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Welcome to the Promise City

Greg Cox

Traduzido por:
Vinícius Fernandes
Helena Padim

Disponível em:
brenooficial.wordpress.com

UM

− É a hora, pai − disse Kyle.

Ele entregou ao pai uma seringa contendo um luminoso líquido âmbar.


Tom Baldwin girou a seringa entre os dedos enquanto contemplava a dose de
promicina em suas mãos. Para muitas pessoas, a injeção ilegal oferecia chances de
50% de ganhar uma notável habilidade sobrenatural – ou de morrer de uma
maneira horrível. Mas Tom estava destinado a sobreviver à dose, ou pelo menos
fora o que tinham lhe contado. De acordo com seu filho, o futuro queria que ele
desenvolvesse uma habilidade própria.

Talvez hoje…?

― Sua identidade, senhor?

A voz arrancou Tom de sua lembrança, trazendo-o de volta ao presente.


Batidas na janela do lado do motorista de seu sedan Chrysler azul. Ele baixou o
vidro e entregou a identidade a uma dos guardas da fronteira postada na barricada.
Uma brisa úmida de janeiro invadiu o carro, assim como o odor de cansaço. Dúzias
de veículos formavam uma fila na I-5 enquanto aguardavam permissão para
deixarem Seattle. A julgar pelas caixas e malas pressas aos tetos dos carros, e
pelos grandes trailers U-Haul, muitos deles estavam saindo de vez.

Menos de dois meses haviam se passado desde que um surto de promicina


que se espalhava pelo ar assolou Seattle, matando mais de 9000 pessoas, e a
cidade ainda não tinha se recuperado do desastre. O fato de que outras nove mil
pessoas, mais as que haviam sido dotadas com habilidades sobrenaturais contra
suas vontades, apenas contribuía para essa instabilidade. Sem espanto, milhares
de sobreviventes, especialmente pessoas normais sem habilidades especiais,
escolheram procurar pastos mais seguros em outro lugar. Mais de quatro milhões
de pessoas viviam em Seattle; e quase três quartos desse número haviam
diminuído.

Tom não podia culpá-los. Seattle era um lugar perigoso atualmente.

E fica mais ainda a cada momento, ele pensou.

A guarda examinou as credenciais de Tom. Um uniforme de colarinho alto,


cor de pinho e em ótimas condições a identificavam como uma das voluntárias
Policiais da Paz de Jordan Collier. “NTAC, é?”, a voz da mulher se tornou áspera. O
Comando Nacional de Avaliação à Ameaças (National Threat Assessment Command,
em inglês) não era exatamente popular entre os seguidores de Jordan Collier, o
incontroverso líder do Movimento Promicina-Positiva, que havia tomado, em grande
parte, Seattle, conhecida em alguns círculos, agora, como “A Terra Prometida”.
Durante o desastre, seu povo, que era imune à praga (tendo se exposto à
promicina anteriormente), havia dado um passo à frente para manter a ordem – e
fazer Seattle se render às autoridades. Embora Collier ainda não tivesse declarado
oficialmente a independência da cidade, e tivesse impedido-a de tomar qualquer
título ou posição formal, ele e seus companheiros estavam no controle do governo
e da infraestrutura da cidade. Até onde movimento sabia, NTAC, um divisão da
Segurança Doméstica, era parte da velha opressão a qual eles haviam usurpado – e
jogado-a nos lixos da história.

— Isso mesmo — disse Tom. Ele não conseguia evitar pensar qual o tipo de
habilidade que a guarda possuía; todo o povo de Collier havia sido mudado por
promicina de um jeito ou de outro, e acreditava que tinha um destino sagrado de
mudar o mundo. Até o nome do desastre era controverso. Collier e seus seguidores
de referiam a ele como “O Grande Passo Adiante”. A maioria do resto o chamava de
“50/50”.

Ele manteve a voz neutra, sem querer provocá-la. A guarda não parecia
estar armada, mas isso pouco importava no que dizia respeito aos p-positivos. Pelo
que Tom sabia, essa mulher podia matá-lo com um pensamento.

— Acho que vai ver que meus papéis estão em ordem.

A guarda olhou de soslaio para sua identidade.

— Acho que sim — concordou ela, com rancor. — No entanto, se eu fosse


você, continuaria andando e nunca mais voltaria.

Ela jogou os papéis de volta para ele.

— Seu tipo não pertence mais a este lugar.

Tom sentiu-se tentado a deixar claro que ele nascera e crescera em Seattle
e que tinha muito mais direito de viver ali do que qualquer outra pessoa, mas
segurou sua língua. Tinha assuntos mais importantes com os quais lidar hoje,
desde que ele conseguisse sair da cidade.

— Te vejo mais tarde — disse ele, simplesmente. — No meu caminho de


volta.
A guarda franziu as sobrancelhas, mas acenou mandando-o continuar. Um
portão de alumínio automático elevou-se e o deixou passar. Um par de cones
metálicos laranjas cercava a estrada. Embora estivessem desativados agora, os
cones eram capazes de gerar ondas de dores intensas quando ativados. Eram a
primeira linha de defesa da Terra Prometida.

Tom não se importou em fechar a janela antes de se dirigir para o norte, já


que tinha apenas meio quilômetro antes de parar em um segundo bloqueio. Este
era formado por imponentes soldados empunhando armas automáticas. Seus
uniformes e insígnias os identificavam como membros do exército americano. Um
guarda se aproximou do lado do motorista do carro.

Lá vamos nós de novo, pensou Tom.

Um impasse difícil existia entre o governo federal e a Terra Prometida, os


federais dificilmente ficariam felizes em entregarem uma grande cidade americana
a um traficante messiânico com um culto de perseguidores, mas as habilidades
extraordinárias de Jordan Collier e seu povo, assim como a tecnologia futurística
em seu comando, faziam a retomada de Seattle exigir grande empenho. Mesmo
antes da praga, a comunidades de revolucionários p-positivos conseguira evitar
qualquer tentativa do governo de levá-los sob custódia. Agora, com seu exército
literalmente ganhando milhares de novos recrutas, Collier era muito conhecido – e
não somente em Seattle. Sabia-se que ele possuía agentes; capazes de gerar
tornados, furacões e Deus sabia o que mais, posicionados pelo país inteiro, prontos
para causar destruição se os Federais tentassem enviar tropas para retomar
Seattle.

O que serão obrigados a fazer eventualmente, pensou Tom. Todos sabiam


que um confronto maior era inevitável, mas ninguém queria uma nova versão de
Waco na cidade, então as forças de ambos os lados estavam aproveitando seu
tempo e segurando suas respirações. Como o resto de nós.

Ele mostrou sua identidade ao soldado, um rapaz jovem aparentemente da


mesma idade de Kyle. O guarda relaxou um pouco quando viu as credenciais da
NTAC de Tom. Seus parceiros armados se postavam cautelosamente, segurando
firmemente seus rifles de assalto M16. Ele não culpava os guardas por serem tão
cautelosos; eles estavam na fronteira de uma evolucionária guerra civil.

— Por favor, saia do veículo — pediu o jovem guarda. Ele deu um passo
para longe da porta.

Tom suspirou impaciente, mas não tentou desobedecer. Saiu do carro.


Uma jaqueta escura, uma camiseta pólo de gola aberta e calças escuras o
distinguiam dos outros. Cabelos loiros arenosos coroavam suas feições enrugadas.
Os exaustos olhos azuis entregavam as situações que ele passara nos últimos
quatro anos. Abriu o blusão para revelar o coldre pendurado em seu quadril. O
guarda olhou desconfiadamente para a arma, mas nada fez. Tom ficou parado
enquanto o jovem soldado digitava seu nome em um PDA, comparando com uma
enorme lista dos conhecidos como “terroristas” p-positivos. Cães Pastores Alemão
checaram o Chrysler para certificarem-se que Tom não estava contrabandeando
promicina para fora da cidade.

Embora fosse distribuído abertamente em alguns bairros de Seattle, o


neurotransmissor artificial continuava sendo estritamente ilegal no resto do mundo.
A mera possessão de promicina trazia um mandato de prisão, o que não fez Collier
e seus discípulos pararem de tentar dar a droga para quem a quisesse, de graça. E
segundo ocorrências que Tom havia visto, Collier estava conseguindo atingir seus
objetivos, exceto com as tais medidas rigorosas que Tom experimentava neste
momento.

Depois de feita uma boa busca no carro, os cães se aproximaram e


também farejaram Tom, no caso de ele estar carregando a promicina no próprio
corpo. Ele tentou recuar quando os caninos suspeitos invadiram seus espaços
pessoais.

Que bom que deixei aquela seringa em casa…

Tom estava sentado no sofá de sua sala de estar, com a seringa nas mãos.
O estranho brilho amarelo da promicina causava arrepios em sua espinha. Ele havia
testemunhado de perto o efeito causado naqueles que não tiveram sorte suficiente
para fazer história com o 50/50, vendo o sangue brilhoso jorrar de seus olhos e
narizes como convulsões violentas que consumiam os últimos momentos de suas
vidas. Tomar a dose era como brincar de roleta russa, mas com os piores
acidentes. Sua própria irmã havia sido morta pela promicina menos de uma
semana antes, junto com milhares de vítimas inocentes.

Não acredito que estou mesmo considerando isso, ele pensou.

— Vá em frente, pai. — Kyle o instigou. Seu filho, um jovem magro com


cabelo castanho curto, estava sentado ao seu lado no sofá. Ele estava vestido
casualmente, com uma camiseta branca listrada e calças jeans. Uma mochila de
ombro, contendo um livro de profecias místicas, estava amarrada ao seu peito. Kyle
já tomara a dose, contra a vontade de Tom, há muitos meses e abandonara a
faculdade para se tornar o braço direito de Jordan Collier. Tom não entendia muito
bom como funcionava a habilidade de seu filho, mas sabia que ele havia adquirido
algum tipo de dom pré-cognitivo que o havia levado até um livro misterioso que
parecia profetizar a ascensão de Collier e do eventual “Paraíso na Terra”. Tal livro
também listava diversos indivíduos que estavam destinados a desempenhar
importantes papéis na salvação do mundo.

O nome de Tom estava nessa lista.

Alguns anos antes, ele não teria levado a sério essa conversa sobre
profecias e destino. Havia sido um agente federal cético com curta paciência para
papo furado sobre ficção científica. Mas isso fora antes de 4400 pessoas
desaparecidas aparecerem repentinamente nas cercanias de Seattle com estranhas
habilidades e sem memórias de onde haviam estado. Os 4400 viraram o mundo de
Tom de cabeça para baixo, mesmo antes de ele descobrir que o retorno deles fora
providenciado por agentes do tempo do futuro, como parte de um plano elaborado
para impedir uma catástrofe eventualmente. No começo, somente os 4400
“retornados” possuíam habilidades sobrenaturais, mas uma vez que o
neurotransmissor responsável pelos seus dons fora isolado e replicado—por uma
iniciativa patrocinada pelo governo, ironicamente—o gênio da promicina saíra da
garrafa. Agora, Tom não sabia no que acreditar. Nesse cruel mundo novo de
viagens no tempo, telepatia, projeção astral, e qualquer outro caso de esquisitice,
por que um livro mofado não podia predizer seu futuro? Especialmente se ele
tivesse sido implantado no passado por agentes do futuro.

Mas com que propósito?


— Vai dar tudo certo, pai. — Kyle insistiu. Convicção, e um fervor religioso,
brilharam em seus gentis olhos castanhos. Diferentemente do pai, ele tinha fé total
em Collier e na sua visão do futuro. — O livro diz que você vai sobreviver.

— Não sei — replicou Tom, balançando a cabeça. — Não tenho certeza se estou
pronto para isso. Não depois de tudo pelo que passei recentemente.

Sua mão foi até sua orelha esquerda, onde os dedos encontraram uma
marca em forma de X escondida atrás do lóbulo. A intrigante cicatriz era um
lembrete de que, há menos de uma semana, Tom havia sido Marcado por
conspiradores do futuro, que haviam tomado mentes e corpos de homens e
mulheres proeminentes numa tentativa traiçoeira para impedir que Collier e seus
seguidores mudassem o futuro. Os Marcados, que pertenciam a uma facção rival
aos viajantes do tempo que haviam retornado os 4400 ao presente, haviam
injetado máquinas microscópicas—nanômetros—em Tom que haviam substituído
sua personalidade por a de um impostor sem piedade que faria de tudo, até mesmo
assassinato, para cumprir a sinistra agenda dos Marcados.

Os assassinatos ainda assombravam a memória de Tom, como um


pesadelo do qual não se podia acordar. Ele olhou de relance para mesinha de
centro em frente ao sofá. Os rostos de Curtis Peck e de Warren Trask o encaravam.
Ele se lembrava de ter matado os dois.

A culpa o invadiu. Embora ele soubesse que intelectualmente não havia


sido o responsável pelas mortes dos homens, que havia sido literalmente possuído
por outra entidade quando cometera os assassinatos, ainda assim não sabia se
podia viver com as lembranças.

Kyle achava que tomar a dose faria tudo melhorar. Isso justificaria toda a
dor e sofrimento que Tom vinha enfrentando e abriria uma porta para um futuro
melhor para toda a raça humana. Tom não tinha tanta certeza…

— Acabei de voltar a mim, Kyle. Acabei de… tirar essas coisas do meu
cérebro — Ele colocou a seringa na mesinha, ao lado das fotos acusadoras. Olhou
para o filho, esperando que Kyle entendesse. — Não estou pronto para injetar outra
poção do futuro no meu corpo. Mesmo que isso não me mate, não quero mais
mudar. Quero ser o simples, comum, Tom Baldwin novamente.

— Mas… — Desapontamento tomava o rosto longo de Kyle. Ele vinha


“empurrando” a dose para o pai há meses. — A profecia, o Paraíso na Terra… Você
tem que tomar a dose. O futuro depende disso.

— Talvez — disse Tom. Ele odiava ter que desapontar Kyle desse jeito. O
recém-formado comitê de seu filho para a causa de Collier se punha com frequência
entre eles. Ainda assim, ele colocou a seringa numa malinha almofadada e fechou a
trava. — Mas não hoje.

— Certo — informou o guarda. — Está limpo.

Tom entrou novamente no carro e passou pelo bloqueio. Deixando a Terra


Prometida para trás, pelo menos por algum tempo, ele dirigiu para o norte na
Interestadual 5. O trânsito era intenso para uma tarde de domingo, mas diminuiu
assim que ele entrou na 526. Uma curta travessia o levou das docas em Mukilteo
para o sudeste de Whidbley Island. De onde estava, era apenas um curto trajeto
através da ilha para seu destino: o Parque Estadual Fort Casey.

Localizado no topo de íngremes abismos, sobrepondo-se sobre o litoral de


Juan de Fuca, Fort Casey fora construído por volta de 1890 para guardar a entrada
de Puget Sound de ataques marítimos. Embora tivesse sido um presente antigo
pelo advento de poder aéreo depois da Primeira Guerra Mundial, a posição
imponente da fortaleza fora preservada como um monumento histórico. Colunas
massivas de concretos encaravam as ondas abaixo. Artilharia antiga estava
montada em carruagens ocultas no topo das paredes cinza encharcadas. Torres de
vigilância afluíam das colunas. Escadarias e passarelas dilapidadas haviam servido,
antes, para tropas que passavam por ali. Um farol branco alto fora construído um
pouco mais acima da margem, apenas a uma pequena caminhada da fortaleza. Sua
aparência pálida e aconchegante entrava em contraste com as ameaçadoras ruínas
militares.

Tom se lembrava ter levado Kyle ali anos atrás. Uma nostalgia angustiante
trespassou seu coração enquanto ele se recordava de como o garoto havia gostado
de explorar a velha fortaleza. Juntos, eles haviam empunhado as armas anciãs e
fingido atirarem em navios de guerra imaginários. A vida parecia muito mais
simples antes. Agora Kyle era um homem crescido, empenhado nas perigosas
ambições de Jordan Collier, e os verdadeiros invasores vieram através do tempo,
não do mar. Fort Casey era mais obsoleto do que sempre.

Um campo gramado separava o estacionamento das colunas. Em dias mais


ensolarados, o campo geralmente atraía pessoas que gostavam de empinar pipa
que enchiam o céu com elaboradas construções aéreas, mas o inverno desanimador
havia espantado os visitantes. Uma névoa úmida cobria o chão. Uma forte garoa
caía de um céu nublado. Havia somente mais um carro parado ali perto: um Lincoln
Town com placa de Washington.

Parece que temos o lugar só para nós, pensou Tom. Provavelmente


também, sobre o que quer que o encontro secreto fosse, não era de interesse
público. Por que escolher um ponto de encontro tão heterodoxo?

A curiosidade, assim como a chuva incessante, o levou através do campo.


Ele fez caretas quando a água gelada escorreu pela sua nuca; como muitos nativos
de Seattle, ele não seria visto carregando um guarda-chuva. Uma rápida corrida o
levou até uma passagem em forma de arco na base da coluna mais próxima. Uma
porta de ferro flanqueava a soleira. Ele entrou nos confins de um tenebroso
armazém de tiros e pólvoras. A sala escura estava vazia com uma cela de prisão.
Algas verdes se esticavam pelas paredes de concretos. Uma haste vazia de
elevador conectava o armazém de pólvoras com as armas amontoadas um nível
acima. A água da chuva entrava pela porta, molhando o chão de pedra rígida.

Tom balançou a água do cabelo e olhou em volta da sala. A princípio, não


viu ninguém e imaginou que talvez houvesse entrado no armazém errado. A velha
fortaleza era cheia de cantos isolados, o que contribuía para o local ser escolhido
para o encontro. As densas paredes de concreto desencorajavam qualquer
vigilância eletrônica.

Sem chance alguma, como posso ver.

Ele estava prestes a sair na chuva quando ouviu um ruído de locomoção às


suas costas. Sua mão foi instintivamente para o coldre enquanto ele se virava para
ver duas figuras emergindo de um dos armazéns interligados. Uma era masculina,
a outra feminina. O primeiro não era alguém que ele estivesse ansioso para ver.

— Já era hora de chegar aqui — disse Dennis Ryland. — Você está


atrasado.
DOIS

O ex-chefe de Tom era magro, tinha cabelos negros e era mais ou menos vinte
anos mais velho que ele. Um casaco de lã cinza cobria sua figura magra. Astutos
olhos castanhos surgiam em seu rosto traiçoeiro. Depois de ter sido expulso da
NTAC por causa de um grande escândalo há três anos, Ryland acabou na
Corporação Haspel, uma firma privada de segurança que geralmente trabalhada
lado a lado com os federais quando dizia respeito a destruir 4400 e outros
positivos. Se duvidasse, Ryland até tinha mais poder do que antes—e menos
supervisão. Isso o fazia um homem perigoso. Muito perigoso, até onde Tom sabia.

— Olá, Dennis — disse ele, friamente. Sua mão se afastou da arma.

Ryland olhou para um caro relógio de pulso Rolex. A vida num setor
privado claramente tinha seus benefícios.

— Estava começando a pensar que tinha desistido.

— Pensei nisso — confessou Tom. Ele e Dennis haviam sido amigos uma
vez, mas havia pouca amizade sobrando entre eles atualmente. Tom ainda julgava
p-positivo como pessoas; Ryland os via apenas como ameaças a serem
neutralizadas e preferencialmente eliminadas. A amizade deles não tinha
sobrevivido a esse confronto de pontos de vista. — É melhor que isso valha a
viagem.

Um sorriso seguiu-se ao tom hostil de Tom.

— Desculpe te fazer vir até aqui — disse Ryland —, mas, como você sabe,
eu não sou mais bem-vindo em Seattle.

— Imagino — disse Tom. Entre outras coisas, Ryland estivera por trás de
um complô para envenenar os 4400 originais com uma droga experimental que
quase matou todos os retornados, inclusive o próprio sobrinho de Tom. Embora
Ryland tivesse recebido apenas uma leve punição devido ao infame Escândalo do
Inibidor, Collier e seus seguidores se referiam a ele como “criminoso de guerra”.
Banir Haspelcorp de Seattle era apenas um dos primeiros itens na agenda de
Collier. Da última vez que Tom ouvira, a empresa estava localizada fora de Tacoma,
o que ainda era perto demais para conforto.

Ryland observou o tom sarcástico de Tom. Ele gesticulou na direção de sua


acompanhante: um jovem asiática vestindo um sobretudo branco com cinto. Seu
cabelo era de um corte curto e bagunçado. Apesar disso, um elegante par de óculos
escuros ocultavam seus olhos.

— Você deve se lembrar de minha sócia, a senhorita Simone Tanaka.

— Como poderia esquecer? — disse Tom, ironicamente. Ele e sua parceira


haviam prendido Tanaka pessoalmente mais de um ano e meio atrás, depois de
expô-la como parte de um extinto grupo conhecido como “Nova Group”. Ele
perdera o rastro dela depois que a National Security a levou sob custódia, e ficou
pouco surpreso de encontrá-la trabalhando com Ryland. Filosoficamente, Nova
Group e Haspelcorp estavam em lados opostos; Nova Group até mesmo tentara
assassinar Ryland há algum tempo. — Uma empresa um pouco estranha, não é?
Para uma ex-radical, quero dizer.

Ela deu de ombros.

— Os tempos mudam. Dada a escolha entre passar o resto de minha vida


trancada numa solitária, dopada pelo inibidor, ou emprestar meus talentos
especiais para as autoridades em troca de certos privilégios… Bem, você ficaria
surpreso como a opinião de alguém pode mudar.

Talvez para algumas pessoas, pensou Tom. Ainda assim, ele estava
relutante em julgar Tanaka tão cruelmente. Quem sabia o tipo de pressão que
Ryland e seus comparsas exerciam sobre ela para sua cooperação? Sem mencionar
o fato de que a linha entre os mocinhos e os bandidos estava ficando realmente
borrada. Tanaka não era a única cujas alianças haviam mudado com o tempo. Às
vezes, até mesmo Tom não sabia de que lado estava.

— Dispensando as formalidades — disse Ryland. — Vamos nos focar no


trabalho?

Tom balançou a cabeça.

— Ainda não. — Ele encarou os dois suspeitosamente. — Me deixe checar a


parte de trás de suas orelhas.

— Acha que estou Marcado? — Ryland bufou com a ideia. — Está ficando
paranoico, Tom.

— Tenho razões para estar. — Tom não estava surpreso que Ryland sabia
sobre os Marcados; sem dúvida seus contatos no Comitê de Inteligência haviam lhe
contado sobre os conspiradores ladrões de corpos. Ele se postou atrás de Ryland e
de Tanaka. — Se não se importam.

Ryland suspirou cansado.

— Se isso te deixar mais tranquilo. — Ele deixou que Tom olhasse atrás de
sua orelha. Para o alívio do agente, a pele sob o lóbulo não continha uma cicatriz
no formato de um X.

— Percebe que isso é uma perda de tempo, não percebe? — objetou Ryland. —
Dificilmente eu precisaria ser possuído por uma sinistra entidade do futuro para
querer salvar o país dos 4400 e do movimento revolucionário de Collier.

Ele tem razão nisso, admitiu Tom. Marcar Ryland seria redundante; o homem já era
obcecado em destruir os 4400.

— Acho que você e os Marcados estão na mesma página.

— Sabe o que dizem — Ryland respondeu. — O inimigo do meu inimigo, etc.

Tom não gostou de como aquilo soou. Era apenas um blefe ou ele estava mesmo
tomando lados com os Marcados? Deus sabe que eles tinham planos parecidos e
andavam no mesmo imponente círculo industrial-militar. Isso poderia trazer
grandes problemas.
Convencido de que o preconceito de Ryland vinha dele mesmo, e que não fora
implantado por algum dos Marcados, Tom se moveu na direção de Tanaka. Havia
mais alguma outra coisa nela que interessava Ryland?

— Com licença — disse ele enquanto se postava atrás dela. — Seus óculos.

— Vá em frente. — Ryland a instruiu.

De costas para Tom, ela removeu os óculos. Dedos delicados tiraram o cabelo de
sua orelha. Uma lufada de perfume fez cócegas nas narinas de Tom.

— Faz isso com toda garota que conhece?

Faria se eu fosse solteiro, pensou Tom. Ele estivera se envolvendo com sua chefe,
Meghan Doyle, havia meses. E, para dizer a verdade, às vezes ele checava por trás
da orelha quando estavam fazendo amor ou no chuveiro. Ele tentava ser sutil com
isso, mas suspeitava de que Meghan sabia o que ele fazia, mesmo que ela nunca
houvesse dito alguma coisa. Meghan entendia o que os Marcados haviam feito com
ele. Ela fora umas das primeiras que enxergara através do falso Tom.

— Isso não é da sua conta — replicou ele. A pele da mulher provou estar
igualmente sem marcas e ele se distanciou dela. Ela colocou os óculos.

— Satisfeito? — Ryland perguntou a ele.

— Por enquanto. — Tom virou-se para encarar o casal. — No entanto,


parte de mim meio que deseja que tivesse encontrado uma Marca em você. Isso
explicaria o que aconteceu com o homem que eu conhecia.

— Eu nunca mudei — insistiu Ryland. — É você quem deixa seu apego


sentimental a essas ameaças fazer com que não enxergue o que precisa ser feito.
Falando nisso, ouvi que você e que a Diretora Regional Doyle estão gozando de
uma íntima relação incomum no trabalho. — Ele balançou a cabeça, desaprovando.
— Primeiro a Mareva e agora mais uma aberração p-positiva?

Junto com outros funcionários da NTAC, Meghan havia sido


involuntariamente infectada por promicina durante o 50/50. E como os outros
sobreviventes, ela desenvolvera uma habilidade 4400. Isso impusera um dilema
para a NTAC, que ainda estava encarregada de continuar a luta contra promicina.
Como resultado, a agência havia adotado uma política “não pergunte, não conte”
envolvendo todos os funcionários que haviam ganhado habilidades contra suas
vontades. Todos sabiam o que havia acontecido com eles, mas deviam ser discretos
quanto a isso… ou enfrentar um extermínio imediato.

— Cuidado com o que diz. — Tom o alertou. Ele ficou tentado a socar
Ryland no nariz, mas escolheu não ceder. Afinal de contas, ele ainda não sabia por
quê o homem pedira este encontro. — O que você quer, Dennis?

— A mesma coisa de sempre — declarou Ryland, indo direto ao assunto. —


Evitar que os 4400 e os outros positivos destruam nosso modo de vida e coloquem
em risco nossa segurança nacional. Hoje, isso significa destruir Collier e seu
Movimento.

Ele levantou um frasco de plástico e colocou dois comprimidos marrons em


sua palma antes de jogar as pílulas na boca. Tom reconheceu os comprimidos como
ubiquinona, um suplemento nutricional comum que, em dosagem suficiente, podia
dar imunidade temporária à promicina. As autoridades vinham estocando “U-pills”
há meses, apesar do esforço de Collier de sabotar a iniciativa através de suspeitos
terremotos cirúrgicos e tornados. Todos o agentes p-negativos da NTAC recebiam
rotineiramente doses de emergência quando estavam e missão. A de Tom estava
guardada no seu bolso traseiro.

— Infelizmente — continuou Ryland. —, como mencionei antes, meu


pessoal não é bem-vindo em Seattle, o que significa que são você e seus colegas
quem devem destronar Collier, mesmo que isso signifique tirar vantagem da
conexão de seu filho com Collier.

— Kyle? — Tom se arrepiou com a ideia. — Quer que eu explore meu


próprio filho?

Ryland não negou.

— Como confidente e braço direito de Collier, ele é o único meio que


seríamos burros se não utilizássemos. Entendo que isso que te coloque em uma
posição difícil, mas seu dever com o país é maior do que sua obrigação familiar. —
O tom severo lembrou Tom de como Ryland liderava o escritório noroeste da NTAC.
— Você ainda é um agente federal, Tom. Não me diga que aprova Collier
transformando Seattle em seu próprio feudo?

— Claro que não. — Tom não confiava nem um pouco em Collier, mesmo
que eles tivessem sido forçados a trabalharem juntos em uma ocasião. De fato,
NTAC já estava fazendo o melhor para ficar de olho em Collier e em sua
organização, dada a situação atual. Mas ele não gostava de receber ordens de
gente como Ryland. — Deixe o Kyle fora disso.

— Queria poder deixar — disse Ryland. — Eu costumava ir às festas de


aniversário dele, se lembra? Pelo que me recordo, ele gostou muito daquele kit de
química que dei quando fez onze anos. — Sua voz assumiu um tom de pena. —
Mas o Kyle fez seu próprio jogo quando decidiu se juntar a Collier. — Ele não
resistia tocar um pouco na ferida. — Você já pensou que você é um mau exemplo
por dormir com o inimigo?

Tom franziu o rosto.

— Você não vai ganhar aqui, Dennis. Por que deveria te ajudar?

— Os nomes Curtis Peck e Warren Trask te lembram algo? — O rosto


magro de Ryland se tornou rígido. Tom recuou à menção do nome do homem que
ele assassinara enquanto estava Marcado. — Odiaria vê-lo pagar por crimes que
cometeu quando estava fora de si, mas não posso evitar que suas atividades
extracurriculares me dão certo poder.

Simone Tanaka deu um sorriso amargo.

— Nossa, isso me soa familiar.

— Não tente me ameaçar. — Tom não tinha certeza se o outro homem


estava ou não blefando. Agora que começara, usaria o melhor que pudesse. — Não
sou o único com roupas sujas. Você quer que o mundo saiba que a promicina que
Collier usou para impulsionar seu Movimento foi criada pela Haspelcorp durante sua
direção? Pelo que eu saiba, isso o torna indiretamente responsável por tudo o que
aconteceu desde então. Incluindo o 50/50.

Ryland ficou carrancudo, incapaz de contradizer as acusações de Tom.


Collier havia roubado a promicina feita pela Haspelcorp bem debaixo de seu nariz
há dois anos. A droga seria usada para criar um exército reforçado de soldados
para combater os 4400, mas Collier encontrara outro uso para ela, ou seja,
oferecera para o mundo todo.

— Touché — disse Ryland, recuando. Tentou outra carta. — Suponha que


eu te diga que Collier está tentando usar promicina como arma para recriar uma
versão do vírus lançado no ar por Danny Farrel há alguns meses.

Tom estremeceu a menção do nome de seu sobrinho. Danny não queria


machucar ninguém quando se injetou promicina. Só quis ganhar uma habilidade
como seu irmão mais velho, Shawn, um dos 4400 originais. Mas, para seu terror, e
o maior arrependimento do mundo, ele adquirira a medonha habilidade de infectar
qualquer um em volta dele com uma alta forma contagiosa de promicina. Como
uma Typhoid Mary moderna1, ele espalhou a praga por Seattle antes mesmo de
perceber o que estava acontecendo. A própria mãe de Danny—a irmã de Tom—fora
a primeira a morrer.

— Eu vi os laudos — disse Tom, ceticamente. — Muitas evidências médicas


apontavam para os Marcados e seus amigos em grande parte. Eles estão tentando
provocar as autoridades lançando essa jogada contra Collier.

- Aposta mesmo nisso? — Ryland o desafiou. — Além disso, tenho minhas próprias
fontes de informação.

— Quais?

Ryland olhou para Tanaka. A mulher removeu os óculos para revelar um


par de penetrantes olhos castanhos. As íris de um bronze escuro tinham uma fina
auréola dourada em volta delas, dando aos olhos um estranho brilho sobrenatural.
Tom recordou-se de que Tanaka era capaz de ver a longas distâncias, e através de
objetos sólidos, com seus chamados “olhos-espiões”. O Nova Group havia usado
sua espiã durante o “Vesuvius Affair”. Ryland e seus capangas com certeza haviam
usado seus dons oculares também.

— Também posso ler lábios — ela o lembrou.

Isso está mesmo acontecendo?, pensou Tom. A habilidade Tanaka era


valiosa, mas ele estava prestes a fazê-los abrirem a boca. Ela estava interessada
em contar a Tom tudo o que seus novos chefes queriam que ela fizesse, e Ryland
havia mentido antes para ele.

— Se não acredita em mim — disse Ryland. —, veja por si mesmo.

Tom curvou-se e tirou um bloco de notas de seu bolso.

1
N. do T.: Uma lenda de espíritos local. Conta a lenda que Typoid Mary infectou grande parte da cidade
onde vivia, Irondequoit, uma cidadezinha em Monroe Country, New York. O termo hoje é usado para
descrever pessoas com algum tipo de doença altamente contagiosa.
— Como?

Ryland sorriu astutamente.

— Aqui está uma pergunta para você: o que aconteceu com os restos
mortais de Danny Farrel?
TRÊS

O prisioneiro geme no chão da cela. Sangue escorre de um lábio inchado. Ele


segura o lado da cabeça. Um guarda robusto se posta sobre o prisioneiro. Ele
zomba do homem no chão, então chuta fortemente suas costelas.

— Gosta disso, aberração idiota? — berra ele.

Outro guarda aparece do lado de fora da cela. Ninguém percebe a


garotinha pálida assistindo de um canto. Seus olhos arregalados de horror.

O prisioneiro, um negro usando um macacão laranja, tenta se pôr de pé,


mas o guarda grande dá um soco em seu rosto. Ele o golpeia nas costas com um
cassetete de metal, nocauteando-o de barriga para baixo no duro chão de concreto.

— Esperem! — a garota grita, mas ninguém a escuta. Ela é só uma


observadora aqui. Como um fantasma.

O guarda saca uma arma de um coldre. Ele mira o prisioneiro indefeso.

— Hora de dizer adeus, Tyler.

— Pare! — a garota grita. — Você vai matá-lo!

Maia Skouris acordou subitamente. Desorientada pelo pesadelo, demorou


um pouco para que a adolescente percebesse que estava a salvo em sua cama.
Seus grandes olhos castanhos absorveram o cenário familiar. Seu cabelo liso e loiro
estava partido ao meio. Um pôster de Frank Sinatra estava pregado a uma parede.
Roupas sujas se espalhavam pelo chão. Livros didáticos e lições de casa estavam
empilhados sobre uma mesa, ao lado do globo mundial. Seu diário descansava em
uma mesinha de canto ao lado de sua cama. A luz da lua era filtrada através das
cortinas na janela. Um relógio digital a informava que eram 03h20min da manhã.

Meu Deus, ela pensou. Parecia tão real.

— Maia? Você está bem? — A porta do quarto se abriu e sua mãe entrou
apressada. Diana Skouris ligou as luzes quando entrou. Seus cabelos castanho-
avermelhados estavam desalinhados por causa da cama. Uma camisola azul de
algodão cobria seu corpo atlético. — Eu a ouvi chorando.

— Está tudo bem, mãe — respondeu Maia, embaraçada com a confusão. —


Só um pesadelo.

Diana sentou na ponta da cama. Olhos castanhos preocupados


examinaram o rosto da filha.

— Só um sonho comum… Ou uma visão?

Maia sabia o que sua mãe queria dizer. Desde que ela voltara com o resto
dos 4400 há cinco anos, havia sido abençoada—ou amaldiçoada—com ocasionais
relances do futuro. Às vezes as visões a pegavam quando ela estava acordada;
outras vezes vinham em forma de vívidos sonhos perturbadores. Mas elas sempre
se realizavam.
— É o Richard — ela disse. — Richard Tyler. — Assim como ela, Tyler era
um dos 4400 originais. Da última vez que ela ouvira, ele havia sido preso pelo
governo. — Eu o vi na prisão. Um dos guardas estava tentando matá-lo.

— Ah, não — murmurou Diana. Ela não questionava as visões de Maia.


Experiências passadas ensinaram as duas a levar as predições da garota a sério. —
Dava para ver quando isso vai acontecer?

— Não tenho certeza. — Maia admitiu. — Em breve, talvez. — Ela esperava


que não fosse tarde demais. — Temos que salvá-lo!

Sua mãe franziu o rosto.

— Pode ser mais difícil do que parece. Vou avisar na NTAC agora mesmo,
mas a Homeland Security o tem numa prisão de alta segurança em Virginia. Isso
está longe de minha jurisdição. Para falar a verdade, não temos acesso ao Richard
há meses.

Maia frustrou-se com a resposta da mãe. O que havia de bom em ter uma
agente da NTAC como mãe se ela não podia usar seu distintivo para salvar a vida
de um homem? Maia não conhecia Richard muito bem, além do fato de que sua
filha maluca uma vez tentara matá-la, mas os 4400 tinham que zelar um pelo
outro. Era isso o que Jordan sempre dizia, e Maia achava que concordava com ele
cada vez mais à medida que ficava mais velha. Mesmo que sua mãe ainda tinha
dúvidas com relação a Jordan.

— Mas, mãe, você tem que tirá-lo da cadeia. Ele não está a salvo lá!

— Queria que fosse fácil assim, querida. — Ela fechou sua camisola. —
Mas, goste ou não, Richard atacou soldados americanos e agentes da NTAC no
passado, então o governo o tem como um terrorista perigoso. Eu vou passar o seu
aviso para agências relevantes, mas ainda acredito que está fora do meu alcance.

Diana tentou dar à sua filha um abraço reconfortante, mas Maia se afastou
dela.

— Jordan não desistiria assim do Richard — disse ela, mal-humorada.

— Não estou desistindo dele. — Sua mãe protestou. Um tom de


exasperação saiu em sua voz. — E nem pense em contar ao Jordan sobre sua
visão. Já conversamos sobre isso antes. Não quero que se envolva com Collier e
seu culto. É perigoso demais.

Maia fez uma careta e cruzou os braços sobre o peito. Por que sua mãe não
entendia que Jordan Collier estava certo sobre os 4400 e os outros positivos? Nós
temos que mudar o mundo para melhor. Por isso estamos aqui.

— Não sou mais uma garotinha — disse ela, desafiadoramente. — Posso


tomar minhas próprias decisões.

Diana balançou a cabeça.

— Não sobre isso. Isso é assunto sério de gente grande.


— Na verdade, eu sou mais velha que você — assinalou Maia. —, se você
olhar no calendário.

Nascida em 1938, Maia fora abduzida pelo futuro quando tinha oito anos de
idade, então voltara com o resto dos 4400 em 2004. Tecnicamente, isso a fazia
velha o suficiente para a Segurança Social, mesmo que não tivesse envelhecido um
dia enquanto estava sumida.

— Não faça isso comigo — disse Diana. Ela adotara a garota órfã pouco
depois de seu retorno. — Emocional e fisicamente, você ainda tem treze anos. E
isso é muito jovem para se envolver em coisas como essa.

— Mas já estou envolvida — argumentou Maia. — Sou uma dos 4400 e não
posso ignorar o que vejo.

— Eu sei — disse sua mãe, tristemente. Sua voz e expressão suavizaram.


— Olhe, não quero brigar por causa de Jordan Collier de novo. — Ela se levantou e
esfregou os olhos. — Prometo que farei o que puder sobre o Richard, mas devíamos
tentar voltar a dormir. Amanhã tem aula.

Se inclinando, ela deitou Maia e a beijou no topo de sua cabeça.

— Te vejo de manhã. Bons sonhos.

Ela apagou as luzes enquanto saía.

Maia esperou até ouvir sua mãe entrando no seu próprio quarto, então
contou até cem só por segurança. Assumindo que a mulher estava dormindo, ela
saiu da cama e pegou seu BlackBerry de cima da cômoda. Sentiu uma pontada de
culpa por se esconder assim—o smartphone rosa choque fora um presente de sua
mãe—, mas a vida de Richard estava em jogo.

O brilho da tela BlackBerry iluminou seu rosto preocupado enquanto ela


mandava uma mensagem de texto apressada para sua melhor amiga, Lindsey
Howard. Também uma dos 4400, Lindsey havia se envolvido com o Movimento
desde o começo. Maia sabia que podia contar com ela para passar a mensagem a
Jordan Collier.

Alguém tinha que fazer algo para ajudar Richard!

O Centro 4400 fora criado por Jordan Collier antes que ele se tornasse um
revolucionário em seu próprio estilo e um messias. O Centro agora era comandado
pelo sobrinho de Tom, Shawn Farrel. Um dos 4400 originais, ele ficou sumido por
três anos antes de retornar.

— Olá, Diana. Tio Tommy. — Shawn cumprimentou os dois agentes quando


eles entraram no seu enorme escritório, que fazia o escritório de Tom na sede
parecer um guarda-roupa. Um jovem atraente na casa dos vinte anos, Shawn
estava usando um terno Armani costurado que ficava bem na sua silhueta bem
construída. Seu curto cabelo loiro estava impecavelmente aparado. Tom tinha
orgulho do homem confiante e de atitude que ele se tornara. Não podia evitar
desejar que Kyle tivesse se tornado um pouco mais parecido com seu primo.
Embora Shawn houvesse brevemente caído sob o feitiço de Collier, ele era um
homem independente agora.

— É bom ver você — disse Tom. Embora eles estivessem ali a trabalho, ele
abraçou seu sobrinho amigavelmente. Shawn havia perdido a mãe e o irmão para a
praga, então Tom queria que o jovem soubesse que ele não estava sozinho, que ele
ainda tinha uma família que se importava com ele. — Obrigado por nos colocar na
sua agenda.

Shawn riu ironicamente.

— Acredite, não é mais tão difícil quanto antes. Agora que minha carreira
política se encerrou, eu tenho muito mais tempo sobrando.

Aposto que sim, Tom pensou. 50/50 havia acabado com o cargo de Shawn
na assembleia da cidade. A cidade estava muito dividida entre positivos e negativos
para apoiar um candidato que tentava unir os dois lados, sem contar que ele era o
irmão do homem que desencadeara a praga, para começo de conversa.

— Pelo menos ainda tem o Centro — disse Tom.

— Acho que sim. — Shawn apontou para uma caixa vazia. — Embora seja
no Movimento de Jordan que a ação está, nós providenciamos ajuda e serviços para
os positivos que se sentem inconfortáveis com os planos radicais de Jordan. A
maioria é pessoas que se infectaram durante o surto, mas, para ser honesto,
parece não haver muita audiência como antes. Não tenho certeza se o Centro ainda
é influente hoje em dia.

— Não desanime — disse Diana. Seu cabelo castanho-avermelhado estava


preso num rabo-de-cavalo. Ela vestia um colete de couro preto sobre uma blusa
laranja de gola alta. — Você é a principal cara dos 4400, e uma alternativa sã para
Jordan Collier. Isso é mais importante do que nunca.

— Talvez. — Shawn não parecia convencido. — Sobretudo, estive me


concentrando em praticar minha cura, que o Jordan só tolera porque é bom para os
4400.

— Isso é importante, também — lembrou-o Tom. A notável habilidade do


sobrinho de curar todos os tipos de ferimentos e doenças salvara muitas pessoas,
incluindo o próprio Tom. Shawn desempenhara um importante papel ao libertar
Tom dos Marcados. E havia acordado Kyle de um coma aparentemente sem fim. —
Nunca se esqueça disso.

O sorriso de Tom retornou.

— Obrigado pela confiança. Eu aprecio isso. — Ele sentou atrás de sua


mesa organizada. Uma pintura a óleo na parede atrás dele retratava a brilhante
bola de luza branca que trouxera os 4400 do futuro. — Como posso ajudá-los hoje?

Tom hesitou. Isso ia ser embaraçoso.

— Danny — disse ele, por fim.


— Danny? — Uma expressão de dor trespassou o rosto de Shawn. Ele fora
obrigado tirar as forças do irmão para impedir que a praga se espalhasse. Tom
podia imaginar como isso fora difícil para ele. — O que tem ele?

Diana poupou Tom de ter que soltar tudo de uma vez.

— Gostaríamos de sua permissão para exumar o corpo de Danny.

— O quê? — Shawn ficara visivelmente chocado com o pedido. — Por quê?

— Temos razões para suspeitar de que alguém possa tentar replicar uma
versão da promicina transportada pelo ar que Danny soltou depois que tomou a
dose — explicou Tom. Ele não mencionou que Ryland era a fonte de tal rumor;
Shawn não tinha razões para confiar num homem que tentara matá-lo. — Pode não
ser nada, mas temos que nos certificarmos.

Shawn afundou-se nas costas de sua cadeira.

— Não sei — ele disse. Olhos sofridos e úmidos brilharam. Sua voz ficou
rouca de emoção. — Não podemos simplesmente deixá-lo descansar em paz, ao
lado da mamãe?

Danny fora enterrado no Cemitério Emerald Harbors, ao lado da irmã de


Tom.

— Queria que pudéssemos — disse Tom. Ele sentia-se péssimo por


envolver Shawn nisso logo depois de ele ter perdido sua família. — De verdade. —
Se necessário, eles podiam conseguir um mandato para exumar o corpo, mas ele
preferia o consentimento de Shawn ao invés disso. Além do que, qualquer
procedimento legal com certeza alertaria Collier de suas intenções; muitos dos
juízes e advogados de Seattle se reportavam diretamente com ele. Tom tirou um
documento de dentro de sua jaqueta e o arrastou pela mesa na direção de Shawn.
— Mas não podemos correr o risco. Ninguém quer outro 50/50.

Shawn balançou a cabeça, aceitando a verdade relutantemente. Procurou


por uma caneta.

Diana saiu do escritório para deixar Tom consolar seu sobrinho a sós. Ela
sabia como a discussão fora difícil para os dois, mas estava aliviada por terem
conseguido o consentimento de Shawn para a exumação. Antes de entrar para a
NTAC, ela trabalhara por pouco tempo no Centro de Controle de Doenças em
Atlanta; se fosse por ela, os restos mortais de Danny teriam sido cremados
imediatamente após sua morte, mas, no caos que se seguiu ao desastre, isso não
aconteceu.

Espero que não tenha sido um grande erro, ela pensou.

Enquanto seu parceiro estava ocupado com Shawn, ela foi atrás de outra
ponta solta. Uma breve caminhada a levou até a enfermaria do Centro, onde ela
encontrou o Dr. Kevin Burkhoff trabalhando arduamente num laboratório
interligado. O cientista renegado estava agachado sobre um microscópio quando
ela entrou no laboratório. Concentrado na sua tarefa, ele não ouviu quando ela se
postou atrás dele. Um saco aberto contendo sementes de girassóis descansava no
balcão ao lado do microscópio. Escâneres de cérebros estavam pendurados em um
quadro brilhante. Um zumbido de centrifugação ao fundo. Um cheiro de medicina
permeava o ar.

— Dr. Burkhoff? Kevin?

Assustado e surpreso, ele virou-se. Nesse momento, cortou o dedo na


ponta de um tubo de ensaio. Uma linha vermelha apareceu brevemente no dedo
machucado, então foi refreada por sua habilidade de cura acelerada e voltou para
dentro. Sua expressão alarmada relaxou quando ele reconheceu a visitante.

— Oh, Diana! — Ele apertou o peito, onde o coração devia estar batendo
rápido. Secou o sangue no balcão. — Não te ouvi entrando. Me deu um belo susto.

Quando Diana encontrara Kevin pela primeira vez há três anos, ele estava
confinado em um hospício. Embora tivesse recuperado sua sanidade com a ajuda
dos 4400, ele continuava sendo agitado e cheio de energia. Seu fino cabelo liso e
negro estava precisando ser penteado. Uma franja oleosa caía por sua testa
enrugada. Queimaduras de ácido estragavam seu jaleco branco de laboratório.
Reagentes químicos manchavam as pontas de seus dedos.

— Sinto muito. — Ela apontou para o microscópio. — Alguma coisa


interessante?

Ele olhou em volta furtivamente, como se tivesse medo de ser ouvido.

— Não diga a ninguém — disse. —, mas estou tentando aperfeiçoar o meu


teste de compatibilidade à promicina.

— Certo. — Diana lembrava-se de Shawn apoiando as tentativas de


Burkhoff de tornar a dose de promicina menos perigosa e fatal, a ideia de
desenvolver um teste que determinaria com antecedência se a promicina daria ou
não uma habilidade a quem tomasse. Antes do 50/50, Shawn alertara o público
para parar de tomar a promicina até que o teste estivesse pronto, mas Diana não
ouvira mais nada sobre o teste desde então. — Como está indo?

Burkhoff afastou as sementes de girassóis do balcão; lanchinhos sem sal


eram seu vício.

— Está indo, mas poderia ter progredido muito mais se tivesse suporte das
autoridades. Nem Collier e nem o governo quer que eu continue meu trabalho, por
suas próprias razões, e sei que eles têm pressionado Shawn para me fazer desistir.
— Ele despejou várias sementes em sua palma. — Eu tenho que ficar me ocultando
durante a noite como um ladrão para que possa fazer meu trabalho.

— Isso é ruim — disse Diana, entendendo a frustração do cientista. Ela não


se surpreendera ao ouvir que seu trabalho não agradava a todos. Certamente, o
governo não ficaria feliz com qualquer teste que tiraria o risco de tomar promicina;
isso só traria mais positivos à ativa. Collier, no entanto, queria que o mundo todo
tomasse a dose; ele queria o sacrifício de metade da humanidade no altar do seu
novo bravo mundo. — Imagino se o teste tornaria a decisão mais fácil para as
pessoas. Mesmo se soubesse que sobreviveria, você não saberia que habilidade iria
ganhar. E, francamente, algumas delas não são muito bonitas.
Diana estivera lidando com positivos há anos, e vira como ganhar uma
habilidade podia destruir a vida de uma pessoa. Para cada indivíduo que adquiria
um novo bom talento, como a habilidade de curar os doentes, havia alguém como
Danny Farrel que era amaldiçoado com uma aflição que fugia ao seu controle. Ou
Jean Delynn Baker, que havia se tornado involuntariamente o receptáculo de um
vírus mortal como o Ebola. Enquanto isso acontecia, Diana tinha uma imunidade à
promicina, mas ela não sabia se tomaria uma dose mesmo que isso fosse uma
opção. E se eu acabar como Danny ou qualquer um dos outros?

— Bem pensado. — Burkhoff concedeu. — Mas muitas pessoas estão se


arriscando todo dia. E muitas delas estão morrendo porque meu trabalho está
sendo suprimido!

— Kevin? — chamou uma voz da enfermaria. — Está tudo bem?

Uma jovem magra adentrou o laboratório. Olhos castanhos obcecados


davam graça às suas feições delicadas. Cabelos ondulados de um castanho-claro
caíam pelos seus ombros. Uma blusa de caxemira e uma saia de tamanho médio a
davam uma aparência sem época definida. Demorou um momento para que ela
percebesse que Burkhoff não estava sozinho. Um olhar preocupado surgiu em sua
cara de duende.

— Diana?

— Olá, Tess — disse Diana, firmemente. Ela tentou conciliar seu


desconforto com a presença da outra mulher. Uma dos 4400 originais, Tess
Doerner possuía a inquietante habilidade de forçar as pessoas a fazerem o que ela
pedisse. A própria Diana fora controlada por ela anteriormente. Não era uma
experiência que ela queria reviver tão cedo. — Kevin e eu estávamos apenas
conversando.

Suas palavras pareceram não convencer Tess, que se postou


protetoramente entre Diana e Burkhoff. O cientista de meia-idade e a mulher muito
mais jovem eram um casal estranho, que haviam se conhecido quando eram
pacientes no Hospital Psiquiátrico Abendson, mas eram inquestionavelmente
devotados um ao outro. Diana não duvidava que Tess faria qualquer coisa para
defender Kevin da NTAC ou de qualquer outra pessoa que quisesse tirar vantagem
de sua inteligência.

— O que está fazendo aqui, Diana?

A agente foi direto ao assunto.

— Você cuidou de Danny Farrel nos seus últimos momentos. Quero saber o
que aconteceu a qualquer amostra de sangue ou de tecido que você tirou dele.

Burkhoff desviou o olhar dela. Agitou-se nervosamente com seu saco de


sementes.

— Shawn pediu-me para destruir todas as amostras depois que Danny


morreu.

Diana conhecia o cientista muito bem para acreditar nisso. Burkhoff nunca
deixara algo atrapalhar sua curiosidade científica.
— Sim, mas o que você realmente fez com elas?

— Não sei o que quer dizer — fingiu. Dando as costas a ela, ele voltou-se
ao microscópio outra vez. — Já não respondi a sua pergunta?

— Deixa disso, Kevin — ela o pressionou. — Você descobriu a promicina.


Quer mesmo que eu acredite que você não ficou intrigado por um espécime que
transpirava a coisa pelos poros?

Burkhoff suspirou e deu as costas ao balcão.

— Bem, posso ter ficado com algumas amostras para pesquisa, mas elas
estão perfeitamente e segurança. Segui cada protocolo para guardá-las.

Agora estamos chegando a alguma coisa, Diana pensou.

— Preciso ver com meus próprios olhos.

