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A PARADIPLOMACIA DAS TVEs CHINESAS – O PAPEL DAS

LOCALIDADES NAS CADEIAS GLOBAIS DE VALOR

Cassia Nunes Duarte

Gandhi Allasio

Fabiana de Oliveira

São Paulo, 2021


Introdução

As políticas de reforma e abertura implementadas por Deng Xiaoping na China


do final dos anos 1970 tiveram como algumas das suas diversas consequências o
surgimento de um forte êxodo rural e a formação de diversos novos centros urbanos.
Muito rapidamente, as cidades chinesas se viram diante do dilema imposto pelas
dinâmicas de crescimento econômico e de tendência à superlotação e, com isso,
entendeu-se que era necessário avançar no desenvolvimento das zonas rurais e
periféricas das cidades. As Township and Villages Enterprises (TVEs) tiveram papel
fundamental e sua influência ia além da criação de empregos de qualidade e de
contribuir para o desenvolvimento econômico-tecnológico da República Popular da
China (RPC), elas também tinham como fim o de evitar o êxodo rural descontrolado e a
superpopulação aglomerada nos centros urbanos.
Portanto, as TVEs apresentaram e apresentam diferenças em seu modelo
administrativo quando comparadas com propostas ocidentais similares, mas têm se
mostrado eficiência suficiente para cumprir o seu papel econômico e social. No presente
artigo, buscaremos analisar o papel das TVEs como instrumento de paradiplomacia e de
soft power chinês. Ademais, o artigo se propõe a oferecer uma melhor compreensão
acerca da função das TVEs no desenvolvimento socioeconômico e nas relações
internacionais da China.

1. Soft Power e Paradiplomacia

Os debates teóricos levados a cabo pelos estudiosos das Relações


Internacionais com certa frequência se centram no objetivo de compreender o Estado e
sua ação internacional. O conceito de soft power, por exemplo, foi amplamente
sintetizado por Joseph Nye (2004) ao longo dos anos 1990 e partia do princípio de que
as relações internacionais daquele período haviam se tornado ainda mais complexas. A
tradicional compreensão de que o poder poderia ser reduzido à capacidade militar (o
hard power) de um Estado se mostrava, segundo Nye, cada vez mais insuficiente. Para
o autor, os Estados passavam a contar com novas formas de coagir uns aos outros e,
entre elas, estavam a possibilidade de atrair aliados a partir do uso do poder econômico
ou a de cooptar e persuadir os aliados. Assim, na definição de Nye:
Soft power não é um mero sinônimo para influência. Afinal de contas,
influência também pode ser exercida através de hard power, via ameaças ou
sanções. Soft power é mais do que simples persuasão ou habilidade de
convencer pessoas através de argumentos, embora esta seja parte importante
dele. É também a capacidade de atrair, e atração frequentemente conduz à
aquiescência. Simplificando, em termos comportamentais soft power é poder
de atração. Em termos de recursos, são considerados recursos de soft power
os ativos capazes de produzir tal atração. (Tradução Nossa) (NYE, 2004, p.)1

Dito isso, essa forma de poder suave pode ser definida como a aplicação de
poder através da atração e persuasão que um Estado pode exercer sobre seus pares,
influenciando parte ou todo o sistema internacional através da disseminação de seus
valores, ideais e cultura, com o objetivo de se manter predominante (MARTINELLI,
2016).

Neste ponto, é importante ressaltarmos o valor da legitimidade que esse Estado


deve possuir junto aos outros, pois a consolidação da relação de influência com outros
atores internacionais depende necessariamente da percepção de que a autonomia dos
Estados parceiros é preservada. Assim, o soft power apenas é legitimado quando os
atores que se encontram sobre este tipo de influência não reconhecem a sua condição de
submissão ou acreditam tê-la escolhido de maneira voluntária (NYE, 2004).

