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Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE)

Curso: “Violência sistêmica, resistências e processos de ressurreição”


Prof. Dr. Carlos Mendoza-Álvarez, OP – Universidade Iberoamericana Cidade do
Messico
Aluno: Roberto Almeida da Paz

Apreciação do livro Crítica da razão negra

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra (Critique de la raison nègre); tradução


Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2013, 309p.

“Um mapa do mundo que não inclua o país da utopia não merece sequer a pena
de uma olhadela” – Oscar Wilde1.

“Crítica da razão negra”, de Achille Mbembe, é um livro que se situa na


fronteira entre filosofia, história e crítica, tornando assim, uma abrangente e
provocadora reflexão acerca dos conceitos seguintes: “raça”, “negro 2” e “África” no
Ocidente, e um panorama das relações raciais no mundo ocidental entre os séculos
XV e XVI.

Este livro – escrito à semelhança de um “rio com múltiplos afluentes”


(MBEMBE, 2014, p. 09) – é leitura obrigatória para os estudiosos e críticos que
almeja compreender seriamente as intricadas questões da relação entre etnia e
modernidade e, por conseguinte, “raça”, “Estado” e “mercado”.

A esses termos, aparentemente inocentes e já definidos, Mbembe os retorce


dialética e criticamente, exemplificando que o conceito de “raça” (ou “racismo”), por
exemplo, suscita ou engendra “um duplo, um substituto, um equivalente, uma
máscara, um simulacro”. Para ele, o racismo consiste, antes de mais, “em converter
em algo diferente, uma realidade diferente”. Além de ser uma força de desvio do real
e que fixa afetos, é igualmente, uma forma de distúrbio psíquico, e é por isso que o
seu conteúdo reprimido vem brutalmente à superfície. Ademais, afirma Mbembe,
“para o racista, ver um negro é ver que ele não existe”; que ele não é mais do que o
ponto de fixação patológico de uma ausência de relação (cf. MBEMBE, 2014, p. 66).
De fato, negro é aquele que é invisibilizado, “ninguém vê”, compreende etc. É

1 WILDE, Oscar. “The Soul of Man under Socialism” (1891), in WILDE, Oscar. The Soul of Man under
Socialism and Selected Critical Prose, ed. by Linda C. Dowling. Harmonsdworth: Penguin, 2001, p.
141
2 “Nègre”, no texto original. Mbembe analisa o termo “negro” como uma construção histórica da longa

duração referida não apenas aos africanos e afrodescendentes, porque se constrói como sinônimo de
uma “outredade absoluta”. Para o autor, o termo negro diz respeito a uma “ficção útil”, que ultrapassa
a questão da cor da pele, a origem ou a localização geográfica do sujeito negro.
associado à “escuridão”, às “sombras”, “ao instinto sexual não domesticado” (cf.
MBEMBE, 2014, p. 194). É essencialmente um conceito forjado para significar
exclusão.

Essa invisibilidade está no âmago do racismo, que além de negar o outro em


sua humanidade, se desenvolve como modelo legitimador da opressão, da violência
e da exploração. O racismo representa a escolha de quem deve ser eliminado, pela
morte: física, política ou simbólica. O ocidente criou uma efabulação sobre os
negros; um discurso acentuado pelo trabalho cotidiano que consiste em inventar,
contar, repetir e colocar em circulação fórmulas, textos, rituais, com o objetivo de
fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem
(MBEMBE, 2014, p. 58). Trata-se de um processo onde a ciência cria imaginários e
procura legitimá-los.

Com maestria e agudez Mbembe reflete o conjunto de discursos que dizem


quem é este homem-objeto, homem-mercadoria, homem-coisa, como deve ser
tratado, governado, em que condições se deve colocá-lo a trabalhar e como tirar
proveito dele. E isto revela a “tendencial universalização da conditio negra, a saber:
o devir-negro no mundo, à qual todos os humanos estão sujeitos dentro do sistema
neoliberal que, na ótica de Mbembe, baseia-se na visão segundo a qual todos os
acontecimentos e todas as situações do mundo vivo, se convertem em forma de
dinheiro e valor de mercado. Ora, por que então, esse sujeito contemporâneo,
descartável, solúvel..., concebido como um estatuto institucionalizado como padrão
universal de vida, é caracterizado como devir-negro do mundo? Pelo simples fato,
de Negro ser na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja “carne
foi transformada em coisa”, e o espírito em mercadoria – a cripta viva do capital”
(MBEMBE, 2014, p. 18).

