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SOCIEDADE CIVIL,

ENTRE O POLÍTICO-ESTATAL
E O UNIVERSO GERENCIAL*

Marco Aurélio Nogueira

O campo dos estudos políticos e sociais não Inúmeros conceitos da teoria social contem-
existe sem dissonância. As categorias que se em- porânea geram controvérsias constantes. Um deles
pregam para interpretar a sociedade, a organiza- é o de hegemonia. Trata-se de um conceito empre-
ção política e os fatos culturais, por serem histó- gado basicamente para caracterizar a capacidade
ricas e refletirem sempre um compromisso e uma que um grupo tem de dirigir eticamente e estabe-
escolha dos pesquisadores, são muitas vezes flui- lecer um novo campo de liderança. Mas como a
das e fugazes. palavra tem origem militar, muitos a aproximam da
idéia de monopólio ou uso intensivo do poder,
* A primeira versão deste texto foi apresentada na quer dizer, vêem-na muito mais como sinônimo de
mesa-redonda “Sociedade civil e Estado na era da força, autoridade e imposição. O conceito de con-
globalização”, integrante do “Seminário Internacio- senso sofre algo parecido: elaborado para qualifi-
nal Ler Gramsci, entender a realidade”, promovido car uma articulação pluralista de idéias e valores,
pela International Gramsci Society-IGS e pela Facul- uma unidade na diversidade, acaba por ser reduzi-
dade de Serviço Social da Universidade Federal do do a ausência de dissenso e divergência, uma si-
Rio de Janeiro em setembro de 2001. Essa versão tuação mais de silêncio passivo e unanimidade que
serviu de base para um texto publicado na Revista
de ruído e multiplicidade. Manuseado com esse re-
del CLAD Reforma y Democracia, 25, 2003, que an-
gistro, o conceito de consenso perde operacionali-
tecipa algumas das considerações feitas agora.
dade e se torna um jargão sem maior utilidade.
Artigo recebido em novembro/2002 Quando muito, vale para que se demarque uma ou
Aprovado em abril/2003 outra posição em termos políticos mais imediatos.