— Certo — concordou ele. — Siga-me.

Tess foi atrás quando ele levou Diana na direção de uma porta metálica
fechada com um aviso. Uma placa de risco biológico estava afixada nela. Um
teclado estava posicionado acima da maçaneta. Burkhoff tampou o teclado com seu
corpo enquanto digitava um sequência de quinze dígitos.

— Sou a única pessoa que conhece a combinação — ele insistiu. —, ou que


pode lembrar-se dela. Nem mesmo Tess conhece.

A não ser que ela peça, pensou Diana. A controladora de mentes estava
parada perto quando Burkhoff abriu a porta. Uma lufada de ar gelado saiu pela
câmara refrigerada quando o tranca da porta se abriu. Passando pela soleira, Diana
avistou um gabinete biológico Classe Três implantado no fundo da limitada sala de
contenção. Um ventilador cantarolava no topo da sala de aço impecável. Filtros
HEPA mantinham qualquer bactéria ou vírus do lado de fora. Luvas de borracha
penduradas em ganchos permitiam a manipulação dos materiais fechados. Uma
pequena camada de gelo cobria a vista transparente da janela.

— Vê? — disse Burkhoff, defensivamente. — Tomei toda precaução


razoável.

Até aqui tudo bem, Diana admitiu, convencida pela vista do equipamento.
Burkhoff parecia não ter economizado dinheiro para proteger as amostras.
Devíamos confiscá-la de qualquer jeito. As amostras precisavam ficar sob os
cuidados de autoridades responsáveis, não alguém tão excêntrico como Kevin
Burkhoff, que tinha boas intenções, mas geralmente deixava sua paixão pela
ciência interferir na sua sanidade, como na vez em que usara Diana como cobaia
contra sua vontade.

Ela estava imaginando como ia pegar as amostras de Kevin, apesar da


habilidade de Tess, quando ele deu um passo à frente para limpar o gelo da janela.
Talvez devêssemos voltar quando Tess não estiver por perto.

Um grito assustado escapou dos lábios de Kevin.


— Não! — sobressaltou-se ele, praticamente apertando o nariz contra o
vidro. — Não é possível!

Diana ficou tensa, alarmada pelo som ansioso de sua voz.

— O que foi?

Ele se virou para encará-la. A expressão arrasada no seu rosto era a última
coisa que ela queria ver. Ele estava pálido como um fantasma.

— As amostras — proferiu ele. — Elas sumiram!


QUATRO

Richard Tyler não conseguia dormir.

Deitado na cama, o prisioneiro encarava o teto de sua cela vazia. Luzes


fluorescentes entravam pelas barras de aço verticais do corredor vazio do lado de
fora. Um homem negro esguio com trinta e poucos anos, ele não usava nada além
de um macacão de prisão laranja há meses. Sua cabeça raspada descansava em
um travesseiro amassado. Seu cavanhaque estava impecavelmente aparado.
Embora o toque de recolher tivesse sido dado há horas, ele ainda permanecia
acordado, ouvindo aos sons noturnos daquele bloco de celas. Soluços e roncos
abafados vinham das celas próximas; parecia que a cada dia que passava mais e
mais positivos eram trazidos para a prisão de alta segurança. Havia rumores de que
Collier e o Centro 4400 vinham lutando arduamente para a libertação de Richard e
de seus companheiros “prisioneiros políticos”, mas sem muito sucesso. Richard nem
mesmo vira um advogado desde que fora apreendido em Seattle meses atrás. Pelo
que parecia, ele ia apodrecer naquela cela pelo resto da vida.

É isso o que eu ganho por brigar com governo dos Estados Unidos, pensou
ele. Mesmo que não me deram muita escolha.

Não pela primeira vez, ele imaginou como teria sido sua vida se ele não
tivesse sido abduzido pelo futuro em 1951. Quando partiu para a Coréia,
certamente não imaginara terminar atrás das grades no século 21. Boa parte dele
desejava que aqueles intrometidos viajantes do tempo o tivessem deixado em paz.
Mas se ele não tivesse sido levado de sua época, nunca teria conhecido Lily.

Seu olhar virou-se para algo pendurado na parede. A foto colorida


retratava uma linda mulher loira segurando uma criança sorridente em seu colo. A
pele escura da garota parecia com a do pai. A mãe e a filha sorriam alegremente.

Lily. Isabelle.

A garganta de Richard se encolheu quando ele se lembrou de quando tirou


aquela foto na cabine, antes de Lily morrer e tudo se tornar um inferno. Havia sido
um dia bonito de verão nas montanhas. Céu azul. Pássaros cantando nas árvores. A
fotografia era seu bem mais precioso e mais querido. A sagrada foto era uma
lembrança de que uma vez ele não fora apenas mais um habitante, mas sim um pai
e um marido amado. Por um breve período, eles haviam sido felizes.

A luz turva tornava difícil ver os rostos de suas amadas. Sentindo uma
necessidade súbita de ver sua família mais de perto, ele levantou a mão e
estendeu-a na direção da foto. Sua mente instintivamente alcançou-a…

Nada aconteceu. A fotografia continuou pendurada na parede a vários


passos de distância. Nem mesmo tremera.

Ah, sim. Ele sorriu tristemente. Engraçado o quão rápido você pode se
habituar a mover as coisas com a mente. E o quanto você sentia a eficiência disso
quando não mais podia fazê-lo. Doses diárias do inibidor haviam diminuído sua
telecinese. Onde antes ele podia arremessar pesados objetos só pensando, agora
ele não podia levantar uma pluma, a não ser que o fizesse do jeito antigo… usando
seus próprios dedos.
Suspirando cansado, ele levantou-se da cama e começou a andar pela cela.
O piso de cimento estava frio sob seus pés descalços. Aparentemente, o
administrador não queria investir em aquecimento. A julgar pela qualidade recente
das refeições, houvera um corte de custos na cozinha também. Ele nem queria
imaginar o tipo de carne que havia no ensopado da noite anterior.

Estava na metade do caminho para a parede quando passos pesados


ecoaram pelo corredor. Eles pararam bem em frente a sua cela.

— Você aí! — desafiou uma voz áspera. — O que está fazendo acordado,
Tyler? Não sabe que já passou da hora de dormir?

Richard grunhiu para si mesmo quando reconheceu a voz. Virando-se para


a porta, ele viu um par de guardas uniformizados parado do outro lado das barras.
E não os seus guardas favoritos. Que sorte a minha, ele pensou. Grogan e Keech.

Ele não tinha nada contra a maioria dos guardas ali. Só estavam fazendo
seus trabalhos. Mas Grogan e seu comparsa eram diferentes. Eles se moviam
sadicamente tocando o terror e dificultando para os presos. Ditadores
insignificantes com ódio dos 4400. Eram a última coisa que Richard precisava essa
noite.

— Só estou esticando as pernas. — Ele voltou para sua cama.


Esperançosamente isso seria suficiente para espantar os guardas.

Não era.

— É mesmo? — disse Grogan, com sarcasmo. Ele tinha um pescoço grosso


como o de um boi e uma barriga de cerveja grande e flácida. Um bigode cobria seu
lábio superior. Um corte escovinha mal cobria sua cabeça. Uma pistola Colt estava
pendurada em um lado da cintura. Um cassetete do outro. Ele observou Richard
suspeitosamente. — Como vou saber que você não estava aprontando, Tyler?
Planejando uma fuga tarde da noite?

Queria, Richard pensou.

— Não vou a lugar nenhum.

— É claro que não vai! — Ele riu da própria piada, então olhou para o seu
parceiro. — Acredita na ousadia desse cara? Pensa que pode nos enganar.

Com um rosto pálido, magro e semelhante ao de um roedor, Keech era


como Laurel e Grogan como Hardy, de o gordo e o magro, só que nenhum dos dois
era engraçado.

— Muita ousadia — ele concordou, amargamente.

— Ei! — Grogan fingiu se alarmar. — Sentiu isso?

— Senti o quê? — perguntou Keech.

— Essa pressão. — Grogan tirou um cartão magnético de seu bolso da


camisa. Ele rodou entre seus dedos carnudos quando fingia não conseguir segurá-
lo. — Ele está atraindo o cartão com a mente. Está tentando nos puxar para mais
perto.
Que engraçado, Richard pensou, sem achar graça na palhaçada do guarda.
Claro que ele não estava fazendo nada do tipo.

— Ah, sim — concordou Keech, entrando no jogo. — Agora eu sinto.

Ele caiu na direção na porta, como que empurrado por uma força invisível.
Um sorriso malicioso torceu seus lábios.

— Filho da puta arrogante.

Grogan tirou o cassetete do cinto.

— Acho que temos de ensiná-lo uma lição. — Sorrindo, ele passou o cartão
por um escâner ao lado da porta. A fechadura eletrônica soltou um clique e a porta
deslizou para o lado. Grogan entrou na sala, brandindo o cassetete, batendo-o
contra a palma de sua mão. — Não podemos deixar essas aberrações pensarem
que podem usar seus truques contra pessoas decentes.

— É isso mesmo — disse Keech. Ele acompanhou Grogan até a cela.

Sentado na ponta de sua cama, Richard ficou tenso enquanto os guardas


se aproximavam. Sua memória voltou até aquela época na Coréia, antes de ele ser
abduzido, quando vários de seus colegas da Força Aérea o surraram por ousar
namorar uma mulher branca… A avó de Lily, na verdade. Essa cena parecia tão
familiar.

Ele levantou as mãos.

— Olha, não quero nenhuma confusão.

— Quem se importa com o que você quer, sua aberração terrorista? —


Grogan bateu ainda mais forte. — Desde que o seu tipinho voltou sabe-se lá de
onde, ninguém no país esteve em segurança. Acha que esquecemos o 50/50? Nove
mil americanos estão mortos por culpa de pessoas como você e Jordan Collier!

Richard considerou avisar que ele nada tinha a ver com o desastre, que ele
estivera trancafiado naquela mesma cela quando o surto devastou Seattle, mas
percebeu que seria uma perda de tempo. Grogan não estava interessado em ouvir
a razão.

Richard segurou-se. Valeria a pena revidar? Ele estava em menor número e


desarmado.

Grogan olhou para a foto de sua família a parede.

— Que coisa mais bonita. — Ele arrancou a foto do seu lugar e segurou no
alto para que Keech pudesse ver. — Dá uma olhada na Sra. 4400 aqui. Tenho que
admitir, Tyler. Você pode ser um radical inútil, mas tem bom gosto para filés. — Ele
olhou para a foto de Lily. — Não me importaria em ter um pedaço desse.

— Nós dois. — Keech lambeu os lábios. — Aposto que ela também gostaria.
Nós dois — ele repetiu, caso alguém não tivesse escutado a insinuação óbvia. — Ao
mesmo tempo.
Richard olhou para os homens. Só de ver a foto de Lily nas mãos sujas de
Grogan faziam seu sangue ferver.

— Largue isso.

— Ou o quê? — Grogan o desafiou. — Vai contar ao Jordan Collier?

Ele rasgou a preciosa fotografia em duas e jogou os pedaços ao chão.

— É uma pena que ela está a sete palmos abaixo da terra.

Caipira idiota! A raiva o tomou e ele pulou na direção de Grogan. Deu


apenas dois passos antes de Keech o acertar com o cassetete ao lado da cabeça.
Richard caiu ao chão, sua cabeça zunindo. Sua visão ficou borrada
momentaneamente. Sentiu o gosto de sangue em sua boca.

— Você viu isso! — exclamou Grogan. — O maluco pulou em mim.

Ele chutou Richard violentamente nas costelas.

— Gosta disso, aberração idiota? Sinta o gostinho de legítima defesa!

Tossindo com dor, Richard tentou se postar de pé, mas Grogan o socou no
rosto forte o suficiente para quebrar um dente. O sangue jorrou de seus lábios.
Keech o golpeou nas costas, nocauteando-o de barriga para baixo no chão. A sala
girou em volta dele.

— Ei! — uma voz irritada gritou do outro lado do corredor. Levantando a


cabeça, Richard viu outro prisioneiro parado atrás das portas de uma das celas
opostas. Um hispânico musculoso com a cabeça raspada segurava as barras de sua
jaula. — Deixem-no em paz! Ele não merece isso!

O preso protestante era novo naquele bloco, fora preso um pouco mais
cedo naquele mesmo dia. Qual era o nome dele mesmo? Sanchez?

— Vá cuidar da sua vida! — rosnou Keech, mas a atenção parecia fazê-lo


sentir-se inconfortável. Saindo da cela, ele deu uma olhada pelo corredor. Agitou-se
com seu cassetete. — Certo, chega de brincadeiras. — Ele disse a Grogan. —
Vamos terminar logo com isso.

Grogan agiu como se seu amigo tivesse perdido o juízo.

— Está brincando? Só estou me aquecendo!

— Não subestime nossa sorte. — Keech olhou em volta furtivamente.


Secou a palma suada nas calças. — Acabe com ele logo, certo?

As palavras sinistras do guarda penetraram o crânio zonzo e dolorido de


Richard. O terror se misturou com a dor. Não era só uma surra, ele percebeu. Eles
querem me matar!

E não havia nada que ele pudesse fazer para impedi-los…


— Tudo bem, tudo bem — disse Grogan, de má vontade. — Não perca o
controle. — Ele virou-se para Richard, visivelmente infeliz por sua diversão ter sido
cortada. — Hora de dizer adeus, Tyler.

Ele pisou nos pedaços da fotografia no chão e tirou a pistola do coldre.

— Dê um beijo na loirona por mim quando a encontrar no inferno.

Ele ergueu a arma.

Richard imaginava se Lily estaria mesmo esperando por ele do Outro Lado.
Já cruzamos o tempo para nos encontrarmos…

— Já chega! — gritou Sanchez de sua cela. Ele chacoalhou os pulsos na


direção dos guardas. — Esses cabróns pediram por isso!

Ele deu um soco na própria mandíbula… muito forte. Seu comportamento


bizarro distraiu os guardas brevemente de sua missão assassina.

— Mas que diabos? — murmurou Grogan. — Ficou loco, Sanchez?

Ignorando a pergunta do guarda, Sanchez enfiou os dedos na boca e tirou


um molar solto de sua gengiva. Ele jogou o dente sangrento pelas barras de sua
cela. Caiu ruidosamente no chão do corredor antes de ele se quebrar com um som
peculiar que mais parecia porcelana do que esmalte se quebrando.

Não é um dente de verdade, percebeu Richard. É um implante.

O dente se quebrou em dois para revelar uma pequena bola de energia,


mais ou menos do tamanho de uma ervilha, que inchou com um brilho
sobrenatural. Havia algo de estranho no brilho emanando da bola, que parecia com
as luzes num negativo de fotografia, jogando sombras ao invés de luz nos rostos
pasmos dos guardas. Eles olhavam boquiabertos aquela pequena esfera cintilante
de luz. Richard piscou confuso.

Não entendo, pensou ele. O que está acontecendo?

Então a luz se abriu como uma flor florescendo em movimentos rápidos. A


textura era tão real que parecia se dobrar e se contorcer diante dos olhos de
Richard. Um flash que cegava iluminou o corredor, forçando-o a desviar o olhar. Ele
fechou as pálpebras contra o clarão repentino. Grogan praguejou obscenidades.

— Puta que pariu! — exclamou Keech.

O clarão sumiu num instante. Mas quando Richard abriu os olhos


novamente, ficou surpreso ao ver quatro estranhos parados no corredor no lugar
onde o orbe estivera há apenas alguns segundos. Todos os quatro—dois homens,
uma mulher e um garoto—estavam vestidos de preto, como gatunos ou espiões.
Máscaras de esqui ocultavam seus rostos. Um dos homens respirava com
dificuldade, como se tivesse acabado de correr uma maratona. A mulher esticava
as pernas, como se tivesse ficado confinada num lugar apertado por muito tempo.

— Graças a Deus! — disse ela. — Não estava mais aguentando.

— O quê? — perguntou o homem cansado. — Muito confortável para você?


— Calados! — gritou Grogan. Deixando o choque de lado, os guardas
apontaram as armas para os invasores. Não sei quem são vocês, ou de onde vêm,
mas não movam um músculo!

O segundo homem, um perceptível afro americano, olhou para as armas.

— Cuidado com isso. — Ele não pareceu preocupado com as pistolas


apontadas para ele. — Estão brincando com fogo.

— O qu…? — guinchou Grogan. A arma de metal se tornou vermelha em


sua mão. A carne chiou. Berrando, os guardas soltaram os revólveres. As armas
derretidas caíram ao chão. Grogan apertou sua mão queimada e Keech chupou
seus próprios dedos. Os dois choramingavam pateticamente.

O negro virou-se para a mulher.

— Sua vez.

Ela forçou seu pescoço a virar-se ruidosamente. A princípio, Richard


pensou que ela estava se aquecendo, mas então os guardas viraram seus próprios
pescoços em resposta. Sues rostos se contorceram em choque. Eles caíram moles
ao piso. Grogan caiu a apenas alguns centímetros de Richard. Somente sua
respiração irregular assegurou Richard de que o guarda inconsciente ainda estava
vivo.

Sanchez acenou em satisfação. Ele cuspiu sangue no chão da cela. Olhou


para o garoto, que parecia ter mais de doze anos.

— Billy?

— Estou nessa — disse o garoto. Ele usava óculos por cima da máscara de
esqui. Andou um pouco e procurou no corpo de Keech até que achou o cartão
magnético. — Bingo!

Correndo até a cela de Sanchez para libertá-lo, ele teve que ficar se estivar
um pouco para alcançar o escâner.

— Aposto que está ansioso para sair daqui!

— Não faz ideia. — O prisioneiro saiu da cela. Deu um tapinha amigável


nas costas do garoto. — E espero que nunca faça.

Enquanto isso, a mulher deslizou para a cela de Richard. Passando pelo


corpo estatelado de Grogan, ela ajudou Richard a se levantar.

— Está bem, Sr. Tyler?

— Eu… Eu acho que sim. — Seu cérebro confuso, que quase morrera há
alguns momentos atrás, lutava para entender o que estava acontecendo. — Quem
são vocês?

— Seus anjos da guarda — respondeu a mulher. — Desculpe-nos por


chegarmos em cima da hora. Ficamos sabendo há pouco tempo que corria perigo.
Ela tirou um pequeno estojo de sua roupa. O objeto se abriu para revelar
uma seringa com um líquido verde-amarelado.

Promicina.

Ela desencapou a ponta da seringa e esguichou um pequeno jato do


líquido.

— Espere um segundo — disse Richard. — O que vocês…?

Antes que ele pudesse terminar, a mulher impulsionou a seringa contra seu
braço. A dor aguda tirou a tontura de Richard. Ele agarrou o braço ferido quando
ela retirou a injeção.

— Para que isso? Eu já sou um p-positivo!

— Só um empurrãozinho — explicou ela, jogando o recipiente vazio para o


lado. — Para ajudar a tirar o efeito do inibidor.

Isso era possível? Talvez, penou ele, lembrando-se de como uma dose
parecida acordara Shawn Farrel de um coma ano passado. Era só imaginação dele
ou já podia sentir um formigamento no fundo de seu cérebro, como um membro
adormecido começando a ser usado depois de muito tempo inativo? Seus olhos
ofuscados captaram as metades da foto rasgada ao chão, e ele tentou levantá-las
com a mente. Mais uma vez, nada aconteceu, mas a sensação de formigamento
crescia cada vez mais. Curvando-se, ele pegou os pedaços com os dedos.

Ainda estava tentando descobrir de onde haviam vindo seus salvadores.

— Como…? O que foi isso com o dente?

Sanchez gesticulou na direção de um dos homens.

— O Adams aqui consegue dobrar o espaço de maneiras engenhosas, o


suficiente para colocar quatro pessoas em algo pequeno demais para aguentá-las.
Como uma cabine dentária, talvez. — Ele massageou a mandíbula machucada. —
Pense nisso como um dente troiano.

Isso era possível? Richard estava ficando confuso ao se recompor com a


ideia de que toda a equipe de resgate estivera se escondendo dentro do dente de
Sanchez. Então, novamente, quando se pensa nisso, quantas coisas estranhas ele
já não testemunhara nos últimos anos? Como Isabelle se transformando de um
bebê em uma mulher adulta da noite para o dia. Ou Jordan Collier voltando dos
mortos.

— Lembre-me de não fazer isso novamente — queixou-se a mulher. —


Nunca mais vou reclamar do meu apartamento apertado.

— Chega de conversa — disse Sanchez, assumindo a liderança. Ele puxou


Richard para fora da cela. — Precisamos tirá-lo daqui rápido.

Agora o bloco todo estava um alvoroço. O som de sirene invadiu os ouvidos


de Richard. Todas as luzes se acenderam. Acordados pelo distúrbio, todos os outros
prisioneiros correram para as portas das celas, pedindo para serem libertados
também. Eles se apertavam contra as barras, desesperados para chamar atenção
dos invasores.

— Por favor! — chamou Orson Bailey. O empresário de meia-idade fora um


dos primeiros 4400 a ser detido contra sua vontade. — Me levem com vocês!

Os choros inquietantes tocaram o coração de Richard.

— E eles?

Sanchez balançou a cabeça.

— Outra hora. Estamos aqui hoje apenas por você. Não está a salvo aqui…
obviamente.

Richard não podia debater isso. Sua cabeça e costelas latejantes


mostravam a verdade nas palavras de Sanchez. Tentando ignorar as tristes súplicas
de seus companheiros de prisão, ele se postou atrás da equipe de resgate enquanto
eles andavam pelo corredor. A adrenalina estimulava suas pernas, apesar da surra
recente. Uma pesada porta de aço, com uma inquebrável janela de vidro embutida,
bloqueava o caminho. Sanchez tentou o cartão magnético de Keech, mas não deu
certo.

— Que droga! — exclamou ele. — O alarme nos trancou.

Olhou para Adams, que parecia ter se recuperado de seu cansaço.

— Pode fazer isso, cara?

— Posso tentar — voluntariou-se o outro lutador da liberdade. Ele deu um


passo à frente e encostou as mãos contra a porta de aço. Um grunhido escapou de
seus lábios enquanto ele concentrava sua habilidade na barreira firme, que no
mesmo momento tomou aquele mesmo efeito de negativo de fotografia. O aço
sólido pareceu virar-se do avesso, soltando-se das dobradiças, enquanto a porta se
compactava numa bolinha de gude luminosa, deixando o caminho diante deles
livre. Adams pegou a bolinha. Ele respirava com dificuldade. — Abre-te, Sésamo.

Porém ainda não haviam saído. Um esquadrão inteiro de guardas veio na


direção deles, carregando rifles automáticos.

— Parados! — ordenou um policial uniformizado. — Para o chão com as


mãos na cabeça!

— Não atirem! — gritou Billy, por cima do alarme. Ele se postou diante da
equipe. — Sou apenas uma criança!

Os guardas hesitaram, relutantes em atirar em uma criança, o que foi todo


o tempo que Billy precisou. Sua mandíbula se abriu e um som agudo escapou de
sua boca. Os guardas recuaram, segurando seus ouvidos. Os rifles começaram a
atirar. Os tiros abafavam seus gritos, mas Richard podia ver como o grito inumano
os estava afetando. Eles cambalearam em agonia. Mesmo postado atrás de Billy,
com as ondas sonoras indo para o lado contrário, Richard sentiu o que os guardas
estavam enfrentando; os ecos se impulsionavam contra seus tímpanos. Colocou as
mãos para tampar os ouvidos.
Os outros membros da equipe se juntaram ao ataque. Os guardas que
conseguiam levantar suas armas para atirar de repente ficaram quentes como
carvões em brasa. A mulher estalou o pescoço novamente e uma massa de guardas
caiu ao chão, como marionetes cujos barbantes fossem cortados. Adams
arremessou a bolinha brilhante nos guardas cambaleantes. Outro clarão de luz de
cegar os olhos precedeu-se ao súbito reaparecimento da massiva porta de aço
enquanto ela caía ao chão entre os fugitivos e os perseguidores. A porta arrancada
formava uma barricada improvisada no corredor estreito.

Essas pessoas são boas, percebeu Richard, impressionado pelas suas


técnicas de trabalho em equipe. Os guardas não souberam o que os atingiu.

Para o alívio de seus ouvidos, o grito supersônico de Billy cessou. O garoto


virou-se para seus colegas de equipe. Seu orgulho e excitamento eram visíveis
através da máscara de esqui.

— Viram isso? O que eu fiz com eles.

— Muito bem, Billy. — Sanchez o encorajou. O líder do grupo ainda não


havia mostrado a sua habilidade; sem dúvida havia sido dosado com o inibidor,
também. Ele apontou para um corredor à direita. — Andando agora, todo mundo!

Eles correram pela prisão, passando a lavanderia e as academias. Sanchez


parecia mesmo saber aonde estava indo, o que fez Richard acreditar que toda a sua
tentativa de fuga fora planejada detalhadamente. Mas mesmo com os notáveis
dons de seus aliados, ele não sabia como sairiam da prisão. Alarmes os seguiram
pelos corredores. Luzes de emergência se acendiam. Agora, percebeu Richard,
todos os guardas do turno haviam se mobilizado, com reforços já a caminho. Se
eles não saíssem logo, ele voltaria para sua cela em pouco tempo.

Se eu não levar um tiro antes…

Para a surpresa dele, eles não seguiram para os portões de entrada, mas
para a parte de trás da prisão. Ainda grogue por causa da surra, ele perdeu a noção
de onde estavam até que Adams fez outra porta trancada desaparecer. Uma brisa
fria de inverno atingiu seu rosto enquanto eles saíam no enorme pátio de exercício
da prisão. Altos muros de concreto, com arame farpado em seus topos, cercavam o
espaço aberto. Torres de vigília observavam a cena do alto. O chão irregular o fez
desejar ter colocado os sapatos antes de sair de sua cela. O que estamos fazendo
aqui? Ele conhecia cada centímetro do pátio de cor. Não havia saída a não ser para
cima.

Holofotes iluminaram os fugitivos. Richard levantou as mãos para cobrir


seus olhos.

— E agora? — perguntou ele a Sanchez.

— Espere.

A mulher fez seu truque do pescoço novamente e as sentinelas nos muros


desmaiaram. Exausta, ela se se encostou ao muro mais perto. O resto da equipe de
resgate parecia cansado também. Billy gritou para as torres de vigília, mas seu
grito soou mais rouco do que antes. Richard imaginava qual era seu limite.

— Olhem! — gritou Sanchez. — Bem na hora!


Um lustroso helicóptero negro descia do céu. Richard estava surpreso de
como eram silenciosos a hélice e o motor da aeronave, e pela total ausência de
faróis. Ele escondera helicópteros na Coréia, mas esse tipo de tecnologia sigilosa o
surpreendia, mesmo sendo do século 21. Se não estivesse vendo, ele não saberia
que a aeronave se aproximava.

Quem são essas pessoas? Imaginou ele, novamente. E no que eu estou me


metendo exatamente?

As hélices girando levantavam poeira e provocavam uma ventania


enquanto o helicóptero pousava no meio do pátio. Uma porta automática abriu-se,
revelando o compartimento dos passageiros, que parecia grande o suficiente para
transportar toda a equipe e Richard. Ele entendia agora porque libertar os outros
prisioneiros não era uma opção. Eles precisariam de uma frota de helicópteros para
resgatar todos os presos.

— Nosso voo está partindo! — gritou Sanchez. — Subam!

Ele empurrou Richard à sua frente.

— Estamos ficando sem…

Um tiro o impediu de terminar a frase. Seus olhos se arregalaram e ele


caiu ao chão. Sangue jorrou no rosto e no peito de Richard quando ele viu o
atirador parado na porta atrás de onde Sanchez estivera há pouco. O guarda
levantou o rifle na direção de Richard.

Agindo por instinto, ele levantou o braço como se conduzisse uma


orquestra. Uma onda de telecinese atingiu o homem armado, jogando-o ao chão e
quebrando-lhe um osso com o impacto. Richard viu mais guardas entrando no pátio
vindo de dentro da prisão. Ele os derrubou com mais uma onda de energia
psíquica. De uma só vez, sentiu-se como se fosse ele mesmo novamente.

Mas e Sanchez? O sangue formava uma poça ao redor da cabeça do líder


da equipe enquanto ele permanecia deitado imóvel no chão. Richard moveu-se para
olhá-lo, mas a mulher o puxou.

— É tarde demais — disse ela apertando se braço, urgentemente. Olhos


violetas piscaram marejados de lágrimas. — Ele se foi…

Ela tinha razão, droga. Por mais que odiasse deixar Sanchez para trás, ele
deixou a mulher arrastá-lo na direção do helicóptero. Poeira e cascalho voavam em
seus olhos enquanto ele subia no compartimento de passageiros e colocava o cinto
e o resto do time entrava depois dele. A porta da aeronave se fechou.

— Todos prontos? — O piloto olhou para trás por cima dos ombros. Ele
franziu a testa. — Cadê o Sanchez?

Richard se sobressaltou ao ver que os olhos do homem eram encobertos


com cataratas brancas como leite. As pupilas eram firmes e não se moviam. Espere
um pouco, pensou ele. O piloto é cego?

— Perdemos o Sanchez! — gritou a mulher. — Decole… Agora!


Tiros e passos apressados do lado de fora dera mais ênfase ao pedido dela.
Sem argumentar, o piloto virou-se para o painel de controle. O motor soltou um
zumbido gentil. O assento de Richard foi impulsionado para trás quando a aeronave
levantou-se, sem produzir som algum, do pátio da prisão. Ela sobrevoou por cima
do muro. Ele se inclinou ansioso enquanto, não muito longe dele, o homem com a
habilidade termocinética tentava confortar o pequeno Billy, que parecia estar
sofrendo pela morte de Sanchez. Lágrimas pingavam por trás dos óculos do garoto
enquanto ele soluçava alto. Uma noite cheia de nuvens os recebia, oferecendo a
promessa de liberdade.

Não acredito, pensou Richard. Nós vamos conseguir.

Balas ricocheteavam os lados do helicóptero. Olhando pela janela, ele viu


labaredas chamejando pelas janelas mais altas da prisão. O ronco do motor parou
abruptamente. O helicóptero mergulhou alarmantemente.

— Perdemos potência! — gritou o piloto. — Vamos cair!

Não, pensou Richard. Visualizando o motor em sua mente, ele o imaginou


rodando rápido o suficiente para funcionar. Instantaneamente, a aeronave nivelou-
se e ganhou altitude. O piloto e os membros vivos da equipe exclamaram aliviados.
A mulher tirou sua máscara de esqui, revelando o rosto de uma gótica. Kohl
pintava seus olhos negros. Seus cabelos escuros e ondulados tinham uma mecha
azul. Ela sinalizou para ele com o polegar erguido.

O Ra-ta-tá das armas de fogo automáticas diminuíam enquanto o


helicóptero elevava-se acima das torres de vigília e sumia entre as nuvens.
Encostando-se no seu assento, Richard fechou os olhos e concentrou-se em manter
a aeronave negra no ar.

Esperava que não fosse um voo longo.


CINCO

Num dia comum, o cemitério Emerald Harbor era uma ilha de serenidade em meio
ao resto da Terra Prometida. Estátuas de mármore cravejavam a encosta gramada.
Anjos esculpidos assistiam sobre a grama cortada. Salgueiros ofereciam sombras
no verão. Uma cerca moldada de ferro geralmente matinha a correria e o tumulto
do mundo exterior longe dali.

Mas não hoje.

Uma retroescavadeira ruidosamente retirava a terra em frente à lápide de


Danny Farrel. A inscrição no granito simplesmente dizia “IRMÃO E MARIDO
AMADO”. Uma outra lápide, carregando o nome completo de Danny, fora
vandalizada de muitos modos. Muitas pessoas ainda culpavam o pobre Danny pela
morte de seus entes queridos. O túmulo de sua mãe, adjacente ao dele, agora
carregava apenas seu nome de solteira: Susan Baldwin.

— Você não precisa ficar aqui para isso — disse Diana a Tom enquanto eles
assistiam à enxada mecânica arranhar profundamente a terra. A sujeira espirrava
no túmulo de sua irmã. O céu estava nublado e carregado. Um guindaste industrial
estava ali perto para levantar o caixão quando ele fosse exposto. Diana falava
suavemente com seu parceiro. — Meghan e eu podemos cuidar disso.

Tom balançou a cabeça.

— Não. Se alguém mexeu com os restos mortais de meu sobrinho, eu


quero saber.

— Bem, estamos aqui por você, Tom — disse Meghan Doyle. A diretora da
sede noroeste da NTAC estava ao seu lado, mantendo sua mão aquecida. Cabelos
loiros ondulados caíam por seus ombros. Olhos castanhos escuros brilhavam com
compaixão. — Sabe disso.

— Obrigado — disse ela às duas mulheres. — Eu aprecio isso.

Além dos agentes da NTAC, o acompanhamento à exumação era composto


por poucas pessoas: um legista, sem ligações com Jordan Collier ou com o
Movimento, pelo que sabiam; o diretor do cemitério; e o time de exumação em si.
Shawn se oferecera para ir, mas Tom lhe garantira que não era necessário. Ele não
mencionara o desinteresse de Kyle, tampouco. Infelizmente, seu filho era muito
próximo a Collier para ser confiado com essa informação. Tom só podia desejar que
um dia não houvesse mais segredos entre eles.

Talvez quando o futuro se concretizasse, de um jeito ou de outro.

Uma cerca fora levantada ao redor para ocultar os procedimentos de vista.


Eram apenas sete da manhã e Tom vira alguns visitantes caminhando pelo local
quando chegara, e a cerca lhe parecia uma boa ideia. Ele imaginava se Simone
Tanaka os estava observando de longe.

Provavelmente.
Quando o buraco já estava bem fundo, os escavadores começaram a
trabalhar com pás. Os homens cuidadosamente tiraram o resto da terra para
descobrirem o topo do caixão de Danny. Uma apreensão esmagadora tomou Tom
quando o guindaste começou a puxar o caixão da cova. Agora que o momento
estava bem diante deles, ele não sabia se podia continuar com aquilo. Lembranças
de Danny criança e com um rosto puro invadiram seu cérebro; Danny estava feliz e
saudável na última vez que Tom o vira vivo. Ele engoliu em seco.

Meghan deu um aperto tranquilizador em sua mão.

— Vai terminar logo.

Tom queria poder acreditar naquilo. Seria tudo um falso alarme, ou eles
estavam ali para uma surpresa desagradável?

O guindaste elevou o caixão até uma lona. Lama escorria pelos lados do
objeto de mogno, que perdera muito de seu brilho polido depois de dois meses
abaixo da terra. Uma van esperava do lado de fora da cerca para levar os restos ao
necrotério privado da NTAC. O legista deu um passo à frente para examinar o
caixão. Stefan Vasco era um cirurgião cardíaco aposentado, que vinha atuando
como médico inspetor desde antes de os 4400 retornarem.

— Talvez — ele sugeriu. — seria melhor conduzir o resto da exumação em


outro lugar.

— Não — insistiu Tom. — Vamos terminar logo com isso.

— Como quiser. — Vasco esfregou mentol abaixo de seu nariz. — Devo


alertá-los de que isso não será prazeroso. Pode haver um forte odor.

— Nós entendemos. — Diana o assegurou. Como agentes da NTAC, eles


estavam mais familiarizados do que gostariam com efeitos de morte. Durante os
últimos anos, haviam visto seres humanos eletrocutados, queimados vivos, e
devorados pelos seus próprios animais de estimação. — Por favor, continue.

Sem mais avisos, o legista destravou o caixão. As dobradiças enferrujadas


rangeram enquanto ele levantava a tampa. Linhas esfarrapadas penduravam-se por
ela como teias de aranha. Um fedor repugnante, como queijo estragado, emanava
do caixão aberto. Tom franziu o rosto e colocou a mão na boca. O dono do
cemitério e os escavadores se afastaram do caixão. Um dos homens parecia estar
prestes a vomitar. Ele saiu correndo o mais rápido que conseguia.

Tom mal notou sua saída apressada e soltou a mão de Meghan.

— Permita-me — voluntariou-se Diana, mas Tom a deixou para trás para


olhar dentro do caixão. Tom arfou alto.

O corpo dentro do caixão havia se resumido a cabelos e ossos. A pouca


carne que sobrara estava enrugada e azulada. Os lábios haviam se decomposto
para deixar à mostra uma caveira. Buracos vazios olhavam sem expressão de um
rosto murcho. O mofo incrustava um terno escuro desgastado. Mas foi a barba
cinza que imediatamente chamou atenção de Tom. Seu sobrinho era um jovem
bonito quando morrera.

De quem quer que fosse o corpo no caixão, não era o de Danny Farrel.
— Olá, Richard — disse Jordan Collier. — Bem-vindo de volta à Seattle.

O auto-proclamado líder dos 4400 estava parado diante de uma enorme


janela que com vista panorâmica do lago Washington. Cabelos negros e uma barba
bem-feita com um bigode o assemelhavam nitidamente a um antigo messias com
as mesmas iniciais, um visual que Richard suspeitava que Collier cultivava de
propósito. O líder carismático do culto fora um bem-sucedido magnata de negócios
antes de se tornar um revolucionário. Como Richard sabia por experiência própria,
Jordan sempre tinha algum plano em mente.

Imagino o que ele quer de mim agora, pensou Richard. Ele não ficara tão
surpreso ao descobrir que Collier for a o responsável por seu resgate na prisão.
Quem mais tinha os recursos, e a audácia, para preparar uma operação como
aquela? Richard se aproximou do outro homem cautelosamente.

— Não quer dizer Terra Prometida?

— Vejo que se manteve informado sobre os acontecimentos recentes —


disse Jordan, com um sorriso. Diferente do conjunto costurado de três peças que
ele usara, sua vestimenta agora consistia em trajes folgados simples. Vestindo um
sobretudo negro por cima de uma túnica branca de algodão, ele parecia mais um
eremita ascético do que o ditador de Seattle em si. — Ótimo.

Ele gesticulou para uma poltrona ali perto.

— Por favor, fique à vontade.

Depois de levarem Richard de volta a Seattle, a equipe de resgate o


trouxera até aquela luxuosa casa de lago segura dentro dos limites da cidade. A
mobília elegante era limpa e moderna. Uma madeira enfeitava o teto sala. Uma
pintura Impressionista de um pôr-do-sol estava pendurada em uma parede perto
do hall de entrada. Uma confortável poltrona de couro branca estava perto de uma
mesinha de centro de aço e vidro. Um jarro de água gelada jazia na mesa. Um par
de guarda-costas espreitava silenciosamente ao fundo. Eles examinaram Richard
cuidadosamente enquanto ele se sentava na poltrona. Um conjunto de roupas
limpas havia substituído o seu traje de prisão manchado de sangue. Seu rosto
ainda estava machucado devido à surra que levara antes de ser resgatado. Suas
costelas ainda latejavam de dor.

— Sinto muito pelo seu homem, Sanchez — disse ele.

— Obrigado — respondeu Jordan. Uma voz rouca mostrava seu pesar. —


Essa foi, de fato, uma infeliz tragédia. Hector era um homem bom e um soldado
leal. Construir um novo mundo requer sacrifício, no entanto. Ele não foi o primeiro
a dar a vida pela nossa causa. Nem, receio, será o último.

Ele se sentou em frente a Richard.

— Mas todo esse sofrimento e tumulto valerão a pena quando o Movimento


cumprir seu destino e trazer paz e prosperidade universal à Terra.

Certo, Richard pensou, duvidosamente. Ele tentou conciliar a retórica


sublime de Jordan com o homem de negócios sem compaixão que ele conhecera
quatro anos antes. Os dois homens tinham um relacionamento longo e
problemático. Embora tivessem trabalhado juntos em uma ocasião, Collier
frequentemente interferira na vida de Richard, e até tentara colocar Lily contra ele
uma vez. Richard sentava-se rígido na borda da poltrona, esperando Collier ir direto
ao assunto.

— O que você quer, Jordan?

— Apenas dividir algumas informações com você. — Ele olhou em volta o


elegante interior da casa de lago. — Para ser honesto, escolhi esse local por uma
razão.

Seu rosto assumiu uma expressão grave.

— Foi aqui que sua filha morreu.

A revelação pegou Richard como uma granada. Ele fora informado na


prisão que sua filha morrera, mas, apesar de seus apelos, nunca soubera os
detalhes de sua morte. Aparentemente, essa informação era “classificada”. Durante
os dois últimos meses, passara horas e mais horas imaginando e se preocupando
com o que acontecera a Isabelle no final. Ele nem mesmo pudera ir ao funeral dela!

— Como? — perguntou ele, roucamente. — Quem?

Collier encheu um copo de água para Richard.

— Me deixe lhe falar sobre os Marcados…

A história que ele contou, sobre conspiradores viajantes do tempo se


escondendo nos corpos de homens e mulheres atuais, teria soado inacreditável
para Richard quatro anos antes. Mas depois de ter sua própria vida manipulada por
uma facção diferente do futuro, e ter sido fisicamente transportado dos anos 1950
para o século 21 e uma bola de luz, a história fazia sentido, pelo menos por
enquanto. Mas o que isso tinha a ver com sua filha?

— Os Marcados tentaram coagir Isabelle para que ela traísse o Movimento


— explicou Jordan. — Quando ela se rebelou, eles a mataram. — Ele soltou um
longo suspiro. — Ela sacrificou a vida para salvar a mim e a Tom Baldwin. Devia
ficar muito orgulhoso dela.

— Foi isso mesmo que aconteceu? — perguntou Richard. Concebida no


futuro, e posta na vida adulta do dia para a noite, Isabelle se tornara uma jovem
perigosa e volátil com habilidades extraordinárias. Embora ele sempre a tivesse
amado, lutara para que ela superasse seus impulsos obscuros. Agora queria
desesperadamente acreditar no que Jordan estava lhe contando, que sua linda filha
encontrara a redenção no fim. — Ela fez a coisa certa?

— Sua filha morreu como uma heroína — insistiu Jordan. — Eu estava lá.
Eu vi com meus próprios olhos.

Richard estava tomado pela emoção. Ele secou as lágrimas dos olhos.

— Ela sofreu?

Jordan balançou a cabeça.


— Não por muito tempo. Terminou logo.

Eles ficaram sentados em silêncio por vários momentos enquanto Richard


processava o que acabara de ouvir. Ele lamentava a morte de sua filha, mas
encontrava algum conforto no fato que ela realmente mudara sua vida, primeiro.
Para ser honesto, ele temia que Isabelle ficasse ruim outra vez e fosse morta pelas
autoridades em algum tipo de extermínio, mas aparentemente esse não era o caso.
Ele queria poder contar a Lily que a filha deles ficara bem, mas então percebeu que
provavelmente ela já sabia disso. Se houvesse alguma justiça nos cosmos, sua
mulher e filha estariam juntas mais uma vez.

Um pensamento sombrio lhe ocorreu. Seus olhos secaram-se e seu rosto


ficou rígido. Ele levantou o olhar.

— E os Marcados…?

Jordan acenou com a cabeça, antecipando a resposta para a pergunta de


Richard. Ele pegou um pedaço de papel do bolso em seu peito.

— Três dos Marcados foram erradicados. Essa lista contém as identidades


atuais dos sete Marcados que sobraram.

Ele entregou o papel a Richard, que se espantara com os nomes na lista,


que incluíam um assessor do presidente, um oficial de alto cargo no Vaticano, um
grande produtor de Hollywood, um Shake Árabe rico, um general cinco estrelas, um
burocrata chinês, e um tibetano mundialmente conhecido. Todos extremamente
poderosos individualmente. Essas eram as pessoas responsáveis pela morte de
Isabelle?

— Onde você conseguiu isso?

A resposta de Jordan o surpreendeu.

— Tom Baldwin. Dada as conexões política dos Marcados, ele ficou de mãos
atadas, então ele me passou a lista para que eu cuidasse desse problema para ele.

Cuidasse? Richard começava a entender.

— Quer que eu me livre dos Marcados. Usando minhas habilidades.

— Não estou pedindo que faça coisa qualquer — declarou Jordan,


cautelosamente mantendo o grau de negação. — Como um amigo, me senti
impelido a lhe informar sobre as circunstâncias que dizem respeito à morte de sua
filha e lhe passar as informações que dizem respeito aos assassinos dela.

Ele olhou diretamente nos olhos de Richard.

— Você é um ex-soldado. Tem uma habilidade impressionante, e todos os


motivos para odiar os Marcados tanto quanto eu. Você é um homem livre. Sempre
foi.

Ele se levantou da poltrona.

— Vou voltar para minha sede no centro da cidade. Por favor, sinta-se livre
para permanecer nessa casa de lago o quanto achar necessário.
Ele deixou a lista para trás.
SEIS

— Vocês têm certeza de que era o corpo errado?

Bernard Grayson, da Funerária Grayson & Son, ficou chocado com a notícia
de que o corpo de um estranho fora encontrado no caixão de Danny Farrell. Seu
rosto delgado era composto por linhas finas e angulosas. A linha do cabelo em
forma de “V” marcava o alto de sua testa. Um austero costume preto denotava
bem sua profissão. Ele se achava sentado em uma grande escrivaninha em madeira
de lei, enquanto Diana e Tom o confrontavam com a descoberta que haviam feito
no cemitério. Prateleiras de livros se alinhavam em uma das paredes, ao passo que
uma outra estava cheia de fotos de Grayson com diversos políticos e celebridades.
As paredes azuis clara eram agradavelmente suaves. O som de um órgão tocava
baixinho no aparelho de som. A Grayson & Son fora responsável pelos funerais de
Danny e da mãe dele.

— Positivo — confirmou Tom. — Os registros dentários identificaram o


corpo como sendo de Delbert Ludden, um sem-teto que foi morto durante as
manifestações no ano passado, mais ou menos na mesma época em que meu
sobrinho morreu. — Ele e Diana haviam deixado seus uniformes da NTAC no carro
para evitar chamar atenção. — Não havia nenhuma evidência de que o corpo de
Danny tenha ocupado aquele caixão.

Diana inclinou-se para frente em sua cadeira.

— Mas o caixão era idêntico ao que Shawn Farrell adquiriu de sua empresa há dois
meses.

—Meu Deus. — Grayson enxugou a testa suada com um lenço. Ele olhou de
relance para a porta do escritório, para se certificar de que estava fechada. — Não
tenho como dizer o quão humilhante é isto. Eu só posso lhes garantir que nunca
aconteceu algo parecido antes. A Grayson & Son goza de uma reputação impecável,
desde que meu pai fundou o negócio, há trinta anos. — Ele parecia envergonhado
perante Tom. — Você e sua família merecem minhas sinceras desculpas pelo que
possa ter dado errado.

Diana continuou a pressionar.

— Você tem alguma ideia do que possa ter acontecido?

— Eu gostaria de ter — disse Grayson. — Vocês têm que entender, foi uma
época muito caótica. A epidemia ceifou mais de nove mil vidas em uma questão de
dias. A indústria funerária da cidade foi pressionada até o limite. Nós fomos
atropelados pela fatalidade. — Ele puxou pela memória. — Eu só posso concluir
que, na confusão daqueles dias sombrios, algum tipo de falha aconteceu. — Ele
afrouxou o colarinho. — Mais uma vez, eu sinto muito por esses acontecimentos
angustiantes.

Tom queria respostas, não desculpas.

— Então onde está o corpo do meu sobrinho agora?


— Para ser honesto, eu não faço a menor ideia. — Grayson abriu os
arquivos mais relevantes de seu laptop. Ele verificou rapidamente a tela. —Todos
os nossos registros parecem estar em ordem. Seu sobrinho deveria estar enterrado
ao lado da mãe.

Diana fez a pergunta lógica.

— Bem, onde é que o corpo de Ludden deveria estar?”

— Deixe-me ver. — Grayson digitou o nome do mendigo no computador. —


De acordo com nossos registros, os restos mortais do Sr. Ludden foram cremados.
As cinzas resultantes foram recolhidas pelo município para serem espalhadas pelo
planejado parque memorial. É possível que ainda estejam armazenadas em algum
lugar.

Tom não engoliu a explicação do papa-defunto. Ele se lembrava claramente


de ter visto o corpo de Danny dentro do caixão, no velório. Ou o que aparentava
ser o corpo de Danny. Tentou imaginar como poderiam ter sido enganados.
Metamorfose? Ilusão coletiva? Projeção astral? Na Terra Prometida, as
possibilidades eram infinitas.

— Belo escritório — comentou Diana. Levantando-se de sua cadeira, ela se


dirigiu até a parede, onde uma foto de Grayson ao lado de Jordan Collier ocupava
lugar de destaque. Ela sacudiu a cabeça diante do retrato. — Você é fã dele?

Grayson se encolheu em sua cadeira.

— Eu acho que o Sr. Collier é um grande homem — Uma expressão ressabiada


encorajou os agentes a confrontá-lo. — Você já leu o livro dele? “De 4400 para
mais”?

— Eu tenho uma cópia autografada — disse Tom, secamente. Ele não se


surpreendeu com a admiração do homem por Collier. Uma pesquisa prévia já havia
revelado inúmeras ligações entre o agente funerário e o Movimento de Collier.
Grayson & Son parecia ser a funerária preferida dos seguidores de Collier e suas
famílias. Eles haviam inclusive realizado o funeral de Isabelle Tyler. Detendo a
preferência, Grayson poderia estar apenas tirando vantagem de um novo e
lucrativo fenômeno demográfico, mas a conexão com Collier era suspeita. Talvez o
desaparecimento do corpo de Danny não tivesse sido apenas um acidente.

— Acho que teremos que inspecionar as dependências da empresa —


declarou Diana.

A cortesia solícita de Grayson evaporou.

— Por quê? — ele indagou, na defensiva. — Porque eu apoio Jordan Collier e seus
esforços para fazer do mundo um lugar melhor? Isto não é crime, ao menos não
em Seattle.

— Não — ela concordou — mas a apropriação indébita de restos mortais é.


Nós não queremos prestar queixa, mas você estaria melhor se cooperasse conosco.
— Ela olhou de relance para Tom. — Especialmente se você não quiser que meu
parceiro abra um processo civil também.

Grayson empalideceu com a possibilidade, mas manteve pé firme.


— Acho que eu valorizo demais a privacidade de meus clientes para me
comprometer nesse sentido. — Ele se levantou de sua cadeira e gesticulou na
direção da porta. — Estejam à vontade para inspecionar as áreas públicas, as salas
de velório, capelas e tudo o mais, mas as salas de preparação e o crematório são
áreas restritas. É uma questão de princípios.

— É assim? — disse Tom, duvidando. O fato do agente funerário desafiá-


los teimosamente, mesmo com a ameaça de inquérito e falência em potencial,
sugeria que ele definitivamente tinha algo a esconder. Tom tirou um documento
dobrado do bolso de sua jaqueta. — O caso é que nosso mandado vence os seus
princípios. — Ele entregou a Grayson a ordem judicial, discretamente obtida com
um dos poucos juízes de Seattle que não estavam comprometidos com Collier. —
Veja só.

— O quê? — Aturdido, Grayson folheou o documento, antes de jogá-lo na


mesa. Sua expressão facial era pura raiva. “Isto é um despropósito! — Ele pegou o
telefone. — Eu preciso falar com meu advogado.

Ou talvez Jordan Collier?

— Vá em frente — disse Tom, levantando-se da cadeira para se juntar a


Diana. Ele imaginava se o recalcitrante agente funerário esperava que Collier o
protegesse de qualquer investigação. — Enquanto isso, nós iremos dando uma
olhada por aí, começando por aquelas áreas restritas que você mencionou.

— Não! Não podem — protestou Grayson. Esquecendo-se do telefone, ele


correu de trás de sua mesa para deter os dois. — Eu não entendo. O que vocês
esperam encontrar? Eu prometo, o corpo do Sr. Farrell não está aqui. Por que
estaria, após todas essas semanas?

— Me diga você — replicou Tom. As objeções veementes do homem


apenas aumentavam sua determinação de vasculhar a funerária de cima a baixo.
Ele não esperava realmente encontrar o corpo de Danny nas dependências desta,
mas talvez pudessem obter alguma pista que revelasse o que fora feito dele. E o
que Jordan Collier tinha a ver com aquilo, se é que tinha.

— Dizer o quê? — O papa-defunto, consternado, parecia a ponto de


arrancar o pouco que lhe restava de seus cabelos. Ele retorcia suas mãos suadas. O
suor brotava de sua testa. — Eu não tenho nada a esconder!

Tom abriu a porta.

— Então você não tem nada com o que se preocupar. Mas precisamos ver por nós
mesmos.

