamento dos servidores locais, mas apenas proíbe que a substituição
dos grevistas venha a ser implementada para servir a pretextos outros que não a emergencialidade.
4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

ACÓRDÃO Lewandowski (Presidente), que julgavam procedente


a ação.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acor-
dam os Ministros do STF, em sessão plenária, sob Brasília, 5 de agosto de 2015 (data do julgamento).
a presidência do Min. Ricardo Lewandowski, na Min. Teori Zavascki, Relator.
conformidade da ata de julgamentos e das notas
taquigráficas, por maioria, em julgar improcedente RELATÓRIO
o pedido formulado na ação, nos termos do voto do O Sr. Min. Teori Zavascki (Relator): Em exame
Relator. Vencidos os Min. Marco Aurélio e Ricardo ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Governador do Estado do Rio de Janeiro para objetar Por ofício juntado aos autos em 1º.3.2002, a
contra a validade constitucional do inc. XXIII do art. Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro cor-
77 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, cuja roborou a vigência do dispositivo hostilizado, situação
literalidade é a seguinte: que se mantém até a presente data.
Art. 77. …............................................................ É o relatório.
XXIII – ressalvada a legislação federal aplicável,
ao servidor público estadual é proibido substituir, VOTO
sobre qualquer pretexto, trabalhadores de empresas
privadas em greve; O Sr. Min. Teori Zavascki (Relator): 1. A argumen-
tação deduzida na inicial acentua basicamente a linha
O requerente pondera que o dispositivo em da ilegitimidade formal. Alega-se, em suma, que, ao
questão seria formal e materialmente desconforme inscrever no texto da Constituição do Estado do Rio
com o texto da Constituição Federal. A sua invalidade de Janeiro uma vedação à substituição de trabalha-
decorreria do desatendimento das regras de iniciativa dores de empresas privadas por servidores públicos,
constantes dos arts. 61, inc. II, als. b e c; e 84, incs.
a Assembleia Constituinte local teria se apropriado de
II e IV, que atribuiriam ao Chefe do Poder Executivo
um juízo político que caberia unicamente ao Gover-
local a prerrogativa de iniciar os processos legislativos
nador do Estado, a quem a Constituição Federal teria
pertinentes à organização administrativa do Estado e
ao regime jurídico de seus servidores públicos. reservado a prerrogativa de dar início a processos
legislativos sobre o regime jurídico dos servidores e
Sustenta que, como a regra atacada não faz sobre a organização da Administração Pública local,
distinção entre as “empresas privadas” por ela atingi- bem como a autoridade para conduzir a direção su-
das, ela alcançaria empresas públicas, sociedades de perior do Executivo.
economia e também as concessionárias de serviços
públicos, sem exceção. Com isso, retiraria do Gover- Realmente, a experiência jurisprudencial dessa
nador do Estado a prerrogativa de adotar medidas Suprema Corte consolidou ao longo do tempo o
para neutralizar os efeitos dramáticos de eventuais entendimento de que as regras básicas do processo
paralisações, tolhendo-o, assim, na direção superior legislativo presentes na Constituição Federal incorpo-
dos serviços que lhe são subordinados. ram noções elementares do modelo de separação (e
Convocada a se manifestar, a Assembleia Legisla- interação) dos Poderes Públicos constituídos, o que
tiva do Estado do Rio de Janeiro informou ser impró- as torna de observância inafastável no âmbito das
pria a presunção de que o texto impugnado não teria ordens jurídicas locais, por imposição do art. 25 da CF.
ressalvado as concessionárias, As regras de iniciativa reservada, por demarcarem
já que dispensável tal excepcionalidade, uma vez que de forma incisiva o terreno de competências privativas
ela está implícita na regra, porque, à evidência, os assinaladas a cada uma das instância[s] políticas do
serviços públicos prestados pelas concessionárias não País, estão entre as disposições mais representativas
podem sofrer solução de continuidade (fls. 44). da identidade institucional da Federação brasileira, e
Quanto ao vício de forma suscitado, afirmou que por isso mereceram capítulo especial no repertório
o poder constituinte outorgado segundo o art. 11 do de julgados do Tribunal. Interpretando-as, o STF as-
ADCT não estaria condicionado à observância das severou que à força normativa das regras de iniciativa
regras de iniciativa. corresponde não apenas um encargo positivo a ser
O Advogado-Geral da União (fls. 51-59) acedeu cumprido pelas Assembleias Legislativas – que ficam
aos argumentos prestados pela Assembleia local, obrigadas a reproduzi-las – mas também uma eficácia
acrescentando que o poder constituinte estadual es- negativa, que as impede de abordar, ainda que por
taria vinculado apenas aos princípios da Constituição deliberação em momento constituinte, temas que são
Federal, e não à disciplina por ele conferida a toda e alçados à iniciativa de outras autoridades públicas.
qualquer matéria. Nesse sentido, a Corte já resolveu, a respeito
O Procurador-Geral da República concluiu, de da própria Constituição Estadual do Rio de Janeiro,
maneira convergente, em parecer que opina pela que não poderia ter a Assembleia Legislativa flumi-
improcedência do pedido. nense vindo a (a) tratar dos requisitos para ingresso

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

no serviço público, estabelecendo um prazo mínimo na feição assimétrica que a norma estadual impugnada
de 5 anos de exercício como condição para o acesso deu a um dos aspectos do correspondente processo
(ADIn. nº 243, Red. p/ acórdão Min. Marco Aurélio, legislativo em relação ao modelo federal.
DJ de 29.11.2002); (b) facultar a transformação em Ora, a exigência constante do art. 112, § 2º, da
pecúnia de períodos de licença especial e férias não Constituição fluminense consagra mera restrição
gozadas (ADIn. nº 227, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ material à atividade do legislador estadual, que com
de 18.5.2001); (c) assegurar o direito de nomeação no ela se vê impedido de conceder gratuidade sem pro-
prazo de 180 (cento e oitenta) dias a todo e qualquer ceder à necessária indicação da fonte de custeio. É
candidato aprovado dentro do número de vagas para assente a jurisprudência da Corte no sentido de que
concursos (ADIn. nº 2931, Rel. Min. Carlos Britto, DJ as regras do processo legislativo federal que devem
de 29.9.2006); e (d) impor o pagamento de décimo [ser] reproduzidas no âmbito estadual são apenas as
de cunho substantivo, coisa que se não reconhece ao
terceiro salário em data e forma definidas (ADIn. nº
dispositivo atacado.
1448, Red. p/ acórdão Min. Joaquim Barbosa, DJe de
10.10.2007). É que este não se destina a promover alterações
no perfil do processo legislativo, considerado em
Em todos esse[s] casos, predominou a compreen- si mesmo; volta-se, antes, a estabelecer restrições
são de que, ao trazer para a positividade superior quanto a um produto específico do processo e que
da Constituição Estadual conteúdos que deveriam são eventuais leis sobre gratuidades. É, por isso,
merecer ponderação em sede de legislação ordinária, equivocado ver qualquer relação de contrariedade
a Assembleia Legislativa teria suprimido da avaliação entre as limitações constitucionais vinculadas ao
do Chefe do Poder Executivo local a conveniência e a princípio federativo e a norma sob análise, que delas
oportunidade de propor o debate a respeito de temas não desbordou.
que estariam tipicamente submetidos à sua alçada Assim, desde que (a) respeitadas as linhas básicas
política, como o são aqueles relativos à remuneração que regem a relação entre poderes na federação brasi-
de cargos, empregos e funções (art. 61, § 1º, inc. I, al. leira – no que se incluem, por excelência, as regras de
a, da CF), ao regime jurídico dos servidores (art. 61, reserva de iniciativa – e desde que (b) o parlamento
§ 1º, inc. I, al. c, da CF), bem como à organização da local não suprima do Governador de Estado a possi-
Administração local (art. 61, § 1º, inc. I, al. e, da CF). bilidade de exercício de uma opção política legítima
Permitir o tratamento desses temas diretamente dentre aquelas contidas na sua faixa de competências
no texto da Constituição Estadual equivaleria, portan- típicas, pode a Constituição Estadual dispor de modo
to, a esvaziar as competências próprias do Chefe do singular a respeito do funcionamento da respectiva
Poder Executivo. Administração Pública, sobretudo quando essa dis-
2. Contudo, isso não quer dizer que toda e ciplina peculiar traduza a concretização de princípios
qualquer norma federal referente à Administração também contemplados no texto federal.
Pública deva ser obrigatoriamente transportada para 3. É justamente isso o que sucede no particular.
as Constituições Estaduais, ou, o que seria ainda mais Fazendo ressalva à legislação federal aplicável, o texto
restritivo, que estejam as Assembleias Constituintes impugnado proíbe que servidor público estadual seja
Estaduais submetidas a uma completa interdição designado para substituir, sob qualquer pretexto, tra-
na disciplina das regras gerais de funcionamento da balhadores de empresas privadas em greve.
Administração local, devendo se ater estritamente à
reprodução do texto federal. Embora o preceito esteja sem dúvida alguma
relacionado ao funcionamento da Administração
Somente as normas de cunho substantivo é que Pública fluminense, ele não se sobrepôs ao campo de
devem ser necessariamente adotadas pelo Cons- discricionariedade política que a Constituição Federal
tituinte local. A propósito, e também tratando de reservou, com absoluta exclusividade, à iniciativa do
norma da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, Governador do Estado. Nem tampouco se prestou o
no julgamento da ADIn. nº 3225, o Min. Cezar Peluso preceito a dar à Administração local uma configuração
fez observar o seguinte: definitiva, criando órgãos, cometendo atribuições
Em primeiro lugar, não encontro ofensa ao prin- ou fixando prazos para a função executiva que não
cípio federativo, a qual, no entender da autora, estaria estivessem previstos no texto da Constituição Federal.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Cumpre recordar que, ao apreciar pedido de Com efeito, a própria Constituição Federal sinaliza
cautelar manifestado na ADIn. nº 1164, o Plenário hipóteses de excepcionalidade, em que envolvidas
do STF já não via plausibilidade na tese que atribuía “necessidades inadiáveis da comunidade” (art. 9º, §
inconstitucionalidade formal a uma norma da Lei Or- 1º, da CF), que poderiam justificar o deslocamento
gânica do Distrito Federal cujo conteúdo era idêntico de servidores para o exercício temporário de funções
ao que se tem na espécie. Naquela ocasião, o Min. alheias aos correspondentes cargos. É como dispõe,
Carlos Veloso apontou o seguinte: aliás, o inc. XVII do art. 117 da Lei nº 8.112/1990, a
Não vejo, entretanto, relevância na arguição de saber:
inconstitucionalidade. Capítulo II
Proibir a lei que servidores públicos substituam Das Proibições
empregados de empresas privadas em greve não me
parece afrontoso ao dispositivo constitucional que Art.117. Ao servidor é proibido: (Vide Medida
estabelece que é da iniciativa privativa do Chefe do Provisória nº 2.225-45, de 4.9.2001)
Executivo as leis que disponham sobre a organização .............................................................................
administrativa, serviços públicos e pessoal e sobre
servidores públicos e seu regime jurídico (C.F., art. 61, XVII – cometer a outro servidor atribuições es-
§ 1º, inc. II, als. b e c). tranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de
emergência e transitórias;
De pronto afasta-se a questão do regime jurídico
dos servidores públicos, dado que este “corresponde Não poderia ser de outro modo. Afinal, a conti-
ao conjunto de normas que disciplinam os diversos nuidade dos serviços, além de ser decorrência direta
aspectos das relações estatutárias ou contratuais, da indisponibilidade do interesse público, é premissa
mantidas pelo Estado com seus agentes”, conforme
indispensável para a garantia da coesão e da interde-
lecionou, nesta Casa, o em. Min. Celso de Mello, no
voto que proferiu na ADIn. nº 766/RS. Ora, a lei, no
pendência social (nesse sentido, as palavras do Min.
caso, simplesmente proíbe que servidores públicos do Eros Grau proferidas no voto condutor do MI nº 712).
Distrito Federal substituam empregados de empresas Presentes situações emergenciais, aliás, a Constituição
privadas em greve. Federal relativiza até mesmo a exigência de concurso
O dispositivo legal em apreço dirige-se mais à
público (Art. 37, inc. IX). É intuitivo que, se pode o
Administração Pública e diz respeito, muito menos, à Estado contratar sem concurso para suprir um estado
sistemática de pessoal. de carência extremo no âmbito dos serviços públicos,
também pode deslocar parcela de seus servidores
Também não vejo ofensa ao art. 84, incs. II e VI, da
CF, pelo menos ao primeiro exame. É dizer, o dispositi- para evitar a interrupção do atendimento da coleti-
vo legal não impede que o Chefe do Executivo exerça a vidade, o que pode suceder ainda que por motivo de
direção superior da Administração, tampouco o impe- greve, desde que nos termos da legislação federal.
de de dispor sobre a organização e o funcionamento Pois bem, o inc. XXIII do art. 77 da Constituição
da Administração, mesmo porque tais atribuições são
do Estado do Rio de Janeiro contempla essa ressalva
exercidas na forma da lei. O inc. VI do art. 4 é expresso,
aliás, nesse sentido. de emergencialidade, tanto assim que remete à le-
gislação federal a respeito de greve. O preceito não
A norma sob exame também não possui qual- retira do Governador do Estado uma alternativa viável
quer deficiência formal. Na verdade, o seu conteúdo de aproveitamento dos servidores a ele submetidos
é basicamente expletivo. Ao vedar a substituição de para o benefício da respectiva Administração. O que
trabalhadores grevistas por servidores públicos, o dis- se proíbe é que a substituição dos grevistas venha a
positivo impugnado pretendeu coibir a institucionali- ser implementada para servir a pretextos outros que
zação do “desvio de função” como prática frustrante
não o da própria emergencialidade, proibição que, de
do direito de greve de trabalhadores da in[i]ciativa
resto, já se mostra compatível com os princípios de
privada. Em outras palavras, a Constituição local ape-
Direito Público consagrados na própria Constituição
nas textualizou um comportamento administrativo
Federal.
que já seria condenável pela ordem constitucional
federal, tendo em vista a incidência de princípios de 4. Ante o exposto, julgo improcedente a ação
larga ascendência no campo da Administração Pública. direta. É o voto.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