RBCS Vol. 18 nº. 52 junho/2003


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Ocorre algo ainda pior com o conceito de tanto para que se defenda a autonomia dos cida-
sociedade civil. Ao se disseminar largamente e co- dãos e a recomposição do comunitarismo perdi-
lar-se ao senso comum, ao imaginário político das do, como para que se justifiquem programas de
sociedades contemporâneas, à linguagem da mí- ajuste e desestatização, nos quais a sociedade ci-
dia, o conceito perdeu precisão: empregam-no vil é chamada para compartilhar encargos até en-
tanto a esquerda histórica quanto as novas esquer- tão eminentemente estatais.
das, tanto o centro liberal quanto a direita fascista. No texto que se segue, pretendo argumentar
Os vários interlocutores referem-se a coisas distin- que convivemos hoje com diferentes conceitos de
tas, mas empregam a mesma palavra. Certamente, sociedade civil, estruturados a partir de distintos
a referência nem sempre é Gramsci, mas Gramsci programas de ação e influências teóricas. Flutua-
está presente sempre, é sempre lembrado e mui- mos entre esses conceitos, tanto no plano teórico
tas vezes é apresentado como parâmetro principal. como no mais imediatamente político. Eles, na
Inevitável que a confusão prevaleça. Hoje, como verdade, freqüentam-se reciprocamente, remeten-
muitos já observaram, continuamos sem uma com- do-se uns aos outros. Seus impactos e desdobra-
preensão única e consensual do termo (White- mentos políticos, porém, são completamente dis-
head, 1999; Cohen e Arato, 2000; Nogueira, 2000/ tintos, como veremos.
2001; Lavalle, 1999). Para desenvolver a argumentação, este texto
A sociedade civil serve para que se faça toma como parâmetro o conceito gramsciano de
oposição ao capitalismo e para que se delineiem sociedade civil. Ainda que sem pretender recons-
estratégias de convivência com o mercado, para truir com detalhes a concepção de Gramsci,1 nem
que se proponham programas democráticos radi- mapear e deslindar criticamente as diversas cor-
cais e para que se legitimem propostas de refor- rentes que hoje incidem nos estudos a respeito da
ma gerencial no campo das políticas públicas. sociedade civil, procurar-se-á fixar o núcleo mais
Busca-se apoio na idéia tanto para projetar um específico da concepção gramsciana e tomá-lo
Estado efetivamente democrático como para se como base para dialogar com as demais idéias de
atacar todo e qualquer Estado. É em nome da so- sociedade civil que hoje procuram se afirmar no
ciedade civil que muitas pessoas questionam o panorama político e cultural.
excessivo poder governamental ou as interferên- Com esse propósito, será aqui adotado o
cias e regulamentações feitas pelo aparelho de pressuposto de que, em Gramsci, sociedade civil é
Estado. Apela-se para a sociedade civil com o um conceito, complexo e sofisticado, com o qual
propósito de recompor as “virtudes cívicas” ine- se pode entender a realidade contemporânea. Mas
rentes à tradição comunitária atormentada pelo é também um projeto político, abrangente e igual-
mundo moderno, assim como é para ela que se mente sofisticado, com o qual se pode tentar
remetem os que pregam o retorno dos bons mo- transformar a realidade. Diferentemente, porém,
dos e dos bons valores. É em seu nome que se do que ocorre em boa parte das formulações re-
combate o neoliberalismo e se busca delinear centes sobre a “nova sociedade civil” – que procu-
uma estratégia em favor de uma outra globaliza- ram fornecer um eixo de orientação para a ação
ção, mas é também com base nela que se faz o política com base numa oposição axiológica entre
elogio da atual fase histórica e se minimizam os Estado e sociedade (Lavalle, 1999) –, a teoria
efeitos das políticas neoliberais. Muitos governos gramsciana encontra seu alicerce teórico e sua re-
falam de sociedade civil para legitimar programas ferência ético-política precisamente na dialética de
de ajuste fiscal, tanto quanto para emprestar uma unidade-e-distinção daquelas duas instâncias
retórica modernizada para as mesmas políticas de constitutivas do social. Com isso, Gramsci pôde
sempre, assim como outros tantos governos pro- atualizar o conceito de sociedade civil vis-à-vis as
gressistas buscam sintonizar suas decisões e sua tradições oitocentistas e assimilá-lo como funda-
retórica com as expectativas da sociedade civil. mento de sua teoria da hegemonia (Frosini, 2003).
Em suma, o apelo a essa figura conceitual serve Para ele, a sociedade civil não é um mero terreno
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de iniciativas “privadas”, mas tem desde logo uma mônicos, para uma imagem que converte a socie-
“função estatal”, na medida mesma em que se põe dade civil ou em recurso gerencial – um arranjo
como “hegemonia política e cultural de um grupo societal destinado a viabilizar tipos específicos de
social sobre toda a sociedade, como conteúdo éti- políticas públicas –, ou em fator de reconstrução
co do Estado” (Gramsci, 2000, p. 225). ética e dialógica da vida social. De uma fase em
que o marxismo preponderava nas discussões e
deixava sua marca, ingressou-se numa fase em
O conceito e sua difusão que a perspectiva liberal-democrática, nuançada
ou afirmada de modo ortodoxo, prevalece e ope-
A história do conceito de sociedade civil re- ra como referência principal.
monta ao mundo clássico e medieval, a partir do Em termos gerais, essa recomposição e a lar-
qual, após longa maturação, ressurgiu colado à ga difusão do conceito tiveram na base um pro-
progressiva afirmação do pensamento liberal. cesso objetivo, estruturado por quatro vertentes
Chegou ao século XIX, passando pelo Iluminis- principais.
mo, por Ferguson, Adam Smith e Rousseau, e in- Em primeiro lugar, a complexificação, a dife-
filtrou-se com destaque nas formulações de Hegel renciação e a fragmentação das sociedades con-
e Marx, mediante os quais se incorporou à cultu- temporâneas, subproduto mais expressivo do de-
ra teórica contemporânea, penetrando particular- senvolvimento capitalista das últimas décadas.
mente os universos socialista e comunista.2 Ainda que cortadas por imponentes processos de
Ao longo do século XX, o conceito esteve integração e estandartização, as sociedades fica-
fortemente associado à elaboração marxista de ram mais diversificadas e individualizadas. Torna-
Antonio Gramsci, ganhando forte disseminação ram-se ambientes tensos e competitivos, onde pre-
após a descoberta e o intenso trabalho de avalia- dominam condutas fechadas em si, pouco
ção crítica de Cadernos do Cárcere, no pós-Se- dialógicas e muito desagregadas. Sob a base de
gunda Guerra Mundial. A partir dos anos de uma diminuição do peso relativo do grande sujei-
1980, os cadernos têm sido objeto de reconstitui- to histórico da modernidade capitalista, a classe
ção e reinterpretação, ao qual se associam nomes operária, que funcionava como vetor de unifica-
como os de Norberto Bobbio, Alain Touraine, ção social, projetou-se um amplo conjunto de “no-
Charles Taylor, Michael Walzer e Jurgen Haber- vos sujeitos”, que, em sua ação, nem sempre que-
mas, entre outros. rem ou conseguem se unificar. A mundialização e
O debate sobre o tema evoluiu por uma via a expansão dos mercados, que em épocas anterio-
predominante. Ao passo que a tradição associada res operaram como inequívoco fator de agregação
a Gramsci permaneceu vendo a sociedade civil e estruturação de ações coletivas, passaram a ani-
como “parte orgânica” do Estado, como âmbito mar o livre curso de interesses sempre mais parti-
dotado de especificidade, mas somente com- culares e desagregados.
preensível se integrado a uma totalidade histórico- Em segundo lugar, o conceito foi impelido
social, as correntes mais recentes tenderam a tra- pela constituição de um mundo mais interligado e
tar a sociedade civil como uma instância separada integrado economicamente, submetido tanto a re-
do Estado e da economia, um reino à parte, po- des de comunicação e informação, como a dinâ-
tencialmente criativo e contestador, visto ora como micas estruturais que relativizaram o poder dos
base operacional de iniciativas e movimentos não- Estados nacionais. O social ganhou maior transpa-
comprometidos com as instituições políticas e as rência e maior autonomia relativa diante do polí-
organizações de classe, ora como espaço articula- tico. As sociedades entraram mais em contato
do pelas dinâmicas da “esfera pública” e da “ação umas com as outras e passaram a assimilar influ-
comunicativa” (Habermas, 1997a e 1997b). Transi- xos culturais muito mais padronizados, com que
tou-se assim de uma imagem de sociedade civil ficaram ameaçadas a autonomia e a originalidade
como palco de lutas políticas e empenhos hege- das culturais nacionais. O mundo, porém, não se
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tornou mais igual: tornou-se, na verdade, muito Também contribuiu para a “redescoberta” da
diverso, com um aumento sem precedentes das sociedade civil, em quarto lugar, a expansão da cul-
distâncias que separam ricos e pobres, protegidos tura democrática em geral e da cultura participativa
e desprotegidos, trabalhadores e proprietários. em particular, com o que ganharam impulso o ati-
A difusão do conceito também foi impulsio- vismo comunitário e, na esteira dele, os assim cha-
nada, em terceiro lugar, pela crise da democracia mados novos movimentos sociais. Ao lado de deter-
representativa e pelas transformações sociocultu- minações de ordem mais imediatamente econômica
rais associadas à globalização, que fizeram com e política, foi com base nessa expansão que se com-
que a política se tornasse bem mais “espetacular”, pletaram, ao longo dos anos de 1980, o esgotamen-
bem mais midiática e bem menos controlada pelos to e a sucessiva crise terminal dos regimes ditatoriais
tradicionais operadores políticos. O protagonismo na América do Sul, bem como a derrocada comple-
adquirido pelos meios de comunicação – pela tele- ta do sistema socialista do Leste europeu. Em ambos
visão em particular – alterou em profundidade toda os casos – que são bem específicos e não podem
a esfera do político, seja modificando os termos da ser reduzidos a meras variantes de processos de
competição inerente a ela, seja reformulando os cir- descompressão política –, o movimento pela demo-
cuitos em que se modelam as consciências e a opi- cratização fez-se junto com uma crise do Estado e
nião dos cidadãos: transformou, portanto, o modo dos padrões societais então vigentes. Inúmeros mo-
