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ISSN 2177-3548
[1] Universidade de São Paulo; São Paulo | Título abreviado: Terapia Analítico-Comportamental para Anorexia Nervosa | Endereço para correspondência: Felipe
Alckmin-Carvalho – Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. Av. Professor Mello Moraes,
1721, Cidade Universitária, CEP 05508-030, Prédio F, Sala 19 | Email: felipealckminc@gmail.com | doi: http://doi.org/10.18761/PAC.2021.jul111
a escala total de problemas emocionais/comporta- tros, bem como a partir dos dados emergentes a
mentais (TP). As questões se referem aos últimos cada encontro. Na intervenção analítico-compor-
seis meses e é possível responder 0=não é verdadei- tamental não se utilizam protocolos desenvolvidos
ro, 1=um pouco verdadeiro ou algumas vezes ver- a priori. Portanto, embora algumas intervenções
dadeiro e 2=muito verdadeiro ou frequentemente sejam padrão, no tratamento de AN, o manejo
verdadeiro. Os problemas de comportamento são comportamental para recuperação de peso foi fei-
classificados na faixa não clínica (<60), limítrofe to também a partir das particularidades do caso
(entre 60 e 63) e clínica (>60). Em pesquisas, es- clínico em questão.
cores limítrofes são incluídos na categoria clínica, Ao longo do processo de psicoterapia foram
de acordo com os autores do instrumento. Rocha utilizadas as seguintes técnicas/intervenções: psico-
(2012) apresentou evidências de validade do instru- educação, diário alimentar, identificação de regras
mento para a população brasileira. e autorregras associadas ao corpo, à comida e à ali-
mentação, dessensibilização sistemática, bibliotera-
Procedimentos pia e treinamento de habilidades socioemocionais e
(1) Avaliação inicial: foi realizada em dois en- educativas. A seguir estão apresentadas resumida-
contros, em que os pais e a adolescente estiveram mente cada técnica/intervenção.
presentes. O diagnóstico de AN foi realizado pelo
pesquisador responsável, com base nos critérios (a) Psicoeducação: descrição da anorexia nervosa,
diagnósticos descritos no DSM-5. Os pais pre- com ênfase em alterações cognitivas e comporta-
encheram um questionário sociodemográfico. A mentais comuns ao quadro, apresentação dos fa-
adolescente preencheu os seguintes instrumentos: tores predisponentes, precipitantes e mantenedo-
EDE-q e YSR, além de ter sido submetida ao exame res da AN, informações sobre como a desnutrição
antropométrico realizado por uma nutricionista es- afeta o funcionamento cerebral, e o papel dos pais
pecialista em transtornos alimentares. no tratamento. Essa etapa contou com o livro inti-
tulado: “Anorexia Nervosa na infância e adolescên-
(2) Processo de psicoterapia: foi estruturado em cia: como a família pode ajudar”, desenvolvido pelo
seis meses, período no qual foram realizadas 25 ses- primeiro autor. A psicoeducação foi destinada aos
sões com a paciente e seus pais. O tratamento foi pais e à adolescente e tinha como principal objetivo
conduzido pelo primeiro autor, psicólogo clínico ajudar os pais a diferenciarem a AN do paciente,
especialista em transtornos alimentares, doutor em e incentivá-los a “desobedecer” a AN. Nessa fase
psicologia clínica, sob supervisão do último autor. explicita-se que não há remédio para AN, e que a
Os pais participaram de todas as etapas do processo terapêutica primordial, sobretudo no início do tra-
de psicoterapia. tamento, é garantir a realimentação.