VOTO simplesmente porque o constituinte derivado resol-


O Sr. Min. Edson Fachin: Sr. Presidente, tenho a veu, antecipando-se ao que poderia ser a iniciativa do
honra de acompanhar o em. Relator. Entendo que, no Governador, disciplinar a matéria.
caso, circunstâncias similares de alegação de incons- Julgo procedente o pedido formulado pelo Go-
titucionalidade formal já foram afastadas por este vernador do Estado do Rio de Janeiro.
Tribunal em outras situações precedentes.
VOTO
No que concerne à inconstitucionalidade mate-
rial, inexiste, já que o próprio dispositivo atacado prin- O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): Eu
cipia dizendo “ressalvada a legislação federal”. Como peço vênia ao em. Relator para acompanhar o Min.
sabemos – o il. Ministro-Relator citou –, a legislação Marco Aurélio.
federal prevê que, em casos de greve ilegal, o gestor
Eu também observo que em situações análogas
público está autorizado a tomar as providências para
garantir os serviços indispensáveis e inadiáveis para nós já glosamos esse tipo de iniciativa por parte do
a comunidade. constituinte derivado estadual. Eu, verificando aqui a
inicial, que foi subscrita pelo Governador do Estado
Portanto, não vejo como acolher a pretensão e pelo Procurador do Estado, S. Exa., o governador,
da inconstitucionalidade e acompanho o julgamento na verdade, está defendendo a competência que lhe
improcedente, tal como proposto pelo em. Relator. reserva a Constituição Federal no art. 61, § 1º, no que
O Sr. Min. Marco Aurélio: Presidente, a matéria diz respeito à iniciativa de temas que versem sobre a
versada na Constituição do Estado seria quanto a pro- organização administrativa, os servidores públicos e o
jeto de lei de iniciativa do Executivo. Então, quando o seu regime jurídico. Portanto, em primeiro lugar, trata-
constituinte derivado – que é o constituinte estadual -se de defender um princípio, quer dizer, o constituinte
– resolveu inserir o tema na Carta do Estado, acabou derivado instituiu um impedimento, uma dificuldade
por manietar o Executivo ou dificultar, diria melhor, a ao Governador para que ele possa prover sobre a
iniciativa do Executivo, porque, para alterar o dispos- organização administrativa e os servidores públicos.
to, terá que se valer de uma emenda constitucional, Mas há mais: eu fiquei impressionado com a ar-
cuja aprovação não corre segundo a aprovação de lei gumentação veiculada na inicial em que o Governador
ordinária. e aqueles que o representam em Juízo consignam o
Enfrentamos situações muito parecidas com essa seguinte:
e glosamos essa prática, ou seja, o fato de inserir-se “A regra aqui imputada como inconstitucional é a
na Carta estadual a disciplina de matéria cujo projeto criação do constituinte estadual, sem equivalente na
de lei deveria ser encaminhado à Assembleia Legis- legislação federal,” de uma norma, enfim, inovadora
lativa pelo Chefe do Poder Executivo. Fui Relator de no ordenamento jurídico nacional. “Em sendo as socie-
um caso alusivo à Constituição do Estado da Bahia em dades de economia mista e as empresas públicas pes-
que, afastando-se a iniciativa do próprio Tribunal de soas jurídicas de Direito Privado, e não excepcionando
Justiça quanto a projeto de lei, previu-se que nele não o dispositivo as concessionárias do serviço público,
se poderia ter número de cadeiras acima de certo limi- a regra tendo como consequência direta” – isso que
te – ADIn. nº 3.362/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, impressiona – “impedir que o Governador do Estado
Relator do Acórdão Min. Marco Aurélio, julgamento: neutralize, quando julgar necessário, os efeitos, por
30.8.2007; Órgão Julgador: Tribunal Pleno. É o caso. vezes dramáticos, de paralisações do serviço público”.
E citou, inclusive, na primeira parte do voto que me Então, na verdade, a meu ver, trata-se de uma nor-
foi apresentado agora – já que não recebo voto de ma de caráter eminentemente político que impede...
Colega antes do pregão do processo –, o próprio Re-
lator, no que disse que não se pode, mediante norma O Sr. Min. Marco Aurélio: V. Exa. me permite? Há
constitucional estadual, interditar a atuação do Chefe sociedades de economia mista que prestam serviços
do Poder Executivo. essenciais.
Indago: a norma seria materialmente constitu- O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente):
cional? Não! Passou a ser, em termos de disciplina, Exatamente.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Então aqui é uma norma de caráter político O Sr. Min. Celso de Mello: É o art. 12 da Lei de
inserida no texto da Constituição local que manieta Greve.
o Governador em caso de greves. Então eu peço vê-
O Sr. Min. Teori Zavascki: É. O art. 12 da Lei de
nia ao em. Relator, tanto em razão dos precedentes
Greve. Como não há esse perigo de limitar a ação do
análogos que já passaram por este Plenário, tanto
Governador, não há mudança substancial na organi-
com fundamento nessa argumentação e também
zação do Estado do Rio de Janeiro. A norma trata de
nas razões expostas pelo Min. Marco Aurélio, para
outra coisa, no meu entender.
acompanhá-lo.
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): Mas
ESCLARECIMENTO suponhamos que... Bem, eu acompanhei o Ministro,
O Sr. Min. Gilmar Mendes: Presidente, pelo que não quero polemizar, evidentemente, já proferi o
entendi do voto do Min. Teori Zavascki, S. Exa. está meu voto.
partindo da premissa de que já há lei federal auto- Eu, aqui, insisto: o meu voto, acompanhando o
rizando. Min. Marco Aurélio, teve como fundamento exata-
O Sr. Min. Marco Aurélio: Não, a lei citada apenas mente esse fato. Eu entendo que a introdução desse
versa a impossibilidade de ocupante de cargo público dispositivo na Constituição do Rio de Janeiro teve um
transferir os afazeres desse mesmo cargo. É a Lei nº caráter político, para impedir que o Governador, em
8.112/1990. Ela não trata, pelo menos assim percebo uma greve de uma concessionária de serviço público,
– pode ser que esteja equivocado –, da matéria em que presta um serviço essencial, eventualmente pos-
debate. sa substituir os grevistas por funcionários públicos.
Isto me parece que é uma seara em que é própria
O Sr. Min. Teori Zavascki: V. Exa. me permite? É
do Governador, inclusive é dever dele permitir que
que a norma estadual começa com uma ressalva.
os serviços públicos essenciais não sofram solução
O Sr. Min. Marco Aurélio: Ela não trata especifica- de continuidade, que, aliás, é um princípio básico da
mente... Presidente, estou com a palavra num aparte Administração Pública.
ao Min. Gilmar Mendes?
Mas respeito o ponto de vista de V. Exa. V. Exa.
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): Sim. deu um excelente voto. E peço vênia para ficar ven-
O Sr. Min. Marco Aurélio: A Lei nº 8.112/1990 cido, acompanhando a divergência do Min. Marco
não trata especificamente no que transcrito o pre- Aurélio.
ceito na folha 5 do voto do Relator, da espécie. Ou O Sr. Min. Teori Zavascki (Relator): É que a legis-
seja, não se tem, no campo federal, e muito menos, lação ressalva a legislação federal.
na Constituição Federal, disposição semelhante, que,
considerado o poder constituinte originário de 1988, VOTO
tenha disposto quanto a essa proibição.
O Sr. Min. Gilmar Mendes: Presidente, eu vou
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): acompanhar também o em. Relator tendo em vista
Min. Teori. exatamente a ressalva que faz remissão à lei federal,
O Sr. Min. Teori Zavascki (Relator): Esses pontos e o art. 12 da Lei de Greve é expresso ao dizer:
foram enfrentados no meu voto e não vejo essa in- No caso de inobservância do disposto no artigo
compatibilidade com os nossos precedentes. Nossos anterior, o Poder Público assegurará a prestação dos
precedentes tratam de outra coisa. serviços indispensáveis.
Procurei demonstrar no voto que aqui não se está Foi exatamente a leitura que fez o...
tratando de matérias exclusivas do Governador, e que
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): Eu
a própria norma estadual faz ressalva subordinando a
pensei nisso. Mas como é que ele faria isso?
invocação da legislação do Estado aos parâmetros da
lei federal a respeito, quer dizer, a questão da emer- O Sr. Min. Marco Aurélio: A Constituição do Es-
gencialidade não está vedada. Não tem essa proibição. tado obstaculiza.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): determinado. Quer dizer, dificulta a atuação do Go-
É, mas como é que ele faria isso? Com contratações vernador no momento de emergência, mas...
emergenciais, que a própria Constituição autoriza.
O Sr. Min. Gilmar Mendes (Relator): Mera realo-
O Sr. Min. Gilmar Mendes: O dispositivo diz “res- cação de servidores.
salvada a legislação”.
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente):
O Sr. Min. Marco Aurélio: … e a norma federal a Aqui, seria uma mera realocação de servidores. Real-
viabiliza. mente, está sendo proibida.
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): E O Sr. Min. Gilmar Mendes (Relator): Bom. Acho
não substituindo de maneira mais fácil, mais imediata que é importante um debate para deixar assente que
e mais direta por meio de servidores públicos. isso é possível.
O Sr. Min. Gilmar Mendes: Também tive esse O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): É
desconforto, mas a mim me parece que a expressão, possível.
e acho que essa é a leitura, tanto é que eu imaginava
que se pudesse até fazer uma interpretação conforme: O Sr. Min. Luiz Fux: É porque a regra básica é: o
servidor público estadual não pode substituir, a qual-
ressalvada a legislação federal aplicável, ao servidor
público estadual é proibido substituir, sob qualquer
quer pretexto, trabalhadores de empresas privadas
pretexto, trabalhadores de empresas privadas em em greve. Ressalvadas as hipóteses...
greve. O Sr. Min. Edson Fachin: Sr. Presidente, exatamen-
Portanto, na hipótese de greve, que é disso que te com a preocupação de V. Exa. é que acompanhei o
se cuida, autoriza-se, por conta do disposto no art. 12. em. Relator. Eu estou entendendo que está albergada
Existe legislação federal. na interpretação acolhida pelo em. Relator a vossa
preocupação. Só para deixar registrada.
A mim me parece que isso é suficiente, embora
o dispositivo não deixa de ter um caráter peculiar e O Sr. Min. Marco Aurélio: Presidente, não há
idiossincrásico. campo para a interpretação conforme. O dispositivo
não é ambíguo. É categórico. O preceito da Carta
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente):
Imagine que o Rio de Janeiro, e isso acontece em do Estado proíbe que [h]aja prestação de serviço,
quase todos os Estados, tem um núcleo de servido- por servidor, considerada greve em sociedade de
res que cuidam da coleta do lixo domiciliar, que são economia mista.
contratados diretamente pela Administração. Mas o O Sr. Min. Celso de Mello: O art. 12 da Lei de
serviço é tamanho que é necessário contratar empre- Greve determina que o Poder Público adote as me-
sas terceirizadas. didas necessárias à proteção do interesse público e à
Na hipótese de greve, o Governador poderia, preservação de sua integridade.
eventualmente, transladar aquele[s] servidores pú- O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente): V.
blicos contratados diretamente para substituir os Exa. entende, então, que, no caso de uma greve, se
grevistas, que fazem parte de empresas privadas, sem o governador invocar a Legislação Federal, especial-
maiores dificuldades. E esse dispositivo, a meu ver, im- mente o art. 12, ele poderia trasladar aos servidores
pede isso. Impede essa pronta reação do Governador. públicos?
Então eu entendo, data venia...
O Sr. Min. Celso de Mello: Sem qualquer dúvida,
O Sr. Min. Gilmar Mendes: O art. 12 não autori-
não obstante essa medida ostente caráter extraordi-
zaria?
nário.
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente):
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente):
Sim, mas o art. 12, a meu ver, diante dessa proibição,
Bom, se for essa a interpretação da Corte...
exigiria que o Governador se utilizasse do dispositivo
constitucional que o autoriza a fazer contratações O Sr. Min. Marco Aurélio: Presidente, estamos
emergenciais sem concurso público e por tempo a discutir o vício formal. Estamos a perquirir se a

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

iniciativa, no caso, considerado um projeto de lei, do, em consequência, entre outras, a alegação de
seria ou não do Governador. E seria. Não estou indo ofensa ao art. 61, § 1º, inc. II, al. c, da CF.
ao mérito da norma, ao vício material, quando po- O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente):
deria considerar essa ressalva contida no preceito, Pois não.
ou seja, o fato de se ressalvar a legislação federal. O
que estou examinando é se o legislador constituinte CONFIRMAÇÃO DE VOTO
derivado estadual poderia ou não dispor sobre a
O Sr. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente):
matéria. E digo que não poderia, porque, pela Carta
Diante do entendimento da Corte no que diz respeito
Federal, a iniciativa de projeto de lei seria do Chefe
ao aspecto material, dizendo que essa ressalva que se
do Poder Executivo.
faz no sentido da aplicação da Lei Federal, tornando
O Sr. Min. Celso de Mello: Esta Suprema Corte, possível, pois, que os servidores públicos da Adminis-
em precedente firmado no julgamento plenário da tração direta possam intervir em situações de greve,
ADIn. nº 1.164/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, que entendo que, do ponto de vista material, não há
impugnava norma inscrita na Lei Orgânica do Dis- inconstitucionalidade. Mas continuo acompanhando
trito Federal, de conteúdo idêntico ao que consta o Min. Marco Aurélio, data venia, entendendo, sim,
do inc. XXIII do art. 77 da Constituição fluminense, que os Parlamentares, por meio de uma emenda
não vislumbrou plausibilidade jurídica na pretensão constitucional, ingressaram numa seara exclusiva da
de inconstitucionalidade então deduzida, afastan- iniciativa do Governador.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ensino superior – Diploma de graduação emitido por estabelecimento estrangeiro


Pretensa revalidação automática em universidade brasileira – Não cabimento
Determinação de processo seletivo – Verificação da capacidade técnica do
profissional e sua formação, sem prejuízo da responsabilidade social que
envolve o ato – Não revogação do Dec. nº 80.419/1977 pelo Dec. nº 3007/1999
Ato internacional recepcionado no Brasil com status de lei ordinária

REsp. nº 1.215.550/PE

Recorrente: José Daniel Dieguez Almaguer

Recorrido: Conselho Regional de Medicina do Estado de Pernambuco (Cremepe)

Interessada: Universidade Federal de Pernambuco

Relator: Min. Og Fernandes

Recurso especial repetitivo. Direito Administrativo. Curso superior. Diploma obtido no exterior.
Registro em universidade brasileira. Convenção Regional sobre o Reconhecimento de Estudos, Tí-
tulos e Diplomas de Ensino Superior na América Latina e Caribe. Vigência. Ausência de revalidação
automática.
1. “A Convenção Regional sobre o Reconhecimento de Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino Su-
perior na América Latina e no Caribe, incorporada ao ordenamento jurídico nacional por meio do
Dec. nº 80.419/1977, não foi, de forma alguma, revogada pelo Dec. nº 3.007, de 30.3.1999. Isso
porque o aludido ato internacional foi recepcionado pelo Brasil com status de lei ordinária, sendo
válido mencionar, acerca desse particular, a sua ratificação pelo Dec. Legislativo nº 66/1977 e a sua
promulgação através do Dec. nº 80.419/1977. Dessa forma, não há se falar na revogação do decreto
que promulgou a Convenção da América Latina e do Caribe em foco, pois o Dec. nº 3.007/1999,
exarado pelo Sr. Presidente da República, não tem essa propriedade” (REsp nº 1.126.189/PE – Rel.
Min. Benedito Gonçalves – 1ª Turma – DJe de 13.5.2010).
2. O Dec. nº 80.419/1977 não contém determinação específica para revalidação automática dos
diplomas emitidos em países abarcados pela referida convenção.
3. “O art. 53, inc. V, da Lei nº 9.394/1996 permite à universidade fixar normas específicas a fim de
disciplinar o referido processo de revalidação de diplomas de graduação expedidos por estabele-
cimentos estrangeiros de ensino superior, não havendo qualquer ilegalidade na determinação do
processo seletivo para a revalidação do diploma, porquanto decorre da necessidade de adequação
dos procedimentos da instituição de ensino para o cumprimento da norma, uma vez que de outro
modo não teria a universidade condições para verificar a capacidade técnica do profissional e sua
formação, sem prejuízo da responsabilidade social que envolve o ato” (REsp nº 1.349.445/SP – Rel.
Min. Mauro Campbell Marques – 1ª Seção – DJe de 14.5.2013).
4. Recurso especial a que se nega provimento. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC
e da Resolução STJ nº 8/2008.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