mesmo como se produz consenso, como se for- vimentos, ações e organismos passaram a se enrai-
zar num terreno que já não podia mais ser plena-
mam culturas e orientações de sentido, como se
mente regulamentado de modo estatal, e acabaram,
constroem hegemonias. Com a força adquirida pelo
com isso, por impulsionar a idéia de que teria final-
projeto neoliberal e o aprisionamento dos Estados
mente surgido uma “terceira esfera, ao largo do
nacionais (e de seus governos) na jaula da globali-
mercado e do Estado moderno” (Avritzer, 1994, p.
zação, o modo predominante de produção de con-
12), desvinculada de partidos, regras institucionais
senso acabou por travar a formação e o desenvol-
e compromissos formais, terra da liberdade, do ati-
vimento de formas mais politizadas de consciência,
vismo e da generosidade social, a partir da qual se
em benefício de formas econômico-corporativas e
construiria a democracia por que se lutava.3 A ex-
da expansão de atitudes mentais consumistas, indi-
pressão sociedade civil ficou, assim, colada a essa
vidualistas, medíocres, indiferentes à vida comum.
“terceira esfera”, e para ela foi transferida toda a po-
Tal situação provocou impactos negativos impor- tência da ação democrática mais ou menos radical,
tantes sobre o funcionamento e a identidade dos da luta por direitos e da constituição de uma esfera
partidos políticos de esquerda, já abalados pela di- pública não integrada ao estatal e assentada no livre
ficuldade de reprodução dos sujeitos sociais “clás- associativismo dos cidadãos.
sicos” e pela diminuição do sentido das grandes Em ambos os casos, a democratização combi-
utopias políticas. Em decorrência, reforçou-se o nou-se com avanços em termos de modernização
protagonismo de organizações e movimentos autô- capitalista e globalização, ou seja, com pauperiza-
nomos em relação à esfera imediatamente política ção, diferenciação social, crise fiscal, mudanças
e a causas de natureza “classista”. Com sua firme e culturais e recessão econômica, fatos que iriam
progressiva disseminação, esses movimentos e or- comprometer precisamente a consistência, a eficá-
ganizações congestionaram a sociedade civil, con- cia e a qualidade da democracia, bem como das
fundindo-se com ela. De espaço dedicado à articu- respectivas sociedades civis. Combinou-se também
lação política dos interesses de classe – de terreno com enfraquecimento do Estado e da perspectiva
para a afirmação de projetos de hegemonia –, a so- do Estado, graças à progressiva afirmação de um
ciedade civil se reduziu a um acampamento de “discurso satanizador do setor público” e de uma
movimentos. Ganhou-se em termos de organiza- ideologia estatal “auto-incriminatória”, que iguala-
ção dos interesses e mesmo de ativação democrá- rá tudo o que era estatal com a ineficiência, a cor-
tica, mas perdeu-se em termos de unidade política. rupção e o desperdício (Borón, 1996, p. 78). A de-
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mocratização nascerá e avançará, assim, perversa- ficaria bem ilustrada com a definição de Dahren-
mente articulada com uma desvalorização do po- dorf: “A sociedade civil é a essência vital da liber-
lítico e uma recusa à política institucionalizada, ou dade; seu caos criativo de associações dá às pes-
seja, com uma despolitização da política e da ci- soas a possibilidade de viver suas vidas sem ter
dadania. Num primeiro momento, portanto, du- que mendigar do Estado ou de outros poderes”
rante os anos de autoritarismo, a sociedade civil (1997, p. 84).
apareceu como cenário opaco, pouco denso e Por outro lado, como representação do cres-
cortado por interesses particulares exacerbados, cimento da democracia participativa e da assimila-
divergentes, mal compostos e certamente necessi- ção pelas esquerdas do núcleo mais “heróico” do
tados de politização, fato que por si só justificaria liberalismo democrático, cresceu uma imagem de
a observação de Arato de que “é questionável que sociedade civil como esfera plural de interesses
uma coisa inexistente (a sociedade civil num regi- que, mediante progressivas ações associativas me-
me totalitário) possa, apesar disso, contribuir para ritórias, daria curso a uma “vontade geral” quase
sua própria libertação” (1995, p. 19). Num segun- redentora, a um “programa que busque represen-
do momento, com o avanço neoliberal da demo- tar os valores e interesses da autonomia social pe-
cratização, a sociedade civil fragmentou-se toda, as- rante o Estado moderno e a economia capitalista,
sistiu ao empobrecimento de muitos de seus sem cair em um novo tradicionalismo” (Cohen e
setores e ficou ainda mais vazia de dimensão ético- Arato, 2000, p. 54). Para isso, a imagem criada
política, com sintomas de um “regresso hobbesia- pela esquerda liberal-democrática também foi le-
no” que a incapacitaria para se repor “civilizada- vada a destruir o vínculo orgânico entre a socieda-
mente”. Apesar disso, continuou a crescer o elogio de e o Estado (peça-chave da operação teórica
unilateral de uma sociedade civil que conteria as que chega até Gramsci) e a hierarquizar axiologi-
melhores virtudes sociais e poderia se contrapor camente essas duas instâncias, de modo a “negati-
ao momento autoritário, repressivo e burocrático vizar” o Estado e “positivizar” a sociedade civil. Fi-
do fenômeno estatal. Ao reconhecido excesso de xou-se assim um conceito de sociedade civil visto
Estado típico do período ditatorial e ao mau fun- como “momento oposto ao Estado, sem qualquer
cionamento do Estado democrático, iria se con- liame ou intercâmbio conformativo que não seja
frontar uma postura tendencialmente hostil a qual- dado a posteriori, isto é, apenas como decorrência
quer Estado (Nogueira, 1998b). de seu confronto” (Lavalle, 1999, p. 131).
Ao longo desse amplo movimento histórico- De um modo ou de outro, portanto, a “re-
social, novas idéias de sociedade civil foram sen- descoberta” do conceito de sociedade civil impli-
do elaboradas e incorporadas ao léxico contempo- cou uma revisão radical da formulação gramscia-
râneo. Como representação da prevalência do na. Para tornar ainda mais complexo e confuso o
mercado, ou seja, numa linha doutrinária que se quadro, parte dessa revisão irá se fazer declarada-
confundiria com o liberalismo econômico, com o mente a partir de uma incorporação ativa do léxi-
liberismo, cresceu uma imagem da sociedade civil co de Gramsci e muitas vezes em seu nome.
como expressão ou de uma solidariedade comuni-
tária, ou de uma espécie de “revanche” do econô-
mico sobre o político, como locus de realização A sociedade civil político-estatal
das potencialidades do indivíduo, do bourgeois
sobre o citoyen, para lembrar uma famosa expres- O conceito de sociedade civil foi concebido
são utilizada por Marx. Com tal inflexão, despoli- por Gramsci – que o resgatou da tradição iluminis-
tizava-se a sociedade civil, que passava então a ser ta e hegeliana dos séculos XVIII e XIX e o renovou
pensada ou como trincheira para proteger o indi- com radicalidade – como parte de uma operação
víduo e as associações voluntárias contra o Estado, teórica e política dedicada a interpretar as impo-
ou como ambiente capaz de recompor as tradi- nentes transformações que se consolidavam nas
ções cívicas destruídas pelo mercado. A imagem sociedades do capitalismo desenvolvido (altera-
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ções no padrão produtivo, expansão da classe terreno das associações privadas tornava-se, as-
operária, crescimento do associativismo, da diver- sim, uma espécie de “dimensão civil” do Estado,
sificação e da organização dos interesses, socializa- base material da hegemonia política e cultural. Es-
ção da política, maior peso do Estado vis-à-vis o tado (coerção) e sociedade civil (consenso) pas-
mercado, aumento da regulação e das políticas de savam, desse modo, a ser vistos como instâncias
proteção e bem-estar etc.) (Nogueira, 1998a). distintas mas integradas, formando uma unidade.
Gramsci percebia que esse movimento era virtual- Reuniam-se, portanto, dialeticamente. O Estado,
mente unificador e continha um impulso claro em dizia Gramsci, é sempre uma combinação de he-
direção a formas mais avançadas de convivência, gemonia e coerção. “O exercício ‘normal’ da he-
mas estava cortado por fortes tendências desagre- gemonia, no terreno tornado clássico do regime
gadoras, competitivas, individualistas. O próprio parlamentar – escreverá –, caracteriza-se pela
Estado estava sendo reconfigurado: era invadido combinação da força e do consenso, que se equi-
pela socialização da política que se verificava e le- libram de modo variado sem que a força suplan-
vado a ir além do aparato repressivo e coercitivo. te muito o consenso, mas, ao contrário, tentando
A força requeria sempre mais consenso e hegemo- fazer com que a força pareça apoiada no consen-
nia. O Estado se “ampliava” (Buci-Glucksmann, so da maioria, expresso pelos chamados órgãos
1980), articulando-se com a “nova” esfera do ser da opinião pública” (Idem, p. 95).
social que se objetivava em conjunto com uma A sociedade civil gramsciana condensa, nes-
maior diferenciação social e uma melhor organiza- se sentido, o campo mesmo dos esforços societais
ção dos interesses. A idéia gramsciana de socieda- dedicados a organizar politicamente os interesses
de civil espelharia a nova situação: abrigava a ple- de classe – constantemente fracionados pela pró-
na expansão das individualidades e diferenciações, pria dinâmica do capitalismo –, cimentá-los entre
mas acomodava também, acima de tudo, os fatores si e projetá-los em termos de ação hegemônica. O
capazes de promover agregações e unificações su- associativismo é a base de tudo, mas desde que
periores. Ela seria a sede de múltiplos organismos tratado politicamente. Gramsci não via grande
“privados”, mas nem por isto menos estatais. Seus vantagem na agregação pela agregação, na agre-
integrantes estariam dispostos como vetores de re- gação em função de interesses restritos: sua ênfa-
lações de força, como agentes de consenso e he- se repousava na superação política dessa disposi-
gemonia, candidatos a “se tornar Estado”. ção espontânea dos indivíduos e grupos sociais
Com o Estado reforçado conectando-se com (Gramsci, 1987). Dava-se o mesmo com a cons-
múltiplas associações particulares e incorporan- ciência econômico-corporativa: ela existia como
