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Ana Maria Serra - Ins titut o de Terapia Cognitiva São Paulo-SP

Objetivo: aprimorar os conhecimentos de estudantes


e profissionais da Psicologia sobre a Terapia Cognitiva.
Elaboração: Ana Maria Serra, PhD.
ITC – Instituto de Terapia Cognitiva, São Paulo-SP
2 m ó d u l o

terapia cognitiva
conceitos e
preconceitos sobre
Coordenação: Claudia Stella, Psicóloga Clínica,
Doutora em Educação, Docente em Psicologia e
Editora da revista Psicologia Brasil.
Módulos: oito módulos que serão publicados em
revistas seqüenciais.

Conteúdo dos módulos:

1 Introdução à Terapia Cognitiva

2 Conceitos e preconceitos sobre Terapia Cognitiva

3 Terapia Cognitiva e Depressão


Terapia Cognitiva e Suicídio
Terapia Cognitiva e Intervenção em Crise

4 Terapia Cognitiva e Transtornos de Ansiedade


Tópicos especiais em Terapia Cognitiva aplicada aos
Transtornos de Ansiedade, TOC (Transtorno Obssessivo-
Compulsivo), Fobias, Transtorno de Pânico, TEPT (Transtorno
de Estresse Pós-Traumático), Ansiedade Associada à Saúde

5 Terapia Cognitiva e Dependência Química


Terapia Cognitiva e Transtornos Alimentares
Terapia Cognitiva nas Organizações

6 Terapia Cognitiva com Casais e Famílias


Terapia Cognitiva com Crianças e Adolescentes
Terapia Cognitiva e Prevenção de Depressão em
Crianças e Adolescentes