O primeiro passo para a formulação do caso
foi a construção de análise funcional molar das va- (b) Diário Alimentar: trata-se de uma técnica de
riáveis determinantes dos comportamentos com automonitoramento, que foi utilizada para auxiliar
função de perder peso. A análise funcional é a na avaliação do padrão alimentar da participante. A
principal ferramenta do clínico de orientação ana- paciente foi orientada a registrar dia, horário e local
lítico-comportamental para a formulação do caso, onde foi realizada cada refeição, o tipo e a quantida-
na medida em que a partir dela são explicitados os de de alimentos ingeridos. Ao lado, deveria marcar
determinantes antecedentes e consequentes dos se houve ou não a ocorrência de indução de vômito
comportamentos-alvo. desta refeição e pensamentos e sentimentos ante-
No presente estudo as análises funcionais fo- riores e posteriores. O diário alimentar foi avaliado
ram construídas e reformuladas a partir de entre- a cada sessão, e a partir das informações disponi-
vista clínica semiestruturada realizada com os pais, bilizadas por esse instrumento foi possível avaliar
de entrevista clínica realizada com a paciente, da explicitar padrões comportamentais e dificuldades,
observação do comportamento de cada membro ao longo das semanas (como por exemplo, períodos
da família e de sua interação, ao longo dos encon- em que a paciente costumava ficar mais angustiada,
momentos em que o monitoramento dos pais era lescente (sem a presença dela), em que foram utili-
imprescindível, entre outros) e manejá-las a con- zadas estratégias tanto psicoeducativas quanto psi-
tento. coterápicas para estimular a aquisição de repertório
de assertividade, afetividade, estabelecimento de
(c) Dessensibilização Sistemática (Wolpe, 1967): limites e responsividade emocional (estilo parental
teve como objetivo expor gradativamente a pacien- autoritativo). Além disso, cuidou-se para que a pa-
te ao contato com alimentos considerados perigo- ciente não obtivesse ganhos secundários à doença.
sos ou proibidos. Foram combinados desafios se- Os pais foram convidados a se recordarem da pró-
manais com a ajuda da paciente, que preencheu a pria adolescência e dos conflitos típicos relaciona-
uma escala de hierarquização de riscos, e iniciou o dos à mudança corporal, a sensação de desajusta-
processo por desafios menos custosos. Essa inter- mento e o medo das demandas da vida adulta. Essa
venção foi realizada ao longo de todo o processo de atividade tinha como finalidade o desenvolvimento
psicoterapia e contou com a ajuda de uma nutricio- de repertório de empatia, e favorecer compaixão e
nista especialista em transtornos alimentares. aceitação das dificuldades da filha.
típicos na AN, bem como a identificá-los e lutar Foi verificado que muitas das consequências
contra eles. Essa separação “paciente versus AN” foi que selecionaram e que mantiveram o comporta-
útil para diminuir a ansiedade dos pais no manejo mento de restrição alimentar e exercício físico de
comportamental, ao indicar que eles não deveriam Mayra (com finalidade de perder peso) tinham re-
“negociar com os comportamentos da AN”. Assim lação com a prática do ballet. Uma vez que os pais
ficava menos difícil não atender aos pedidos de foram orientados a restringir qualquer atividade
Mayra de comer menos, de exercitar, e outros tipos física de Mayra, a paciente deixou de frequentar as
de barganhas. aulas de ballet. O pesquisador explicitou a possível
relação entre a atividade e o adoecimento de Mayra.
Análise funcional dos determinantes Danilo e Milena reportaram que a perda de peso
dos comportamentos com função de da Mayra coincidiu com o início dessa atividade,
perder peso reforçando essa hipótese funcional.
Durante as sessões iniciais de psicoterapia com os Foi abordado, em sessão com os pais e com a
pais, foi verificado um padrão alimentar familiar adolescente, que a restrição alimentar autoimposta
bastante rígido, caracterizado pela proibição de ali- de muitas alunas de ballet, motivada pela relação
mentos considerados de alto teor calórico e clima entre um corpo emagrecido e necessário para bom
de vigilância mútua quanto à alimentação de cada desempenho na atividade, era um fator de risco
membro da família. Tanto Milena quanto Danilo importante para o aparecimento de um transtorno
seguiam modelos de dieta restritivas e faziam ati- alimentar. Mayra já havia percebido essa relação
vidade física controlando o gasto calórico. Além ao mencionar que as melhores bailarinas da classe
disso, pesavam-se com frequência e falavam sobre eram diferentes dela:
peso, gordura, IMC, entre outros.
