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A instigante e complexa história da leitura:

apontamentos teóricos e metodológicos


ANDRÉ DIONEY FONSECA*

Resumo
Neste artigo apresento algumas questões teóricas e metodológicas sobre um dos
mais promissores veios de pesquisa da chamada Nova História Cultural: a
história da leitura. Discutem-se as principais dificuldades encontradas pelos
pesquisadores de diversas áreas interessados em perscrutar a leitura em uma
perspectiva histórica, sobretudo em relação às fontes que permitem acessar as
leituras antigas, e também os caminhos metodológicos para enfrentar esses
problemas apontados por Roger Chartier e Robert Darnton, autores que se
notabilizaram no cenário historiográfico internacional por seus estudos sobre a
leitura. Em complementação às considerações desses dois historiadores destaco
ainda a contribuição de Michel de Certeau, estudioso que não elegeu a leitura
especificamente como objeto de estudo, mas que contribuiu decisivamente para
a consolidação desse campo de estudo histórico.
Palavras-chave: História da leitura; teoria; metodologia.
Abstract
In this article I make some theoretical and methodological discussions about one
of the most promissory veins of New History Cultural: the history of reading. I
discuss the main difficulties found by researchers from many areas interested in
the scrutiny of reading in a historical perspective, especially in relation to the
sources that allow access to old readings, and also the methodological ways that
can be used to face the problems indicated by Roger Chartier and Robert
Darnton, both notable in the international historiography scenario because of
their studies about readings. In addition to the approaches of these two
researches I emphasize the contribution by Michel de Certeau, a scholar who did
not elect the reading as his mainly object of study, but who contributed
decisively to the consolidation of this area of historiography.
Key words: history of the reading; theory; methodology.

*
ANDRÉ DIONEY FONSECA é Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo
(FFLCH/USP); Membro do Grupo de Pesquisa em História Religiosa e das Religiões (CNPq/UEM) e do
Grupo de Pesquisa em Teoria, metodologia e interpretações na história da historiografia no Brasil do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/UEMS).

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Nos anos oitenta um conjunto de Acessar o mundo dos leitores comuns e
revisões enriqueceram o campo teórico e percorrer os sinuosos caminhos de suas
metodológico da História. O uso de leituras é sem dúvida uma tarefa
noções como representação, prática, extremamente desafiadora.
narrativa, sensibilidades e imaginário, Desafiadora, porém, necessária, pois
em face da fragilidade de outras como nas últimas décadas, a historiografia
mentalidades é um exemplo desse tem demonstrado a importância da
momento em que se passou a falar em inserção nos estudos históricos do
“Nova História Cultural” (BURKE, cotidiano das pessoas comuns
2005). Distinguem-se aí, o historiador interseccionando-o a conjunturas e a
Roger Chartier com seus estudos sobre a acontecimentos relevantes do ponto de
história da leitura e teoria da História e vista histórico. É o que defende Peter
Michel De Certeau que, ao estudar a Burke ao afirmar:
reutilização e a (re)invenção do
Igualmente difícil de descrever ou
cotidiano a partir das escolhas dos
analisar é a relação entre as
sujeitos e suas relações com a cultura estruturas do cotidiano e a mudança.
material existente em determinados Visto de seu interior o cotidiano
contextos históricos, trouxe a discussão parece eterno. O desafio para o
sobre as noções de “construção cultural” historiador social é mostrar como
e de “apropriação cultural” (DOSSE, ele de fato faz parte da história,
2003). relacionar a vida cotidiana aos
grandes acontecimentos, como a
No entanto, o estudo das práticas Reforma ou a Revolução Francesa,
culturais remete à recepção, à ou a tendências de longo prazo,
apropriação cultural, ou seja, ao como a ocidentalização ou ascensão
momento em que determinado bem do capitalismo (BURKE, 1992, p.
cultural chega às mãos de um 24).
consumidor que dele pode fazer
diferentes usos, inclusive usos que Peter Burke ressalta que esse novo
distam do que fora pensado por aqueles olhar historiográfico permite superar
que produziram esse bem cultural. Em se modelos deterministas de explicação
tratando da história da leitura, que na social já que as análises não ficam
perspectiva da “Nova História Cultural” restritas apenas às regras impostas pela
tem por objetivo central compreender religião, pelo Estado, ou quaisquer
como os indivíduos leram e deram outras normatizações sociais, mas
sentido às mensagens contidas nos textos buscam evidenciar as liberdades, os
de natureza diversa, há um elemento desvios, as táticas das pessoas comuns
complicador: como acessar as leituras que ora transigem, ora burlam as
antigas se o ato da leitura é uma normas que lhe são impostas de cima
atividade extremante subjetiva e que tão para baixo aproveitando-se das
poucos rastros deixa para a posteridade? inconsistências e incoerências dos
Esse é um ponto que tem suscitado sistemas sociais (BURKE, 1992, p. 24).
debates nos últimos anos entre os Como indica Roger Chartier, nos
estudiosos ocupados com a história da estudos históricos, essa perspectiva leva
leitura, conforme indica a indagação de a “repensar totalmente a relação entre
um dos mais importantes historiadores um público designado como popular e os
desse tema: “a leitura possui uma produtos historicamente diversos (livros
história. Mas como recuperá-la?” e imagens, sermões e discursos, canções,
(DARNTON, 1992, p. 200). romances-fotográficos ou programas de