— E vamos precisar daquele laptop — acrescentou Diana. Sem pedir


permissão, ela confiscou o computador da mesa de Grayson. — Bem como seus
registros acerca de Danny Farrell, Delbert Ludden, e o resto dos casos do
cinquenta/cinquenta.

Grayson fitou tristemente seu laptop perdido.

— Mas nós registramos centenas de vítimas. Centenas!

— Então é melhor você começar a se mexer — disse Tom.


Ele e Diana saíram do escritório, com Grayson ansioso atrás deles.
Enquanto isso havia um funeral em andamento em uma das salas de velório
adjacentes. Olhos curiosos se voltaram na direção dos agentes. Tom sentiu uma
pontinha de culpa por causar aquela perturbação, mas eles não poderiam jamais ir
embora e voltar mais tarde; isso daria a Grayson uma chance de se desfazer de
alguma evidência que poderia incriminá-lo. Eles apenas teriam que tentar se
discretos. Mais uma razão para começar pelo andar de baixo, decidiu ele.

Evitando as áreas públicas, eles se dirigiram para os fundos da casa. Um


belo aviso de ACESSO RESTRITO AOS FUNCIONÁRIOS enfeitava a entrada de uma
escadaria que descia para o porão. Uma porta trancada os recebeu ao final dos
degraus.

Tom virou-se para Grayson, que estava parado exatamente atrás dele na
escada.

— As chaves.

— Esqueça — o homem resmungou. Ele estendeu os braços, como se os


oferecesse para serem algemados. — Prenda-me se você quiser, mas eu conheço
meus direitos. Você não vai se safar dessa.

Aquilo era uma ameaça? Mais uma vez, Tom imaginou que Grayson
estivesse esperando que Collier ou seus assessores pudessem intervir em seu
favor. Isso poderia acontecer, ele admitiu, se o agente funerário tivesse a chance
de contatar seu glorioso líder. E é por isso que precisamos passar por esta porta
agora.

Desafiando-o, ele pegou as algemas.

—Vigie ele — pediu a Diana, enquanto algemava os pulsos do homem atrás das
costas. O papa-defunto de meia-idade parecia estar desarmado e em desvantagem,
mas quem saberia quais habilidades estranhas ele poderia possuir? Bernard
Grayson não estava listado entre os 4400, mas isto não significava muito. Graças
ao cinquenta/cinquenta, havia inúmeros p-positivos não registrados em Seattle
naqueles dias. Pelo que sabiam, ele poderia esguichar veneno de seus olhos ou
incendiá-los com um simples pensamento.

Entretanto, ele limitou-se a olhar com raiva para Tom, enquanto este o
revistava para achar as chaves. Um barulhinho metálico encorajador entregou o
esconderijo das mesmas. Tom exigiu as chaves e destrancou a porta.

— Está bem, vamos descobrir o que você está tão determinado em esconder de
nós. Por uma questão de princípios, é claro.

Tom nunca havia estado nos bastidores de uma casa funerária antes, mas
ele imaginava que não poderia ser diferente do necrotério do QG. Uma olhada
rápida pareceu confirmar suas expectativas. Divisórias separavam o porão em três
ou quatro câmaras interligadas. Redomas refrigeradas mantinham os clientes do
necrotério gelados. O cadáver de um ancião estava sobre uma mesa metálica de
embalsamento. Um pano modesto, cobrindo-lhe a virilha, ajudava a preservar sua
dignidade. Uma máquina de embalsamar, cheia de um líquido rosa translúcido,
rugia ao fundo. Ralos metálicos tinham sido instalados no chão de ladrilhos.
Trocáteres, instrumentos de sutura, cânulas e outras ferramentas estavam
espalhadas por várias bandejas e balcões. Estantes de vidro continham uma grande
variedade de preparados químicos. Uma pia de porcelana branca jazia na parede
mais distante. Lâmpadas suspensas brilhavam intensamente. Ventiladores
barulhentos e exaustos se esforçavam para limpar o ar, que cheirava levemente a
formaldeído e putrefação. Portais se abriam para as câmaras adjacentes.
Espreitando através de uma porta à direita, Tom vislumbrou uma grande fornalha
de aço, com controles de ajuste de temperatura. Uma esteira rolante esperava para
conduzir corpos para dentro do crematório. O sistema de ar condicionado mantinha
o porão vários graus mais frio do que os escritórios lá em cima.

Tudo parecia em ordem, apesar de meio bagunçado, então por que


Grayson fizera tanto auê?

— Tom — disse Diana, ansiosa. — Venha aqui.

Ela entrara por um portal no que, à primeira vista, parecia ser uma
segunda sala de preparação. Ele se apressou através da câmara para se juntar a
ela. — O que foi?

— Veja este equipamento — ela disse, apontando para um grupo de


aparelhos que pareciam caros. — Centrífugas, tubos de ensaio, placas de Petri,
microscópios de elétrons, incubadoras de cultura, até um moderno analisador de
DNA. Eu sei que não sou uma expert, mas estou bem certa de que isto não é
equipamento padrão do ramo de funerais. — Ela contornou a sala para confrontar
Grayson, que já se encontrava ao pé da escada. “Qual é a explicação, Sr. Grayson?
Está querendo entrar no ramo da guerra dos germes ou algo parecido?

O agente funerário algemado lançou um olhar furioso para os dois agentes.

— Eu não vou dizer nada. Isto aqui é propriedade particular.

— Talvez — disse Tom — mas isto me parece mais do que um passatempo.


— Ele avaliou o laboratório oculto. Era mesmo um aparelho de tomografia ali no
canto? Ele não era um cientista, como Diana, mas até ele podia dizer que todo
aquele equipamento médico de alta tecnologia não tinha nada a ver com a
preparação de corpos para enterros. — Precisamos fotografar todas estas
instalações, talvez até trazer Marco aqui para ver tudo isto.

Marco Pacella era o gênio residente da NTAC, e chefe da “Sala de Teorias”


da Divisão Noroeste. Se ele não conseguisse descobrir o que Grayson pretendia
com todo aquele equipamento, ninguém mais o faria.

— Ou, se nós pudermos confiar nele, Kevin Burkhoff — sugeriu Diana. Uma
etiqueta de “agentes biológicos nocivos” estava afixada em um armário de metal.
Olhando dentro do container, ela encontrou promicina suficiente para decretar uma
sentença de vida ou morte para qualquer lugar além de Seattle. O brilho
esverdeado do neurotransmissor ilegal se espalhou pelo laboratório. — OK, isto
definitivamente não é fluido de embalsamento — Ela sacudiu a cabeça,
desnorteada. — Mas o que isto tem a ver com o seu sobrinho?

— É o que eu quero descobrir — disse Tom, com raiva. Entrando na


câmara frigorífica, seu olhar se ateve às estantes refrigeradas que continham a
clientela inerte. Etiquetas escritas a mão, afixadas na borda das cúpulas,
identificavam a maioria dos ocupantes pelo nome. Um grupo de gavetas,
entretanto, estava identificado apenas por números. Num impulso, Tom segurou a
alça da gaveta do meio e a puxou com força. Um sopro de ar gelado enevoou
brevemente a atmosfera refrigerada. Um par de pés descalços aparecia de dentro
da figura coberta que estava deitada dentro da cavidade aberta. Uma etiqueta
afixada num dos dedos continha apenas um número de código: # 11.

— Espere! — entregou Grayson. — Deixe isso aí.

Só porque você quer, pensou Tom. Ignorando os protestos do papa-


defunto, ele puxou para fora a bandeja que continha o corpo. Um fino lençol verde
ocultava a identidade do cadáver, mas o tamanho e o formato do corpo lhe
causaram um sentimento ruim. Preparando-se para um choque, ele puxou o lençol.

O rosto de Danny estava pálido e sem vida.

— Seu ladrão de corpos idiota! — Girando o corpo, Tom agarrou Grayson


pelo colarinho e o jogou contra a parede. — O que você quer com meu sobrinho?

Grayson deu um sorriso amarelo para o agente irritado. Seus olhos


brilhavam de fervor. — O Grande Passo para Adiante ainda não está completo.
Danny Farrell ainda tem um papel a cumprir neste grande plano, apesar de sua
morte infortunada.

— Que merda você quer dizer com isto? — Tom tentou tirar uma resposta
do seu prisioneiro, sacudindo-o. — Fale, seu demônio desgraçado!

— Calma, Tom! — Diana o aconselhou. — Eu sei que você está aborrecido,


mas não faça nada de que possa se arrepender.

Falarei com Bernard aqui, ele pensou. Ele é quem cometeu um grande erro
aqui, mexendo com minha família. Tom não estava certo de que Diana estava
usando a tática de “policial bonzinho/policial malvado” 2 ou se ela realmente estava
com medo de que ele perdesse o controle, mas de toda maneira ele não iria desistir
enquanto o papa-defunto imprensado na parede não vomitasse a explicação para o
que estava acontecendo ali. Está começando a parecer que Dennis estava na pista
certa.

Mas antes que Grayson pudesse abrir o jogo, Tom percebeu indícios de
movimentação pelo canto de seus olhos. Para sua surpresa, um jovem de jaleco
pulou de detrás da porta ao pé da escada. Tom se repreendeu mentalmente por
não verificar completamente o porão antes de começar a revista; ele deixara sua
ligação pessoal com o caso prejudicar sua disciplina.

— Diana, cuidado!

O aviso veio tarde demais. O empregado anônimo pegou uma bandeja de


aço de um dos balcões e arremessou contra a cabeça de Diana. A arma
improvisada a atingiu com um impacto estridente. Diana desmaiou de cara no chão
de ladrilhos. Ela gemeu, cheia de dor.

2
N. do T.: “Good cop/bad cop” – estratégia de abordagem do criminoso, efetuada em dupla por
policiais, na qual o primeiro o interroga de maneira agressiva e incisiva, preparando o terreno para que
o segundo, utilizando uma aproximação mais tranquila, pareça simpático e tenha melhores chances de
obter uma confissão, por exemplo.
— Diana! — Ele não conseguia saber se ela estava inconsciente ou não.
Soltando Grayson, correu para confrontar o agressor dela. Sacou a arma no coldre
lateral. — Mãos ao alto! Não mova um músculo!

O adolescente magricela deu uma risadinha ao ver a arma de Tom,


revelando uma boca repleta de ganchos metálicos. A acne marcara sua face rude.
Mechas loiras e engorduradas balançavam diante de seus olhos. Calças jeans azuis
contrastavam com seu jaleco branco e manchado. Ignorando a ordem de Tom, ele
correu para a mesa de embalsamento e pegou um trocáter ameaçador de um kit de
instrumentos na ponta da mesa. A agulha de metal reluzente cintilou sob as luzes
do teto. Ele o brandiu na frente de Tom como uma espada.

— Largue isto — rosnou Tom. Elevou sua arma até a cabeça do garoto. —
Agora.

— Vá em frente — provocou ‘Ganchos’. — Puxe o gatilho. — Ele olhou para


Grayson, atrás de Tom. “Bernie, saia daqui. Eu tomo conta desses storm troopers3!

O papa-defunto correu de volta para a escada.

— E quanto a você? — perguntou ao parceiro de crime.

— Você é mais importante — insistiu Ganchos. — O futuro precisa de você.


Vai!

Diana gemeu fracamente no chão. Apesar de armado, Tom sentiu que a


situação rapidamente saía de seu controle.

— Nenhum de vocês vai a lugar algum. Agora abaixe essa arma. — Ele engatilhou a
Glock semiautomática. — É o meu último aviso.

— Ah, é? — O adolescente brandia o trocáter. — Que tal este aviso: deixe


Bernie ir ou sua parceira vai ficar espetada como churrasco!

Ele aproximou-se ameaçadoramente de Diana. Tom puxou o gatilho.

Nada aconteceu.

— Qual o problema, garotão? — Ganchos deu tapinhas na cabeça dele com


a mão livre. — Por acaso eu contei que posso neutralizar reações químicas apenas
com a força de vontade? Muito útil no laboratório, e mais ainda em um tiroteio. Sua
munição está estragada.

Droga, pensou Tom. Ele ouviu Grayson correndo escadaria acima lá atrás.
Em alguns minutos o criminoso diretor de funerária estaria longe, mas persegui-lo
não era uma opção. Não havia como deixar Diana sozinha com aquele cara. O
violento adolescente com certeza tinha planos.

Tom nem tentou disparar sua arma novamente. Ao invés disso,


arremessou o inútil pedaço de metal contra a cabeça de Ganchos. O adolescente

3
N. do T.: Storm troopers – personagens da saga Star Wars, de George Lucas.
abaixou-se para evitar o projétil e Tom aproveitou a oportunidade para atingi-lo
com a cabeça. Ele jogou o oponente de costas na mesa de embalsamento, que se
chocou contra o inofensivo cadáver atrás dele. Seus dedos agarraram o punho de
Ganchos para manter a ponta afiada do trocáter longe dele. Os anos de
treinamento no F.B.I. triunfaram quando ele torceu o punho de Ganchos
selvagemente.

O instrumento cirúrgico afiado voou da mão do garoto e quicou pelo chão até o
outro lado da mesa.

— Desista! — resmungou Tom, com os dentes cerrados. Mesmo que


tivessem perdido Grayson, talvez ainda pudessem conseguir respostas daquele
cretino. Ele se sentiu um idiota por não ter checado os outros empregados; eles
deveriam ter imaginado que Grayson não estava trabalhando sozinho. — Você vem
com a gente!

— É o que você pensa! — Ganchos cuspiu no rosto de Tom, cegando-o


momentaneamente, depois golpeou a testa do agente com sua cabeça. Estrelas
explodiram dentro do crânio de Tom e ele cambaleou para trás. Ganchos escapuliu
de suas garras e rolou por cima da mesa de embalsamento, jogando o corpo do
ancião no chão. A carne sem vida atingiu os ladrilhos como um saco de batatas. Um
parafuso de plástico no abdômen do cadáver se abriu. Fluido de embalsamento
jorrou da ferida aberta.

Tom limpou o cuspe de seus olhos e saltou por sobre a mesa, atrás de seu
oponente. Ganchos mergulhou para pegar o trocáter, mas o agente jogou-se sobre
ele primeiro. Eles tombaram através de uma porta aberta para dentro da câmara
de cremação. O laboratorista lutou de forma cruel, mordendo com força a orelha de
Tom, enquanto eles se debatiam no chão, mas o experiente agente da NTAC logo
levou vantagem. Um golpe nos rins fez Ganchos gritar, soltando a orelha de Tom, e
ele jogou-se em cima do adolescente, imobilizando-o no chão. Ele levantou seu
punho para desferir o golpe final.

— Espere — grunhiu Ganchos. Ele jogou as mãos para cima, rendendo-se.


— Me dê um segundo!

— Para o quê? — exigiu Tom. Ele não tinha tempo a perder com aquele
marginal. Eu preciso ver como está Diana.

— Para me concentrar, seu idiota!

O garoto fez uma careta e apertou os olhos fechados. Sua testa ferida se
franziu em pensamentos… E uma repentina onda de fraqueza tomou conta de Tom.
De uma só vez, seu punho parecia pesado como uma bola de boliche. Seus
membros pareciam de borracha.

Oh, droga, pensou Tom. O que ele está fazendo comigo?

Ele tentou continuar o soco, mas o golpe aterrissou completamente sem


força. Os nós de seus dedos rasparam, inofensivos, o queixo do rapaz. A cabeça de
Tom balançou, molenga, sobre seus ombros. Ele sentiu-se tonto, confuso.

Ganchos afastou Tom com rudeza e se colocou de pé. Tom permanecia ajoelhado e
instável no chão. Tudo o que podia fazer era continuar assim. Ele nunca havia se
sentido tão exausto em toda a sua vida.
— O que… O que está acontecendo comigo?

— Está tendo uma pequena crise energética? — Ganchos zombou dele. —


Isso sou eu diminuindo seu metabolismo. As reações catabólicas que dão força aos
seus músculos estão se reduzindo a um rastejar. Como a pior hiperglicemia do
mundo. — Ele riu do agente aflito. — Tira um pouco a concentração, mas realmente
elimina o vento das suas velas. Vamos relembrar a biologia do Ensino Médio.

Tom tentou reagir rápido, mas seu cérebro se recusou a cooperar. Ele mal
podia concatenar duas ideias ao mesmo tempo. Apoiou os dois braços no chão para
evitar escorregar no chão de ladrilhos. Seus olhos turvos observaram Ganchos
acender o crematório. O propano se incendiou dentro do destilador à prova de fogo.
O embalsamador ferido abriu a porta superior para revelar o inferno laranja
brilhante lá dentro. Tijolos refratários alinhavam-se no interior do forno. O calor das
chamas atingiu Tom como um sopro de fornalha. Ganchos ligou a maca motorizada.
Uma esteira rolante esperava para despejar uma carga na boca do forno.

— Não — arfou Tom. Apesar do calor, um arrepio desceu sua espinha


quando ele adivinhou o que o adolescente tinha em mente. — Você não pode…

— Desculpe, cara, mas você pediu isto. — Ele veio por trás de Tom e o
agarrou por debaixo dos braços. O agente, esgotado, estava fraco demais para
reagir. Grunhindo de esforço, Ganchos colocou Tom de pé e começou a arrastá-lo
para a esteira rolante. — Você poderia muito bem ter escapado sozinho.

Os joelhos de Tom se arrastaram no chão. As chamas crepitavam mais alto


do que o ronco contínuo do motor. O calor do forno aumentava a cada passo.

— Espere — ofegou ele. — Você não tem que fazer isto. Deixe-nos aqui.

— Sem chance — disse Ganchos. — Vocês já viram demais. Eu preciso


realocar todo este equipamento antes que algum outro idiota do governo venha
procurar vocês. — Ele girou Tom até colocá-lo de frente para a esteira. O inferno
flamejante chamuscou o rosto de Tom. A ponta da esteira encostou em sua cintura.
Ele travou os joelhos com o que lhe sobrava de energia.

— Por favor — Tom suplicou. — Não… Isto é loucura…

— Você e seus colegas estão loucos se pensam que podem impedir o


futuro. — Ganchos continuou falando, talvez para se distrair do que estava para
fazer. — Normalmente, eu colocaria você em uma caixa de papelão primeiro, e me
certificaria de remover todos os seus objetos pessoais, mas acho que isto tem que
ser feito rápido. — Ele tentou empurrar Tom para a esteira rolante, enquanto
tagarelava sem parar. As mãos dele pressionaram as costas de Tom. — Que pena
que você não verá o Paraíso na Terra, companheiro. Mas pense nisto como uma
prévia do Inferno…

Ele segurou, sem forças, as laterais da esteira. Sentiu seus pés perdendo
contato com o chão. Acabou-se, ele temeu. Talvez eu devesse ter tomado aquela
maldita injeção, afinal de contas...

Entretanto, no mesmo instante em que ele pensou que estava tudo


acabado, Ganchos gritou de dor. Largando Tom, ele cambaleou para trás,
praguejando de forma obscena. O trocáter que estava jogado no chão havia sido
enfiado em seu ombro por Diana, que estava em pé atrás do pretenso assassino de
Tom, com uma expressão decidida no rosto. Preocupado em evitar a própria
cremação, Tom nem a ouvira entrar no crematório.

Aparentemente, nem Ganchos.

O sangue escorria pelas costas do laboratorista. Sua concentração falhou, e


Tom sentiu a energia voltando. Alívio e adrenalina inundavam suas veias. Seu
cérebro confuso voltou a funcionar. Ele pulou para longe da esteira e do forno.

— Diana — ele arfou —, essa foi por pouco.

— Nem me fale. — Ela mantinha o olhar fixo em Ganchos, que estava


acuado pelos dois agentes. O garoto se balançava todo, as pernas tremiam. — Você
está bem, Tom?

— Acho que sim. — Ele estava feliz por ver sua parceira de volta à ação. —
Obrigado por me salvar. E você?

Ela massageou sua cabeça contundida.

— Nada que um Tylenol não cure. — Ela puxou o celular do bolso e chamou
reforços. — Está certo. Traga Garrity aqui – ambos, o mais rápido que puder, e
alguém da equipe de Marco, também. — Ela guardou o telefone e acenou com a
cabeça para Tom. — A ajuda está a caminho.

— Você ouviu, né, seu bosta? — Tom sacudia os punhos, enquanto


bloqueava a saída. Ele sentiu que ainda poderia devorar um filé enquanto isso, mas
seu vigor estava definitivamente voltando, à medida que seu corpo trabalhava além
da conta para recarregar as baterias. — Se eu fosse você, começaria a falar agora
mesmo.

Ganchos engoliu em seco. Seu rosto cheio de acne se contorcia de dor,


enquanto ele se esforçava para tirar o trocáter de seu ombro. Um jorro rubro
esguichou da ferida aberta. Ele olhou de um lado para o outro entre os agentes,
como se avaliando as chances que teria contra os dois. O sangue pingava da ponta
da arma. Seu braço se sacudia como uma antena de carro numa rodovia. O
hematoma em sua testa era uma feia mancha roxa.

— Nem pense nisso. — Tom o advertiu. —Olhe para si mesmo. Você está
perdendo sangue rápido. Não há meio de você passar por nós.

O garoto lambeu os lábios nervosamente. Seu braço tremulante começou a


se abaixar.

— Você acabou de tentar incinerar um agente federal — Diana lembrou a


ele. — Nem mesmo Jordan Collier pode salvá-lo desta.

Os olhos selvagens e avermelhados lembraram a Tom um animal acuado.

— Eu jamais trairei o Movimento — jurou o adolescente. — Vocês não vão


conseguir me fazer falar.

— Isto é o que você pensa — disse Tom, sombriamente.


— Não, não… — O olhar do garoto lançou-se na direção do crematório. Ele
respirou fundo. Um misterioso ar de tranquilidade tomou conta dele. — Eu não vou
lhes dar a chance de me dobrar.

Tom entendeu tarde demais o que o embalsamador acuado tinha em


mente.

— Não! — ele gritou, se projetando para frente, mas Ganchos já havia se atirado de
bruços na esteira. Esta jogou o jovem suicida direto na boca aberta do crematório.
Uma explosão de calor se derramou do forno quando as chamas engoliram o corpo
flagelado do adolescente. Carne e roupas escureceram e queimaram. A pele chiou e
estalou. Seus gritos de morte foram misericordiosamente breves.

— Oh, meu Deus! — exclamou Diana. Ela tapou a boca com a mão,
horrorizada. — Que tipo de fanatismo inspira um sacrifício como este?

— Pergunte a Jordan Collier — respondeu Tom, amargamente. Querendo


abafar o cheiro de carne humana queimando, ele bateu a porta do forno, para que
eles não vissem ou sentissem mais nada. A cremação autoinflingida do adolescente
o sacudira até o âmago. Kyle seria capaz de fazer o mesmo para proteger seu
adorado Movimento? Tom não queria nem pensar naquilo.

Virando as costas para o crematório, eles caminharam, entorpecidos, de


volta para a sala de preparação. A visão do corpo de Danny na maca atingiu Tom
como um soco no estômago. Ele passou por cima do cadáver rasgado no chão. O ar
fresco rescendia a produtos químicos e sangue. A morte parecia se aproximar de
todos os lados.

Diana caminhou para as redomas.

— Bem, ao menos encontramos Danny.

— Mais conhecido como Número Onze — disse Tom, de modo severo.

Diana lançou um olhar enigmático para os outros compartimentos.

— Imagino quem serão os outros espécimes. — Curiosa, ela abriu a redoma


diretamente acima da de Danny e puxou a gaveta. Outro corpo coberto por um
lençol saudou seus olhos. — Vamos ver quem temos aqui.

Ela retirou o lençol, então pulou para trás, surpresa. Tom soltou um grito
entrecortado.

O segundo corpo também era de Danny Farrell.


SETE

Foi dito que, quando Roma caísse, o mundo terminaria.

O cardeal Emanuel Calábria sabia que não era somente isso. No futuro
distante do qual ele viera, Roma era nada a não ser apenas ruínas, mas ainda
assim a civilização resistira, mesmo que a Catástrofe tivesse deixado o planeta aos
escombros. Somente uma grande cidade restara, separada por muros do enorme
caos do lado de fora. Era sua missão fazer com que a última cidade da humanidade
— a sua própria cidade — resistisse.

Apesar da intromissão infernal de seu inimigo.

A até então chamada Cidade Eterna se estendia diante dele enquanto ele
jantava em um restaurante aberto na Vialle Trinita di Monti, com vista para os
famosos Degraus Espanhóis. O crepúsculo lançava sombras arroxeadas sobre os
telhados rosados da cidade em expansão abaixo. Pedestres atravessavam a rua,
dirigindo lambretas e táxis. A mesa do cardeal ocupava a calçada estreita de uma
igreja curvada do século 16. A mais comprida e mais extensa escadaria do
continente, os Degraus Espanhóis, era flanqueada por palácios e mansões
blindados. Jardins terraços e vasos de plantas adornavam os degraus. Multidões de
turistas, casais de namorados, e futuros artistas e fotógrafos enchiam a praça no
topo dos degraus, curtindo uma manhã quente de janeiro. Palmeiras balançavam
ao vento.

Uma batina negra, com botões e colarinhos escarlates, indicava a posição


elevada do cardeal na Igreja. Uma cruz estava pendurada em uma corrente diante
de seu peito. Uma faixa escarlate envolvia seu torso. Um chapéu vermelho cobria
seu cabelo prateado. Um rosto gordo, com uma divisão no meio do queixo,
mostrava seu grande apetite.

Calábria engoliu um pouco de spaghetti alla pescatori com um gole de


vinho branco. O Frascati era o único vinho que complementava macarrão
divinamente. Ele saboreou mais um pedaço de lula encharcada em molho. Em
momentos como esse, ele ficava grato de ter assumido uma identidade particular
como aquela. Apesar dos serviços cansativos impostos a ele como o maior padre
dessa religião primitiva, havia vantagens inegáveis por estar em Roma. Uma delas
era que seria quase impossível ter uma refeição ruim.

Era uma pena que a cidade seria destruída dali a muitas gerações, mas que
fosse. A história exigia seus sacrifícios, pelo menos se o seu futuro fosse ser
preservado. O cardeal, ou o viajante do futuro que tomara o corpo corcunda de
meia-idade de Calábria, lembrou-se brevemente da cidade brilhante que ele e seus
colegas Marcados haviam deixado para trás, onde nunca mais voltariam. Afinal, sua
peregrinação ao século 21 fora uma viagem apenas de ida. Eles estavam presos a
essa era volátil pelo resto de suas vidas.

Mas pelo menos a comida era boa.

— Com licença, vossa Eminência. — Uma garçonete jovem e bonita


aproximou-se de sua mesa. Seu charme núbil o fez se arrepender de que, pelo
menos em público, ele era forçado a obedecer a um voto de celibato. O olhar
preocupado em sua expressão sugeria que ela tinha algo mais em mente além de
apenas encher novamente seu copo de água. — Desculpe interromper o senhor,
mas eu poderia pedir alguma ajuda espiritual?

Duas mesas longe, seus guardas levantaram-se. Membros da elite do


Vaticano Guarda Suíça, eles vestiam trajes civis para melhor se encaixarem ao
cenário. Eles olharam a garçonete impertinente suspeitosamente. Eram tempos
perigosos e o cardeal tinha muitos inimigos. De fato, como chefe da Congregação
para Doutrina da Fé, formalmente conhecido como Escritório Sagrado da
Inquisição, Calábria era o crítico sobre a “falsa religião” de Jordan Collier mais
comentado do Vaticano. O pronunciamento mais recente da Congregação que dizia
que o uso de promicina podia ser considerado um pecado mortal tomara as
manchetes e gerara controvérsias pelo mundo todo. Por isso seus guardas estavam
tão cautelosos. Calábria recebera várias ameaças de morte dos seguidores de
Collier.

Ainda assim, ele acenou para que os guardas exagerados se afastassem.


Ele vivera como o Cardeal Calábria o suficiente para reconhecer um católico devoto
se o visse; a única ameaça que a garota oferecia era ao seu fingimento de
castidade. Ele deu uma olhadela em seu generoso decote.

— Como posso ajudá-la, criança?

— Minhas amigas e eu estivemos conversando sobre as novidades da


América. O mundo todo parece estar mudando, de uma maneira muito
assustadora, e não consigo para de pensar… — Ela respirou fundo antes de
conseguir falar. — O senhor acha que Jordan Collier é o Anti-Cristo?

Calábria reprimiu um sorriso perante a óbvia ansiedade da garota.


Claramente, seu trabalho no campo da fé estava gerando frutos. Escondendo sua
satisfação, ele respondeu a pergunta dela com uma gravidade falsa.

— A Visão Sagrada ainda tem que apresentar um veredicto final sobre esta
situação incômoda, mas receio que sua suspeita possa ser verdadeira. Há algo
realmente perturbante na ascensão desse homem ao poder e a blasfêmia na
promessa de se tornar rei no Reino de Deus. Se não a própria Besta, ele
certamente é um falso profeta, e os dons que seus seguidores possuem podem ser
de origens demoníacas.

O rosto da garota ficou pálido enquanto ela assimilava cada palavra.


Observando seu aperto trêmulo no jarro de água, Calábria começou a temer pela
segurança de seu espaguete.

— Mas não se desespere, minha criança. Esse mal não pode triunfar, não
se fortalecermos nossas almas contra essas tentações malignas da promicina.
Enquanto a Igreja puder confiar nos fiéis e nas ações de pessoas boas como você,
esse movimento profano não desviará os filhos de Deus da salvação.

Suas palavras pareceram confortar a garçonete. Ela acenou avidamente, e


se curvou para beijar seu anel. — Obrigado, vossa Eminência. Agora sei que
dormirei melhor.

Ele levantou-se atrapalhadamente de seu assento e concedeu uma benção


sobre ela.

— Agora, então, talvez eu possa ver o cardápio de sobremesa.


— Sim, padre, com certeza!

Discretamente admirando o traseiro da garota enquanto ela se afastava,


ele voltou à sua refeição com uma sensação definitiva de realização. Seu encontro
com a garçonete crédula o encorajou a pensar que, apesar das reviravoltas, ele e
seus companheiros ainda tinham chance de dar a volta por cima e prevenir que
Jordan Collier mudasse o futuro. Sua posição elevada no Vaticano o dava influência
sobre literalmente milhões de primitivos ingênuos do século 21, e ele ainda
aspirava por maior poder. O cardeal Emanuel Calábria ficara em terceiro na eleição
papal, ora, e o Papa atual não ficaria lá para sempre. Se tudo corresse de acordo
com o plano, as ambições perigosas de Jordan Collier desapareceriam numa lufada
de fumaça…

Nesse meio tempo, porém, era melhor ficar atento. Ele acenou para seus
guardas atentos, grato por tê-los cuidando dele. A Terra Prometida estava há
milhares de quilômetros, mas ele não podia se dar ao luxo de confiar demais em si
mesmo. Três de seus colegas operantes haviam sido exterminados, e o âmbito de
Collier crescia mais a cada dia. Olhando em volta pela praça lotada, de repente
sentiu-se incomodamente exposto. Talvez ele não devesse ter deixado a rígida
segurança do Vaticano.

Seus guardas haviam discutido seu passeio, devido às recentes ameaças,


mas Calábria ignorara sua precaução. Às vezes ele simplesmente tinha que escapar
da sufocante santidade da Cidade do Vaticano e respirar um pouco de ar puro.
Além disso, esse ristorante era um dos seus favoritos.

O aroma sedutor do espaguete o lembrou de seu apetite. Cortando um


gordo pedaço de mexilhão, o levou até sua boca. Quando ele começou a engolir, no
entanto, seus olhos arregalaram-se ao ver um negro alto saindo da estação de
metrô do outro lado da rua. Algo na aparência do homem sacudiu sua memória,
mas levou um segundo para ele dar um nome àquele rosto. Eu conheço aquele
homem. Ele é…

Richard Tyler!

Seu coração disparou. A filha de Tyler, Isabelle, fora escalada para ser a
última arma dos Marcados contra os 4400, antes que aquela operação desse tão
errado. Seus contatos nos EUA informaram Calábria da recente fuga de Tyler, mas
Roma era o último lugar onde ele esperava que o americano fugitivo aparecesse. O
cardeal percebeu logo que isso não podia ser uma coincidência.

Seus olhares se encontraram através da rua movimentada. O rosto de


Tyler estava impiedoso e imperdoável. Calábria abriu a boca para alertar aos
guardas, mas antes que pudesse dizer uma palavra, o mexilhão gorduroso escapou
de seu garfo e, como se estivesse vivo, parou em sua traqueia. Engasgado, ele
tossiu e apertou a garganta, mas seus esforços convulsivos não adiantaram para
desfazer a obstrução da carne, que parecia estar presa no lugar por uma força
invisível. Tyler está fazendo isso, percebeu Calábria. Ele saiu para vingar a morte
da filha!

Um dos guardas, um loiro forte e discreto chamado Buchs, correu para


ajudar Calábria. Arrancando a vítima que se debatia de seu assento, Buchs aplicou
a manobra de Heimlich4, mas sem sucesso; o mexilhão mortal recusou-se a sair.
Com o rosto já ficando roxo, Calábria apontou freneticamente para Tyler.

— É ele — conseguiu arquejar. — Com a mente…

O outro guarda, Roest, entendeu a mensagem. Sacando uma pistola


automática SIG P225 de sua jaqueta, ele mirou em Tyler. Uma força invisível jogou
seu braço para o alto e ele atirou inutilmente para o céu. Um segundo mais tarde, a
arma foi arrancada de seus dedos. Ela rodopiou sobre os Degraus Espanhóis antes
de cair na fonte Baroque na base da escadaria. O soldado assustado exclamou
surpreso.

Um pandemônio se formou pela rua e pelos degraus próximos. Pessoas que


jantavam se jogaram embaixo de suas mesas. Turistas e artistas correram,
buscando proteção desesperadamente. Os gritos perturbavam a tranquila noite de
inverno. Somente Richard Tyler permaneceu imóvel, parado indiferentemente no
meio da rua. Seus olhos negros permaneciam fixos em seu alvo sufocante. Sua
expressão dura não revelava nenhum sinal de misericórdia.

Não é justo, pensou Calábria. Infelizmente, o processo de se implantarem


em outra mente deixava os Marcados incapazes de adquirirem suas próprias
habilidades sobrenaturais. A escuridão começou a invadir a visão do cardeal. Seu
rosto gordo assumiu um tom azulado. Não dá para revidar!

Abandonando seus esforços inúteis para desengasgá-lo, Buchs agarrou


uma faca da mesa de Calábria. O cardeal engasgado percebeu assustadoramente
que o guarda desesperado queria fazer uma traqueostomia 5, mas sem anestesia.
Calábria se preparou para a dor, mas não precisou. Assim como a arma do outro
guarda, a faca voou dos dedos de Buchs. O homem tentou pegar sua arma, só para
perdê-la do mesmo jeito. Arfando para respirar, o cardeal não conseguiu deixar de
se impressionar com o tanto de objetos que Tyler conseguia manipular ao mesmo
tempo. O homem obviamente dominara sua habilidade telecinética.

— Pegue-o! — gritou Buchs para Roest. Indo lutar diretamente com o


inimigo, os guardas desarmados dispararam pela rua na direção de Tyler. Buzinas
soaram e freios gritaram enquanto os guardas corajosos atravessavam o trânsito.
Um estudante de arte montado numa lambreta Vespa desviou freneticamente para
não atropelar os homens, e foi derrapando até parar apenas há alguns quilômetros
da mesa de Calabria. Os olhos do jovem quase pularam para fora das órbitas ao
verem a confusão diante dele.

4
N. do. T.: A Manobra de Heimlich é o melhor método pré-hospitalar de desobstrução das vias aéreas
superiores por corpo estranho. Essa manobra foi descrita pela primeira vez pelo médico estadunidense
Henry Heimlich em 1974 e induz uma tosse artificial, que deve expelir o objeto da traqueia da vítima.
Resumidamente, uma pessoa fazendo a manobra usa as mãos para fazer pressão sobre o final do
diafragma. Isso comprimirá os pulmões e fará pressão sobre qualquer objeto estranho na traquéia.

5
Traqueostomia é um procedimento cirúrgico no pescoço que estabelece um orifício artificial na
traquéia, abaixo da laringe, indicado em emergências e nas intubações prolongadas.A incisão é feita
entre o 2º e 3º anel traqueal. O objetivo é não prejudicar as cordas vocais do paciente ao passar o tubo
de ar.
Tyler brandiu seu braço e os guardas foram jogados ao chão, como que por
um vento muito forte. Cambaleando sem ajuda, eles caíram 138 degraus antes de
atingirem a praça abaixo. Calabria se viu subitamente sem defensores.

Ou talvez não. Inesperadamente, a garçonete bonita apareceu correndo do


nada. — Demônio! — sibilou ela, enquanto arremessava um copo de vinho tinto no
rosto de Tyler. Ela se jogou em cima do 4400 assustado, chutando e arranhando. —
Deixe o Padre Sagrado em paz!

O ataque tirou a concentração de Tyler. O mexilhão teimoso escapou pelos


lábio de Calábria e ele viu que podia respirar novamente. Sugando ávidamente
grandes lufadas de ar, ele se arrastou para longe da mesa, apressadamente.
Porcelanas e vidros se quebravam pela calçada. Macarrão e frutos do mar se
espalhavam pelo asfalto.

O cardeal fugitivo não podia se importar menos com a confusão. Ele


precisava sair dali enquanto ainda tinha uma chance!

Mas o tempo já estava acabando. Tyler rapidamente se recuperou do


ataque da garota. Mostrando uma compostura admirável, ele a levantou com a
mente e a colocou cobre o toldo colorido na entrada do restaurante. Uma marca
vermelha brilhante molhava a frente de sua camisa. Marcas de arranhões
marcavam seu rosto. Ele limpou o vinho de seus olhos e procurou por Calábria.

O cardeal tirou sua própria arma de dentro de sua batina. Ele carregava a
Beretta consigo para todo lugar, até mesmo para as missas. Seus dedos trêmulos
atrapalharam seu equilíbrio. A pistola tremeu fortemente em suas mãos. Ela voou
diretamente para a palma de Tyler que esperava no ar.

Mannaggia! Jurou Calábria. O que ele não daria agora por um mini
disruptor neural? Para seu azar, eles não seriam inventados nos próximos cem
anos, e seria impossível replicar materiais do século 21.

Desprovido de sua arma, a fuga era seu único recurso.

Diferente do resto da multidão, que estava deixando a área em massas, o


estudante com a lambreta demorou para entrar em ação. Desesperado para fugir,
Calábria empurrou o jovem de cima da Vespa e pegou a lambreta para si. Sua bata
enrolou-se à suas pernas enquanto ele subia apressadamente no banco. Agarrou o
guidão com os nós dos dedos brancos. Ligou o veículo.

Se eu apenas conseguir me distanciar de Tyler, sair do alcance de sua


habilidade…

A roda traseira da lambreta girou furiosamente, mas o veículo não saiu do


lugar. Calábria atrapalhou-se tentando descobrir o que ele estava fazendo errado,
então percebeu que o problema não era com a Vespa. Ele olhou por cima de seu
ombro e viu Tyler o encarando. O 4400 vingativo segurava a lambreta com sua
mente.

Calábria percebeu que não ia a lugar algum.

— Não — implorou ele. — Você pegou a pessoa errada! — Ele viu sua vida
como Emanuel Calabria chegando um fim. Só podia desejar que seus aliados do
futuro encontrassem para ele um novo hospedeiro depois que recuperassem os
nanodispositivos com sua personalidade. — Não tenho nada a ver com a morte da
sua filha…

Richard apenas olhou para o outro homem. Calábria imaginou o que ele
estava esperando.

— Está olhando para o lado errado — falou uma voz em italiano, com um
sotaque americano. Calábria girou sua cabeça para ver outro homem negro sair de
baixo do toldo de uma lanchonete ali perto. Ele era mais novo e mais baixo que
Tyler, mas também carregava a mesma expressão impiedosa. Ele enrugou as
sobrancelhas. Seus olhos se estreitaram enquanto ele se concentrava. — Comece a
rezar.

Os guidões da lambreta de repente ficaram quentes. A temperatura no


mostrador do painel subiu para o vermelho. Vapor começou a subir do motor atrás
de Calábria. Ele deu uma guinada por força do hábito.

A Vespa explodiu atrás dele.

Richard assistiu à bola de fogo engolindo o cardeal Marcado e o veículo roubado.


Ele levantou as mãos para proteger o rosto do calor e do clarão enquanto
simultaneamente reduzia a explosão com uma bolha invisível para impedir que
qualquer espectador se ferisse com algum estilhaço. As brilhantes chamas laranja
ficaram mais claras quando seu parceiro, Yul Lacey, usou sua habilidade
termocinética para se certificar de que cada centímetro do corpo de Calábria fosse
consumido. Era vital fazer com que todas as máquinas microscópias no cérebro do
cardeal fossem destruídas, caso contrário os Marcados poderiam simplesmente
implantar sua consciência em outro receptáculo inocente.

Ou pelo menos fora isso que haviam lhe explicado.

Uma pontada de remorso formigou em sua consciência. Embora tivesse pilotado


aviões com bombas na Coréia, ele nunca havia matado alguém a sangue frio antes.

Isso foi pela Isabelle, lembrou a si mesmo.

Sirenes soaram de todas as direções, aumentando a cada segundo. Um carro de


polícia chegou derrapando alguns metros longe da lambreta em chamas. Policiais
usando uniformes azuis pularam do carro. Protegendo-se atrás de seu veículo, eles
apontaram as armas para Richard e Yul.

— Fermate! — ordenou um policial, parecendo tenso.

Richard flexionou sus músculos mentais. Houve um tempo, quando ele estava
descobrindo suas habilidades, em que ele só levantava pequenos objetos por vez,
mas isso foi há muito tempo atrás. Sem esforço, ele jogou os homens para trás.
Eles se dispersaram como pinos de boliche enquanto rolavam rua abaixo. Em cima
do toldo, a garçonete heroica gritava de desespero.

Já chega, pensou Richard. Eles haviam feito o que vieram fazer. Agora ele só queria
sair dali. Cadê nossa carona?
Bem nessa hora, um lustroso Porsche negro chegou acelerando na cena da direção
oposta aos policiais. O carro esporte parou no meio-fio. A porta do passageiro se
abriu. A jovem gótica, Evee Borland, chamou os dois homens.

— Terminaram?

Richard perguntou a Yul com um olhar.

— Ele torrou — disse o outro homem, referindo-se a Calábria.

— E os nanodispositivos? — perguntou Richard.

— Nada a não ser cinzas.

Isso foi o suficiente para Richard. Eles adentraram o Porsche, que subiu na calçada
para fazer uma curva em U antes de começar a acelerar na direção de seu
esconderijo em Trastevere. Carros de polícia e caminhões de bombeiro, com as
luzes de emergência piscando, passaram por eles enquanto deixavam as cinzas do
cardeal para trás. Richard afundou-se no assento do passageiro enquanto Nicole e
Yul se parabenizavam pelo sucesso da missão. Eles ficaram observando Calábria
por horas, ironicamente com a ajuda de uma freira clarividente que era uma dos
4400 originais, só esperando que o alvo deixasse a segurança do Vaticano. Aquela
noite todos os esforços haviam valido a pena.

Então por que eu não me sinto mais eufórico? Imaginou Richard. Seu rosto doía
onde a italiana arranhara. Diferente de seus novos amigos, ele sentia-se mais vazio
do que entusiasmado pelos eventos daquela noite. Não podia deixar de lembrar que
o verdadeiro Emanuel Calábria perecera em algum lugar junto com traiçoeiro
invasor ocupando seu corpo. Ele desejava que houvesse algum jeito de libertar as
vítimas inocentes dos Marcados ao invés de simplesmente matá-las, mas, de
acordo com Collier, esse não era o caso. O único jeito de eliminar a ameaça dos
Marcados era matando seus hospedeiros. Richard suspirou para o caminho difícil
que vinha pela frente.

Um já foi. Faltam mais seis.


OITO

Marco apareceu no necrotério. Literalmente.

Num instante, o vagaroso gênio não estava à vista. No instante seguinte,


ele apareceu repentinamente entre Tom e Diana, enquanto esperavam por ele nas
instalações médicas privadas da NTAC.

O cabelo liso e castanho precisava ser penteado. Olhos castanhos de ar inteligente


espreitaram por detrás dos óculos pretos de aro de tartaruga. Ele vestia uma
jaqueta de tweed por sobre uma camiseta.

— Desculpem o atraso.

— Marco! — exclamou Diana, surpresa por sua aparição abrupta. Ela


pressionou o peito para acalmar o coração acelerado. — Você sabe que não deve
fazer isto. Especialmente no trabalho.

O retraído e querido analista havia ganho a habilidade de se


teletransportar, após ter sobrevivido ao cinquenta/cinquenta. Quase todo mundo na
NTAC sabia o que ele podia fazer, mas demonstrações públicas de habilidades
adquiridas através da promicina estavam firmemente desaconselhadas. Diana
sacudiu a cabeça em desaprovação. Marco sabia muito bem que não deveria agir
daquela maneira. E se algum figurão de Washington estivesse fazendo uma visita à
agência?

— Eu sei — admitiu ele. — Mas é tão conveniente! E eu não queria deixar


vocês esperando. Ele deu uma olhada ao redor do necrotério estéril, todo em aço
inoxidável. — Então, o que eu perdi?

— Apenas a esquisitice usual — disse Diana.

No total, eles haviam encontrado quatro cópias idênticas do corpo de


Danny na casa funerária. Todos os quatro espécimes estavam deitados em mesas
de autópsia no centro do necrotério. Lençóis brancos limpos cobriam parcialmente
os cadáveres. Se havia alguma maneira de diferenciar os cadáveres, Diana não
conseguia saber. Ela apenas podia imaginar o quão perturbador aquilo deveria ser
para Tom. Imagine que existissem quatro cópias idênticas de Maia…

— E então? — ele perguntou, rispidamente. — Qual deles é o verdadeiro


Danny?

— Nenhum deles — respondeu Abigail Hunnicutt. A loira de vinte e poucos


anos havia se juntado à equipe da Sala de Teorias de Marco pouco antes do
cinquenta/cinquenta. Formada pelo MIT, ela estava em pé ao lado de um dos
corpos, sua mão sem luva espalmada no peito dele. A epidemia havia transformado
Abby em uma sequenciadora humana de DNA, que conseguia “ler” códigos
genéticos sem a ajuda de equipamentos artificiais. Ela guardou as mãos no bolso
do jaleco azul enquanto relatava suas descobertas. — Estes espécimes são cópias
quase idênticas de Danny Farrell. Em torno de 99% idênticas ao original.

— Clones? — especulou Marco.


Abby sacudiu a cabeça. — É mais como se o DNA de Danny tivesse sido
sobreposto ao de alguém. — Ela se esforçou para colocar em palavras o que estava
sentindo. — Ainda há um “eco” do DNA original nas células. Minha opinião é a de
que alguém está tentando transformar outras pessoas em gêmeos perfeitos de
Danny…

— Antes ou depois de mortos? — Diana questionou.

— Boa pergunta. — Abby encolheu seus ombros. — Não dá para dizer pelo
DNA.

Um exame preliminar tinha sugerido que todos os quatro corpos haviam


morrido de overdose de promicina, não como o verdadeiro Danny, que havia
sofrido um massivo acúmulo de promicina em seu organismo, antes de seu irmão
cometer eutanásia contra ele. Talvez autópsias completas pudessem trazer mais
informações, mas Diana tinha suas dúvidas. Eles estavam alguns passos à frente da
ciência forense convencional ali.

— Mas por que alguém iria querer fazer algo assim? — perguntou Tom.
Apesar de estar se mantendo firme, sua frustração óbvia pontuava seu tom de voz.
Ele cerrou os punhos. — Por que eles não podiam simplesmente deixar meu
sobrinho em paz?

Marco coçou o queixo. — Você disse que achou promicina na agência


funerária? Meu palpite é que alguém está tentando reproduzir o processo que
transformou Danny na ‘Typhoid Mary’ da promicina, criando uma arma biológica
viva e capaz de disseminar o efeito cinquenta/cinquenta aonde for. — Seus olhos se
arregalaram por detrás dos óculos. — Talvez até um exército de hospedeiros…

Um silêncio caiu sobre o necrotério enquanto imaginavam as terríveis


implicações do que Marco estava dizendo. Um Danny quase havia destruído Seattle.
Uma legião de clones de Danny poderia causar mortes e devastação inimagináveis.

— Alguém, quem? — perguntou Diana, quebrando o silêncio. — Jordan


Collier?

— Vamos descobrir — disse Tom.

*****

O edifício comercial que agora funcionava como o novo Quartel General de


Collier era o antigo prédio da Haspelcorp, uma ironia que certamente divertia
Collier. Uma enorme tela de tecido retratando o novo messias, de muitos andares
de altura, adornava a fachada externa da estrutura. Reproduções menores estavam
penduradas dentro do saguão palaciano.

Conversa sobre um culto da personalidade, pensou Tom. Os pôsteres


onipresentes relembraram-no de maneira desconfortável da China Maotseísta e
outros regimes autoritários. Imagine quando as estátuas de cinquenta pés
começarem a ser erguidas?
— Posso te ajudar? — acudiu um segurança quando os agentes adentraram
o saguão. O sentinela idoso, que aparentava ter seus sessenta anos, não se
impunha muito fisicamente, mas nem precisaria; sendo um positivo, ele sem
dúvida tinha outras maneiras de repelir visitantes indesejados. Estava sentado em
uma grande escrivaninha de tampo de mármore. Um distintivo o identificava como
Hoyt.

Mais guardas estavam posicionados ao lado dos elevadores, escadas e


saídas de emergência. Collier obviamente não estava se descuidando de sua
segurança. Tom não poderia culpá-lo. Não obstante todos os esforços filantrópicos
do Movimento, muitas pessoas ainda culpavam Collier pelo cinquenta/cinquenta e
as mortes de seus entes queridos. Ele já havia até sobrevivido a várias tentativas
de assassinato.

Diana mostrou seu distintivo.

— NTAC. Estamos aqui para ver Jordan Collier.

O guarda não parecia impressionado. Tom e Diana eram visitantes


frequentes. Ele fixou o olhar na morena esguia que acompanhava os dois agentes.
Seus olhos escuros brilharam de modo travesso. Uma jaqueta Burberry Prorsum
feita sob medida comprovava um generoso gasto com roupas. Perfume caro
emanava da delicada jovem, que parecia ter seus trinta e poucos anos. Um símbolo
de dólar estava tatuado em seu pulso.

— E ela? — perguntou o segurança.

April Skouris era a irmã caçula de Diana e ovelha negra da família. Ex-
tatuadora e ex-golpista, April tinha sido uma das primeiras pessoas rebeldes o
suficiente para tomar uma dose de promicina quando Jordan Collier a disponibilizou
para as massas. Sua recém-descoberta habilidade de fazer as pessoas dizerem a
verdade havia eventualmente a colocado em um agradável emprego, em que
atendia tanto à NTAC quanto ao FBI. Tom francamente havia achado-a meio
irritante, mas se ela poderia ajudá-los a arrancar algumas respostas de Collier
acerca dos restos mortais de Danny, ele estava disposto a designá-la para aquela
visita.

— Eu também sou da NTAC — ela vangloriou-se, orgulhosamente


mostrando sua própria identificação. Depois de ter sido criada à sombra da irmã
mais velha e mais talentosa, ela parecia ávida por demonstrar que as duas estavam
finalmente em pé de igualdade. — April Skouris, agente especial.

— Aham. — Hoyt letargicamente digitou o nome dela em seu computador.


Um franzir acentuou as pesadas rugas ao redor de sua boca. — Desculpe. Você está
na lista negra. Acesso negado.

— O quê? — A indignação modificou instantaneamente seu tom de voz. —


Quem disse?

— Eu não sei — ele confessou, automaticamente. Ele não poderia mentir,


se quisesse. — É o que diz o computador. Você foi marcada como uma ameaça à
segurança.

— Droga! Isso é completamente injusto! — Ela olhou para Tom e Diana,


procurando por apoio. — Vocês vão deixar ele ir adiante com isso?
— Acho que sim — ele admitiu. A NTAC operava em Seattle sob a
tolerância de Collier. Eles não estavam em posição de dar ordens. — Acho que você
vai ter que esperar no carro.

— Tá falando sério? — ela levantou a voz e bateu com o pé no chão. —


Diana — ela queixou-se, parecendo mais uma irmãzinha birrenta do que uma
agente federal. — Faça alguma coisa!