E traz a lume estratos racistas, quase imperceptíveis, radicados na cultura e


no pensamento humano, ao afirmar que a raça não existe enquanto fato natural
físico, antropológico ou genético, sendo então, a redução do corpo e do ser vivo a
uma questão de aparência, de pele ou de cor. E isto desempenha um papel
importante no movimento que coisifica a pessoa, transformando-a em mercadoria.
Ademais, o conceito de raça apazigua odiando, mantém o terror e a prática do
“alterocídio”, que consiste em constituir o outro como “objeto intrinsecamente
ameaçador”, do qual é preciso desfazer-se, proteger, destruir etc. Nessa concepção,
a África representa um “não-lugar”, signo do atraso, da ausência de civilização e,
incapaz de contribuir para a humanidade. Disso decorrem as políticas de
segregação – o Apartheid – os mitos de superioridade racial e os deslocamentos
(“êxodos”) de inúmeras populações.

Ademais, Mbembe, recorre a muitos recursos provindos da literatura


contemporânea, que remetem à duplicidade e ao recobrimento da figura do negro,
linguagem sempre marcada pelo cunho da ambivalência, da repulsa, do encontro
atroz e do prazer perverso: o negro se identifica com o duplo, a sua sombra,
convertendo-se numa “espécie de fantasma”, alienado do próprio corpo (cf.
MBEMBE, 2014, p. 223).

Enfim, Mbembe discorre sobre o pensamento negro do século XX, analisando


variegadas propostas de emancipação que marcaram este período, entre as quais,
as propostas de Marcus Garvey (cf. p. 249-262), Aimé Césaire (cf. p. 262-267),
Frantz Fanon (cf. p. 268-286), e Nelson Mandela (cf. p. 286-289). A análise de
Mbembe é marcada pela coerência e acuidade, visando dividir o pensamento negro
contemporâneo sob dois períodos: a) o primeiro, onde o desejo de
autodeterminação passaria pela afirmação da diferença e celebração da negritude
(principalmente as contribuições de Aimé Césaire, cf. p. 262-267); b) o outro, do
século XXI, no qual se abraçaria o significante negro não como forma de
“autoafirmação” ou “autocompadecimento”, mas para melhor se livrar dele
(MBEMBE, 2014, p. 289-306).

Na ótica de Mbembe, o mundo globalizado requer uma crítica radical da raça,


capaz de abarcar os múltiplos saberes, principalmente a política, a ética, a partir da
qual seria possível passar da afirmação da diferença para uma afirmação da
comunidade humana (cf. Mbembe, 2014, p. 295-296).

Com efeito, para ser efetivamente emancipador hodiernamente, requer que o


negro abandone o papel de vítima e que os colonizadores assumam a sua
responsabilidade. Para tal, é importante insistir na lógica da justiça.

O Scholar camaronês – em sua Crítica da razão negra – procura dialogar e


compartilhar algumas ideias com Fanon, Deleuze, Foucault, pensadores africanos,
caribenhos, norte-americanos etc., com o intuito de erigir um arcabouço teórico de
“múltiplos saberes”. Denuncia as contradições do pensamento libertário e
nacionalista negro, ao ressaltar que as dívidas para com a “razão branca” e
insuficiências quanto às perspectivas de futuro.

Last but not least, Crítica da razão negra, refere-se ao devir-negro do mundo,
expressão que permite ao autor pensar a condição de outros sujeitos racializados –
muçulmanos, imigrantes, deslocados/ refugiados etc. – como os “novos negros” do
mundo atual, e isto reforça a ideia segundo a qual a categoria negro não passa de
uma “ficção útil” (cf. MBEMBE, 2014, p. 26). Para o autor, o momento é azado para
isso, pois a Europa não é mais o centro de gravidade do mundo: o “hemisfério
ocidental que se considera o centro do globo”: o país natal da razão, da vida
universal e da verdade da humanidade (MBEMBE, 2014, p. 27). Chegou o momento
de se pensar outra antropologia filosófica, e a África, neste momento em que o
mundo se “volta” para ela, poderá apontar e indicar rumos novos para toda a
humanidade, mediante os pressupostos da justiça, igualmente comum, do estatuto
humano e responsabilidade de vida para todos.
ii Síntese do curso “Violência sistêmica, resistências e processos de ressurreição”