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televisão) propostos para seu consumo construído uma significação
(CHARTIER, 2002, p. 53). Para (CHARTIER, 1990, p. 122).
Chartier, as análises devem contrapor os
dispositivos, discursivos ou De acordo com Chartier (1994, p. 11):
institucionais, que buscam disciplinar os “um texto só existe se houver um leitor
corpos, as práticas e modelar, por meio para lhe dar um significado”, mesmo nos
da ordenação regrada dos espaços, as impressos minuciosamente escritos e
condutas e os pensamentos, às táticas de editados para controlar os sentidos
consumo desenvolvidas pelos indivíduos atribuídos às mensagens, não há como
sobre os quais recaem todas as inscrever no texto um modelo fechado
“tecnologias da vigilância e da de leitura. Contra a passividade que
inculcação”. O cruzamento dos tradicionalmente foi atribuída à figura do
dispositivos de controle com práticas de leitor, Chartier lembra que a leitura é
consumo revela que: “longe de terem a uma atividade que permite a
absoluta eficácia aculturante que lhes é reapropriação, o desvio, a desconfiança,
atribuída com demasiada frequência, a resistência. Sendo um espaço aberto a
esses dispositivos [de controle] (...) leituras múltiplas, os textos, na visão de
deixam necessariamente um lugar, no Chartier, não podem “ser apreendidos
momento em que são recebidos, à nem como objetos, cuja distribuição
variação, ao desvio, à reinterpretação” bastaria determinar, nem como
(CHARTIER, 2002, p. 53). entidades, cuja significação seria
universal. Devem ser relacionados à rede
Roger Chartier em diversas publicações contraditória das utilizações que os
demonstra, entretanto, as dificuldades constituíram historicamente”
envolvidas nessa perspectiva de análise, (CHARTIER, 2002, p. 53). O autor
sobretudo no que se refere à história da complementa:
leitura e apresenta sua opção
metodológica para o enfrentamento dos Daí a seleção de dois modelos de
desafios que se impõem aos compreensão para explicar os textos,
historiadores preocupados com as os livros e as suas leituras. O
primeiro põe em contraste disciplina
diferentes formas de leitura a que estão
e invenção, considerando estas duas
sujeitos os impressos em diferentes categorias não como antagônicas,
momentos históricos. mas como sendo geridas a par. Todo
o dispositivo que visa criar controle
A história das práticas de leitura na e condicionamento segrega sempre
concepção de Chartier tem por objetivo tácticas que o domesticam ou o
inferir sobre a aparente contradição subvertem; contrariamente, não há
existente entre o “caráter todo-poderoso produção cultural que não empregue
do texto” e a “liberdade primordial do materiais impostos pela tradição,
leitor”. Em outras palavras: pela autoridade ou pelo mercado e
que não esteja submetida às
identificar para cada época e para vigilâncias e às censuras de quem
cada meio as modalidades tem poder sobre as palavras ou os
partilhadas de ler – aos quais dão gestos. A oposição é demasiado
formas e sentidos aos gestos simples entre espontaneidade
individuais – e que coloca no centro “popular” e coerção das instituições
de sua interrogação os processos ou dos dominantes: o que é preciso
pelos quais, face a um texto é reconhecer é o modo como se
historicamente produzido um articulam as liberdades
sentido e diferenciadamente condicionadas e as disciplinas

