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“Um mapa do mundo que não inclua o país da utopia não merece sequer a pena
de uma olhadela” – Oscar Wilde1.
1 WILDE, Oscar. “The Soul of Man under Socialism” (1891), in WILDE, Oscar. The Soul of Man under
Socialism and Selected Critical Prose, ed. by Linda C. Dowling. Harmonsdworth: Penguin, 2001, p.
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2 “Nègre”, no texto original. Mbembe analisa o termo “negro” como uma construção histórica da longa
duração referida não apenas aos africanos e afrodescendentes, porque se constrói como sinônimo de
uma “outredade absoluta”. Para o autor, o termo negro diz respeito a uma “ficção útil”, que ultrapassa
a questão da cor da pele, a origem ou a localização geográfica do sujeito negro.
associado à “escuridão”, às “sombras”, “ao instinto sexual não domesticado” (cf.
MBEMBE, 2014, p. 194). É essencialmente um conceito forjado para significar
exclusão.
Last but not least, Crítica da razão negra, refere-se ao devir-negro do mundo,
expressão que permite ao autor pensar a condição de outros sujeitos racializados –
muçulmanos, imigrantes, deslocados/ refugiados etc. – como os “novos negros” do
mundo atual, e isto reforça a ideia segundo a qual a categoria negro não passa de
uma “ficção útil” (cf. MBEMBE, 2014, p. 26). Para o autor, o momento é azado para
isso, pois a Europa não é mais o centro de gravidade do mundo: o “hemisfério
ocidental que se considera o centro do globo”: o país natal da razão, da vida
universal e da verdade da humanidade (MBEMBE, 2014, p. 27). Chegou o momento
de se pensar outra antropologia filosófica, e a África, neste momento em que o
mundo se “volta” para ela, poderá apontar e indicar rumos novos para toda a
humanidade, mediante os pressupostos da justiça, igualmente comum, do estatuto
humano e responsabilidade de vida para todos.
ii Síntese do curso “Violência sistêmica, resistências e processos de ressurreição”
de consciência hipertrofiada”. É assim que este homem vê, compreende e vive no mundo. Embora
esteja de olhos fixos no “belo e no sublime”, ele não consegue pensar em nada, senão na própria “dor
de dentes” e nos incômodos que isso lhe traz. O homem do subterrâneo é “supersticioso”, acredita na
ciência, mas vive em si, sob uma constante relação mimética com um rival, que sequer ele sabe o
nome. Assim, cativo e “doentio” não consegue enxergar no outro um potencial parceiro de diálogo,
mas alguém, que toma na sua imaginação, proporções tão monstruosas e transcendentes. O homem
do subsolo vive apenas destilando amargura e escárnio contra as “almas idealistas” de seu tempo, e
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movimento a potência da gratuidade, que na relação com-o-outro não o subjugue,
mas abra janelas solucionadoras dos nós do ódio, do ressentimento etc., mediante a
reconciliação e o perdão (cf. II parte do curso).
Uma ferramenta importante e levada a cabo pelo prof. Mendonça-Álvarez, foi
o profícuo diálogo entabulado com pensadores dos vários saberes, teólogos,
filósofos, sociólogos, psicanalistas, antropólogos, literatos etc., para recuperar uma
das noções capitais da teologia, a saber: o diálogo com os múltiplos campos do
conhecimento humano. Essa intuição faz-nos recordar que o cristianismo se
caracterizou, entre outras coisas, como uma “episteme do sem sentido, da abertura
e do vazio”. Nesse tempo de secularização, a experiência cristã pode dizer ao
mundo algo com sentido, porque carrega em si a mística de abertura, da vacuidade
e do vazio, ambos prenhes de sentido.