7 Terapia Cognitiva e Transtornos de Personalidade


Terapia Cognitiva e Esquizofrenia
Terapia Cognitiva e Transtorno Bipolar

8 Resistência em Terapia Cognitiva


Terapia Cognitiva com pacientes difíceis
A aliança terapêutica em Terapia Cognitiva
Questões relacionadas a treinamento em Terapia Cognitva
Embora tenha surgido internacionalmente há caráter essencialmente construtivista. Finalmente,
mais de quatro décadas, no Brasil a Terapia apresentamos o caráter estruturado do processo
Cognitiva, uma abordagem nova e inovadora, clínico em TC, destacando a importância de uma
apenas recentemente vem atraindo a atenção sólida conceituação cognitiva do caso clínico,
de profissionais e estudantes de saúde mental, segundo o modelo cognitivo de psicopatologia. E
da mídia e do público em geral. No entanto, terminamos por apresentar características do
o caráter recente de sua presença no Brasil processo aplicado em TC, enfatizando suas várias
tem favorecido o surgimento de distorções ou fases: a inicial, em que buscamos as bases para
interpretações equivocadas que, não obstante, nossas primeiras hipóteses de conceituação
tenderem a se esclarecer com o tempo e à cognitiva e definição de metas terapêuticas;
medida que mais profissionais têm acesso a a de intervenção funcional, em que buscamos
treinamento adequado, no momento prejudicam prioritariamente prover o paciente de estratégias
sua disseminação e utilização adequada. Os para modular suas emoções; a fase de intervenção
conceitos sobre Terapia Cognitiva se confundem estrutural, em que buscamos propriamente a
com preconceitos, ou sejam, idéias e opiniões que re-estruturação cognitiva, ou seja, a substituição
refletem a influência de posicionamentos teóricos do sistema de esquemas disfuncionais do
e aplicados oriundos de abordagens anteriormente paciente por um sistema de esquemas funcionais;
propagadas, bem como distorções que evidenciam finalizando com a preparação do paciente para
a necessidade de maior aprofundamento. a terminação do processo clínico, fase em
O presente módulo, o segundo nesta série de que promovemos a generalização dos ganhos
Estudos Transversais em Psicologia, fará uma terapêuticos e a prevenção de recaídas.
breve referência aos conceitos básicos em Em resumo, enquanto que no primeiro módulo
Terapia Cognitiva, que constituíram o tema do desta série focalizamos prioritariamente o que
primeiro módulo desta série. Deter-nos-emos a TC é, neste segundo módulo focalizaremos
especialmente no tema de dúvida mais freqüente: o que ela não é. Ou seja, nas demais seções,
a associação entre a Terapia Cognitiva e a Terapia abordaremos idéias que se popularizaram a
Comportamental, tema que merecerá um espaço respeito do que é a TC e como atua, mas que, em
destacado no final deste segundo módulo. um sentido estrito, refletem equívocos e carecem
de fundamentação.
CONCEITOS BÁSICOS EM
TERAPIA COGNITIVA (TC) Preconceitos em TC
Dentre os conceitos básicos sobre a Terapia Vários preconceitos se popularizaram a
Cognitica (TC), apresentados no primeiro respeito da TC, dentre os quais destacamos:
módulo desta série de Estudos Transversais, sua identificação com o behaviorismo, seu
destacamos, inicialmente, as bases históricas suposto caráter neo-behaviorista, a idéia de
da TC, sua emergência como um sistema que terapeutas comportamentais seriam
de psicoterapia, bem como sua inserção no naturalmente terapeutas cognitivos, e a idéia de
contexto contemporâneo das psicoterapias, que a TC é amplamente divergente da orientação
em âmbito internacional. Referimo-nos às psicanalítica. Acrescente-se a esses a falsa idéia
características básicas da TC, como um sistema de que a TC, devido ao seu aparente caráter
de Psicoterapia, apontando seu caráter integrado; prescritivo, é fácil; a idéia de que sua duração
a fundamentação científica do modelo cognitivo de breve favoreceria a intervenção superficial, o
psicopatologia; sua eficácia, com base em estudos deslocamento de sintomas e as recaídas; a
controlados; seu caráter breve, exceto quando proposição questionável de que instrutores de
aplicada a transtornos de personalidade; às áreas TC devem ser ligados a Universidades; a idéia de
de aplicação, em Psicologia Clínica, em educação, que o caráter estruturado da abordagem
nos esportes, e como coadjuvante no tratamento impediria a espontaneidade no processo