ACÓRDÃO revalidação automática dos diplomas estrangeiros e


dos certificados de especialista expedidos em países
Vistos, relatados e discutidos estes autos, em
signatários da convenção. Aponta dissenso jurispru-
que são partes as acima indicadas, acordam os Minis-
dencial com precedentes que cita.
tros da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, O apelo foi admitido na origem e indicado como
nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator. Os Srs. representativo de controvérsia, o que foi mantido
Min. Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, nesta Corte por decisão do em. Min. Castro Meira.
Assusete Magalhães, Sérgio Kukina, Regina Helena
A em. Subprocuradora-Geral da República Ana
Costa, Olindo Menezes (Desembargador Convocado
Borges Coelho Santos emitiu parecer no sentido do
do TRF1ªR) e Humberto Martins votaram com o Sr.
conhecimento parcial e, nessa extensão, pelo não
Ministro-Relator.
provimento do recurso especial.
Ausente, ocasionalmente, o Sr. Min. Napoleão
Confiram-se os termos da ementa do aludido
Nunes Maia Filho.
parecer ministerial:
Brasília, 23 de setembro de 2015 (data do jul- Recurso especial. Representativo de contro-
gamento). vérsia. Administrativo. Ensino superior. Convenção
Min. Herman Benjamin, Presidente. Regional sobre o Reconhecimento de Estudos, Títulos
e Diplomas de Ensino Superior na América Latina e
Min. Og Fernandes, Relator. Caribe. Não revogação do Dec. nº 80.419/1977. Re-
validação automática. Impossibilidade. Dissídio juris-
RELATÓRIO prudencial. Indicação de entendimento ultrapassado.
O Sr. Min. Og Fernandes (Relator): Trata-se de – A Convenção Regional sobre o Reconheci-
recurso especial interposto por José Daniel Dieguez mento de Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino
Almaguer, fundamentado nas als. a e c do permissivo Superior na América Latina e no Caribe, incorpora-
constitucional, em oposição a acórdão do TRF5ªR, da ao ordenamento jurídico nacional por meio do
assim ementado: Dec. nº 80.419/1977, não foi revogada pelo Dec. nº
3.007/1999. O aludido ato internacional foi recep-
Administrativo e Constitucional. Dec. nº
cionado pelo Brasil com status de lei ordinária, não
80.419/1977. Revogação. Diploma estrangeiro. Re-
possuindo o ato normativo exarado pelo Sr. Presiden-
validação automática. Inadmissibilidade.
te da República o condão de revogá-lo.
1. A “Convenção Regional sobre o Reconhe-
– Embora não revogado, o Dec. nº 80.419/1977
cimento de Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino
não autoriza a validação automática de diplomas e
Superior na América Latina e no Caribe” não firmou
títulos obtidos em países signatários da Convenção
a revalidação automática dos diplomas para fins de
Regional sobre o Reconhecimento de Estudos, Títulos
exercício profissional, mas tão somente o desejo de
e Diplomas de Ensino Superior na América Latina e
fazê-lo futuramente, quando adotadas as medidas
no Caribe, pois suas disposições constituem preceitos
necessárias a tanto.
programáticos, protocolos de intenções que sugerem
2. O Dec. nº 3.007/1999, onde se impunha o aos Estados signatários a criação de mecanismos para
cumprimento da convenção, foi revogado pelo Dec. o reconhecimento dos diplomas obtidos no exterior.
nº 3.007/1999.
– Patente a necessidade de instauração do
3. Apelações e remessa oficial providas (e-STJ procedimento de revalidação dos diplomas estran-
fls. 324). geiros, visando realizar o devido cotejo entre o curso
realizado no exterior e o ministrado por instituições
O recorrente aponta violação dos arts. 1º, 2º, 4º
pátrias, a fim de evidenciar, dentre outros requisitos
e 5º da Convenção Regional sobre o Reconhecimento essenciais, a grade curricular, o conteúdo progra-
de Diploma de Ensino Superior na América Latina e mático e a carga horária seguida pela instituição de
no Caribe, aprovada pelo Dec. Legislativo nº 66/1977 ensino alienígena e, caso necessárias, as devidas
e promulgada pelo Dec. Presidencial nº 80.419/1977, adequações às exigências nacionais, em especial, à
bem como do art. 48, § 2º, da Lei nº 9.394/1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Inteligência do
Argumenta que esses atos normativos fixaram a § 2º do art. 48 da Lei nº 9.394/1996.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

– Não deve ser conhecido o recurso pela al. c, de constitucionalidade de tratados ou convenções
vez que os acórdãos apontados como paradigmas internacionais em face da Constituição da República.
não revelam o entendimento atual dos Tribunais Alegada transgressão ao art. 7º, inc. I, da CF e ao art.
Regionais Federais. 10, inc. I, do ADCT/1988. Regulamentação normativa
da proteção contra a despedida arbitrária ou sem
– Parecer pelo conhecimento parcial e, nessa
justa causa, posta sob reserva constitucional de lei
extensão, pelo não provimento do recurso especial.
complementar. Consequente impossibilidade jurídica
É o relatório. de tratado ou convenção internacional atuar como
sucedâneo da lei complementar exigida pela Consti-
VOTO tuição (CF, art. 7º, inc. I). Consagração constitucional
da garantia de indenização compensatória como
O Sr. Min. Og Fernandes (Relator): Na origem,
expressão da reação estatal à demissão arbitrária
José Daniel Dieguez Almaguer informa que se formou do trabalhador (CF, art. 7º, inc. I, c/c o art. 10, inc.
em Medicina pelo Instituto Superior de Ciências I, do ADCT/1988). Conteúdo programático da Con-
Médicas de La Habana, em 29.7.1993, buscando venção nº 158/OIT, cuja aplicabilidade depende da
que a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ação normativa do legislador interno de cada País.
fosse compelida a fornecer a documentação neces- Possibilidade de adequação das diretrizes constantes
sária ao registro profissional sem a necessidade de da Convenção nº 158/OIT às exigências formais e ma-
revalidação. teriais do estatuto constitucional brasileiro. Pedido
de medida cautelar deferido, em parte, mediante
Sustentara que o Dec. nº 3.007/1999 não pode- interpretação conforme à Constituição. Procedimen-
ria ter revogado o Dec. nº 80.419/1977, que sancio- to constitucional de incorporação dos tratados ou
nou a Convenção Regional sobre o Reconhecimento convenções internacionais.
de Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino Superior
– É na Constituição da República – e não na
na América Latina e no Caribe.
controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e
Nesse ponto, tem razão o recorrente, como bem dualistas – que se deve buscar a solução normativa
salientou o em. Min. Benedito Gonçalves quando do para a questão da incorporação dos atos internacio-
julgamento do REsp nº 1.126.198/PE: nais ao sistema de direito positivo interno brasileiro.
O exame da vigente Constituição Federal permite
Sob esse ângulo, inicialmente insta expor que constatar que a execução dos tratados internacio-
a Convenção Regional sobre o Reconhecimento nais e a sua incorporação à ordem jurídica interna
de Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino Superior decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato
na América Latina e no Caribe, incorporada ao or- subjetivamente complexo, resultante da conjugação
denamento jurídico nacional por meio do Dec. nº de duas vontades homogêneas: a do Congresso
80.419/1977, não foi, de forma alguma, revogada Nacional, que resolve definitivamente, mediante
pelo Dec. nº 3.007, de 30.3.1999. Isso porque o alu- decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos
dido ato internacional foi recepcionado pelo Brasil internacionais (CF, art. 49, inc. I) e a do Presidente
com status de lei ordinária, sendo válido mencionar,
da República, que, além de poder celebrar esses
acerca desse particular, a sua ratificação pelo Dec.
atos de Direito Internacional (CF, art. 84, inc. VIII),
Legislativo nº 66/1977 e a sua promulgação através
também dispõe – enquanto Chefe de Estado que
do Dec. nº 80.419/1977. Dessa forma, não há se falar
é – da competência para promulgá-los mediante
na revogação do decreto que promulgou a Conven-
decreto. O iter procedimental de incorporação dos
ção da América Latina e do Caribe em foco, pois o
tratados internacionais – superadas as fases pré-
Dec. nº 3.007/1999, exarado pelo Sr. Presidente da
vias da celebração da convenção internacional, de
República, não tem essa propriedade. Nesse sentido,
sua aprovação congressional e da ratificação pelo
confira-se o seguinte precedente do STF:
Chefe de Estado – conclui-se com a expedição, pelo
“Ação direta de inconstitucionalidade. Conven- Presidente da República, de decreto, de cuja edição
ção nº 158/OIT. Proteção do trabalhador contra a derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a)
despedida arbitrária ou sem justa causa. Arguição de a promulgação do tratado internacional; (b) a publi-
ilegitimidade constitucional dos atos que incorpora- cação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do
ram essa convenção internacional ao direito positivo ato internacional, que passa, então, e somente então,
interno do Brasil (Dec. Legislativo nº 68/1992 e Dec. a vincular e a obrigar no plano do direito positivo
nº 1.855/1996). Possibilidade de controle abstrato interno. Precedentes.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Subordinação normativa dos tratados interna- internacionais e a Lei Fundamental da República, cuja
cionais à Constituição da República. suprema autoridade normativa deverá sempre preva-
lecer sobre os atos de Direito Internacional Público. Os
– No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou
tratados internacionais celebrados pelo Brasil – ou aos
convenções internacionais estão hierarquicamente
quais o Brasil venha a aderir – não podem, em conse-
subordinados à autoridade normativa da Constituição
quência, versar matéria posta sob reserva constitucio-
da República. Em consequência, nenhum valor jurídi-
nal de lei complementar. É que, em tal situação, a pró-
co terão os tratados internacionais que, incorporados
pria Carta Política subordina o tratamento legislativo
ao sistema de direito positivo interno, transgredirem,
de determinado tema ao exclusivo domínio normativo
formal ou materialmente, o texto da Carta Política. O
da lei complementar, que não pode ser substituída por
exercício do treaty-making power, pelo Estado brasi-
qualquer outra espécie normativa infraconstitucional,
leiro – não obstante o polêmico art. 46 da Convenção
inclusive pelos atos internacionais já incorporados ao
de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso
Direito Positivo interno.
de tramitação perante o Congresso Nacional) –, está
sujeito à necessária observância das limitações jurí- Legitimidade constitucional da Convenção
dicas impostas pelo Texto Constitucional. nº 158/OIT, desde que observada a interpretação
conforme fixada pelo STF.
Controle de constitucionalidade de Tratados
Internacionais no Sistema Jurídico brasileiro. – A Convenção nº 158/OIT, além de depender de
necessária e ulterior intermediação legislativa para
– O Poder Judiciário – fundado na supremacia
efeito de sua integral aplicabilidade no plano domés-
da Constituição da República – dispõe de compe-
tico, configurando, sob tal aspecto, mera proposta de
tência para, quer em sede de fiscalização abstrata,
legislação dirigida ao legislador interno, não consa-
quer no âmbito do controle difuso, efetuar o exame
grou, como única consequência derivada da ruptura
de constitucionalidade dos tratados ou convenções
abusiva ou arbitrária do contrato de trabalho, o dever
internacionais já incorporados ao sistema de direito
de os Estados-Partes, como o Brasil, instituírem, em
positivo interno. Doutrina e jurisprudência.
sua legislação nacional, apenas a garantia da reinte-
Paridade normativa entre atos internacionais e gração no emprego. Pelo contrário, a Convenção nº
normas infraconstitucionais de direito interno 158/OIT expressamente permite a cada Estado-Parte
(art. 10) que, em função de seu próprio ordenamento
– Os tratados ou convenções internacionais,
positivo interno, opte pela solução normativa que
uma vez regularmente incorporados ao direito
se revelar mais consentânea e compatível com a
interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro,
legislação e a prática nacionais, adotando, em conse-
nos mesmos planos de validade, de eficácia e de
quência, sempre com estrita observância do estatuto
autoridade em que se posicionam as leis ordinárias,
fundamental de cada País (a Constituição brasileira,
havendo, em consequência, entre estas e os atos de
no caso), a fórmula da reintegração no emprego e/
direito internacional público, mera relação de pari-
ou da indenização compensatória. Análise de cada
dade normativa. Precedentes. No sistema jurídico
um dos artigos impugnados da Convenção nº 158/
brasileiro, os atos internacionais não dispõem de pri-
OIT (arts. 4º a 10) (ADI nº 1.480 MC/DF – Rel. Min.
mazia hierárquica sobre as normas de direito interno.
Celso de Mello – Tribunal Pleno – DJ de 18.5.2001).”
A eventual precedência dos tratados ou convenções
internacionais sobre as regras infraconstitucionais Resta saber se o Dec. nº 80.419/1977 garantiria
de direito interno somente se justificará quando a a revalidação do diploma de per se.
situação de antinomia com o ordenamento domés-
tico impuser, para a solução do conflito, a aplicação A questão [s]e resolve com a leitura do art. 5º
alternativa do critério cronológico (lex posterior do referido diploma legal.
derogat priori) ou, quando cabível, do critério da Art. 5º Os estados contratantes se comprometem
especialidade. Precedentes. a adotar as medidas necessárias para tornar eletivo,
Tratado internacional e reserva constitucional o quanto antes possível, para efeitos de exercício de
de lei complementar. profissão, o reconhecimento dos diplomas, títulos ou
graus de educação superior emitidos pelas autorida-
– O primado da Constituição, no sistema jurídico des competentes de outro dos estados contratantes.
brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servan-
da, inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo Veja-se o nítido caráter programático da referida
nacional, o problema da concorrência entre tratados norma que determina que os países signatários da

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JAN/17
JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Convenção Regional sobre o Reconhecimento de fixando as normas de revalidação para registro de


Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino Superior na diplomas de graduação expedidos por estabeleci-
América Latina e no Caribe criem mecanismos para mentos estrangeiros de ensino superior, exigindo a
torná-la efetiva. realização de prévio exame seletivo.