Urge, nos tempos pós-modernos, recuperar o caráter messiânico e teologal
da história. O cristianismo como narrativa da fração do pão, do partir e repartir o pão
pode acenar para uma virada da lógica predominante na cultura do mundo atual. De
fato, o cristianismo – ou melhor, o pensamento judaico-cristão – confronta o sonho
moderno cujo centro é o sujeito (cf. “paradigma Atenas”), e se debruça sobre a
“experiência das vítimas” (“paradigma Jerusalém/ Abraão-Sara”), numa atitude de
escuta, compreensão e libertação do próprio sonho iluminista da razão ocidental.
Suporte importante a esse respeito é dado pela “teoria” mimética de René
Girard (1923-2015). Numa aguda compreensão das culturas, onde se constata um
assassinato fundador, Girard, descobre já aí o caráter mimético, violento e sacrificial
do ser humano, que reza ser as “vítimas culpadas (estão sempre equivocas) e as
comunidades inocentes (‘os perseguidores estão com a razão’)”5. Nesse processo
há uma figura que rege a ordem e ao mesmo tempo a desordem no mundo: Satã, “o
acusador”6, que tem centralidade (“mestre do mecanismo vitimário”) na feitura de um
ciclo mimético iniciado com o desejo e as rivalidades, desdobra-se nos escândalos,
instaurando uma crise mimética que, finalmente, desemboca no mecanismo
vitimário, no qual um sujeito pagará pelo que é de responsabilidade de todos. Na
antiga ordem sacrificial, a crise mimética era resolvida mediante a deflagração do
mecanismo expiatório, que permitia canalizar toda a violência contra um único
indivíduo, o “bode expiatório”. Para Girard Jesus diagnostica a “raiz” do desejo
mimético e demonstra a falsa paz oferecida pelo mecanismo vitimário. Com efeito, “a
palavra evangélica é a única a problematizar, verdadeiramente a violência humana”.
Destarte, aqueles que acusam a vítima são a voz de Satã, ao passo que
Cristo é a voz da defesa, que nos avisa: “Quem de vós estiver sem pecado, atire
nela uma pedra” (Jo 8,7b).
tudo não passa de “palácios de cristal”, essas sutilezas do belo e sublime, são quimeras do “homem
de ação”, que reduz os anseios da alma humana ao bem-estar material, segundo o credo positivista.
Por isso, o homem do subsolo preferirá sua existência de zombaria e torpeza, de tédio e inação, a
“consciência hipertrofiada” de quem conhece a essência irredutível do ser humano. DOSTOIÉVSKI,
Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 07-54.
5 GIRARD, René. Aquele por quem o escândalo vem. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 82.
6 A palavra hebraica Satã ()שטָ ן,
ָ significa “adversário”, “inimigo” (cf. 1Rs 11,14.23); tradução de
ἐπίβουλος (conspiração contra), 1Sm 29,4; também “acusador”, tradução de ὁ διάβολος (“difamador”,
“caluniador” (cf. Jó 1,6; Zc 3,1). NIELSEN, K. ש ָטן,
ָ in BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN,
Helmer (eds.). Grande Lessico dell’ Antico Testamento, VIII. Brescia: Paideia Editrice, 1993, p. 705-
712; BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard (eds.). Diccionario exegético del Nuevo Testamento, I.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005, p. 898-899.
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Em suma, Cristo convida o ser humano a cortar pela raiz as rivalidades
miméticas, superando as rivalidades e a espiral de violência. E elucida Girard: “o
homem nunca é vítima de Deus, Deus é sempre vítima do homem”7.
Como abordar criteriosamente a noção da “dor, memória, justiça e do perdão”
das vítimas, tendo em mente a potência da ressurreição (parte ii)?