Ainda dentro dessa discussão sobre soft power, é relevante destacarmos como
este conceito é adotado pelo Estado chinês. O conceito se popularizou de maneira muito
rápida entre a intelectualidade acadêmica do país e, ainda que houvesse um grande
debate em torno do mesmo, diversos teóricos se dedicaram ao esforço de pensar um
modelo de soft power caracteristicamente chinês (GLASER & MURPHY, 2009). Neste
esforço, a questão da cultura se mostrou central, pois, como destaca Zhang (2017), o
conceito de cultura adotado por Nye é muito austero. Para Zhang (idem), a cultura deve
ser o cerne do soft power, já que a política interna e externa de um Estado também são
elementos que derivam da cultura nacional, ao mesmo tempo em que a retroalimentam.
Desta forma, podemos entender que as especificidades do soft power para o Estado
chinês recaem no fato de que este busca atribuir maior importância à cultura nacional,
sendo possível afirmar que esta passa a adquirir papel importante nos esforços que
visam a concretização de objetivos estratégicos (MENECHELLI FILHO, 2018).

1
No original: “Soft power is not merely the same as influence. After all, influence can also rest on the
hard power of threats or payments. And soft power is more than just persuasion or the ability to move
people by argument, though that is an important part of it. It is also the ability to attract, and attraction
often leads to acquiescence. Simply put, in behavioral terms soft power is attractive power. In terms of
resources, soft-power resources are the assets that produce such attraction.” (Nye, 2004, p.)
Um fenômeno que vem ganhando destaque nas relações internacionais e que
pode contribuir de maneira significativa para o fortalecimento do soft power de um
Estado é a paradiplomacia, ainda que inicialmente pareça o contrário. O conceito de
paradiplomacia pode ser compreendido como a atuação internacional de atores
subnacionais, com especial destaque para os estados federados, as cidades, as
províncias, as regiões e até mesmo as empresas (MORAIS, 2011). A
internacionalização destes entes subnacionais tem como base uma agenda externa com
foco nos interesses locais dos atores, ou seja, estes podem formular e executar uma
política externa própria e esta pode ser posta em pratica com ou sem o auxílio do
governo central.

É fato que o contexto internacional atual, caracterizado pela globalização, pela


rápida difusão dos avanços tecnológicos e por uma crescente interdependência entre os
Estados, leva à sensação de que ocorre uma porosidade maior das fronteiras estatais e
que o próprio monopólio do Estado na formulação e na implementação da política
estaria ameaçado. De fato, as mudanças ocorridas no sistema internacional ao longo das
últimas décadas indicam que os Estados nacionais já não atuam sozinhos nesta arena e
que atores transnacionais – organizações governamentais internacionais, organizações
não governamentais internacionais e empresas transnacionais, entre outros – têm
ganhado significativo protagonismo na condução de determinadas agendas, como a do
meio ambiente ou a dos direitos humanos (MORAIS, 2011).

No entanto, a atuação internacional de entes subnacionais pode alinhar-se e


fortalecer ainda mais a ação de seus respectivos Estados nacionais. Exemplo claro disso
foi a criação do Conselho Europeu de Municipalidades e Regiões (CERM), em 1951,
em um contexto em que os Estados europeus produziam seus primeiros ensaios no
sentido de construir mecanismos de integração regional e, assim, evitar a eclosão de
novos conflitos como os das duas Grandes Guerras (ARAÚJO, 2011). Mesmo
atualmente, as cidades possuem uma forte atuação na integração europeia,
especialmente no que diz respeitos a temas como o da coesão territorial. Na América do
Sul, o caso das Mercocidades também merece destaque, pois trata-se de uma rede de
munícios de países membros do Mercado Comum do Sul (Mercosul) que tem como
objetivo o aprofundamento, em escala regional, dos esforços de integração realizados
pelos Estados do Cone Sul.
Diante disso, fica claro que mesmo que as ações paradiplomáticas tomadas
sejam independentes, estas não buscam rivalizar com aquelas levadas a cabo pelo
Estado nacional. Ao contrário, a paradiplomacia tem se mostrado como uma ferramenta
de enorme eficiência no sentido de aprofundar mecanismos de cooperação e de
solidariedade previamente criados pela diplomacia tradicional. Assim, ainda que
autônoma essas ações provenientes da paradiplomacia permanecem alinhadas aos
objetivos macro da política externa porque os interesses locais e municipais integram
aquilo que chamamos de interesse nacional (REINOSO & VASCONCELOS, 2018).
(Estes autores não estão nas referências)