do-as a si, todo o espaço estatal ganhava nova estado primário da consciência social, e devia ser
qualidade e o fato mesmo da dominação política superada pela forma mais sofisticada da consciên-
era redefinido: a coerção – “monopólio legítimo cia política, promovendo-se assim, como se diz
da violência” (Weber), ação típica do Estado visto nos Cadernos, “a passagem nítida da estrutura
como “sociedade política” – tinha de ser cada vez para a esfera das superestruturas complexas” e o
mais sintonizada com a busca de consensos. Nos ingresso numa fase em que as ideologias lutam
Cadernos do Cárcere, Gramsci esclareceu que o entre si até que ”uma delas, ou pelo menos uma
ato de governar continuaria a buscar o “consenso única combinação delas, tenda a prevalecer, a se
dos governados”, mas não apenas como “consen- impor, determinando, além da unicidade dos fins
so genérico e vago” que “se afirma no instante econômicos e políticos, também a unidade intelec-
das eleições”, e sim como “consenso organizado”. tual e moral” (Gramsci, 2000, p. 41). A própria no-
O Estado, observava, “tem e pede o consenso, ção de hegemonia – par lógico e político do con-
mas também ‘educa’ esse consenso através das as- ceito de sociedade civil – desdobrava-se num
sociações políticas e sindicais, que, porém, são empreendimento unificador. No entendimento de
organismos privados, deixados à iniciativa priva- Gramsci, o sujeito hegemônico seria aquele que
da da classe dirigente” (Gramsci, 2000, p. 119). O viesse a se mostrar mais vocacionado para agregar
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e unificar do que para separar e diferenciar. Seria segundo o qual “Gramsci foi o primeiro e o mais
nessa condição, aliás, que ele poderia se afirmar importante marxista a refutar a redução economi-
como “dirigente intelectual e moral” ou como fun- cista do conceito de sociedade civil e a insistir em
dador de Estados. sua autonomia e em seu destaque do Estado, ou
Isso significa dizer que a política – entendida seja, da sociedade política” (Cohen, 1999, p. 268).
como fator de mediação, um campo onde se com- Gramsci pensava numa sociedade civil que
binam atos, regras e instituições voltadas para a se poderia chamar de político-estatal, de modo a
conquista do poder, da direção e da liderança, bem acentuar que, nela, a política comanda: luta social
como para a organização dos interesses e da pró- e luta institucional caminham juntas, articulando-
pria vida comum, ou seja, entendida como campo se a partir de uma estratégia de poder e hegemo-
do Estado em sentido amplo – é o principal motor nia. A famosa fórmula gramsciana é, aqui, elo-
de agregação e unificação das sociedades. Eviden- qüente: SP + SC = Estado, quer dizer, “na noção
temente, trata-se aqui tanto da política dos políti- geral de Estado entram elementos que devem ser
cos, isto é, a política praticada pelos profissionais remetidos à noção de sociedade civil (no sentido,
da política, como da política dos cidadãos (Noguei- seria possível dizer, de que Estado = sociedade
ra, 2001, cap. 5) inerente ao modo de ser do ho- política + sociedade civil, isto é, hegemonia cou-
mem, ou seja, tanto da política institucionalizada, raçada de coerção)” (Gramsci, 2000, p. 244).
como da socialmente experimentada. Para dizer de Entendida por ele como “conteúdo ético do
outro modo, Gramsci imaginava a política como Estado”, a sociedade civil possibilita a articulação e
“ética do coletivo” (Buey, 2001), já que se destina- a unificação dos interesses, a politização das ações
va a viabilizar uma integração da virtude privada e e consciências, a superação de tendências corpora-
da virtude pública, dos interesses particulares e da tivas ou concorrenciais, a organização de consen-
vontade geral, do Estado e da sociedade, em suma, sos e hegemonias. Seus personagens típicos são
a possibilitar uma dissolução das distinções entre atores do campo estatal em sentido amplo. Em
governantes e governados, “simples” e intelectuais decorrência, o Estado que corresponde a essa so-
(Tortorella, 1998). A política, para ele, vista como ciedade civil é um Estado que poderíamos cha-
mundo político e como atividade política, repre- mar de máximo: um Estado social radicalizado,
sentava o “meio” que viabilizava a “catarse”, ou democrático e participativo, que se põe como dí-
seja, “a passagem do momento meramente econô- namo da vida coletiva e parâmetro geral dos di-
mico (ou egoístico-passional) ao momento ético- versos interesses sociais, balizando-os, de algum
político, isto é, a elaboração superior da estrutura modo compondo-os e, sobretudo, liberando-os
em superestrutura na consciência dos homens” para uma afirmação plena e não-predatória.
(Gramsci, 1999, p. 314). Nessa concepção, portanto, a sociedade civil
Vê-se, portanto, que a sociedade civil grams- é considerada um espaço onde são elaborados e
ciana não se sustenta fora do campo do Estado e viabilizados projetos globais de sociedade, se ar-
muito menos em oposição dicotômica ao Estado. ticulam capacidades de direção ético-política, se
Ela é uma figura do Estado, e foi enfatizada por disputa o poder e a dominação. Um espaço de in-
Gramsci como a grande novidade que, na passa- venção e organização de novos Estados e novas
gem do século XIX para o século XX, modificava a pessoas. Um espaço de luta, governo e contesta-
natureza mesma do fenômeno estatal, encami- ção, no qual se formam vontades coletivas.
nhando-a em direção à idéia do “Estado amplia- Para falar em termos de uma metáfora visual,
do”. Ela se articula dialeticamente no Estado e com a sociedade civil político-estatal sugere uma forma-
o Estado, seja esse entendido como expressão jurí- ção em linhas convergentes: fogo concentrado no
dica de uma comunidade politicamente organiza- coração do sistema, maior capacidade de processar
da, como condensação política das lutas de classes e articular demandas, maiores oportunidades de in-
ou como aparato de governo e intervenção. Não se terferir na vida coletiva como um todo, eleger ou
mostra acertado, portanto, o pressuposto de Cohen combater governos. Dada a maior predisposição
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ético-política de seus protagonistas principais (par- A primeira e a mais importante dessas idéias –
tidos políticos e assemelhados), criam-se nela con- sobretudo pela capacidade de influência que tem
dições para o aparecimento de diversos pontos tido – pode ser chamada de sociedade civil libe-
“ótimos” de unificação, o que potencializa e requa- rista. Nela, o mercado comanda: a luta social faz-
lifica a movimentação social. se em termos competitivos e privados, sem maio-
Em sua configuração típico-ideal, essa socie- res interferências públicas ou estatais. Sua
dade civil produz incentivos basicamente organi- expressão poderia estar numa fórmula oposta à
zacionais e integradores: unificação, politização e de Gramsci: SC + Mercado ≠ Estado, ou seja, o Es-
fortalecimento do interesse público e democráti- tado mostra-se como o outro lado tanto do mer-
co. Desse ponto de vista, a sociedade civil políti- cado e da sociedade civil, como de eventuais
co-estatal é o campo por excelência do governo alianças ou combinações entre eles. Numa varian-
socialmente vinculado e da contestação política. te atenuada, de tipo liberal-social, essa sociedade
Nela podem se articular movimentos que apon- civil vê-se como um “setor público não-estatal”,
tam seja para a construção de hegemonias, seja palco de organizações que são “públicas” porque
para o controle e o direcionamento dos governos, estão voltadas para o interesse geral, mas que são
seja para a regulação estatal e o delineamento de “não-estatais” porque estão soltas do aparelho de
soluções positivas para os problemas sociais. Estado (Bresser-Pereira e Cunilll Grau, 1999).
Nessa idéia de sociedade civil não há lugar
para a questão da hegemonia. Nela, não se trata
O universo gerencial e o ativismo global de saber se algum ator pode ou não prevalecer e
dirigir a sociedade, mas de verificar como os ato-
O conceito gramsciano de sociedade civil, res atuam para obter vantagens ou extrair maiores
porém, não é hoje hegemônico: não é capaz de dividendos para si, ou seja, maximizar seus pró-
dirigir. Justamente porque a globalização traz con- prios interesses. Trata-se de um espaço cujos per-
sigo impulsos irrefreáveis de fragmentação, dife- sonagens típicos são atores que se organizam ou
renciação e individualização, de “desnacionaliza- de modo restrito, egoístico, ou de modo desinsti-
ção” e fronteiras estatais porosas, de desconexão tucionalizado (por exemplo, no plano do volun-
entre pessoas, grupos e Estados, de enfraqueci- tariado ou do assistencialismo tradicional). Não
mento da solidariedade social (Habermas, 2001), há ações que pretendam a conquista do Estado,
de “destruição do passado” (Hobsbawm, 1995, p. mas ações contra o Estado ou indiferentes em re-
13), o político-estatal deixou de poder funcionar lação a ele. Em decorrência, o Estado que corres-
como pólo magnético. Tudo parece “emprestar ponde a essa sociedade civil é um Estado míni-
certo charme à dissolução crescente da moderni- mo, reduzido às funções de guarda da lei e da
dade organizada” e anunciar, como programa pós- segurança, mais liberal e representativo do que
moderno, o “fim da política” (Habermas, 2001, pp. democrático e participativo.
111-112). Nessa concepção, a sociedade civil é externa
Em decorrência, as categorias referenciadas ao Estado – uma instância pré-estatal ou infra-esta-
pelo Estado e pelo político tendem a perder va- tal –, e nela se busca compensar a lógica das bu-
lor e a ser objeto de múltiplas tentativas de res- rocracias públicas e do mercado com a lógica do
significação. As idéias alternativas de sociedade associativismo sociocultural. Um espaço a partir do
civil exprimem bem isso. Tendo como eixo um qual se pode ferir e hostilizar os governos, mas de
esforço comum para pensar o Estado, a socieda- onde não se estruturam governos alternativos ou
de e a economia como âmbitos autônomos, ain- movimentos de recomposição social. Nele, pode
da que relacionados, afirmaram-se nas últimas existir oposição, mas não contestação.
décadas, em diálogo com Gramsci e com ele con- Essa idéia também encontra um desdobra-
correndo, duas vertentes teóricas distintas, mas mento de ordem mais “prática”. É que a lingua-
não contrapostas. gem do planejamento e da gestão incorporou a
SOCIEDADE CIVIL, ENTRE O POLÍTICO-ESTATAL... 193