de distúrbios orgânicos e psicoses. Delineamos, terapêutico e a utilização da intuição do terapeuta;
ainda, o princípio básico da TC, segundo o qual e, finalmente, a idéia de que a aliança terapêutica
nossas respostas emocionais e comportamentais interferiria com processos transferenciais no
são resultados da forma como representamos curso do processo clínico.
ou interpretamos o real, aspecto que reflete seu
Derivada do Behaviorismo entanto, pouco impacto sobre o modelo
(Neo-behaviorista) e Divergente cognitivo de psicopatologia. Ao contrário, as
da Psicanálise intervenções cognitivo-comportamentais do
O maior impacto sobre o modelo teórico e Behaviorismo, como inoculação de estresse e
aplicado de TC adveio da própria atuação clínica a dessensibilização sistemática, conceituam
anterior de Beck, um reconhecido Psicanalista as cognições como comportamentos
na década de 1950, e Professor em Psiquiatria encobertos, em flagrante contradição com
da Universidade da Pennsylvania. Impulsionado as proposições, pela TC, das cognições como
por preocupações teóricas, com o objetivo de eventos mentais e da subordinação das
confirmar o modelo psicanalítico da depressão e, emoções e dos comportamentos às cognições,
dessa forma, promover o pensamento um aspecto fundamental para a validade do
psicanalítico entre contemporâneos acadêmicos, modelo cognitivo de psicopatologia. Mas suas
Beck, que freqüentemente desafiava a ortodoxia relações com o behaviorismo são discutidas,
da Psicanálise, emprestou da Psicologia em maior profundidade, na segunda parte do
Acadêmica o método científico e empregou presente módulo.
a análise dos sonhos para testar o modelo
motivacional psicanalítico da depressão. Surpreso A TC é Fácil?
quando seus estudos falharam em confirmar o Devido ao seu aparente caráter prescritivo, a TC
modelo da agressão retroflexa, e intrigado com é freqüentemente considerada uma abordagem
suas observações na prática clínica, Beck propõe o fácil, cuja aplicação dispensa treinamento formal e
modelo cognitivo de depressão. específico. É comum profissionais, que anunciam
utilizar a TC, afirmarem que aprenderam através
Entretanto, ao propor o novo modelo de da simples leitura da literatura especializada.
depressão que eventualmente resultou em Entretanto, como todas as demais abordagens,
um novo sistema de psicoterapia, Beck não seu exercício competente requer treinamento
negligenciou seu passado psicanalítico; isto se formal, específico e prolongado, incluindo
faz evidente no caráter racionalista da TC, em supervisão clínica, até que o terapeuta esteja
aspectos importantes do modelo cognitivo de capacitado a atender independentemente. Na
psicopatologia, e em aspectos de seu modelo realidade, o caráter dinâmico e a atuação ativa
aplicado. Beck admite a noção de inconsciente, e intensiva do terapeuta em TC enfatizam a
embora proponha, diferentemente da Psicanálise, necessidade de uma familiaridade aprofundada
que podemos acessar conteúdos inconscientes com seu modelo teórico e aplicado, possivelmente
em condições especiais. Enfatiza a influência de até maior do que em outras abordagens, em cujo
experiências passadas no desenvolvimento do caso a atuação do terapeuta é menos ativa e mais
sistema de esquemas cognitivos do indivíduo, reflexiva. O caráter extremamente dinâmico da TC,
embora a intervenção clínica em TC não objetive em que as interações entre terapeuta e paciente
os elementos históricos, mas os fatores presentes se sucedem em ritmo rápido e ativo através
que mantêm ativo o quadro disfuncional. Prescreve de todas as sessões terapêuticas e de todo o
ainda a exploração de experiências passadas para processo clínico, efetivamente exige uma sólida
uma sólida conceituação cognitiva do caso clínico. formação por parte do terapeuta.
E, em comum com a Psicanálise, a TC conceitua
as cognições como eventos mentais. Finalmente, Estudos que avaliam a efetividade de centros
os mais importantes pontos em comum entre as de treinamento em TC apontam que apenas
duas abordagens – ambas são construtivistas, ao aproximadamente 25% de seus trainees atingem
propor que o indivíduo constrói seu próprio real; proficiência após o primeiro ano de treinamento.
e racionalistas, ao basear suas intervenções nos Em um estudo, em particular, que conduzimos