Os conceitos de paradiplomacia e de soft power podem, portanto, relacionar-se


como parte integrante de uma estratégia de inserção internacional que valorize outros
elementos que não apenas os militares e econômicos. De fato, a paradiplomacia é, por
vezes, entendida como um instrumento de soft power (REINOSO & VASCONCELOS,
2018). Isto porque:

Para relacionar a ambos os conceitos, a paradiplomacia e o poder brando,


vale a pena ressaltar que, como a paradiplomacia não se ocupa dos assuntos
de primeiro nível, tais como a segurança nacional, a soberania e a assinatura
e ratificação de tratados internacionais – os quais são monopólio absoluto dos
Estados –, a sua conotação está mais ligada com assuntos de segundo nível,
como a cooperação e a atração de investimentos. Neste sentido, e na medida
em que seja fomentada, se converte em uma ferramenta dos Estados para
gerar alternativas de poder brando e coadjuvar à realização dos seus objetivos
estratégicos (MESA BEDOYA & GONZÁLEZ-PARIAS, 2016, p. Tradução
nossa).2

O fenômeno observado por Mesa Bedoya e González-Parias (idem) pode ser


facilmente observado quando duas ou mais cidades firmam acordos de cooperação em
temas como urbanismo, mobilidade urbana, saneamento, combate à violência e à
pobreza. A troca de experiências e o auxílio na implementação de tecnologias sociais
que se mostraram exitosas nas cidades pioneiras são formas eficientes de promover a
imagem de um país e de seu povo junto à comunidade internacional. Logo, a
paradiplomacia é uma aliada da política externa tradicional no sentido de impulsionar o
soft power de um Estado ao auxiliar na construção de uma imagem internacional e ao

2
No original: “Para relacionar ambos conceptos, paradiplomacia y poder blando, vale la pena resaltar
que, como la paradiplomacia no se ocupa de los asuntos de primer nivel, tales como la seguridad
nacional, la soberanía y la firma y ratificación de tratados internacionales, los cuales son monopolio
absoluto de los Estados, su connotación está más ligada con asuntos de segundo nivel, como la
cooperación y la atracción de inversión. En ese sentido, y en la medida en que sea fomentada, se convierte
en una herramienta de los Estados para generar alternativas de poder blando y coadyuvar al logro de sus
objetivos estratégicos (MESA BEDOYA; GONZÁLEZ-PARIAS, 2016, p.).”
criar vínculos que não se limitam aos governos nacionais, mas que também incluem a
sociedade civil e o poder público local.

2. Industrialização, urbanização e pressão migratória na China

No início dos anos 1980, a República Popular da China (RPC) passava por
profundas transformações orientadas para a aceleração do processo de crescimento
econômico. O conhecido “Processo de Reformas e Abertura” foi implementado com a
ascensão de Deng Xiaoping à presidência da China, juntamente com o então vice-
presidente Chen Yun que, assim como Xiaoping, era cético em relação ao Ocidente.
Outro nome importante deste processo foi Zhao Ziyang, chefe mais jovem e mais
progressista do Partido Comunista Chinês (PCCh). Os esforços deste último para
diminuir a pobreza deram origem a um ditado entre os camponeses: “Se quiser comer,
procure Ziyang”. Este trio foi incrivelmente bem-sucedido e Chen Yun caracterizou o
modelo como sendo uma “economia de gaiola”: bem arejada para o desenvolvimento do
mercado, mas controlada para que não seja possível fugir. Isto porque o modelo chinês
permitia a iniciativa privada e abria uma janela para o mundo exterior, ainda que isto
implicasse na entrada de “alguns mosquitos”, segundo Deng (fonte). De acordo com
Chen Yun, o modelo consistia em andar sem perder o controle, em “atravessar o rio
tateando as pedras com os pés” (fonte). Esta famosa frase é frequentemente e
erroneamente atribuída a Deng, mas caracteriza muito bem o modelo econômico
empregado na China desde 1978 (OSNOS, 2014).