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derrubadas (CHARTIER, 1990, p. No entanto, pesquisar os impressos
137). levando em conta as diferentes formas
de recepção a que eles estão sujeitos é
Reside aí o grande desafio de toda uma tarefa muito complexa, por isso, a
pesquisa sobre as práticas de leitura, pois solução apresentada por Chartier traz em
mesmo não havendo mais dúvidas sobre si uma nova dificuldade a ser enfrentada:
a tensão existente entre a tentativa do a raridade das fontes que permitem
autor e/ou editor em impor por meio de reconstituir as leituras ordinárias.
seus textos uma “ordem” e “as Segundo Chartier (2009), as fontes que
liberdades” do leitor, também é trazem indícios diretos sobre as formas
concepção assente que o acesso às individuais de leitura são encontradas
leituras antigas, capazes de lançar luzes somente em ocasiões “fora do comum” e
sobre essa tensão, não é por mais importante que possa ser esse
empreendimento fácil para o tipo de registro para o acesso às
pesquisador (CHARTIER, 2004). diferentes formas de apropriação dos
impressos, eles não resolvem por si só o
De fato, a identificação das modalidades
implexo estudo da recepção. Roger
partilhadas de leitura, da produção
Chartier fala das limitações desse tipo de
histórica do sentido e dos processos que
material nos seguintes termos:
levam a diferentes significações não é
um empreendimento simples. Tem-se a Esses testemunhos, que se devem
leitura que é, no dizer de Chartier coletar cuidadosamente, apresentam
(1990), prática criadora, uma atividade evidentemente um problema, na
produtora de sentidos singulares, de medida em que não é simples
significações que não são redutíveis às separar aí o que é uso comum e
intenções dos autores ou de quem hábito pessoal, exemplaridade social
produz o impresso e há também o autor, e especificidade individual. Acima
o comentador e/ou editor dos textos que de tudo, sua raridade impede que
tentam exercer um controle sobre o sejam considerados como únicos
sentido que os leitores vão atribuir aos vestígios a partir dos quais se pode
construir uma história da leitura, que
impressos, visando aproximá-los ao
não pode ser uma coleção de
máximo de uma “compreensão correta”, estudos de caso (CHARTIER, 2009,
de uma “leitura autorizada”. p. 96).
Para Chartier, são nas fendas dessa À vista desse problema, Roger Chartier
tensão que deve operar a história da propõe um estudo das práticas de leitura
leitura, considerando a relação entre a inscritas no próprio objeto impresso, já
“liberdade dos leitores” e as “tentativas que todo texto, segundo Chartier “traz
de controle dessa liberdade”. Para em suas linhas os vestígios da leitura que
analisar a tensa relação entre o leitor e seu editor supõe existir nele e nos limites
quem escreve ou produz o texto, de sua possível recepção” (CHARTIER,
Chartier propõe que o historiador 2009, p. 96). Nessa definição, uma
percorra um duplo caminho: “identificar história da leitura deve considerar que os
a diversidade das leituras antigas a partir sentidos atribuídos a um texto dependem
de seus esparsos vestígios e reconhecer de uma série de dispositivos e regras que
as estratégias através das quais autores e permitem e restringem a formação
editores tentavam impor uma ortodoxia
desses sentidos. Deve-se considerar,
do texto, uma leitura forçada”
ainda, que o “mundo do leitor” está
(CHARTIER, 1990, p. 123).
ligado à “comunidade de interpretação”