A explosão de raiva atraiu a atenção do guarda do elevador, que


atravessou o saguão para verificar. Era um homem alto, de rosto comprido e
cabelos castanhos claros espetados. Afora suas habilidades desconhecidas, o
guarda estava armado com uma pistola e uma arma de choque. Galloway, dizia o
seu crachá. Sua mão repousava ameaçadoramente na culatra de sua arma. —
Algum problema?

— Não — insistiu Diana. — Apenas um mal entendido. — Ela falou


suavemente com a irmã. — Desculpe, April, mas Collier nos barrou aqui. E
precisamos realmente falar com ele hoje. — Pegando o braço da moça, ela a
conduziu gentilmente até a porta. — Porque você não volta para o quartel general?
Talvez possamos conversar mais tarde.

— Legal — disse April, petulante. Ela sacudiu seu braço para se soltar e se
dirigiu para a porta. — Vejamos se eu vou me oferecer para ajudar vocês de novo.
Obrigada por nada, mana.

Ela saiu do prédio batendo os pés. Em parte, Tom estava aliviado por vê-la
ir embora. Apesar de sua habilidade bastante útil, ela era um verdadeiro barril de
pólvora. Ademais, havia algo distintamente perturbador em circular por aí com
alguém que poderia fazer você dizer a verdade, querendo ou não. Ele ainda sentia
um arrepio quando se lembrava da vez em que April tinha nada mais, nada menos
do que o forçado, por pura brincadeira, a revelar uma fantasia sexual que ele tinha
com Diana, na frente da própria!

Não era de se admirar que as pessoas não quisessem nada com os 4400 e
seus sucessores.

Depois que April saiu, os guardas recuaram um pouco. Hoyt ligou lá para
cima, depois recolocou o fone na base. — Tudo bem. Vocês podem subir agora.
Jordan está esperando.

Para leve irritação de Tom, Galloway os acompanhou quando pegaram o


elevador para a cobertura. Ele gostaria de poder conversar reservadamente com
Diana enquanto subiam, mas aparentemente isto não ia acontecer. Bem, o elevador
deve estar monitorado, mesmo.

Eles encontraram Collier no antigo gabinete de Dennis Ryland. Uma grande


escrivaninha de executivo dominava o escritório do canto. Capas de revistas
estampadas com o rosto de Collier estavam penduradas nas paredes, junto com a
capa de seu manifesto, que fora eleito campeão de vendas pelo New York Times.
Janelas gigantescas ofereciam uma vista estonteante da Elliot Bay e do Island
Harbor, mais adiante. Acompanhado de um séquito de assistentes e guarda-costas,
Jordan estava ocupado examinando holografias tridimensionais de Seattle.
Estruturas translúcidas e cintilantes subiam e desciam pela superfície de alta
tecnologia de uma mesa de conferências, sem dúvida desenvolvida por algum mago
da tecnologia anônimo, cujo poder mental tenha sido estimulado pela promicina.
Ele espiou por cima dos modelos de última geração, enquanto Galloway escoltava
os agentes escritório adentro.

— Ah, Tom, Diana — disse, cordialmente. Ele se encontrava num tablado


em que ficava um pouco mais alto do que os dois agentes. — É bom vê-los
novamente.

Tom estava desapontado por não ter a presença de Kyle. Pensando bem,
talvez fosse até melhor. Aquela não era uma visita social.

— Obrigada por nos receber — disse Diana. — Espero que não estejamos
incomodando.

— De maneira nenhuma — insistiu Collier. Um gesto largo chamou a


atenção deles para a maquete virtual da cidade à sua frente. — Venham ver o que
estamos fazendo aqui — ele os chamou. — É um plano abrangente para reconstruir
Seattle. Estruturas destruídas durante os protestos serão substituídas por usinas
nucleares de fusão a frio, centros de tratamentos de dependentes químicos, jardins
e fazendas verticais, e outros projetos civis revolucionários que se tornaram
possíveis graças às singulares habilidades da população promicino-positiva. — Ele
sorriu, orgulhoso. — Estamos até modernizando o metrô.

— Parece ambicioso — concordou Tom. Por mais que odiasse admitir,


Collier e seu Movimento tinham estado no front dos esforços de recuperação nos
últimos meses. Ele olhou mais de perto para a visão de Jordan da cidade. — Isto é
um novo Tribunal de Justiça na Praça Pioneer?

— Bem observado. — Collier concordou com a cabeça. — Tecnologia de


ponta.

— Mas justiça de quem? — desafiou Diana. — Do Estado ou sua?

Desde que dominara Seattle, Collier havia estabelecido seu próprio sistema
judicial, no qual os positivos que fossem considerados culpados de abusar de suas
habilidades eram despojados de seus poderes pelo próprio Jordan. O tom amargo
de Diana deixou claro que ela desaprovava o fato de Collier comandar seu próprio
tribunal de faz-de-conta particular.

— Com o passar do tempo não haverá diferença – declarou


confidencialmente Collier. — Entretanto, por enquanto, os 4400 dificilmente
poderão esperar tratamento justo nos tribunais tradicionais, o que significa que
devemos policiar a nós mesmos. Posso assegurar a vocês que esta é uma
responsabilidade que eu levo muito a sério. — A habilidade de apagar os dons de
outros positivos era o talento único e exclusivo de Collier. – Eu gostaria que cada
indivíduo com habilidades pudesse ser confiável para usá-las com responsabilidade,
e a favor dos melhores interesses do Movimento, mas, infelizmente, nem sempre é
o caso. Alguns novos convertidos provam não serem merecedores de seus
preciosos dons.

— Como minha irmã? — perguntou Diana.

Collier respirou fundo enquanto se preparava psicologicamente para o


inevitável assunto de April. — Ah, sim. Eu ouvi dizer que havia uma certa
perturbação lá embaixo. Peço desculpas se isso foi embaraçoso para vocês, mas
temo que, sem querer ofender, a lealdade e as companhias de sua irmã são
suspeitas. Ela está de fato banida das dependências. — Seu tom beirava a ameaça.
— Na verdade, você deveria avisá-la de que eu a livraria pessoalmente de sua
habilidade se ela se aproximasse de mim, ou se de alguma forma usasse seu dom
para prejudicar o Movimento.

— Por que isso? — inquiriu Tom. — O que você tem a esconder?

Collier foi incisivo em sua atitude. — Certamente você, que é agente


federal, aprecia a importância da discrição e confidencialidade. Boca fechada não
entra mosca, e tudo o mais. Estes são tempos perigosos, e eu não vou permitir que
April Skouris — ou qualquer outro — ponha nossa segurança em risco.

Tom se perguntou, em primeiro lugar, como Jordan tinha conseguido


descobrir sobre a habilidade de April. Isto deveria ser informação confidencial,
também. Haveria algum vazamento na NTAC ou na Segurança Nacional?

Algo para se pesquisar, ele pensou.

— E então – disse Collier, mudando de assunto. — O que os traz aqui hoje?


Negócios oficiais da NTAC, eu suponho.

— Isso mesmo. — Tom relatou a Jordan as linhas gerais de sua


investigação, mencionando o corpo desaparecido de Danny, e o aparente
envolvimento da Grayson e Filhos, mas omitindo o fato de Dennis Ryland ter
acusado Collier de planejar transformar a promicina em arma. — Você sabe alguma
coisa sobre isto?

Collier sacudiu a cabeça. — Eu gostaria de poder ajudar vocês. Seu


sobrinho é reverenciado como um mártir do Movimento por meu povo. É chocante
que alguém possa profanar sua memória dessa maneira. Eu não consigo imaginar
quem poderia ter algo a ver com isto.

— Então você nega qualquer ligação com Grayson? — perguntou Diana.

Collier encolheu os ombros. — O nome me soa vagamente familiar, mas o


Movimento tem crescido a passos largos desde O Grande Passo Adiante. Receio que
um conhecimento enciclopédico de cada um que apoia a nossa causa não esteja
entre meus dons. — Ele sorriu, irônico. — Uma pena.

Tom o pressionou mais. — Então você não tem interesse em tentar


duplicar a versão aérea de promicina que Danny emitia? — Ele deixou que um tom
de sarcasmo pontuasse sua voz. — Mesmo que isto pudesse acelerar a realização
do seu glorioso novo mundo?

Collier parecia sereno diante da acusação. — Eu não posso negar que


quero que todo mundo tome promicina. Mas eu nunca forcei ninguém a tomar a
injeção… Como você sabe por experiência própria, Tom.

É bem verdade, pensou ele. Jordan certamente teve mais de uma


oportunidade de injetar promicina em Tom contra sua vontade, mas ele sempre se
absteve de fazê-lo, apesar da profecia declarar que era de vital importância que
Tom tomasse a dose em algum momento. Mas era o comedimento de Collier face
aos seus padrões éticos, ou apenas em deferência à importância de Kyle para o
Movimento? Tom estava mais inclinado a acreditar na segunda opção.
— O cinquenta/cinquenta não foi exatamente voluntário — apontou Diana.
— Nenhuma daquelas pessoas havia decidido tomar promicina.

— Mas não foi um feito meu. — Ele lavou suas mãos de qualquer
responsabilidade acerca do desastre. — Aquilo foi simplesmente uma monumental
fatalidade. Um ato divino, se preferirem.

Tom duvidava de que o Céu tivesse algo a ver com a morte de nove mil
inocentes e o despedaçamento das vidas de inúmeros outros. — Eu não acho que
Deus tenha roubado o corpo de Danny.

— De fato — disse Collier. — E eu espero que você encontre o responsável.


Eu te prometo sinceramente olhar o assunto com atenção.

Tom não achou aquilo terrivelmente tranquilizante.

Collier deu uma olhada em seu relógio de pulso. — Isto é tudo? — ele
perguntou, impaciente. — Eu me arrisco a ser rude, mas tenho uma agenda muito
cheia hoje. — Ele apertou um botão na prancheta e a cidade holográfica evaporou.
– Transformar o mundo é um trabalho sem descanso.

— Aposto que sim — disse Diana, secamente.

Jordan fez cara feia. — Mande lembranças a sua filha. — Ele se moveu para
acompanhá-los até a porta.

— Não tão depressa – disse Tom. Ele encarou Collier. — Você e eu ainda
temos algo a discutir. A sós.

Ele esfregou seu dedo atrás da orelha.

Collier entendeu o recado. — Muito bem. — Ele se virou para seu pessoal.
— Eu e o agente Baldwin precisamos da sala.

Os guardas hesitaram, claramente relutando em deixar seu líder sozinho


com Tom. — Senhor?

— Está tudo bem — assegurou Collier. — Eu não tenho nada a temer


quanto ao agente Baldwin. — Ele olhou para Tom, cautelosamente. — Tenho, Tom?

— Eu salvei a sua vida algum tempo atrás, não salvei?

Com ajuda de Isabelle Tyler, Tom resgatara Collier dos Marcados durante o
cinquenta/cinquenta. Se não fosse por Tom, o próprio Jordan seria um dos
Marcados agora. E sabotando o Movimento ao qual dedicou sua vida.

— Você salvou. — Collier conduziu sua equipe para o corredor. — Tirem


cinco minutos, todos vocês.

Diana lançou um olhar interrogativo para Tom. Ele não havia falado com
ela sobre isto antes. — Tom?

— Me dê só alguns minutos, Diana.


Parecendo um tanto desconfortável, ela também saiu do escritório. Jordan
esperou até que a porta se fechasse atrás dela e então sentou-se na cadeira de
executivo atrás da velha mesa de Dennis Ryland. Seus dedos estavam unidos
diante dele, enquanto assumia uma postura contemplativa. — Bem, o que você tem
em mente, Tom?

O cauteloso agente preocupou-se por um momento com câmeras ou


microfones escondidos, e então concluiu que Collier também não gostaria que
aquela conversa fosse gravada. — Você sabe do que se trata. O assassinato
daquele cardeal em Roma. — Sua pressão sanguínea subiu ao lembrar-se de
quando lera na Internet sobre a terrível morte de Calábria. — Droga, Jordan. Você
deveria curar aquele homem, não matá-lo!

Não era fácil, mas era possível libertar os Marcados dos invasores que
haviam tomado conta de suas mentes. Tom era a prova viva disto. Uma dose letal
de polônio radioativo, injetada diretamente em sua medula, havia destruído os
nanodispositivos que infestavam seu cérebro. Depois Shawn usara sua habilidade
para garantir que Tom sobreviveria ao processo. A experiência quase o matara,
mas, quando acabou, ele era ele mesmo novamente. A cura havia funcionado.

Exatamente como acontecera com Collier.

— Em primeiro lugar — começou Jordan — você está embarcando na


hipótese de que eu tive algo a ver com o recente e infortunado acidente de
Emanuel Calábria. — Ele levantou uma das mãos para evitar a indignada
contestação de Tom. — Pode muito bem ser que o Cardeal Calábria estivesse na
moto errada no momento errado.

Tom bateu na mesa com o punho. Um peso de papel de cristal, em forma


de uma bola de luz vicejante, estremeceu. — Deixe de enrolação, Jordan. Nós dois
sabemos que você mandou matar o homem.

— Não sabemos nada sobre isto — insistiu Collier, calmamente. Ele parecia
ter planejado aquela conversa por vários dias. — Eu te desafio a encontrar qualquer
ligação entre o meu Movimento e os eventos em Roma. Verifique minha agenda. Eu
não saio de Seattle desde a epidemia.

— Dane-se o seu álibi — disse Tom. — Testemunhas oculares viram


Richard Tyler na cena do crime. É óbvio que você o pegou para fazer seu trabalho
sujo.

— É mesmo? — Collier se recostou em sua cadeira. — Richard e eu


raramente nos encontramos pessoalmente. Ele é independente, Tom. Você sabe
disto. — Ele ajeitou o peso de papel na mesa. — O que posso fazer se ele resolveu
nos livrar desse padre intrometido?

A ligeira referência literária não divertiu Tom. — E quanto ao homem


inocente cujo corpo foi confiscado pelos Marcados? Ele não merecia a chance de ter
sua vida de volta? Como eu e você tivemos?

— Em um mundo ideal, claro. — Uma expressão sombria tomou conta do


rosto de Collier. — Mas considere a realidade prática, aqui. A “cura” de que você
fala é difícil, dolorosa e leva tempo. Requer quantidades ilegais de material
altamente radioativo e a participação ativa de Shawn Farrell. Dado o fato de quão
poderosos são os Marcados, e o quão zelosos são em se protegerem, capturar um
Marcado para “tratamento” nem sempre é possível. Imagine tentar trazer um
cardeal ou um presidente sequestrado para Seattle, para ser curado. Richard deve
simplesmente ter concluído que é mais fácil eliminá-los… Ou ao menos eu concluí. É
trágico, mas a ameaça imposta pelos Marcados é grande demais para se correr
riscos desnecessários. Hipoteticamente falando. — Ele olhou para Tom diretamente
nos olhos. — Conhecendo Richard, tenho certeza de que ele preferirá curar os
Marcados — quando for possível.

Tom se recusava a deixar Collier colocar toda a culpa em Tyler.

— Você vai ao menos tentar salvar essas pessoas?

— Eu preciso te lembrar — disse Jordan, irritado, — quem me deu os


nomes dos Marcados, em primeiro lugar? — Sua paciência para com aquele debate
estava claramente chegando ao fim. Tom imaginava se sua consciência o estava
incomodando. — Você me pediu para tomar conta disso porque não conseguiria
acesso a estas pessoas. E é exatamente o que estou fazendo… Do meu jeito.

— Não está suficientemente bom — argumentou Tom.

— Eu acho que isto não é mais da sua conta. — Ele se levantou e indicou a
porta. — Tenha um bom dia, Tom.
NOVE

A última vez em que os Marcados haviam se encontrado pessoalmente fora na


Tunísia, em 2005. Na época, havia dez deles. Agora só restavam seis.

A reunião não estava indo bem.

— Não entendem? Está acabado. Nós perdemos.

O general Julian Roff estava sentado em uma mesa redonda de carvalho


com seus colegas conspiradores. Cinco estrelas brilhavam das dragonas de seu
uniforme. Cabelos cinza penetravam suas têmporas. Um afro-americano com uma
profunda voz aguda, ele tinha uma expressão agressiva que ninguém se atrevia a
discordar.

— Essa é uma atitude muito pessimista, Julian. — Song Yu o repreendeu.


Uma chinesa de meia-idade de feições severas, e a mulher de cargo mais alto do
Politburo6, ela havia liderado recentemente uma campanha para fazer com que
todos os atletas olímpicos fossem cautelosamente examinados à procura de
promicina. Seu cabelo preso por um laço estava levantado num coque. Ela balançou
a cabeça, desapontada. — O que seus colegas no Pentágono diriam?

Ela estava muito distante de Beijing. Localizado no alto Hollywood Hills7, o


Castelo Wyingate era uma fortaleza medieval encaixada que fora meticulosamente
transportada para a Califórnia por um excêntrico astro de cinema nos anos vinte.
Pesadas vigas de madeira cruzavam o teto alto do grandioso salão onde os
Marcados sobreviventes se encontravam secretamente. Madeira esculpida a mão
cobria as grossas paredes de pedra. Um tapete persa dava um pouco de cor ao
chão. Uma escada circular levava a uma sacada de madeira sobre a câmara. O
crepitar de fogo queimando vinha da imponente lareira de pedra. Uma porta de
cristal garantia privacidade a eles. Não havia janelas.

— Não me venha com essa, Song — devolveu o general. Por precaução, os


Marcados dirigiam-se uns aos outros pelos nomes de suas identidades atuais. Era
mais simples desse jeito. — Encare os fatos. O 50/50 mudou o jogo. Jordan Collier
está mais poderoso e tem mais influência do que nunca. A chamada guerra da
promicina é uma piada. E estamos caindo como moscas.

O Sheik Nasir AL.Ghamdi franziu o rosto diante de tal ladainha. O árabe


bilionário cuidava das finanças dos Marcados agora que Drew Imroth estava fora de
cena. Um tecido xadrez emoldurava suas bonitas feições árabes. Era o mais novo
dos Marcados, seu novo corpo tinha apenas vinte e nove anos. A salvo dos olhos de
seus conterrâneos, ele se presenteou com um gole de conhaque.

— Então, propõe que façamos o quê, general?

6
N. do T.: Trata-se de um comitê executivo de numerosos partidos políticos, designadamente os antigos
partidos comunistas do Leste Europeu e o Partido Comunista de Cuba.

7
The Hollywood Hills é um bairro de Los Angeles, Califórnia.
— Protejam-se! — grunhiu Roff. — Vejam o que aconteceu ao Calábria, e à
Rebecca Parish, e ao Mathew Ross. Obviamente, nossos disfarces já eram.
Precisamos descartar nossas identidades atuais e tomarmos novos corpos. Aí talvez
possamos viver o resto de nossas vidas confortáveis e seguros.

Wesley Burke, conselheiro sênior na Casa Branca, olhou com desprezo para
o general. Sua cabeleira prateada e feições rudes eram familiares para
espectadores do CNN e de programas dominicais matinais. Um broche da bandeira
estava pendurado em seu terno costurado de três peças.

— Cada Marcado por si, é isso o que quer dizer?

— Isso mesmo — afirmou Roff. — O gênio da promicina saiu de vez da


garrafa, e não há como engarrafá-lo novamente. O futuro que juramos preservar
não vai acontecer. É simples assim.

— Covarde. — Song Yu o acusou. Ela não se esforçou em esconder o


menosprezo. — Achou mesmo que íamos enfrentar nossos inimigos sem corrermos
risco? Não acredito que está como um líder militar. Por que não se mata de uma
vez?

— Esperem um pouco — objetou Kenpo Norbo. O famoso lama era


considerado por seus seguidores a décima segunda reencarnação de um legendário
guru budista. Vestimentas cor de açafrão cobriam sua figura magra e ascética. —
Julian pode ter razão. Não quero terminar como nossos colegas mortos. E não
quero passar todas as horas dos dias olhando por cima do meu ombro. —
Nervosamente, ele pegou um terço entre os dedos. — Uma nova vida de riqueza e
luxúria, sem ameaças de morte, tem seus atrativos.

Burke bufou com desdém.

— Admita. Você está cansado de viver como um macaco idiota.

— E se eu estiver? — Kenpo deu um puxão em suas roupas. — Não me


importei em incorporar essa pessoa ridícula quando pensei que ajudaria nossa
causa. Mas por que se importar agora? — Ele jogou as mãos para cima. — Qual é o
sentido?

Nasir zombou da autopiedade do lama.

— Todos fizemos sacrifícios. Deixamos nossas casas e as pessoas que


amamos para garantir o futuro que prezamos. E as nossas famílias e amigos no
futuro? Está disposto a violar a confiança que eles depositaram em nós?

— Essas pessoas nem ao menos nasceram! — exclamou Roff. — E


provavelmente nunca vão nascer. — Saliva espirrava pelos seus lábios. — Vocês
estão agarrados a um plano que falhou. Esqueçam isso!

— Traidor! — disparou Song Yu. — Você foi corrompido por essa época
decadente.

— Fanática — devolveu ele. Ele se afastou da mesa. — Se matem se


quiserem, mas me deixem fora disso.
— O mesmo para mim. — Kenpo soltou o terço na mesa. — Esse tulku8
está pronto para nascer novamente. Talvez como um astro do rock gostosão.

Os olhos de Song Yu queimavam de raiva. Parecia que ela estava prestes


se atirar sobre a mesa em cima dos dois que viraram as costas. Ela tirou um
grampo de cabelo afiado de seu coque.

— Seus sujos, fracos…

Um barulho ensurdecedor abafou seu último xingamento. Todos os olhos se


viraram para ver o famoso produtor de cinema e TV George Sterling, parado ao
lado da lareira. Ele soltava uma corda de seda de sino. Seu rosto bronzeado era
liso. Cabelos loiros ondulados substituíam a convincente peruca que ele vinha
usando desde os anos noventa. Uma barba cinza atapetava seu queixo. Óculos
escuros penduravam-se em seu nariz. Ele estava vestido casualmente com uma
camisa polo e calça de moletom. Seu novo programa de audiência, No ritmo da
Terra Prometida, sobre a impossibilidade atraente de agentes da NTAC recuperando
a América de terroristas malucos que usaram promicina, era atualmente o mais
assistido em todo lugar exceto em Seattle.

— Chega disso, vocês todos — disse ele, pacientemente. — Vamos relaxar


um pouco. Brigarmos entre nós é exatamente o que Jordan Collier, e nossos
inimigos no futuro, querem. — Ele se juntou aos colegas na mesa, tomando o
assento entre Song Yu e Nasir. Pousou uma mão tranqüilizadora sobre o ombro da
mulher irritada. Seu tom firme e conciliador era o mesmo que ele usara para
convencer Russel Crowe a não abandonar a refilmagem de Day of the Triffids. —
Vejam, Julian, Kenpo. Eu ouvi o que disseram. Ninguém está negando que
passamos por maus bocados ultimamente. As trágicas perdas de nossos colegas
afetaram a todos nós profundamente. Mas tenho certeza que, se eles estivessem
conosco hoje, não iriam querer que perdêssemos as esperanças.

Ele usou o nobre sacrifício dos colegas como ferramenta para amenizar a
discussão. Pelo que ele via, o verdadeiro problema agora não era o esquadrão da
morte de Jordan Collier; era a liderança vazia que Isabelle Tyler criara ao matar
Rebecca Parish. Alguém precisava tomar a dianteira e tomar o controle agora que
Rebecca se fora. E quem melhor do que o vencedor do Oscar por Praias: Seattle?

— O que quero dizer é — continuou ele. —: assisti a filmes demais para


saber que as coisas sempre parecem sem saída logo antes dos bons virarem o jogo.
E com toda a certeza, nós somos os mocinhos aqui. Se não impedirmos Jordan
Collier de mudar o futuro, quem irá?

— Mas isso não é a droga de um de seus filmes — protestou Roff. — Isso é


caso de vida ou morte para todos nós.

— O que torna mais importante nos dedicarmos à nossa missão. — Sterling


tentou encorajar aos outros. — Confiem em mim, amigos. Isso não acabou. Ainda
podemos acabar com o Movimento do Collier. Só precisamos usar juntamente
nossas influências para que as autoridades façam o que for preciso para colocar a
raça humana de volta no caminho certo, mesmo que isso signifique trancafiar cada

8
N. do T.: Um tulku é, no budismo tibetano, um lama que conseguiu escolher conscientemente ser
reencarnado.
4400 em campos de concentração, dosando todos com inibidor e levar a Terra
Prometida de volta à Idade da Pedra.

Nasir e Burke acenaram em aprovação à sua visão. Até mesmo Kenpo


pareceu um pouco mais confiante. Eles iriam fazer algo…

— É mais fácil falar do que fazer — retrucou Roff. — Como exatamente


pretende fazer isso?

— É só saber contar a história certa. — Sterling pensara bastante no


assunto antes de convocar a reunião. — O segredo é provocar os “poderosos” a
darem um passo drástico. Talvez provando que Collier pretende outro Grande Passo
Adiante.

O general voltou à mesa relutantemente.

— Talvez dê certo.

— Podemos fazer isso — insistiu Sterling. Ele sentiu a momento tomando


conta de si. — Mas não se não permanecermos juntos. — Ele se focou no que valia
a pena. — Sem o seu empurrão no Pentágono, general, não temos chance alguma.
E você, Kenpo, não subestime sua influência no leste, sem mencionar aqui em
Hollywood. Somos todos partes essenciais do nosso plano.

— Mas e o assassinato do Calábria? — perguntou o lama, receoso. —


Qualquer um de nós pode ser o próximo.

Um sorriso astuto elevou os cantos da boca de Sterling.

— Deixe que eu cuido disso.

— Me passe outro pedaço — disse Kyle.

Uma pizza canadense grande de bacon e abacaxi estava na mesa.

— Sinto muito que teve que trazer a comida hoje — disse seu pai num
pedido de desculpas. Uma garrafa gelada de Rainier jazia na mesa a sua frente.
Uma porta aberta conduzia para a sala de estar adiante. Um som leve saía do som
do cômodo ao lado. — Mas não tive tempo mesmo para preparar comida essa
semana.

— Tudo bem por mim, tio Tommy — disse Shawn. — Pode esquecer, já
experimentei sua comida antes.

O Baldwin sênior fingiu um ferimento no coração.

— Ai, isso é jogo baixo, Farrel.

Kyle sorriu enquanto seu pai dava um soco de brincadeira no ombro de


Shawn. Era bom passar um tempo com sua família novamente, especialmente
depois de tudo pelo que eles vinham passando ultimamente. Esses jantares
semanais era algo que eles combinaram depois do funeral de Danny e tia Susan,
quando os três homens prometeram tornarem-se uma família de verdade
novamente, apesar de tudo que os dividia. Até agora o ritual parecia estar
funcionando. É exatamente o que preciso agora, pensou Kyle.

Pena que Cassie achava o contrário.

— Abacaxi na pizza? — A jovem atraente de cabelo vermelho fez uma


careta. Um sobretudo roxo descolado contornava sua figura. Um pingente turquesa
descansava em seu decote. Brincos de argola projetavam-se para fora de seu liso
cabelo vermelho. Uma franja pintada caía pelos seus habilidosos olhos esmeraldas.
— Honestamente, viemos de tão longe para isso?

Embora houvesse quatro pessoas na mesa, somente Kyle estava ciente do


fato. Uma projeção de sua mente inconsciente, Cassie Dunleavy era invisível e
inaudível para todos outros. Mas ela era mais que sua amiga imaginária; ela era,
também, sua habilidade.

— Nós vamos demorar muito? — perguntou, impacientemente. Ela polia as


unhas do outro lado da mesa, em frente a Kyle. Cassie desaprovava
completamente esses jantares, alegando que Kyle nada tinha a ver com seu pai até
que ele tomasse a dose de promicina. — Temos mais o que fazer do que ficar com
esses dois.

Kyle tentou-se a responder. Seu pai e Shawn não entenderiam se ele


começasse a discutir com o ar. Embora ambos soubessem que ele adquirira algum
tipo de habilidade precógnita depois de tomar promicina, ele nunca explicara
realmente como sua habilidade se manifestava, que todas as suas visões do futuro
vinham diretamente de Cassie. Ela o dizia o que fazer, e até agora nunca errara.

Exceto, talvez, no que dizia respeito a sua família.

— Então, como foi o dia de vocês? — Shawn perguntou. Um pedaço


pegajoso de queijo balançando entre seus lábios.

— Bastante intenso. — Kyle respondeu. — Estamos trabalhando mais


tempo só para coordenar todas as novas iniciativas do Jordan.

Seu pai abaixou sua cerveja.

— Falando nisso, Kyle, eu odeio ter que comentar isso, mas preciso
conversar com você sobre algo em que o Jordan pode estar envolvido.

— Ei — disse Shawn. — Pensei que política estaria proibida nesses


jantares.

Cassie ficou agitada no mesmo momento.

— Tome cuidado, Kyle! Não gosto disso.

— Eu sei — disse seu pai, relutantemente. Ele se virou desconfortável na


cadeira. — Mas isso também é assunto de família. — Ele lançou a Kyle um olhar
sério, até um pouco doloroso, que o jovem assemelhou com conversas entre pai e
filho sobre sexo e drogas. — O Jordan te falou sobre o corpo do Danny?

— Sim. — Kyle perdeu o apetite. Um pedaço fresco de pizza esfriou no seu


prato. — Mas ele me prometeu que não teve nada a ver com isso.
Cassie lançou lhe um olhar de advertência.

— Não fale mais nada! Ele está tentando induzi-lo a trair o Movimento.

— Queria ter certeza disso — disse seu pai. — Mas temos motivos para
acreditar que alguém está tentando duplicar a habilidade de Danny. Tem certeza de
que Jordan, ou qualquer outra pessoa de sua organização, não está planejando
outro Grande Passo Adiante? — Ele pareceu preocupado. — Queria muito que me
ajudasse com isso, Kyle.

— Não é justo, pai! — Kyle não acreditava que seu pai estava usando-os
daquele jeito. — Você sabe quanto o Movimento significa para mim. Não me peça
para espiar meu próprio povo. — Ele se certificou de que seu pai percebesse de que
lado ele estava. — Além disso, Jordan nunca permitiria algo assim.

— Está certo sobre isso? — Shawn o desafiou. — Sejamos honestos aqui.


Jordan pode ser horrivelmente impiedoso quando tem que ser. Ele tentou
sequestrar o Dr. Burkhoff para impedi-lo de aperfeiçoar o teste de compatibilidade
a promicina. E está deliberadamente distribuindo promicina pelo mundo, sabendo
muito bem que metade das pessoas que tomarem a dose morrerá de maneiras
terríveis. — Nem mesmo a habilidade de cura de Shawn poderia salvar alguém da
dose de promicina. — Não me surpreenderia se ele tentasse algo assim.

Kyle jogou na defensiva.

— Agora os dois vão me pressionar? Pensei que isso fosse uma reunião
amigável e não uma emboscada!

— Eu avisei — vangloriou-se Cassie, jogando na cara. — Você não pode


confiar nessas pessoas. Seu pai provou isso quando se recusou a tomar a dose. —
Levantando-se da mesa, ela a circulou até ficar atrás dele. Enrolou os braços no
peito dele. A fragrância do perfume fez sua cabeça girar. Os lábios dela
sussurraram suavemente em seu ouvido. — Eles não entendem nada sobre o
futuro, não como nós.

— Pense um pouco sobre isso — pediu seu pai. — Não estou pedindo que
traia alguém ou que faça algo que viole suas crenças. Só preste atenção e veja o
que pode descobrir sobre esse Bernard Grayson e suas conexões com o Movimento.
Nos ajude a encontrar o corpo de Danny antes que aconteça outro 50/50. Talvez
use sua habilidade.

— Hah! — bufou Cassie. — Como se isso fosse acontecer. — Ela segurou o


braço de Kyle. — Vamos embora.

Kyle sentiu-se sendo atacado de todas as direções. Ele viu-se dividido entre
sua família, Cassie e sua lealdade ao Movimento. Por que isso acontece comigo? Só
quero fazer do mundo um lugar melhor.

Ele empurrou seu prato e levantou abruptamente.

— Preciso voltar para meu lugar.

— Kyle. — O olhar arrasado no rosto de seu pai quebrou seu coração. —


Por favor, me desculpe. Não pediria isso se não fosse importante — lamentou-se. —
Você não precisa ir.
— Precisa, sim — disse Cassie. — Agora.

Kyle pegou seu casaco. Ele não queria sair assim, mas seu pai e Shawn
não haviam dado-lhe escolha. Eles quebraram a regra, e não ele. Uma rajada de
vento frio invadiu a sala quando ele abriu a porta de saída.

— Obrigado pela pizza, pai — disse ele, amargamente. — Estava ótima.

Cassie pegou sua mão enquanto o guiava para o lado de fora.


DEZ

A Terra Prometida tinha se reunido para ouvir seu messias falar. Milhares
de pessoas lotaram a praça em frente à prefeitura, esperando para ouvir Jordan
Collier, que já havia reunido antes uma multidão parecida neste mesmo local, nos
dias incertos que se seguiram ao Grande Passo Adiante. Um púlpito, sustentando
uma imagem do pico nevado do Monte Rainier, havia sido montado no topo dos
largos degraus de pedra. Um par de magníficos leões de pedra guardava a
escadaria. Altos pilares de mármore ladeavam o púlpito. Pôsteres ostentando
retratos de Collier de tamanho colossal se estendiam por sobre os andares
superiores do edifício. Equipes de filmagem esperavam para transmitir ao vivo o
pronunciamento de Collier para todo o planeta. Holofotes mantinham a escuridão
da noite afastada. Oficiais da paz, em seus uniformes verde pinho, patrulhavam a
praça. Detectores de metal escaneavam todos que chegavam.

Era uma noite clara e fria, mas a temperatura baixa não contribuíra muito
para desencorajar a horda inquieta que se reunira para presenciar a dedicatória de
uma nova escultura comemorativa do monumental retorno dos 4400. Um pano
cobria a instalação que, de acordo com furos de reportagem, representava uma
esfera brilhante e cristalina, pairando sobre uma réplica em bronze da Highland
Beach. A recém-inventada tecnologia antigravitacional teria sido empregada para
manter o orbe suspenso sobre a paisagem esculpida, sem qualquer meio visível de
suporte. A artista, que havia ganhado uma competição municipal patrocinada pela
Fundação Collier, era filha de uma dos 4400 originais. Ironicamente, ela parecia
duas décadas mais velha do que sua sorridente mãe, que agora se encontrava no
púlpito, aquecendo o público para Jordan Collier. A multidão ansiosa ouvia mais ou
menos pacientemente a seus comentários de abertura. Era Collier quem eles
realmente queriam ver.

Exatamente como April Skouris.

O tamanho absurdo da audiência frustrou a delicada morena, quando ela


tentou se encaminhar para frente da multidão. Óculos espelhados e um chapéu de
aba larga encobriam seu ar furtivo e travesso. As mãos geladas se escondiam nos
bolsos de seu caro sobretudo. Corpos esmagadores se esfregavam nela conforme
espreitava, irritada, através da muralha de ombros das pessoas à sua frente. Ela
havia chegado duas horas antes do início do evento, mas já havia literalmente
dúzias de espectadores entre ela e o pé da escada. Como conseguiria chegar perto
de Collier com todos aqueles enxeridos no caminho?

— Licença — ela resmungava, enquanto obstinadamente abria o caminho a


cotoveladas. — Estou passando! — Preocupada em não atrair a atenção dos
vigilantes Oficiais da Paz, ela mantinha sua cabeça baixa. Sua impetuosidade
evocava olhares maliciosos e protestos dos outros espectadores, mas quem ligava
para o que estavam pensando? Ela estava interessada apenas em Collier.

Ele vai falar comigo, queira ou não.

Seu sangue ferveu ao se recordar da humilhação que havia passado no


quartel-general de Collier, no outro dia. Ser barrada por seus capangas já era ruim
demais, mas ser destratada daquela maneira logo na frente de Diana era demais.
Eles não jogaram Di fora. Só a mim!
Era a mesma história de sempre. Diana recebia todo o respeito e atenção,
enquanto ela era tratada como um tipo de parasita constrangedor. Diana era a
estudante modelo, alegria e orgulho de todos. April era a incompetente, cuja irmã
superdotada tinha que volta e meia tirar das enrascadas. Mesmo agora, com uma
nova e surpreendente habilidade para se vangloriar, April ainda se achava tocando
a base para Diana solar.

Bem, não mais, ela jurara. Aquela seria a noite em que provaria que era o
dobro da agente federal que sua irmã era. Ela havia driblado Ralph e Eric, seus
guarda-costas designados pelo governo, para ter a chance de se encontrar cara-a-
cara com Collier. Ela não faria mais do que mostrar para todos que não era a
fracassada imatura que achavam que era. Eu vou expor as mentiras de Collier na
frente do mundo todo.

Se ela conseguisse atravessar essa maldita multidão!

No púlpito, a mãe da artista, Naomi Snodgrass, estava encerrando seus


intermináveis comentários.

— E agora, sem mais delongas, o homem que vocês todos estão


esperando… O homem por quem um planeta ferido clama… Jordan Collier!

Collier emergiu da prefeitura sob estrondosas vivas e aplausos. Ele ergueu


sua mão em reconhecimento e a multidão foi ao delírio, acenando e gritando como
se ele fosse Jesus reencarnado ou algo do tipo. Celulares e câmeras digitais
registravam sua chegada para a posteridade. Fora fácil esquecer que, menos de um
ano atrás, ele era um fugitivo procurado. Incrível como uma pequena catástrofe
local podia fazer diferença. Ele era como Giuliani9 depois do 11 de setembro, só que
maior. Giuliani não havia criado sua própria religião.

Enojada, April juntou-se à aclamação para evitar chamar atenção. Embora


tivesse conseguido sua habilidade e sua nova e confortável vida graças à política de
distribuição irrestrita de promicina de Collier, ela não embarcara na baboseira de
salvem-o-futuro. Em sua experiência, a retórica elegante era apenas um disfarce
para um golpe sofisticado. Você não pode trapacear um trapaceiro, ela pensou,
presunçosa. Collier estava simplesmente aparando as arestas, como qualquer um.

E ela iria provar isto.

Nem Tom Baldwin, nem Diana. Eu.

Ela esperou impacientemente que o clamor diminuísse. Ficou na ponta dos


pés para enxergar além da ralé que bloqueava sua visão do púlpito. Ainda havia
muitas fileiras de adoradores de olhos arregalados entre ela e Collier, mas quem
sabe já estaria perto o suficiente para ele ouvi-la? Uma pergunta capciosa dançava
pelos seus lábios. Ela a havia ensaiado, em sua cabeça, por horas a fio.

Onde está o corpo de Danny Farrell?

9
N. do T.: Rudolph Giuliani era prefeito de Nova Iorque quando aconteceram os ataques terroristas de
11 de setembro de 2001. Ele ganhou grande destaque por seu empenho em acompanhar as buscas por
sobreviventes nos escombros das Torres Gêmeas e em dar apoio às famílias das vítimas, entre outros
feitos.
Collier acolheu a adulação da horda por um momento, então gesticulou
para que se acalmassem. O burburinho diminuiu gradualmente. A tranquilidade se
estabeleceu pela praça. Rostos arrebatados fitavam Collier em adoração.

— Obrigado, meus amigos — ele falou para a multidão. Um microfone e


caixas de som projetavam sua voz através da praça pululante. — Vê-los todos
juntos aqui, num propósito comum, nesta ocasião auspiciosa, aquece meu coração.
É uma honra e um privilégio estar à frente de vocês mais uma vez…

April viu sua oportunidade. Ela gritou a plenos pulmões.

— Onde está o corpo de Danny Farrell?

Sua mente o mandou dizer a verdade, mas, para seu completo


constrangimento, ele simplesmente continuou falando sobre a noite gloriosa que
acontecia na Terra Prometida.

— Uma noite para celebrar as artes, e para as artes celebrarem o início de uma
nova era…

Droga, ela pensou. Collier não conseguia ouvi-la acima da voz amplificada
dele. Ela ainda estava muito longe. A frustração crescia dentro dela. Eu devia ter
trazido um megafone ou algo do tipo!

Ela não iria desistir, contudo. Conhecendo Collier, sabia que ele iria
continuar falando por algum tempo. Ainda havia tempo para chegar até ele.
Jogando a cautela para o alto, ela começou a empurrar as pessoas agressivamente
para abrir caminho.

— Saiam da frente, por favor! Estou passando.

— Ei, tome cuidado! — algum idiota reclamou. Era um cara horroroso, com
cara de sapo e melequento, com o cabelo castanho grudado sobre a cabeça para
disfarçar a careca, vestindo uma roupa ridícula. Um queixo duplo brotava por
debaixo de seus lábios gorduchos. Ele se mantinha protetoramente atrás de uma
velha enrugada em uma cadeira de rodas, que provavelmente era sua mãe. Seus
olhos esbugalhados fuzilavam April. — Onde você pensa que vai, docinho?

Ela tentou se espremer empurrando o idiota, mas ele não iria sair do
caminho.

— Não seja imbecil — ela disse, impacientemente. — Deixe-me passar.

— Pode esquecer — ele deliberadamente moveu a cadeira de rodas para


bloquear o caminho. — Se você queria um lugar bom, deveria ter chegado mais
cedo.

A paciência de April se esgotou. Um sorriso malicioso surgiu em seus


lábios. Está bem, otário. Você pediu isto.

— Alguma vez você já pagou para fazer sexo?

— Algumas vezes — ele admitiu, sem hesitação. — Quando eu estava


realmente a perigo.
Eu sabia, exultou April, maliciosamente. Este porco é bruto demais pra
conseguir uma mulher por esforço próprio.

Um ar de completo horror tomou conta do rosto do homem quando se deu


conta do que acabar de dizer. Ele tapou a boca com a mão gorda. A senhora da
cadeira de rodas olhou para ele com uma expressão escandalizada em sua face
enrugada. Os dedos ossudos se espremeram em seu peito.

— O que você acabou de dizer, Junior? Eu ouvi direito? — Ela olhou


atravessado para April. — Quem é esta mulher?

Ele não podia se afastar de April rápido o suficiente.

Isto vai ensiná-lo a não mexer comigo, pensou ela, enquanto ele
empurrava a apavorada senhora para fora dali. Mamãe já estava aplicando um
sermão em Junior. Satisfeita consigo mesma, April saboreou sua vitória sobre o
tagarela de olhos esbugalhados. Ele teve sorte por eu não ter perguntado por cada
detalhe sujo.

Ela se esgueirou pelo espaço deixado por Junior e sua mãe.

— Com licença! — Espectadores menos antipáticos relutantemente


deixaram-na se retorcer por entre eles. Sem aceitar um não como resposta, ela
avançou determinadamente para a beirada da multidão. A massa ignorou seu
progresso, preferindo ao invés disso dedicar sua atenção a Collier. Eles sacudiam
entusiasmados a cabeça, concordando com Collier, enquanto o grande homem os
fascinava:

— …quando aquele orbe de luz brilhante apareceu pela primeira vez há


quatro anos, zunindo pela Terra, vindo do que se acreditava, na época, serem as
profundezas do espaço sideral, muitas pessoas o temeram, achando que era o fim
do mundo. E, de certa forma, era. A chegada da esfera celestial, que retornou os
4400 a esta conjuntura crucial da história, anunciava o fim do mundo conturbado
que todos nós toleramos por tempo demais. Um mundo de fome, pobreza, guerra,
medo e ignorância…

Blá, blá, blá, pensou April. Conte-me uma novidade. Todo mundo já
conhece essa baboseira. Ela não podia acreditar que todos aqueles idiotas iludidos
estavam engolindo aquilo. Conte-nos algo de que não sabemos – como o que você
fez com o corpo de Danny.

Muitos olhares aborrecidos e silêncios irritados depois, ela chegou quase à


beirada da audiência. O pé da escada estava a apenas algumas fileiras de ovelhas
iludidas à frente. Jordan Collier estava tão perto que ela poderia praticamente ver
cada fio da sua barba. Seus astutos olhos azuis olhavam por sobre a multidão,
alheio à ameaça que rastejava até ele. April avaliou que já estava perto o
suficiente.

Ela tinha que estar no alcance da audição dele.

April levou um segundo para se compor. Ela olhou impiedosamente para as


câmeras de TV próximas. Cara, elas iriam transmitir um verdadeiro show. Jordan
Collier estava prestes a perder seriamente as estribeiras.

Espere até Diana ouvir isto!


Ela tirou os óculos de sol. Sua boca se abriu ao máximo.

— Onde está o corpo de Danny Farrel? — ela gritou.

Ou melhor, foi o que ela teve a intenção de fazer. O que realmente saiu de
sua boca foi:

— Iogurte brincando com algoritmos?

Hã? A frase bizarra ecoava dentro de sua cabeça. O que eu acabei de


dizer? Ela tentou novamente, ainda mais alto, desta vez.

— Meias-luas rodopiando em ritmo de alcachofras?

A torrente de palavras sem sentido atraiu olhares desafiadores das pessoas


ao redor dela. Era como se ela estivesse falando em uma língua…

— Já chega, Srta. Skouris — uma mão pesada pousou em seu ombro.

O coração de April descompassou. Olhando para trás, ela descobriu dois


enormes Oficiais da Paz uniformizados. Cada guarda segurou firmemente em um de
seus braços.

— Por favor, venha conosco — disse o guarda da direita. Ele tinha quinze
centímetros e talvez sete quilos a mais do que ela.

— Obliquamente Puyallup10! — ela protestou, incoerentemente, mesmo que


a verdade cruel a beijasse no rosto. Eles fizeram alguma coisa com minha mente!
Não importava o que tentasse dizer, nada além de baboseiras saía de seus lábios.
— Filas de tatus licenciados!

Os espectadores mais próximos olharam para ela interrogativamente e se


afastaram. April se deu conta de que devia parecer que estava drogada.
Consternada, ela imaginava como os guardas a haviam identificado. Eles a haviam
localizado há poucos minutos ou estivera sob vigilância havia dias? Normalmente,
ela poderia perguntar a eles, mas agora não mais, não com tudo que falava saindo
desesperadamente distorcido através de sua boca.

Incapaz de discutir com os oficiais, ela tentou se livrar das suas garras. Uma
onda repentina de tontura tomou conta dela, entretanto, deixando-a quase sem
conseguir manter-se de pé, enquanto tudo ao redor parecia girar como um
brinquedo de parque de diversões. Ela se convenceu, de uma vez por todas, que
um dos guardas deveria estar usando sua habilidade sobre ela.

— Palito de dentes de sereia!

Um segundo depois, a praça parou de rodar. A tontura se fora.

— Não dificulte as coisas ainda mais — avisou o segundo guarda. Ele era
menor do que o outro, mas grande o suficiente para empurrá-la. Ele manteve sua

10
Puyallup – cidadezinha americana localizada no estado de Washington.
voz baixa e ameaçadora. — Deixe estas boas pessoas ouvirem o discurso de
Jordan.

Entendendo a mensagem, ela não ofereceu mais resistência, enquanto os


guardas a afastavam dos degraus. Ninguém tentou impedir os guardas de escoltar
a moça louca para fora dali. A multidão se abria prontamente para que eles
passassem. No púlpito, Collier continuava a falar, como se nenhum inconveniente
estivera acontecendo. Se ele havia tomado conhecimento da perturbação, não
deixava transparecer.

— Assim, é com grande alegria e humildade, que eu revelo este brilhante


tributo artístico ao dia que mudou as nossas vidas para melhor. — Com um floreio
dramático, ele retirou o pano de sobre a escultura. A esfera flutuante de cristal
brilhava como uma estrela sobre uma árvore de Natal. — Bem vindos ao início do
renascimento da Terra Prometida!

Apupos e aplausos enérgicos abafaram a saída forçada de April. Os guardas


a arrastaram para fora da praça e para dentro de uma van verde. O medo tomou
conta de sua alma. Aonde vocês vão me levar?

— Escorregadio por catálogos violentos?

O guarda adivinhou o que ela estava perguntando.

— Acredite em mim, você não vai querer saber.

Sua habilidade era inútil no momento, mas isso não importava.

Ela sabia, em seu coração, que ele estava dizendo a verdade.


ONZE

A imponente casa de fazenda ficava escondida nos arredores da Pennsylvania.


Plantações de milho e tabaco, que jaziam esquecidas no inverno, cercavam a casa e
suas dependências. Uma estrada apagada e suja levava até o Pedágio Lancaster,
mais ou menos a um quilômetro dali. Um galo de ferro estava empoleirado no topo
de um cata-vento. Pinturas redondas estavam pintadas nos celeiros e na caixa
d’água. Luz elétrica brilhava pelas janelas. As cortinas do andar de cima estavam
fechadas por causa da noite. Uma frota de limusines, estacionadas do lado de fora
da casa, pareciam distintamente fora de lugar.

Richard entendeu a presença das limusines como um bom sinal. Parece que
estamos no lugar certo, pensou. Ele e sua equipe rastejavam por um campo escuro
na direção dos ruídos da casa. Uma fonte confiável lhes informara que os Marcados
sobreviventes realizavam uma reunião naquele mesmo local, o que oferecia a
oportunidade perfeita de acabar com a conspiração com uma tacada só. Pesquisas
posteriores haviam revelado que a fazendo isolada era uma das várias propriedades
de Wesley Burke, o conselheiro chefe do presidente no Departamento de Segurança
Doméstica. As limusines incongruentes indicavam que eles haviam chegado bem a
tempo.

Longe das luzes da cidade, uma escuridão colaborava com a aproximação


deles. Um pequeno prateado da lua dava a eles luz suficiente para conseguirem
andar. Estava uma noite congelante. A respiração de Richard embaçava a frente de
seus lábios, assim como a de Evee. Somente Yul parecia não ser afetado pelo frio.
Richard invejava os dons termocinéticos do outro homem. Os três operantes —
uma palavra que Richard preferia ao invés de “assassinos” — estavam
aquecidamente vestidos em roupas de lã pretas, luvas, tocas de ski e botas. Além
da temperatura frígida, eles haviam executado uma cansativa caminhada até a
fazenda. O helicóptero reserva deles, comandado pelo mesmo piloto cego que
ajudara na fuga da prisão, havia largado-os em um campo vazio a mais de um
quilômetro longe dali.

Mantendo-se abaixados, eles foram cruzando o campo gelado. Com


Sanchez morto, Richard havia assumido o comando da equipe de assalto. Grãos
secos de milho estalavam ruidosamente sob suas botas. Richard estremecia a cada
estalo traiçoeiro. Tomando a dianteira, ele segurou a respiração até encontrar
abrigo atrás de um galpão velho de ferramentas. Espirou pelo canto da cabana
enquanto analisava o terreno à frente.

Um espaçoso quintal se estendia entre o galpão e a parte de trás da casa.


O cenário era tomado por uma forte segurança. Um guarda com uma jaqueta de lã
patrulhava uma sacada no segundo andar. Holofotes montados iluminavam o
gramado amarronzado. Um pneu balançava pendurado em um galho forte de uma
árvore carvalho. Uma grande casa de cachorro de alumínio preocupou Richard. Ele
só podia desejar que nenhum cão de guarda inconveniente tivesse sido trazido
naquela noite.

Seu olhar pousou num par de portas velhas de um porão. As portas de aço
inclinadas estavam do lado oposto do fundo cimentado da casa. De acordo com o
informante, um 4400 que Richard encontrara anos atrás durante a quarentena, os
Marcados estavam se reunindo num quarto do pânico abaixo do porão-adega.
Essa é nossa entrada, decidiu ele. Agora eles só precisavam atravessar
vários metros de grama bem iluminada sem serem detectados. Mais fácil falar do
que fazer.

Ele prestou atenção na sentinela na sacada. O guarda sem nome andava


de um lado para o outro para se manter aquecido. Suas mãos enluvadas
seguravam uma caneca fumegante de café. Richard quase sentiu pena do pobre
homem, até que se lembrou a quem ele estava defendendo. Um par de binóculos
noturnos estava pendurado em volta do pescoço dele. Daquela distância, Richard
não conseguia dizer se a sentinela estava armada, mas com certeza estava. Wesley
Burke era um homem poderoso, com muitos inimigos.

Evee se levantou atrás dele. Ela também colocou a cabeça para fora do
canto. Seus olhos sombreados seguiram seu olhar até a sacada no alto.

— Quer que eu cuide dele?

— Poupe suas forças. — Richard manteve a voz baixa. — Eu posso lidar


com isso.