Inexiste, portanto, determinação específica de 4. O registro de diploma estrangeiro no Brasil


fica submetido a prévio processo de revalidação,
reconhecimento automático dos diplomas.
segundo o regime previsto na Lei de Diretrizes e
De outra banda, esta Corte, quando apreciou a Bases da Educação Brasileira (art. 48, § 2º, da Lei nº
questão da revalidação de diplomas sob o enfoque da 9.394/1996).
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei nº 5. Não há na Lei nº 9.394/1996 qualquer veda-
9.394/1996), no rito do art. 543-C, concluiu que ção ao procedimento adotado pela instituição eleita.
o art. 53, inc. V, da Lei nº 9394/1996 permite à univer- 6. Os critérios e procedimentos de reconhe-
sidade fixar normas específicas a fim de disciplinar o cimento da revalidação de diploma estrangeiro,
referido processo de revalidação de diplomas de gra- adotados pelo recorrente, estão em sintonia com as
duação expedidos por estabelecimentos estrangeiros normas legais inseridas em sua autonomia didático-
de ensino superior, não havendo qualquer ilegalidade -científica e administrativa prevista no art. 53, inc. V,
na determinação do processo seletivo para a revalida- da Lei nº 9.394/1996 e no art. 207 da Constituição
ção do diploma, porquanto decorre da necessidade Federal.
de adequação dos procedimentos da instituição de
ensino para o cumprimento da norma, uma vez que 7. A autonomia universitária (art. 53 da Lei
de outro modo não teria a universidade condições nº 9.394/1998) é uma das conquistas científico-
para verificar a capacidade técnica do profissional -jurídico-políticas da sociedade atual, devendo ser
e sua formação, sem prejuízo da responsabilidade prestigiada pelo Judiciário. Dessa forma, desde que
social que envolve o ato. preenchidos os requisitos legais – Lei nº 9.394/1998
– e os princípios constitucionais, garante-se às uni-
Vejam-se os termos da ementa do REsp. nº versidades públicas a liberdade para dispor acerca da
1.349.445/MS, da Relatoria do Min. Mauro Campbell revalidação de diplomas expedidos por universidades
Marques, publicado em 14.5.2013: estrangeiras.
Administrativo. Ensino superior. Revalidação de 8. O art. 53, inc. V, da Lei nº 9394/1996 per-
diploma estrangeiro. Exigência de processo seletivo. mite à universidade fixar normas específicas a fim
Autonomia universitária. Arts. 48, § 2º e 53, inc. V, de disciplinar o referido processo de revalidação de
da Lei nº 9394/1996 e 207 da CF. Legalidade. diplomas de graduação expedidos por estabeleci-
1. É de se destacar que os órgãos julgadores não mentos estrangeiros de ensino superior, não havendo
estão obrigados a examinar todas as teses levantadas qualquer ilegalidade na determinação do processo
pelo jurisdicionado durante um processo judicial, seletivo para a revalidação do diploma, porquanto
bastando que as decisões proferidas estejam devida decorre da necessidade de adequação dos procedi-
e coerentemente fundamentadas, em obediência mentos da instituição de ensino para o cumprimento
ao que determina o art. 93, inc. IX, da Constituição da norma, uma vez que de outro modo não teria a
da República vigente. Isto não caracteriza ofensa ao universidade condições para verificar a capacidade
art. 535 do CPC. técnica do profissional e sua formação, sem prejuízo
da responsabilidade social que envolve o ato.
2. No presente caso, discute-se a legalidade do
ato praticado pela Universidade Federal de Mato 9. Ademais, o recorrido, por livre escolha, optou
Grosso do Sul, consistente na exigência de aprovação por revalidar seu diploma na Universidade Federal
prévia em processo seletivo para posterior aprecia- de Mato Grosso do Sul, aceitando as regras dessa
ção de procedimento de revalidação de diploma ob- instituição concernentes ao processo seletivo para
tido em instituição de ensino estrangeira, no caso, o os portadores de diploma de graduação de Medicina,
curso de Medicina realizado na Bolívia, uma vez que expedido por estabelecimento estrangeiro de ensino
as Resoluções nos 01/2002 e 08/2007, ambas do CNE/ superior, suas provas e os critérios de avaliação.
CES, não fizeram tal exigência.
10. Recurso especial parcialmente provido para
3. A Fundação Universidade Federal de Mato denegar a ordem. Acórdão submetido ao regime do
Grosso do Sul editou a Resolução nº 12, de 14.3.2005, art. 543-C do CPC e da Resolução nº 8/2008 do STJ.

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JAN/17
JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Para fins de fixar a tese do recurso especial re- Dec. nº 3.007/1999, ato unipessoal do Presidente da
presentativo de controvérsia, cabe concluir que o República, não teria o condão de revogar ato norma-
Dec. nº 80.419/1977 – que incorporou a Convenção tivo expedido pelo Congresso Nacional.
Regional sobre o Reconhecimento de Estudos, Títulos 2. O Dec. 3.007/1999 não tem condão de revo-
e Diplomas de Ensino Superior na América Latina e no gar a Convenção Regional sobre o Reconhecimento
Caribe – não foi revogado pelo Dec. nº 3.007/1999. de Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino Superior
na América Latina e Caribe (Dec. Presidencial nº
Também cabe anotar que o referido Dec. nº 80.419/1977), que, após a conclusão do iter proce-
80.419/1977 não traz norma específica que vede o dimental de sua incorporação no sistema jurídico na-
procedimento de revalidação dos diplomas que têm cional, apresenta estatura de lei ordinária. Alteração
respaldo nos arts. 48 e 53, inc. V, da Lei de Diretrizes de orientação jurisprudencial desta Corte.
e Bases da Educação Brasileira. 3. O fato de ainda estar em vigor não garante o
Nesse sentido, os seguintes precedentes: reconhecimento automático do diploma estrangeiro,
sem os procedimentos administrativos de revalidação
Direito Internacional e Administrativo. Curso de diploma previstos na Lei de Diretrizes e Bases,
superior. Diploma obtido no exterior. Registro em Lei nº 9.394/1996, pois a própria Convenção, em
universidade brasileira. Convenção Regional sobre nenhum dos seus artigos, traz esta previsão.
o Reconhecimento de Estudos, Títulos e Diplomas
de Ensino Superior na América Latina e Caribe. Vi- 4. Embargos de declaração acolhidos, sem efeitos
gência. Não revogação. Mudança de entendimento modificativos (EDcl nos EDcl no REsp. nº 1.055.035/RS
jurisprudencial. Violação não caracterizada. – Rel. Min. Eliana Calmon – 2ª Turma – j. em 8.9.2009
– DJe de 24.9.2009)
1. O registro, no Brasil, de diplomas expedidos
por entidades de ensino estrangeiras está submetido Processual Civil e Administrativo. Recursos espe-
ao regime jurídico vigente à data da sua expedição. In ciais. Ensino superior. Curso de medicina. Convenção
casu, diploma expedido em Cuba em 1999. Regional sobre o Reconhecimento de Estudos, Títulos
e Diplomas de Ensino Superior na América Latina e
2. A Convenção Regional sobre o Reconhecimen- no Caribe. Não revogação do Dec. nº 80.419/1977
to de Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino Superior pelo Dec. nº 3.007/1999. Inexistência de previsão
na América Latina e Caribe (Dec. Presidencial nº legal para validação automática de diploma obtido no
80.419/1977) não poderia ter sido revogada pelo exterior. Norma de cunho meramente programático.
Dec. nº 3.077/1999, estando, portanto, ainda em
vigor no Brasil. Neste ponto, nos afastamos do enten- 1. Recursos especiais nos quais se discute a
dimento jurisprudencial vigente nesta Corte Superior. possibilidade de validação automática de diploma
obtido no exterior, por se considerar que o art. 2º.
3. O Dec. nº 80.419/1977 tem caráter meramen- 1. V da Convenção Regional sobre o Reconhecimento
te programático, nunca tendo admitido o reconhe- de Estudos, Títulos e Diplomas de Ensino Superior na
cimento automático de diplomas estrangeiros dos América Latina e no Caribe (Dec. nº 80.419/1977)
Estados-parte. prevê o reconhecimento imediato do diploma.
4. Ante a ausência de tratado internacional espe- 2. Não há previsão legal para validação automá-
cífico regulamentando a questão, o registro no Brasil tica de diploma obtido no exterior, tendo em vista o
fica submetido a prévio processo de revalidação, se- cunho meramente programático da norma prevista
gundo o regime previsto na Lei de Diretrizes e Bases da nos arts. 2º. 1.v e 5º do Dec. nº 80.419/1977, aplican-
Educação Brasileira (Lei nº 9.394/1996, art. 48, § 2º). do-se, por conseguinte, o procedimento administra-
tivo de revalidação preconizado no art. 48, § 2º, da
5. Recurso especial não provido (REsp nº
Lei nº 9.394/1996. Nesse sentido: REsp nº 1.319.205/
939.880/RS – Rel. Min. Mauro Campbell Marques
CE – Rel. Min. César Asfor Rocha – 2ª Turma – DJe de
– 2ª Turma – j. em 23.9.2008 – DJe de 29.10.2008)
23.8.2012; REsp nº 1.126.189/PE – Rel. Min. Benedito
Embargos de declaração. Omissão quanto à Gonçalves – 1ª Turma – DJe de 13.5.2010; REsp nº
análise de tese sustentada no recurso especial. 939.880/RS – Rel. Min. Mauro Campbell Marques – 2ª
Turma – DJ de 22.10.2008.
1. Verificada omissão no acórdão embarga-
do no tocante à tese da vigência ou não do Dec. 3. Recursos especiais providos (REsp nº
Legislativo nº 66/1977 e do Dec. Presidencial nº 1.315.454/PE – Rel. Min. Benedito Gonçalves – 1ª
80.419/1977, em virtude da constatação de que o Turma – j. em 18.2.2014 – DJe de 24.2.2014)

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JAN/17
JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Administrativo. Curso de medicina. Convenção 3. Logo, é defeso o reconhecimento automáti-


Regional sobre o Reconhecimento de Estudos, Títu- co de diplomas obtidos no exterior sem o anterior
los e Diplomas de Ensino Superior na América Latina procedimento administrativo de revalidação, con-
e no Caribe. Não revogação do Dec. nº 80.419/1977 soante determina a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº
pelo Dec. nº 3.007/1999. Inexistência de previsão le- 9.394/1996), em seu art. 48, § 2º. Precedentes: (AgRg
gal para validação automática de diploma obtido no no REsp nº 1,137.209/RS – Rel. Min. Benedito Gonçal-
exterior. Norma de cunho meramente programático. ves – 1ª Turma – j. em 17.6.2010 – DJe de 29.6.2010 e
1. A novel e majoritária jurisprudência desta Cor- REsp nº 1.128.810/PR – Rel. Min. Eliana Calmon – 2ª
te consagra que o Dec. nº 80.419/1977, além de não Turma – j. em 17.11.2009 – DJe de 2.12.2009).
ter sido revogado pelo Dec. nº 3.007, de 30.3.1999, Agravo regimental improvido (AgRg no AgRg
não confere o direito à validação automática de di- nos EDcl no REsp nº 1 165.265/SC – Rel. Min. Hum-
plomas obtidos no exterior. berto Martins – 2ª Turma – j. em 13.12.2011 – DJe
2. O preceito normativo em comento é tão de 19.12.2011)
somente programático e, nesse sentido, sugere que Ante o exposto, nego provimento ao recurso
os Estados signatários criem mecanismos simples e
especial.
ágeis para o reconhecimento dos diplomas obtidos
no exterior. É como voto.

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JAN/17
JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Compensação Financeira para a Exploração de Recursos Minerais (CFEM)


Acondicionamento/embalagem de água mineral em garrafas – Não caracterização
como processo de transformação industrial – Valor correspondente que integra a
base de cálculo da CFEM – Beneficiamento configurado

REsp. nº 1.275.910/RS

Recorrente: Bebidas Fruki Ltda.

Recorridos: União e Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM)

Relator: Min. Mauro Campbell Marques

Administrativo. Compensação Financeira para a Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Base de


cálculo. Beneficiamento. Transformação industrial. Art. 6º da Lei nº 7.990/1989, art. 2º da Lei nº
8.001/1990 e art. 14, inc. III, do Dec. nº 1/1991.
1. O acondicionamento/embalagem da água mineral em garrafas não é processo de transformação
industrial. Sendo assim, o valor correspondente integra a base de cálculo da Compensação Financeira
para a Exploração de Recursos Minerais (CFEM).
2. O significado da expressão “transformação industrial”, na omissão da legislação específica, deve
ser buscado na legislação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que a conceitua como
“operação exercida sobre matérias-primas ou produtos intermediários que importe na obtenção de
espécie nova” – art. 4º do Dec. nº 7.212/2010 (RIPI-2010). No caso da água mineral, a lei entendeu
por espécie nova a sua transformação em água que “contenha como ingrediente principal inositol,
glucoronolactona, taurina ou cafeína” (art. 14, parágrafo único, da Lei nº 13.097/2015). Tal não é o
caso do mero acondicionamento.
3. Desta forma, o acondicionamento ou a embalagem da água mineral em garrafas integram a base de
cálculo da CFEM justamente porque não constituem “transformação” ou “transformação industrial”
(a água permanece natural), mas, sim, etapa anterior que, para os efeitos da legislação da CFEM, é
compreendida dentro do conceito amplo de beneficiamento, consoante o art. 14, inc. III, do Dec. nº
1/1991.
4. Precedentes em casos análogos que julgaram pela legalidade dos critérios de cálculo da CFEM
estabelecidos pela IN nº 6/2000 (DOU de 12.6.2000): AgRgREsp. nº 1448307/CE, 2ª Turma, Rel. Min.
Mauro Campbell Marques, j. em 23.9.2014; REsp. nº 756.530/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino
Zavascki, j. em 12.6.2007.
5. Recurso especial não provido.