processos racionais. no Instituto de Psiquiatria da Universidade de
Londres, Inglaterra, não apenas essa baixa taxa
Quanto ao Behaviorismo, por sua vez, este de sucesso, após o primeiro ano de treinamento,
influenciou aspectos importantes do modelo foi replicada; mas, investigando, notamos que
aplicado de TC, como seu caráter estruturado, o aqueles que demonstraram proficiência após
tempo curto de intervenção, a definição de um ano eram os mesmos que, antes do início
agenda, o estabelecimento de metas de seu treinamento, já demonstravam algumas
terapêuticas, dentre outros, tendo, no
habilidades pertinentes a um terapeuta cognitivo, é superficial, desde que estruturas inconscientes
como: objetividade, estruturação da sessão, ênfase sejam mudadas. Além disso, mudando-
no conteúdo cognitivo das queixas e intervenções se estruturas esquemáticas, a recaída e o
de caráter cognitivo. Além disso, os estudos deslocamento de sintomas ficaria inviabilizado.
demonstram que o índice de proficiência de Adicionalmente, estudos longitudinais indicam a
trainees é diretamente proporcional ao tempo de manutenção de ganhos terapêuticos e índices
treinamento, à aderência a manuais e ao tempo de baixos de recaída. Deve-se ainda notar que o
atendimento supervisionado. caráter didático da TC concorre também para
A competência para o terapeuta cognitivo vai a prevenção de recaídas e do deslocamento de
muito além de experiência e tempo de atuação. A sintomas; a intervenção cognitiva visa, não
importância da competência aumenta conforme apenas resolver os problemas atuais dos
aumentam os graus de severidade e cronicidade pacientes, mas, ao resolvê-los, dotar o paciente
dos casos clínicos. A supervisão clínica é de novas estratégias para processar e responder
necessária até para terapeutas experientes, mas ao real de forma funcional, sendo o funcional
treinados em outras abordagens. Terapeutas definido como aquilo que concorre para a
treinados em outras abordagens, como, por realização de suas metas.
exemplo, a Comportamental, não prescindem de
treinamento formal e prolongado em TC, visto Instrutores em Terapia Cognitiva
que as posturas teóricas e epistemológicas, bem devem ser ligados a Universidades
como os modelos de funcionamento humano, de A competência na área específica da TC,
instalação e manutenção das psicopatologias, o através de treinamento formal e prolongado,
modelo aplicado, e a postura do terapeuta, são é a condição necessária para a atuação clínica
distintos entre as duas abordagens. Finalmente, a competente. Além disso, a atuação como
aliança terapêutica em TC é singular, envolvendo instrutor requer igualmente treinamento
uma relação afetiva e colaborativa, em vários supervisionado específico para a prática
sentidos, entre terapeuta e paciente, também didática. Em particular, a atuação de
distinta de outras abordagens. supervisores clínicos necessita, especialmente,
de supervisão por um supervisor sênior, até que
Tempo Curto favorece possam adquirir competência para o
Intervenção Superficial, Recaída oferecimento independente de supervisão clínica
e Deslocamento de Sintomas a outros profissionais em treinamento.
A TC tem como objetivo fundamental a re- Nesse sentido, deve-se notar que grandes
estruturação cognitiva, isto é, a substituição do experts em treinamento atuam como instrutores
sistema disfuncional de crenças e esquemas do em seus Institutos e independentemente de
paciente por um sistema funcional. Como visto universidades, como Christine Padesky, Judith
no Módulo 1 desta série, os esquemas cognitivos Beck, Frank Dattilio, Robert Leahy, Jacqueline
refletem superestruturas, que se desenvolvem Persons e, no Brasil, meu caso pessoal à frente
em nível inconsciente, ou de memória implícita, do ITC. Pessoalmente, após receber treinamento
e que organizam os elementos da percepção clínico durante mais de três anos, atuei, durante
sensorial do real, em um processo do qual um ano adicional, como instrutora sob supervisão,
resultam a interpretação ou representação viabilizando, dessa forma, minha competência para
do real pelo sujeito. Esta interpretação ou o treinamento de profissionais.
representação do real se reflete, em nível pré-
Finalizando, a expertise de um acadêmico em
consciente, no conteúdo dos pensamentos
sua área particular de atuação não lhe confere
automáticos, que influenciariam as respostas