Os pais foram orientados a deixar de falar so- “as melhores da sala não têm peito nem bunda”
bre dietas restritivas e evitarem tratar alimentos (Mayra)
calóricos como “porcarias”. Foi abordada a culpa
que os pais sentiam ao comerem alimentos não Foi recomendado a Mayra que deixasse o ballet e a
permitidos pela dieta, e indicado, em termos psi- paciente ficou bastante hostil, com o pesquisador e
coeducativos, que as dietas restritivas, em longo com os pais. O pesquisador frisou que quem tirara
prazo, tendem a produzir ganho de peso, além essa possibilidade dela foi o próprio transtorno ali-
de sofrimento significativo. O livro intitulado “O mentar, na medida em que a paciente ficou perigo-
Peso das Dietas” (Deram, 2014) foi dado ao casal, samente desnutrida e impossibilitada de fazer qual-
com a finalidade de explicitar a relação entre insa- quer atividade física. Ficou combinado que quando
tisfação corporal, engajamento em dietas restriti- a paciente voltasse à normalidade de peso, poderia
vas e o surgimento de transtornos alimentares. Foi retomar o ballet, e, se tivesse alguma piora do quadro
pedido aos pais que doassem a balança em que se de AN, isso seria um sinal importante para que ela
pesavam e a balança em que pesavam alimentos, interrompesse a atividade por tempo indeterminado.
que estava sendo utilizada por Mayra. Quando perguntados, nas entrevistas ini-
Os pais foram convidados a avaliar e falar so- ciais, sobre suas hipóteses sobre o adoecimento de
bre a própria relação com o corpo e com a co- Mayra, tanto Milena quanto Danilo, embora não
mida, e ambos concluíram que “a casa tinha um soubessem descrever a relação existente, menciona-
comer transtornado”. Foi sugerido que seria im- ram que o adoecimento aconteceu ao mesmo tem-
portante que eles mudassem, gradativamente, a po em que Nathália, filha adotiva, chegou à casa.
forma como lidavam com a comida, e que o livro A hipótese de Danilo, ao explorar essa correlação,
recomendado poderia ajudar. Adicionalmente, foi de que com a presença de Nathália tirou o foco
foram treinadas exposições graduais, de alimen- do casal de Mayra, e que ela não soube lidar com
tos considerados perigosos, nos mesmos moldes menos atenção do que o habitual, ficando cada vez
do tratamento de dessensibilização sistemática de mais fechada e aparentemente deprimida. Essa hi-
objetos fóbicos. pótese foi corroborada por Mayra, em sessão pos-
terior, em que a adolescente falou que desde a che- Os pais foram orientados a parar de discutir
gada de Nathália, ela se sentia mais sozinha e com suas dificuldades na presença de Mayra. O pesqui-
menos atenção dos pais. Disse ainda ter dificuldade sador reportou aos pais sua impressão de que suas
de interação com a irmã adotiva. dificuldades conjugais estavam menos evidentes
O clínico validou os sentimentos de Mayra as- desde que Mayra adoeceu. Ambos concordaram e
sociados à chegada de uma irmã e às alterações na foi então sugerido que procurassem um terapeuta
rotina que essa mudança produziu, e sugeriu que, de casal, após a participação no processo de psico-
com o baixo peso, ela tinha a atenção que queria terapia familiar.
dos pais. A paciente concordou. Conversaram, en- Em uma das sessões Mayra falou, espontane-
tão, sobre outras formas menos custosas de mostrar amente, sobre o medo de envelhecer e de se tor-
que ela estava sentindo falta dos pais, como pedir nar uma adulta. Falou, ainda, de seu desejo de ser
a presença deles, sugerir atividades, pedir ajuda ou criança para sempre, ou no máximo, uma ado-
simplesmente dizer, quando sentisse vontade, que lescente. A paciente reportou também que sentia
queria ficar com eles. que seu pai não queria que ela crescesse, e chorou.