Suas sobrancelhas escuras se torceram. Seus olhos se estreitaram


enquanto ele se concentrava no guarda — e no fluxo de sangue para o cérebro do
homem. Demorara um pouco para ele dominar esse truque, mas estava craque
agora. Devagar, sutilmente, para não alarmar o seu alvo, comprimiu a circulação
do guarda, colocando o homem para dormir antes mesmo que ele soubesse o que
estava acontecendo. A sentinela cambaleou sem equilíbrio, então caiu por cima da
grade. A caneca fumegante de café escorregou de seus dedos. Richard
experimentou um momento de pânico enquanto o copo de cerâmica caía na direção
do chão. Ela caiu com um baque abafado na cama de flores abaixo. Arbustos
folhados piedosamente amorteceram sua queda.

— Muito bem — sussurrou Evee, impressionada com a facilidade com que


Richard havia neutralizado o guarda. — Já fez isso antes?

— Sim — respondeu ele, laconicamente. A culpa trespassou seu coração. A


última pessoa que ele nocauteara desse jeito fora Isabelle, quando sua filha ainda
estava viva. Agora, ele desejava que os dois tivessem gastado menos do seu
precioso tempos juntos brigando. Se ao menos pudessem acertar as coisas entre
eles. Mas os Marcados os haviam roubado essa possibilidade.

— E as luzes? — perguntou Evee.

Richard sinalizou para Yul com as mãos. O homem mais jovem, que era
uns 30 centímetros mais baixo que Richard, aproximou-se para se juntar a eles.

— Sua vez — disse Richard.

Yul acenou com a cabeça. Ele fixou o olhar nos holofotes, que se
acenderam brilhantemente antes de queimarem todos juntos. A escuridão caiu
sobre o quintal. Richard imaginou quanto tempo demoraria para as pessoas do lado
de dentro perceberem.

O tempo suficiente, esperava.

— Vão! — murmurou ele urgentemente.


Eles estavam no meio do quintal quando os cães atacaram. Latidos e
rosnados selvagens precederam-se a aparição de quatro Dobermans ameaçadores,
que vieram correndo pelos cantos da casa. As presas dos cães reluziam na débil luz
da lua. Baba jorrava de suas bocas abertas.

Droga, pensou Richard. Sabia que a casa de cachorro significava encrenca.

O Doberman da frente investiu contra ele. Instintivamente ele jogou o


braço para o alto para se defender, feliz pela grossura de sua jaqueta e do suéter.
A mandíbula poderosa do cachorro fechou-se em seu braço. Dentes afiados
perfuraram o tecido, cortando sua pele. Ele mordeu o lábio para não gritar. A dor
quebrou sua concentração em pedacinhos. Não havia como usar sua mente como
arma. O cão furioso ficou pendurado em seu braço como um peso, rasgando sua
carne. O peso enorme do animal tirou seu equilíbrio. Era tudo o que ele podia fazer
para manter o canino rancoroso longe de sua garganta… até que, abruptamente, o
cachorro amoleceu.

Afrouxando o aperto, o Doberman caiu na grama. Richard arfou aliviado.


Ele cambaleou alguns passos para longe da besta adormecida. Olhando em volta,
viu que todos os quatro Dobermans estavam deitados sem sentidos no gramado
seco. Eles roncavam e fungavam em seu sono. Suas pernas se contraíam de vez
em quando.

Evee, percebeu ele.

Ele olhou para sua colega de equipe, que estava flexionando o pescoço.
Aparentemente, sua habilidade funcionava com cachorros, também.

— Obrigado — disse ele, sem fôlego. — Bom trabalho.

Ela deu de ombros, como se salvá-los de um bando de cães de guarda


raivosos não fosse grande coisa.

— Eu sempre fui mais com a cara de gatos.

— Como está o seu braço? — perguntou Yul, ansiosamente. O sangue


ensopava a manga de Richard, tão negros quanto óleo nas sombras. O tecido
amassado mal escondia as marcas de mordida. Doía pra caramba.

— Eu aguento — ele disse, com os dentes cerrados. Ele estava mais


preocupado com o barulho que os cães haviam feito antes de Evee os silenciar.
Vozes agitadas vinham de dentro da casa. Uma porta de correr de vidro se abiu no
andar de cima. Passos apressados soaram da sacada.

— Mas o que…? — disse uma voz anônima acima deles. — Está dormindo
no trabalho, Harris?

Uma segunda voz se juntou à confusão.

— O que os malditos cachorros têm? — A irritação brigava com a


preocupação. — Hei, quando as luzes se apagaram?

Richard esgueirou-se por baixo da sacada, fora da vista dos recém-


chegados. Seus amigos não precisaram de aviso para se juntar a ele. Segurou o
braço ferido enquanto ouvia tensamente os homens tentando acordar o guarda
tranquilizado. Seu coração deu um pulo no peito. Seus olhos viraram na direção das
portas do porão, apenas alguns metros de distância. Ele tentou levantar as portas
usando sua telecinese, só para descobri-las trancadas pelo lado de dentro.

Sem problema, ele pensou.

Vince Adams, o 4400 manipulador de espaço da fuga da prisão, podia ter


arrancado as portas de aço das dobradiças, mas ele não aceitara a missão por
questão de valores. Libertar positivos de custódia federal era uma coisa, mas
assassinato era a gota d’água para Adams. Richard respeitava a opinião do homem.
Ele até concordaria com isso há um tempo, antes dos Marcados assassinarem sua
filha.

Agora as portas do porão estavam entre ele e sua vingança. Visualizando


com sua mente, ele localizou o cadeado no lado oposto das portas. Seu braço
machucado dificultou a concentração, mas ele deixou a dor de lado. As trancas se
moveram e o cadeado se abriu. As portas suspenderam-se abertas. Um tenebroso
portal esperava por eles.

— Agora! — ordenou Richard. Ele desceu alguns degraus, abaixando a


cabeça para evitar bater na porta. Sua bota chutou o cadeado caído para o lado.
Correndo, seus colegas apressaram-se para entrar atrás dele. Uma única lâmpada,
pendurada no teto, expunha o que parecia ser uma adega cheia de vinho. Dúzias
de garrafas de vidro estavam cuidadosamente montadas em grandes prateleiras de
ferro.

Yul assobiou, apreciando.

— Bela coleção. E altamente inflamável.

— Mais tarde — disse Richard. Um incêndio conveniente podia cobrir seus


rastros, mas primeiro eles tinham que cumprir seu objetivo – sem interrupções. Ele
olhou para trás por cima de seus ombros. As portas do porão fecharam-se com
barulho. Uma pesada prateleira de ferro arrastou-se pelo chão e se grudou contra a
entrada. Uma segunda prateleira caiu por uma escada, indo na direção do térreo.
As garrafas desalojadas chocaram-se com o chão duro de concreto. O aroma de
vinho poluiu o ar.

Evee lamentou-se pelo vinho derramado.

— Que desperdício.

Richard não podia se importar menos com os vinhos caros. Tudo o que
importava era eliminar seus alvos enquanto podiam. Linhas de luzes contornavam
uma porta de aço logo adiante. Vozes estridentes vinham de trás da barreira. Tem
que ser eles, pensou Richard. Os próprios Marcados.

Ou pelo menos era o que ele esperava.

Inesperadamente, a porta não estava trancada. Ela se abriu como mágica


diante deles enquanto se aproximavam. Os olhos de Richard rapidamente
avaliaram a situação. O “quarto do pânico” barulhento mais parecia um
apartamento mobiliado. Armários e copas de madeira estavam pendurados sobre
uma pequena cozinha no fundo da sala. Prateleiras estavam estocadas com livros e
DVDs. Um telefone vermelho de emergência estava pendurado a um lado da sala,
ao lado de um armário de primeiros-socorros e um extintor de incêndio. Havia
grades de ventilação no topo das paredes, logo abaixo dos tetos baixos. As luzes no
alto estavam dolorosamente brilhantes comparadas com a escuridão do lado de
fora. Música clássica tocava suavemente no sistema de som.

Seis pessoas assustadas olharam alarmadas para os invasores. Um sheik


árabe, um lama tibetano, uma mulher chinesa, um general americano, um produtor
de filmes bronzeado, e o próprio Wesley Burkey estavam posicionados em volta de
uma antiga mesa redonda de carvalho no centro da sala. Richard reconheceu os
Marcados por causa dos dossiês detalhados que eles haviam estudado. O quórum
parecia completo. Todos estavam ali, como prometido.

Beleza.

Exclamações e maldições irromperam dos lábios roubados dos Marcados.


Muitos deles já haviam se levantado de seus assentos. Cadeiras caídas jaziam aos
seus lados. Burke levantou uma Glock semiautomática de dentro de sua jaqueta,
mas Yul foi mais rápido. O aço azul ficou vermelho-brasa num instante. Burke
jogou a arma chiadeira para longe dele.

— Não! — apelou o árabe. — Tenham piedade.

Evee não deu aos colegas conspiradores de Burke uma chance de


revidarem. O pescoço dela estalou audivelmente. Os Marcados caíram como
bonecas de trapo.

A porta de aço fechou-se com tudo atrás de Richard. Ele não queria
ninguém invadindo a festa. Seu olhar sombrio varreu os homens e a mulher
adormecidos. Um nervo mexeu-se abaixo de sua bochecha. Ele não esperava por
essa parte…

— Até agora, tudo bem — comentou Yul. — Acho que nem precisamos de
Billy no fim das contas.

Por cima das objeções energéticas dele, Richard eliminara o garoto de


óculos dessa operação. Independente do perigo, isso não era trabalho para uma
criança. Já era ruim o suficiente que Isabelle houvesse perdido a inocência tão
horrivelmente. Ele não ia deixar que outra criança sujasse as mãos de sangue.

Não sob minha supervisão.

Agora, os guardas contratados pelos Marcados estavam levantando um


alvoroço do lado de fora da “sala do pânico”. Richard ouvia-os lutando contra as
prateleiras dos vinho arrancadas. Vozes frenéticas gritavam umas com as outras.
Claramente, a equipe teria que brigar para saírem dali.

— Certo — murmurou Evee. Ela tentou pegar a arma de Burke, mas ainda
estava muito quente para ser tocada. Ela olhou apreensiva para a porta fechada
entre eles e os guardas. — Vamos dar cabo desses pedaços de corpos fascistas e
cair fora.

— Ainda não. — Richard se aproximou dos corpos estatelados. Antes que


matassem essas pessoas a sangue frio, e queimassem seus corpos, ele queria ter
certeza absoluta de que eram as pessoas certas. Os alvos indefesos pareciam
ligarem-se aos perfis, mas sua consciência insistia que ele se esforçasse ao máximo
para não matar as pessoas erradas. Eles estavam falando de vidas humanas. Não
podia haver margem para erros.

Nasir Al-Ghamdi era a vítima mais próxima. Richard se ajoelhou ao lado do


sheik adormecido. O corpo torto do árabe estava deitado de bruços, então Richard
o virou para cima para olhar melhor. Ele afastou o lenço do rosto do homem e
examinou suas feições. Ele estava sendo paranoico ou o rosto do homem parecia
um pouco diferente daquele que ele memorizara? Ele tocou a bochecha do sheik.
Blush sujou seus dedos.

Um arrepio correu pela espinha de Richard. Esse não é Nasir, ele percebeu.
É falso. É uma armadilha.

Ele pôs-se de pé num salto.

— Tomem cuidado! — exclamou. — Caímos numa armadilha.

Ele mal terminara de falar quando a armadilha foi acionada. Granadas de


luz rolaram pela sala, explodindo de trás das prateleiras e armários. Clarões de
cegar os olhos surgiram um atrás do outro, desorientando os quase-assassinos.
Explosões ensurdecedoras invadiram seus ouvidos. As luzes acima piscaram,
adicionando-se ao caos. A equipe mal podia pensar, muito menos usar suas
habilidades. Mesmo se tivesse alguém para usá-las.

Richard ouviu um barulho de assobio por cima das detonações. Olhando


para cima, ele viu uma grossa fumaça branca espalhar-se pela sala através das
grades de ventilação.

Gás!

Colocando a mão por sobre o nariz e a boca, Richard correu para a porta.
Ele agarrou a maçaneta com a mão livre, mas ela se recusou a girar. Uma segunda
porta caiu do alto, quase arrancando seus dedos. Eles estavam presos.

A fumaça sufocante rapidamente encheu a câmara de gás da sala. Os olhos


de Richard lacrimejaram. Sua garganta queimou. Ele tentou afastar a fumaça dele,
mas não obteve sucesso. As luzes que piscavam e as explosões atrapalhavam seus
sentidos. Sua telecinese era inútil contra o gás sem forma. Ele não conseguia tocá-
lo com sua mente.

Quem quer que tivesse organizado aquela armadilha havia pensado em


cada detalhe.

Evee foi a primeira a sucumbir ao gás. Ela caiu ao chão. Yul foi o próximo.
Ele cambaleou em volta, caindo sobre uma das sósias. Em poucos segundos,
Richard viu que era o único ainda de pé.

O gás invadiu seus pulmões. Desnorteado, ele segurou-se na borda da


mesa circular para se sustentar. Tentou lutar contra a fumaça narcótica, mas era
uma batalha já perdida. Suas pernas amoleceram e ele caiu ao chão, ao lado de
seus companheiros. Suas pálpebras fecharam-se. Ele tossiu à fumaça cáustica. A
última coisa que pensou, antes que a inconsciência viesse, era no que os
verdadeiros Marcados estavam planejando agora.

Sua cabeça atingiu o chão.


DOZE

April tinha conseguido finalmente chegar ao escritório de Jordan Collier.

Cuidado com o que você deseja.

Ela havia se empoleirado ansiosamente na borda de uma cadeira Queen


Anne de espaldar alto, no meio do impressionante escritório executivo. Os dois
Oficiais da Paz da prefeitura permaneciam um de cada lado dela. Nenhum havia
dado qualquer pista do que a aguardava, embora sua imaginação temerosa tivesse
engendrado uma série de cenários apavorantes, incluindo seu desaparecimento
definitivo. Ela havia escutado rumores não-confirmados sobre o que acontecera
com os 4400 que contrariassem Collier.

A sala era desconfortavelmente quente, se comparada à praça ao ar livre.


Seu chapéu, sobretudo e óculos espelhados estavam pendurados em um cabideiro
perto da porta, mas ela ainda se sentia vestida demais para um ambiente fechado.
Ela suava dentro de sua blusa felpuda de pelo de cabra com gola rulê e calças
justas de couro. Sua boca estava seca como a Proibição. Ela não conseguiria
aguentar o suspense por mais muito tempo.

— Compartimento emérito desbotado? — ela desembuchou.

Traduzindo rudemente: o que vocês querem comigo?

Os guardas apenas sorriram como resposta.

Sua desesperadora inabilidade para falar claramente apenas tornava seu


confinamento involuntário mais doloroso. Um soluço frustrado escapou de sua
garganta. Ela roía as unhas nervosamente. Um relógio de parede revelava que ela
já tinha sido capturada havia duas horas. Ela não estava certa de quanto tempo
mais ira conseguir aguentar aquilo.

Vamos terminar logo com isso, não vamos?

Finalmente, logo quando ela achava que estava à beira de um ataque de


fúria, a porta do escritório se abriu e Jordan Collier entrou na sala. Ele caminhou
em sua direção enquanto os guardas fechavam a porta. Uma tranca se fechou com
um clique.

April engoliu em seco.

— Olá, Srta. Skouris. — Collier a cumprimentou. O discurso tornara sua voz


ainda mais rouca do que de costume. Ele tomou um gole de água de uma garrafa
plástica, cujo rótulo a identificava como procedente do delta do ex-poluído Rio
Duwamish. Limpar aquelas águas tóxicas tinha sido um dos primeiros triunfos do
Movimento, e uma demonstração de tudo o que Collier pretendia para a Terra
Prometida. — Minhas desculpas por deixá-la esperando. Eu sei que você se
esforçou para me encontrar… Ignorando meus avisos para não fazê-lo.

Seu tom era inflexível e imperdoável. April sentiu-se como se tivesse sido
chamada ao gabinete do diretor do colégio, uma experiência que lhe era mais do
que familiar, dos tempos de escola. Ela instantaneamente soube o que ele tinha em
mente para ela.

— Suco de fax de Pé-Grande!

Apavorada, ela tentou se atirar da cadeira, mas os guardas a seguraram


pelos ombros e a colocaram sentada de volta. Outra onda nauseante de tonteira
deixou sua cabeça girando. Ela gemeu e fechou os olhos até a sensação passar.
Claramente ela não ia a lugar nenhum. Ela lamentou, frustrada:

— Harém fetal…

Collier deixou a garrafa em uma mesa próxima. Ele a encarou como um


juiz a uma tribuna.

— Dói saber que você resolveu desobedecer minha advertência, e não


apenas porque eu sinceramente lamento ver desperdiçada qualquer habilidade
proveniente da promicina. Eu tenho grande respeito por sua irmã e o parceiro dela.

Você, Deus e todo o mundo, ela pensou, amargamente. Aparentemente,


até o grande Jordan Collier não conseguia resistir a dizer a ela o quanto Diana era
maravilhosa. Os olhos de April quase saltaram das órbitas. Ela socou os braços da
cadeira, num desapontamento angustiado. Não é justo! Eu finalmente era alguém,
também!

— A verdade está de fato em algo de infinito valor – repreendeu Collier —,


mas não quando pode ser explorado por aqueles que tentam impedir o destino de
maneira a preservar um futuro desprovido de esperança ou justiça. Eu já vi o que
este mundo virá a ser se nosso Movimento falhar. Oceanos de ossos sem vida.
Fogueiras eternas brilhando no horizonte. O fedor de carne podre e doenças. Um
céu escurecido por fumaça e chuva ácida. Os gritos intermináveis dos agonizantes e
dos amaldiçoados.

As linhas marcantes de sua face ficaram mais profundas. Seus olhos


tornaram-se frios e sérios. Ele sacudiu a cabeça, lamentando. Adiantando-se, ele
pousou suas palmas nas bochechas dela. Suas mãos frias eram
surpreendentemente ásperas e calosas.

— Eu não posso permitir que você interfira no que deve ser feito.

Não! April pensou, freneticamente. Não faça isto! Ela contorceu-se


impotente em sua cadeira, contida pelos enormes Oficiais da Paz. Eu mudei de
ideia! Não vou te incomodar mais. Você não me verá nunca mais, eu prometo!

— Teflon crocante e sublime!

Mas era tarde demais para palavras, sem sentido ou não. A fronte de
Collier se enrugava em concentração. Uma sensação vibrante, como eletricidade
estática, desencadeou-se onde ele a tocava. O tremor se espalhou de suas
bochechas para dentro da testa. Um zumbido, como um enxame de abelhas
furiosas, preencheu o interior de seu crânio. As abelhas começaram a picar seu
cérebro.

Ela se debatia convulsivamente na cadeira. Os guardas esforçavam-se para


contê-la, e tiveram que usar ambas as mãos para mantê-la parada. Suas
mandíbulas batiam involuntariamente. Seus olhos se reviravam nas órbitas. Bolhas
de espuma branca saíam pelo canto de sua boca. Seu coração batia uma milha por
minuto. Veias pulsavam em suas têmporas. O zumbido feroz roncava como um
furacão. Jordan segurou sua cabeça entre as mãos espalmadas dele. April sentiu
como se sua própria alma fosse explodir em mil pedacinhos.

Então, de uma vez só, terminou.

Jordan soltou o rosto dela. A dor agonizante cessara. O zumbido sumira.


Ele se afastou da cadeira, seu rosto cansado e aborrecido. Os braços lhe caíram
para os lados. Ele acenou com a cabeça para o guarda da direita.

— Está feito. Não há mais necessidade da afasia.

— Entendido.

O guarda soltou April, em mais de um sentido. Ela sentiu algo se mexendo


na parte de trás de sua cabeça. Sua língua se desenrolara.

— O que você fez comigo? — ela gemeu.

Jordan respondeu sem coerção.

— Livrei de um dom do qual você provou não ser merecedora – ele


afastou-se dela e tomou outro gole de água. — Deixem-na ir. — Ordenou aos
guardas, sem nem ao menos olhar para ela. Era como se ainda estivesse sob sua
vista. — Ela não é mais ameaça para ninguém… A não ser, talvez, para si mesma.

A verdade nunca fora tão dura de se ouvir. Ela entrou em desespero ao se


dar conta de que sua nova boa vida como valioso trunfo do governo estava
acabada. Collier estava certo; ela não era mais útil para ninguém, agora. Ralph e
Eric teriam que achar outra pessoa para escoltar, mas aquilo era apenas o começo.
Como ela iria encarar Diana depois disso?

Eu estraguei tudo de novo. Que legal.

— Seu bastardo presunçoso! — ela guinchou para Collier. – Você não tinha
esse direito!

Ele virou-se para ela uma vez mais.

— Não é bem assim. Eu tenho todo o direito, e mais. Dei a promicina ao


mundo. Portanto, é minha responsabilidade verificar se seu uso não está sendo
abusivo por parte de pessoas ingratas e egocêntricas como você. — Com a garrafa
de água na mão, ele dirigiu-se para a porta. — Agora, se você não se importa, esta
foi uma longa noite. Boa sorte com o resto de sua vida, srta. Skouris. Espero que
esta experiência tenha lhe ensinado uma valorosa lição.

— Não vire as costas para mim! — April gritou, furiosa. — Onde está o
corpo de Danny Farrell?

Ele parou à porta. Um sorriso irônico insinuava alguma piada interna.

— Como eu disse para sua estimada irmã: não faço a menor ideia.
E ela não podia ter certeza sobre ele estar dizendo ou não a verdade.

*************

— Lar, doce lar — disse Cassie. — Finalmente.

O novo apartamento de Kyle, no vigésimo terceiro andar do prédio da


Fundação Collier, era definitivamente melhor do que o abrigo anti-bomba
abandonado do qual haviam se apossado assim que o Movimento retornara para
Seattle, pouco antes do Grande Passo Adiante. Um sofá de couro preto e um outro
sofá menor combinando encontravam-se de frente para um centro de
entretenimento de última geração, montado com peças avulsas por Dalton Gibbs, o
mecânico mais brilhante da Terra Prometida. Um carpete branco felpudo forrava o
chão. Um grande volume de capa de couro, contendo o original das profecias da
“Luz Branca”, ocupava um lugar de honra na mesinha de centro. Uma foto de
família, tirada durante tempos mais felizes, antes de seus pais se divorciarem,
repousava em uma prateleira. Um retrato de Isabelle Tyler encontrava-se ao lado
dela. Uma foto emoldurada do Monte Rainier, onde os 4400 retornaram para o
presente, decorava uma das paredes. Um vaso com uma samambaia, escolhida por
Cassie, adicionava um toque feminino.

As acomodações elegantes, no entanto, não contribuíam muito para


melhorar o clima, depois daquela cena feia na casa de seu pai. Após acender as
luzes com um tapa no interruptor, ele atirou com raiva sua jaqueta sobre o sofá
menor. Não conseguia esquecer o modo como seu pai e Shawn tinham tentado
provocar um sentimento de culpa nele durante o jantar.

— Droga, droga, droga — ele descarregou, em voz alta. — As coisas


estavam indo tão bem entre nós antes. Por que eles tinham que estragar tudo
daquele jeito?

— Eu tentei te avisar — Cassie o lembrou. Tirando um xale de lã dos


ombros, ela se jogou no sofá e chutou os sapatos para longe. Cruzou as pernas
nuas na frente do corpo. — Não é uma boa ideia se juntar a estas pessoas, não
enquanto elas não enxergarem a luz.

— Sim, talvez – ele se juntou a ela no sofá. — Mas ele é meu pai, Cassie. E
Shawn é mais do que um primo. Nós éramos melhores amigos.

— Eu sei — seu tom se suavizou enquanto se aconchegava perto dele. Ela


repousou a cabeça dele em seu ombro. — O futuro tem exigido muito de você.

Nem me fale, ele pensou. Embora ele estivesse destinado a ser um dos
4400 originais, uma tentativa frustrada de abduzi-lo o deixara em coma por três
anos. Então, depois que Shawn finalmente o reavivou, uma das pessoas do futuro
possuiu seu corpo e o forçou a atirar em Jordan Collier. Ele passara quase um ano
na Penitenciária Estadual de Evergreen até que Jordan finalmente conseguiu
libertá-lo da custódia. Some-se a isto uma quarentena imediatamente após ele ter
sido possuído e quase cinco anos de sua vida foram embora pelo ralo, enquanto
facções rivais do futuro tratavam-no como um peão em um tipo de jogo de xadrez
através do tempo. Só depois de tomar a injeção é que começou a finalmente se
sentir no controle de seu próprio destino.
Talvez.

— É uma coisa depois da outra — queixou-se. — Eu não sei se posso


aguentar muito mais.

— No final, vai ter valido a pena — prometeu Cassie. Seus dedos macios se
enroscaram nos cabelos dele. — Tudo por que você passou, todos os seus testes e
sacrifícios, foi tudo para servir a um propósito maior. Trazer o Paraíso para a Terra
e acabar com o sofrimento da humanidade para sempre.

Kyle queria acreditar naquilo. Ele tinha que acreditar naquilo.

— Você acha mesmo?

— Confie em mim — um sorriso enigmático surgiu em seus lábios. —


Alguma vez eu te induzi ao erro?

Acho que não, ele pensou. Levantando sua cabeça do ombro dela, ele
contemplou a enigmática mulher ao seu lado. Não era a primeira vez que Kyle se
perguntava de onde seu inconsciente a havia evocado. Por que “Cassie Dunleavy”?
De onde viera aquele nome? Alguma memória de infância que tinha se alojado no
fundo de sua mente até que a promicina a ressuscitou? Talvez um personagem de
algum livro de estórias ou uma garota que ele conhecera no jardim de infância? De
acordo com a psicologia Jungiana, que ele estudara brevemente na universidade,
antes de deixá-la para seguir o Movimento, todos têm um lado feminino chamado
anima. Seria Cassie uma manifestação psíquica de seu anima, ou alguma coisa do
tipo?

Olhe para mim, ele pensou. Eu nem sei como minha habilidade funciona.
Como isto é patético!

— Eu não sei — ele olhava irritado para o chão. — Talvez meu pai e Shawn
tenham razão. Quem quer outro cinquenta/cinquenta? — confuso, ele passou os
dedos por entre os cabelos. Sentia-se como se estivesse no fim da linha. — Eu me
sinto tão confuso, às vezes.

— Coitadinho — Cassie graciosamente levantou-se do sofá. Ela esticou o


braço e levantou o queixo dele. Olhos verdes extraordinários o fitaram com ternura.
— Você tem passado uns maus bocados, não é? Mas eu sei exatamente do que
você precisa — ela abriu o fecho das costas de seu vestido e a túnica violeta, da
última moda, escorregou para o chão. Para surpresa dele, não havia nada por
baixo. O pingente de turquesa brilhava intensamente sobre sua pele macia e
rosada. — Foi um longo dia. Vamos para a cama.

Seus olhos devoraram as formas desnudas dela, e ele sentiu seu corpo
respondendo, exatamente como sempre o fizera. Parte dele sentia que havia algo
errado, talvez até insalubre, neste novo aspecto do relacionamento deles, mas ele
não conseguia resistir. Ele havia se sentido muito só depois que Isabelle morreu, e
Cassie estava lá para confortá-lo, noite após noite.

Ela não é real, ele lembrava a si mesmo. Ela é o meu lado feminino.

Mas ele podia vê-la, sentir seu cheiro e tocá-la, mesmo que ninguém mais
pudesse.
— Venha para mim, amor — ela sussurrou, com voz rouca. — Deixe que
Cassie faça tudo melhorar.

— Eu já perdi tanto — ele se lamentou.

— Mas você ainda tem a mim, Kyle. Para sempre.

Pegando a mão dela, ele a deixou guiá-lo para o quarto.

***********************

— Você está tornando tudo mais complicado para si próprio — disse Dennis
Ryland.

Richard era prisioneiro mais uma vez, mas sua nova moradia fazia a antiga
cela na Virgina parecer uma suíte presidencial de um hotel de luxo. Uma pálida
pintura verde havia falhado em isolar as frias paredes de pedra. Ao invés de um
beliche, havia apenas um banco duro de concreto, sem travesseiros ou lençóis.
Tinha de se estar totalmente exausto para se conseguir dormir naquilo. Não que
Ryland e seus cúmplices tenham dado algum momento de paz a Richard desde que
ele acordara ali, fosse lá onde fosse aquilo. Acorrentado a uma cadeira no meio da
cela, seus pulsos algemados para trás, Richard não fazia ideia de onde estava
preso. Um macacão laranja havia substituído seu uniforme militar. Seus pés
descalços repousavam sobre o cimento frio. A umidade o gelava até os ossos. Ele
se perguntava se algum dia iria se sentir aquecido novamente.

— Eu não vou te contar nada — ele disse, já cansado. Ryland o vinha


interrogando por horas a fio, sem interrupção. Ele estava faminto, sedento e
exausto. Sua roupa de prisioneiro estava ensopada de suor. Seu estômago roncava.
Sua boca parecia seca como areia. Seu braço enfaixado doía onde o cachorro o
havia mordido; ele havia tomado antibióticos e uma antitetânica, mas nenhum
analgésico. Ele poderia matar alguém para conseguir um gole de água.

— Que lástima — disse Ryland. Seu traje elegante fazia-o parecer um


executivo, não um torturador. Ele tomou um gole comprido de uma garrafa de água
mineral importada. – Sua filha cooperava mais, pelo menos por um tempo —
Ryland conseguiu por algum tempo fazer Isabelle conspirar contra os 4400, alguns
anos antes. — Nós tivemos uma boa relação de trabalho, antes de ela se rebelar.

Richard olhou para ele, furioso. Como aquele bastardo caçador de bruxas
se atrevia a difamar sua filha?

— Vá pro inferno. — Se sua telecinese ainda funcionasse, ele teria


arrancado a garrafa de água das unhas feitas de Ryland. Mas ele estava sob o
efeito do inibidor novamente. — Por que eu deveria falar logo com você?

Ele havia conhecido Ryland alguns anos antes, quando colocou todos os
4400 em quarentena. Na época, ele parecia apenas mais um burocrata paranóico
do governo. Então Ryland tentou envenenar todos os 4400 com uma versão
anterior do inibidor, planejou e montou um ataque a um esconderijo de 4400 que
estava sob a responsabilidade de Richard. E corrompeu Isabelle. Dizer que havia
uma animosidade entre eles era pouco.
— Para impedir Jordan Collier de matar milhões de pessoas — a voz de
Ryland era enganadoramente calma e razoável. — Tudo o que queremos é que
você confesse que Collier está desenvolvendo uma versão aérea de promicina.

Richard suspirou.

— Eu não sei nada sobre isso — ele disse, pelo que parecia ser a centésima
vez. — Eu nem sei se isso é verdade.

— Que diferença isso faz? – Ryland perguntou, cínico. — Nós só precisamos


que você confirme para a câmera. — Câmeras de segurança, montadas para gravar
o interrogatório, estavam atualmente desligadas. — É a justificativa de que
precisamos para lançar um ataque preventivo à Terra Prometida.

— Esquece — Richard encarava desafiadoramente o outro homem. — Eu


não vou lhes dar falsas desculpas para uma invasão.

— Quem disse que são falsas? Collier? — Ryland sacudiu sua cabeça diante
da ingenuidade de Richard. — Você ainda não aprendeu que não deve acreditar em
uma só palavra do que aquele homem diz? — ele ajoelhou-se diante do prisioneiro
sentado, para que ficassem cara a cara. — Lembra-se daquela surra na Virginia,
aqueles guardas que iam arrancar a sua cabeça?

Richard dificilmente se esqueceria daquilo, mas não disse nada.

— Collier armou aquilo — declarou Ryland. — Era tudo um truque para


assegurar sua lealdade, através de um plano para salvar sua vida.

A acusação pegou Richard de surpresa.

— Você está mentindo — ele disse, incerto. A dúvida havia drenado a


convicção de suas palavras. — Não é verdade.

— Foi muito conveniente o modo como o esquadrão de aberrações de


Collier apareceu bem na hora de tirar você do fogo, não acha? — Ryland riu da
coincidência. – Você nunca pensou sobre isso?

— Maia Skouris — insistiu Richard. — Ela avisou Collier sobre o que iria
acontecer…

— Foi o que ele te disse? — Ryland deu de ombros. — Talvez tenha sido.
Ou talvez aquela pirralha repugnante não tenha visto a estória toda — ele se
levantou e olhou tristemente para baixo. Seu rosto astuto projetava uma
evidentemente falsa máscara de simpatia. — Você não deve nada a Collier, Richard.
Por que aguentar esse sofrimento para protegê-lo?

Richard se recusava a ser manipulado.

— Isto não é por Collier. É para não te dar um pretexto para declarar
guerra contra uma cidade americana — ele olhou por detrás de Ryland e seus
lacaios para o sólido portão de aço que bloqueava sua visão do resto da prisão. Não
havia nem barras para se olhar através. — Onde estão as pessoas que foram
apanhadas comigo? O que vocês fizeram com eles?

Ele não havia visto Evee ou Yul desde que acordara no cativeiro.
— Eles estão desfrutando de recepções semelhantes, nas mãos de meus
subordinados — Ryland deu um sorriso forçado para Richard. — Você deveria se
sentir privilegiado por ter minha atenção pessoal.

Richard duvidava de que algum dos seus comparsas fosse ceder. Se


duvidasse, ambos eram mais devotados a Collier e sua causa do que ele próprio
era. Eles eram seguidores fiéis. — O que me faz tão especial?

— Não se subestime — respondeu Ryland. — Você é muito mais importante


do que seus cúmplices. Um veterano condecorado, ex-vice-diretor do Centro 4400,
e pai da infame Isabelle Tyler… Seu testemunho tem grande peso. Posso
praticamente ver as manchetes agora.

Richard também podia. Ele cuspiria em Ryland, se sua boca não estivesse
tão seca. — Que pena que não haverá confissão.

— Eu não estaria tão certo disso — Ryland virou-se para um de seus


aliados, uma adolescente anoréxica de cabelos brancos espetados, pele pálida, e
uma expressão suave e neutra. Olhos azuis gélidos observavam Richard com frieza
clínica. Uma pesada jaqueta parecia desconfortavelmente quente, mesmo para a
cela úmida. Luvas volumosas escondiam suas mãos. Sua respiração se condensava
no ar. Ryland se afastou para deixar a garota passar. — Astrid, eu acho que você
precisa aplicar um pouco mais de persuasão.

O medo contorceu o rosto de Richard. Ele já havia estado várias vezes,


anteriormente, sob os poderes da menina. Ryland escarnecia em antecipação.
Apesar de sua profunda antipatia pelos 4400, o ex-figurão da NTAC não descartava
o uso de técnicas aprimoradas para levar adiante sua cruzada. Richard forçou
inutilmente seus grilhões.

— Não, de novo não…

Astrid parecia surda aos apelos dele. Ela se inclinou para encarar Richard
de perto. Respirou fundo, enchendo seus pulmões com o ar abafado da cela.
Richard se preparou para um martírio bastante familiar, que sobreveio a ele com
velocidade impiedosa.

Ela soprou no rosto de Richard, seu hálito como um vento ártico. A friagem
correu por todo o corpo de Richard, revestindo suas roupas e sua pele com uma
fina e gélida camada branca. Ele tremia descontroladamente, na iminência de uma
hipotermia. Seus dentes batiam como castanholas, não importando o quanto ele se
esforçasse para travar suas mandíbulas. Seus lábios se tornaram azuis. Seu hálito
se condensava no ar. Uma queimadura de gelo ameaçava a ponta de seu nariz.

Ele não havia sentido tanto frio desde a última vez em que ela o torturara.

Ryland levantou a mão.

— Já chega.

Astrid sugou a amarga tormenta para dentro de seus pulmões. Ela se


afastou da cadeira em silêncio. O gelo se retraiu instantaneamente, evaporando
pelo ar. Em segundos, Richard não estava mais congelando, mas continuava
tremendo. Arrepios cobriam sua pele. Cada sessão com Astrid o deixava mais
gelado do que a anterior. Era impossível se aquecer de novo.
Ryland não lhe deu tempo para se recuperar.

— Agora, então — ele disse rispidamente, abandonando qualquer


fingimento de simpatia. — Me conte como Jordan Collier pretende transformar a
promicina em arma.

*********************

Maia acordou tremendo. Aconchegando-se entre os lençóis, ela se abraçou


para se aquecer. O sonho horroroso colara-se a ela como uma fina camada de gelo.

Ela pegou seu celular.

Jordan precisava saber disso, sem demora!


TREZE

Kyle fechou e trancou a porta de seu escritório.

Sentindo-se culpado, ele arrastou-se até sua mesa e sentou-se em frente


ao computador. Eram sete da manhã, e a maioria da Fundação Collier ainda estava
dormindo, mas, mesmo assim, ele não queria que alguém entrasse enquanto
pesquisava sobre Bernard Grayson, só para tirar a pulga de trás da orelha. O
próprio escritório de Jordan era apenas duas salas ao lado. Kyle ficara aliviado ao
ver que Jordan ainda não estava acordado, embora ele ficasse dizendo a si mesmo
que não estava fazendo nada de errado.

Só preciso de mais um pouco de informação, pensou. Antes que eu possa


tomar qualquer tipo de decisão.

A Fundação mantinha um banco de dados secreto de cada positivo no


Movimento. Equipes de gênios de computadores protegiam a rede interna contra
hackers do governo e outras ameaças à segurança. Somente os mais altos escalões
do Movimento tinham acesso completo ao banco de dados. Kyle era um membro
dessa elite. Para ver os arquivos, tudo o que ele tinha que fazer era digitar sua
senha.

SHAMAN, digitou ele.

O banco de dados apareceu na tela.

— Não faça isso, Kyle — disse Cassie.

Ele nem ao menos pulou quando ela apareceu repentinamente às suas


costas. Nessa altura, já se acostumara com ela se materializando do nada. Ele
suspirou, resignado. Nenhuma porta ou tranca podia manter Cassie longe quando
ela tinha algo a dizer.

— Só quero dar uma olhada — ele disse. — Isso não quer dizer que vou
informar algo à NTAC ou ao meu pai. — Ele manteve o olhar na tela à sua frente. —
De qualquer modo, não há o que contar mesmo. Só preciso ter certeza disso.

Ela se curvou sobre o ombro dele.

— Eu sou sua habilidade, Kyle. Sou eu quem te conta o que precisa saber.

— Ah, é? — Ele girou na cadeira para encará-la. — Então me fale sobre


esse Grayson. E onde está o corpo de Danny.

Ela balançou a cabeça.

— Não é assim que funciona. É sobre o que você precisa saber para
cumprir seu destino. Não o que você quer saber.

— Talvez você não saiba tudo o que eu preciso.

Ela sentou-se em seu colo e enrolou os braços em volta de seu pescoço.


— Não é isso que pensava ontem a noite. — Ela vestia um vestido baby-
doll por cima de uma calça legging violeta. Um sorriso malicioso surgiu em seu
rosto. — Então, a porta está trancada, certo?

Ele percebeu o que ela estava tentando fazer.

— Sinto muito, não vai funcionar desta vez.

Ele a tirou do seu colo e voltou-se para o computador. Seus dedos tocaram
o teclado, digitando GRAYSON, BERNARD no banco de dados. O agente funerário
fugitivo estava listado como positivo à promicina, apoiador do Movimento, tendo
aparentemente visto a luz depois do Grande Salto Adiante. Seu arquivo, no
entanto, estava surpreendentemente vazio, listando apenas a sua idade,
informações para contatos, número de Segurança Social, e alguns outros detalhes
irrelevantes. Nem mesmo sua habilidade 4400 estava listada.

— Mas que droga é essa?

— Esquece isso — insistiu Cassie. Ela caminhava de um lado para o outro


atrás dele. — Não percebe que seu pai está te usando?

— Talvez — respondeu ele. — Mas se não temos o que esconder, qual o


problema em fuçar um pouquinho?

Examinando o arquivo mais cautelosamente, ele notou que Grayson estava


listado como “financiador beneficente”. Ele clicou numa barra onde estava escrito
CONTRIBUIÇÕES e descobriu que o diretor desaparecido da funerária doara mais
de $150, 000 para algo chamado “Comitê de Incentivo Global”.

O quê? O nome não significava nada para ele. Pensei que soubesse tudo
sobre as iniciativas de Jordan.

Ele olhou para cima para Cassie.

— Você sabe algo sobre isso?

Ela o lançou um olhar de desprezo.

— Você se importa com o que eu penso? — Ela jogou-se em um sofá num


canto. Cruzou os braços desafiadoramente sobre o peito. — Não espere que eu faça
o trabalhinho sujo do seu pai.

Kyle percebeu que isso não terminaria tão cedo. Nada como uma mulher
furiosa…

— Certo — disse ele. — Eu mesmo cuido disso.

Meia hora de pesquisas no computador da Fundação levantou pequenas


informações frustrantes sobre o Comitê de Incentivo Global. Kyle nunca dera muita
atenção ás finanças do Movimento, mas agora ele se via fuçando em orçamentos
tentando descobrir para o que a doação extremamente generosa de Bernard
Grayson fora usada. Siga o dinheiro, disse a si mesmo, assim como dizem nos
filmes. Ele franziu os olhos quando um borrão atordoante de débitos e créditos
rolou pela tela. Jordan gostava de dizer que o dinheiro logo seria obsoleto, que
milagres seriam a moeda do bravo mundo que ele estava criando, mas Kyle estava
surpreso em ver o quanto de dinheiro era requerido para manter a Terra Prometida
funcionando nesse meio tempo.

Finalmente, bem quando estava pensando em desistir, encontrou um


depósito de quase um milhão de dólares em uma conta identificada somente como
“Fundo Operante CIG”. CIG como e Comitê de Incentivo Global?

Tem que ser, ele pensou.

Mas quando ele tentou abrir mais detalhes sobre o fundo, o computador
apitou em protesto. Uma caixa de mensagem cinza sinistra apareceu na tela:

“ACESSO NEGADO”

— Está de brincadeira! — Ele era a mão direita de Collier, nunca fora


bloqueado antes. Impacientemente, digitou sua senha novamente.

“ACESSO NEGADO”

— Merda! — Ele deu um soco na palma da mão. Isso só estava ficando


mais frustrante e preocupante no momento. O que tem de tão secreto nesse
comitê?

— Com problemas, amorzinho? — Cassie esnobou do outro lado da sala.


Ela se divertia rabiscando num bloco de folhas. Quando Kyle a encontrara pela
primeira vez, ela se mostrara uma estudante de arte tagarela antes de revelar sua
verdadeira natureza. — Talvez devesse deixar isso para lá.

— Só porque você quer. — Ele iria até o fim se precisasse, só para provar
que as acusações de seu pai contra Jordan eram absurdas. Uma ideia lhe ocorreu.
Se o seu computador não conseguia descobrir tudo, talvez ele devesse tentar uma
aproximação mais humana.

Ele pegou o telefone e discou uma extensão familiar. Alerta com sua ação,
Cassie abaixou o bloco e o olhou suspeitosamente. Seus olhos se estreitaram.

— O que está fazendo, Kyle?

Você é a guia espiritual, ele pensou. Descubra.

— Oi, Irene — disse ele, assim que a pessoa do outro lado da linha atendeu
ao telefone. — É o Kyle. Tem um minuto?

Irene Henkel era uma dos 4400 originais. Uma vez fora nata dos anos
1960, que dizia ter dançado para Jim Morrison e Jimi Hendrix. Ela voltara do futuro
com uma memória fotográfica com relação a dólares e centavos. Irene agora era o
cérebro do departamento de contas da Fundação. Ela era a pessoa a ligar se você
tivesse um problema com um alto reembolso. Kyle esperava que isso se aplicasse
ao Comitê de Incentivo Global também.
— Para você, amorzinho, a qualquer momento. — Seu sotaque arrastado
entregava suas raízes da Linha Mason-Dixon11. — Como posso ajudá-lo?

— Não é muita coisa. — Ele fez o melhor para manter seu tom calmo e
gentil, enquanto Cassie o fuzilava com os olhos do sofá. — O Jordan pediu para que
eu revisasse os registros, e receio que esqueci para quê foi usado um desembolso.
Talvez você pudesse refrescar minha memória.

— Você? Revisando os registros? — Sua expressão incrédula era audível. —


Minha Nossa, o que aquele homem está pensando? Ele não sabe você não
consegue nem ao menos preencher um pedido de dinheiro corretamente?

— Me deve ume bebida, pelo menos, e eu vou cobrar qualquer dia desses.
Embora ainda não tenha encontrado nada tão bom como aquele vinho de dente-de-
leão que tomei em Woodstock12, antes daquela bola de luz me levar. — Um tom
melancólico sugeria que a abdução repentina ainda cutucava os dias passados de
Força das Flores e colares Love beads13 — Não suma, queridinho.

— De jeito nenhum — prometeu ele. Quando desligou o telefone, sentiu


uma pontada de culpa por se aproveitar da confiança e cortesia de Irene, mas ao
menos ela se provara mais cooperativa do que seu computador recalcitrante. Ele
estava finalmente chegando a algum lugar.

Ainda assim, um centro de plasma? Um daqueles lugares onde bêbados e


estudantes de faculdade vendiam o sangue para uma graninha extra? Kyle se
lembrava de ter visto um desses estabelecimentos no centro da cidade e na U
District14, mas isso fora antes do Grande Passo Adiante. Desde que acontecera a
praga, o Ministério da Saúde banira cidadãos de Seattle de doarem sangue ou
plasma por medo de contaminação de promicina. A Terra Prometida era o novo
Haiti. Até onde ele sabia, todos os bancos de sangue e centros de plasma da cidade
haviam parado de funcionar. Então por que esse Comitê de Incentivo Global
quereria comprar uma dessas propriedades? E o que, afinal de contas, Bernard
Grayson tinha a ver com aquilo? Algo não cheira bem aqui, ele pensou. Por que se
esforçar tanto para encobrir uma transação de bens rotineira?

Um agente funerário renegado. Um centro de plasma fechado. O corpo de


Danny…

11
N. do T.: Uma linha que divide o Norte e o Sul dos EUA, formando uma demarcação nas fronteiras de
Pennsylvania, Maryland, Delaware e Virgínia do Norte.

12
O Woodstock Music & Art Fair foi um festival de música anunciado como “Uma Exposição Aquariana:
Dias de Paz & Música”, na cidade estado de Nova York. Foi realizado entre os dias 15 de agosto e 18 de
agosto de 1969.

13
N. do T.: Flower Power (Força das Flores) foi um slogan usado pelos hippies dos anos 60 até o começo
dos anos 70 como um símbolo da ideologia da não-violência e de repúdio à Guerra do Vietnã. Love
beads são colares tradicionais de hippies, geralmente feitos à mão.

14
N. do T.: O University District (comumente conhecido como U District) é um bairro em Seattle, assim
chamado porque o campus principal da Universidade de Washingtom (UW) está localizado ali.
Kyle tentou juntar as peças, mas tudo o que conseguiu foi uma bagunça.
Ele olhou friamente para o telefone na sua mão. Devo ligar para o meu pai? Avisá-
lo do que descobri até agora?

Ele ainda estava bravo com seu pai por tê-lo abordado no jantar, mas e se
esse sujeito Grayson fosse mesmo um pilantra? E o quanto Jordan sabia sobre esse
Comitê de Incentivo Global? Por que era tão difícil descobrir para que isso servia?
Por que era tão na surdina?

Eu quero mesmo saber?

Ele afundou-se na cadeira, seus braços pendurados na direção do chão. O


celular parecia pesar uma tonelada.

— Me escute — disse Cassie. Seus dedos quentes se entrelaçaram em sua


mão, escondendo o telefone em seu aperto firme. — Lembra-se de como você ficou
bravo com o Shawn quando ele se virou contra o Jordan? Você não quer fazer o
mesmo erro. A NTAC é o inimigo. Não pode contar nada disso a eles.

— Mas o meu pai… — A indecisão torturava Kyle. — Ele é uma cara do bem Cassie.
Só quer fazer a coisa certa.

— Sei que é. — Ela adotou um tom mais conciliatório. — Mas ele não vê o mais
importante, não como nós vemos. Ele ainda está pensando como um agente da
NTAC, não como um visionário. Ou um shaman. — Ela apertou a mão dele. —
Confie em mim, Kyle. Lembre-se quão longe já fomos juntos.

Ela tem razão, ele admitiu. Cassie nunca se enganara antes. Ela o contara como
acordar Shawn de um coma, o guiara até as profecias da Luz Branca, o convencera
a se juntar à cruzada de Jordan, até mesmo trouxera Isabelle à sua vida, mesmo
que brevemente. E se ela também estivesse certa quanto a isso?

Ele não tinha nada a não ser perguntas. Ela tinha as respostas.

— Tem que ficar de boca fechada, Kyle.

— Não vou contar a ele se você não contar. — Ele secou as sobrancelhas, feliz que
Irene não percebesse como ele estava zangado. Sues dedos batiam nervosamente
contra a mesa. — De qualquer modo, sobre esse gasto…

— Vá em frente — ela o encorajou. — Me fale os detalhes.

Cassie caminhou pela sala até ficar diante de seus olhos. Inflamáveis olhos
esmeraldas sugeriam que provavelmente ele dormiria sozinho essa noite. Parecia
que ela queria arrancar o telefone de sua mão e arremessá-lo contra a parede,
mas, como não era real, isso não era uma opção.

— Está cometendo um grande erro, Kyle.

Ele piscou para a tela a sua frente.


— Certo, é um pagamento de nove mil dólares, mais alteração, efetuado
em dez de dezembro. — Ele respirou fundo antes de fingir que sabia exatamente o
que estava falando. — Foi depositado para o Comitê de Incentivo Global.

Irene nem precisou checar seus registros.

— Ah, sim. Esse aí. — Para seu alívio, sua menção sobre o misterioso
comitê pareceu não levantar nenhuma barreira. Ela parecia ter presumido que ele
estava familiarizado com a operação. — Foi um investimento para um terreno no
centro da cidade. Um centro de plasma abandonado. Acho que fica perto da antiga
estação Greyhound.

— Verdade! — mentiu ele. — Agora me lembro. — Ele decidiu desligar o


telefone antes que acabasse se entregando. — Valeu mesmo, Irene. Te devo uma.
QUATORZE

O apartamento de Marco era bem parecido com o que Meghan imaginara.


Pôsteres de filmes cultuados de ficção científica e de monstros estavam pregados
nas paredes do sobrado do antigo imóvel industrial. Um curto lance de escadas
descia para um aglomerado de mesas de trabalho e cabines de gravação. Ela
correu os olhos pelos títulos estranhos e pelas cores fantasmagóricas dos pôsteres.
Plano Nove do Espaço Sideral. A Coisa que não Deveria Morrer. Feixes de raio laser
saíam dos olhos multiarticulados dos robôs gigantes. O monstro Frankenstein
lutando contra um dinossauro.

Cada qual com seu gosto, ela pensou. Ela preferia filmes estrangeiros.

Marco pegou o casaco dela quando entraram no apartamento.

— Tá legal — ela reclamou, impacientemente. Havia pilhas de relatórios


orçamentários e papéis de avaliações de crise esperando por ela no quartel-general
da NTAC. Normalmente ela almoçaria no próprio gabinete, mas Marco havia
insistido em que, ao invés disso, ela caminhasse até a casa dele. — O que é tão
importante que nós não podemos discutir na Sala de Teorias ou no meu gabinete?

— Você vai ver — o tom e a expressão séria dele deixaram claro que não
havia chamado ela ali para jogar Playstation. — Por aqui – disse ele, guiando-a
pelas escadas para o piso principal do apartamento. Não havia paredes separando o
quarto do escritório e da sala de estar. Grandes tapetes se esparramavam pelo piso
de cerâmica esverdeada. Globos dependurados iluminavam o apartamento.
Cortinas cobriam as janelas. — Os outros já estão aqui.

Outros?

Ela ficou surpresa ao encontrar Maia Skouris, Tess Doerner e ambos os Jed
Garritys esperando na sala de estar. Os quatro visitantes pareciam tensos e
desconfortáveis. Gravatas azul e vermelha diferenciavam os dois Garritys, que
eram completamente idênticos. O agente Garrity, que já fora um homem só,
duplicara a si próprio após sobreviver ao cinquenta/cinquenta. Agora, duas versões
do mesmo homem caucasiano de cabelos escuros estavam sentadas em pontas
opostas de um sofá de couro preto. Ambos ostentavam o mesmo e habitual
semblante entediado. Nem mesmo os cientistas mais experientes da NTAC tinham
sido capazes de determinar qual deles era o original e qual era a cópia.