“A história dos oprimidos é uma história descontínua, enquanto a continuidade
é a dos opressores”8. Enquanto a ideia da continuidade esmaga e nivela tudo à sua
passagem, a ideia de descontinuidade é o fundamento da autêntica tradição. É do
corte do tempo que surge o novo: o sentido. Por falar em sentido, o prof. Mendonça-
Álvarez lança mão de Agamben para dialogar com Paulo e destaca a noção
inovadora do tempo (καιρός) do apóstolo para abordar os sofrimentos das vítimas
sob compreensão escatológica. Para Paulo, os seus sofrimentos, de algum modo,
estão associados à tribulação escatológica como participação nos sofrimentos do
Messias (cf. 2Ts 1,3-12; 2Cor 1,5-7; 4,8-12; Cl 1,22s).
Sói acontecer de se confundir o tempo messiânico com o tempo escatológico.
O pior que se pode fazer à mensagem messiânica não é confundi-la com a profecia,
que concerne ao futuro, mas com o apocalipse, que contempla o fim do tempo. O
discurso apocalíptico situa-se no último dia, o “dia da cólera”: ele vê o fim chegar e
descreve o que vê. O tempo que vive o apóstolo não é o eschaton (ἔσχατον), não é
o fim do tempo. O messianismo não é o fim do tempo, mas o tempo do fim (cf.
AGAMBEN, 2000, p. 63). O que interessa ao apóstolo não é o último dia, o dia em
que o tempo acaba, mas o tempo que se contrai e que começa a acabar (1Cor
7,29), ou seja, o tempo que fica entre o tempo e o fim9.
Emerge assim, a atenção para o messiânico, e a correlativa necessidade de
repensar o tempo e a história, bem como “temporalidade messiânica” (cf. W.
Benjamin) até o finito de uma compreensão do tempo associada “à justiça
vindicativa histórica”. Pensar a história a partir da temporalidade messiânica abre um
horizonte que faz refletir sobre o sofrimento e, principalmente, tornar-se solidário
com quem sofre e cogitar a cura e a justiça, vislumbrando a reconciliação e o perdão
(cf. “As comissões da verdade e reconciliação como mediação sócio-política do
luto”). A esse respeito é inolvidável o questionamento lançado pelos expoentes da
Escola de Frankfurt: “O que fazer para que os carrascos não triunfem e os justos
sejam aniquilados”? Este grito torna-se um imperativo ético-antropológico,
impulsiona o ser humano hodierno a construir ações performativas éticos de justiça
na comunidade como mediação e transformação da realidade presente.
No itinerário construído por Mendonça-Álvarez, o curso teve como
coroamento justamente pensar “a ressurreição como insurreição” (parte iii).
Nessa etapa conclusiva do curso, o prof. teceu as contribuições do pensar
teológico decolonial num diálogo crítico com TdL, considerando as contribuições de
pensadores “autóctones” e do pensamento hebreu. Tendo em mente a divisa de K.
Rahner, que se deve no século XXI, avançar teologicamente além da síntese
7 GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 236.
8 BENJAMIN, Walter. “Die Idee der Naturgeschichte (1932): Philosophische Frühschriften”, in
Gesammelte Schriften [Escritos completos], I, 3. Frankfurt: Suhrkamp, 2003, p. 1243.
9 O texto paulino reza literalmente: “o tempo (ὁ καιρός) já está a enrolar as velas” – συνεσταλμένος:
perf. pass. de συ(ν)- στέλλω – (1Cor 7,29). O tempo da oportunidade dada, está a enrolar as velas
como fazem os marinheiros quando a embarcação se aproxima da terra.
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Atenas-Jerusalém, incluindo Benares (o budismo). Pensar teologicamente no
contexto pós-moderno há que fazer uma crítica à razão instrumental. Para isso, a
teologia tem que encontrar as raízes do “vazio niilista” para pensar a si mesma. A
teologia pós-moderna terá em seu horizonte retrovisor uma referência à Shekinah,
ao vazio fecundo para compreender a misericórdia de Deus. Mendonça-Álvarez
considera que pensar o cristianismo pós-moderno há que considerar essas
características: deve ser anti-messiânico (cf. Ch. Duquoc, R. Girard, I. Ellacuría, J.