tese da participação, redefinindo-a em termos de procamente. Ferem os governos em um número


cooperação com os governos, gerenciamento de maior de pontos, mas não chegam propriamente
crises e implementação de políticas. A sociedade a encurralá-los. São muitas vezes por eles mani-
civil – locus privilegiado da participação – ingres- puladas. A dispersão dos movimentos ajuda a que
sou assim no universo gerencial, um espaço evi- eles apenas margeiem e irritem o Estado. A dinâ-
dentemente “neutro”, ocupado por associações mica geral não é anti-sistêmica.
não-governamentais despojadas de maiores inten- Em sua configuração típico-ideal, essa socie-
ções ético-políticas, sede de intervenções sociais dade civil produz incentivos basicamente compe-
“privadas” e sem fins lucrativos dedicadas a ativar titivos: re-fragmentação, fechamento corporativo
determinadas causas cívicas ou a auxiliar os gover- dos interesses, despolitização. Nela tendem a se
nos no combate à questão social (Torres, 2003). articular movimentos direcionados para valorizar
Com isso, o conceito de sociedade civil reiterou a interesses particulares, atender demandas, fiscali-
ruptura do vínculo orgânico entre sociedade e Es- zar governos, desconstruir e desresponsabilizar o
tado, mas também atenuou o fervor ético inerente Estado, enfraquecer ou desativar dispositivos de
a formulações mais progressistas. Como estabele- regulação.
ceu Bresser-Pereira, “a sociedade civil é a parte da A segunda idéia alternativa de sociedade ci-
sociedade que está fora do aparelho de Estado. Si- vil costuma ser vista e concebida como uma ex-
tuada entre a sociedade e o Estado, é o aspecto tensão crítica do conceito de Gramsci, mas nem
político da sociedade: a forma por meio da qual a sempre se distingue da sociedade civil liberista.
sociedade se estrutura politicamente para influen- Pode ser denominada de sociedade civil social.
ciar a ação do Estado” (1999, pp. 69 e 72). Apesar Nela, a política está presente e tem lugar de
disso, “não podemos cometer o equívoco de atri- destaque, mas nem sempre comanda: a luta social
buir a ela um papel libertador, tornando-a a con- muitas vezes exclui a luta institucional e com ela
substanciação do interesse público”. se choca, impossibilitando ou dificultando o deli-
Esse conceito de sociedade civil estará na neamento e a viabilização de estratégias de poder
base teórica do chamado “Terceiro Setor”, enten- e hegemonia. Sua expressão poderia estar na fór-
dido como um vasto conjunto de organizações mula SC – SP ≠ Estado ? ≠ Mercado, quer dizer, a
sociais voltadas para o atendimento de necessida- sociedade civil surge como uma esfera isolada
des e carências de certos segmentos da popula- dos demais âmbitos. Recusa-se a se deixar “diluir”
ção e unidas por uma mesma legislação regulado- no institucional (entendido sobretudo como siste-
ra (Coelho, 2000; Bresser-Pereira e Cunill-Grau, ma político e partidário), já que se concebe como
1999). Ao passo que o movimento progressista maior do que ele e imune a seus desvios e degra-
tenderá a ver o “Terceiro Setor” como arena de dações. Seu lema poderia ser tomado de emprés-
ações cívicas alternativas e/ou de operações anti- timo do velho slogan “de costas para o Estado,
sistêmicas mais ou menos radicais (Fernandes, longe do Parlamento”, usado como título de um
1994; Ioshpe, 1997; Vieira, 2001), a cultura neoli- conhecido artigo de Tilman Evers (1983).
beral não se cansará de saudá-lo como instância Nessa sociedade civil há lugar para a questão
capacitada para “substituir” o Estado, trocando as da hegemonia, mas ele está imperfeitamente defi-
ações públicas permanentes e gerais por iniciati- nido. É que os interesses, aqui, se mostram refra-
vas tópicas ou locais não necessariamente coor- tários a articulações superiores ou à quebra de ati-
denadas, tendo em vista uma gradual eliminação tudes corporativas: sua maior virtude é a
da responsabilidade estatal para com a questão autonomia. Seus personagens típicos são atores
social (Montaño, 2002; Behring, 2003).4 que operam na fronteira do Estado: os novos mo-
Recorrendo-se a uma imagem, pode-se dizer vimentos sociais, fortemente concentrados na vo-
que a “sociedade civil liberista” sugere uma for- calização de metas não “materiais”, tópicas e par-
mação em linhas paralelas: as energias sociais ticulares, muitas vezes concebidas como “políticas
correm lado a lado, mas não se alimentam reci- de identidade” (étnicas, religiosas, culturais, de gê-
194 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