Esta virada de rumos na história da China no século XX resultou em uma série


de políticas públicas implementadas pelo governo central, em especial aquelas que
promoviam uma abertura comercial que se deu de forma gradual, conjuntamente com
um complexo sistema de tarifas aduaneiras, barreiras não-tarifárias e licenças. Ademais,
o governo chinês atraiu investimento estrangeiro criando as Zonas Econômicas
Especiais (ZEE), espaços em que os produtores poderiam operar com boa infraestrutura
e sem regulamentação excessiva (GALA, 2019).

Como resultado dessas medidas, a China desenvolveu uma significativa e


sofisticada pauta de exportação, sobretudo de produtos manufaturados. Cabe destacar
que, em 1987, Brasil e China detinham a mesma porcentagem de manufaturados
exportados – cerca de 49% das mercadorias exportadas por ambos os países consistia
em manufaturas –, enquanto que as manufaturas representavam 70% das exportações
dos Estados Unidos (EUA) no mesmo período. Já em 2017, o Brasil a participação das
manufaturas nas exportações brasileiras se reduziu para aproximadamente 38%, nos
EUA para 61%, enquanto as exportações passaram a representar mais de 93% das
exportações da China (BANCO MUNDIAL, 2019).

De acordo com os dados apresentados acima, é evidente a importância da


industrialização no processo de desenvolvimento econômico chinês. O país deixou o seu
passado agrícola e passou a ser uma potência industrial, o que resultou em um enorme
êxodo rural. Em 1978, cerca de 80% da população se dedicava a atividades relacionadas
com a agricultura nas zonas rurais do país, enquanto que em 1994, essa proporção caíra
para menos de 50% (fonte). Diante dos problemas que derivavam do vertiginoso
crescimento das zonas urbanas, o governo chinês criou uma série de slogans, como
“Deixem a terra, mas não a zona rural!” ou ainda “entrem nas fábricas, mas não nas
cidades”. Ao mesmo tempo, a polícia nacional atribuía o aumento da criminalidade à
presença do que chamava de “três sem” – migrantes sem casa, sem trabalho e sem fonte
de renda estável (fonte).
Diante deste cenário, as cidades chinesas procuraram, então, limitar o número de
recém-chegados. Em Beijing, por exemplo, o governo local identificava o que chamava
de “pedintes e artistas de rua, adivinhos e outras pessoas envolvidas em atividades
supersticiosas e feudais” (fonte) e os mandava de volta para as zonas rurais do país.
Ademais, Beijing oferecia uma espécie de “visto permanente” aos seus residentes, como
forma de controlar o acesso às escolas públicas e às moradias. Os critérios para
concessão deste status eram muito rigorosos e apenas 1% dos novos migrantes
qualificavam para recebe-lo (fonte). Na mesma ocasião, Shanghai publicou um manual
como guia para os migrantes em busca de trabalho cuja introdução era titulada: “Não
venha às cegas procurar trabalho em Shanghai” (OSNOS, 2014).

Apesar disso, eles foram. Em 2007 havia 135 milhões de migrantes do campo
morando nas cidades, e a “população flutuante” passou a ser chamada pelo
governo de “população de fora”. O conselho de Estado ordenou aos governos
que melhorassem os sistemas de seguro e proteção contra acidentes de
trabalho, e garantissem que os migrantes fossem “batizados na civilização”,
como a imprensa do partido gostava de dizer. (OSNOS, 2014, p. 65)

Assim, o aumento da oferta de trabalho nas grandes cidades em razão do forte


crescimento industrial experimentado pela China terminou por produzir ondas cada vez
mais volumosas de migrações internas em direção às regiões fabris. Com isso, tornou-se
evidente que as administrações públicas locais não estavam preparadas para responder
ao vertiginoso crescimento populacional que experimentavam. Em razão disso, coube
ao Estado nacional a responsabilidade de organizar o processo de urbanização do país,
pressionando os governos locais para que estes promovessem políticas públicas
específicas com o fim de evitar o caos social nas grandes cidades – algo que poderia
inclusive prejudicar o plano econômico em curso. Ademais, uma das mais importantes
respostas do governo central consistiu no estimulo à criação de empresas rurais como
uma forma de estender o processo de desenvolvimento ao campo e, ao mesmo tempo,
de frear o êxodo rural. Em face desta necessidade, foram criadas as Township and
Villages Enterprises (TVEs)3.