ACÓRDÃO da 2ª Turma do STJ, na conformidade dos votos e das


Vistos, relatados e discutidos esses autos em que notas taquigráficas, o seguinte resultado de julga-
são partes as acima indicadas, acordam os Ministros mento:

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JAN/17
JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

“A Turma, por unanimidade, negou provimento ser deduzido da base de cálculo da Compensação
ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro- Financeira pela Exploração de Recursos Minerais
-Relator”. (CFEM), pois esta incide somente sobre o valor do
produto minerado explorado no local da mina. Em
A Sra. Min. Assusete Magalhães, os Srs. Min.
outras palavras, afirma que o valor da base de cálculo
Humberto Martins, Herman Benjamin e Og Fernan- de incidência da CFEM deve ser o valor do produto
des votaram com o Sr. Ministro-Relator. no momento da sua mineração e não o valor efetivo
Presidiu o julgamento o Sr. Min. Og Fernandes. de venda do bem mineral pronto para ser consumido
(e-STJ fls. 442-459).
Brasília, 4 de agosto de 2015 (data do julga-
mento). Contrarrazões apresentadas pela União às e-STJ
fls. 487-492.
Min. Mauro Campbell Marques, Relator.
Contrarrazões apresentadas pelo Departamento
RELATÓRIO Nacional de Produção Mineral (DNPM) às e-STJ fls.
503-509.
O Exmo. Sr. Min. Mauro Campbell Marques
(Relator): Trata-se de recurso especial interposto por Recurso regularmente admitido na origem (e-STJ
Bebidas Fruki Ltda., com fundamento no art. 105, inc. fls. 511-512).
III, al. a, da CF, contra acórdão proferido pelo TRF4ªR, Parecer do Ministério Público Federal pelo
nesses termos ementado, litteris (e-STJ fls. 418-426): parcial conhecimento do recurso especial e, nessa
Administrativo. Cerceamento de defesa. In- parte, pela negativa de provimento ao fundamento
deferimento de prova pericial. Prescindibilidade. de que os custos suportados pela recorrente com o
Exclusão dos custos de acondicionamento da água envazamento da água mineral natural para venda
mineral da base de cálculo da Compensação Finan- ao consumidor não podem ser subtraídos da base
ceira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). de cálculo da CFEM, porque a aludida operação não
Impossibilidade. equivale a processo de transformação industrial,
1 – O Magistrado de 1º Grau, destinatário da
mas de mero beneficiamento do produto mineral,
prova, tem a prerrogativa de dispensar a realização e também não está sujeita à incidência de IPI (e-STJ
de outras provas, prescindíveis para o desate da lide, fls. 600-610).
sem que a decisão importe cerceamento do direito É o relatório.
de defesa da parte que a requereu (art. 130 CPC).
2 – O acondicionamento ou embalagem da água VOTO
mineral não constitui fase de transformação indus- O Exmo. Sr. Min. Mauro Campbell Marques
trial do produto, a interferir no valor do faturamento
(Relator): Devidamente prequestionado o disposto
líquido para o cálculo da CFEM, na forma como defini-
no art. 6º da Lei nº 7.990/1989, conheço do recurso
do no art. 6º da Lei nº 7.990/1989, pois não se trata
especial.
de operação que altera a natureza ou a finalidade
do produto, configurando o seu acondicionamento O cerne da questão é saber se o acondiciona-
mero beneficiamento. mento/embalagem da água mineral em garrafas é
Os embargos de declaração opostos foram par- processo de beneficiamento ou anterior ao benefi-
cialmente acolhidos para fins de prequestionamento ciamento do produto mineral ou se é uma fase de
(e-STJ fls. 434-440). transformação industrial. Se for mero beneficiamen-
to ou anterior ao beneficiamento, integra a base de
Nas razões do recurso especial, a parte recorren- cálculo da CFEM (faturamento líquido previsto no art.
te alega violação aos arts. 6º da Lei nº 7.990/1989 2º da Lei nº 8.001/1990). Se for uma fase de trans-
e 13 do Dec. nº 1/1991, defendendo que o acondi- formação industrial, não integra a base de cálculo
cionamento ou a embalagem da água mineral em da CFEM (não é faturamento líquido previsto no art.
garrafas é característica da fase de industrialização 2º da Lei nº 8.001/1990). Esse o teor da legislação
de produtos, assim, o valor correspondente deve aplicável:

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JAN/17
JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Lei nº 7.990/1989 I – o consêrto de máquinas, aparelhos e objetos


pertencentes a terceiros;
Art. 6º A compensação financeira pela explora-
ção de recursos minerais, para fins de aproveitamen- II – o acondicionamento destinado apenas ao
to econômico, será de até 3% (três por cento) sobre transporte do produto;
o valor do faturamento líquido resultante da venda
III – O preparo de medicamentos oficinais ou
do produto mineral, obtido após a última etapa do
magistrais, manipulados em farmácias, para venda
processo de beneficiamento adotado e antes de sua
no varejo, diretamente e consumidor, assim como
transformação industrial. (Vide Lei nº 8.001, de 1990)
a montagem de óculos, mediante receita médica.
[...] (Incluído pelo Decreto-Lei nº 1.199, de 1971)

Lei nº 8.001/1990 IV – a mistura de tintas entre si, ou com concen-


trados de pigmentos, sob encomenda do consumidor
Art. 2º Para efeito do cálculo de compensação ou usuário, realizada em estabelecimento varejista,
financeira de que trata o art. 6º da Lei nº 7.990, de 28 efetuada por máquina automática ou manual, desde
de dezembro de 1989, entende-se por faturamento que fabricante e varejista não sejam empresas inter-
líquido o total das receitas de vendas, excluídos os tri- dependentes, controladora, controlada ou coligadas.
butos incidentes sobre a comercialização do produto (Incluído pela Lei nº 9.493, de 1997)
mineral, as despesas de transporte e as de seguros.
Nesse sentido, esclarecendo a abrangência do
[...] fato gerador do IPI a abarcar também as operações
No silêncio da legislação específica, torna-se de transformação, acondicionamento e beneficia-
importante esclarecer a influência no presente pro- mento, o art. 4º do Dec. nº 7.212/2010 (RIPI-2010),
cesso do conceito de industrialização utilizado pela que tem a mesma redação do Dec. nº 4.544/2002
legislação do Imposto sobre Produtos Industrializa- (RIPI-2002) e do Dec. nº 2.637/1998 (RIPI-98):
dos (IPI). De ver que o conceito ali utilizado é lato e Art. 4º Caracteriza industrialização qualquer
abrange tanto as operações de que resulte alteração operação que modifique a natureza, o funcionamen-
da natureza do produto (industrialização em sentido to, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do
estrito – transformação industrial) quanto às opera- produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como (Lei
ções que alteram o funcionamento, a utilização, o nº 5.172, de 1966, art. 46, parágrafo único, e Lei nº
acabamento ou apresentação do produto (benefi- 4.502, de 1964, art. 3º, parágrafo único):
ciamento, montagem, acondicionamento, ou recon- I – a que, exercida sobre matérias-primas ou
dicionamento). Ou seja, para o IPI é indiferente se produtos intermediários, importe na obtenção de
tratar de transformação industrial, beneficiamento, espécie nova (transformação);
montagem, acondicionamento, ou recondicionamen-
II – a que importe em modificar, aperfeiçoar
to, pois tudo está dentro do fato gerador do tributo,
ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a
consoante o art. 3º, parágrafo único, primeira par- utilização, o acabamento ou a aparência do produto
te, (transformação industrial) e o art. 3º, parágrafo (beneficiamento);
único, segunda parte (beneficiamento, montagem,
acondicionamento, ou recondicionamento), da Lei III – a que consista na reunião de produtos, peças
nº 4.502/1964. Transcrevo: ou partes e de que resulte um novo produto ou uni-
dade autônoma, ainda que sob a mesma classificação
Lei nº 4.502/1964 fiscal (montagem);
Art. 3º Considera-se estabelecimento produtor IV – a que importe em alterar a apresentação
todo aquêle que industrializar produtos sujeitos ao do produto, pela colocação da embalagem, ainda
impôsto. que em substituição da original, salvo quando a em-
balagem colocada se destine apenas ao transporte
Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo,
da mercadoria (acondicionamento ou reacondicio-
considera-se industrialização qualquer operação de
namento); ou
que resulte alteração da natureza, funcionamento,
utilização, acabamento ou apresentação do produto, V – a que, exercida sobre produto usado ou parte
salvo: remanescente de produto deteriorado ou inutilizado,

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JAN/17
JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

renove ou restaure o produto para utilização (reno- Subseção I


vação ou recondicionamento). Da Abrangência do Regime Tributário
aplicável à Produção e Comercialização de
Parágrafo único. São irrelevantes, para caracte- Cervejas, Refrigerantes e outras Bebidas
rizar a operação como industrialização, o processo
Art. 14. Observado o disposto nesta Lei, serão
utilizado para obtenção do produto e a localização
exigidos na forma da legislação aplicável à generali-
e condições das instalações ou equipamentos em- dade das pessoas jurídicas a Contribuição para o PIS/
pregados. PASEP, a Contribuição para o Financiamento da Se-
guridade Social – COFINS, a Contribuição para o PIS/
Ocorre que o IPI somente não tributa o acon-
PASEP-Importação, a COFINS-Importação e o Imposto
dicionamento ou a embalagem da água mineral em sobre Produtos Industrializados – IPI devidos pelos
garrafas em razão da imunidade prevista no art. importadores e pelas pessoas jurídicas que procedam
155, § 3º, da CF/1988, para as operações relativas à industrialização e comercialização dos produtos clas-
sificados nos seguintes códigos da Tabela de Incidência
a minerais:
do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI,
§ 3º À exceção dos impostos de que tratam o in- aprovada pelo Decreto nº 7.660, de 23 de dezembro
ciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum de 2011: (Vigência) Regulamento (Vigência)
outro imposto poderá incidir sobre operações relativas I – 2106.90.10 Ex 02;
a energia elétrica, serviços de telecomunicações, de- II – 22.01, exceto os Ex 01 e Ex 02 do código
rivados de petróleo, combustíveis e minerais do País. 2201.10.00;
(Redação dada pela EC nº 33, de 2001)
III – 22.02, exceto os Ex 01, Ex 02 e Ex 03 do
Essa imunidade foi obedecida pela Lei nº 13.097/ código 2202.90.00; e
2015, que expressamente retirou do campo de inci- IV – 22.02.90.00 Ex 03 e 22.03.
dência do IPI sobre bebidas frias a água mineral natu- Parágrafo único. O disposto neste artigo, em
ral comercializada em recipiente (códigos 2201.10.00 relação às posições 22.01 e 22.02 da TIPI, alcança,
Ex 01 e Ex 02 da TIPI, que foram classificados como exclusivamente, água e refrigerantes, chás, refrescos,
NT – Não Tributados), transcrevo: cerveja sem álcool, repositores hidroeletrolíticos, be-
bidas energéticas e compostos líquidos prontos para
Seção IX o consumo que contenham como ingrediente prin-
Da Tributação de Bebidas Frias cipal inositol, glucoronolactona, taurina ou cafeína.

Dec. nº 7660/2011 – (TIPI) – Capítulo 22

NCM Ex Descrição IPI

Ex 01 Águas minerais naturais comercializadas em recipientes com capacidade nominal inferior a 10 (dez) litros NT
2201.10.00

Ex 02 Águas minerais naturais comercializadas em recipientes com capacidade nominal igual ou superior a 10 (dez) litros NT
2201.10.00

2201.10.00 Águas minerais e águas gaseificadas 4

Anotações:
Alíquota fixada por meio da Lei nº 13.097/2015, art. 14, inc. II e art. 15, inc. II (Regulamentado por meio do Dec. nº
8.442/2015, art. 37, Anexo IV)
– Exclusivamente, água e refrigerantes, chás, refrescos, cerveja sem álcool, repositores hidroeletrolíticos, bebidas energéticas e
compostos líquidos prontos para o consumo que contenham como ingrediente principal inositol, glucoronolactona, taurina ou
cafeína. Sem prejuízo de eventuais reduções previstas para os produtos que contiverem suco de fruta, extrato de sementes de
guaraná ou extrato de açaí, nos termos da legislação aplicável.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

No entanto, em havendo transformação, abre-se gem, nodulação, sinterização, pelotização, ativação,


a possibilidade de tributação pelo IPI, daí a menção coqueificação, calcinação, desaguamento, inclusive se-
do art. 14, parágrafo único, da Lei nº 13.097/2015 cagem, desidratação, filtragem, levigação, bem como
às águas “que contenham como ingrediente princi- qualquer outro processo de beneficiamento, ainda que
exija adição ou retirada de outras substâncias, desde
pal inositol, glucoronolactona, taurina ou cafeína”.
que não resulte na descaracterização mineralógica
Ou seja, se a água mineral não for mais a natural, das substâncias minerais processadas ou que não
submete-se à tributação pelo IPI. Mutatis mutandis, impliquem na sua inclusão no campo de incidência do
o mesmo registro se faz quanto à expressão final Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
contida no art. 6º da Lei nº 7.990/1989: “[...] antes
[...]
de sua transformação industrial”. Ou seja, se a água
mineral não for mais a natural, não incide a CFEM. Dito Registre-se que o conceito de beneficiamento
de outra forma, a questão é saber se a água mineral utilizado pela legislação do IPI é mais restrito que
continua sendo natural e não se foi embalada. aquele utilizado pela legislação da CFEM, sendo esta
Sendo assim, o argumento desenvolvido pelo aplicável ao caso concreto porque específica.
contribuinte de que o acondicionamento ou a emba- Seguem precedentes em casos análogos que jul-
lagem da água mineral em garrafas faz parte de uma garam pela legalidade dos critérios de cálculo da CFEM
fase de transformação industrial porque dentro do estabelecidos pela IN nº 6/2000 (DOU de 12.6.2000):
campo de incidência do IPI, não procede. Isto porque
Agravo regimental no recurso especial. Pro-
confunde os conceitos técnicos de acondicionamen-
cessual Civil e Administrativo. Violação ao art. 535
to e transformação, que são indiferentes para o fato do CPC. Inocorrência. Compensação Financeira de
gerador do IPI (vimos que tributa todos, pois tudo é Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Descontos
industrialização), mas são de distinção relevante para de custos de transporte. Vedação. Legalidade.
a incidência da Compensação Financeira pela Explo-
ração de Recursos Minerais (CFEM) que onera todas 1. Não viola o art. 535 do CPC, tampouco nega
prestação jurisdicional, acórdão que, mesmo sem ter
as fases anteriores à transformação.
examinado individualmente cada um dos argumentos
Desta forma, o acondicionamento ou a embala- trazidos pelo vencido, adota fundamentação suficiente
gem da água mineral em garrafas integram a base de para decidir de modo integral a controvérsia, conforme
cálculo da CFEM justamente porque não constituem ocorreu no caso em exame.
“transformação” ou “transformação industrial” (a água 2. O Tribunal de origem assentou que não há
permanece natural), mas, sim, etapa anterior que, falar em cerceamento de defesa porque o exame da
para os efeitos da legislação da CFEM, é compreendida controvérsia demanda exame apenas de questões de
dentro do conceito amplo de beneficiamento, a saber: direito; assim, o óbice da Súmula nº 7/STJ impede o
Dec. nº 1/1991 acolhimento da alegação das recorrentes de necessi-
dade de produção de prova pericial.
Art. 14. Para efeito do disposto no artigo anterior,
considera-se: 3. O tema da base de cálculo da CFEM foi decidido
pelo acórdão recorrido com base em fundamentos
I – atividade de exploração de recursos minerais, constitucionais, situação que impede sua revisão em
a retirada de substâncias minerais da jazida, mina, sede de recurso especial, sob pena de usurpação da
salina ou outro depósito mineral para fins de aprovei- competência do STF.
tamento econômico;
4. Em caso análogo, a 1ª Turma decidiu que “São
II – faturamento líquido, o total das receitas legítimas as disposições de IN nº 8/2000, que, ao re-
de vendas excluídos os tributos incidentes sobre a gulamentar a forma de fiscalização do recolhimento
comercialização do produto mineral, as despesas de da CFEM, não extrapolou os limites e a competência
transporte e as de seguro; fixados pelo legislador (Lei nº 8.876/1994, art. 3º, inc.
III – processo de beneficiamento, aquele reali- IX; Lei nº 7.805/1989, art. 9º, § 2º)” (REsp. nº 756.530/
zado por fragmentação, pulverização, classificação, DF, 1ª T., Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 21.6.2007).
concentração, separação magnética, flotação, homo- Por estar em consonância com esse entendimento, o
geneização, aglomeração ou aglutinação, briqueta- acórdão recorrido não merece reparos.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