nero). Age-se, aqui, para usar o Estado tendo em como poder, dominação, hegemonia e Estado e,
vista a reforma do social. A orientação supra-insti- portanto, com poucas chances de se efetivar.
tucional soma-se a uma orientação tendencialmen- Por mais generosa que seja essa visão, ela se
te supranacional. Operando em rede e por inter- mostra pouco factível e seguramente imperfeita em
médio do que se está convencionando chamar de termos lógicos e políticos. Não é por outro motivo
cibermilitância, os movimentos sociais estariam que Habermas, por exemplo, prefira falar em “de-
buscando ativar a constituição de uma sociedade mocracia pós-nacional” e não em “democracia cos-
civil mundial (Moraes, 2001; Gómez, 2000; Walzer, mopolita”, para sugerir que a primeira não só man-
1998; Habermas, 2001; Wood, 2001). Em conse- tém ativos os sistemas político-estatais nacionais,
qüência, o Estado que corresponde a essa socie- como também preserva as comunidades políticas
dade civil é um Estado que poderíamos chamar de nacionais requeridas pelo exercício democrático,
cosmopolita: territorialmente desenraizado e cate- ao passo que a “democracia cosmopolita” conce-
goricamente voltado para a proteção dos direitos beria uma comunidade inclusiva carente da “auto-
de cidadania – concebidos para serem viáveis compreensão ético-política dos cidadãos”, ou seja,
num terreno supranacional –, mas também capaci- da possibilidade efetiva de uma “autodeterminação
tado para impor limites e restrições ao mercado. coletiva” (Habermas, 2001, p. 136). Ainda que os
Tal modalidade de sociedade civil estaria cosmopolitas consigam uma organização global
composta por movimentos que se auto-organizam que traga consigo uma representação democratica-
e se autolimitam e que poderiam, acredita-se, dis- mente eleita – coisa, de resto, de difícil imaginação
ciplinar as instituições mais sistêmicas, como o Es- –, “eles não podem criar a consciência normativa a
tado e o mercado. Estruturando-se como um siste- partir de uma autocompreensão ético-política, ou
ma independente e que se auto-referencia, a seja, diferenciada de outras tradições e orientações
sociedade civil poderia moderar os excessos do valorativas, mas antes apenas a partir de uma au-
Estado e do mercado e estabelecer-se como um tocompreensão jurídico-moral”. O cosmopolitismo
campo onde a composição social se recriaria. Im- não tem como aceitar a hipótese política da “exclu-
pregnada da função de intermediar o sistema po- são”, quer dizer, do estabelecimento de distinções
lítico e os grupos sociais, a sociedade civil criaria entre membros e não-membros. Em decorrência,
condições para que se formasse uma “vontade pú- na comunidade cosmopolita, “a moldura normati-
blica” dotada da capacidade de se institucionalizar va constitui-se apenas de ‘direitos humanos’, ou
nos corpos parlamentares e nos tribunais, para fa- seja, de normas jurídicas com conteúdo exclusiva-
lar num tom não muito distante do léxico de Ha- mente moral” (Idem, p. 136).5
bermas. Não é por outro motivo que essa idéia de A sociedade civil social sustenta-se, assim,
sociedade civil se abre bastante para os temas da sobre uma concepção dicotômica: nela estariam o
comunicação intersubjetiva, dos vínculos culturais universalismo, a ética, o diálogo, ao passo que no
espontâneos, da “desobediência civil” e do ativis- político estariam o particularismo, a força, a cor-
mo ético. rupção. Sua teoria trabalha com um construto for-
No fundo, a sociedade civil social exclui os mal – um modelo – carregado de preferências va-
interesses e as classes, supondo-se como uma es- lorativas, a partir dos quais se julga a integridade
pécie de universal abstrato, acessível apenas aos moral e a estatura política dos atores. Nessa con-
bons valores, aos atores “eticamente superiores”, cepção, portanto, a sociedade civil é um espaço
aos representantes da “vontade geral”. Os interes- situado além da sociedade política, do Estado e
ses, em sua materialidade bruta e suja, estariam do mercado. Um espaço de onde se busca extrair,
fora dela: no político, nos governos, no Estado. dos governos, elementos para restringir o merca-
Por esse caminho, a sociedade civil social despo- do e liberar energias societais autônomas. Nele,
ja-se do político e separa-se do Estado. Há políti- age-se para contestar o poder e o sistema, mas
ca nela, com certeza, mas se trata de uma políti- não para articular capacidades de direção ético-
ca convertida em ética, que não se apresenta política ou fundar novos Estados.
SOCIEDADE CIVIL, ENTRE O POLÍTICO-ESTATAL... 195

Essa idéia também sugere uma formação em meio de interações dialógicas, comunicativas,
linhas paralelas, expressão de uma certa anarquia como diria Habermas, criariam as conexões essen-
ou da ausência de maior coordenação: as ações se ciais da convivência democrática. Um arranjo, por-
fazem quase sempre em rede, sem prever regula- tanto, propenso bem mais ao prolongamento da
ridades ou hierarquias organizacionais. Mas o alvo fragmentação e do não-estatal do que ao encontro
aqui é o sistema, mais do que os governos pro- de novas bases de unificação e unidade política,
priamente ditos, que não chegam a ser muito mo- onde haveria, em suma, pouca procura de consen-
lestados. Tratar-se-ia bem mais de dar curso à con- so (hegemonia), pouca organização e pouca “for-
figuração de uma sociedade civil mundial do que ça”, e, em contrapartida, muito agir comunicativo,
de lutar por governos alternativos. A dispersão dos muita disposição para o diálogo e a solidariedade.
movimentos faz com que a aberta contestação do De acordo com Montaño, seja como “agir comuni-
sistema não chegue a se completar ou a receber cativo no mundo da vida” e como “livre associati-
um tratamento politicamente mais produtivo. De vismo”, seja como “interação” e como “ações vo-
qualquer modo, ao menos em boa parte das luntárias”, os novos conceitos de sociedade civil
ações, a expectativa é que a ativação da socieda- isolam essa esfera da tensa e contraditória totalida-
de civil mundial promova uma espécie de encap- de social:
sulamento dos diversos governos, forçando-os a
uma atuação socialmente mais responsável. {...] pensam a mudança social, a democratização da
Em sua configuração típico-ideal, essa socie- sociedade, o aumento de poder e controle do cida-
dade civil produz incentivos basicamente libertá- dão, como resultado da atividade cotidiana da so-
rios e mobilizadores: movimentação permanente, ciedade civil (como unidade), contra o Estado, em
autonomia, aquisição de direitos. Desse ponto de parceria com este ou com independência deste. Ne-
vista, é um campo de contestação ao sistema, mas nhum resultado, a não ser a constante reprodução
não de governo do sistema. Nela podem se articu- da ordem e do status quo, sairá desta perspectiva
lar ações direcionadas para criar éticas alternati- (Montaño, 2002, p. 266).
vas, organizar redes e fóruns de resistência, ativar
a cidadania mundial, pressionar e encurralar go- A sociedade civil, porém, não é a extensão
vernos, postular novos modelos de políticas pú- mecânica da cidadania política ou da vida demo-
blicas, maior justiça social ou melhor distribuição crática. Longe de ser um âmbito universal, é um
de renda (entre grupos e entre nações). território de interesses que se contrapõem e só
Tanto a sociedade civil social como a liberis- podem se compor mediante ações políticas deli-
ta sustentam-se sobre uma valorização da socie- beradas. Não é uma área social organizada ex-
dade civil em si, isto é, como esfera própria, au- clusivamente pelos bons valores ou pelos inte-
tônoma diante do Estado e a ele tendencialmente resses mais justos, mas um terreno que também
oposta, uma instância homogênea e integrada por abriga interesses escusos, idéias perversas e va-
intenções comuns, que se comporiam “esponta- lores egoísticos, no qual podem se desenvolver
neamente”. Com isso, dá-se passagem a uma idéia muitas atitudes e condutas “incivis” (Whitehead,
de sociedade civil vazia de tensões, disputas ou 1999), o que levou alguns estudiosos a visualiza-
contradições, uma sociedade civil que “luta” mas rem uma “sociedade incivil” como caso extremo
que não está atravessada por lutas e que, por isso, de uma sociedade civil tomada pela incivilidade
não se estrutura como um campo de ações dedi- (Keane, 2001, p. 115).
cadas a organizar hegemonias. Ao cortarem, portanto, os vínculos da socie-
Evoluindo nesse sentido, a sociedade civil dade civil com o Estado e conceberem essas duas
passou a ser configurada como uma arena onde os esferas como duais e não-integradas, as novas teo-
interesses poderiam se manifestar livremente, onde rizações sobre a sociedade civil deixam de reco-
se descobririam novas virtudes gerenciais, onde se nhecer que os riscos que ameaçam esse espaço
afirmaria a autonomia social e onde os atores, por social não derivam do estatismo invasivo, mas da
196 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