3. As Township and Villages Enterprises como instrumento da paradiplomacia


chinesa

Em face deste cenário de êxodo rural e da consequente superlotação dos centros


urbanos, a China passou a fomentar o desenvolvimento das zonas rurais para além da
agricultura familiar e de subsistência. Neste sentido, as Township Villages Enterprises
(TVEs), que tiveram uma importância estratégica para que se alcançasse tal objetivo,
podem ser caracterizadas como um tipo específico de empresas cujos proprietários são
os governos locais – as towns, que são agrupamentos populacionais menores que uma
cidade e maiores que uma vila, e os comitês de vilas (villages) –, havendo também as
empresas de propriedade de indivíduos e trabalhadores residentes nessas comunidades
(MASIERO, 2006).

A criação das TVEs foi estimulada pelo governo central chinês por meio de
crédito a juros baixos, incentivos fiscais e recursos orçamentários específicos (LYRIO,
2010). Ademais, as TVEs passaram a ser fornecedoras preferenciais de empresas
estatais de grande porte e contavam com processos decisórios diferenciados quando
comparadas às empresas de modelos ocidentais. A estrutura organizacional das TVEs
incorporou elementos do modelo anglo-americano denominado Outsider-based
(explicar em nota de rodapé o que são estes modelos), assim como do modelo euro-
japonês denominado Insider-based (apud. CHEN & STRANGE, 2004 lá nas referências

3
Cabe destacar que parte da literatura se refere às TVEs como Empresas de Cantão e Povoado. No
entanto, como forma de facilitar a compreensão, utilizamos o termo da forma como ele mais se
popularizou.
só tem Chien. Também não entendi o apud. O formato tem que ser Autor A (citado)
apud Autor B (autor de fato consultado)). No entanto, à medida que as TVEs foram se
expandindo, inclusive para outros países asiáticos, como Malásia e Tailândia,
prevaleceu o modelo de administração sino-confuciano, que tem como primazia os
funcionários eruditos na gestão pública (como assim os trabalhadores eruditos? Com
isto eu entendo que estamos falando dos trabalhadores mais bem educados, com
doutorado e tal. Mas logo depois vocês dizem que a gestão é feita por um coletivo de
trabalhadores e aí já não entendi mais nada). Este modelo é tão particular para os dias de
hoje que algumas das decisões internas são atribuídas ao coletivo de trabalhadores, que
por sua vez são residentes das comunidades onde estas empresas estão estabelecidas.
Também há frequentes pesquisas realizadas pelo governo central para consultar a
opinião popular acerca da governança política e empresarial nas towns e nas vilas. No
trecho a seguir, podemos observar algumas características da evolução das TVEs até a
metade dos anos 90.

Harvie (1999) estuda a evolução das TVEs até a metade dos anos 90 e
relaciona algumas características de seu desenvolvimento. Segundo ele, elas
desempenharam melhor, pois eram: pequenas, flexíveis e orientadas para o
mercado; utilizavam tecnologia apropriada; aproveitaram distorções dos
processos de reformas e oportunidades de canalização da poupança rural,
baixa tributação, processo decisório ágil entre diretores e autoridades locais;
descentralização fiscal chinesa para os governos locais; relações de
parentesco e propriedade de direitos implícitas; ligações com as empresas do
setor estatal; facilidade de entrar no mercado e competição reduzida;
dedicação dos recursos humanos, inovação e qualidade; orientação
internacional e estrutura de baixo custo. (MASIERO, 2006. p. 433)