5. Agravo regimental não provido (AgRgREsp. nº do produto mineral”. Nos termos do art. 2º da Lei nº
1448307/CE – 2ª Turma – Rel. Min. Mauro Campbell 8.001/1990 e do art. 14, inc. II, do Dec. nº 1/1991, a
Marques – j. em 23.9.2014). CFEM corresponde a 3% das receitas de vendas do pro-
duto mineral, excluídos os tributos incidentes sobre a
Administrativo. Compensação. Financeira para comercialização, bem como as despesas de transporte
a Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Critérios e de seguro do produto mineral.
de cálculo. Lei nº 7.990/1989, Lei nº 8.001/1990 e
Dec. nº 01/1991. IN nos 6, 7 e 8/2000 do Diretor-Geral 3. São legítimas as disposições da IN nº 8/2000,
do DNPM. que, ao regulamentar a forma de fiscalização do reco-
lhimento da CFEM, não extrapolou os limites e a com-
1. Não pode ser conhecido o recurso quanto à petência fixados pelo legislador (Lei nº 8.876/1994,
matéria relativa à IN nº 7/2000, por não indicar ade- art. 3º, inc. IX; Lei nº 7.805/1989, art. 9º, § 2º).
quadamente a questão controvertida, com informa-
4. Recurso especial parcialmente conhecido e,
ções sobre o modo como teria ocorrido violação ao
nessa parte, provido (REsp. nº 756.530/DF – 1ª Turma
dispositivo de lei federal (Súmula nº 284/STF).
– Rel. Min. Teori Albino Zavascki – j. em 12.06.2007).
2. Ao estabelecer a base de cálculo da “contribui-
Ante o exposto, nego provimento ao presente
ção financeira para a exploração de recursos minerais
recurso especial.
– CFEM”, o legislador adotou como parâmetro o fatu-
ramento líquido correspondente às “receitas de venda É como voto.

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Acumulação de cargos públicos – Professor substituto e tradutor


e intérprete da Linguagem Brasileira de Sinais (Libras) – Possibilidade
Conceito de “cargo técnico ou científico” que não remete essencialmente
a cargo de nível superior, mas à atividade desenvolvida, em atenção ao nível de
especificação, capacidade e técnica necessários para o correto desenvolvimento
do trabalho – Interpretação da al. b do inc. XVI do art. 37 da CF

REsp. nº 1.569.547/RN
Recorrente: Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Recorrido: Amon Evangelista dos Anjos Paiva
Relator: Min. Humberto Martins

Administrativo. Servidor público. Intérprete e tradutor de Libras. Natureza técnica do cargo. Cumulação
com cargo de professor. Possibilidade.
1. Nos termos do art. 37, inc. XVI, da CF, a inacumulabilidade de cargo público emerge como regra,
cujas exceções são expressamente estabelecidas no corpo da própria Carta Magna.
2. Na exceção prevista na al. b do inc. XVI do art. 37 da CF, o conceito de “cargo técnico ou científico”
não remete essencialmente a um cargo de nível superior, mas pela análise da atividade desenvolvida,
em atenção ao nível de especificação, capacidade e técnica necessários para o correto exercício do
trabalho. RMS nº 42.392/AC, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, j. em 10.2.2015, DJe de 19.3.2015;
RMS nº 28.644/AP, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. em 6.12.2011, DJe de 19.12.2011; RMS nº 20.033/
RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, j. em 15.2.2007, DJ de 12.3.2007, p. 261.
3. A legislação brasileira reconhece a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como um sistema linguístico
de comunicação, cuja formação profissional deve ser fomentada pelo Poder Público para fins de via-
bilizar a comunicação com a pessoa portadora de deficiência e, consequentemente, promover sua
inclusão nas esferas sociais.
4. As disposições do Dec. nº 5.626/2005 somam-se aos preceitos da Lei nº 12.319/2010 para evidenciar
que o exercício da profissão de tradutor e intérprete de Libras exige conhecimentos técnicos e especí-
ficos relativos a um sistema linguístico próprio, totalmente diferente da língua portuguesa, mas a esta
associada para fins de viabilizar a comunicação com pessoas portadoras de deficiência, conduzindo
à inexistência de vedação para cumulação do cargo de professor com a de tradutor e intérprete de
Libras, dada a natureza técnica do cargo.
Recurso especial improvido.

ACÓRDÃO Mauro Campbell Marques, Assusete Magalhães (Pre-


sidente) e Diva Malerbi (Desa. convoc. do TRF3ªR)
Vistos, relatados e discutidos os autos em que
votaram com o Sr. Ministro-Relator.
são partes as acima indicadas, acordam os Ministros
da 2ª Turma do STJ “A Turma, por unanimidade, ne- Brasília, 15 de dezembro de 2015 (data do julga-
gou provimento ao recurso, nos termos do voto do mento).
Sr. Ministro-Relator.” Os Srs. Min. Herman Benjamin, Min. Humberto Martins, Relator.

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RELATÓRIO VOTO
O Exmo. Sr. Min. Humberto Martins (Relator): Cui- O Exmo. Sr. Min. Humberto Martins (Relator):
da-se de recurso especial interposto pela Universidade Como delineia a própria recorrente, “o caso em apreço
Federal do Rio Grande do Norte, com fundamento no se refere, em síntese, à possibilidade de acumulação
art. 105, inc. III, al. a, da CF, contra acórdão proferido de dois cargos públicos, quais sejam o de professor
pelo TRF5ªR assim ementado (fls. 191-195, e-STJ). e o de intérprete e tradutor da Língua Brasileira de
Apelação em mandado de segurança. Servidor.
Sinais (Libras), cuja natureza de cargo técnico não é
Cumulação de cargos. Professor substituto e tradutor reconhecida pela autarquia recorrente (fls. 220, e-STJ).
e intérprete da linguagem de sinais (Libras). Possibi- Nos termos da Constituição Federal, a inacumu-
lidade. Provimento. labilidade de cargo público emerge como regra, cujas
1. À caracterização de cargo ou função técnica exceções são expressamente estabelecidas no corpo
não se faz indispensável a exigência, pela lei regu- da própria Carta Magna. In verbis:
ladora do provimento, de que o respectivo titular Art. 37. A administração pública direta e indire-
seja portador de diploma de nível superior, daquele ta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
demandando, ao contrário, conhecimentos ou habili- do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
dades específicas. princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
2. Diante das atribuições enumeradas na Lei nº publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
12.319/2010, a qual regulamentou a atividade de .............................................................................
tradutor e intérprete de Linguagem Brasileira de Sinais
(Libras), constata-se do seu conjunto que a sua reali- XVI – é vedada a acumulação remunerada de car-
zação requer habilidades específicas, razão pela qual gos públicos, exceto, quando houver compatibilidade
é inegável seu caráter técnico, a justificar o seu de- de horários, observado em qualquer caso o disposto
sempenho cumulativo com a atividade de Magistério. no inciso XI: (Redação dada pela Emenda Constitucio-
nal nº 19, de 1998)
3. O óbice do art. 6º, § 1º, inc. I, da Lei nº
8.745/1993, suscitado pela autoridade coatora em a) a de dois cargos de professor; (Redação dada
suas informações, não incide no presente caso, por- pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
quanto a situação fática delineada nos autos trata da b) a de um cargo de professor com outro técnico
contratação de professor substituto que exerce função ou científico; (Redação dada pela Emenda Constitu-
técnica, inserindo-se, portanto, na excepcionalidade cional nº 19, de 1998)
prevista na referida norma.
c) a de dois cargos ou empregos privativos de
4. Para a aferição da compatibilidade de horários profissionais de saúde, com profissões regulamenta-
devem ser observadas as horas didáticas do Magisté- das; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
rio, que, nos termos da Portaria nº 475 do Ministério 34, de 2001).
da Educação, correspondem a, no máximo, 60% da
Na exceção prevista na al. b do inc. XVI do art. 37
carga horária global.
da CF, o conceito de “cargo técnico ou científico” não
5. Apelação provida. Segurança concedida. remete essencialmente a um cargo de nível superior,
Sem embargos de declaração. mas pela análise da atividade desenvolvida, em aten-
ção ao nível de especificação, capacidade e técnica
Nas razões do especial, a recorrente aduz violação necessários para o correto exercício do trabalho.
dos arts. 4º, 6º e 7º da Lei nº 12.319/2010 e do art. 6º
da Lei nº 8.745/1993. Aduz a recorrente, em síntese, A propósito:
a inviabilidade de cumulação de cargo de professor 2. De acordo com a jurisprudência do STJ, cargo
com o de intérprete e tradutor de Língua Brasileira técnico é aquele que requer conhecimento específico
de Sinais (Libras). na área de atuação do profissional, com habilitação es-
pecífica de grau universitário ou profissionalizante de
Apresentadas as contrarrazões (fls. 236-243, 2º Grau (RMS nº 42.392/AC – Rel. Min. Herman Benja-
e-STJ), sobreveio o Juízo de admissibilidade positivo min – 2ª Turma – j. em 10.2.2015, DJe de 19.3.2015).
da instância de origem (fls. 245, e-STJ).
3. Conforme a jurisprudência desta Corte: “Cargo
É, no essencial, o relatório. científico é o conjunto de atribuições cuja execução

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tem por finalidade investigação coordenada e sistema- junto de atribuições do cargo de tradutor e intérprete
tizada de fatos, predominantemente de especulação, da Língua Brasileira de Sinais (Libras), disciplinadas
visando a ampliar o conhecimento humano. Cargo pelo art. 6º e, de certa forma complementado pelo
técnico é o conjunto de atribuições cuja execução art. 7º da Lei nº 12.319, de 1º.9.2010, os quais assim
reclama conhecimento específico de uma área do dispõem:
saber”. (RMS nº 7.550/PB – 6ª Turma – Rel. Min. Luiz “Art. 6º São atribuições do tradutor e intérprete,
Vicente Cernicchiaro – DJ de 2.3.1998.)” (RMS nº no exercício de suas competências:
28.644/AP – Rel. Min. Laurita Vaz – 5ª Turma – j. em
6.12.2011 – DJe de 19.12.2011). I – efetuar comunicação entre surdos e ouvintes,
surdos e surdos, surdos e surdos-cegos, surdos-cegos
2. O STJ tem entendido que cargo técnico ou e ouvintes, por meio da Libras para a língua oral e
científico, para fins de acumulação com o de profes- vice-versa;
sor, nos termos do art. 37, inc. XVII, da Lei Funda-
mental, é aquele para cujo exercício sejam exigidos II – interpretar, em Língua Brasileira de Sinais –
conhecimentos técnicos específicos e habilitação Língua Portuguesa, as atividades didático-pedagógicas
legal, não necessariamente de nível superior (RMS e culturais desenvolvidas nas instituições de ensino
nº 20.033/RS – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – 5ª nos níveis fundamental, médio e superior, de forma a
Turma – j. em 15.2.2007 – DJ de 12.3.2007, p. 261). viabilizar o acesso aos conteúdos curriculares;
III – atuar nos processos seletivos para cursos na
No caso dos autos, à luz dos arts. 6º e 7º da Lei
instituição de ensino e nos concursos públicos;
nº 12.319/2010, o Tribunal de origem reconheceu
a profissão de tradutor e intérprete de Libras como IV – atuar no apoio à acessibilidade aos serviços
técnico para fins de enquadramento na exceção e às atividades-fim das instituições de ensino e repar-
constitucional. tições públicas; e
V – prestar seus serviços em depoimentos em
Para melhor ilustração do caso, transcrevo a de-
juízo, em órgãos administrativos ou policiais.
cisão proferida pelo Tribunal de origem:
Art. 7º O intérprete deve exercer sua profissão
A controvérsia reside em saber se o cargo de com rigor técnico, zelando pelos valores éticos a ela
tradutor e intérprete da Linguagem Brasileira de Sinais inerentes, pelo respeito à pessoa humana e à cultura
(Libra[s]), a ser exercido, no caso, pelo impetrante no do surdo e, em especial:
IFRN, é acumulável com o cargo de professor substi-
tuto da UFRN. I – pela honestidade e discrição, protegendo o
direito de sigilo da informação recebida;
Necessário se faz, nos termos do art. 37, inc. XVI,
al. b, da Lei Maior, que se demonstre a existência de II – pela atuação livre de preconceito de origem,
função técnica ou científica. raça, credo religioso, idade, sexo ou orientação sexual
ou gênero;
Natureza científica se sabe que não é o caso.
III – pela imparcialidade e fidelidade aos conteú-
Remanesce a investigação de sua natureza técni- dos que lhe couber traduzir;
ca. De logo, é de rebater-se a assertiva de que inexiste
cargo técnico toda vez que se está diante de cargo IV – pelas postura e conduta adequadas aos
cujo provimento não requer a exigência de diploma ambientes que frequentar por causa do exercício
de nível superior. profissional;
V – pela solidariedade e consciência de que o
Caso assim fosse, estar-se-ia ofertando ao cargo
direito de expressão é um direito social, independen-
técnico a mesma definição do científico.
temente da condição social e econômica daqueles que
[...] dele necessitem;
Percebe-se daí que, por cargo ou função de cunho VI – pelo conhecimento das especificidades da
técnico, é de ser reputado aquele cujo desempenho, comunidade surda.”
por ser dotado duma certa complexidade, requeira
Como se constata dos dispositivos supratrans-
conhecimentos específicos, de nível superior ou não.
c[r]itos, o cargo exercido pelo apelante junto ao Insti-
Por isso, há a necessidade, evidenciada em todos tuto Federal de Ensino requer atribuições de caráter
os arestos aqui mencionados, de investigar-se o con- técnico e específico.