“incivilidade” e do “canibalismo social” inerentes a to mais uma iniciativa social se deixa contagiar
uma sociedade “liberada do Estado” (Whitehead, por uma perspectiva ético-política superior, mais
1999), isto é, não estruturada por um Estado que ela tende a flutuar entre a sociedade civil político-
contrabalance as desigualdades e faça com que estatal e a sociedade civil social. Por outro lado,
valores gerais (justamente os da cidadania política) quanto mais uma ação se explicita, por exemplo,
prevaleçam sobre interesses particulares-egoísti- como voluntariado ou assistencialismo tradicio-
cos. Do mesmo modo, se se enfatiza unilateral e nais, mais ela tende a se firmar no terreno da so-
axiologicamente o associativismo – considerando- ciedade civil liberista.
o um âmbito de autenticidade social e virtude cí- O fato mesmo de essas modalidades encontra-
vica, por exemplo –, pode-se não só esvaziar o rem ressonância no mundo contemporâneo faz com
político-estatal de sentido, como também oferecer que elas, muitas vezes, sobretudo quando traduzi-
justificativas para as posições que, em nome da re- das em ação prática, se confundam e se interpene-
cuperação das “tradições perdidas”, da pureza po- trem umas nas outras. Uma iniciativa de promoção
pular ou do espontaneísmo social, combatem jus- socioeducacional financiada por uma grande em-
tamente as funções reguladoras e distributivas do presa capitalista, tendo em vista exclusivamente a
Estado, valendo-se muitas vezes de expedientes melhoria de certas condições de vida ou o atendi-
autoritários ou paternalistas. mento de certas demandas, não deixaria de pro-
Pode-se, por exemplo, na esteira de um cer- duzir efeitos de uma sociedade civil político-esta-
to comunitarismo neoconservador, concluir que o tal, ainda que, em boa medida, deva ser vista
declínio cívico e moral da sociedade (a violência, como típica da sociedade civil liberista. Dar-se-ia o
a pornografia, o egoísmo, a droga, o consumismo) mesmo com os movimentos que se vinculam cla-
deve-se ao excesso de desenvolvimento, de políti- ramente à sociedade civil social, alguns dos quais
ca institucional (de “politicagem”) ou de direitos trafegam na fronteira com a sociedade civil políti-
regulamentados. Como solução, seria possível co-estatal e com ela dialogam abertamente.
acenar-se tanto com a redução do político-estatal Tudo somado, a distinguir as ações entre si
como com a “re-tradicionalização” da sociedade, estaria o modo diverso de pensar o Estado e de
um fechamento em si mesma, à margem do Esta- conceber a relação com o governar, assim como
do, dos direitos básicos do indivíduo, em benefí- o modo de tratar o problema das tensões entre
cio da família, da comunidade e do “capital social” luta social e luta institucional.
como um todo (Cohen, 1999, p. 275). Diante desse quadro, repõe-se a questão de
saber como lidar com a fragmentação que parece
ter-se instalado no coração das sociedades con-
Desdobramentos possíveis temporâneas, como unificar os interesses sem di-
minuir a diferenciação e as grandes margens de li-
Todas essas concepções de sociedade civil berdade e individualidade adquiridas ao longo do
cabem na realidade contemporânea. Na verdade, tempo, como, em suma, unificar e organizar sem
elas espelham essa realidade e tentam ao mesmo burocratizar, tolher e homogeneizar. A discussão
tempo direcioná-la: trazem consigo projetos políti- sobre sociedade civil pode ajudar a que se encon-
cos e sociais correspondentes. Em boa medida, os- trem respostas para essa questão. Nela, no fundo,
cilamos entre elas, sentindo seus efeitos e reflexos. oculta-se um problema maior: o da hegemonia, o
Muitos dos movimentos ou ações que se de saber com que valores, projetos e ideais cami-
vinculam ao chamado “Terceiro Setor” – hoje bem nharemos ao longo do século XXI.
numerosos, diversificados e ideologicamente plu- O conceito gramsciano de sociedade civil –
rais – transitam com bastante desenvoltura por es- por sua natureza eminentemente política e estatal,
sas modalidades de sociedade civil. Sem querer quer dizer, por sua capacidade de refletir aquele
simplificar demais um quadro que é seguramente espaço que, na realidade das sociedades comple-
complexo, creio ser possível sustentar que quan- xas, possibilita uma oportunidade de unificação e
SOCIEDADE CIVIL, ENTRE O POLÍTICO-ESTATAL... 197

agregação superior – mostra sua utilidade justa- de cidadãos globais, seguindo de perto as estraté-
mente por criar uma espécie de zona-limite da gias das grandes corporações transnacionais
desagregação social. (Idem). À figura do “Estado-rede” imaginada por
A sociedade civil social – que, hoje, pre- Castells (1999) deverá corresponder a figura de um
pondera nos ambientes democráticos e de es- “partido-rede”, disposto a abrir mão de certas
querda – expressa uma indignação em marcha. agendas tradicionais e de certos cálculos políticos
Trata-se, antes de tudo, de um campo de resis- e a empreender uma inédita construção institucio-
tência. Sua fragmentação é em boa medida ine- nal, doutrinária e cultural.
vitável, já que espelha uma situação explosiva, De algum modo, portanto, o avanço da glo-
multifacetada, complexa, despojada de centros balização – que conheceu uma fase abertamente
organizacionais. Não há nela, ainda, por isso, su- dedicada a desregulamentar e a desconstruir o Es-
jeitos capazes de se universalizarem, ou seja, de tado – trará consigo uma nova valorização do ins-
fixarem projetos em condições de converter a re- titucional, do político e do estatal. Um novo parâ-
sistência em “ataque”, em estratégia de poder, metro de regulação transnacional não virá do
em anúncio de um futuro desejável para todos. esforço de movimentos sociais referenciados por
Enquanto projeto político, ela se mostra essen- uma idéia “social” de sociedade civil, espontanea-
cialmente como uma tradução daquilo que já foi mente estruturada e eticamente motivada. Uma
chamado de “sociedade civil de baixo”, seja no eventual “sociedade civil mundial” não poderá se
sentido de identificar os atores do campo econô- objetivar sem Estados fortes e sem partidos capa-
mico por oposição ao Estado, seja para reduzir a citados para organizar demandas particulares (in-
sociedade civil a tudo o que é considerado “bom dividuais, grupais, locais, nacionais) em termos
e louvável” (Houtart, 2001, p. 93). A unificação gerais. Por mais que se deva recusar a idéia de
dessa sociedade civil torna-se, assim, problemá- um único partido de vanguarda, detentor de toda
tica; em certa medida, seu próprio modo de ser a verdade, não há como adotar um relativismo
a inviabiliza. Ao mesmo tempo, porém, o cons- absoluto, que daria razão às correntes pós-moder-
tante e dedicado ativismo de seus integrantes nas, “para as quais tudo o que conta é a história
pode facilitar e impulsionar a disseminação de imediata dos indivíduos” e o alcance de objetivos
éticas alternativas que, pelos interstícios do siste- particulares, como se a “expressividade das for-
ma global, contribuem para o desgaste político mas de luta” pudesse substituir o conteúdo delas
ou mesmo a condenação moral de muitas op- (Houtart, 2001, pp. 95-96). Um avanço para além
ções governamentais e orientações doutrinárias. dos Estados-nação não excluirá as realidades na-
Seja como for, aceitando-se como razoável cionais como centros de vida política e democrá-
(ainda que discutível) a tese de que o século XXI tica. Em outros termos, conexões virtuais via In-
assistirá à transição do Estado-nação a uma “demo- ternet não dispensarão articulações ético-políticas
cracia cosmopolita e transnacional”, será preciso no plano concreto da história (Moraes, 2001).
estabelecer quais sujeitos se encarregarão dessa Qualquer postulação utópica, de resto, deve po-
operação e abrir a discussão sobre o tema político der precisar seus objetivos a médio e a curto pra-
do “partido transnacional de cidadãos globais” zo, e esses objetivos situam-se inevitavelmente
(Beck, 2001). Hoje, há uma nova dialética do glo- nos campos concretos do agir coletivo.
bal e do local que não se acomoda com facilidade A demarcação de um território de lutas que
na política nacional e só pode se resolver adequa- ignore os Estados nacionais realmente existentes,
damente num contexto normativo transnacional. por exemplo, pode dar margem a um “internacio-
Mas não se mostra nada simples o estabelecimen- nalismo abstrato carente de bases materiais”, com
to de uma teoria do partido político cosmopolita, o que se desfaz a possibilidade mesma de uma es-
que opere para além dos limites territoriais do Es- tratégia anti-sistêmica efetiva (Wood, 2001, p. 112).
tado-nação e se cole aos movimentos nacionais e A globalização não está tornando irrelevante o Es-
globais, aos fóruns mundiais, como representante tado-nação. Por detrás de cada operação econômi-
198 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