O curso do prof. Dr. Carlos Mendonza-Álvarez – “Violência sistêmica,


resistências e processos de ressurreição” – ministrado na Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia (FAJE), teve como linha basilar: pensar a teologia fundamental
em tempos de globalização e de exclusão. Com pensar a tradição, categoria axial
(juntamente com a revelação) do tratado da teologia fundamental num contexto de
violência sistêmica e de uma mundialização-globalização excludente, e quais as
implicações desse “ethos” para a ressurreição? Como abordar criteriosamente os
pressupostos teológicos fundamentais da teologia da ressurreição – em contexto
pós-moderno e decolonial – sob o vislumbre da antecipação escatológica a partir
das vítimas?
Ao seguir essa vereda metodológica, o prof. Mendonça-Álvarez erigiu seu
curso construindo um corpus dialético capaz de contemplar: α) as “categorias
analíticas” (parte i); β) “dor, memória, justiça e perdão” (parte ii); γ) e “a ressurreição
como insurreição” (parte iii).
Na ouverture do curso, o prof. Mendonça-Álvarez, já acenou para um
horizonte que propunha cogitar a teologia em diálogo transversal com a pós-
modernidade, repensando a fé, a revelação e a tradição e, particularmente, a
ressureição, situadas no bojo da violência sistêmica e globalizante. Para Mendonça-
Álvarez, trata-se de (re)pensar e compreender a revelação como dinamismo que
acontece “más acá”, na imanência da história concreta, e não simplesmente
“alhures”, na transcendência. Com efeito, tal intuição possibilitará novos insights
sobre os conceitos fundamentais da teologia, tais como: “graça”, “redenção”,
“revelação”, “economia salvífica”, “justificação/ salvação” etc.
Uma ideia cara ao professor, que em filigrana acompanhou o curso, diz
respeito ao papel da teologia fundamental, situada na fronteira entre fé e razão, a
qual desde o “átrio dos gentios” – lança um convite as ciências naturais à razão. Isto
porque, a teologia fundamental é capaz de repensar os conceitos basilares da
experiência cristã, sobretudo, numa sociedade e cultura submetidas à violência
sistêmica. Assim, ela quer construir uma reflexão epistemológica, propondo uma
“maiêutica da razão”, proporcionar questionamentos críticos, e falar do Deus trino no
bojo da vulnerabilidade extrema, enquanto pura graça que “advém da superação da
rivalidade” e da experiência caimítica (Caim) do ser humano3.
Esse mister permite ao estudioso de teologia fundamental hoje, re-descobrir e
reinventar uma razão teológica capaz de fomentar e cultivar uma consciência
pensante (ao contrário de uma “consciência de camundongo”)4 para colocar em

3 MENDONÇA-ÁLVAREZ, Carlos. O Deus escondido da pós-modernidade: desejo, memória e


imaginação escatológica. Ensaio de teologia fundamental pós-moderna. São Paulo: É Realizações,
2011, p. 251.
4 Trata-se da brilhante intuição de Dostoiévski ao forjar o homem do subsolo como um “camundongo