automaticamente expertise na área específica
emocionais e comportamentais do sujeito. Daí
da TC. O fundamental, para aqueles que buscam
decorre que, se substituirmos os esquemas
treinamento na abordagem cognitiva, é
atuais do paciente por novos esquemas, o
certificar-se da competência de profissionais
conteúdo de seus pensamentos automáticos
que se oferecem como instrutores, exigindo
pré-conscientes mudaria, e, conseqüentemente,
comprovação de treinamento formal e
mudariam também suas respostas emocionais
prolongado na área específica da TC.
e comportamentais. Portanto, a intervenção não
Abordagem estruturada impede Bases históricas da TC
espontaneidade no processo terapêutico Na década de 1950, nos Estados Unidos, a
e utilização da intuição do terapeuta emergência das ciências cognitivas sinalizava
A abordagem estruturada em TC objetiva uma transição generalizada para a perspectiva
promover a brevidade do processo e favorece cognitiva de processamento de informação,
o sucesso de seu aspecto didático. Quanto à com clínicos defendendo uma abordagem mais
espontaneidade e à intuição do terapeuta, com cognitiva aos transtornos emocionais. Observou-
treinamento e experiência, a estrutura das se, nessa época, uma convergência entre
sessões e do processo terapêutico é introjetada, psicanalistas e behavioristas em sua insatisfação
permitindo a espontaneidade, a intuição e a com os próprios modelos de depressão,
criatividade do terapeuta, e favorecendo sua respectivamente, o modelo psicanalítico da
competência, como nas demais abordagens. raiva retroflexa e o modelo behaviorista do
condicionamento operante. Nas décadas de 1960
Aliança terapêutica interfere com e 1970, observou-se o afastamento da psicanálise
processos transferenciais e do behaviorismo radical por vários de seus
Estudos comprovam a necessidade de uma adeptos, como Ellis, criador da Terapia Racional
sólida aliança terapêutica e uma atuação Emotiva, a primeira psicoterapia contemporânea
colaborativa para o progresso clínico. Em TC, na com clara ênfase cognitiva, além de Brandura,
realidade, as intervenções não ocorrem na Mahoney e Meichenbaum. Estes apontavam os
relação transferencial. Mas terapeuta e processos cognitivos como cruciais na aquisição
paciente são parceiros ativos no processo de e regulação do comportamento, a cognição como
re-estruturação cognitiva do paciente. A aliança construto mediacional entre o ambiente e o
terapêutica é necessária, embora não suficiente, comportamento, bem como estratégias cognitivas
para o sucesso terapêutico, favorecendo a e comportamentais para intervenção sobre
relação colaborativa, a brevidade do processo variáveis cognitivas.
e a eficácia de seu aspecto didático.
Estava, portanto, inaugurada a era cognitiva
Conclusão na psicoterapia, a partir de fatos que
Vimos, nesta seção, evidências que contrariam convergiram de forma decisiva para a
algumas idéias distorcidas sobre o que é a emergência de uma perspectiva cognitiva,
TC e suas formas de atuação, a qual reflete que se refletiu na proposição da TC como um
aspectos teóricos e aplicados próprios. A seguir, sistema de psicoterapia, baseado em modelos
veremos alguns aspectos da relação entre próprios de funcionamento humano e de
a TC e o behaviorismo, que apontam para o instalação e manutenção das psicopatologias.
desenvolvimento independente dessas abordagens Fundamentalmente, e conforme discutido no
em diferentes períodos e contextos históricos. primeiro módulo desta série, a influência mais
importante, e a que deu origem à TC, foram
TERAPIAS COGNITIVA, os experimentos e observações clínicas do
COGNITIVO-COMPORTAMENTAL próprio Beck. Ele aponta a cognição, e não a
E COMPORTAMENTAL emoção, como o fator essencial na depressão,
A Terapia Cognitiva tem sido freqüentemente conceituando-a como um transtorno de
e equivocadamente identificada com a Terapia pensamento e não um transtorno emocional.
Comportamental, e as denominações TC e E propõe a hipótese de vulnerabilidade
Terapia Cognitivo-Comportamental, cognitiva como a pedra fundamental do
especialmente no Brasil, têm sido empregadas novo modelo de depressão.
intercambiavelmente.
Terapias Comportamental e
Destacaremos alguns fatores específicos
Cognitivo-Comportamental
de cada abordagem e fatores de superposição,
Na primeira metade do século XX, a Psicanálise,