Tendo como hipótese que o adoecimento de Foram explorados seus pensamentos e sentimentos
Mayra estava sendo mantido, também, pela atenção sobre o tema, e Mayra revelou que soube que seu
dos pais direcionada a comportamentos associados pai chorava a cada evolução que ela tinha. Em suas
ao quadro de AN (por exemplo, recusar comida palavras:
nas refeições, medir-se ou pesar-se na presença dos
pais, falar sobre como estava se sentindo obesa, en- “meu pai chorou quando minha mãe tirou
tre outros), os pais foram orientados a ficar sensí- aquela proteção do berço, porque eu não pre-
veis e reforçarem diferencialmente comportamen- cisava mais, chorou quando comecei a andar
tos de Mayra de falar sobre a falta que sente dos sozinha e quando comecei a falar. Ele me fala
pais, pedir ajuda e interagir de maneira prossocial que ser adulto é muito chato, que você não pode
com Nathália. Foram orientados também a fazer fazer o que quer, e que a melhor fase da vida é a
atividades dirigidas à Mayra, como jogar um jogo infância." (Mayra)
de tabuleiro ou baralho.
Adicionalmente, o pesquisador explicou como Considerou-se que Mayra pode ter criado uma
funciona o processo de extinção operante, quando regra segundo a qual se tornar um adulto poderia
há quebra de contingência de reforço, e o processo ser uma condição pré-aversiva. É possível que essa
de explosão pós-extinção, para prevenir que os pais regra não tenha selecionado comportamentos asso-
reforçassem, inadvertidamente, comportamentos- ciados à AN, mas que pudesse figurar entre os de-
-problema, após a quebra da contingência de re- terminantes que mantiveram os comportamentos,
forço, que tenderiam a aumentar de frequência e na medida em que os pais a tratavam como se ela
variar em forma, antes de se extinguirem. fosse uma criança mais nova, desde seu adoecimen-
Foram verificadas, por meio dos instrumentos to, por exemplo, poupando-a de atividades de cui-
de avaliação psicológica empregados nas entrevis- dar da casa, de ir à escola sozinha – todas atividades
tas iniciais, e ao longo das sessões, dificuldades de que ela não tinha condições físicas de fazer.
relacionamento entre Danilo e Milena, que fica- Quando o pesquisador trouxe o assunto em
ram em suspenso desde o adoecimento de Mayra. sessão com os pais, Danilo reconheceu que era di-
O pesquisador constatou que Mayra achava que fícil ver sua filha crescer, não porque não queria vê-
os pais iriam se divorciar, pois havia presenciado -la se desenvolvendo, mas porque achava que sua
brigas nas quais essa possibilidade foi ventilada. função como pai diminuiria e que Mayra sofreria
Considerou-se, então, a hipótese de que o adoe- como adulta. Diante desse contexto, foi explorado
cimento de Mayra poderia estar sendo mantido, o que ele entendia sobre ser adulto e o porquê de
também, pela impressão que a paciente tinha (e que sua dificuldade em ver sua Mayra crescer. O pes-
reportou em terapia), de que desde que ela ficara quisador sugeriu que Danilo achava difícil a vida de
doente, seus pais estavam mais unidos. um homem adulto, e ele concordou. Reportou que
tem sentimentos de melancolia e de idealização do suas dificuldades poderia ser, indiretamente, uma
passado, desde muito cedo, após a morte de seu pai, maneira de cuidar de sua filha, uma vez que com
quando ele tinha 19 anos e precisou de tratamento mais autoconhecimento ele poderia ser um modelo
para depressão em diversos momentos de sua vida. positivo para sua filha e aperfeiçoar e desenvolver
Foi pontuado que aquela era a história dele, e repertório comportamental educativo adequado.