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Percebe-se, portanto, que, independente de Capítulo V


se exigir formação de nível superior, o intérprete de
Da formação do tradutor e intérprete de Libras
sinais precisa possuir certo talento e certa habilidade
– Língua Portuguesa
técnica para o exercício de suas atribuições, os quais
são adquiridos por meio de treinamento específico, Art. 17. A formação do tradutor e intérprete de
no curso de formação. Libras – Língua Portuguesa deve efetivar-se por meio
de curso superior de Tradução e Interpretação, com
Com efeito, entendo que a natureza técnica da habilitação em Libras – Língua Portuguesa.
profissão de tradutor e intérprete de Libras é inafas-
Art. 18. Nos próximos dez anos, a partir da publi-
tável.
cação deste Decreto, a formação de tradutor e intér-
Cumpre destacar, de partida, que a legislação prete de Libras – Língua Portuguesa, em nível médio,
brasileira reconhece a Língua Brasileira de Sinais deve ser realizada por meio de:
(Libras) como um sistema linguístico de comunica- I – cursos de educação profissional;
ção, cuja formação profissional deve ser fomentada
II – cursos de extensão universitária; e
pelo Poder Público para fins de viabilizar a comu-
nicação com a pessoa portadora de deficiência e, III – cursos de formação continuada promovidos
consequentemente, promover sua inclusão nas por instituições de ensino superior e instituições cre-
denciadas por secretarias de educação.
esferas sociais.
Parágrafo único. A formação de tradutor e intér-
A legislação em comento assim estabelece:
prete de Libras pode ser realizada por organizações da
Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sociedade civil representativas da comunidade surda,
sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras desde que o certificado seja convalidado por uma das
providências. instituições referidas no inciso III.
“Art. 1º É reconhecida como meio legal de comu- Art. 19. Nos próximos dez anos, a partir da pu-
nicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Li- blicação deste Decreto, caso não haja pessoas com a
bras e outros recursos de expressão a ela associados. titulação exigida para o exercício da tradução e inter-
pretação de Libras – Língua Portuguesa, as instituições
Parágrafo único. Entende-se como Língua Bra- federais de ensino devem incluir, em seus quadros,
sileira de Sinais (Libras) a forma de comunicação e profissionais com o seguinte perfil:
expressão, em que o sistema lingüístico de natureza
visual-motora, com estrutura gramatical própria, I – profissional ouvinte, de nível superior, com
constituem um sistema lingüístico de transmissão de competência e fluência em Libras para realizar a
idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas interpretação das duas línguas, de maneira simultâ-
surdas do Brasil”. nea e consecutiva, e com aprovação em exame de
proficiência, promovido pelo Ministério da Educação,
Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. para atuação em instituições de ensino médio e de
Estabelece normas gerais e critérios básicos para a educação superior;
promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de
II – profissional ouvinte, de nível médio, com
deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras
competência e fluência em Libras para realizar a in-
providências.
terpretação das duas línguas, de maneira simultânea
“Art. 18. O Poder Público implementará a forma- e consecutiva, e com aprovação em exame de profi-
ção de profissionais intérpretes de escrita em braile, ciência, promovido pelo Ministério da Educação, para
linguagem de sinais e de guias-intérpretes, para fa- atuação no ensino fundamental;
cilitar qualquer tipo de comunicação direta à pessoa
III – profissional surdo, com competência para
portadora de deficiência sensorial e com dificuldade realizar a interpretação de línguas de sinais de ou-
de comunicação”. tros países para a Libras, para atuação em cursos e
Por seu turno, o Dec. nº 5.626, de 22.12.2005, ao eventos.
regulamentar disposições atinentes à Língua Brasileira Parágrafo único. As instituições privadas e as
de Sinais, assim dispõe sobre a formação do tradutor públicas dos sistemas de ensino federal, estadual,
e intérprete de Libras: municipal e do Distrito Federal buscarão implementar

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as medidas referidas neste artigo como meio de asse- II – nas salas de aula para viabilizar o acesso dos
gurar aos alunos surdos ou com deficiência auditiva alunos aos conhecimentos e conteúdos curriculares,
o acesso à comunicação, à informação e à educação. em todas as atividades didático-pedagógicas; e
Art. 20. Nos próximos dez anos, a partir da pu- III – no apoio à acessibilidade aos serviços e às
blicação deste Decreto, o Ministério da Educação ou atividades-fim da instituição de ensino.
instituições de ensino superior por ele credenciadas § 2º As instituições privadas e as públicas dos
para essa finalidade promoverão, anualmente, exame sistemas de ensino federal, estadual, municipal e do
nacional de proficiência em tradução e interpretação Distrito Federal buscarão implementar as medidas
de Libras – Língua Portuguesa. referidas neste artigo como meio de assegurar aos
alunos surdos ou com deficiência auditiva o acesso à
Parágrafo único. O exame de proficiência em tra-
comunicação, à informação e à educação.
dução e interpretação de Libras – Língua Portuguesa
deve ser realizado por banca examinadora de amplo As disposições do decreto somam-se aos precei-
conhecimento dessa função, constituída por docentes tos da Lei nº 12.319/2010 para evidenciar que o exer-
surdos, lingüistas e tradutores e intérpretes de Libras cício da profissão de tradutor e intérprete de Libras
de instituições de educação superior. exige conhecimentos técnicos e específicos relativos
Art. 21. A partir de um ano da publicação deste a um sistema linguístico próprio, totalmente diferente
Decreto, as instituições federais de ensino da educação da língua portuguesa, mas a esta associada para fins
básica e da educação superior devem incluir, em seus de viabilizar a comunicação com pessoas portadoras
quadros, em todos os níveis, etapas e modalidades, o de deficiência, conduzindo à inexistência de vedação
tradutor e intérprete de Libras – Língua Portuguesa, para cumulação do cargo de professor com a de tra-
para viabilizar o acesso à comunicação, à informação dutor e intérprete de Libras, dada a natureza técnica
e à educação de alunos surdos. do cargo.
§ 1º O profissional a que se refere o caput atuará: Ante o exposto, nego provimento ao recurso
especial.
I – nos processos seletivos para cursos na insti-
tuição de ensino; É como penso. É como voto.

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TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO

Poder de polícia – Anvisa – Autuação de empresa por veiculação de


propaganda de iogurte em todo o território nacional atribuindo efeitos e
propriedades terapêuticas/medicamentosas para o trato intestinal – Inobservância
das disposições legais sanitárias – Auto de infração precedido de notificações
Inexistência de ofensa ao devido processo – Produto enquadrado como alimento
Legitimidade de ato regulamentar – Proteção à saúde da população

ApCv nº 2008.34.00.020683-9/DF

Apelante: Danone Ltda.

Apelado: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)

Relator: Des. Federal Néviton Guedes

Administrativo. Mandado de segurança. Anvisa. Iogurte Activia. Produto enquadrado como alimento.
Registro. Propaganda. Divulgação de que o produto possui propriedades terapêuticas. Ilegalidade. Leis
nos 6.437/1977, 8.078/1990, 8.080/1990, 9.294/1996 e 10.674/2003. Dec.-Lei nº 986/1969. Resolução
da Anvisa nos 102/2000 e 259/2002. Autuação. Suspensão da publicidade. Agravo retido prejudicado.
Sentença mantida.
1. Não se conhece do agravo retido porque não requerida a sua apreciação pelo Tribunal por ocasião da
apresentação de suas contrarrazões de apelação, conforme teor do disposto no art. 523, § 1º do CPC.
2. A Anvisa é o órgão da União responsável por promover a proteção da saúde da população, por
intermédio do controle sanitário, da produção e da comercialização de produtos e serviços submeti-
dos à vigilância sanitária, possuindo, assim, legitimidade para regulamentar, controlar e fiscalizar os
produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública (Lei nº 9.782/1999).
3. No caso, a empresa impetrante foi autuada pela Anvisa por veicular propaganda do produto “Activia”
em todo o território nacional, atribuindo efeitos e propriedades terapêuticas para o trato intestinal,
com inobservância das disposições legais sanitárias.
4. O produto “Activia”, enquadrado na categoria de alimento, deve obedecer às regras dispostas na
Resolução RDC Anvisa nº 259/2002, sendo anunciado como possuindo propriedades terapêuticas/
medicamentosas.
5. Pretendendo a interessada comercializá-lo como produto terapêutico, deveria requerer o respecti-
vo registro e apresentar documentos contendo informações sobre o produto e evidências científicas
comprovando a sua segurança para o consumo humano.
6. Ao contrário do alegado pela apelante, foi oportunizado à empresa o direito à ampla defesa e ao
contraditório. O auto de infração, objeto da insurgência, foi precedido por duas notificações e autos
de infração, não cabendo suscitar ofensa ao devido processo legal.
7. O auto de infração que deu ensejo à questionada publicação da Resolução Anvisa nº 2.125/2008
determinou, como medida de interesse sanitário, a suspensão, em todo o território nacional, das
propagandas do alimento “Activia” que, por meio de afirmações e sugestões, constituam-no como
forma de tratamento para o funcionamento intestinal irregular (constipação intestinal).

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

8. É legítimo o ato regulamentar expedido pela Anvisa que veda a publicidade de alimento com ca-
racterísticas típicas de produto terapêutico/medicamento, a fim de proteger a saúde da população,
atuando o órgão sanitário, nesses casos, dentro da discricionariedade inerente ao seu poder de polícia.
9. Agravo retido não conhecido. Apelação a que se nega provimento.

ACÓRDÃO motivação por “medida de interesse sanitário”, sem


Decide a 5ª Turma do TRF1ªR, por unanimidade, razoabilidade ou proporcionalidade;
não conhecer do agravo retido e negar provimento à Pugna, ao final, pelo provimento do recurso para
apelação. reformar a sentença recorrida.
Brasília, 4 de novembro de 2015 (data do julga- Com contrarrazões, subiram os autos a este Tri-
mento). bunal.
Des. Federal Néviton Guedes, Relator. O Ministério Público Federal opinou pelo despro-
vimento do recurso.
RELATÓRIO
É o relatório.
Des. Federal Néviton Guedes (Relator): Trata-se
de apelação interposta por Danone Ltda. em face de VOTO
sentença que denegou a segurança pleiteada contra
ato da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (An- Des. Federal Néviton Guedes (Relator):
visa), por meio da qual a impetrante, ora apelante, Agravo retido
pretendia obter a declaração de nulidade da decisão
Não conheço do agravo retido porque não re-
proferida na Resolução RE nº 2.125/2008, que proibiu
querida a sua apreciação pelo Tribunal por ocasião
a veiculação da propaganda do produto “Activia” em
todo o território nacional, em razão de inobservância da apresentação de suas contrarrazões de apelação,
das disposições legais sanitárias. a teor do disposto no art. 523, § 1º do CPC.

O r. Juízo a quo assim decidiu, negando o pedido, Mérito


ao fundamento de que a impetrante, ao veicular pro- A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi-
duto submetido à vigilância sanitária, não observou a sa) é o órgão da União responsável por promover a
legislação de regência, haja vista que as propagandas proteção da saúde da população, por intermédio do
sugerem que o alimento pode ser considerado como controle sanitário da produção e da comercialização
forma terapêutica, não tendo sido verificado violação de produtos e serviços submetidos à vigilância sani-
ao contraditório e ao princípio do devido processo tária, possuindo, assim, legitimidade para regulamen-
legal, uma vez que foi concedida à impetrante opor- tar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que
tunidade para se defender. envolvam risco à saúde pública (Lei nº 9.782/1999).
A r. sentença recorrente ressaltou expressamente No caso, a Anvisa autuou a impetrante, empresa
que não foi proibida toda propaganda do produto, do ramo do comércio atacadista de produtos lác-
mas apenas aquela que, “por meio de afirmações ou teos frescos, com suporte nas Leis nos 8.078/1990,
sugestões, caracterize o produto como uma forma de 8.080/1990, 10.674/2003, 6.437/1977, art. 10,
tratamento para o funcionamento intestinal irregular
inc. V, Dec.-Lei nº 986/1969 e, ainda, na Resolução
(constipação intestinal)”.
RDC 102/2000, art. 10, inc. VI.
Da decisão que antecipou a tutela (fls. 161) a Anvisa
Conforme documentos juntados aos autos, desde
interpôs o AgI nº 2008.01.00.034909-7/DF que foi con-
2004 a Anvisa diligencia junto à Danone Ltda. acerca
vertido em retido nesta instância recursal (fls. 249-250).
da regular apresentação do produto “Activia”.
Em suas razões recursais, sustenta a empresa
impetrante, em síntese, que: a) o ato normativo a No documento de fls. 42, datado de 15.1.2004, a
ser anulado chegou ao conhecimento da empresa Anvisa informa à empresa que:
apenas após a publicação no Diário Oficial; b) não lhe 1. Avaliando o relatório em referência, verifica-
foi oportunizada a defesa; e c) a decisão se deu sem mos que a documentação científica apresentada com-

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

prova a alegação proposta ‘ajuda a regular o trânsito a) Causar erro e confusão quanto à natureza do
intestinal’, para o consumo de 100g do produto em produto, atribuir efeitos e propriedades terapêuticas
questão. A empresa, se desejar, também pode utilizar que o produto Activia não possui, ao afirmar: “A linha
a alegação “ajuda na manutenção do equilíbrio da Activia possui os melhores produtos para ajudar a
flora intestinal”. regular o intestino preguiçoso, pois alia o prazer de
deliciosos iogurtes com a eficiência do DanRegularis,
2. Contudo, diante de novos estudos científicos um probiótico que melhora a velocidade do trânsito
a respeito dos efeitos e da viabilidade dos probió- intestinal. Consumindo Activia todos os dias, seu trân-
ticos nos alimentos, informamos que a interessada sito intestinal vai deixar de ser preguiçoso”, “Como
deve atender ao disposto abaixo a fim de garantir a laxantes e remédios normalmente são agressivos e
quantidade viável de micro-organismos no produto ‘viciam’ o corpo e as receitas caseiras pouco práticas
em questão: e muito enjoativas, não existiam soluções naturais e
– a quantidade mínima dever ser de 109 UFC/por- gostosas para o problema... Activia Danone, uma op-
ção, ou seja, por pote do produto que no caso são 100g; ção natural, gostosa e eficiente para ajudar a regular
o funcionamento do seu intestino.
– a empresa deve garantir a viabilidade das cepas,
ou seja, o produto deve, durante o prazo de validade b) Induzir o consumidor a erro e confusão quan-
do mesmo, apresentar no mínimo 109 UFC por porção; to à forma de uso do alimento, bem como veicular
informação diferente daquela aprovada para constar
– a quantidade máxima deve ser de 1012 UFC em sua rotulagem ao sugerir um período de consumo
por porção; do produto nas seguintes afirmações: “Considerando
– excluir qualquer menção de prazo para o efeito pelo menos um pote de Activia por dia, o tempo do
da alegação aprovada, por ser característico de me- trânsito intestinal diminuirá em até 40%” e “Estudos
dicamento. também demonstraram que o consumo de 3 potes por
dia traz resultados ainda melhores”.
3. Portanto, informamos que, antes da comer-
cialização do produto, a empresa deve obedecer ao c) Aconselhar seu consumo como ação curativa
disposto acima. ao sugerir que o produto Activia por si só acaba com
a constipação.
A notificação nº 43/2005, datada de 13.4.2005
2. Fazer propaganda do produto Activia, por
(fls. 87-88), foi dirigida à empresa autora visando: intermédio de anúncios veiculados na mídia televi-
suspender toda a publicidade do produto Activia Da- siva, também exibidos no site www.danone.com.br/
none que divulgar a indicação de período de consumo activia, contrariando a legislação sanitária nos seguin-
para efeito da alegação de ‘ajudar a regular o trânsito tes aspectos:
intestinal’, bem como todo comercial que sugerir a) Causar erro e confusão quanto à natureza do
que o uso do produto por si só é capaz de tratar a produto, atribuir efeitos e propriedades terapêuticas
constipação. que o produto Activia não possui ao afirmar: “Em 15
Em 17.5.2005, a Anvisa encaminhou à Danone dias, eu achei que isso aqui um (a protagonista aponta
para a barriga) afinou”. “Até meu marido falou: nossa,
Ltda. diversas orientações a respeito da correta vei-
você ta com a pele lisa” e “Lindo! Assim, você olhar
culação de propaganda do alimento “Activia” (fls. 93). e, sabe, não me sentir gorda. Eu ficava toda inchada”.
Ante a conduta contumaz da empresa, em b) Induzir o consumidor a erro e confusão quan-
28.4.2005, foi expedido o Auto de Infração nº to à forma de uso do alimento, bem como veicular
722/2005, com o seguinte teor (fls. 94-97): informação diferente daquela aprovada para constar
[...] foi constatado na sede da repartição autuante que em sua rotulagem ao sugerir um período de consumo
a empresa supracitada infringiu os seguintes disposi- do produto nas seguintes afirmações: “Nossa eu to
tivos legais: arts. 21, 22 e 23 do Dec.-Lei nº 986/1969; tomando há duas semanas. E faz diferença viu??!”, “Se
você tivesse me visto há duas semanas: inchaço, mau
item 4.1.1.8, da Resolução 19, de 30.4.1999; RDC nº
humor. Era meu intestino preguiçoso. Mas tomando
259/2003, item 3.1, als. a, b, f e g; RDC 102/2000, art.
Activia diariamente ele passou a funcionar”, “Meu
10, inc. IV, referente às seguintes irregularidades:
intestino era um problema. Preguiçoso” Eu vivia incha-
1. Fazer propaganda do produto Activia por da, de mau humor. Mas há duas semanas eu descobri
intermédio do site www.danone.com.br/activia, con- Activia e gostei. E continuei tomando. Todo dia, todo
trariando a legislação sanitária nos seguintes aspectos: dia, todo dia. E meu intestino melhorou”;