com especial ênfase a aspectos históricos
em suas várias orientações, dominava o campo
que convergiram para a emergência de cada
da psicoterapia. No entanto, ao redor dos
uma dessas abordagens em diferentes períodos
anos 50, cientistas começaram a questionar
e contextos.
os fundamentos teóricos e a eficácia da
Psicanálise, enquanto que, ao mesmo tempo, origem ao Departamento de Psicologia do
a teoria da aprendizagem e dos processos de Instituto de Psiquiatria do Maudsley, da
condicionamento, e a abordagem Comportamental Universidade de Londres. Os casos conduzidos
derivada delas, começaram a influenciar a eram, em sua maioria, transtornos de ansiedade,
pesquisa e a clínica psicológicas. especialmente agorafobia, resultando na
Pavlov, o cientista que primeiro descreveu e publicação de estudos de caso. No entanto, tais
analisou os processos de condicionamento, esforços iniciais em nada ainda se assemelhavam
expressou seu interesse em suas possíveis a uma nova forma de psicoterapia.
aplicações clínicas. Os princípios fundamentais Eysenck foi sucedido na direção do departamento
do behaviorismo, que desafiaram a psicanálise por Jeffrey Gray, que, por sua vez, foi
ortodoxa, podiam ser assim resumidos: a substituído, em 2000, por David Clark e Paul
mente não representava um objeto legítimo Salkovskis, brilhantes pesquisadores cognitivos,
de estudo científico; o problema do paciente definitivamente impondo no Instituto a Terapia
se limitava ao seu comportamento observável, Cognitiva, em substituição à predecessora
contra a necessidade de se invocar processos terapia comportamental. À mesma época, um
inconscientes não-observáveis e não-testáveis; o importante marco no desenvolvimento da terapia
foco da avaliação e tratamento deveria ser dirigido comportamental britânica se encerrou no mesmo
ao que poderia ser observado, operacionalizado Instituto, com a aposentadoria de Isaac Marks.
e medido; na modificação do comportamento,
os fatores importantes eram os que concorriam Nos Estados Unidos
para a manutenção do problema do paciente, À mesma época, o modelo mais proeminente
ao invés de sua suposta origem; e, finalmente, o na Psicologia acadêmica americana era o
método científico provia um enquadre legítimo modelo de Boulder, Colorado, que insistia em
para o desenvolvimento de uma teoria e uma que o treinamento de psicólogos clínicos deveria
prática clínica, em que a aplicação de princípios fundar-se nos departamentos da Psicologia
teóricos e terapêuticos avançaria melhor através acadêmica, com sólida formação em Psicologia
da observação empírica sistemática. e um componente significativo de pesquisa em
nível de doutorado. Entretanto, em contraposição,
Entretanto, o desenvolvimento da Terapia
observava-se na clínica uma tendência à aceitação
Comportamental na Inglaterra e nos Estados
não crítica de uma variedade de formas de
Unidos seguiu trajetos paralelos e distintos.
psicoterapia, praticadas na época, e o uso
Na Inglaterra indiscriminado de instrumentos psicométricos,
Após uma visita aos Estados Unidos, e pouco particularmente os testes projetivos.
impressionado com a Psicologia acadêmica Ao contrário do Behaviorismo britânico,
e clínica americana, Eysenck desenvolveu claramente fundado nos conceitos de Pavlov,
parâmetros para a Psicologia clínica inglesa: Watson e Hull e aplicado no contexto clínico a
as leis estabelecidas pela Psicologia acadêmica pacientes neuróticos, o Behaviorismo americano,
deveriam ser aplicadas na clínica; a Psicologia apoiado principalmente nas idéias de Skinner e
clínica deveria constituir uma profissão seus seguidores, tentava replicar em pacientes
independente; como a psicoterapia e os testes psiquiátricos os efeitos do condicionamento
projetivos não se originaram de teorias ou obtidos com animais em laboratórios. Os
conhecimentos da Psicologia acadêmica, estes problemas psiquiátricos, de pacientes severos e
não deveriam ser empregados na Psicologia crônicos, foram conceituados como problemas
clínica; a Psicologia clínica deveria basear-se em de comportamento, cuja solução dependia
conhecimento, métodos e desenvolvimentos de um programa de correção através do
gerados pela Psicologia acadêmica, concluindo que condicionamento operante.
os processos de condicionamento ofereciam a As pesquisas conduzidas foram de grande valor,