que a vida de um adulto pode ser tão boa ou até Por fim, o pesquisador pontuou que os filhos, prin-
melhor que a infância, na medida em que o desen- cipalmente crianças e adolescentes, aprendem mui-
volvimento neuropsicomotor e socioemocional to mais por modelo do que por instruções.
permite maior autonomia. Adicionalmente, foi va- Embora não tenha sido uma recomendação do
lidada sua impressão de que todo desenvolvimento pesquisador, ao final do tratamento, os pais troca-
também implica perdas. O pesquisador sugeriu a ram a escola de Mayra. A adolescente havia pedido
Danilo que procurasse psicoterapia individual para a mudança aos pais e pesquisado espontaneamente
abordar suas dificuldades, e enfatizou que cuidar de escolas próximas à sua residência. Os pais atende-
Tabela 1 . Análise funcional molar dos comportamentos de atividade física, exercício físico e restrição
alimentar de Mayra.
• Adoção de uma irmã -> privação • Restrição ali- • Perda de peso Curto Prazo
de atenção mentar (SR+/SR-) • Livrar-se das situações de bullying (SR-)
• Comer transtornado1 da família • Fazer exercício • Livrar-se dos comentários sobre o tamanho do
• Pais seguindo dietas restritivas físico prato, na escola (SR-)
• Bullying na escola relacionado • Elogios de colegas, pais, do professor de Ballet
ao sobrepeso. (colegas chamam e do médico pediatra (SR+)
Mayra de gorda, olham para seu • Ficar em conformidade com a regra sobre ser
prato e perguntam, com tom des- muito magra para ser uma boa bailarina (SR+)
denhoso: “Mayra, você vai comer
tudo isso”? • Sensação de controle do corpo e da alimenta-
ção (SR+)
• Regra: “para ser uma boa baila-
rina é preciso ser muito magra” • Evitar sensação de estar envelhecendo (SR-)
• Regra: “as melhores bailarinas • Atender à orientação médica de perder peso
não têm peito nem bunda” (SR+)
• Autorregra: “meu pai não quer • Atenção dos pais (SR+)
que eu cresça”. • Evitar o divórcio dos pais (SR-)
• Pediatra indica restrição de açu-
cares e gorduras com a finalidade Longo Prazo
de postergar a puberdade. • Desnutrição associada à anedonia e fadiga
• Pais brigando e falando sobre (SP+)
divórcio na presença de Mayra. • Ideias obsessivas sobre peso, forma, alimenta-
• Regra: “só as pessoas com ção e comida (SP+)
pouca força de vontade comem • Medo intenso de ganhar peso (SP+)
as coisas que querem” • Isolamento social (SP-)
• Sensação de perda de controle (SP+)
• Restrição de liberdade (SP-)
1 Comer transtornado é um termo recente que descreve comportamentos alimentares característicos de transtornos alimen-
tares (por exemplo, pular refeições, calcular as calorias das refeições, ter compulsões alimentares, evitar alimentos e grupo de
alimentos considerados proibidos, apresentar medo intenso de ganhar peso ou perder o controle da alimentação, fazer jejum)
que não se apresentam em frequência para satisfazer critérios diagnósticos para um transtorno alimentar, e nem prejudicam
o funcionamento adaptativo do indivíduo de maneira pervasiva.
ram ao seu pedido, ao verificarem que o perfil da permanecendo eutrófica. Desde o início da inter-
escola anterior acabava por reforçar as característi- venção, foram recuperados 7,8kg. Foi verificada
cas de personalidade mais rígidas e perfeccionistas amenorreia secundária na avaliação inicial, e os
de Mayra. Na nova escola, a paciente não foi con- ciclos menstruais estavam regulares ao final do tra-
testada sobre a alimentação e não houve nenhum tamento e permaneceram estáveis no seguimento.
tipo de hostilidade relacionada a peso e comida.