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

c) Aconselhar seu consumo como ação curativa Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação
ao sugerir que o produto Activia por si só acaba com do Sistema Único de Saúde (SUS):
a constipação. [...]
I – a execução de ações:
Ao contrário do alegado pela apelante, foi opor- a) de vigilância sanitária;
tunizado à empresa o direito à ampla defesa e [ao]
contraditório, conforme fazem prova as defesas apre- .............................................................................
sentadas, por cópia, a fls. 89-92 e 98-107. IV – a vigilância nutricional e a orientação ali-
mentar;
O auto de infração, objeto da ação, é o de nº
0405/2008, que foi precedido pelas notificações de .............................................................................
fls. 87 e 95-97, não havendo que falar, portanto, em VII - o controle e a fiscalização de serviços, produ-
ofensa ao devido processo. tos e substâncias de interesse para a saúde;
O último auto de infração (0405/2008) deu ensejo VIII – a fiscalização e a inspeção de alimentos,
à publicação da Resolução Anvisa nº 2.125/2008 (fls. água e bebidas para consumo humano;
84), ora em debate, que assim dispõe:
O Dec.-Lei nº 986/1969 estabelece:
[...].
Art. 21. Não poderão constar da rotulagem deno-
Art. 1º Determinar como medida de interesse minações, designações, nomes geográficos, símbolos,
sanitário, a suspensão, em todo o território nacional, figuras, desenhos ou indicações que possibilitem in-
das propagandas do alimento Activia, registrado sob terpretação falsa, erro ou confusão quanto à origem,
a responsabilidade da Danone Ltda., que por meio procedência, natureza, composição ou qualidade do
de afirmações sugestões constituam-no como uma alimento, ou que lhe atribuam qualidades ou caracte-
forma de tratamento para o funcionamento intestinal rísticas nutritivas superiores àquelas que realmente
irregular (constipação intestinal). possuem.
Tendo em vista a legislação aplicada à espécie, Art. 22. Não serão permitidas na rotulagem quais-
passa-se a analisar o ato praticado pela Anvisa concer- quer indicações relativas à qualidade do alimento que
nente ao auto de infração lavrado por seus agentes. não sejam as estabelecidas por este Decreto-lei e seus
Regulamentos.
A Lei nº 8.078/1990 estabelece:
Art. 23. As disposições deste Capítulo se aplicam
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: aos textos e matérias de propaganda de alimentos
............................................................................. qualquer que seja o veículo utilizado para sua divul-
gação.
III – a informação adequada e clara sobre os
diferentes produtos e serviços, com especificação O art. 1º da Lei nº 10.674/2003 prescreve que
correta de quantidade, características, composição, “todos os alimentos industrializados deverão conter
qualidade, tributos incidentes e preço, bem como em seu rótulo e bula, obrigatoriamente, as inscrições
sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela ‘contém Glúten’ ou ‘não contém Glúten’, conforme
Lei nº 12.741, de 2012) o caso”.
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e O art. 7º, inc. XXVI, da Lei nº 9.782/1999 dispõe
abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, que:
bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou
impostas no fornecimento de produtos e serviços; Art. 7º Compete à Agência proceder à implemen-
tação e à execução do disposto nos incs. II a VII do art.
A Lei 8.080/1990, que dispõe sobre as condições 2º desta Lei, devendo:
de proteção e recuperação da saúde, por sua vez, diz:
.............................................................................
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do
XXVI - controlar, fiscalizar e acompanhar, sob o
ser humano, devendo o Estado prover as condições
prisma da legislação sanitária, a propaganda e publici-
indispensáveis ao seu pleno exercício.
dade de produtos submetidos ao regime de vigilância
............................................................................. sanitária;

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

A esse respeito, a Resolução RDC nº 102/2000-An- Resolução RDC nº 259/2002 e, apesar disso, foi anun-
visa, dispõe: ciado como possuindo propriedades terapêuticas/
Art. 10. Na propaganda, publicidade e promoção medicamentosas, por isso que, pretendendo a inte-
de medicamentos de venda sem exigência de prescri- ressada em comercializá-lo como produto terapêutico,
ção é vedado: deveria requerer o respectivo registro e apresentar
.............................................................................
documentos contendo informações sobre o produto
e evidências científicas comprovando a sua segurança
VI - afirmar que o medicamento é um alimento, para o consumo humano.
cosmético ou outro produto de consumo, da mesma
maneira que nenhum alimento, cosmético ou outro A respeito dos produtos com finalidade terapêuti-
produto de consumo possa mostrar ou parecer tratar- ca, o Dec.-Lei 986/1969, que instituiu normas básicas
-se de um medicamento; sobre alimentos, assim dispõe em seu art. 56, verbis:
A Resolução RDC nº 259/2002 – Anvisa, por sua Art. 56. Excluem-se do disposto neste Decreto-
vez, leciona: -lei os produtos com finalidade medicamentosa ou
3.1. Os alimentos embalados não devem ser terapêutica, qualquer que seja a forma como se apre-
descritos ou apresentar rótulo que: sentem ou o modo como são ministrados (destaquei).

a) utilize vocábulos, sinais, denominações, símbo- Por sua vez, a Lei nº 6.437/1977, que define in-
los, emblemas, ilustrações ou outras representações frações à legislação sanitária federal, assim prevê em
gráficas que possam tornar a informação falsa, incor- seu art. 10, inc. V:
reta, insuficiente, ou que possa induzir o consumidor
Art. 10 - São infrações sanitárias:
a equívoco, erro, confusão ou engano, em relação à
verdadeira natureza, composição, procedência, tipo, .............................................................................
qualidade, quantidade, validade, rendimento ou forma
V - fazer propaganda de produtos sob vigilância
de uso do alimento;
sanitária, alimentos e outros, contrariando a legislação
b) atribua efeitos ou propriedades que não pos- sanitária:
suam ou não possam ser demonstradas;
pena - advertência, proibição de propaganda,
c) destaque a presença ou ausência de compo- suspensão de venda, imposição de mensagem retifica-
nentes que sejam intrínsecos ou próprios de alimen- dora, suspensão de propaganda e publicidade e multa.
tos de igual natureza, exceto nos casos previstos em
Regulamentos Técnicos específicos; Segundo se depreende da legislação supra, mos-
tra-se válido o ato regulamentar expedido pela Anvisa
d) ressalte, em certos tipos de alimentos proces-
sados, a presença de componentes que sejam adicio-
que veda a publicidade de alimento com caracterís-
nados como ingredientes em todos os alimentos com ticas típicas de um medicamento, com a finalidade
tecnologia de fabricação semelhante; de proteger a saúde da população, atuando o órgão
sanitário, nesses casos, dentro da discricionariedade
e) ressalte qualidades que possam induzir a en-
inerente ao seu poder de polícia.
gano com relação a reais ou supostas propriedades
terapêuticas que alguns componentes ou ingredientes Não possuindo o iogurte “Activia” registro na
tenham ou possam ter quando consumidos em quan- Anvisa como produto terapêutico e divulgando a im-
tidades diferentes daquelas que se encontram no ali- petrante propaganda do produto com propriedades
mento ou quando consumidos sob forma farmacêutica;
terapêuticas, resulta legítima a autuação realizada
f) indique que o alimento possui propriedades pelos agentes da autoridade impetrada.
medicinais ou terapêuticas;
Com essas considerações, não merece reparos a
g) aconselhe seu consumo como estimulante, sentença que denegou a segurança pleiteada.
para melhorar a saúde, para prevenir doenças ou com
ação curativa. Ante o exposto, não conheço do agravo retido e
nego provimento à apelação.
No caso dos autos, o produto é enquadrado como
alimento, devendo obedecer às regras dispostas na É como voto.

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

Admissão no serviço público – Provimento de cargo efetivo – Descumprimento pelos


gestores de deveres constitucionais e legais quanto à comprovação da adequação
orçamentária e fiscal da despesa – Registro excepcional do ato de admissão
Instauração de procedimento autônomo de apuração de responsabilidade em curso

Admissão. Secretaria Estadual da Educação e Cultura. Irregularidades detectadas durante a instrução


processual não causadas pelo candidato, mas por descumprimento, por parte dos gestores, de deve-
res constitucionais e legais quanto à comprovação da adequação orçamentária e fiscal da despesa.
Precedentes. Registro excepcional do ato de admissão. Instauração de procedimento autônomo de
apuração de responsabilidade já em curso.

Processo nº 011986/2013 – Admissão RELATÓRIO


Interessado: Paola Elizabete Bezerra da Silva Trata-se de processo referente à nomeação da
parte interessada em epígrafe, aprovada em concurso
48ª Sessão Ordinária, de 30.6.2016 – Pleno público para o provimento efetivo de cargo integrante
Relatora: Maria Adélia Sales do quadro geral de servidores da Secretaria de Estado
de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte.
Decisão nº 2714/2016 - TC
No curso da instrução processual, o corpo técnico
Decidem os Conselheiros do Tribunal de Contas da DAP noticiou descumprimento de preceitos relati-
do Estado, à unanimidade, discordando da informação vos à admissão no serviço público, sobretudo em re-
do corpo técnico e do parecer do Ministério Público lação à Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF. Em sendo
Especial, porém, em consonância com a jurisprudên- assim, sugeriu a denegação do registro de admissão,
cia sedimentada nesta Corte de Contas, acolhendo sem embargo da aplicação de multa aos gestores res-
ponsáveis pela nomeação e atos posteriores.
integralmente o voto da Conselheira-Relatora, julgar
pelo registro excepcional do ato de admissão, objeto Aportando os autos no Ministério Público que
do presente processo, nos termos dos arts. 71, inc. atua junto a este Tribunal, ali foi produzido parecer
corroborando com as considerações do corpo técnico,
III, da CF, art. 1º, inc. III, combinado com [o] art. 95,
razão pela qual sugere a denegação do registro, com
inc. I, da LC nº 464/2012, e art. 312, § 3º do Regimento a fixação de prazo, a fim de proceder à exoneração
Interno desta Casa. do interessado, bem como pela responsabilização do
Participaram do julgamento o Exmo. Sr. Cons. gestor pelas irregularidades descritas na instrução,
Presidente Carlos Thompson Costa Fernandes e o(s) com a devida aplicação da sanção pertinente.
Cons. Antonio Ed Souza Santana (Auditor em substi- É o que importa relatar.
tuição legal), Renato Costa Dias, Maria Adélia Sales,
VOTO
Francisco Potiguar Cavalcanti Júnior, Antônio Gilberto
de Oliveira Jales e o Representante do Ministério Pú- O servidor referido anteriormente foi aprovado
blico junto ao Tribunal de Contas, o Procurador-Geral no concurso realizado de acordo com o edital da
Luciano Silva Costa Ramos. SEARH/SEEC, para admissão de servidores na área da
educação do Estado.
Sala das Sessões, 30 de Junho de 2016.
A Diretoria de Atos de Pessoal realizou uma análise
Maria Adélia Sales, Conselheira-Relatora. apurada do procedimento objeto do presente processo,

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JURISPRUDÊNCIA E DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

identificando possíveis fatos que denotam o descumpri- duziu efeitos, gerando admissões de servidores já em
mento de preceitos constitucionais e legais que regem pleno exercício de suas atribuições.
a realização da despesa pública com pessoal e outras
Registre-se, ainda, que no julgamento do pro-
que podem macular a nomeação ora em julgamento.
cesso nº 4956/2013-TC, o Pleno deliberou pela
Fica evidente, portanto, a subsistência de lacu- constituição de um único processo de apuração de
nas quanto ao atendimento das exigências formais, responsabilidade para promover o exame de todas
orçamentárias e fiscais para a consecução do ato de as falhas provenientes do certame da qual resultou a
admissão em tela, conforme casos semelhantes já nomeação em tela.
apreciados neste Tribunal.
Desse modo, já estando em curso o processo aci-
De outra banda, em que pese o acima exposto, ma referido e pelo fato de não subsistir irregularidade
entendo que com fundamento nos princípios da segu- imputável ao nomeado, entendo que o ato deverá ser
rança jurídica, da boa-fé e da razoabilidade, o ato sob registrado nesta Corte.
vergasta pode ser registrado, em caráter excepcional,
desde que seja apurada a responsabilidade de quem CONCLUSÃO:
deu causa às irregularidades já citadas.
Ante o exposto, discordando da informação do
Aliás, tal entendimento já foi exaustivamente corpo técnico e do parecer do Ministério Público Es-
decidido pelo Plenário desta Corte em processos de pecial, porém, em consonância com a jurisprudência
idêntica natureza, relativos à nomeação de servidores sedimentada nesta Corte de Contas, voto pelo registro
para a Secretaria de Saúde Pública (Sesap), da própria excepcional do ato de admissão objeto do presente
Secretaria de Estado da Educação, bem como dos processo, nos termos dos arts. 71, inc. III, da CF, e art.
servidores da Universidade do Estado do RN (UERN). 1º, inc. III, combinado com [o] art. 95, inc. I, da LC
Ora, inobstante as irregularidades observadas, o nº 464/2012, e art. 312, § 3º do Regimento Interno
processo seletivo seguiu todas as suas etapas e pro- desta Casa.

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