melhor fundação para a nova abordagem. mas não produziram os resultados esperados.
Após Segunda Gerra Mundial Eysenck, encorajado Além disso, o sucesso da Terapia Comportamental
por Lewis, fundou um programa acadêmico para no tratamento dos transtornos de ansiedade
psicólogos clínicos, tendo Monte Shapiro como não foi replicado no tratamento da depressão.
o primeiro diretor de treinamento clínico, dando Ao mesmo tempo, a teoria do condicionamento
do medo, fundamental à proposição inicial da conceitos cognitivos eram incorporados
Terapia Comportamental, dava claros sinais da à prática comportamental, dando dessa forma
necessidade de revisão. origem às Terapias Cognitivo-Comportamentais,
notou-se que, além da superioridade em eficácia
Terapia Cognitivo-Comportamental no tratamento da depressão, as técnicas
Embora a Terapia Comportamental mostrasse- cognitivas demonstraram eventualmente
se promissora, especialmente no tratamento também sua superioridade no tratamento
de fobias e transtornos obsessivo-compulsivos, dos transtornos de ansiedade, o campo onde a
muito cedo suas limitações teóricas e aplicadas Terapia Comportamental havia alcançado
se tornaram claras, especialmente com relação sucesso incontestável.
à limitada gama de transtornos para os quais se
mostrava eficaz. Paralelamente, nos anos 60, as Características compartilhadas?
teorias dominantes em Psicologia mudaram seu De uma perspectiva ontológica, as Terapias
foco do poder do ambiente sobre o indivíduo para Cognitiva e Comportamental diferem radicalmente
os processos racionais, como fonte de direção em sua visão de homem. Do ponto de vista
das ações humanas, refletidos nas expectativas, filosófico, o modelo cognitivo, reconhece a
decisões, escolhas e controle do indivíduo, influência do observador, e de suas hipóteses e
prenunciando os efeitos da revolução cognitiva expectativas, sobre o processo da observação. O
sobre a clínica, através da emergência das modelo comportamental, por outro lado, na sua
orientações cognitivas. ânsia de rigor metodológico, ou propõe reduzir o
Em vista do reduzido sucesso no tratamento da objeto observado a objeto observável, ou propõe
depressão por terapeutas comportamentais, ingenuamente que a observação pura, na qual
e a despeito da resistência da Terapia o observador está livre de hipóteses, é possível,
Comportamental a conceitos e técnicas quando, segundo Popper, isso configura apenas um
cognitivos, Beck (1970) encontrou uma audiência mito filosófico. Da perspectiva epistemológica, a
interessada. Além disso, havia ainda o fato de TC propõe que, por serem refutáveis, as hipóteses
que ele estava articulando preocupações de um são candidatas ao status de científicas, adotando
número crescente de clínicos, que advogavam a uma postura equivalente a do racionalismo
atenção dos behavioristas para uma fonte valiosa crítico. Por outro lado, o Behaviorismo sempre
de dados e compreensão clínica: a cognição. se declarou como adepto do positivismo lógico,
Re-assegurados por características do modelo com sua ênfase na necessidade de verificação
cognitivo proposto por Beck, que incluía tarefas direta, até um relativo afrouxamento, ao
comportamentais, sessões estruturadas, prazo admitir a ação, sobre a variável dependente,
limitado de tratamento, registro diário das variáveis intervenientes, o que coincidiu
de experiências maladaptativas etc., os escritos com a popularização, nos meios científicos, do
de Beck encontraram surpreendente interesse método hipotético-dedutivo. Este, adotado pelo
por parte dos comportamentais. Superando cognitivismo, permitiu a investigação da cognição
suas resistências, reconhecidos comportamentais não observável como construto mediacional
passaram a incluir técnicas cognitivas em seus entre o ambiente e as respostas emocionais e
programas de tratamento, ao mesmo tempo comportamentais do indivíduo, estas constituindo
em que passaram a tomar a cognição como as conseqüências observáveis.
um construto mediacional entre o ambiente Outra diferença marcante, aliás melhor referida
e o comportamento. como incompatibilidade filosófica, refere-se ao
Outra fonte de desconfiança para os behavioristas, conceito de cognição, que para o behaviorista
incluindo o próprio Eysenck, referia-se ao fato constitui um comportamento encoberto e, para
de que a TC desenvolveu-se independente da, o cognitivista, constitui um evento mental. Para