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a que pertence, em que se partilham um passou por uma série de mudanças
conjunto de competências, de normas, de tipográficas nas mãos dos editores de
usos e de interesses, daí a importância Troyes que o remendaram,
atribuída por Chartier à “materialidade fragmentaram a narrativa em unidades
dos textos” e à “corporalidade dos simples, subdividiram os parágrafos e
leitores” (CHARTIER, 2002, p. 258). O multiplicaram o número de capítulos.
processo pelo qual são atribuídos Com isso, Chartier demonstrou que a
sentidos aos materiais impressos só nova estrutura tipográfica da novela de
podem ser reconstituídos a partir da Quevedo implicava um novo público e
relação entre três aspectos: “o texto, o um novo tipo de leitura.
objecto que lhe serve de suporte e a
prática que dele se apodera” Mesmo reconhecendo os avanços desse
(CHARTIER, 1990, p. 127). modelo de pesquisa que busca mapear as
leituras inscritas no próprio texto, Robert
Para Robert Darnton, entretanto, a Darnton ressaltou: “exatamente como [a]
metodologia de Roger Chartier em suas recepção ocorr[e], permanec[e] um
pesquisas sobre história da leitura, mistério, porque Chartier se limita a
embora tenha trazido grandes analisar o livro como um objeto físico”
contribuições ao apontar a importância (DARNTON, 1992, p. 230-231).
da materialidade dos impressos, dos
suportes pelos quais os textos chegam Isto é, por não ter acesso direto a
até os leitores e a compreensão das registros de leitura dos homens e
diferentes formas como um texto pode mulheres que movimentaram por muito
ser lido e interpretado, não consegue tempo o mercado literário conhecido
lançar luzes sobre a apropriação dos como Bibliothèque Bleue, as análises de
impressos (DARNTON, 1992). Roger Chartier ficaram circunscritas ao
leitor implícito no texto a partir do que
Ao se referir à pesquisa de Roger era idealizado pelos editores.
Chartier sobre um clássico espanhol, A
historia de la vida de Búscon, de Para fugir de uma análise que se volte
Francisco Quevedo, Robert Darnton somente à materialidade dos textos ou
reafirma a importância desse que considere somente o mundo do
pesquisador francês para a história da leitor sem levar em conta o trabalho de
leitura, mas ressalta que a apropriação edição que pode provocar profundas
do texto de Quevedo pelos leitores lhe mudanças no suporte material dos
escapa pela falta de registros diretos de textos, Darnton propõe um modelo que
leitura. A pesquisa de Chartier conjugue a “análise textual” com o que
comentada por Robert Darnton trata ele chama de “pesquisa empírica”:
especificamente das edições do texto de Por isso eu argumentaria em prol de
Francisco Quevedo, preparadas em uma estratégia dupla, que
meados do século XVII pelas editoras combinaria a análise textual com a
Oudot e Garnier da comunidade de pesquisa empírica. Dessa maneira,
Troyes. Nesse estudo, Chartier poderia ser possível comparar os
demonstrou que houve muitas leitores implícitos do texto com os
adaptações que levaram em conta o leitores reais do passado e, através
público a que se destinavam as edições dessas comparações, desenvolver
populares do livro A historia de la vida tanto uma história, quanto uma
de Búscon, texto originalmente escrito teoria da reação do leitor
(DARNTON, 1992, p. 299).
para um público sofisticado, mas que