Um fator importante a se destacar deste trecho é a ideia de “canalização da


poupança rural”. Este recurso oriundo da poupança privada local está a serviço do
desenvolvimento produtivo, já que este fundo é utilizado pelas indústrias exploradoras
de nichos de mercado (não entendi o que vocês querem dizer aqui. Quais nichos de
mercado?). Nesta primeira fase das TVEs, houve uma gradual mudança nos processos
agrícolas destas empresas estatais, uma vez que elas passaram a desempenhar atividades
ligadas à agroindústria. Assim, elas passaram a produzir desde agrotóxicos a
maquinários agrícolas. As TVEs também terminaram por integrar as cadeias de
produção energética, como hidroelétricas e usinas de biogás, e também as atividades de
metalurgia e mineração (MASIERO, 2006).
Embora o Estado chinês seja amplamente conhecido por sua capacidade de
planejamento central, os governos locais operam dentro de uma certa margem de
autonomia. No caso dos governos responsáveis pelas towns e pelas vilas, estes passaram
a apresentar maior capacidade de influência na determinação dos rumos da economia
local a partir de 1978. O que estabelece o caráter paradiplomático nas TVEs é, portanto,
o fato de que as mesmas estão inseridas em um contexto de municipalidade, mas que,
apesar de haver uma relação estreita entre as lideranças rurais, os governos locais e as
lideranças nacionais na estrutura do Partido Comunista Chinês (PCCh), não há nada que
impeça a administração pública de cada localidade promover a interação das suas
respectivas TVEs nas cadeias globais de valor (apenas isso não é o suficiente para
caracterizar a paradiplomacia).
É importante destacar que ainda que os governos locais tenham papel importante
e considerável autonomia na gestão econômica de suas regiões, seus planos de
desenvolvimento local estão alinhados com o planejamento central. Exemplo disso é a
proibição que impede muitas TVEs de demitir trabalhadores ou de fechar fabricas
(MASIERO, 2006). Outro exemplo são as joint ventures, que são caracterizadas por
uma associação de uma empresa estrangeira com uma empresa local. Este processo foi
amplamente utilizado nas Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) sob orientação do
governo chinês. Com isso, as TVEs também realizaram seus processos de catching up4,
porém em escala menor. Todos esses aspectos elencados acima evidenciam o caráter de
planificação da economia chinesa, como podemos ver no trecho abaixo.

O desenvolvimento recente chinês pode ser visto como a história da transição


de uma economia centralmente planificada, com fortes restrições à ação do
mercado e da iniciativa privada, a outra – de caráter planificada e, também,
mercantil – com crescente peso quantitativo do setor privado. Neste aspecto,
a importância da existência dos grandes bancos de desenvolvimento pode ser
vista como apenas a ponta de um grande iceberg institucional a ser estudado.
Não podemos isolar este fato (formação do sistema financeiro) de algo maior
e concomitante: reformas institucionais profundas abriram campo tanto ao
surgimento de um dinâmico setor privado quanto a um processo de
centralização do grande capital estatal. Analisar a dinâmica desses dois
setores é de fundamental importância aos que ocupados em compreender o
sucesso, ou não, de projetos nacionais e processos de catching up.
(JABBOUR & PAULA, 2018. p. 07)

As TVEs desempenharam uma função importante na inserção internacional


chinesa, uma vez que, no início dos anos 2000, estas empresas representavam cerca de
4
Termo que caracteriza uma série de políticas econômicas que visam alcançar o desenvolvimento
tecnológico em um curto espaço de tempo, através da atração de empresas e capital estrangeiro. Ver
Chang, 2004.
40% da totalidade da produção industrial do país e contribuíram para transformar a
China na maior indústria manufatureira do mundo. Além disso, neste mesmo, período
os investimentos diretos estrangeiros saltaram de 2% em 1990 para 6,3% em 2003, o
que se deve, em grande medida, ao alto poder de atração exercido pelas TVEs
(MASIERO, 2006). Certo, mas isso ainda não é suficiente. Na Arábia Saudita, existem
cidades responsáveis por impulsionar a economia nacional e por colocar o país na
liderança da produção de petróleo global e nem por isso vamos dizer que a Arábia
Saudita é um exemplo de paradiplomacia. É claro que a relevância econômica destas
regiões conta muito, mas como esta mesma relevância tem servido para projetar as
vilas? O modelo de desenvolvimento levado à cabo nas TVEs foi exportado para algum
outro lugar? Estas cidades cooperam com outras cidades globais através da transferência
de tecnologia ou de algo assim? Empresas originais destas vilas chinesas estão
instaladas em outras cidades do mundo e contribuem para a aproximação entre as suas
vilas de origem e as localidades em que se encontram instaladas agora? As TVEs de
alguma forma auxiliam na promoção da cultura chinesa em outros lugares do mundo?
Se sim, ótimo, precisaremos falar disso tudo. Se não, não estamos falando de
paradiplomacia.