ou em paralelo à, Psicologia Cognitiva como este, está explícita a noção de subordinação
ciência básica, violando a máxima behaviorista das emoções e comportamentos às cognições,
de que a ciência psicológica deveria fundamentar refletindo uma postura construtivista realista,
a Psicologia Clínica. Mas o sucesso da TC no visão cognitiva que colide com o modelo
tratamento da depressão concorreu para behaviorista de comportamento humano. Para
neutralizar essas resistências. E à medida que ilustrar essa diferença fundamental, tomemos
o exemplo dos experimentos comportamentais, eventos que confluíram para o desenvolvimento
técnica largamente utilizada em ambas as independente de ambas. Em 1994, Hans Eysenck
abordagens, mas com finalidades que expressam expressou da seguinte forma sua opinião a
claramente suas diferenças. Como declara respeito da possível origem comportamental da
Beck (1979): “para o terapeuta comportamental, a TC: “a TC tem pouco em comum com a Terapia
modificação do comportamento é um fim Comportamental. Beck foi, na realidade, um
em si mesmo; para o terapeuta cognitivo, é psicanalista redimido, que foi sábio em abandonar
um meio para se atingir um fim – isto é, a a parafernália do pensamento psicanalítico e
mudança cognitiva”. adotar a metodologia científica” (comunicação
E o que as duas abordagens têm em comum? pessoal, 1994).
Devido à seqüência histórica, apenas a TC, em
sua proposição, poderia haver “emprestado” algo SUGESTÕES DE LEITURA:
de sua predecessora, a Terapia Comportamental. BECK, A.T., Rush, Shaw & Emery (1996) TC da
A despeito das diferenças discutidas, a Terapia Depressão, Porto Alegre: Ed. Artes Medicas.
Comportamental ofereceu importantes CASTAÑON, G.A. (2005) “O surgimento do
contribuições, especialmente nos seguintes Racionalismo Crítico de Karl Popper e sua
aspectos: ênfase ao uso do método científico; Influência na Revolução Cognitiva”. (Em
importância aos fatores de manutenção dos preparação)
transtornos, ao invés dos fatores de origem; CLARK, D. A., Beck, A.T. (1999) Scientific
ênfase a elementos terapêuticos, como estrutura Foundations of Cognitive Theory and Therapy of
das sessões e do processo clínico, definição de Depression, New York: Wiley.
metas terapêuticas, tratamento de curto prazo; SALKOVSKIS, P. (Ed.) (2005) Fronteiras da TC.
e a consideração de mudanças comportamentais Organizadora da Ed. Brasileira A. M. Serra.
como um meio importante para se alcançar São Paulo: Editora Casa do Psicólogo.
mudanças cognitivas.
SERRA, A. M. (2004) Introdução à Teoria e
Quanto à Terapia Cognitivo-Comportamental, Prática da TC (Áudio em CD). São Paulo:
esta se situa em uma posição intermediária ITC-Instituto de TC.
confortável entre as duas abordagens, porém
com certo grau de liberdade conferido aos seus
praticantes. Verificam-se dois grandes grupos.
Primeiro, aqueles anteriormente treinados como Ana Maria Serra
terapeutas comportamentais, que tendem a PhD em Psicologia e Terapeuta
manter-se vinculados ao modelo comportamental, Cognitiva pelo Institute of
apenas adicionando a este princípios e técnicas Psychiatry da Universidade
cognitivos, porém objetivando primordialmente de Londres, Inglaterra.
mudanças comportamentais. Para esses, a
Presidente Honorária da ABPC
cognição ainda é vista como um comportamento
encoberto. Segundo, aqueles treinados como
– Associação Brasileira de
terapeutas cognitivos, e que, adotando um Psicoterapia Cognitiva.
modelo cognitivo, utilizam-se de técnicas Diretora do ITC – Instituto de
comportamentais, porém com a finalidade Terapia Cognitiva, que atua nas
explícita de obter mudanças cognitivas. áreas de clínica, pesquisa,
consultoria e treinamento
Conclusão
Faz-se evidente que a crença, comum de profissionais, oferecendo
especialmente no Brasil, de que a TC originou- regularmente Cursos e Palestras,
se da Terapia Comportamental, constituindo dentre os quais um Curso de
uma forma de neo-behaviorismo, não encontra Especialização em Terapia Cognitiva
fundamentação na seqüência histórica de credenciado pelo CFP – Conselho
Federal de Psicologia.
E-mail: itc@itc.web.com
© Ana Maria Serra, PhD. Site: www.itc.web.com
Todos os direitos reservados. Publicação e reprodução
exclusivamente mediante autorização expressa da autora.

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