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Diferentemente de Roger Chartier, analisada por Jean Hébrard (2009), ou o
Darnton considera que os registros célebre estudo de Carlo Ginzburg (1987)
particulares de leitura são fontes sobre o moleiro Menocchio ou ainda as
extremante importantes e valiosas para a pesquisas de Robert Darnton (2009)
história da leitura, pois embora escassas sobre o leitor Jean Ranson, para citar
e em muitos casos extremamente apenas alguns exemplos.
fragmentadas, elas são um canal
privilegiado de acesso às antigas Se nesse modelo de pesquisa histórica as
leituras. Para Darnton “se a experiência “pessoas comuns” ganharam
da grande massa de leitores está além do centralidade, o estudo do cotidiano
alcance da pesquisa histórica, os tornou-se condição indispensável, porque
historiadores deveriam ser capazes de é no cotidiano que, essas pessoas
captar algo do que a leitura significava protagonistas da história, fazem suas
para poucas pessoas que delas deixaram escolhas, negociam, resistem às pressões
registros” (DARNTON, 1992, p. 224). conjunturais, promovem
descontinuidades no processo histórico.
Se não representam o todo, as anotações Conforme Michel de Certeau:
particulares de leitura trazem preciosas [...] A uma produção racionalizada,
informações sobre como se comportava expansionista além de centralizada,
um determinado leitor em determinada barulhenta e espetacular,
época. É preciso ter em mente que os corresponde outra produção,
registros de um único leitor, se qualificada de ‘consumo’: esta é
contextualizados, podem contribuir para astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo
a compreensão das práticas de leitura em tempo ela se insinua ubiquamente,
diferentes grupos sociais e em diferentes silenciosa e quase invisível, pois não
momentos históricos, pois o leitor que se faz notar com produtos próprios,
mas nas maneiras de empregar os
deixou para a posteridade seus
produtos impostos por uma ordem
apontamentos de leitura pertencia a um econômica dominante (CERTEAU,
grupo social específico e realizou suas 1994, p. 39).
leituras em uma determinada época.
Por isso, o conceito de “apropriação”,
Mesmo com todas essas dificuldades sistematizado por Michel de Certeau em
teóricas e metodológicas, a história da sua obra A invenção do cotidiano,
leitura tem sido um dos mais instigantes adquiriu importância nos estudos
objetos de estudo das últimas décadas históricos nas últimas décadas. Nas
por dar voz a personagens até então páginas desse livro, publicado em 1980,
silenciadas nas análises que focavam o Certeau perscruta as ações cotidianas
texto e não os usos e interpretações dos dos consumidores de objetos culturais e,
textos. Os antigos leitores, muitas vezes ao dar visibilidade às táticas
obscurecidos nas pesquisas seriais e desenvolvidas cotidianamente pelos
quantitativas, ao ganharem destaque nos consumidores, revela que o consumidor,
estudos históricos mostraram que havia longe da passividade que correntemente
uma grande distância entre o prescrito e lhe foi atribuída, na verdade, ao se
o vivido, entre o leitor idealizado e o apropriar de um bem cultural, exerce
leitor real, entre a interpretação uma assimilação astuta, capaz de driblar
considerada correta pelo autor e/ou os mais rígidos cânones de controle e
editor e a compreensão adquirida no ato condicionamento. Nesse sentido, não se
da leitura. Basta lembrar a trajetória pode identificar ou qualificar o
extraordinária de Jamerey-Duval consumidor pelos produtos jornalísticos

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ou comerciais que ele assimila, pois há figura do consumidor aquele papel de
uma grande distância entre a posse e o passividade, dando-lhes destaque como
uso desses produtos por parte de quem sujeitos históricos. É o que se pode notar
os adquire (CERTEAU, 1994, p. 50). nas palavras de Certeau: “as estratégias
apontam para a resistência que o
Assim as reflexões de Michel de Certeau estabelecimento de um lugar oferece ao
servem como referencial metodológico gasto do tempo; as táticas apontam para
para os estudos históricos sobre a leitura, uma hábil utilização do tempo, das
sobretudo a sistematização das noções e ocasiões que apresenta e também dos
estratégia e tática que nos estudos de jogos que introduz nas fundações de um
Certeau sobre as práticas cotidianas, poder” (CERTEAU, 1994, p. 102).
serviram como importante instrumental
teórico. Noções importantes por As resistências ocorrem a partir das
revelarem relações de força que se práticas cotidianas por meio das quais os
tencionam na teia social, em que há uma indivíduos agem e, mesmo sem a
série de produções ditadas pelos intenção de criar, acabam inventando,
“dominantes” que se contrapõem com as fabricando novas práticas culturais.
diferentes apropriações dessas produções Dentre as práticas cotidianas que
pelos “dominados”. A estratégia diz “produzem sem capitalizar”, Certeau
respeito às ações daqueles que detêm o (1994) destaca a leitura, por ser essa
poder sobre os instrumentos de atividade “foco exorbitado da cultura
propagação de normas e regras de contemporânea e de seu consumo”.
natureza diversa. A noção de estratégia
Como mostrou Certeau (1994, p. 265) a
é definida por Certeau como o:
leitura é um exercício de errâncias e
[...] cálculo das relações de forças inventividades que jogam com as
que se torna possível a partir do expectativas, as astúcias e as
momento em que um sujeito de normatividades das obras lidas. A página
querer e poder é isolável de um impressa é para Michel de Certeau “[...]
‘ambiente’. Ela postula um lugar o lugar onde se produz o encontro,
capaz de ser circunscrito como um
sempre diferente, entre a palavra já
próprio e portanto capaz de servir de
base a uma gestão de suas relações
escrita e os novos sentidos que os
com uma exterioridade distinta. A leitores lhe vão dando” (CERTEAU,
nacionalidade política, econômica 1994, p. 264).
ou científica foi construída segundo
Para Certeau, em uma sociedade
esse modelo estratégico
(CERTEAU, 1994, p. 46).
marcada pela necessidade cada vez mais
exacerbada do exercício de leitura de
A noção de tática é utilizada por Michel textos distribuídos nos mais variados
de Certeau para analisar como os suportes, a imagem de pessoas com seus
indivíduos se apropriam dos produtos olhos fixos em conjuntos de letras
que têm por intenção exercer variadas tornou-se cena corriqueira nas praças,
formas de controle sobre os sujeitos. Por nas casas, nas escolas, nas igrejas entre
meio das táticas, considerada por outros lugares. Tal disseminação,
Certeau (1994, p. 101) como “a arte do todavia, muitas vezes fez com que a
fraco”, os consumidores são capazes de complexidade envolvida no ato da
subverter as intenções inscritas nos leitura fosse esquecida por muitos
produtos, lançando mão de usos estudiosos que incorriam em dois graves
inventivos, construção de novos problemas: 1) a preocupação com a
sentidos, consumos astutos que tiram da posse dos impressos em detrimento dos