Na Tabela 1 estão descritos os determinantes an- Severidade do Transtorno Alimentar
tecedentes e consequentes dos comportamentos de Com relação à gravidade das alterações cognitivas
restrição alimentar e de realização de atividades e e comportamentais típicas do quadro de AN, con-
exercícios físicos com finalidade de perder peso. forme a Figura 1 ilustra, no início do tratamento,
Mayra apresentava indicadores de psicopatologia
Evolução dos indicadores antropométricos alimentar bastante elevados em todas as subesca-
Mayra iniciou o tratamento com 36,9kg (IMC=15,9; las. Esses escores, que podem variar de 0 a 6, esta-
Z-score [IMC/Idade]=-1,27). Devido à dificuldade vam todos acima de 4, com exceção da subescala de
de ganho de peso nas primeiras sessões e ao risco preocupação com a comida. No entanto, é preciso
associado ao baixo peso, Mayra foi afastada das ati- analisar esse resultado com cautela, considerando
vidades escolares e ficou em regime de internação que a preocupação com a comida era pequena, uma
domiciliar, sempre supervisionada por um dos pais, vez que a paciente era bem-sucedida na restrição
que revezavam a tarefa de realimentá-la e de evitar alimentar e não ingeria alimentos considerados ca-
exercícios e atividades físicos. A internação domi- lóricos ou gordurosos.
ciliar foi realizada até o início de dezembro, quan- Ao final do tratamento, houve redução expres-
do a paciente voltou, gradativamente, às atividades siva da severidade do TA, com exceção dos escores
escolares. de preocupação com a comida, que ficaram mais
Mayra chegou ao final do tratamento eu- elevados. Isso pode ser explicado porque houve
trófica, com 43,5kg, havendo recuperado 6,4kg quebra da contingência de reforço negativo, se-
(IMC=18,34; Z-score [IMC/Idade]=-0,21). No pe- gundo a qual, a resposta de restrição alimentar
ríodo de seguimento, a paciente recuperou mais produzia alívio da preocupação com a comida. Em
1,4kg (IMC=18,93; Z-score [IMC/Idade]=+0,04), outras palavras, Mayra passou a ser supervisiona-
Figura 1. Alterações cognitivas e comportamentais associadas ao quadro de AN, avaliados pelo EDE.
Fonte: Elaborado pelos autores
Escore Bruto 34 20 18
Escore Ponderado (T) 73 61 59
Internalizantes
Percentil >98 87 81
Classificação Clínico Limítrofe Normal
Escore Bruto 15 6 6
Escore Ponderado (T) 60 46 46
Externalizantes
Percentil 84 34 34
Classificação Limítrofe Normal Normal
Escore Bruto 78 40 37
Escore Ponderado (T) 66 53 51
Totais
Percentil 95 62 54
Classificação Clínico Normal Normal
Conclusão
O objetivo nessa pesquisa foi apresentar o proces- A partir do processo de construção das análises
so e os resultados de uma intervenção familiar, de funcionais, que nortearam a intervenção, foi possí-
orientação analítico-comportamental para o tra- vel ilustrar como a complexa interação entre variá-
tamento de um caso de AN na adolescência. Há veis dos níveis filogenético, ontogenético e cultural
indícios de que o tratamento tenha produzido re- atua na seleção e manutenção de comportamentos
sultados positivos em termos de recuperação nutri- associados ao quadro de AN, e de que modo essas
cional (normalização do peso e status menstrual) variáveis podem ser manejadas pelo clínico, ao lon-
quanto em termos de indicadores de psicopatologia go do processo de psicoterapia. Considera-se que o
alimentar e indicadores de psicopatologias. processo de psicoterapia analítico-Comportamen-
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Rocha, M. M. (2012). Autoavaliação de competên-
cias e problemas de comportamento entre ado- Histórico do artigo:
lescentes brasileiros: um estudo de validação Submetido em: 01/02/2021
do Inventário de Autoavaliação para Jovens Aceito em: 23/06/2021
(YSR/2001). [Tese de Doutorado, Universidade Editora Associada: Jocelaine M. Silveira
de São Paulo].