de consciência hipertrofiada”. É assim que este homem vê, compreende e vive no mundo. Embora
esteja de olhos fixos no “belo e no sublime”, ele não consegue pensar em nada, senão na própria “dor
de dentes” e nos incômodos que isso lhe traz. O homem do subterrâneo é “supersticioso”, acredita na
ciência, mas vive em si, sob uma constante relação mimética com um rival, que sequer ele sabe o
nome. Assim, cativo e “doentio” não consegue enxergar no outro um potencial parceiro de diálogo,
mas alguém, que toma na sua imaginação, proporções tão monstruosas e transcendentes. O homem
do subsolo vive apenas destilando amargura e escárnio contra as “almas idealistas” de seu tempo, e
4
movimento a potência da gratuidade, que na relação com-o-outro não o subjugue,
mas abra janelas solucionadoras dos nós do ódio, do ressentimento etc., mediante a
reconciliação e o perdão (cf. II parte do curso).
Uma ferramenta importante e levada a cabo pelo prof. Mendonça-Álvarez, foi
o profícuo diálogo entabulado com pensadores dos vários saberes, teólogos,
filósofos, sociólogos, psicanalistas, antropólogos, literatos etc., para recuperar uma
das noções capitais da teologia, a saber: o diálogo com os múltiplos campos do
conhecimento humano. Essa intuição faz-nos recordar que o cristianismo se
caracterizou, entre outras coisas, como uma “episteme do sem sentido, da abertura
e do vazio”. Nesse tempo de secularização, a experiência cristã pode dizer ao
mundo algo com sentido, porque carrega em si a mística de abertura, da vacuidade
e do vazio, ambos prenhes de sentido.
Urge, nos tempos pós-modernos, recuperar o caráter messiânico e teologal
da história. O cristianismo como narrativa da fração do pão, do partir e repartir o pão
pode acenar para uma virada da lógica predominante na cultura do mundo atual. De
fato, o cristianismo – ou melhor, o pensamento judaico-cristão – confronta o sonho
moderno cujo centro é o sujeito (cf. “paradigma Atenas”), e se debruça sobre a
“experiência das vítimas” (“paradigma Jerusalém/ Abraão-Sara”), numa atitude de
escuta, compreensão e libertação do próprio sonho iluminista da razão ocidental.
Suporte importante a esse respeito é dado pela “teoria” mimética de René
Girard (1923-2015). Numa aguda compreensão das culturas, onde se constata um
assassinato fundador, Girard, descobre já aí o caráter mimético, violento e sacrificial
do ser humano, que reza ser as “vítimas culpadas (estão sempre equivocas) e as
comunidades inocentes (‘os perseguidores estão com a razão’)”5. Nesse processo
há uma figura que rege a ordem e ao mesmo tempo a desordem no mundo: Satã, “o
acusador”6, que tem centralidade (“mestre do mecanismo vitimário”) na feitura de um
ciclo mimético iniciado com o desejo e as rivalidades, desdobra-se nos escândalos,
instaurando uma crise mimética que, finalmente, desemboca no mecanismo
vitimário, no qual um sujeito pagará pelo que é de responsabilidade de todos. Na
antiga ordem sacrificial, a crise mimética era resolvida mediante a deflagração do
mecanismo expiatório, que permitia canalizar toda a violência contra um único
indivíduo, o “bode expiatório”. Para Girard Jesus diagnostica a “raiz” do desejo
mimético e demonstra a falsa paz oferecida pelo mecanismo vitimário. Com efeito, “a
palavra evangélica é a única a problematizar, verdadeiramente a violência humana”.
Destarte, aqueles que acusam a vítima são a voz de Satã, ao passo que
Cristo é a voz da defesa, que nos avisa: “Quem de vós estiver sem pecado, atire
nela uma pedra” (Jo 8,7b).