4. O caso de Huaxi e os desafios da nova era

Como todo processo de desenvolvimento, o projeto das TVEs teve suas


contradições e suas imperfeições e o caso de Huaxi é bastante simbólico disto. Esta vila
localizada no condado de Jiangyn, cidade de Wuxi, pertence à província de Jiangsu, na
costa leste chinesa, e foi por muito tempo a vila modelo do “socialismo com
características chinesas”. Huaxi é também o grande exemplo de TVE bem sucedida,
tendo sido considerada a vila mais rica de todo o país no ano de 2007, quando alcançou
uma renda per capta de US$ 10 mil, enquanto que a média do país naquele ano era de
US$ 2,5 mil. Apenas doze anos depois, a China atingiria a renda per capta de US$ 10,3
mil (BANCO MUNDIAL, 2021).

A vila de Huaxi desenvolveu seu parque industrial ao ponto de ter, no início dos
anos 2000, um conglomerado com cerca de 100 empresas pertencentes ao Huaxi Group,
grupo criado pelo comitê do PCCh de Huaxi para administrar as indústrias locais e que
inclusive está listada na bolsa de valores (CHEN, 2021). Estas indústrias são compostas
por fábricas dedicadas à produção de papel, tecidos e também às atividades
características da indústria pesada, como a metalurgia e a siderurgia. Ademais, estas
indústrias empregam dezenas de milhares de pessoas e são responsáveis por um
faturamento que alcança os bilhões de dólares (TREVISAN, 2007). Em entrevista à
Folha de São Paulo em 2007 (idem), Wu Rengbao, que foi secretário do PCCh em
Huaxi desde os anos 1950, apontou a característica que considera mais positiva do
sistema de trabalho na Vila. Segundo ele, o modelo de Huaxi é uma mescla entre
coletivismo e individualismo, valorizando a prosperidade e o bem-estar social. Na
referida entrevista, Wu reitera a sua lealdade ao PCCh e afirma que exemplo disso está
no hino da vila de Huaxi, que havia sido composto por ele mesmo e que, em um de seus
trechos diz: “O céu de Huaxi é o céu do partido Comunista; a terra de Huaxi é a terra do
socialismo”.
Após a morte de Wu Rengbao, em 2013, seu filho, Wu Xie’em, assumiu o posto
de secretário do PCCh na vila de Huaxi e a presidência do Huaxi Group. A transição
ocorreu em meio a um declínio da indústria do aço e, na tentativa de transformação dos
negócios, o grupo diversificou seus investimentos através do mercado financeiro, porém
não obteve grande sucesso. Outras atividades que recém emergiam na China de 2008,
como as relacionadas com internet, jogos online e aparelhos para leitura móvel, também
foram explorados pelo grupo. Na tentativa de reestabelecer o caminho de sucesso da
vila de Huaxi, em 2020 o governo local da cidade de Wuxi, por meio da empresa estatal
Wuxi Guolian Group, adquiriu ações de empresas do Huaxi Group no valor de 1 bilhão
de Yuans, o que na cotação de outubro de 2021, equivaleria a cerca de 150 milhões de
dólares.
Com muitos anos de crescimento econômico, a vila de Huaxi se tornou o destino
de milhares de migrantes e, com isso, o governo local assumiu uma postura rigorosa
com o objetivo de evitar a superpopulação da vila e o colapso do modelo de TVEs. Ao
mesmo tempo, no entanto, Huaxi enfrenta outro problema que também coloca em risco
a manutenção do modelo de desenvolvimento local. Chen Jing (ano) (incluir nas
referências), em artigo na ThinkChina, argumenta que, com o surgimento de milhares
de outras vilas como Huaxi em toda a China, os jovens talentos são disputados e Huaxi
tem enfrentado sérias dificuldades para atraí-los.