Alison), ter em mente a inteligência das vítimas, e ser um anúncio escatológico de
outro mundo possível e real desde a imaginação de Deus no compasso de cronos
(χρόνος) e kairós (καιρός) (cf. 1Cor 7,29; W. Benjamin, E. Schillebeckx), porque em
Jesus de Nazaré se cumpre as promessas messiânicas.
Desta sorte, a teologia fundamental em contexto pós-moderno, além de fazer
uma consistente crítica à razão moderna instrumental, propõe uma radicalização da
experiência hebreia do Deus compassivo (;רחֲ ִמים
ַ σπλαγχνίζομαι) com as vítimas e
os excluídos, assumindo a universidade do próximo, segundo a regra de ouro:
“Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo como a tu foste amado
(ḵāmochā- ”)כָמֹוָך.
Assim, descobre-se uma “gramática nova da ressurreição”, à qual permite
pensar a “ressurreição como insurreição, memória com dignidade, justiça e
esperança messiânica”. Essa intuição radical retorna às fontes cristãs primitivas,
mantém vivo seu caráter apocalíptico-messiânico, redescobre a potência
performativa da ressurreição (eficácia dos símbolos-sacramentos, recordação e
ritos), onde a exemplo do evento de Emaús (Lc 24,13-35), re-descobre e mantém a
presença-ausência própria de Jesus Cristo, o Emanuel, na história humana.
Mendonça-Álvarez possibilitou durante o curso ministrado na FAJE, um
aprofundamento e conhecimento ímpar na teologia fundamental, compreendo as
questões basilares que ela envolve hoje. E instigou seus ouvintes, parceiros no
diálogo teológico, a manter coragem e audácia de repensar a teologia hoje.
Numa síntese, o prof. Mendonça-Álvarez nos “diz” que há de sermos capazes
de repensar um novo e sólido modo de fazer teologia hoje, onde a crise da cultura e
do pensamento raso, pode significar uma crise de esperança, mas também
possibilitar um processo de μετάνοια (μετά + νοῦς): “mudança de razão” e
compreensão teológica, uma nova “virada e travessia copernicana”. A esperança
não se reduz a esperar que algo bom aconteça, que um futuro melhor se descortine.
Diria, pois, Paulo, “em (direção à) esperança fomos salvos” – τῇ γὰρ ἐλπίδι
ἐσώθημεν (Rm 8,24): esperar é caminhar na direção dos sonhos e dos ideais, sem
descuidar do engajamento perseverante. Pouco importa que nem sempre eles sejam
atingíveis, haja vista ter afirmado o poeta:
“que tristes os caminhos, se não fora a presença das estrelas distantes!10”
Mas,
“a verdade do humano não está no rol das datas da sua vida, mas no relato que cada
um faz das suas alegrias, sofrimentos e esperanças. A verdade do humano é a sua palavra
em eco à Palavra, tecida no diálogo interior em que o Verbo indica o caminho, a verdade e a
vida”11.
10 QUINTANA, Mário. Espelho mágico. Porto Alegre: Editora Globo, 1999, p. 36.
11 MOURÃO, José Augusto. Quem vigia o vento não semeia. Lisboa: Pedra Angular, 2011.
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Referências
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften, I. Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
CARCHIA, Gianni. Nome e imagine. Saggio su Walter Benjamin. Macerata:
Quodlibet, 2009.
AGAMBEN Giorgio. Il tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani.
Torino: Bollati Boringhieri, 2000.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000.
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio. Lisboa: Instituto
Piaget, 2002.
________. Evolução e conversão: diálogos sobre a origem da cultura. São
Paulo: É Realizações, 2011.
MENDONÇA-ÁLVAREZ, Carlos. O Deus escondido da pós-modernidade:
desejo, memória e imaginação escatológica. Ensaio de teologia fundamental pós-
moderna. São Paulo: É Realizações, 2011.