Não era comum ver os dois Garritys no mesmo lugar ou ao mesmo tempo.
De um modo geral, eles tendiam a evitar um ao outro, trabalhando em turnos
diferentes, para poderem dividir o mesmo apartamento e a mesma baia no
trabalho, dos quais nenhum deles parecia querer abrir mão em favor do outro. As
gravatas diferentes eram uma concessão para não confundir os colegas.

— Olá, chefe. — Jed Vermelho a cumprimentou, mal-humorado.

— Que bom que você pôde vir — acrescentou Jed Azul.

Ainda mais estarrecedoras eram as presenças de Tess Doerner e Maia.


Meghan nunca havia encontrado a primeira pessoalmente, mas conhecia a
reputação da controladora de mentes. Tentou não demonstrar sua ansiedade, mas
mesmo assim um frio percorreu sua espinha. A jovem de cabelos escuros
espreitava ameaçadoramente de seu canto, observando os outros com uma
expressão de cautela. Em tese, ela não era mais insana, mas sua lealdade
permanecia sob suspeita; em várias ocasiões, ela e Kevin Burkhoff estiveram
associados tanto com o Centro dos 4400 quanto com o Movimento de Collier. Teria
Tess obrigado Marco a marcar aquela reunião não-oficial?

E o que Maia estava fazendo ali? Ela não deveria estar na escola? Meghan
se colocou protetoramente entre a adolescente e Tess.

— Sua mãe sabe que você está aqui? — perguntou.

— Na verdade, não — respondeu a garota, acanhada. — Você não vai


contar a ela, vai?

Pelo menos ela não parecia estar sob o controle de Tess.

— Depende. — Meghan voltou-se para o anfitrião. – Desembuche, Marco.


Por que você nos convidou para vir aqui?

— Não foi ele – uma voz áspera entrou em cena. Jordan Collier adentrou a
sala através de uma porta dupla do tipo industrial. — Fui eu.

Os olhos de Meghan se arregalaram. Xingou a si própria por não ter trazido


uma arma, mesmo ela sendo apenas uma servidora administrativa, não uma
agente de campo. Ela olhou de relance para os Garritys para se assegurar de que
teria cobertura, caso precisasse. Os onipresentes guarda-costas de Collier não
estavam à vista, mas Meghan duvidava de que eles estivessem muito longe. Talvez
até na sala ao lado.

— Jordan me pediu que arranjasse esta reunião — explicou Marco. — Ele


apresentou um caso irrecusável.

— Foi mesmo? – Meghan perguntou, amargamente.

Houvera um tempo, apenas dois meses atrás, em que capturar Collier tinha
sido a prioridade número um da NTAC. Mas isto foi antes de ele tornar-se o
comandante de Seattle de fato.

Prendê-lo não era mais uma opção válida.

— Por favor, sente-se, Srta. Doyle — Collier disse, indicando uma poltrona
de veludo em frente ao sofá. Uma toalha de praia do Darth Vader estava estendida
sobre o encosto dela. O chão pedia um aspirador. — Não há motivo para se
alarmar. Eu só quero conversar, extraoficialmente.

Meghan decidiu fazer o jogo dele. Ela sentou-se.

— Conversar sobre o quê?

— Francamente, eu preciso da sua ajuda — ele encarou a eclética


assistência de 4400 e funcionários da NTAC. Seu austero sobretudo comprido e
preto lhe conferia o ar de um pastor falando para uma congregação desconfiada. —
Vocês estão sabendo que Richard Tyler foi capturado novamente?
O quê? A notícia inesperada veio como um choque tão grande que não
dava para manter a expressão impassível. Tyler tinha estado no topo da lista dos
mais procurados pela Interpol desde que testemunhas oculares haviam-no ligado
ao assassinato do Cardeal Calábria, em Roma. Se ele havia sido capturado pelas
autoridades, ela deveria ter sido avisada.

— Não — ela admitiu. — Por quem?

— Dennis Ryland. Haspelcorp. Possivelmente em conluio com os Marcados


— o desprezo transparecia na voz de Collier. — Eu tenho motivos para acreditar
que ele está sendo mantido agora em uma prisão secreta, comandada pela
Haspelcorp. Sem dúvida, com a aprovação tácita do governo federal.

— Interessante — disse Meghan, cautelosamente. Não era segredo que os


federais tinham contratado a Haspelcorp para lidar com o caso dos 4400. A NTAC e
a companhia já haviam batido cabeça sobre questões de segurança nacional.
Dennis Ryland tinha ocupado o cargo de Meghan antes de se mudar para o setor
privado. — Mas, mesmo que seja verdade, por que nós, aqui? Qual é o objetivo
desta reunião?

— É simples — ele sorriu ironicamente. – Vocês têm que ajudá-lo a escapar


da prisão.

O queixo de Meghan caiu.

— Como é que é? – ela estava embasbacada com a audácia do homem.


Mesmo para um pretenso messias, aquilo era demais. — Você deve estar
brincando!

— Estou falando sério – ele caminhou até Maia e pousou a mão no ombro
da menina. — Uma fonte confiável, que por acaso é a nossa extraordinária Maia
Skouris, me informou que Ryland está tentando forçar Tyler a prestar o depoimento
falso de que eu estou transformando a promicina em um tipo de arma de
destruição em massa. Esta é exatamente a desculpa de que os meus inimigos,
incluindo os Marcados, precisam para iniciar um ataque à Terra Prometida — seu
sorriso foi desaparecendo, conforme ele pintava o cenário do que aquilo poderia
acarretar. — Uma invasão armada, ataques aéreos, talvez até armas nucleares.
Nós, é claro, seremos obrigados a retaliar. A perda potencial de vidas poderá ser
verdadeiramente grande — ele passou o olhar pelo grupo. — Nenhum de nós quer
isto.

Meu Deus, pensou Meghan, apavorada com o que acabara de ouvir. Ela
gostaria de poder descartar a previsão de Collier, como se fosse mero terrorismo,
mas, infelizmente, aquele não era, nem de longe, o caso. Como diretora da NTAC,
ela tinha sido alertada de que cenários similares já haviam sido cogitados, com
graus bastante variados de entusiasmo, nos corredores do poder. Collier tinha
traçado uma linha na areia, quando demarcara a Terra Prometida. O
cinquenta/cinquenta tinha agravado a questão, deixando-a à beira de um colapso.
Se houvessem evidências tangíveis – como, por exemplo, uma confissão, de parte
de algum terrorista 4400 conhecido, gravada em vídeo -, de que uma epidemia
ainda maior estava para acontecer, tudo iria se modificar.

— Isto é verdade? — ela perguntou a Maia.

A garota concordou seriamente com a cabeça. Ela falou com uma


gravidade incomum à sua idade.
— Eu vi, Srta. Doyle. Eles vão forçá-lo a mentir sobre Jordan.

Meghan sabia que não deveria desprezar as visões de Maia. Mesmo assim,
ela ainda não estava pronta para embarcar na canoa de Collier.

— Se é tão importante, por que você mesmo não resgata Tyler? Você o
ajudou a escapar da primeira vez.

— Acho que você está trabalhando com conceitos equivocados — ele


respondeu, rechaçando a acusação dela. — Eu não tive nada a ver com qualquer
das atividades recentes de Richard. Eu tenho apenas interesses menores nesta
situação crítica.

— A-ham, tá legal — os Garritys debocharam, em uníssono.

Meghan também não acreditava nele.

Jordan ignorou o ceticismo deles.

— De qualquer forma, parece que os comparsas de Richard ou estão


mortos ou foram capturados. E eu não tenho recursos para montar imediatamente
a minha própria missão de resgate. Além disso, também suspeito de que os
agentes de Ryland estão vigiando a mim e ao meu povo bem de perto, no
momento, eliminando o elemento surpresa. Finalmente, e talvez o mais importante
— ele admitiu —, eu não faço ideia de onde eles o prenderam.

Acho que há limites para as visões de Maia, pensou Meghan.

— E você acha que nós podemos achá-lo para você?

— Eu tenho uma fé considerável nos seus recursos 2014x respondeu


Collier. – Não se esqueça de que nós fomos bem sucedidos trabalhando juntos
antes. Como na vez em que estávamos todos presos naquele jogo de ilusões.

Meghan lembrava-se do incidente. P.J. Devine, um p-positivo que era


membro da equipe da Sala de Teorias de Marco, tinha tentado ligar as fronteiras
entre a NTAC e o Movimento de Collier, prendendo pessoas-chave de ambos os
lados em uma construção física que imitava o quartel-general da NTAC. Meghan
jamais iria se esquecer da experiência, considerando que ela chegara a “morrer”
naquela realidade virtual. Graças a Deus, Collier e Tom tinham conseguido
descobrir como levar todos de volta para o mundo real!

Falando em Tom, ela soube tarde demais que ele e Diana estavam
desaparecidos desde sua paradinha para um café. Até onde ela sabia, eles tinham
estado entrevistando os parentes e associados de Bernard Grayson, mas parecia
estranho que eles não houvessem sido incluídos naquele grupo. Os dois tinham
mais experiência com Tyler do que qualquer um naquela sala. Ela lançou um olhar
inquiridor para Marco.

— Onde estão Baldwin e Skouris?

— Só positivos — disse Collier —, por minha insistência. Sem querer


ofender seus distintos colegas, mas isto é algo com que aqueles de nós, que o
destino abençoou com habilidades, lidamos melhor — de pé, atrás do sofá, ele
sorria com bondade para Maia. — E, em respeito à jovem Maia, eu não quero
colocar em risco a vida ou a carreira de sua mãe.

— Ao contrário das de todos nós? — resmungou Jed Azul.

— Vocês todos são positivos – respondeu Collier, carrancudo, como se


meio aborrecido por eles ainda não terem passado para o seu lado. — Vocês têm
mais a perder do que ninguém, se Ryland e os Marcados provocarem uma guerra
generalizada entre positivos e negativos. Vocês deveriam estar ansiosos por aceitar
esta missão vital.

— Desculpe-nos se não nos empolgamos com a perspectiva de cometer


traição — respondeu Meghan, secamente. Ela imaginava quanto Collier sabia
exatamente sobre as respectivas habilidades deles, incluindo a sua própria; aquilo
estava longe do conhecimento público. Embora fosse verdade que o fato de haver
agora dois Garritys era difícil de se esconder, Marco e ela praticamente não tinham
divulgado suas novas habilidades. Será que ele faz alguma idéia do que nós
realmente podemos fazer?

Pensando bem, ele havia, de alguma forma, descoberto a habilidade de


April. Meghan lembrava-se da preocupação de Tom sobre haver um espião na
NTAC. Seria possível que um dos outros positivos da NTAC estivesse passando
informações para Collier? Ela não queria achar que Marco ou os Garritys pudessem
ser os informantes, mas era possível que o fato de terem se tornado p-positivos
talvez mudasse seu modo de ver o Movimento. Enquanto ela avaliava furtivamente
seus colegas, reparou que outro positivo estava claramente ausente.

— Não estou vendo Abigail Hunnicut aqui — observou.

— Estava tudo por minha conta — confessou Marco. – A habilidade dela não
serviria exatamente para uma missão de resgate, então por que envolvê-la? — ele
corou levemente; Meghan suspeitava de que ele tivesse uma quedinha pela loira
genial. — Ela ficará melhor sem saber de nada disto.

Isto é provavelmente verdade, Meghan considerou. A habilidade de ler o


DNA de alguém não iria ajudar ninguém a ser resgatado da prisão. E ela não
poderia culpar Marco por ser protetor demais em relação ao último sobrevivente de
sua equipe. Ele havia perdido dois de seus companheiros intelectuais no último ano.
P.J. estava atualmente cumprindo prisão perpétua por ter se voluntariado a tomar
promicina. Brady Wingate havia morrido durante o cinquenta/cinquenta…

— Você realmente acha que nós devemos fazer isto? — ela perguntou a
Marco, em tom de dúvida. — Richard Tyler é suspeito de terrorismo e assassinato.
Ele ajudou a assassinar um homem em Roma há apenas alguns dias.

— Não foi qualquer homem — Collier a corrigiu. — Um membro dos


Marcados. Não insulte minha inteligência, fingindo que você não sabia da
verdadeira natureza dele. Se Richard Tyler esteve envolvido nesse suposto
assassinato, então foi puramente em defesa de seu povo e do futuro — seus olhos
escuros se espremeram, enquanto ele desafiava Meghan. — Ou você acha certo
tudo o que os Marcados têm feito, e irão continuar a fazer, a não ser que alguém os
impeça?

— É claro que não! — Meghan se alterou, deixando um resquício de


emoção trair sua discrição profissional. Ela não era amiga dos Marcados,
especialmente depois do que eles fizeram Tom passar. Descobrir que seu amante
tinha sido possuído por uma inteligência criminosa do futuro fora um dos piores
momentos de sua vida. Sua pele ainda se arrepiava sempre que ela se lembrava de
como tinha feito amor com o falso Tom. — Mas isto não justifica um assassinato a
sangue frio.

— Não? — perguntou Collier. — Mesmo quando os Marcados mataram a


única filha de Tyler? — sua voz tinha um tom distintamente acusador. — Olhe nos
meus olhos e me diga que Emanuel Calábria iria um dia pagar por seus crimes.

Meghan se achou sem resposta.

— Esta não é a questão — ela respondeu, a voz fraca.

— Por favor, parem de discutir! — interrompeu Maia. Ela apelava em nome


de Richard Tyler. — Vocês têm que me ouvir. O Sr. Tyler é um homem bom. Ele
nos salvou a todos de sua filha, anos atrás. Ele não merece o que irão fazer com
ele. Ninguém merece.

A intensidade comovente da súplica da garota fez com que Meghan


parasse. Ela nunca havia se encontrado com Tyler pessoalmente; ele já estava
foragido quando ela assumira as operações da NTAC no noroeste. Mas Tom e Diana
haviam expressado compaixão pelo homem em vários momentos, assim como
Shawn Farrell e várias pessoas do Centro 4400. Tyler havia perdido tanto a mulher
quanto a filha para as maquinações do futuro. Talvez ele realmente fosse mais
vítima do que algoz.

— Eles vão torturá-lo — previu Maia —, se já não o tiverem feito. Vocês


têm que fazer alguma coisa. Vocês têm.

Meghan suspirou, genuinamente confusa. Liberar Tyler da Haspelcorp


estava fora de sua jurisdição, mas ela nunca fora de andar completamente na linha.
Se havia uma coisa que aprendera durante sua gestão na NTAC, era que as
questões envolvendo os 4400 raramente eram convencionais. Shawn tinha provado
isso a ela quando curou seu pai da doença de Huntington. Talvez fosse hora
novamente de que ela quebrasse as regras em nome de um bem maior.

Ela olhou para Marco e para os Garritys, procurando apoio.

— Eu não sei. O que vocês acham?

— Vamos nessa — disse Jed Azul.

— Ou não — discordou Jed Vermelho.

Eles olharam um para o outro com nojo, anulando os votos, como de


costume. Meghan suspeitava de que os pares habitualmente contradissessem seus
gêmeos para provar que eles ainda eram pessoas diferentes. Ambos também
teimavam em afirmar ser o Garrity original.

— Marco? — ela insistiu, em desespero.

Marco encolheu os ombros.

— Para dizer a verdade, eu estou inclinado a confiar em Maia. Se pudermos


impedir uma guerra, que outra escolha nós temos?
— Você já se deu conta — ela esclareceu — de que se alguém descobrir
sobre isto, todas as nossas carreiras vão por água abaixo? Sem mencionar a nossa
liberdade.

O governo não iria ver com bons olhos os funcionários da NTAC que
conspirassem para liberar da custódia um terrorista procurado. Eles teriam sorte
em não pegarem prisão perpétua.

— Talvez não – disse Tess. No calor do debate, Meghan quase havia se


esquecido de que a jovem introvertida estava presente. — Se formos pegos, vocês
podem alegar que eu os obriguei a tomar parte na missão.

E se nós nos recusarmos? pensou Meghan. Haveria uma ameaça implícita


naquela proposta?

— Vocês têm que ir — disse Maia. A jovem vidente jogou sua última carta.
— Eu vi vocês.

Meghan se perguntou se ela estaria falando a verdade.

*************

— Bem, isto foi uma perda de tempo — disse Tom.

Ele e Diana estavam voltando de Bellingham, duas milhas ao norte de


Seattle, onde finalmente haviam conseguido encontrar a esquiva ex-esposa de
Grayson, Michelle. Infelizmente, a ex-Sra. Grayson, que havia deixado o marido
quatro anos antes do cinquenta/cinquenta, parecia saber quase nada sobre as
atividades recentes do agente funerário. Ela não sabia e nem ligava para onde ele
poderia estar escondido no momento, embora tenha tentado negociar com os
agentes um par de buldogues com pedigree. Felizmente eles haviam partido sem
nenhum filhote.

— Valeu a tentativa, eu acho. — Diana carregava uma escopeta no banco


do carona, ao lado de Tom. A Interestadual 5 se estendia diante deles. Montanhas
de sempre-vivas floresciam e se derramavam ao longo da estrada. — Você acha
que ela estava dizendo a verdade, que não tem estado em contato com Grayson
desde o divórcio?

— Infelizmente, sim – Tom tentava se lembrar da última vez em que ele


havia falado com sua ex. O casamento deles não sobrevivera aos três anos de
coma de Kyle. Linda havia se mudado para Spokane havia alguns anos.

Diana não discutiu a avaliação dele sobre a veracidade de Michelle.

— Então, a que isto nos leva?

— Quem me dera saber — desde que tinham perdido Grayson na agência


funerária, eles não haviam conseguido nada de concreto. Grayson não tinha filhos e
nenhum conhecido significativo. Uma busca em sua residência, no segundo andar
da agência, havia levantado apenas uma grande quantidade de literatura utópica
sobre os 4400. Seu caderninho de telefones e o computador pessoal continham
apenas uma longa lista de conhecidos casuais e contatos profissionais. Antes do
cinquenta/cinquenta, Grayson parecia ter sido um profissional sério e trabalhador,
que dedicava a maior parte de sua energia e de seu tempo a seus negócios. Ele não
tinha ficha criminal, nem residências secundárias. Nenhum dos guardas dos postos
de vistoria de fronteira tinha relatado tê-lo visto. Sua foto havia sido exposta em
todas as saídas conhecidas da Terra Prometida.

Tom contemplou a rodovia à sua frente. Eles tinham um longo caminho de


volta para Seattle, e ele não estava animado em ter que lidar com todas as
vistorias e barreiras novamente. Seriam mais ou menos três até chegarem ao
quartel-general. Imaginava se valia a pena retornar para o escritório. Talvez
devêssemos encerrar o expediente por hoje.

Um cartaz à beira da rodovia os avisou sobre um restaurante logo à frente.


Um estômago vazio o lembrou de que eles ainda não haviam almoçado. Uma xícara
de café fresco e um sanduíche de peru pareciam perfeitos agora.

— Você quer dar uma parada para fazer um lanche?

— Pode ser — concordou Diana. — Não temos que sair correndo para lugar
nenhum agora.

Triste, mas verdadeiro, pensou Tom. Ele pegou a pista da direita e ligou a
seta. A saída estava a apenas uma milha quando seu telefone tocou
inesperadamente. Sem tirar os olhos da estrada, ele pescou o celular do bolso de
sua jaqueta. Colocou-o na orelha.

— Alô? Aqui é Baldwin.

— Oi, pai. Sou eu, Kyle.

O coração de Tom deu um salto ao som da voz do filho.

— Kyle! — ele havia deixado várias mensagens na secretária eletrônica do


filho, depois daquele desentendimento na hora do jantar do dia anterior, mas
aquela era a primeira vez que eles se falavam diretamente desde a discussão. Ele
esperava que aquilo significasse que Kyle ainda estivesse falando com ele. —
Obrigado por retornar minha ligação. Obrigado de verdade.

— Sim, claro — ele parecia tenso e desconfortável. — Você tem um


segundo, pai?

Aquele obviamente não era um telefonema social.

— Claro. O que foi?

— É sobre aquele cara, o Grayson, sobre quem você me perguntou…

— Sim? — Tom perguntou, apreensivo. Seu filho estaria aborrecido com


aquilo? — Olha, Kyle, eu não estou contente com o rumo que as coisas tomaram
ontem à noite. Você tem que saber que eu nunca quis fazer algo que pudesse nos
afastar.

Era estranho ter aquela conversa bem na frente de Diana, mas sua
parceira providencialmente fingia rever o dossiê de Grayson. Ela manteve o olhar
na pasta em seu colo. Tom gostou da discrição dela.
— Eu sei, pai — Kyle mantinha sua voz baixa, quase com se ele estivesse
com medo de que alguém pudesse escutar. — Aí é que está. Eu pesquisei sobre
Grayson para você e achei algo estranho. Provavelmente não é nada, mas… — a
voz dele foi sumindo. Ele resmungou qualquer coisa com voz abafada. — Me deixe
em paz, ouviu? Eu sei o que estou fazendo.

— O que é isso, Kyle? — Tom não estava entendendo. Será que eu falei
algo que o ofendeu?

— Nada, pai. Não era com você — ele parecia envergonhado pela explosão.
— Eu estava falando comigo mesmo, ou algo assim.

Tom teve a impressão de que seu filho não estava falando toda a verdade.
Tem alguém lá com ele?

— Você está sozinho? — ele perguntou, de modo suave. — Você consegue


falar livremente?

Aquilo chamou a atenção de Diana. Ela o olhou de modo interrogativo.

— Mais ou menos — disse Kyle, vagamente. — De qualquer forma, sobre


Grayson…

— Sim? – Tom tentava não parecer tão ávido, com medo de assustar Kyle.
A julgar pelo nervosismo dele, Kyle estava a ponto de desligar a qualquer
momento. — O que é, Kyle?

Devagar, hesitante, seu filho relatou o que havia apurado sobre Bernard
Grayson e algo chamado Comitê de Alcance Global. O nome não significava nada,
mas os ouvidos de Tom se interessaram quando Kyle mencionou que o CAG tinha
adquirido recentemente um centro de plasma abandonado na região central de
Seattle. Ele se lembrou na mesma hora da forma como Grayson havia convertido a
agência funerária em algum tipo de laboratório de clonagem biológica. Seus
instintos lhe diziam que Grayson estava de volta ao foco.

— Obrigado, Kyle. Nós vamos verificar — um pensamento perturbador


ocorreu a ele. — Ahn, você não falou sobre isso com Jordan, falou?

— Ainda não — disse ele, de modo sombrio. Tom achou que Kyle se sentia culpado
por fazer as coisas pelas costas de Jordan. — Embora eu tenha pensado nisso…

Tom silenciosamente amaldiçoou a influência de Collier sobre Kyle. —


Vamos manter isso entre nós por enquanto — ele pediu. — Ao menos até sabermos
se ele tem algo a ver com isso — ele esperava não estar pedindo demais; não
queria afastar Kyle novamente. — Você pode fazer isto, Kyle? Como um favor para
mim?

Houve um silêncio torturante na linha, até que Kyle finalmente respondeu.

— Tudo bem, eu acho — ele deu a Tom o endereço do centro de plasma.


Alguém bateu à porta, ao fundo. — Tenho que ir, pai — ele disse, apressado. —
Depois me conte o que vocês acharam.

— Conto sim — prometeu Tom. — E, Kyle, obrigado mais uma vez. Eu


realmente gostei disso.
— A-ham — Kyle parecia já estar arrependido do que fizera. — Falo com
você depois.

Ele desligou.

A entrada do restaurante apareceu diante dele, mas Tom continuou


dirigindo. Ele desligou a seta. O almoço podia esperar. Uma boa pista tinha
prioridade sobre uma xícara de café bem quente.

— Mudança de planos — ele informou Diana. — Nós vamos até um banco


de sangue.

Ele pisou fundo no acelerador.

*************

— As paredes são mais escuras, mais cinza do que verdes — Maia


especificou. — O banco é mais baixo. Há uma teia de aranha no canto direito do
teto. A tampa do vaso sanitário está quebrada. A cadeira é aparafusada no chão.

Maia consultava seu diário de sonhos enquanto descrevia a cela de Tyler


para Marco. Ele estava sentado à frente de seu computador pessoal, retocando uma
imagem na tela, de acordo com as especificações da menina. Marco não era
nenhum artista gráfico, mas ele e Maia já haviam seguido esta rotina antes. Maia
tinha começado desenhando um esboço da cena de sua visão. Marco então
escaneara a ilustração, e agora estava usando seu programa gráfico favorito para
aperfeiçoar a figura, enquanto Meghan, Collier, Tess e os Garritys matavam o
tempo em outro canto. Não havia muita conversa entre eles.

Isto não é surpresa, pensou Marco. Não há muita confiança nesta sala.

— Que tal? — ele perguntou a Maia.

— Quase lá — ela estava em pé atrás dele, olhando por cima de seus


ombros para o monitor do computador. A menina revirou sua memória em busca
de mais detalhes. — Havia uma mancha marrom no teto, bem ali. — ela apontou
para o canto superior esquerdo da tela. — Era manchado e irregular nas bordas.
Como uma água-viva.

Marco manuseou o mouse. Alguns toques nas teclas inseriram uma nódoa
marrom no teto. — Assim?

— Bem parecido — ela rabiscou um desenho em seu diário e entregou a


folha para Marco. — Mas mais escura no meio e mais clara nas bordas.

Ele ajustou a imagem de acordo com a descrição.

— Melhor assim?

— Sim — ela concordou gravemente com a cabeça. — Eis o lugar. Foi aí


que eles o prenderam.

Marco salvou a imagem, e então contemplou a cela prisional virtual.


Parecia bem lúgubre. Ele engoliu em seco, diante da perspectiva de ser o primeiro a
visitar o lugar. Por que Richard não poderia ter sido preso no Havaí ou coisa
parecida?

Meghan aproximou-se para inspecionar a imagem.

— Está detalhada o bastante para você?

Da maneira como a habilidade 4400 de Marco funcionava, ele precisava


visualizar um local antes de poder se teletransportar para lá. Ele geralmente se
concentrava em uma fotografia real como gatilho mental, mas uma imagem virtual
seria suficiente? Ele de repente desejou ter testado mais vezes os limites de sua
habilidade, apesar da política contrária da NTAC.

— Talvez. Espero que sim.

Collier observava tudo com interesse.

Marco olhou para certificar-se de que seu celular estava carregado. A tela
do visor informava que eram duas e quinze da tarde. Ele se deu conta de que não
deveria adiar mais.

— Está certo, aqui vai nada — ele se levantou de sua cadeira. — Desejem-
me sorte.

— Espere — disse Meghan. — Se você for mesmo aonde pretende, não vai
querer ser reconhecido.

Boa ideia, pensou Marco. Eles tinham que considerar que a cela de Tyler
deveria estar sendo monitorada. Ele vasculhou sua cabeça atrás do disfarce
apropriado, então remexeu em uma maleta sobre sua cama. Levou um minuto ou
dois para localizar o item em questão, mas logo extraiu de lá uma máscara de
borracha de Klingon15, da última festa de Halloween, dois anos antes. (A festa do
ano anterior fora cancelada, em respeito às vítimas do cinquenta/cinquenta).
Agarrando a máscara, bem como um par de luvas de inverno, ele correu de volta
para a sala do computador. Espero que hoje não seja um bom dia para morrer.

Meghan olhou estupefata para a máscara de Klingon, com seus pelos


sintéticos encrespados e seus sulcos.

— Você sabe que esta é uma missão de reconhecimento, e não uma


convenção de Star Trek, não é?

Jed Azul esboçou um raro sorriso. Jed Vermelho deu um tapinha em si


próprio. Collier suspirou.

Tess, uma foragida dos anos 50, parecia não saber o que era um Klingon.

— Star Track?

— Ei, às vezes você tem que se virar com o que tem à mão — disse Marco.
Ele vestiu o disfarce sobre a cabeça e os óculos. O interior da máscara cheirava a
suor azedo e borracha. Sua própria respiração ecoava em seus ouvidos. Ele calçou
as luvas para evitar deixar qualquer impressão digital incriminadora.

15
Klingon – raça alienígena fictícia, criada para a série Star Trek.
— Tá bem, acho que agora estou pronto.

— Espere! – Maia correu até ele e impulsivamente o abraçou. Eles tinham


ficado amigos desde o tempo em que Marco namorara Diana, alguns anos antes. —
Por favor, tenha cuidado.

Ele se comoveu com a reação da menina.

— Não se preocupe — prometeu. — Eu não vou demorar muito.

Bata na madeira.

Desvencilhando-se do abraço da menina, ele encarou a tela do


computador. O resto do mundo desapareceu quando ele se concentrou na cela de
prisão de ar gélido que Maia havia descrito. Ele sentiu um formigamento familiar no
fundo de seu cérebro. A imagem o envolveu como num filme de três dimensões…

Em um instante, ele se achou em outro lugar. Paredes de concreto


asfixiantes o cercavam. A temperatura caíra dramaticamente. Uma feia mancha
marrom de infiltração deteriorava o teto. Uma teia de aranha pendurada no canto.
Richard Tyler deitado e tremendo sobre um duro banco de concreto.

E aqui estamos, pensou Marco. A cela claustrofóbica era tão assustadora


quanto ele temia. Uma impositiva porta de aço o trancava dentro da cela com
Tyler. Calafrios percorreram sua pele, e não apenas por causa da baixa
temperatura. Não era o tipo de lugar em que ele gostaria de estar.

Mas onde exatamente ele estava?

Consultou o telefone. O aparelho de alta tecnologia, com o qual ele havia


estourado o pagamento de uma semana havia algum tempo, também continha um
GPS embutido que, em tese, poderia apontar sua localização em qualquer lugar da
Terra. Manejando os controles na sequência certa ele ativou o localizador, que
rapidamente lhe deu as coordenadas exatas em graus, minutos e segundos:

39.967814, -75.172595.

Ele rapidamente interpretou a leitura digital. Pensilvânia, ao que parecia.


Talvez algum lugar na área da Filadélfia?

Ao menos não é Guantánamo ou a Síria, pensou.

Ele poderia procurar a localização exata assim que estivesse de volta a


Seattle, o que não deveria demorar muito. Não havia necessidade de permanecer
na cela, agora que ele havia determinado sua localização. Era apenas uma questão
de tempo até que sua presença fosse detectada, e ele não tinha vontade de fixar
residência permanente numa cela como aquela. Levou um segundo, entretanto,
para checar o atual ocupante da cela.

Exausto por causa do martírio, Richard Tyler dormia esparramado sobre o


banco de aspecto desconfortável. Sonhos perturbadores atrapalhavam seu
descanso. Ele fazia caretas e socava o banco.

— Não — ele murmurava — de novo, não…


Coitado, pensou Marco. Ele desejava poder teletransportar Tyler consigo,
mas aquilo estava além de sua habilidade, ao menos por enquanto. Até então ele
só era capaz de transportar a si mesmo de lugar para lugar. O que iria ajudar a
tirar Tyler daquele buraco asqueroso.

Um alarme retumbante o sobressaltou. Parece que a festa vai começar, ele


constatou. Pressionando as teclas de seu telefone, ele abriu uma foto de seu
apartamento armazenada na memória do aparelho.

— É hora de sair daqui — murmurou —, o mais rápido possível.

O som estridente acordou Tyler, que sentou-se, assustado. Seus olhos


cansados se arregalaram à visão do alienígena de cabeça grande em sua cela. Ele
piscou, confuso.

Marco gostaria de poder explicar, mas sabia-se lá quem poderia estar


ouvindo? Incapaz de resistir à tentação repentina, ele levantou seu braço, em uma
saudação Klingon.

— Qapla!

E desapareceu na foto de seu telefone.

Sua reaparição súbita no apartamento provocou sustos em seus


companheiros de conspiração. Tess deu um passo para trás, cuidadosamente. Maia
suspirou de alívio. Collier parecia devidamente impressionado.

— Você possui uma habilidade extraordinária — ele observou.

Marco quase podia ver as engrenagens funcionando na mente maquiavélica


de Collier.

— Bem, não se acostume a tê-la ao seu dispor — ele declarou, deixando


claro que não planejava mudar de lado. — A NTAC paga meu salário, não você.

— Uma pena — respondeu Collier. — Talvez você reconsidere algum dia.

— Não conte com isso — replicou Marco. Juntar-se a uma seita não estava
em seus planos.

— Pare de tentar arrebatar meu pessoal — Meghan advertiu Jordan —, ou


vou desistir de ajudar você — ela passou por Collier para juntar-se a Marco em sua
mesa. Cruzando os braços, ela esperava o relatório dele. – Bem, você achou Tyler?

— Pode apostar. – Ele rapidamente digitou as coordenadas do GPS em seu


computador. Em segundos, achou a localização precisa da prisão misteriosa. —
Penitenciária Estadual do Leste. Filadélfia.

— Oh — disse Tess. Ela se virou para o canto, evitando tanto Collier quanto
o pessoal da NTAC. — Eu já ouvi falar de lá. É um local histórico, do século
dezenove. Foi transformado em museu há alguns anos. Al Capone esteve preso ali.
Dizem que é assombrado.

Todos olharam para ela, surpresos.


Ela encolheu os ombros.

— Kevin gosta de assistir ao History Channel.

— Ela tem razão — confirmou Marco. Uma rápida busca na Internet achou
vários sites sobre a velha prisão, que estava localizada de fato no centro da
Filadélfia, não muito longe da prefeitura e do badalado museu de arte da cidade. —
Foi fechado para reforma logo depois do cinquenta/cinquenta. Não há informações
sobre a reabertura.

— Reforma uma ova – resmungou Jed Vermelho . — A Haspelcorp deve tê-


la virado do avesso, para transformá-la em sua Guantánamo particular.

Jed Azul sacudiu sua cabeça, em desgosto.

— Bem no meio da Cidade do Amor Fraterno.

— Olhe pelo lado bom — apontou Marco. – Ao menos Tyler ainda está nos
Estados Unidos.

— Ryland provavelmente não tinha escolha quanto a isso — Meghan se


remexeu na poltrona. — Desde as revoltas, a maioria dos países estrangeiros está
se recusando a receber positivos em seu solo. Ryland teria muita dor-de-cabeça
para embarcar um p-positivo para além-mar, se ele quisesse.

— O que ele não conseguiria — acrescentou Collier. — Duvido que o


governo americano queira um 4400 poderoso caindo nas mãos de um poder
estrangeiro. Infelizmente, a promicina deu uma nova dimensão à corrida
armamentista.

E a culpa é de quem? pensou Marco, mas segurou sua língua. Para ser
justo, Ryland e a Haspelcorp tinham explorado as possibilidades militares da
promicina muito antes de Collier oferecer a dose para o público em geral.

Meghan já estava trabalhando na logística envolvida.

— De qualquer maneira, a Filadélfia ainda é pelo menos seis horas de avião


daqui. E não vai ser fácil sairmos de Seattle sem sermos notados. A força aérea
ainda está impondo uma área de voo proibido sobre a Terra Prometida.

Collier deu uma risadinha.

— Eu talvez possa ajudar nesse sentido.


QUINZE

O Centro de Coleta de Plasma Pacífico já vira dias melhores.

As janelas da entrada tinham sido cobertas. Uma placa de “Desativado” fora


colocada do lado de dentro da entrada principal. As paredes haviam sido pintadas
com grafite. “JORDAN COLLIER É DEUS”, lia-se em letras laranja brilhantes.
“PROMICINA = MORTE!”, alguém respondera. Pontas de cigarro e vidro quebrado
espalhavam-se pelo chão diante da entrada do estabelecimento falecido. Um
bêbado dormia em um canto. Se o Comitê de Alcance Global realmente era dono do
local, ainda não haviam feito muita coisa com ele.

— Vizinhança legal — disse Tom sarcasticamente. Eles dirigiram direto para lá, de
Bellingham. Diana telefonara para NTAC no caminho para informá-los da
investigação; sem conseguir falar com Meghan ou Marco, ela deixara uma
mensagem com Abby, então.

— Se você gostar de casas velhas — demarcou Diana, olhando em volta.

O centro de Plasma Skid Row era localizado numa esquina de uma parte da cidade
economicamente decadente que não fora beneficiada com a ambição dos 4400 por
uma renovação. Do outro lado da rua estava o que sobrara de uma loja de bebidas
destruída durante o tumulto há dois meses. Virando a esquina, estava uma estação
de recrutamento científico; aparentemente, L. Ron Rubbard16 não fora capaz de
competir contra Jordan Collier na Terra Prometida. Uma livraria para adultos, um
pouco acima na rua, parecia ser o único estabelecimento em funcionamento. Um
céu cinza ameaçava chover a qualquer momento.

Bem vindos à Terra Prometida, pensou Diana.

Suas vozes acordaram o bêbado, que os olhou com olhos confusos e sanguinários.
Veias estouradas desfiguravam seu nariz inchado. Uma barba cinza emaranhada
mantinhas seu rosto triste aquecido. Seu casaco de lã esfarrapado devia ser uma
doação. Um fedor nauseante emanava de sua presença. Ele furtivamente colocou
uma garrafa de Thunderbird atrás de suas costas antes de estender uma mão
ameaçadora.

— Têm um trocadinho?

Diana percebeu que não machucaria dá-lo algum trocado. Talvez ele
tivesse visto alguma coisa enquanto estava bêbado.

— Deus lhe abençoe. — Ele cambaleou. Sua boca exalava álcool, mas ele
parecia um pouco sóbrio. — A cidade precisa de mais pessoas como você.

— Você fica sempre por aqui? — perguntou Tom.

16
L. Ron Rubbard foi um escritor americano de ficção científica.
— Costumava vim umas duas vezes por semana — confessou o homem. —
Antes de todo mundo ficar doente. — Ele olhou para os agentes esperançosamente.
— Sabem quando esse lugar vai reabrir? É uma droga de injustiça que não posso
mais vender meu próprio sangue. Nunca tomei uma dessas doses fedorentas…

— O que te faz pensar que vai reabrir? — perguntou Diana. — Viu alguma
atividade ultimamente?

O bêbado balançou a cabeça.

— Descarregaram um monte de caixas e equipamentos outra noite. Por


volta de meia noite, quando eu estava tentando dormir.

E também quando ninguém estava olhando, pensou Diana. Ela mostrou


uma foto de Bernard Grayson, tirada de sua carteira de motorista.

— Viu esse homem por aqui?

O bêbado piscou para a foto.

— É. Acho que sim, parece um pouco familiar. — Ele devolveu a foto para Diana. —
É o novo chefão?

— Talvez. — Tom deu mais alguns trocados ao homem. — Vá comprar alguma


coisa para comer.

Os olhos do homem brilharam ao verem o dinheiro inesperado.

— É o meu dia de sorte! Vocês são boas pessoas, vocês dois. — Enfiando as notas
no seu bolso, ele saiu apressado em busca de alimento, ou assim esperava Diana.
As chances, no entanto, era que ele fosse comprar mais Thunderbird ao invés de
um Big Mac.

Ele deixou a garrafa vazia para trás.

Os agentes esperaram que o mendigo útil estivesse longe o suficiente para não
ouvi-los antes de começaram a investigar. Diana guardou a foto de Grayson.

— Bem, o que você acha?

— Parece bem provável para mim. — Ele considerou a fachada lacrada. — Pela
entrada da frente ou dos fundos?

Diana tentou espiar através das tábuas, mas tudo o que viu foi escuridão. Parecia
não haver luzes do lado de dentro, muito menos alguém se movendo.

— Pelos fundos. Mais discreto.

Um beco estreito estendia-se atrás do prédio. Um espaço para carregamento e


descarregamento de mercadorias se estendia diante da parede. Um líquido
gorduroso enchia os barris. Ratos corriam por trás de uma grande caçamba de
metal. Ataduras descartadas, usadas pela antiga clientela do centro de plasma,
estavam jogadas no chão pavimentado. O beco fedia a urina e lixo apodrecido.
Era muito diferente da decoração agradável da funerária de Grayson.

Subindo no espaço para carregamento e descarregamento de mercadorias, Tom


tentou a porta, que não cedeu. Diana considerou bater antes, mas decidiu não
fazê-lo. Se Bernard Grayson estava se escondendo lá dentro, eles queriam pegá-lo
de surpresa.

Tom se posicionou para entrar à força.

— Espere — disse Diana. — Tomou alguma U-Pill hoje?

Ele balançou a cabeça.

— Acha que eu deveria?

— Pode não ser uma má ideia. — Ela era imune à promicina, por ter servido de
cobaia para Kevin Burkhoff há alguns anos, mas Tom não era. — Se Grayson e
companhia conseguiram duplicar a habilidade de Danny, e conseguirem gerar uma
versão que se espalha pelo ar, podemos estar entrando numa zona quente.

Ele não discutiu.

— Acho que se prevenir não machucaria. — Ele tirou um pacote de emergência das
pílulas de seu bolso e as engoliu. — Certo, vamos descobrir o que está acontecendo
aqui.

Diana esperou enquanto seu parceiro mais forte se preparava. Grunhindo, Tom
jogou-se de ombros contra a porta, que se recusou a ceder.

— É mais sólida do que parece — comentou ele, recuando. Levantou sua Glock,
então. — Acho que precisamos de um pouco de poder fogo.

— Se você diz. — Ela cobriu as orelhas.

A arma deles era capaz de atirar balas convencionais ou dardos tranquilizantes.


Não houve dúvida sobre que tipo de munição ele estava usando quando disparou a
arma. Um tiro ecoou pelo beco, e dez milímetros de chumbo explodiram a
fechadura.

Diana imaginou se alguém daria queixa do tiro. Nesse bairro, provavelmente não.

— Tome cuidado — ele disse enquanto chutava a porta. Nenhum dos dois queria
outra surpresa como a que tiveram na casa funerária. Diana ainda tinha um calo na
cabeça onde aquele técnico do necrotério havia batido. Com as armas em punho,
eles cautelosamente adentraram pela parte de trás do prédio.

— NTAC! — ela anunciou. As iniciais estavam estampadas nas costas de suas


pesadas jaquetas azuis. — Qualquer um que estiver aqui, por favor, identifique-se!

Ninguém respondeu. As sombras engoliam o interior.

Seus dedos encontraram um interruptor ao lado direito da porta. Luzes brilhantes


se acenderam acima de suas cabeças, revelando o que parecia ser um depósito.
Caixotes de madeira e caixas de papelão esperavam para serem descarregadas.
Bolsas de utensílios médicos estavam estocadas em prateleiras. Um rodo e uma
vassoura estavam encostados a um canto. Uma porta lisa de aço guardava o que
parecia ser um refrigerador. Provavelmente onde costumavam guardar a plasma
coletada, supôs Diana. Imagino o que eles mantêm refrigerando agora.

O corpo de Danny?

Teremos que checar isso, pensou ela, depois que soubermos que está seguro aqui.

Com as armas em prontidão, eles se separaram e observaram o local. Logo depois


dos cômodos do fundo, eles adentraram uma área equipada com poltronas de vinil
e suportes para soro. Vários escritórios pequenos se espalhavam lugar amplo.

— Limpo! — gritou Tom da área da recepção mais a frente. Diana espiou com a
cabeça alguns escritórios e um armário de funcionários. Uma grande janela de vidro
separava a área das doações do laboratório anexado. Cartazes desbotados
apontavam os benefícios salvadores da doação de plasma. Um papel num quadro
de avisos mostrava uma rifa de um peru do Dia de Ação de Graças que
provavelmente nunca acontecera. Aparentemente, cada gota de plasma doada era
uma chance a mais para ganhar o peru.

— Limpo! — devolveu Diana de um escritório vazio. Parecia que tinham o lugar só


para eles.

Bernard Grayson não estava em um lugar que pudesse ser visto.

Os agentes se encontraram no centro da área de doação. Eles guardaram as armas.


Tom caminhou pela sala e espiou o laboratório adiante através da janela.

— Você é a cientista — disse ele a Diana. — Isso te diz alguma coisa?

— Bem, não vejo nenhuma máquina de plasmaférese17 aqui — observou ela. — O


que quer dizer que o Comitê de Alcance Global não está removendo plasma de
bêbados. — Um carrinho equipado com desfibriladores indicava procedimentos
médicos mais sérios. Ela olhou mais de perto o equipamento do outro lado da
janela de vidro. — Aparelhos de tomografia. Centrífugas. Um sequenciador de DNA.
De vista, tenho que dizer que isso se parece suspeitosamente com a instalação que
encontramos na Grayson & Filho.

Tom acenou com a cabeça.

— Foi o que pensei, também.

— O que quer dizer que estamos no caminho certo — disse ela. A


temperatura estava agradavelmente quente comparando com o lado de fora, o que
significava que alguém havia ativado o ar condicionado depois que o centro fora
fechado. Ela abriu o zíper da jaqueta. — Só não encontramos nosso cara ainda.

— É — ele olhou novamente para o depósito. — Acho melhor a gente dar


uma olhada naquele refrigerador.

17
N. do. T.: Plasmaférese é a remoção e a recolocação de plasma de sangue
Diana percebia que ele não estava ansioso para encontrar mais clones do
corpo de Danny.

— Quer que eu cuide disso? — ela voluntariou-se.

— Obrigado, mas não é necessário — ele incentivou-se para o que quer


que fossem descobrir logo. — Só vamos terminar isso, juntos.

— Não se preocupem — interrompeu uma terceira voz. — Vocês não vão a


lugar algum.

A princípio, a voz parecia vir de lugar nenhum. Então, o ar tremeluziu em


volta deles e os agentes se viram cercados por um trio armado de recém-chegados.
Bernard Grayson estava acompanhado de dois estranhos: um jovem de cabelos
ruivos vestindo uma blusa da Universidade de Washington e uma mulher Filipina
rechonchuda de meia-idade usando um uniforme branco de enfermeira. Os dois
homens apontavam semiautomáticas para os agentes. A mulher mais velha se
apoiava pesadamente numa bengala. Ela respirava com dificuldade. O suor brilhava
nas suas feições de querubim. Diana achou-a vagamente familiar.

Umas 4400 original de fábrica ou uma nova “extra-crocante”?

Diana procurou instintivamente pela sua arma, só para ouvir Grayson


apontar-lhe seu revólver.

— Não pense nisso — advertiu ele. Um avental azul de laboratório havia


substituído seu macabro terno de agente funerário. Ele acenou com a cabeça para o
jovem de cabelos claros. — Carl, tire as armas deles.

Relutantemente, os agentes foram livrados de suas armas. O universitário


colocou-as em uma poltrona vazia perto do fundo da sala.

— Olá novamente, agente Skouris, agente Baldwin. — disse Grayson. —


Estávamos a sua espera.

O TSSS, abreviação de Transporte Supersônico Silencioso era um protótipo


experimental roubado da divisão Boeing Phantom Work 18 por um engenheiro
descontente que havia se juntado ao Movimento de Collier depois do 50/50. A
lustrosa aeronave particular era grande o suficiente para carregar mais ou menos
doze passageiros, e rápida o suficiente para levá-los até a Costa Leste em questões
de horas. Os motores supermodernos abafavam os “booms” supersônicos que

18
“The Phantom Works division” visa construir produtos e tecnologias militares avançadas.
pareciam os de um Concorde19, permitindo-os voar sobre o país sem balançarem. O
avião roubado havia levantado voo de um campo de pouso secreto em algum lugar
da Península Olímpica. Meghan e os outros haviam saído de Seattle com os olhos
vendados, para preservar a segurança das operações aéreas ilícitas de Collier.

Sentada em um canto do TSSS, Meghan tinha uma pequena suspeita de


como Richard e seus colegas assassinos haviam ido à Roma e voltado sem serem
detectados. Não que Collier fosse admitir, é claro.

Ela imaginava que outros recursos ultra-secretos Collier tinha à sua


disposição. Afinal, ele agora tinha muitas das melhores mentes na Boeing,
Microsoft, Amazon e na Ubient Software para colher informações. Isso sem
mencionar genuínos p-positivos como Dalton Gibbs. De várias maneiras, ele tinha o
futuro ao seu lado.

E esse era um pensamento muito assustador.

Sentada ao lado de Marco, ela pesquisava sobre a Penitenciária Estadual do


Leste em seu laptop. Óculos de leitura vermelhos se empoleiravam em seu nariz.
Ainda bem que havia infinitas informações a respeito da penitenciária histórica na
internet, incluindo alguns vídeos de passeios pelas ruínas. Uma olhadela no
computador de Marco revelou que ele estava baixando inúmeras imagens do
interior da prisão para o seu celular, para melhor se transportar pelas dependências
se fosse necessário.

Boa ideia, pensou ela. Pena que não posso dar a ele um bônus por essa
missão.

Do outro lado do corredor, os dois Garritys aproveitavam o voo para


dormirem. Eles roncavam em harmonia.

Tess Doerner sentava-se longe dos agentes da NTAC, mantendo-se isolada.


Parecia estar imersa num exemplar de Um Estranho no Ninho. Meghan ainda não
se sentia confortável incluindo a ex-paciente mental na missão, não importava o
quão única sua habilidade podia ser. Até onde sabia, a única lealdade da garota era
para Kevin Burkhoff. Meghan se preocupava com os motivos.

Se ela quisesse assumir a missão, como eu a impediria?

Marco levantou o olhar de seu laptop. Seus olhos encontraram os dela.

— É estranho não ter o Tom e a Diana conosco — disse ele. — Esse é mais
o tipo de ação deles do que o meu.

— Nem me fale. — Ela já deixara uma mensagem na secretária eletrônica


da casa de Tom, avisando-o para ele não esperá-la para o jantar a noite, mas ela
desejava ter podido falar diretamente com ele antes de embarcar nessa missão.
Apesar do preconceito de Collier contra agentes sem habilidades, ela sentira-se

19
O Concorde foi um dos dois aviões supersônicos de passageiros que operaram na história da aviação
comercial.
tentada a incluir Tom e Diana mesmo assim. Os dois tinham mais experiência com
Richard Tyler do que ela.

Mas, não, ela decidiu-se de uma vez, Seattle precisava urgentemente de


Tom e Diana para envolvê-los nessa missão de resgate duvidosa. Acabar com o
caso do clone de Danny Farrell era tão importante quanto liberar Richard Tyler.

Talvez até mais.

— Certo, eles não vão a lugar algum.

Carl terminou de amarrar Tom e Diana em poltronas adjacentes. Cintas


longas de couro prendiam seus braços e pernas. Tom forçou-se para soltar-se, mas
as cintas não cederam. Ele e Diana estavam à mercê de seus capturadores.

Grayson abaixou sua arma. Ele estava a alguns passos de distância,


observando cautelosamente os procedimentos. A mulher mais velha sentava-se em
um banquinho ali perto, tricotando um suéter.

— Desculpem não podermos deixá-los mais confortáveis — disse o agente


funerário, acidamente. A vida de foragido claramente não havia lhe feito bem. A
barba marcava suas bochechas magras e mandíbula. Orelhas arroxeadas se
penduravam sob seus olhos sanguinários. Sua voz fervia de ressentimento. — Mas
era o melhor que podíamos fazer em pouco tempo.

Grayson clamara mais cedo que ele e seus cúmplices os esperavam. Tom
imaginava quem os entregara. Teria Kyle aberto o bico para Jordan no fim das
contas? Tom torcia para que seu filho não fosse o culpado por sua situação lúgubre.
Quem mais poderia ser? Agonizou ele. Só ficamos sabendo desse lugar há algumas
horas!

Diana devia estar ponderando sobre a mesma questão.

— Se importa de nos dizer como sabia que nós estávamos vindo?

— Isso cabe a mim — explicou uma nova voz.

Abigail Hunnicutt veio dos fundos, parecendo tão confortável no centro de


plasma remodelado quanto ficava na Sala da Teoria. A analista loira acenou para
Grayson e para os outros. — Desculpem-me pelo atraso. Somos poucos lá na NTAC.
Todos pareciam estar vadiando essa tarde…

Tom ficou boquiaberto. Trocou um olhar confuso com Diana.

— Abby?

— Olá, Tom, Diana — ela os cumprimentou. Um casaco de chuva molhado


derramava água no chão. Ela não parecia nem um pouco consternada ao ver seus
colegas amarrados como se fossem pacientes indisciplinados em uma clínica
psiquiátrica. — Acho que já imaginam o que eu estou fazendo aqui.

— Um pouco — admitiu Tom. A surpresa deu lugar à raiva quando ele


descobriu que ela os havia traído. Seu rosto ficou vermelho. — Não estou
acostumado a ser traído pelos meus próprios amigos!
Diana lançou um olhar áspero a ela.

— Como pôde?