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usos aos quais estavam sujeitos esses CERTEAU, Michel De. A invenção do
bens culturais; 2) e a passividade cotidiano: artes do fazer. 4ª ed., tradução de
Epharain Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Forense
atribuída ao leitor, como se tudo o que Universitária, 1994.
fosse lido passasse automaticamente a
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a
ser aplicado no plano prático sem
história entre as incertezas e inquietude.
seleção, omissão ou bricolagem. Contra Tradução Patríca Chittoni Ramos. Porto Alegre:
esse posicionamento, Certeau lembrou Editora Universidade/UFRGS, 2002.
que a leitura é uma atividade silenciosa __________. A história cultural: entre práticas e
extremamente complexa: “flutuação representações. Tradução de Mari Manuela
através da página, metamorfose do texto Galhardo. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro:
pelo olho que viaja, improvisação e Bertrand Brasil, 1990.
expectação de significados induzidos de __________. A ordem do livro. Leitores, autores
certas palavras, intersecções de espaços e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e
escritos, dança efêmera” (CERTEAU, XVIII. Tradução de Mary Del Priori. Brasília:
1994, p. 49). Editora Universidade de Brasília, 1994.
__________. Do livro à leitura. In: CHARTIER,
Como se pôde notar, a abordagem da Roger. Práticas de Leitura. Tradução de
história da leitura é em si mesma Cristiane Nascimento. 4° Ed. São Paulo: Estação
razoavelmente problemática. Contudo, Liberdade, 2009. p. 77-104.
as novas possibilidades teóricas e DARNTON, Robert. “A leitura rousseauista e
metodológicas de pesquisa têm um leitor ‘comum’ do século XVIII”. In:
encorajado estudiosos de diversas áreas CHARTIER, Roger (Org.). Práticas de leitura.
a se lançarem na busca pelos elementos Tradução de Cristiane Nascimento. Práticas de
Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. p.
históricos envolvidos na produção, 143-176.
circulação e apropriação de impressos,
como atesta o aumento significativo de __________. História da Leitura. In: BURKE,
Peter (org.). A Escrita da História: novas
estudos sobre a história da leitura perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São
apresentados nos programas de Pós- Paulo, Editora da UNESP, 1992, 2ª. ed., p. 199-
Graduação e nos congressos 236.
especializados como o já consolidado DOSSE, François. A história. Tradução Maria
Congresso de Leitura do Brasil. Mas, Elena Ortiz Assumpção. Bauru: EDUSC, 2003.
seguramente ainda há muito a ser feito GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o
nesse amplo campo de pesquisa, campo cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido
complexo no qual, até o presente pela Inquisição. São Paulo: Companhia das
momento, sublinhe-se, as interrogações Letras, 1987.
ultrapassam com folgada vantagem as HÉBRARD, Jean. O autodidatismo exemplar.
respostas conclusivas. Como Valentin Jamerey-Duval aprendeu a ler.
In: CHARTIER, Roger. Práticas de Leitura.
Tradução de Cristiane Nascimento. 4° Ed. São
Referências Paulo: Estação Liberdade, 2009. p. 35-73.

BURKE, Peter (org.). A Escrita da História:


novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. Recebido em 2013-03-02
2ª. ed. São Paulo, Editora da UNESP, 1992. Publicado em 2013-05-13
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

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