tudo não passa de “palácios de cristal”, essas sutilezas do belo e sublime, são quimeras do “homem
de ação”, que reduz os anseios da alma humana ao bem-estar material, segundo o credo positivista.
Por isso, o homem do subsolo preferirá sua existência de zombaria e torpeza, de tédio e inação, a
“consciência hipertrofiada” de quem conhece a essência irredutível do ser humano. DOSTOIÉVSKI,
Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 07-54.
5 GIRARD, René. Aquele por quem o escândalo vem. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 82.
6 A palavra hebraica Satã (‫)שטָ ן‬,
ָ significa “adversário”, “inimigo” (cf. 1Rs 11,14.23); tradução de
ἐπίβουλος (conspiração contra), 1Sm 29,4; também “acusador”, tradução de ὁ διάβολος (“difamador”,
“caluniador” (cf. Jó 1,6; Zc 3,1). NIELSEN, K. ‫ש ָטן‬,
ָ in BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN,
Helmer (eds.). Grande Lessico dell’ Antico Testamento, VIII. Brescia: Paideia Editrice, 1993, p. 705-
712; BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard (eds.). Diccionario exegético del Nuevo Testamento, I.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005, p. 898-899.
5
Em suma, Cristo convida o ser humano a cortar pela raiz as rivalidades
miméticas, superando as rivalidades e a espiral de violência. E elucida Girard: “o
homem nunca é vítima de Deus, Deus é sempre vítima do homem”7.
Como abordar criteriosamente a noção da “dor, memória, justiça e do perdão”
das vítimas, tendo em mente a potência da ressurreição (parte ii)?
“A história dos oprimidos é uma história descontínua, enquanto a continuidade
é a dos opressores”8. Enquanto a ideia da continuidade esmaga e nivela tudo à sua
passagem, a ideia de descontinuidade é o fundamento da autêntica tradição. É do
corte do tempo que surge o novo: o sentido. Por falar em sentido, o prof. Mendonça-
Álvarez lança mão de Agamben para dialogar com Paulo e destaca a noção
inovadora do tempo (καιρός) do apóstolo para abordar os sofrimentos das vítimas
sob compreensão escatológica. Para Paulo, os seus sofrimentos, de algum modo,
estão associados à tribulação escatológica como participação nos sofrimentos do
Messias (cf. 2Ts 1,3-12; 2Cor 1,5-7; 4,8-12; Cl 1,22s).
Sói acontecer de se confundir o tempo messiânico com o tempo escatológico.
O pior que se pode fazer à mensagem messiânica não é confundi-la com a profecia,
que concerne ao futuro, mas com o apocalipse, que contempla o fim do tempo. O
discurso apocalíptico situa-se no último dia, o “dia da cólera”: ele vê o fim chegar e
descreve o que vê. O tempo que vive o apóstolo não é o eschaton (ἔσχατον), não é
o fim do tempo. O messianismo não é o fim do tempo, mas o tempo do fim (cf.
AGAMBEN, 2000, p. 63). O que interessa ao apóstolo não é o último dia, o dia em
que o tempo acaba, mas o tempo que se contrai e que começa a acabar (1Cor
7,29), ou seja, o tempo que fica entre o tempo e o fim9.
Emerge assim, a atenção para o messiânico, e a correlativa necessidade de
repensar o tempo e a história, bem como “temporalidade messiânica” (cf. W.
Benjamin) até o finito de uma compreensão do tempo associada “à justiça
vindicativa histórica”. Pensar a história a partir da temporalidade messiânica abre um
horizonte que faz refletir sobre o sofrimento e, principalmente, tornar-se solidário
com quem sofre e cogitar a cura e a justiça, vislumbrando a reconciliação e o perdão
(cf. “As comissões da verdade e reconciliação como mediação sócio-política do
luto”). A esse respeito é inolvidável o questionamento lançado pelos expoentes da
Escola de Frankfurt: “O que fazer para que os carrascos não triunfem e os justos
sejam aniquilados”? Este grito torna-se um imperativo ético-antropológico,
impulsiona o ser humano hodierno a construir ações performativas éticos de justiça
na comunidade como mediação e transformação da realidade presente.
No itinerário construído por Mendonça-Álvarez, o curso teve como
coroamento justamente pensar “a ressurreição como insurreição” (parte iii).
Nessa etapa conclusiva do curso, o prof. teceu as contribuições do pensar
teológico decolonial num diálogo crítico com TdL, considerando as contribuições de
pensadores “autóctones” e do pensamento hebreu. Tendo em mente a divisa de K.
Rahner, que se deve no século XXI, avançar teologicamente além da síntese

7 GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 236.
8 BENJAMIN, Walter. “Die Idee der Naturgeschichte (1932): Philosophische Frühschriften”, in
Gesammelte Schriften [Escritos completos], I, 3. Frankfurt: Suhrkamp, 2003, p. 1243.
9 O texto paulino reza literalmente: “o tempo (ὁ καιρός) já está a enrolar as velas” – συνεσταλμένος:

perf. pass. de συ(ν)- στέλλω – (1Cor 7,29). O tempo da oportunidade dada, está a enrolar as velas
como fazem os marinheiros quando a embarcação se aproxima da terra.
6
Atenas-Jerusalém, incluindo Benares (o budismo). Pensar teologicamente no
contexto pós-moderno há que fazer uma crítica à razão instrumental. Para isso, a
teologia tem que encontrar as raízes do “vazio niilista” para pensar a si mesma. A
teologia pós-moderna terá em seu horizonte retrovisor uma referência à Shekinah,
ao vazio fecundo para compreender a misericórdia de Deus. Mendonça-Álvarez
considera que pensar o cristianismo pós-moderno há que considerar essas
características: deve ser anti-messiânico (cf. Ch. Duquoc, R. Girard, I. Ellacuría, J.
Alison), ter em mente a inteligência das vítimas, e ser um anúncio escatológico de
outro mundo possível e real desde a imaginação de Deus no compasso de cronos
(χρόνος) e kairós (καιρός) (cf. 1Cor 7,29; W. Benjamin, E. Schillebeckx), porque em
Jesus de Nazaré se cumpre as promessas messiânicas.
Desta sorte, a teologia fundamental em contexto pós-moderno, além de fazer
uma consistente crítica à razão moderna instrumental, propõe uma radicalização da
experiência hebreia do Deus compassivo (‫;רחֲ ִמים‬
ַ σπλαγχνίζομαι) com as vítimas e
os excluídos, assumindo a universidade do próximo, segundo a regra de ouro:
“Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo como a tu foste amado
(ḵāmochā- ‫”)כָמֹוָך‬.
Assim, descobre-se uma “gramática nova da ressurreição”, à qual permite
pensar a “ressurreição como insurreição, memória com dignidade, justiça e
esperança messiânica”. Essa intuição radical retorna às fontes cristãs primitivas,
mantém vivo seu caráter apocalíptico-messiânico, redescobre a potência
performativa da ressurreição (eficácia dos símbolos-sacramentos, recordação e
ritos), onde a exemplo do evento de Emaús (Lc 24,13-35), re-descobre e mantém a
presença-ausência própria de Jesus Cristo, o Emanuel, na história humana.
Mendonça-Álvarez possibilitou durante o curso ministrado na FAJE, um
aprofundamento e conhecimento ímpar na teologia fundamental, compreendo as
questões basilares que ela envolve hoje. E instigou seus ouvintes, parceiros no
diálogo teológico, a manter coragem e audácia de repensar a teologia hoje.
Numa síntese, o prof. Mendonça-Álvarez nos “diz” que há de sermos capazes
de repensar um novo e sólido modo de fazer teologia hoje, onde a crise da cultura e
do pensamento raso, pode significar uma crise de esperança, mas também
possibilitar um processo de μετάνοια (μετά + νοῦς): “mudança de razão” e
compreensão teológica, uma nova “virada e travessia copernicana”. A esperança
não se reduz a esperar que algo bom aconteça, que um futuro melhor se descortine.
Diria, pois, Paulo, “em (direção à) esperança fomos salvos” – τῇ γὰρ ἐλπίδι
ἐσώθημεν (Rm 8,24): esperar é caminhar na direção dos sonhos e dos ideais, sem
descuidar do engajamento perseverante. Pouco importa que nem sempre eles sejam
atingíveis, haja vista ter afirmado o poeta:
“que tristes os caminhos, se não fora a presença das estrelas distantes!10”
Mas,
“a verdade do humano não está no rol das datas da sua vida, mas no relato que cada
um faz das suas alegrias, sofrimentos e esperanças. A verdade do humano é a sua palavra
em eco à Palavra, tecida no diálogo interior em que o Verbo indica o caminho, a verdade e a
vida”11.

10 QUINTANA, Mário. Espelho mágico. Porto Alegre: Editora Globo, 1999, p. 36.
11 MOURÃO, José Augusto. Quem vigia o vento não semeia. Lisboa: Pedra Angular, 2011.
7
Referências
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften, I. Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
CARCHIA, Gianni. Nome e imagine. Saggio su Walter Benjamin. Macerata:
Quodlibet, 2009.
AGAMBEN Giorgio. Il tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani.
Torino: Bollati Boringhieri, 2000.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000.
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio. Lisboa: Instituto
Piaget, 2002.
________. Evolução e conversão: diálogos sobre a origem da cultura. São
Paulo: É Realizações, 2011.
MENDONÇA-ÁLVAREZ, Carlos. O Deus escondido da pós-modernidade:
desejo, memória e imaginação escatológica. Ensaio de teologia fundamental pós-
moderna. São Paulo: É Realizações, 2011.

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