— O que posso dizer? — Ela deu de ombros. — O Grande Passo Adiante


mudou tudo, incluindo a mim. Está óbvio, agora, que o Movimento é o futuro. —
Não havia nenhuma pontada de culpa em sua voz. — Não vou me desculpar por
querer ficar no lado certo da história.

Diana não a deixou escapar.

— Não importa quantas pessoas pereçam para construir o bravo novo


mundo de Collier?

— Pessoas morrem todos os dias sem razão que importe — disse Grayson.
— Confiem em mim, ninguém sabe disso mais do que um agente funerário. Passei
metade da minha vida adulta preparando seus restos sem valor, sem contribuir de
verdade com o mundo, até que o Grande Passo Adiante abriu meus olhos e
expandiu minhas percepções. — Ele olhou para o alto e juntou as mãos diante do
peito. — Nunca me esquecerei daquele dia. Meu cérebro se iluminou com novas
ideias e entendimento. Encontrei o meu propósito de existência.

Abby acenou com a cabeça.

— Bernie está sendo muito modesto. A promicina melhorou seu QI para um


grau fenomenal, dando a ele um conhecimento inato sobre biologia e química. Ele
sabe mais sobre DNA e modificações genéticas do que qualquer ganhador do
prêmio Nobel. Ele tem sido divino para o nosso projeto.

— Não foi um acidente — declarou Grayson. — Tudo estava destinado a


acontecer. — Ele olhou para Tom. — Quando o corpo do seu sobrinho veio para
mim, logo depois que mudei, percebi que não era uma mera coincidência. Eu soube
na hora que estava destinado a espalhar o presente de Danny para o mundo todo.
— Ele gesticulou para Carl, que estava observando os prisioneiros de perto. — Com
a ajuda de voluntários corajosos como Carl aqui.

O jovem acenou ao elogio de Grayson. Sua arma estava guardada nas


calças. — É um privilégio e uma honra. Só espero que seja eu quem unirá o resto
da humanidade.

— Será você — prometeu Abby. Sua voz soava convicta. — Nós iremos
conseguir desta vez. Posso sentir.

Tom percebeu que não havia razão nessas pessoas. Eles eram todos
crentes genuínos, como aquele fanático no necrotério. Até mesmo Abby parecia ter
aceitado o plano de Collier de coração. Tudo o que podia esperar deles agora era
respostas.

— Mas eu vi o corpo de Danny em seu funeral — disse Tom. — Ajudei a


colocá-lo no carro da funerária.

Grayson indicou a mulher mais velha no canto. — Agradeça a Rosita ali.


Talvez se lembre dela no serviço do Danny. Ela projetou uma ilusão do corpo de
seu sobrinho na cerimônia, assim como escondeu nossas presenças de vocês há
pouco.
Rosita levantou os olhos de seu tricô. Sorriu orgulhosa.

— Mas e os corpos duplicados? — perguntou Diana. — Como conseguiram


isso?

Abby levantou a mão.

— Essa seria eu de novo. Receio que não tenha contado tudo a vocês sobre a
verdadeira extensão da minha habilidade. Eu posso fazer mais do que apenas ler
DNA, posso manipulá-lo. — Ela flexionou os dedos. — Com a ajuda de Bernie,
tenho conseguido transformar voluntários em perfeitas cópias genéticas de Danny.

— Eu vi seu trabalho — disse Diana friamente. — No nosso necrotério.

Abby hesitou.

— Admito que nenhuma de nossas cobaias sobreviveu ao teste até agora — disse
defensivamente. Diana obviamente atingira um ponto fraco. — Mas estou cada vez
mais perto. — Ela virou-se para encorajar Carl. — Estamos quase lá. Sei disso!

— Acredito em você — disse o jovem. — Tenho fé no futuro. — Ele olhou


carrancudo para Tom e Diana. — O que vamos fazer com esses federais no fim das
contas? — Ele levantou a arma na altura dos agentes indefesos. — Diria para
acabarmos com eles agora antes que causem mais problemas.

Seu tom sanguinário lembrou a Tom o assistente homicida do agente funerário. O


que havia na mensagem de Collier que inspirava essa devoção cega em jovens
como Carl e Kyle? Um desejo de deixarem suas marcas no mundo, sem importar as
consequências? Carl parecia disposto a matar em nome de Collier.

— Não é uma boa ideia — objetou Abby. — De acordo com a profecia, que acredito
trazer códigos do futuro, Baldwin tem um destino importante a cumprir. Eliminá-lo
poria em risco tudo pelo que trabalhamos.

— Certo — concedeu Carl. — Não tinha pensado nisso. — Ele virou sua arma na
direção de Diana. — E ela, então?

Abby também vetou essa execução.

— Skouris é especial de natureza. Ela tem uma imunidade única a promicina que
merece um estudo mais de perto.

— Eu concordo — disse Grayson. Ele olhou Diana com uma curiosidade científica. —
Uma análise cuidadosa de seu sangue poderia render informações valiosas sobre os
efeitos da promicina no sistema nervoso humano.

Claramente em menor número, Carl abaixou sua arma. Desapontamento surgiu em


seu rosto.

— Então o que faremos com eles?

— Matar dois coelhos com uma pedrada só — disse Abby presunçosamente. Ela
tinha tudo planejado. — A profecia diz que Baldwin está destinado a se tornar um
de nós, certo? E se pudermos te transformar em outro Danny Farrell, vamos
precisar de uma cobaia para assegurar que você pode infectar as pessoas com
promicina…

Tom percebeu que ela queria testar a habilidade Carl nele.

— Não vai dar certo — ele os avisou. — Tomei U-Pills logo antes de entrar.

Abby deu de ombros.

— Bem, então apenas temos que esperar o efeito passar.


DEZESSEIS

A Penitenciária Estadual do Leste se elevava diante deles como se


emergisse da Idade das Trevas. Alojada em uma região nobre da Filadélfia e
rodeada de bibliotecas, museus e restaurantes caros, a fortaleza em estilo medieval
se erguia como um imenso anacronismo de pedra, quase como se tivesse sido
colocada no local pelos mesmos viajantes do tempo que haviam recolocado os 4400
na História. Torres de vigilância e muralhas imponentes coroavam sua tenebrosa
fachada cinzenta. Janelas seteiras20 escurecidas se debruçavam por sobre a rua
abaixo. O musgo subia por suas paredes de trinta pés de altura desgastadas pela
ação do tempo. A prisão colossal ocupava um quarteirão inteiro. Holofotes
posicionados ao longo da base do portão iluminavam sua fachada de granito. A
aparência intimidante da construção era um tanto quanto deliberada, na intenção
de instilar o temor a Deus, e um profundo senso de penitência, em todos os que
haviam sido levados involuntariamente através de seus portões. “Deixe as portas
serem de ferro”, havia instruído um dos fundadores da prisão do século dezenove,
“e deixe o ranger, causado pela abertura e o fechamento delas, ser incrementado
por um eco que deve trespassar profundamente a alma”.

Meghan tinha lido algo do tipo. Pelo aspecto do lugar, o Doutor Benjamin
Rush tinha conseguido exatamente aquilo que havia pedido.

Meghan, Marco, Tess e Jed Azul contemplavam a prisão do outro lado da


rua. Eles vagavam casualmente pela calçada, evitando a iluminação das lâmpadas
da rua. Eram quase onze horas, horário da Costa Leste, mas ainda havia bastante
tráfego noturno circulando pela Avenida Fairmount. A limusine deles, fornecida por
um dos agentes de Collier na Filadélfia, estava estacionada alguns quarteirões
adiante, na Vigésima Quarta Rua. Jed Vermelho estava descansando as pernas ao
volante do carro de fuga. Os dois Garritys haviam tirado nos palitinhos qual deles
ficaria esperando no carro.

— Lugar assustador — disse Marco, relatando o óbvio. Como todos os


outros, ele usava roupas escuras e à paisana, sem qualquer marca ou insígnia da
NTAC. Eles haviam deixado seus distintivos e identificações no avião. Aquela
missão era completamente fora das regras. — Quem sabe Drácula tem uma
imobiliária no coração da Filadélfia?

— Na verdade, esta era uma área isolada, milhas afastada da cidade — Tess
informou a eles. Ela havia designado a si própria a especialista na história da
prisão, naquele grupo. — Um pomar de cerejeiras, para ser mais exata. Quando
eles construíram a prisão, há quase duzentos anos, não havia nada em volta. Mas a
cidade gradualmente se espalhou e a cercou. Esta é uma das razões pela qual ela
foi desativada nos anos setenta. As pessoas não gostavam da ideia de ter uma
prisão cheia de condenados na vizinhança; mesmo ela tendo sido construída bem
antes de eles se mudarem para lá.

Meghan se perguntava o que os vizinhos achariam do que estava


acontecendo dentro da prisão estadual naqueles dias. Se eles soubessem, de fato.

20
Seteira (arrow slit) – janela comprida, característica dos castelos medievais, através da qual os
arqueiros lançavam flechas para defender a construção dos ataques inimigos.
Ela se virou para Tess.

— Você está pronta para isto?

— Na verdade, não — admitiu a garota. — Mas que escolha eu tenho? —


ela parecia precisar de um momento para se convencer a seguir adiante. — Nos
anos cinquenta, antes de eu ser abduzida, meu pai construiu um abrigo antibomba
em nosso quintal, caso os comunistas nos bombardeassem. Nós tínhamos jogos de
correr-e-se-abrigar na escola. Eu tinha pesadelos com uma grande guerra
destruindo o mundo inteiro… Não posso deixar esses pesadelos se realizarem.

Meghan se comoveu. Mesmo que a habilidade de Tess ainda lhe arrepiasse


os cabelos, estava aliviada por descobrir que a motivação da ex-paciente mental
era perfeitamente compreensível. E sã.

— Não vamos deixar que isso aconteça.

— Espero que não.

Tess atravessou a rua, deixando os outros para trás. Um ponto eletrônico


em seu colarinho permitia que Meghan escutasse tudo através de um receptor
auricular. Ela ouviu Tess engolir em seco e respirar fundo antes de se encaminhar
para o imponente portão principal da prisão. Um aviso na porta declarava que o
local histórico estava fechado para reforma. Nada mencionava a Haspelcorp.

— Aqui vamos nós — Tess sussurrou no microfone. Ela bateu à porta de


ferro, depois apertou um botão instalado no arco de entrada. Uma campainha soou
em algum lugar além do portão.

Uma câmera de segurança, instalada acima da porta, girou em sua direção.


Uma luz branca resplandecente iluminou os degraus da frente, permitindo que
fosse vista claramente. Uma voz áspera emergiu do interfone perto do portão.

— Sim? — a voz perguntou, irritada. Meghan supôs que eles não deviam
ter muitos visitantes, especialmente àquela hora. — O que foi?

Tess olhou firmemente para dentro das lentes da câmera.

— Estou aqui para o tour.

— Não há mais tours – a estática falhava em mascarar a impaciência da


voz, bem como seu pronunciado sotaque da Filadélfia. – Você não sabe ler,
comadre? Este lugar está fechado.

Tess discordou.

— Eu quero um tour. Deixe-me entrar.

O silêncio que se seguiu fez Meghan achar, por um breve instante, que a
habilidade notória de Tess havia sido apagada, de alguma forma. Então a colossal
porta de aço se abriu com um chiado. Nenhum rangido tortuoso trespassou a alma
de Meghan; aparentemente, a Haspelcorp mantinha as dobradiças lubrificadas.
Observando do outro lado da rua, ela vislumbrou um guarda uniformizado de pé
além do portal. Ele afastou-se para Tess passar.
— Assim está melhor — ela disse. Virando-se, acenou furtivamente para
Meghan e os outros, que atravessaram a rua para juntar-se a ela. Eles vestiram
máscaras de esqui antes de entrar no campo visual das câmeras; Meghan tinha
convencido Marco a deixar a máscara de Klingon em Seattle.

Embora estivesse sob o comando de Tess, o guarda ainda parecia alarmado


quando os intrusos mascarados correram degraus acima em direção ao portão
aberto. Mais parecendo um jogador de futebol americano, o guarda era um jovem
musculoso, de compleição rude e cabelos pretos gordurosos. O nariz achatado e a
orelha em forma de couve-flor sugeriam que ele havia passado algum tempo nos
ringues. Um crachá o identificava como Kozinski. Ele estendeu a mão para a pistola
do coldre que levava na cintura.

— Sem armas — ordenou Tess. — Meus amigos vão se juntar a nós.

A mão dele se afastou da pistola. A consternação em seu rosto deixava


claro que ele estava plenamente consciente do que estava acontecendo.

— Sua bruxa! O que você está fazendo comigo?

— Não seja rude — ela o instruiu. — E abaixe a voz. Já te disse, meus


amigos e eu queremos um tour.

A boca do guarda oscilou silenciosamente, como um peixe fora d’água,


enquanto sua língua travava uma batalha perdida contra a influência de Tess.

— Não tenho autorização para isto — ele finalmente conseguiu dizer.


Meghan supunha que ele queria dizer algo um pouco mais alto e mais pungente. —
Estas são instalações de segurança.

— Psiu! — Tess estendeu um dedo diante dos lábios. — Apenas faça o que
eu mandar.

O guarda concordou com a cabeça.

Como se ele tivesse escolha, pensou Meghan.

Kozinski ficou parado, indefeso, sua face lívida traindo seus verdadeiros
sentimentos, enquanto o grupo corria para o interior da guarita. Garrity fechou a
porta silenciosamente atrás dele.

Meghan fez um reconhecimento do local. As fotos que ela havia estudado


durante o voo mostravam ruínas dilapidadas e deliberadamente preservadas em
um estado de decadência embargada, cheias de reboco esmigalhado, cascalho
espalhado e metal enferrujado. Deveria ainda haver árvores crescendo através de
alguns telhados.

Não era o que ela via ao seu redor. A Haspelcorp obviamente havia feito
uma boa reforma no interior do prédio. Tinta industrial bege cobria as paredes de
granito. Lâmpadas fluorescentes dispersavam as sombras tenebrosas do passado. A
estação de trabalho do setor de segurança estava equipada com um grupo de
monitores, permitindo que se vigiasse a rua lá fora. Extintores de incêndio e
alarmes de fumaça mantinham as instalações dentro das regras. Um aviso de
“proibido fumar” fora afixado em uma parede.
Meghan não vira nenhum cartaz proibindo tortura.

— Leve-nos até Richard Tyler — Tess instruiu Kozinski. — Rápido.

Os olhos do guarda se arregalaram à menção do nome de Tyler. Um


protesto estrangulado ainda estava preso por detrás de seus lábios fechados.
Fervendo de frustração, ele se virou e os guiou além da guarita para a prisão
propriamente dita, que havia sido projetada em formato de estrela, com vários
grupos de celas partindo de um círculo central. Um caminho coberto, erguido para
ocultar da vigilância aérea os novos convidados da prisão, os guiou através de um
pátio aberto para outra entrada em arco, que se conectava diretamente ao núcleo.
Até onde Meghan sabia, baseada em sua pesquisa, Kozinski estava levando-os na
direção certa. Eles caminhavam apressadamente, seguindo o guarda.

Mas a invasão deles não demorou a ser descoberta. Um alarme


ensurdecedor invadiu seus ouvidos. As câmeras de segurança rastreavam seu
percurso. Na hora em que eles alcançaram a entrada em arco para a área circular,
um trio de guardas armados já havia se mobilizado para defender o centro nervoso
da prisão.

— Já foram longe o bastante! — vociferou um dos guardas. Pistolas e rifles


miravam os intrusos. — Deitem-se no chão, com as mãos na cabeça!

— Quietos! — Tess os silenciou. — Sem alvoroço, por favor. Vocês vão nos
ajudar agora.

Os guardas abaixaram suas armas. Eles trocaram olhares frustrados entre


si. Seus lábios esboçavam obscenidades, mas nada audível emergia deles. Veias
zangadas saltavam sob suas peles. Eles lutavam incansavelmente, tremendo com
fúria inútil. Punhos cerrados se dependuravam ao lado do corpo.

O controle absoluto da garota sobre os homens tanto impressionou quanto


horrorizou Meghan. Graças a Deus ela está do nosso lado… Por enquanto, pelo
menos.

Tess cobriu as orelhas com as palmas das mãos.

— Alguém poderia, por favor, desligar essa sirene?

Uma estação de comando circular, cheia de painéis acesos e monitores de


vídeo, ocupava o centro da área circular. Os guardas literalmente apostaram
corrida até a estação para atender ao comando de Tess. Após alguns momentos, o
enervante alarme parou.

Os ouvidos de Meghan adoraram o alívio, mas ela sabia de que eles já


haviam perdido o fator surpresa. Não havia tempo a perder. Reforços certamente já
estavam a caminho. Ela rapidamente enumerou as ordens.

— Garrity, você fica aqui. Assuma os controles e fique de olho nos


monitores de segurança — ela sacudiu a cabeça para Tess e Marco. — Vamos
buscar Tyler.

— Mostre-nos o caminho — Tess disse para Kozinski, antes de prover


Garrity com reforços inusitados. — Vocês aí, garantam que não sejamos
incomodados.
Contra a própria vontade, os guardas restantes reassumiram suas posturas
de defesa. Seriam guardas contra guardas. Isto pode ficar feio muito rápido,
pensou Meghan. E sangrento.

Ela pedia a Deus que estivessem fazendo a coisa certa.

Kozinski os escoltou até o grupo de celas número sete. Um teto abobadado


de trinta pés de altura dava ao corredor um ar de catedral profana. Claraboias
geladas revelavam brechas de céu estrelado. Passarelas de metal percorriam a
galeria superior. Portas de aço fechadas, equipadas com janelas de observação,
impediam a visão das celas individuais. Uma mão recente de tinta verde-oliva
pouco contribuía para dispersar a atmosfera opressiva. Seus passos apressados
ecoavam surdamente. Revoltas, assassinatos e suicídios tinham sido comuns
através da longa história da penitenciária estadual. Não admirava que se
acreditasse que a estrutura repulsiva fosse assombrada…

— Cara, eu não estou feliz de estar de novo aqui — comentou Marco. Seus
óculos se sobressaíam sob a máscara de esqui. — Devolvam-me minha Sala das
Teorias assim que possível.

Meghan sabia exatamente do que ele estava falando.

— Felizmente, nós não vamos nos demorar muito por aqui.

Kozinski estacou diante de uma porta de metal reforçada, identificada


apenas pelo número trinta e três.

—Aqui — admitiu ele, através das mandíbulas cerradas. Um músculo se


contorcia em sua bochecha.

Vozes abafadas vinham da Cela 33. Era impossível discernir o que estava
sendo dito, mas um gemido agonizante era inconfundível. Meghan lembrou-se de
Maia descrevendo Tyler sendo torturado. Como de costume, a predição da menina
acertara na mosca.

— Oh, droga — Marco disse. — Está acontecendo agora mesmo.

Sacudido pelo sofrimento óbvio que acontecia bem atrás da porta, ele
correu para o resgate. Meghan agarrou seu braço.

— Espere. Nós não podemos simplesmente invadir como se fôssemos a


cavalaria. Não sabemos o que nos espera lá dentro.

Ela confiscou a arma de Kozinski e a entregou a Marco.

— Surpreenda-os.

A arma parecia estranha e pesada na mão de Marco. Afinal, ele era um


analista, não um agente de campo. Eu deveria estar queimando a mufa na Sala de
Teorias com Abby, ele lamentou, e não encenando a versão filadelfiana da tomada
da Bastilha!
Mas Richard Tyler, e bem provavelmente o resto do mundo, dependia de
ele entrar em contato com seu James Bond interior… Ou, ao menos, seu Austin
Powers21 interior.

— Está bem. Se eu não der sinal de vida em alguns minutos, mande a


cavalaria.

Seu coração batia tão rápido que ele achava que iria atingir a velocidade da
luz. Sua boca parecia tão seca quanto o Arrakis22. Engolindo em seco, ele visualizou
a cela de sua breve visita de algumas horas antes. Ele tinha o desenho de Maia
arquivado em um telefone celular, juntamente com incontáveis fotos da prisão
estadual, capturadas da Internet, mas certamente a cena ainda estava viva em sua
memória. Erguendo a arma, ele mergulhou de cabeça em sua tela mental.

Gerônimo!

Um segundo depois, ele se transportava para uma cena proveniente do


pesadelo de Maia.

Ryland e Astrid “interrogavam” Richard Tyler, que estava algemado à


cadeira no centro da cela. Uma fina camada de gelo cobria o rosto e o corpo do
prisioneiro. Ele tremia como vara verde, enquanto seus torturadores pareciam
implacáveis. Seus dentes batiam. Seus lábios estavam azuis. Marco se arrepiou só
de olhar para ele.

— Podem parar! — ele ordenou, sacudindo a pistola na direção dos


interrogadores atônitos. Ele havia aparecido em um canto nos fundos da cela, de
frente para seus adversários. Distorceu sua voz para evitar ser reconhecido por
Ryland. Apontar uma arma para seu ex-chefe não era nem de longe tão divertido
quanto parecia. — Deixem-no em paz!

Ryland se recuperou do susto causado pela entrada súbita do mascarado.


Ele manteve a frieza.

— Já está de volta? Você está brincando com a sorte, mas por mim, tudo
bem. Nós temos uma cela vazia esperando por você.

A adolescente magricela encarou Marco. Ele já a havia identificado, pela


descrição feita por Maia, como Astrid Bonner, uma garota de cabelos encaracolados
que havia sido capturada pela NSA várias semanas antes do cinquenta/cinquenta.
Sua ficha a descrevia como uma fugitiva adolescente com uma longa lista de
delinquências juvenis, incluindo assalto, vandalismo, furtos e sequestro; um
psiquiatra oficial a havia diagnosticado como detentora de tendências sociopatas
extremas. Uma candidata perfeita para a Haspelcorp, em outras palavras.

— Eu não gosto de ser interrompida — ela disse friamente. Pequenos anéis


de névoa pontuavam cada sílaba.

21
Austin Powers – personagem de Mike Myers na trilogia “Austin Powers”, que satiriza os filmes de
James Bond, o famoso agente 007.

22
Arrakis – deserto fictício da série de livros “Duna”, de autoria de Frank Herbert.
O gelo derretia em Tyler à medida em que ela voltava a atenção para
Marco. Antes que ele pudesse impedi-la, ela se adiantou e bafejou sua arma. Uma
camada de gelo instantaneamente cobriu o aço soldado, que tornou-se frio o
suficiente para queimar a mão de Marco. Entrando em pânico, ele tentou puxar o
gatilho, mas este também estava solidamente congelado. Nada aconteceu.

Droga, pensou Marco. Estou ferrado.

Refrigerar coisas não era o único talento de Astrid. Um golpe e um chute


revelaram habilidade para lutar também. O chute arrancou a arma congelada das
mãos de Marco. Esta bateu no chão com um barulho muito alto. Olhos azuis glaciais
o atingiram como pedras de gelo. Lábios finos azuis se ergueram em um
melancólico sorriso.

— Você acha que está tendo calafrios agora? — ela bafejou. — Espere até
chegarmos ao zero absoluto.

Mesmo com toda a sua genialidade, ele só conseguia pensar em uma coisa
a fazer.

— SOCORRO! — gritou a plenos pulmões.


DEZESSETE

O grito de Marco colocou Meghan em ação. Ela impulsionou-se na direção


da porta, mas era a vez de Tess dar as ordens.

— Não — advertiu ela a Meghan, que instantaneamente deu um passo para


trás. A mulher mais velha não sabia se estava fazendo por vontade própria ou não.
Tess olhou para Kozinski. — Você vai primeiro.

O guarda engoliu em seco. Ele empurrou a porta e marchou na direção da


cela. Quase imediatamente, foi atingido na cabeça por alguém escondido além da
porta. Ele caiu ao chão, segurando a cabeça.

— Mas o que…? — uma voz de homem, que Meghan instantaneamente


reconheceu como a de Dennis Ryland, disse em surpresa. — Eu pensei…

Tess e Meghan adentraram a cela antes que ele pudesse completar a frase.

— Mãos para o alto! — gritou Tess. — Sem armas!

Ryland jogou sua pistola automática para longe. Meghan imaginou que ele a usara
para acertar Kozinski. O antigo diretor na NTAC reconheceu Tess no mesmo
momento; ele estava no comando quando Tom e Diana haviam-na encontrado pela
primeira vez.

— Doerner!

Astrid Bonner investiu contra Tess, mas a garota estava pronta para ela.

— Congele!23

Sua ordem apressada teve um efeito inesperado na adolescente hostil. Um som


asfixiante saiu da garganta de Astrid enquanto, numa velocidade assustadora, ela
congelou a si mesma. Sua pele pálida e translúcida cristalizou-se. Seus olhos
ficaram vítreos. Estalos escaparam de sues pulmões. Seus cabelos brancos
espetados endureceram e fragilizaram. Num instante, ela parecia mais uma frágil
escultura de gelo do que carne e osso. As botas cobertas de gelo deslizaram no
chão. Ela tropeçou… e se despedaçou.

Um pandemônio caiu sobre a cela. Tess se desesperou.

— Não! — gritou ela, caindo de joelhos em frente à adolescente quebrada.


— Não foi o que quis dizer!

— Seu monstro! — sibilou Ryland. Suas mãos ainda estavam erguidas. —


Devia ter te lobotomizado24 quando tive a chance!

23
”Freeze” significa congelado, seria melhor traduzido como “Parada”, mas para manter o trocadilho do
livro, fica com tal tradução.
— Cale-se! — gritou Meghan. Embora estivesse tão chocada quanto
qualquer outro devido ao que acabara de acontecer, ela se controlou pelo bem da
missão. Pegando a arma de Ryland do chão, ela a entregou para Marco. — Não o
deixe ir a lugar algum.

— Er, tudo bem — disse ele, sua voz mais baixa e áspera do que o normal.
Apontou arma para Ryland, seu desconforto evidente até mesmo através da
máscara. Parecia que estava fazendo uma interpretação ruim de Jimmy Cagney.25
— Você ouviu a moça. Fique onde está.

Esperando que Marco pudesse manter Ryland parado, pelo menos por
alguns momentos, Meghan checou Tyler. O prisioneiro brutalizado estava frio e
trêmulo. Parecia à beira de uma hipotermia. Seus dentes não paravam de bater.

— Q-q-quem? — gaguejou ele. — O-o que está acontecendo?

— Viemos tirá-lo daqui — explicou ela, rapidamente. Inspecionando suas


amarras, ela encontrou as mãos deles algemadas atrás da cadeira. Olhou para
Ryland. — Onde está a chave?

Ele olhou para os restos secos congelados de Astrid.

— Pode procurar entre os pedaços.

Que ótimo, pensou Meghan. Ela olhou brevemente para os fragmentos


macabros. Agora que Astrid estava morta, os pedaços estavam começando a
derreter-se numa poça sangrenta. Meghan balançou a cabeça. De jeito nenhum que
ele ia remexer nos detritos sinistros, não quando havia outra opção disponível.

Ela tirou as luvas e tocou nas algemas.

Aqui vamos nós, pensou.

Ela descobrira sua habilidade quando havia, sem querer, transformado uma
caneta tinteiro em uma orquídea. Experimentando com clipes de papel, réguas e
outros objetos, ela eventualmente descobrira que podia transformar materiais
inorgânicos em orgânicos. Em plantas, para ser exato, talvez por causa de seu
amor antigo por jardinagem. Ela não tivera coragem para tentar gerar tecido
animal, e não estava pronta ainda.

As algemas estavam desconfortavelmente frias ao toque, mas seus dedos


não as empurraram. Fechando os olhos, ela visualizou delicadas videiras crescendo
ao sol. As algemas de aço frio amoleceram sob seu toque, ficando quentes e
vibrantes. Quando abriu os olhos de novo, as amarras de metal haviam sido
substituídas por gavinhas verdes folhosas, que ela facilmente rasgou com as mãos.

24
Lobotomia era uma cirurgia que consistia em cortar (isolar) um lobo cerebral, o frontal, para o
tratamento da depressão. Não dava certo porque a pessoa ficava com sérias sequelas neurológicas,
como indiferença, apatia, falta de iniciativa e alterações do humor.

25
James Francis Cagney Jr. foi um ator norte-americano. Era um artista de vários gêneros, mas se
tornou célebre interpretando gângsters violentos e loucos em filmes como Inimigo Público, Fúria
Sanguinária e Anjos da Cara Suja.
— Está tudo bem agora — disse a Tyler. — Você está livre.

Ela colocou suas luvas novamente e ajudou o prisioneiro a se levantar. Seu


macacão de prisão laranja estava úmido e grudento. Ele parecia fraco e exausto
devido à sua provação frígida.

— Consegue andar?

— Não sei — confessou ele. — Talvez.

Colocando o braço sob seu ombro, ela ajudou-o a sustentar-se, desejando


de alguma maneira que ele fosse um homem um pouco menor.

— Certo, todo mundo, nós estamos saindo.

Infelizmente, Tess ainda estava em estado de transe. Cheia de culpa, ela


balançava para trás e para frente ajoelhada. Uma poça de sangue, que cheirava
como uma geladeira de carnes descongelada, exalava diante dela.

— Eu não quis fazer isso — lamentava repetidamente. — Eu só disse


“congele” para que ela parasse, como na TV, sabem? Não é minha culpa…

— Eu sei — disse Meghan. Ela temia pela sanidade da garota. — Tess,


temos que ir. Não é seguro aqui.

Mas Tess parecia perdida em seu desespero. Lágrimas molhavam suas


bochechas. Seu olhar estava preso nos restos que derretiam de Astrid Bonner.

— Não quero mais fazer isso. Já chega…

— Você pode parar depois — prometeu Meghan. Ela estava tentada a


deixar a garota instável para trás, mas, não, Tess os ajudara quando fora preciso;
Meghan não iria abandoná-la agora. Ela vasculhou o cérebro por uma maneira de
convencer a menina. — E o Kevin, Tess? Ele está esperando por você, lembra?
Você quer vê-lo de novo, não quer?

Isso chamou sua atenção. Olhos úmidos e vermelhos olharam para cima.

— Kevin?

— Isso mesmo. — Meghan indicou a porta. — Nós vamos ver o Kevin.

— Sim, por favor — ela se pôs de pé tremendo, repentinamente ansiosa


para deixar a cela escura para trás. Forçou-se a não olhar para o corpo
despedaçado. — Preciso do meu Kevin.

Ryland balançou a cabeça, desgostoso.

— Grande erro — disse ele a Meghan. — Ela pertence a aqui, junto com
todas as outras abominações perigosas.

— Ninguém pertence a aqui — ela devolveu. — Não enquanto você estiver


no comando.
Tiros vieram do lado de fora. Os alarmes soaram novamente, duas vezes
mais altos do que antes. Abaixando-se, eles voltaram na direção da área circular.
Meghan foi à frente, usando Ryland como um escudo humano.

— Esperem! — protestou Tyler fracamente, arrastando os pés. — Meus


amigos. Evee, Yul…

Meghan não reconheceu os nomes, mas imaginou que eles fossem outros
4400 aprisionados na Estadual do Leste.

— Sinto muito — disse ela. Eles não estavam em condições de libertarem


toda a população da prisão, muito menos estranhos que nunca tinham visto.
Teriam sorte se conseguissem sair dali eles mesmos. — Não está no plano.

Por sorte, Tyler não estava em condições de discutir.

— Ouvi isso antes — resmungou ele, amargamente.

Eles chegaram à entrada da área circular. Tiros brilhavam diante de seus


olhos. Garrity e seus aliados forçados haviam se abrigado atrás da estação de
segurança enquanto atiravam de volta em pequenos exércitos de guardas que
tentavam retomar o centro de comando. Grades de ferro haviam sido abaixadas no
local, bloqueando as outras entradas. Os tiros ricocheteavam nas paredes e no
teto, produzindo explosões de pedras e argamassa. A fumaça embaçava a câmara
circular. Faíscas pulavam de monitores e consoles atingidos por balas. Nenhum dos
defensores parecia ter sido atingido ainda, mas Meghan sabia que a sorte deles
podia não durar muito mais.

Ela empurrou Ryland para frente.

— Mande o seu pessoal parar!

— Uma ova que vou mandar! — Ele elevou a voz para gritar para sues
homens. — Não se preocupem comigo! Atirem para matar!

Idiota!, pensou Meghan. Ela não conseguia acreditar que aquele nazista já
estivera no comando da NTAC, muito menos que fora um amigo íntimo de Tom. Ela
o golpeou nas costas com a arma.

— Nem mais uma palavra!

Um tiro sortudo acertou um dos recrutas de Tess no ombro. Ele gritou de


dor quando o impacto o fez girar. Sangue arterial brilhante jorrou em Meghan e nos
outros. Ele caiu ao chão diante de seus pés. Choramingou de dor.

O espetáculo sangrento tirou Tess de seu devaneio. Ela limpou uma


pequena gota de sangue de sua bochecha, então estremeceu dos pés à cabeça.
Seus olhos se arregalaram de espanto.

— Parem de atirar!

As armas silenciaram-se, os ecos da briga de fogo rapidamente


desaparecendo. Abaixando a arma, Garrity olhou aliviado para eles. O suor escorria
de sua testa.
— Já era hora — queixou-se. — Só tenho duas vidas, sabiam?

Sua melancolia típica era estranhamente confortadora.

— Tire o Tyler de Marco — ordenou ela. Garrity se aproximou para ajudar o


prisioneiro manco, livrando Marco da tarefa. — Vá buscar o carro — ela disse.

— Pode apostar. — Ele pegou o celular e abriu uma foto do interior da


limusine. — Estaremos esperando lá fora.

Ele desapareceu de vista.

Agora eles só precisavam chegar à rua. As grades de aço abaixadas


bloqueavam a saída. Tess caminhou direto para a barreira, então olhou para os
guardas sob seu comando.

— Levante os portões. Eu quero ir.

Os dois guardas ainda de pé correram para o painel de controle. Momentos


depois, as grades subiram para o teto como pontes levadiças de uma fortaleza. O
caminho para a portaria se estendia diante deles. Meghan começou a pensar que
eles iriam mesmo escapar.

Então o gás começou a invadir.

Buracos foram abertos no teto. Um gás branco e grosso se espalhou pela


área circular, se misturando com a fumaça restante da batalha. Meghan jogou a
mão sobre a boca, mas a fumaça narcótica invadiu seus pulmões assim mesmo.
Guardas e invasores tossiram por causa do gás. A boca de Meghan umedeceu. Sua
garganta secou.

— Parem com isso! — tossiu Tess, roucamente. Ela cambaleou sem


equilíbrio. — Sem gás. Sem gás!

A infinita fumaça continuou vindo. Algum tipo de sistema automático,


pensou Meghan. Imune à habilidade de Tess.

Mas Tess não era a única com uma habilidade.

Uma ideia louca trespassou pelo cérebro grogue de Meghan. Lutando


contra a tontura que deixava suas pernas como gelatina, ela esticou os braços para
tocar o gás nocivo. Fechando os olhos, invocou uma lembrança de flores
perfumadas. Essência de rosas, para ser exato. Átomos vaporosos refizeram-se
quando a fumaça dava lugar a flores muito mais atraentes. A cabeça e os pulmões
de Meghan se aliviaram. Ela inspirou o doce perfume profundamente. Seus olhos
abriram-se.

A área circular cheirava a jardim de rosas. Para seu alívio, sua equipe ainda
estava de pé.

Garrity cheirava o ar. Ele olhou para Meghan, maravilhado.

— Você fez isso?

— O que mais posso fazer? — disse ela. — Gosto de flores.


Sob o controle de Tess, os guardas no pátio afastaram-se para deixá-los
passar.

— Segurem eles, caramba! — berrou Ryland para os homens, mas a


habilidade sinistra de Tess era maior que sua autoridade. Quando chegaram à
saída, ela abriu o portão. Eles desceram os degraus para a calçada. Meghan sentiu-
se com esperança quando eles finalmente deixaram a prisão para trás.

Estamos quase conseguindo, pensou.

Uma limusine preta encostou-se ao meio-fio. Janelas filmadas abaixaram-


se, revelando Jed Azul atrás do volante.

— Demoraram bastante — disse ele. — Bom para vocês que eu não sou
pago por hora.

A porta de trás se abriu. Marco os chamou do assento traseiro. Uma


máscara ainda cobria seu rosto.

— Todos a bordo.

A limusine era um colírio para os olhos. Meghan empurrou o resto da


equipe na direção da porta.

— Andando!

Logo quando ela pensou que estavam seguros, um tiro estourou acima de
suas cabeças. Um atirador, ela percebeu instantaneamente. Nas muralhas no
castelo!

O tiro errou Tyler, atingindo Jed Vermelho, no entanto. Meghan congelou


horrorizada quando a cabeça de Garrity explodiu como uma melancia.

— Jed!

Dentro da limusine, o outro Jed gritou e agarrou a cabeça.

Tess levantou o queixo na direção das ameias altas do castelo. Seu rosto
delicado transformou-se numa máscara de ódio.

— Pule! — gritou ela.

O atirador estourou-se na calçada, somando-se à carnificina. Uma perna


quebrada pousou-se em um ângulo sobrenatural. Ele contorceu-se de dor. Meghan
aproximou-se correndo e chutou seu rifle para longe dele. Ela não sentia pena do
atirador ferido. Francamente, ele tinha sorte por estar vivo.

Seu cérebro ainda estava assimilando a morte bruta de Garrity. Controle-


se, Doyle, pensou ela urgentemente. Pelo menos até que leve essas pessoas para
casa.

— Bem, é um 4400 a menos — disse Ryland, insensivelmente.


O punho de Meghan aliviou-se da frustração em sua mandíbula. Tonto, ele
caiu na calçada. Socar Ryland não trouxe Jed Vermelho de volta à vida, mas ah se
isso não a fazia sentir-se um pouco melhor. Isso é pelo Garrity… e todos os outros
positivos que você atormentou.

Deixando seu antecessor estatelado no chão, ela ajudou Tyler, que havia
caído ao lado do corpo de Garrity. Ele olhava para o crânio estourado do agente.

— Eu nem mesmo sabia seu nome…

— Eu lhe apresento depois — prometeu ela, sem se preocupar em explicar.


Rapidamente o colocou dentro do carro, então se virou para o cadáver de Garrity.
Eles não podiam deixar o corpo do agente para trás, não sem expor que a NTAC
estava envolvida na invasão. Seu estômago revirou enquanto ela e Tess colocavam
o corpo na parte de trás da limusine junto com os outros passageiros. Sangue e
miolos mancharam toda a sua luva e jaqueta.

Ela teria de queimá-las assim que tivesse uma chance.

Tess entrou junto com Marco, Tyler e o resto do cadáver, enquanto Meghan
checava o Garrity sobrevivente. Jed Azul estava pálido e trêmulo, mas parecia
fisicamente bem. Teria ele sentido a morte de seu duplo de alguma maneira? Os
irmãos Corsican26, pensou ela. Olhando por sobre os ombros, ele encarava seus
restos assustadores em choque.

— Olhem para mim — choramingou ele. — Eles explodiram minha cabeça…

Claramente, ele não estava em condições de dirigir. Meghan abriu a porta


do motorista.

— Para o lado… agora.

Ela o empurrou para o banco do passageiro e sentou-se atrás do volante.


As janelas filmadas fecharam-se novamente, escondendo os fugitivos. Ela tirou sua
máscara. Colocando o cinto de segurança, afastou-se do meio-fio. Buzinas
indignadas soaram atrás quando ela forçou seu caminho em meio ao trânsito.

E não tão cedo. Sirenes gritaram pela noite. Ela ouviu os carros de polícia
convergindo na prisão. Alguém denunciara os tiros ou já era a perseguição? De
qualquer modo, a vizinhança logo estaria lotada pelos policiais, FBI e Segurança
Doméstica.

Ela acelerou.

Luzes pisca-pisca apareceram no espelho retrovisor. Um carro de polícia


apareceu freando virando a esquina.

26
The Corsican Brothers é um filme de 1941, com Douglas Fairbanks Jr. atuando num papel duplo como
gêmeos siameses que são separados no nascimento e criados em circunstâncias completamente
diferentes. Os dois querem se vingar do assassino de seus pais e se apaixonam pela mesma mulher.
— Marco! — chamou ela. — Ligue para o pessoal do Collier. Agora é a hora
para aquela distração que ele prometeu.

— Deixa comigo! — Dedos ágeis digitaram uma mensagem. — Pronto!

Os agentes de prontidão de Collier não perderam tempo. Minutos depois,


as luzes se apagaram em toda a avenida, enquanto um apagão deixava Filadélfia
na penumbra. Carros colidiram quando os semáforos piscaram. A limusine deslizou
por um cruzamento, quase batendo em um caminhão. Mais buzinas se juntaram ao
tumulto. Ela não desacelerou.

Isso deve manter as autoridades ocupadas por um tempo, pensou. O


tempo suficiente para chegarmos ao campo de pouso. Olhando pelo retrovisor, ela
viu que eles haviam despistado aquele carro de polícia. Talvez tivesse parado para
checar o atirador.

Richard tremeu no banco de trás.

— Onde estamos indo?

— Para um lugar seguro — prometeu ela. Os agentes de Collier estavam


esperando em Seattle para escoltá-lo para um esconderijo do Movimento. Ela
aumentou a temperatura para aquecê-lo. Um pergunta vital ocorreu a ela. — Você
falou? O Ryland conseguiu o que queria?

Ele balançou a cabeça.

— Vocês me resgataram a tempo, no entanto. Não sei quanto mais poderia


aguentar.

Obrigada, Maia Skouris, pensou Meghan. Que bom que Jed Vermelho não
havia morrido em vão. Missão cumprida.

Tirando o seu celular do bolso, ela contatou o avião.

— Estamos a caminho.

— Positivo. Deixaremos os motores ligados.

Demorou um segundo para ela reconhecer a voz do outro lado da linha.


Não podia acreditar no que ouvia.

— Garrity?

Marco e Tess reagiram no banco de trás. Jed Azul quase pulou de seu
banco.

— Quem mais? — respondeu a voz. — Tudo bem? Você está engraçada.

Meghan olhou para o Garrity morto no chão atrás dela. Seu sangue ainda
pingava no carpete interior da limusine. Seu olhar voltou para o telefone. Havia um
novo Garrity agora? Para substituir o que havia morrido?

Como esperado, Marco já estava formando uma teoria.


— Talvez seja um sistema de backup automático, gerando uma cópia de
segurança toda vez que um Garrity é deletado. — A empolgação enchia sua voz
enquanto ele aquecia a ideia. — É como a apólice de seguro final.

— O que é isso? — perguntou o novo Jed. — Não entendi nada.

— Deixa pra lá — disse Meghan. Ela tinha muito em suas mãos agora para
lidar com mais esquisitices. — Explicaremos depois.

Se é que isso fosse possível.


DEZOITO

O experimento estava em curso.

Carl estava amarrado a um sofá em frente a Tom e Diana, seminu, só com


um short preto de boxeador. Uma tatuagem de Jordan Collier enfeitava seu bíceps
direito. O corpo de Danny – o verdadeiro, aparentemente – estava estirado em
uma maca, ao seu lado. Abby se encontrava de pé entre o rapaz morto e o vivo,
encarando os agentes prisioneiros. Um vestido de caxemira cinza confirmava que
ela tinha muito mais senso de moda do que os nerds comuns da Sala de Teorias.
Ela flexionou os próprios dedos.

Eletrodos estavam presos às têmporas e ao peito de Carl. Um acesso


intravenoso fora inserido em seu braço. Uma bateria de sofisticados equipamentos
médicos monitorava seus sinais vitais. Grayson se ocupava dos aparelhos,
registrando cuidadosamente as leituras. Rosita equipava o carrinho de reanimação,
caso houvesse alguma emergência.

Ainda presos às suas poltronas, Tom e Diana só podiam assistir Abby e


seus comparsas completarem suas preparações.

— Esta é a sua última chance. — Abby disse para Carl. — Ninguém vai
culpá-lo se quiser voltar atrás.

— De jeito nenhum — respondeu passionalmente o rapaz. — Esperei a


minha vida inteira por este momento. É a minha grande chance de fazer a
diferença.

Tom imaginou que homens-bomba deveriam se sentir exatamente assim.


Ele estava horrorizado com a vontade que Carl estava de jogar fora sua própria
vida, tudo por uma chance de obter a mesma habilidade horrível que arruinara a
vida de Danny. Ele não enxergava que Danny havia morrendo atormentado, com
milhares de mortes em sua consciência?

— Seu comprometimento com a causa é inspiração para todos nós — disse


Grayson, com um tom suave e profissional, que ele certamente havia usado para
consolar incontáveis clientes enlutados. Ele injetou vários centímetros cúbicos de
uma substância amarelo-escura no acesso intravenoso de Carl. — Este novo
composto deve facilitar a transformação e superar o fator de resistência natural de
seu corpo. Eu também incluí um anestésico, para aliviar a dor.

Tom se perguntava quantos compostos anteriores Grayson havia tentado,


no passado. Eles conheciam ao menos quatro fatalidades.

— Não estou com medo da dor — insistiu Carl, não convencido


inteiramente. Apesar de sua coragem, ele parecia meio pálido. Seus dedos
tamborilavam nervosamente na poltrona abaixo dele. — Vamos logo com isto.

— Tudo bem — respondeu Abby. Um trinado em sua voz sugeria que ela
não estava nem um pouco confiante como fingia estar. Ela respirou fundo e pousou
as mãos nos corpos dos dois lados dela, formando um circuito entre o vivo e o
morto. Seus dedos estavam estendidos sobre o peito de ambos os homens. Ela
fechou os olhos.
— Abby, espere! — Diana gritou. — Isto é loucura. Você vai matar o rapaz!

— Cale a boca! — gritou Rosita. Ela ergueu uma seringa do carrinho de


reanimação. — Não me faça apagar você.

Tom não queria saber o que havia dentro da seringa.

Ignorando o apelo desesperado de Diana, Abby manteve os olhos fechados


com força. Um ar de intensa concentração se estampou em seu rosto. Suas unhas
se cravaram no peito dos rapazes. Tom sentiu um embrulho no estômago ao ver o
corpo de seu sobrinho ser profanado daquela maneira. Deixe-o em paz, sua traíra
maluca!

A forma sem vida de Danny permaneceu inerte. Carl não teve a mesma
sorte. Convulsões sacudiam seu corpo. Ele se agitava violentamente dentro das
amarras. Suas costas se arqueavam como se ele estivesse sendo eletrocutado.
Seus olhos rolaram para trás, até que só a parte branca estivesse visível. Veias
inchadas pulsavam sob sua pele. Um lamento de agonia irrompeu de sua garganta.
Tufos de cabelos avermelhados caíram de sua cabeça. Ele espumava pela boca.

Seus sinais vitais subiram de modo alarmante. Tom não era médico, mas
havia passado tempo suficiente no hospital durante o coma de Kyle, para saber que
a pressão sanguínea, a pulsação, a atividade cerebral e outras funções metabólicas
de Carl estavam chegando ao topo. Alarmes sonoros se ativaram nos caros
aparelhos de monitoração. Gráficos irregulares subiam vertiginosamente. Tom
achava que Carl estivesse a poucos momentos de um ataque cardíaco.

— Droga — praguejou Grayson. Ele injetou mais composto experimental no


acesso intravenoso. — Estamos perdendo ele… Igualzinho aos outros!

Rosita preparou o desfibrilador.

— Não! — exclamou Abby. Sua testa lisa se enrugou, em concentração.


Todo o seu corpo parecia vibrar. O suor escorria por seu rosto. — Está
funcionando! Posso sentir!

Algo estava definitivamente acontecendo com Carl. Sua carne borbulhava e


se derretia, fluindo para uma nova configuração em sua estrutura retorcida. Suas
feições ficaram borradas. Cabelos loiros, tom de areia – da cor dos de Danny –
brotaram por todo o couro cabeludo, substituindo os tufos que haviam caído ao
chão. Sua tatuagem desaparecera debaixo de uma pele rosada e fresca. Um novo
rosto se modelou em seu crânio.

O rosto de Danny.

Oh, Deus, pensou Tom. Se ele não soubesse, juraria que era seu sobrinho
morto sofrendo diante de seus olhos. Danny/Carl gritava em agonia. Tom desviou o
olhar, repugnado. Ele sentia como se fosse vomitar.

— Não é ele, Tom. — Diana gritou para ele. — Não é Danny.

Eu sei, pensou Tom, mas ainda assim…

Era como se Danny estivesse morrendo novamente.


Os lamentos desoladores foram diminuindo gradualmente. Tom se forçou a
permanecer observando as convulsões de Carl desaparecerem. Seus sinais vitais se
estabilizaram. Arfando, ele se afundou nas almofadas de vinil da poltrona. Seu
peito se elevava conforme seus pulmões se enchiam de ar. A carne trêmula estava
ensopada de suor. Seus olhos voltaram á posição normal. Eles estavam castanhos
agora, a mesma cor dos de Danny. Um arrepio desceu a espinha de Tom quando os
olhos de seu sobrinho se viraram para ele.

— Funcionou? — ele perguntou, fracamente. Até sua voz era a de Danny.


— Nós conseguimos?

Abby retirou suas mãos de Carl e Danny. Ela parecia exausta, mas
exuberante.

— Absolutamente!

Grayson desfez as amarras de Carl. Ele pegou um espelho de mão em uma


bandeja de instrumentos cirúrgicos.

— Veja por si mesmo.

— Caramba! — Carl encarou seu novo rosto, surpreso. Seus dedos


exploraram os contornos desconhecidos. Ele olhou para Abby. — E eu não vou
morrer?

— Parece que não — ela soltou um suspiro de alívio, claramente feliz por
não ter sangue nas mãos mais uma vez. — Parabéns. Você é a primeira pessoa que
sobreviveu a um transplante total de DNA.

Grayson parecia que ia abrir uma garrafa de champanhe. Ele apertou a


mão de Carl com entusiasmo, enquanto Rosita observava com ar de felicidade.

— Agora só temos que injetar promicina nele e ver se desenvolve a


habilidade de Danny.

— Ele irá — disse Abby, confiante. — Ele é uma cópia perfeita agora — seu
rosto brilhava de orgulho diante de sua façanha. — E isto é só o começo. Agora que
aperfeiçoamos o procedimento, podemos criar centenas de clones de Danny para
espalhar o dom da promicina. Imagine só — empolgou-se ela — um verdadeiro
exército de hospedeiros despachados para o mundo todo, criando novas epidemias
em todos os lugares aonde forem. Será como repetir o Grande Passo Adiante, só
que em escala global.

Parece mais outro cinquenta/cinquenta, pensou Tom, matando metade da


população mundial. Ele não podia imaginar tragédia maior. E tudo porque esses
demônios não deixam Danny descansar em paz.

— Não tão rápido — disse Diana. — Não se esqueçam. As autoridades


sabem sobre o poder de disseminação, agora. Eles podem combater quaisquer
outras epidemias, como fizeram em Seattle.

— Eles podem tentar – replicou Abby, despreocupadamente. — E talvez, se


eles estiverem mesmo empenhados, possam proteger alguns centros populacionais
importantes por certo tempo. Mas e quanto ao Terceiro Mundo e coisas do tipo?
Uma vez que a epidemia começar a se expandir pelo mundo, duvido que algum
governo tenha os recursos para impedir que se espalhe e fique fora de controle.
Ninguém tem tal estoque de U-pills. O Movimento já percebeu isto.

Diana não tinha resposta imediata. É porque, observou Tom, ambos


sabemos que ela está certa.

— Se quiser deixar uma mensagem, digite um.

Kyle xingou, frustrado. Ele martelou o teclado de seu telefone celular.

— Pai, sou eu de novo. Kyle. Me liga assim que puder, OK? Estou ficando
doido aqui.

O sinal sonoro da caixa postal tocou, em resposta.

— Droga! — zangado, Kyle arremessou o telefone para o outro lado da


sala. O aparelho bateu nas almofadas do sofá, no lado oposto do escritório. Ele
caminhava pela sala agitado, puxando os cabelos, frustrado. Já haviam se passado
horas desde que contara a seu pai sobre o Comitê de Alcance Global e aquele
centro de plasma fechado, e não tivera mais nenhuma notícia desde então. Ele
tentou o telefone da casa de seu pai, o do trabalho, o celular, até o e-mail, mas não
conseguia se comunicar com ele. Diana também não estava retornando suas
chamadas urgentes. Droga, ele até tentara falar com a nova namorada de seu pai,
Meghan Doyle, sem conseguir nada. Por que ninguém me retorna? Estarão me
cortando da jogada?