ca transnacional há bases nacionais que depen- vimentos horizontais, tendencialmente anárquicos


dem de Estados locais para se viabilizarem. O Es- e dispersivos, desprovidos de centros organizacio-
tado-nação tradicional está certamente mudando nais? Poderemos seguir em frente apenas com
sua forma e tendendo a dar lugar a “Estados mais base em ações éticas e voluntariosas, em batalhas
estreitamente locais e a autoridades políticas re- no ciberespaço, numa movimentação frenética,
gionais mais amplas”. Qualquer que seja sua for- generosa e incansável para encurralar e desmasca-
ma, porém, ele “continuará sendo crucial e é pro- rar o sistema? Será assim que construiremos a al-
vável que por um longo tempo ainda o velho mejada sociedade civil mundial, a partir da qual
Estado-nação continue desempenhando seu papel poderiam ser enquadradas as múltiplas e diversifi-
dominante” (Idem, p. 117). cadas sociedades civis realmente existentes? Não
Se assim é, o Estado ainda pode ser pensa- parece razoável.
do como uma “eticidade superior”, uma força Se a resposta a essas questões não se mostra
educativa e unificadora contra a fragmentação e a simples e gera dúvidas e divergências, creio que
atomização social derivadas da objetivação do ca- estamos obrigados, mais uma vez, a pensar em
pitalismo. A política ainda deve se dirigir, portan- termos dialéticos e a articular politicamente o que
to, para “utilizar o poder do Estado para controlar está desagregado e o que se mostra concebido
os movimentos do capital e dispô-los sob o alcan- para funcionar em rede, sem vértices ou coman-
ce de uma accountability democrática e em con- dos. Se pensarmos dialeticamente, não teremos
cordância com uma lógica social diferente da ló- como virar as costas para o Estado, ficar longe do
gica da competição e da rentabilidade capitalista” parlamento ou fugir da política. Não teremos
(Idem, p. 119). como glorificar unilateralmente o mercado ou a
Como então sair desse verdadeiro impasse “sociedade civil”, nem como justapor a luta social
teórico e político? Uma aposta razoável seria em- à luta institucional.
preender esforços para que a idéia de sociedade O século XX nos fez enveredar por um “fu-
civil político-estatal (gramsciana) ganhe maior turo desconhecido e problemático, mas não ne-
consistência teórica, se mantenha como parâme- cessariamente apocalíptico” (Hobsbawm, 1995, p.
tro e, tanto quanto possível, se superponha à so- 16). Espessas nuvens de fumaça, medo e sofri-
ciedade civil social, isolando ou neutralizando a mento bloqueiam o entusiasmo, mas as possibili-
sociedade civil liberista. A partir de uma referên- dades de avanço se materializam a olhos vistos.
cia como essa, pode-se imaginar o surgimento de O que virá pela frente? Tanto quanto em
uma força que unifique e organize o atual movi- qualquer outra época, a história continuará a se
mento antiglobalização e a sociedade civil a ele processar como um movimento aberto, errático, re-
correspondente. pleto de alternativas. Mas a história não é apenas
Não se trata de uma operação simples, até um jogo de circunstâncias, decisões governamen-
mesmo porque a lógica das coisas conspira contra tais, crises estruturais, acasos e necessidades. Nela
ela. Mas, não estando morto o Estado, também continuarão a operar o engenho, a generosidade e
não estão definitivamente enterrados os partidos e o empenho democrático dos povos da terra, com
os movimentos políticos coesos, estruturados suas organizações, seus líderes, suas culturas. Se o
como organizações permanentes. Estamos parali- mundo se tornou mais mundo e os problemas que
sados entre a visão que absolutiza o Estado em de- nos afetam são problemas globais, não há saída
trimento do mercado, do indivíduo e da esponta- sem diálogo, sem perspectiva política e esforços de
neidade social, e a visão que imagina a sociedade unificação, sem soluções globais. Se os povos da
como mera extensão do mercado e da livre con- terra souberem se aproximar e dar vida a ações de-
corrência dos interesses?6 Será mesmo que a histó- mocratizadoras combinadas, a pressões inteligen-
ria, daqui para frente, transcorrerá sob a pressão tes, a alianças sustentáveis, capazes de impor suas
dos processos “cegos” e “incontroláveis” da globa- decisões sobre todos, conseguiremos desenhar um
lização ou, em outra escala, sob o influxo de mo- pacto social de novo tipo – um pacto para dignifi-
SOCIEDADE CIVIL, ENTRE O POLÍTICO-ESTATAL... 199

car a comunidade humana, sem distinções de qual- partir da ação estatal (governamental), ou seja, sem
quer espécie e com a devida promoção dos mais o concurso de iniciativas sociais relativamente inde-
pendentes e “espontâneas”, desde que devidamente
frágeis – e fazer com que ele prevaleça sobre a glo-
regulamentadas. O mais importante, aqui, não é tan-
balização econômica. to a postulação de uma necessária presença “física”
do aparato estatal, mas a defesa de uma perspectiva
de Estado, quer dizer, a aceitação de que o social
NOTA não se viabiliza sem uma idéia de Estado, sem uma
“eticidade superior” que produza parâmetros de sen-
tido para todos os grupos e indivíduos.
1 Para uma reconstrução desse tipo, remeto a Coutinho,
1999; Bobbio, 1999; Buci-Glucksmann, 1980; Gruppi, 5 Para Habermas, em vez de visar a uma “política
1978; Ferreira, 1986; Nogueira, 1998a; Semeraro, 1999; múltipla organizada no todo ao modo de um Esta-
Aggio, 1998; Simionatto, 1995; e Soares, 2000. do mundial”, o projeto de uma “democracia cosmo-
polita” deveria buscar se concretizar “em uma base
2 Foge completamente dos objetivos do presente tex-
de legitimação menos ambiciosa, a saber, nas for-
to a reconstituição histórica do conceito. A esse res-
mas de organizações não-governamentais do siste-
peito, ver Bobbio, 1999; Cohen e Arato, 2000; Cos-
ma de negociação internacional que já existe em
ta, 2002; Liguori, 1999 e 2001; Whitehead, 1999; e
outros âmbitos políticos”. Essa orientação ofereceria
Bresser-Pereira, 1999.
a “imagem dinâmica das interferências e das intera-
3 É semelhante a posição de Cohen e Arato, para ções entre os processos políticos se desenvolvendo
quem “o conceito de sociedade civil, em vários de modo peculiar nos âmbitos nacional, internacio-
usos e definições, tornou-se moda graças às lutas nal e global”. Poder-se-ia ter, assim, uma política
contra as ditaduras comunistas e militares em mui- mundial, mas não um governo mundial. (Haber-
tas partes do mundo; apesar disto, seu status é am- mas, 2001, p. 138-139).
bíguo nas democracias liberais” (2000, p. 7). Se-
6 Se a grande lição a ser extraída do colapso do socia-
guindo caminho analítico diverso, já que considera
lismo é a do penoso erro envolvido na pretensão de
que considerar a sociedade civil uma terceira esfe-
construir uma cidadania democrática socialista pres-
ra ao lado do mercado e do Estado mais confunde
cindindo inteiramente do mercado e do princípio do
do que esclarece a análise das sociedades contem-
mercado, a experiência dos países capitalistas avan-
porâneas, Fábio Wanderley Reis observa que, “do
ponto de vista das discussões teóricas deflagradas çados e de tradição liberal-democrática deixa claro
no quadro do ‘pós-socialismo’, a grande novidade é que a construção de uma cidadania democrática no
a retomada e o intenso reexame do conceito de so- âmbito do capitalismo não pode, por seu turno,
ciedade civil” (2000, cap. 8). prescindir do Estado” (Fábio W. Reis, 2000, p. 256).

4 A discussão a respeito do “Terceiro Setor” polariza-se


freqüentemente entre a aceitação entusiasmada e a
recusa categórica, ambas revestidas de idêntico ardor
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