Considerações finais
No que pese às suas particularidades, a China contemporânea é um exemplo de
combinação exitosa de elementos de soft power e de paradiplomacia das cidades. Os
desdobramentos do seu modelo de desenvolvimento terminaram por produzir as TVEs e
estas atuam como um polo de conexão que não apenas interliga as localidades chinesas
com os grandes centros industriais e tecnológicos do país, como também conecta estas
mesmas localidades com o restante do mundo. Atestamos que o poder suave pode ser
utilizado como uma ferramenta da paradiplomacia para as TVEs que acabam por
funcionar como polo de conexão com outros Estados e dentro do território chinês.
Estabelecendo uma imagem positiva dessas cidades para o sistema internacional,
ademais de outros problemas que esse Estado enfrenta. Aqui, vamos substituir este
texto por exemplos mais concretos da atuação paradiplomática das TVEs.
No entanto, é evidente que as TVEs não operam na esfera internacional a partir de uma
autonomia absoluta, uma vez que existe uma forte influência do governo central sobre
as localidades chinesas em uma série de temas. Esta influência varia ao longo do tempo,
podendo ser mais ou menos intensa a depender do estágio em que se encontra o
processo de desenvolvimento socioeconômico chinês.
Considerando o arcabouço teórico e os casos históricos práticos apresentados ao longo
deste trabalho, podemos inferir que mesmo para ter a liberdade local afim de inserir-se
nas cadeias globais de valor, é necessário uma segurança e uma orientação centralizada,
ao passo que se estabelece uma relação diretamente proporcional uma vez que a
diplomacia econômica do governo chinês fomenta o crescimento nas localidade pelo
fato de estas empresas possuem grande participação na supply chain das grandes
companhias e conglomerados empresariais das megalópoles. Não obstante, as TVEs
como apresentado anteriormente, tiveram ampla participação direta na inserção chinesa
no comércio internacional.
Diante do exposto, fica clara a importância econômica local e nacional das TVEs, além
disso fica evidente sua importância para conter o êxodo rural e a superlotação dos
centros urbanos, tendo assim papel essencial na qualidade de vida dos chineses e na
interiorização do desenvolvimentismo do país. Vamos repensar este final a partir dos
elementos que acrescentarmos ao texto.

Bibliografia
ARAÚJO, Izabela V. A governança global e a atuação das redes internacionais de
cidades. Anais do 3º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações
Internacionais, São Paulo, 2011. Disponível em:
http://www.proceedings.scielo.br/pdf/enabri/n3v2/a31.pdf. Acesso em 20 de outubro de
2021.

BANCO MUNDIAL. Data Bank – World Development Indicators. 2019. Disponível


em: <https://data.worldbank.org/country/china>. Acesso em 15/08/2021.

CHANG, H. J. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva


histórica. São Paulo, SP: Editora UNESP, 2004.
Precisamos ver se o padrão do Eloi é de nome do autor completo ou abreviado e, então,
devemos usar uma única forma em toda a lista de referências.
CHEN, Jing. Huaxi Village: The rise and fall of the "richest village in China".
ThinkChina [04/03/2021]. Disponível em < https://www.thinkchina.sg/huaxi-village-
rise-and-fall-richest-village-china>. Acesso em 20/08/2021.

GALA, Paulo. Política industrial na China: caso de sucesso. Publicado em 2019.


Disponível em < https://www.paulogala.com.br/politica-industrial-na-china-caso-de-
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referencia está incompleta. É um livro, um artigo, o quê?

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Disponível em: <https://doi.org/10.11144/Javeriana.papo21-2.phpb>. Falta a data de
acesso. Esse formato “21(2)” também não é mais usado.

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