— É melhor pensar que ninguém viu ainda os seus recados — Cassie o


repreendeu. Ela estava sentada à mesa dele, folheando uma cópia das profecias da
Luz Branca. — Talvez você se complique quando tiver que explicar aos seus colegas
aqui o porquê de insistir em ligar para a diretora da NTAC.

Kyle não estava a fim de aturar as lições de moral dela.

— Este é o melhor conselho que você tem para me dar no momento? Neste
caso, talvez devesse me deixar em paz.

Uma batida na porta os interrompeu. A porta se abriu um pouco e Susan


Meldar, secretária de Kyle, colocou a cabeça pela fresta.

— Kyle? — olhos preocupados o fitaram. — Tudo bem por aqui?

Para seu constrangimento, Kyle notou que sua explosão há alguns


momentos tinha sido escutada mesmo com a porta fechada.

— Nós estamos bem… Quero dizer, eu estou bem — ele se corrigiu. —


Desculpe pelo barulho — um encolher dos ombros disfarçou o incidente. — Muito
estresse, sabe?

— Posso te ajudar em alguma coisa? – ofereceu Susan. Ela ainda parecia


um pouco preocupada com Kyle. — Talvez uma xícara de chá de ervas?

Ele sacudiu a cabeça.


— Não, obrigado – ele respondeu, exibindo um sorriso forçado. — Sério,
estou bem. Tenho apenas um assunto de família para resolver, é isto — ele tentou
rir daquilo. — Você sabe como parentes podem ser doidos.

— Acho que sim – ela disse, antes de retornar para a antessala. A porta se
fechou por trás dela. Passos abafados se dirigiram para a mesa dela.

Kyle respirou aliviado. Ótimo, ele pensou, sarcástico. Agora estou


começando a perder o controle diante dos funcionários. Que xamã eu sou…

— Essa foi tranquila — provocou Cassie. Parecia que ela agora estava
sempre com ele, nunca lhe dando chance de pensar por si mesmo. –— Você tem
que se controlar, Kyle. As pessoas te respeitam aqui. Você tem que ser um
exemplo.

— Obrigado pela dica — ele respondeu, irritado. Atravessando a sala, ele


pegou o telefone dentre as almofadas. Automaticamente checou as mensagens de
novo, mesmo que apenas alguns minutos tivessem se passado desde a última vez
em que ele as havia verificado.

Nada.

Ele reprimiu um ímpeto de arremessar o telefone novamente. É isso, ele


pensou. Eu não posso ficar aqui parado nem mais um minuto. Preciso saber o que
está acontecendo.

A cópia do livro das profecias o desiludiu. Mesmo com toda sua sabedoria,
não continha a informação de que ele precisava naquele exato momento. Não
ajudava em nada.

Bem como Cassie.

Só restava uma opção a recorrer.

Jordan, ele pensou. Talvez Jordan saiba de algo.

Ele havia prometido a seu pai que não falaria sobre isso com Jordan, mas
isto fora antes de ele e Diana desaparecerem da face da Terra. Eu não tenho que
contar a história toda para Jordan, ele raciocinou, mas talvez eu consiga arrancar
dele alguma informação sem dar bandeira. Vale a pena tentar.

Qualquer coisa era melhor do que sofrer com o suspense por mais um
minuto.

Decidido, ele saiu do escritório e caminhou rapidamente pela antessala.


Para sua surpresa, Cassie não tentou impedi-lo. Talvez ela soubesse que não
adiantava tentar convencê-lo. O saguão acarpetado estava fervilhando de
atividade, com todos os seus colegas positivos ocupados em preparar a
reconstrução de Seattle e, por conseguinte, do mundo todo. O tumulto de
numerosos telefonemas e conversas indicava a vitalidade do Movimento. Um
retrato emoldurado de Jordan estava pendurado em uma parede. Música ambiente,
executada pelo Coro de Meninos da Terra Prometida, tocava baixinho, ao fundo. Os
cantores sobrenaturais e talentosos alcançavam notas que mesmo Castrati 27
hesitariam em tentar emitir.

Kyle sentiu-se estranhamente constrangido. Quantas pessoas já haviam


presenciado ele se descontrolar antes? Estava ficando paranoico, ou podia mesmo
sentir dezenas de olhos o observando, enquanto passava pelos vários cubículos
adjacentes ao seu escritório? Susan Meldar olhou para ele cautelosamente por
detrás de seu computador. Suas mãos não se encontravam nem perto do teclado.
Ela pesquisava na internet apenas apontando os dedos para a tela. Um grupo de
funcionários, que conversava socialmente em volta do bebedouro, se calou
estranhamente quando ele passou. Ele tropeçou no carpete, fazendo ruído. Até
onde sabia, alguém estava lendo seus pensamentos naquele exato momento.

Concentrou todos os seus esforços em agir como se não estivesse


pensando em nada.

Jordan ficava no escritório do canto, no final do corredor. Como sempre,


dois guarda-costas estavam posicionados do lado de fora. Galloway podia induzir
dores de cabeça enlouquecedoras e convulsões só de olhar para alguém. Quinn
podia sentir pólvora e outros explosivos a centenas de metros. Nenhum dos dois se
moveu quando Kyle se aproximou.

Kyle falou descontraído.

— Preciso falar com Jordan.

— Ele pediu para não ser incomodado – respondeu Galloway, sem muita
convicção. Kyle havia conhecido aquele homem em Evanston, um ano atrás. Ele
estava com Collier desde o início.

— Até por mim? — sorrindo de orelha a orelha, ele se impôs de leve. —


Qual é, amigos, eu sou o Sr. Profecia, lembram-se? Jordan sempre tem um
tempinho para mim.

Os guardas olharam um para o outro, e então saíram do caminho. Eles


estavam acostumados a ver Kyle ir e vir livremente.

— Está bem — Quinn cedeu. — Mas seja breve.

Kyle encontrou Jordan em sua mesa, conversando através de um fone de


ouvido. A chuva salpicava as janelas panorâmicas atrás dele. Uma televisão de tela
plana, pendurada na parede, lançava um brilho fosforescente. A TV estava com o
som cortado. Jordan usava um controle remoto para navegar por vários canais de
notícias enquanto falava ao microfone.

— Bom, bom. É bom saber que nosso amigo está se recuperando. Mas
lembre-se, nós precisamos conservar nosso trunfo, agora que ele está de volta. De

27
Castrati – cantor masculino cuja extensão vocal corresponde completamente à das vozes femininas.
Tal faculdade numa voz masculina só é verificável na sequência de uma cirurgia de corte dos canais
provenientes dos testículos, ou então por um problema endocrinológico que impeça a maturidade
sexual. Consequentemente, a chamada “mudança de voz” não ocorre.
maneira nenhuma os nossos aliados estarão autorizados a tomar posse do indivíduo
em questão…

Jordan notou a entrada de Kyle. Uma centelha de perturbação relampejou


em sua face barbada.

— Desculpe — ele disse para a pessoa com quem estava falando. Ele olhou
para seu visitante. — Agora não é uma boa hora, Kyle.

Ele olhou de relance para a tela da TV. Kyle viu que o noticiário legendado
estava mostrando um blecaute geral na Filadélfia. Ele fez um sinal de “tempo
esgotado” para Jordan.

— Algo que eu devia saber?

— De modo algum — respondeu Jordan. — Estou somente negociando a


soltura de um prisioneiro político na Costa Leste. Mas eu realmente não tenho
tempo para conversar agora.

Kyle não se importou.

— Só uma perguntinha — ele disse, se desculpando. — O que você sabe


sobre uma coisa chamada Comitê de Alcance Global?

— É só isso? — o nome não pareceu alarmar Jordan. — É uma iniciativa de


pouco vulto. Para promover o apoio de promicino-positivos no exterior — ele olhou
de modo confuso para Kyle. — Por que o interesse?

— Nada demais — ele mentiu. — Só vi o nome em um relatório. Estava me


perguntando o que era.

Jordan suspirou, impaciente.

— Tenho certeza de que alguém do décimo andar pode te dar maiores


detalhes, mas, honestamente, você não deveria perder seu tempo e energia com
tais minúcias. Nós temos bastantes e talentosos relações-públicas disseminando
nossa mensagem para as massas. Ao invés disso, você tem que se concentrar na
grande causa. Esta é a sua função — seu olhar se voltou novamente para a tela de
TV. — Agora eu realmente preciso voltar a esta ligação.

Kyle ainda não estava satisfeito.

— Só mais uma coisa. Por acaso você ouviu alguma coisa sobre meu pai
hoje? Ou sobre Diana Skouris?

— Acredite ou não, Kyle — ele disse, com um quê de irritação em sua voz
— eu não fico o dia inteiro obcecado com o que o seu pai e a parceira dele estão
fazendo. Se você está tendo problemas com Tom por algum motivo, sugiro que
resolva isso com ele, não comigo.

Kyle sentiu que estava sendo convidado a se retirar.

— Você está me mandando embora, Jordan?


— De maneira nenhuma. — Jordan suspirou novamente, mais
desgastadamente, desta vez. — Mas, infelizmente, meus dons não incluem parar o
tempo em seu curso — ele adotou um tom mais conciliador. — Talvez nós
possamos discutir isso mais tarde?

— Sim, claro — disse Kyle, mal-humorado. Ele percebeu que não ia


conseguir mais nada de Jordan. Virou-se e encaminhou-se para a porta. — Mais
tarde.

Jordan deixou-o ir.

— Por favor, feche a porta ao sair.

Espumando, Kyle caminhou de volta para seu escritório. Ele bateu a porta
com força, sem se importar se alguém ouviria. Seu pai estava desaparecido, talvez
em apuros, e ele parecia ser a única pessoa que se importava com isso.

Cassie estava esperando no sofá.

— Acalme-se, Kyle. Deixe para lá.

— É fácil para você dizer isso — disparou Kyle. — Você não tem pai. Nunca
teve.

— Ai — disse ela, parecendo magoada. — Isto foi indelicado.

Ele imediatamente se arrependeu das suas palavras.

— Desculpe. Eu não deveria descontar em você. Isso tudo está acabando


comigo — a culpa se juntou à sua ansiedade. — Eu dei aquele endereço ao meu
pai, Cassie. E se foi um grande erro, como você falou? E se ele estiver em perigo
por minha causa?

Ela se levantou e pegou o braço dele.

— Não seja tão duro consigo mesmo. Você fez tudo o que podia.

— Não, ainda não fiz — uma decisão súbita tomou conta dele.
Desvencilhando-se do abraço de Cassie, ele apanhou seu sobretudo em um
cabideiro ao lado da porta. Vestiu-o com pressa, e vasculhou sua mesa até
encontrar o endereço do centro de plasma. — Eu mesmo vou até lá.

Cassie reagiu alarmada.

— Não é uma boa ideia.

— Ah, não? — ele a desafiou. — E por quê?

Ela se colocou entre ele e a porta.

— Não é seguro.

Aquilo não era suficiente.


— Como assim?

— Você não precisa saber dos detalhes — ela respondeu, teimosa. —


Apenas acredite em mim, você não deve ir até lá. É muito perigoso.

— Então você deveria me ajudar um pouco mais! — o tom amargo em sua


voz o surpreendeu, e ele levou um segundo para se acalmar. Não queria discutir,
especialmente quando precisava mesmo dela ao seu lado. Ele a segurou
gentilmente pelos ombros e olhou-a nos olhos. — Por favor, Cassie — ele implorou,
com voz rouca. — Você não entende? Estou sozinho aqui. Até que eu descubra o
que está acontecendo, não posso confiar em ninguém na NTAC ou no Movimento.
Você é tudo o que me resta. Estou contando contigo, por favor! — seus olhos
procuraram desesperadamente o rosto dela. — Você me ama ou não?

— Isso não é justo, Kyle — ela protestou. — Não diz respeito a nós, e sim
ao que é melhor para você, e para o futuro — ela aninhou o rosto dele entre suas
mãos. — Você é muito importante para o Movimento. Não posso deixar que se
coloque em perigo por causa de seu pai.

— Ótimo. Porque eu irei de qualquer maneira — ele a afastou do caminho e


se encaminhou para a porta. — O que significa que você pode ficar aqui, de cara
feia, ou pode me ajudar a me manter vivo.

Ela olhou furiosa para as costas dele.

— Você não se atreveria!

— Experimenta só.

Tremendo de frustração, seus punhos cerrados ao lado do corpo, ela


observou, impotente, enquanto ele segurava a maçaneta da porta. Abriu a porta e
a deixou para trás.

— Tá legal — ela disse, petulante. — Você venceu! — ela correu atrás dele.
— Mas você me deve uma!
DEZENOVE

O CENTRO DE PLASMA ficava numa parte ruim da cidade. Kyle olhava em volta
nervosamente enquanto Cassie o guiava com rancor por um beco sujo atrás do
prédio abandonado. Nuvens escuras obscureciam a luz fraca do sol. Uma garoa fria
descia pelo seu pescoço. Poças gordurosas derramavam-se pelo chão.

— Só para constar, estou fazendo isso sob protesto — lembrou-o Cassie.


Um casaco de pele e lã a protegia do frio, ou ao menos parecia proteger. Seu
guarda-roupa todo era tão ficcional quanto o resto dela. Kyle ás vezes imaginava
qual parte do seu inconsciente escolhia suas roupas e acessórios toda vez que ela
aparecia para ele; eles sempre pareciam encaixar-se com a situação.

No momento, porém, ele tinha questões mais importantes em mente.

— O meu pai está aqui? E a Diana?

— Sim, mas teremos que ter cuidado. — Ela subiu um pequeno lance de
degraus até uma área de descarregamento de mercadorias no fundo do prédio.
Manteve a voz baixa, mesmo que ninguém pudesse escutá-la. — Há quatro pessoas
perigosas lá dentro, e não ficarão felizes em vê-lo.

Kyle juntou-se a ela na porta dos fundos. Ele desejou ter pensado em
trazer algum tipo de arma, embora não fizesse ideia de onde teria conseguido uma.
Jordan objetava armas na Terra Prometida; ele preferia que os positivos confiassem
em suas habilidades ao invés disso. Agora isso não adianta nada.

— O cadeado está quebrado — anunciou Cassie. — Obra do seu pai, pode apostar.
Mas você não pode simplesmente entrar. Tem que esperar pelo momento certo,
quando as pessoas lá dentro estiverem distraídas e olhando para o outro lado.

Kyle sentiu um calafrio ali na área de descarregamento. Abraçou a si mesmo para


manter-se aquecido.

— E como vou sabe quando é isso?

— É por isso que estou aqui, bobinho. — Cassie abaixou a voz para um sussurro
conspiratório. — Agora escute com atenção. O que você precisa fazer é o seguinte…

— Temos a promicina! — declarou Grayson triunfantemente. Ele mexia um bastão


de metal por baixo dos braços de Carl, como um segurança de aeroporto
verificando um passageiro suspeito com um detector de metais. Um fino cabo
eletrônico conectava o bastão com um monitor portátil. Grayson olhava para a tela
iluminada do monitor. — O Carl está definitivamente exalando promicina de seus
poros. Estou detectando aproximadamente três mil e sessenta partículas por
milhão.

Abby bateu palmas.

— Conseguimos! Finalmente!
— Sabia que ia dar certo! — Carl sentava em cima da poltrona de vinil,
suas pernas suspensas do lado. Um roupão de banho de algodão estava aberto,
expondo seu peito nu. O soro e os eletrodos haviam sido retirados de seu corpo.
Ele esfregava o braço onde Rosita injetara promicina mais cedo. Sua inquietante
semelhança com Danny continuava perturbando Tom. Danny parecia ter se
levantado dos mortos, assim como Jordan Collier.

Isso é um pesadelo, pensou Tom. E só está piorando.

Carl olhou para ele, que ainda estava amarrado numa poltrona ao lado de
Diana. Ele franziu o cenho impaciente.

— Como pode ele não estar reagindo ainda?

— O efeito raramente é instantâneo — observou Abby. — Eu não


desenvolvi minha habilidade até dias depois de ter sido infectada. Além do que,
ainda é possível que ele tenha bastante ubiquinona28 no sistema.

Tom torceu para que esse fosse o caso. Já estou infectado, indagou-se ele,
ou as U-Pills estão me protegendo? De acordo com Kyle, ele estava condenado a se
tornar um positivo. Era hoje o dia em que a profecia finalmente se realizaria?

— É fácil descobrir — comentou Grayson. Ele abaixou o bastão sensorial. —


Um simples exame de sangue nos mostrará seus níveis de ubiquinona e nos dirá se
ele virou positivo ou não. — Ele acenou para Rosita. — Faria a honra?

— Claro, Bernard — a filipina arrastou um carrinho de metal até a poltrona


de Tom. Ela tirou uma seringa metálica de uma gaveta embaixo do carrinho, junto
com gaze e outros suprimentos, e os pousou numa bandeja esterilizada. Levantou a
manga de Tom e amarrou um torniquete em seu braço. Dedos rechonchudos
apalparam a veia na dobra de seu braço até que ela se sobressaltou. Ela limpou
com antisséptico. — Têm boas veias.

— Obrigado — disse Tom friamente. Ele se esticou mais uma vez contra as
amarras que o prendiam, mas não teve sorte. — Espero que saiba o que está
fazendo.

— Não se preocupe — assegurou-o Abby, — Rosita era flebotomista29 aqui,


antes de fechar. Foi assim que descobrimos esse lugar. — Ela se aproximou para
observar o procedimento. — Você está em boas mãos.

Duvido, pensou Tom. Antes que pudesse dizer alguma coisa, no entanto,
ele se sobressaltou ao ver Kyle esgueirar-se na sala pelos fundos, do mesmo modo
que ele e Diana fizeram. Confusão e esperança rodearam seu cérebro. O que ele
está fazendo aqui?

28
A Ubiquinona (também chamada de Coenzima Q10, Coenzima Q e abreviada como CoQ10, CoQ, Q10 ou
Q) é uma benzoquinona presente em praticamente todas as células do organismo que participa dos
processos de produção de ATP.

29
É um profissional que tem como função fazer uma incisão praticada na veia, com objetivos diversos.
Colocando um dedo em frente aos lábios, Kyle moveu-se pelo andar de
doação na direção de uma das poltronas vazias. Tom entendeu que seu filho queria
as armas que Carl cuidadosamente havia depositado ali antes. Infelizmente, as
armas estavam do outro lado do local. Kyle conseguiria alcançá-las sem ser visto
por Abby e pelos outros?

O rosto de Tom congelou enquanto ele se esforçava para não entregar a


chegada de seu filho. Por sorte, sua surpresa momentânea seria entendida como
ansiedade por causa do exame de sangue à frente. Ele resistiu à tentação de olhar
para Diana, que também avistara Kyle. No momento, todos olhavam para Tom,
assim ficavam de costas para Kyle. Tenho que manter isso assim, percebeu ele. O
tempo suficiente para que Kyle alcance aquelas armas.

A seringa de Rosita estava bem em frente aos seus olhos.

— Só vai sentir um beliscão.

A agulha penetrou sua pele. Como prometido, só foi uma pontada, mas Tom gritou
histericamente assim mesmo.

— Ai! O que está fazendo comigo? — Seu rosto se contorceu numa dor
falsa. — Você ainda se diz flebotomista?

— Não seja infantil. — Rosita o censurou, parecendo um pouco ofendida. O


tubo Vacutainer30 se encheu de sangue. — Foi a picadinha perfeita.

— Mas que banana! — zombou Carl.

Grayson se aproximou para colher a amostra de sangue.

— Isso é monstruoso! — Diana juntou-se à algazarra. Sem dúvida ela


percebera o que ele pretendia. — Vocês parecem nazistas, fazendo experiências
médicas obscenas em cobaias humanas. Deviam ser presos pelo resto da vida!

— Meu Jesus, Diana! — exclamou Abby. — É só um exame de sangue


idiota.

Rosita retirou a agulha do braço de Tom. Ela pressionou uma bola de


algodão contra a parte perfurada.

— Aí! Tá vendo? Nem foi tão ruim.

— Ah, é? — rosnou Tom. — Diga isso para a droga do meu braço! —


Olhando por cima dos ombros dela, ele viu que Kyle ainda estava a alguns passos
das armas. Seu filho parecia horrorizado com o que estava sendo feito a ele. Não
se preocupe comigo, pensou. Só pegue as armas!

— O que você fez? — Tom acusou Rosita. — Acertou a veia diretamente?


Ou pegou o osso também?

30
Vacutainer é uma marca registrada de tubos de teste especialmente designado para exames de
sangue.
— Nunca fiz isso na minha vida — disse a mulher, indignadamente. Ela
tirou o Vacutainer de sua embalagem de plástico antes de entregá-lo a Grayson. —
Sou uma profissional!

— Uma profissional sádica talvez!

Continuem olhando para mim, ele os distraiu silenciosamente. Não se


virem!

— O que vem agora? — indagou Diana, fazendo a parte dela. — Vai nos
dissecar aos poucos?

As armas estavam bem onde Cassie disse que estariam. Kyle segurou a respiração
enquanto caminhava furtivamente pelo fundo da sala, até mesmo enquanto os
bandidos torturavam seu pai. Apesar do aviso de Cassie, fora um choque ver seu
pai e Diana a mercê de Grayson e seus cúmplices. Os gritos furiosos de seu pai
tocavam seus nervos. O que aqueles malucos estão fazendo com ele?

— Não se distraia — murmurou Cassie. Ela o seguia logo atrás. — Siga o


plano.

É mais fácil falar do que fazer, ele pensou. Não era o pai dela sendo
testado a apenas alguns metros de distância. Ao menos, agora ele sabia que havia
feito a coisa certa indo até ali aquela noite. Pelo que parecia, chegara bem a tempo.
Talvez.

Ele caminhou pela sala, piscando a cada rangido. Ainda bem que não havia
pisado em nenhuma poça no caminho até ali; só podia imaginar seus tênis
guinchando audivelmente a cada passo que dava. Pena que não sou invisível como
a Cassie. A sala estava desconfortavelmente quente comparada com o lado de fora.
O suor grudava sua camisa nas costas. Pareciam ter se passado horas quando ele
finalmente alcançou as armas esquecidas.

Ele viu a Glock modificada de seu pai. Suas palmas suadas tocaram o
punho da arma. De repente, sentiu-se bastante grato pelas lições de tiro que seu
pai lhe ensinara quando era mais novo. Ele engoliu um suspiro de alívio.

Consegui!

— Bom trabalho — disse Cassie. Ela apontou para e enfermeira curvando-


se sobre o pai dele. — Aquela é Rosita. Precisa atirar nela antes que possa usar sua
habilidade.

Pelas costas? Ele não queria atirar em ninguém, muito menos em uma
mulher despreparada. Atrapalhado, liberou a trava se segurança da arma. A Cassie
está falando sério?

Ela franziu as sobrancelhas diante de sua hesitação.

— Não é hora de ser um maricas, Kyle. Você queria ser o herói. Agora faça
o que tem que fazer.

O braço de Kyle vacilou quando ele levantou a arma. Achava que não
conseguiria continuar com isso. Nunca atirara em alguém antes — a não ser que se
contasse a vez que uma entidade sem corpo do futuro o possuíra para assassinar
Jordan. Esta vez era diferente, no entanto. Ele estava no comando agora. O sangue
estaria em suas mãos…

— Anda! — ordenou Cassie. — Puxe o gatilho!

Ele ouvia Tom e Diana gritando. Queria salvá-los, mas…

— Eu não consigo!

Ele não percebeu que havia falado em voz alta até que os bandidos
viraram-se surpresos. Kyle reconheceu Grayson por causa dos arquivos, mas foi o
jovem quem o chocou de verdade. Kyle ficou boquiaberto. Seu coração parou de
bater por um segundo.

— Danny?

Seu primo morto estava parado apenas a alguns passos de distância.

— Não é o Danny! — berrou Cassie. — Ele é falso! — gritou em seu ouvido.


— Atire na velha!

Mas já era tarde. A enfermeira enrugou o rosto. Sua figura firme


tremeluziu antes de desaparecer como uma miragem por completo. Ela sumiu bem
diante de seus olhos.

— Ãhn? — Kyle gaguejou em confusão, sua arma apontada para o ar. O


que ele devia fazer?

Cassie assumiu o controle, como de costume. Pegando o braço dele que


segurava a arma, ela o virou para direita.

— Ali! Agora!

Ele apertou o gatilho.

O som ensurdecedor da arma estourou em seus tímpanos. O impacto tirou


seu braço do aperto de Cassie. A princípio, parecia que ele atirara em nada, mas
então Rosita tremeluziu de volta à existência, segurando o lado do corpo. Sangue
vazava pelos seus dedos. Gemendo, ela caiu ao chão.

Ai, meu Deus, pensou Kyle. Cassie sabia exatamente onde a mulher
invisível estava. Acabei de atirar em alguém. De verdade.

— Rosita! — Grayson começou a correr na direção da mulher ferida, mas


então lembrou-se da arma ainda soltando fumaça na mão de Kyle. Ele parou na
metade do caminho. — Por favor, precisa me deixar ajudá-la!

— Cuidado, Kyle! — gritou seu pai, da poltrona. — Ele está armado


também. Não o deixe fazer nada até que tire sua arma!

— Tudo bem! — disse Grayson, antes mesmo que Kyle pudesse seguir o
conselho de seu pai. Ele tirou uma pequena arma de seu casaco e a jogou pelo
chão na direção de Kyle. Olhou ansiosamente para Rosita, que soluçava de dor no
chão. — Está bom o suficiente para você?
Uma poça vermelha formava-se sob a enfermeira caída. Kyle engoliu com
dificuldade. Apontou a arma para o falso “Danny” e para uma loira atraente que
parecia ser apenas alguns anos mais velha que ele. Esforçou-se para manter os
olhos em todos os jogadores.

— Vá em frente.

Era tudo o que o agente funerário agitado precisava ouvir. Ele pegou um
kit de primeiros-socorros de um carrinho e apressou-se para a vítima agonizante.

— Alguém ligue para a emergência!

— Não! — gritou Diana. Ainda amarrada ao lado de seu parceiro, ela elevou
a voz para chamar a atenção de Kyle. — Esse clone tem a habilidade de Danny.
Não pode deixar ninguém entrar aqui. O lugar inteiro precisa entrar em
quarentena!

— Não dê ouvidos a ela, Kyle! — disse a loira. Ela era uma estranha para
ele, mas claramente o conhecia. — Você não quer nos parar. Só estamos tentando
espalhar a bênção da promicina para o mundo todo, do jeito que Jordan Collier
quer.

Cassie olhou para a loira especulativamente.

— Sabe, Kyle, ela tem razão nisso…

— Ela é louca, Kyle — alertou seu pai. — Ela já matou quatro pessoas. E
quer matar mais bilhões.

— Somente uma geração de sacrifício para permitir o paraíso àqueles que


seguem — insistiu a loira. — É isso que o Jordan sempre diz, não é? — Cruzando as
mãos, ela deu um passo na direção de Kyle. — Eu sei que você divide nossos ideais
Kyle. Estamos do mesmo lado.

— Para trás! — ele ordenou. — Não sei que você é, moça, mas seu
argumento seria muito mais convincente se não estivesse mantendo meu pai em
cativeiro!

— Nós não vamos machucá-lo — insistiu ela. — Só estávamos…

— Cala a boca! — Kyle não ouviria mais nada disso, não enquanto seu pai
e Diana estavam amarrados como animais de laboratório. Ele acenou com a arma
para os cativos. — Vocês dois — ordenou para a loira e para o gêmeo de Danny. —,
desamarrem-nos agora.

A loira riu para Kyle.

— Essa ideia é sua ou da Cassie? — Virou-se pelo laboratório. — Ela está


aqui conosco?

— Cassie? — repetiu seu pai, confuso. — Quem é Cassie?

Sua musa de cabelos ruivos se divertia com o que acontecia.

— Sabe, você vai ter que contar sobre mim para ele qualquer dia desses.
O rosto de Kyle enrubesceu de raiva e vergonha. Levantou a arma
diretamente para a loira.

— Como sabe sobre ela?

— O Jordan me contou — sorriu ela alegremente. — Nós dividimos muitas


coisas. Eu o dei informações confidenciais desde que entrei no Movimento.

— April! — percebeu Diana, de repente. — Você é a dedo-duro. Foi você


que lhe contou sobre a minha irmã.

A loira lançou um sorrisinho para Diana.

— Acabou de descobrir, foi? É um pouco lenta para descobrir as coisas,


Diana. — Ela balançou a cabeça. — Imagino o que Marco viu em você.

— Vai ter que perguntar a ele — devolveu Diana. — Quando ele te visitar
na prisão.

— Veja como quiser, Abby — acusou Tom. —, você ainda é uma traidora e
uma assassina.

Kyle juntou as peças. Olhou para o seu pai para ter uma confirmação.

— Ela trabalha para a NTAC?

— Eu pertenço ao Movimento — declarou Abby. — Assim como você. — A


despeito de suas ordens, ela não se mexeu para desamarrar os prisioneiros. —
Pense em Jordan, Kyle. Acha que ele aprovaria o que está fazendo agora? Ou ele
quereria que você saísse do caminho e deixasse-nos fazer nosso trabalho?

— Jordan nunca forçou alguém a tomar promicina! — Ele se segurava


nessa crença tão forte quanto apertava a arma em seu punho. — Nunca!

— E é por isso que ele precisa de gente como nós — afirmou Abby. — Para
fazer as coisas que precisam ser feitas.

Ela soava tão assustadora quanto Cassie.

— Apenas solte eles! — gritou Kyle. Havia muitas pessoas lhe dando
ordens. Ele sentia-se à beira de um colapso nervoso. — Não vou discutir isso com…

Um grito angustiado atraiu sua atenção de volta a Grayson e Rosita. O


agente funerário estava agachado ao lado da enfermeira machucada enquanto
aplicava pressão ao seu ferimento. A agonia contornava o rosto da mulher, que
estava pálido e ensopado. Dedos trêmulos apertavam o casaco de Grayson. Havia
sangue por todo lado.

— Ah, merda… — O coração de Kyle deu um pulo. — Ela vai viver…?

Sua distração momentânea era exatamente a brecha que Abby esperava.

— Kyle, cuidado! — gritou Cassie quando a loira agarrava uma bandeja de


metal de um carrinho e a arremessava na direção de Kyle. Alertado pelo grito de
Cassie, ele jogou o braço cima a tempo de desviar da bandeja voadora. Ela
espatifou-se no chão junto com ferramentas médicas e curativos. Um tubo para
exames de sangue se despedaçou. Manchas vermelhas mancharam a sala.

Abby gritou para o clone de Danny.

— Corra, Carl! Saia daqui agora!

Ela investiu contra Kyle, que instintivamente levantou a arma para se


defender. Aconteceu antes que ele se desse conta do que se passava. Uma flor
rubra aflorou sobre seu coração. Por um único momento sem fim, ela encarou-o de
volta antes de tropeçar e cair para trás.

Estava morta antes mesmo de atingir os ladrilhos.

Não! Pensou Kyle. Eu não queria fazer isso!

A visão de seu cadáver deixou-o petrificado.

— Kyle! — gritou seu pai, num tom alarmante. — Carl! O clone! Você tem
que impedi-lo! — A urgência em sua voz amenizou seu devaneio em choque. — Ele
é como o Danny!

Diana gritou também.

— Ele vai infectar a cidade inteira!

O quê? Kyle olhou para cima para ver o impostor se distanciando. O aviso
de Diana lembrou-o do quanto estava em jogo. Pulando por cima do corpo
sangrento de Abby, ele disparou atrás de Carl, que chegou perto da área de
entrada até que Kyle o alcançasse. O gêmeo de Danny se atrapalhou com a tranca
da porta. Ela soltou um clique ao abrir-se.

— Segure isso! — ordenou Kyle. Suas duas mãos seguravam fortemente a


arma quando ele a apontou para o clone fugitivo. — Já foi longe o bastante.

O Danny falso ficou parado na porta, sua mão segurando a maçaneta.


Somente uma fina porta de madeira entre ele e milhares de pessoas vulneráveis.
Kyle lembrou-se de todos os funerais em que fora depois do Grande Passo Adiante.
Incluindo o de seu primo e o de sua tia.

De novo não, ele pensou. Deve haver outro jeito de trazer o Paraíso a
Terra.

Não é mesmo?

O clone olhou para ele.

— Qual é, Kyle? Caia na real. Você não atirar em mim. — O rosto de Danny
sorriu astutamente. — Temos o mesmo sangue.

— Você não é o meu primo!


— Agora sou. — Ele parecia e soava exatamente como Danny. — Você é o
xamã e eu sou o portador. Somos duas partes da mesma profecia.

— Impeça-o, Kyle! — gritou seu pai freneticamente do outro lado do centro


de plasma. A poltrona se arrastou pelo chão enquanto ele furiosamente tentava se
livrar das amarras. — Se ele escapar, vai ser o 50/50 outra vez!

Cassie apareceu atrás de Kyle.

— Ele fala como se fosse uma coisa ruim.

— Mas se acontecer, vai ser minha culpa desta vez. — Kyle balançou a
cabeça. Ele manteve a arma apontada diretamente para a cabeça do impostor. Já
havia matado muitas pessoas naquela noite. — Sinto muito, mas não posso viver
com isso.

— Hipócrita! — Uma expressão lívida assomou-se no rosto quase


irreconhecível de Danny; Kyle não se lembrava de seu primo tão furioso. — Fica
feliz em espalhar o evangelho de Collier para quem quiser ouvir, convencer as
pessoas a tomar promicina mesmo sabendo que isso matará a metade delas, mas é
fraco demais para sujar as mãos quando é necessário. — Ele fungou ridiculamente.
— O que acha exatamente que veio fazendo desde que Collier voltou?

Ele deus as costas a Kyle e girou a maçaneta. Uma brisa fria adentrou o
prédio. Estava escuro do lado de fora.

— Não faça isso, cara. — A arma tremia nas mãos de Kyle. — Não quero
machucar mais ninguém.

— Então você não sabe o que está fazendo — disse o impostor. — Nem
quem é realmente.

Ele deu passou pela soleira.

Kyle atirou.

Danny morreu mais uma vez.

Tomado pelo medo, Kyle arrastou o corpo de volta para dentro do prédio e
fechou a porta. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto enquanto ele se encostava à
porta, exausto e vazio de sentimentos. A arma escorregou pelos seus dedos. Ele
mal ouviu seu pai e Diana gritando para ele da área de doação. Ele os desamarraria
num momento, mas só o que podia fazer agora era olhar para o morto no chão.

O que está acontecendo comigo? O que eu me tornei?

Cassie passou por cima do corpo. Ela aninhou-se a ele, descansando sua
cabeça em seu peito.

— Vai ficar tudo bem, Kyle. Você vai superar isso. Nós vamos superar.

Ele não tinha tanta certeza.

— Eu matei duas pessoas, Cassie. Talvez até três.


— Há uma primeira vez para tudo. — Ela sorriu sabiamente. — Pense nisso
com uma experiência de aprendizado

Pela primeira vez ele estava genuinamente com medo dela.

E dele mesmo.

**********

Kyle foi embora antes que os paramédicos e a equipe de investigações à materiais


radioativos chegassem. Tom percebeu que seu filho ficara realmente chocado com
o que ele fora forçado a fazer, mas Kyle dispensara os esforços de seu pai em
tentar confortá-lo. Ele se arrastara para fora do centro parecendo um zumbi, mal
dizendo uma palavra sequer.

Terei que falar com ele depois, prometeu Tom a si mesmo, ajudá-lo a
superar isso. Ele sabia por experiência própria como era viver com um assassinato,
mesmo que fosse em defesa de outros. Especialmente da primeira vez.

Com egoísmo, ele esperava que Kyle não se virasse para o lado de Jordan
agora.

Diana se encarregou da tarefa de limpeza. Por instruções dela, somente


positivos que tivessem sobrevivido à exposição à promicina eram permitidos no
local. Grayson e Rosita haviam sido dosados com o inibidor antes de serem
mandados para a quarentena. Graças a Deus, parecia que a flebotomista ferida ia
sobreviver.

Diferentemente de Abby e Carl.

Seus corpos foram destinados à cremação imediata.

Junto com o do Danny, pensou Tom. Shawn vai entender, com certeza.

— Todo o local terá que ser esterilizado — falou Diana. Ela suspirou
exausta enquanto os resultados sangrentos dos horrores daquela noite. — Mas pelo
menos recuperamos os restos de Danny e acabamos com os planos da Abby.
Graças ao Kyle, claro.

— É — concordou Tom. — Já é alguma coisa, suponho.

Só esperava que sua vitória não tivesse custado ao seu filho sua alma.

— Como você está? — perguntou Diana a ele. — Está se sentindo


diferente?

— Não muito — seu braço ainda doía onde Rosita havia furado, mas era só
isso. — Não notei nenhuma habilidade ainda.
— Bem, teremos que fazer um exame em você quando voltarmos à sede,
mas acredito que aquelas U-pills neutralizaram qualquer infecção. — Ela o ofereceu
um sorriso reconfortante. — Com profecia ou não, você pode ainda ser o mesmo
Tom Baldwin.

Por enquanto, ele pensou.


VINTE

Restavam apenas cinco Marcados.

Ou quatro, dependendo do modo como se contasse.

Wesley Burke havia morrido três dias atrás. Morto em um “acidente


bizarro” durante sua lua-de-mel nas Cataratas do Niágara, com sua última esposa.
Uma estranha “rajada de vento” o havia arremessado por sobre a cerca de um dos
mirantes das cataratas. Seu corpo havia sido estraçalhado nas pedras lá embaixo, e
seus preciosos fluidos corporais diluídos nas espumas turbulentas. Curiosamente,
ninguém ao redor, nem mesmo sua horrorizada noiva, tinha sentido mais do que
uma leve brisa.

Tal tragédia havia ocorrido apenas quarenta e oito horas após a fuga de
Richard Tyler, o que implicava em uma explicação alternativa para o fim de Burke.

Os Marcados estavam sendo caçados mais uma vez.

O sheik Nasir al-Ghamdi não havia esperado que Tyler o rastreasse. O


elegante árabe encontrava-se estatelado de cara na mesa redonda de carvalho, no
salão do Castelo Wyngate. Uma pistola fumegante ainda repousava em sua mão.
Uma perfuração de bala rasgara o turbante xadrez que lhe cobria a nuca. Uma
mancha avermelhada se espalhava pelo tecido.

Folhas de plástico transparente cobriam as paredes e a mobília, protegendo


a decoração elegante do salão contra indesejáveis respingos de sangue.
Francamente, George Sterling deveria preferir usar outra locação para os desgostos
do dia, mas precauções com a segurança haviam vencido a conveniência. Wyngate
era o local mais seguro disponível no momento. Ou pelo menos o único que foi um
consenso entre os Marcados sobreviventes. Além disso, ele lembrou a si mesmo, o
que importa se fizermos a maior bagunça? Eu não iria viver aqui por mais muito
tempo, mesmo…

Ele retirou a Glock dos dedos inertes do sheik, e a entregou a Song Yu que,
junto com o General Roff e Kenpo Norbo, estava sentada à mesa forrada de
plástico.

— Sua vez.

Ela aceitou a arma sem hesitação.

— Pela causa — ela sorriu de modo assustador. — Nós nos encontraremos


de novo, meu amigo.

Ele admirava sua coragem e comprometimento.

— Com certeza.

Calmamente, seu rosto não demonstrando o menor traço de trepidação,


ela colocou o cano da arma entre os lábios e puxou o gatilho. Um único projétil
espalhou seus miolos pelas paredes atrás dela. Seu corpo se jogou contra o encosto
da cadeira antes de se projetar em direção à mesa. Seu rosto bateu na superfície
da mesa, expondo o ferimento ensanguentado em sua nuca.

— Cristo todo-poderoso! — reagiu Julian Roff. O condecorado líder militar


estava demonstrando não ter estômago para aquele tipo de trabalho sórdido. —
Acho que jamais irei me acostumar com isto!

Kenpo desviou o olhar dos restos mortais de Song. Ele estava claramente
passando mal.

— Vocês têm certeza de que nós não poderíamos apenas tomar uma pílula
de cianeto, ao invés disso?

— Isto é mais rápido e menos doloroso — declarou firmemente Sterling,


como se eles já não tivessem discutido o assunto à exaustão. — E qualquer
substância estranha à corrente sanguínea pode interferir no processo de
transferência — ele estava desapontado com a sensibilidade dos dois homens; com
certeza não haviam produzido tantos filmes sangrentos quanto ele. — Nossos
companheiros serão elogiados por seus nervos de aço e sua firmeza neste
momento crucial.

Diferentemente de certos Marcados que eu conheço, ele pensou


amargamente. Será que esses dois sempre foram tão fracos, ou a moralidade
sentimental desta era piegas os contagiou? Ele se perguntava se os dois seriam
capazes de fazer o que fosse necessário, quando chegasse a vez deles, ou se teria
ele mesmo que puxar o gatilho. Aposto as bilheterias dos meus dois últimos
sucessos cinematográficos como um desses dois vai amarelar na hora H.

Antes, porém, ele tinha outra tarefa vital para cumprir. Retirando uma
seringa metálica brilhante de uma bandeja sobre a mesa, ele se colocou atrás do
corpo tombado de Song Yu. Seus cabelos negros e espessos estavam amarrados
em um coque, provendo livre acesso à sua nuca. Quando ele se inclinou sobre ela,
com a seringa vazia na mão, vislumbrou a marca por detrás da orelha esquerda
dela. Pelo que sabia, aquilo era um sinal de honra. Ele pretendia fazer a coisa certa
por ela – e assegurar seu iminente retorno.

Inseriu a agulha na base do crânio dela, bem na direção da coluna


vertebral. Uma cápsula de plástico transparente estava acoplada à agulha. Ele
digitou em um teclado localizado na lateral da seringa e puxou o êmbolo, enchendo
a seringa com um elixir prateado cintilante. Filtros moleculares no cateter excluíram
o que era mero fluido cérebro-espinhal, que era claro e incolor, até que tudo o que
restou do que fora coletado fosse uma solução concentrada de nanodispositivos. As
máquinas microscópicas eram individualmente codificadas com a personalidade e
as memórias de Song Yu, só esperando para ser implantadas na mente de uma
nova identidade.

Ele já havia escolhido a hospedeira perfeita para ela: uma obscura atriz
loira, que havia interpretado um pequeno papel em Don Incubus, Demônio P.I..
Infelizmente, aquele filme em particular, a “obra-prima” final na duvidosa carreira
do finado Curtis Peck, tinha ido direto para o DVD, mas Sterling tinha um papel
muito maior guardado para a ambiciosa estrelinha. Ela havia concordado
animadamente em conceder uma audição particular naquele fim-de-semana, onde
ele pretendia reunir o elenco definitivo.

E o melhor de tudo é que a atuação dela só tem a melhorar, uma vez que
Song Yu assuma o comando.
A cápsula se encheu rapidamente. Sterling retirou a agulha do cadáver e
habilmente extraiu o frasco de seu estojo metálico. Ele o acomodou delicadamente
na bandeja, ao lado de uma cápsula idêntica, que continha os nanodispositivos
recolhidos de Nasir. Eles estavam destinados a um desafortunado figurante afro-
americano em excelente condição física. O belo playboy árabe tinha relutado em se
despojar de seu porte atual. Sterling esperava que ele achasse que o figurante era
um substituto à altura.

Ambos os hospedeiros eram ilustres desconhecidos, completamente fora do


raio de alcance do radar de Collier.

Ao menos, aquele era o plano…

Etiquetas coloridas eliminavam a possibilidade de confusão mais adiante.


Sterling acoplou uma nova cápsula à seringa.

— Tá legal, quem é o próximo?

— Eu — ofereceu-se Kenpo, levantando sua mão como um ávido


estudante. Seu robe de açafrão farfalhou em volta de si. — Acho que existe um
alvo desenhado neste corpo inútil. Eu quero sair dele agora!

— É claro — disse Sterling. — Exatamente como combinamos.

Depois de se opor à ideia anteriormente, ele havia relutantemente chegado


à conclusão de que novos corpos eram uma necessidade para todos eles. Com Tyler
liberto novamente, e seus disfarces completamente revelados, não havia escolha a
não ser mudar os rostos mais uma vez. Uma vergonha eu ter que perder a entrega
do Oscar, lamentou ele. Aquele Fahrenheit 4400 tem boas chances de ganhar o
prêmio de Melhor Documentário.

Mas havia competições mais importantes a serem travadas no futuro.

— Vamos deixar uma coisa bem clara — ele acrescentou, enfático. — Esta
é meramente uma manobra estratégica, não uma rendição. Não estamos fazendo
isto para nos esconder dos inimigos. A guerra continua, embora com novas
aparências — ele encarou o lama e o general severamente. — Posso contar com
vocês para continuar a luta, e vingar nossos companheiros martirizados?

— Sim, sim — resmungou Kenpo. — Pela causa e tudo o mais — fazendo


caretas de desgosto, ele esticou o braço por sobre a mesa, retirando a arma dos
dedos gelados de Song Yu. — Vamos acabar logo com isto.

— Vá em frente — encorajou Sterling. Ele pretendia se matar mais tarde,


depois que tivesse transferido, com sucesso, as essências dos outros para os novos
hospedeiros. Isto o deixava exposto e vulnerável por mais tempo, mas ele não
confiava em mais ninguém para pôr em prática o estágio final da transferência.
Nem mesmo Song Yu ou Nasir. — Nenhum de nós está se tornando mais jovem.

Diferentemente de Song Yu, o celebrado lama parecia de fato enojado


diante da perspectiva de estourar seus próprios miolos. Mãos trêmulas levaram a
Glock até seus lábios. Ele fechou os olhos e se contraiu todo para o tiro fatal. O
suor brilhava em sua cabeça sem cabelos.

Um minuto passou.
E outro.

— E então? — perguntou Sterling, enojado pela óbvia covardia de Kenpo. O


homem era uma desgraça para a cidade gloriosa que o havia dado à luz. Sterling
até se perguntava se valeria à pena implantar um espírito tão fraco em uma nova
identidade. — Algum problema?

O atormentado lama retirou a arma de sua boca.

— Me dê só um momento, pode ser? Isto não é fácil.

Roff bufou com desprezo.

— Qual é o problema, monge? Você não acredita em reencarnação? — ele


esticou o braço para pegar a arma. — Me dá isto. Eu mesmo atiro em você.

— Não se atreva! — Kenpo arrancou a arma dos dedos arrebatadores do


general. — Eu tenho o direito de exterminar meu próprio hospedeiro! E não vou
fazê-lo até que me sinta pronto para isto!

Eu sabia que isto iria acontecer, pensou Sterling, aborrecido por ver suas
piores previsões se realizarem. Por que Burke não poderia ter sobrevivido, ao invés
dele? Suspirando, ele estava para intervir quando, inesperadamente, um tremor
súbito sacudiu o salão. O candelabro de cristal chacoalhou violentamente acima da
mesa. Poeira caiu do teto. Uma coleção de Oscars e Emmys despencou da
prateleira acima da lareira, chocando-se com o chão. Os corpos de Song Yu e Nasir
escorregaram de suas cadeiras, para cair com um ruído surdo por entre as pernas
da mesa. Um vaso Ming de valor inestimável tombou, desintegrando-se em dúzias
de cacos de porcelana. Folhas de plástico caíram das paredes. Um ruído
ensurdecedor abafou os gritos espantados dos Marcados. Roff se agarrou na mesa
para se apoiar, enquanto Kenpo mergulhou para debaixo dela. Sterling saltou em
direção aos frascos, resgatando-os antes que pulassem da bandeja. Ele parecia
confuso, enquanto lutava para manter o equilíbrio.

Não entendo, pensou ele. A História não registrou qualquer terremoto de


grandes proporções nesta data. O “Big One” 31 só ocorrerá daqui a muitos anos…

Estrondos de trovão penetravam as trepidantes paredes do salão,


aumentando sua perplexidade. Um terremoto e uma tempestade ao mesmo tempo?
A verdade o atingiu com a força de um aríete.

O Castelo Wyngate estava sitiado.

Tiros e gritos vindos do lado de fora do salão confirmaram sua avaliação.

— Maldição! — Roff praguejou, no meio do tumulto. — Estamos sendo


atacados!

— Sua sagacidade militar nunca deixa de me impressionar, general —


disparou Sterling. Movendo-se rapidamente, ele acomodou os preciosos frascos no
interior almofadado de uma valise de couro e a fechou com um estalo. Ele
atravessou a sala aos tropeções, em direção à parede onde ficava a porta. Um

31
Big One – O fato de a Califórnia estar sobre a grande falha geológica de San Andreas criou o mito de
que um dia será destruída por um enorme terremoto, o qual foi apelidado de “Big One”, ou, em
tradução literal, “O Grandão”.
painel de madeira entalhado deslizou para o lado, para revelar um
intercomunicador com um minúsculo monitor de televisão. Ele manejou os
controles com sua mão livre.

— Aqui fala Sterling. O que está acontecendo aí fora?

A tela se acendeu, mostrando as feições desgrenhadas de Conrad Yerkes, o


chefe da segurança. Ele era um ex-fuzileiro naval grisalho e com um olho de vidro.
Sua cabeça e seus ombros atarracados preenchiam toda a tela, impedindo Sterling
de ver o centro de comando de alta tecnologia atrás dele. A sala de controle ficava
no campanário do castelo, quatro andares acima do salão. Yerkes parecia
enlouquecido, sobrecarregado pelo caos.

— As coisas estão ficando loucas, senhor! — gritou o homem. — Temos


relâmpagos, terremotos, até uma droga de tornado desmantelando tudo! E intrusos
conseguiram penetrar o perímetro. Os homens estão fazendo o melhor que podem,
mas é como se a Mãe Natureza estivesse lutando contra nós!

Está mais para os 4400, pensou Sterling. Collier está jogando tudo o que
tem contra nós.

O ruído do vento podia ser ouvido pelo intercomunicador.

— Oh, meu Deus! — gritou Yerkes, olhando por cima do próprio ombro.
Estática e chuvisco atrapalhavam muito a transmissão, mas Sterling vislumbrou o
telhado da torre voando para longe, por detrás de Yerkes. Uma ventania furiosa
sacudiu o cabelo grisalho do homem como as ondas de um mar revolto. Dedos
embranquecidos agarraram-se ao console em frente a ele, lutando pela vida.
Pedras e reboco vieram abaixo enquanto as paredes se desmantelavam pelo que
parecia um tornado. Outro homem foi atirado no vórtice do redemoinho.

— Nós estamos perdendo! — Yerkes berrou através do vento. — Nós não


temos chance…

Sterling não estava preocupado com a segurança dos guardas. Do ponto de


vista avançado de sua própria época, a população abundante desta era já estava
morta havia milênios. Eles eram fósseis ambulantes.

— Permaneça no seu posto! — ordenou ele, duramente. — Detenha os


intrusos o mais que puder!

— Mas, senhor! — começou Yerkes. — O tornado! Está nos destruindo!

E daí? Pensou Sterling. Eu só preciso de você para ganhar algum tempo


para mim.

— Você me ouviu, Yerkes!

Antes que o agitado chefe da segurança pudesse vir com outra objeção,
uma fonte de fagulhas explodiu de dentro do console. A estática distorcia seu grito,
enquanto um poderoso choque elétrico chamuscava seu corpo. Incapaz de afastar
suas mãos do equipamento faiscante, ele se sacudiu em violentas convulsões.
Fumaça saiu de seu couro cabeludo. Sua boca se escancarou. Clarões azuis
brilhantes se arqueavam por entre as obturações de seus dentes.
A tela se escureceu.

Demais para Yerkes, pensou Sterling friamente. Afastando-se do


intercomunicador, ele deu uma olhada para a lareira. É hora de partir.

Kenpo Norbo ergueu sua cabeça de debaixo da mesa. Seu famoso


semblante sereno agora estava completamente pálido. Ele brandiu a Glock acima
da cabeça. Sua mão tremia tanto que Sterling receou ser atingido por fogo amigo.
Ele suspirou aliviado quando Roff agarrou a arma e a arrancou das mãos do lama.

— Dê isso a quem sabe usar!

Kenpo não tentou recuperar a arma. Ao invés disso, ele revirava as contas
de seu rosário.

— É culpa sua — ele gritou para Sterling. — Nós devíamos ter abandonado
estes corpos uma semana atrás, logo depois que Calábria foi assassinado! Mas você
disse que nós estaríamos seguros! — ele arrebentou o terço, que estava pendurado
em seu pescoço, arremessando as contas por toda a sala. — Eu queria nunca ter
vindo a esta era miserável! Nós deveríamos ter ficado em segurança na Cidade!

— Que jamais existirá se você não se recompor! — disparou Sterling.


Segurando firmemente a valise que continha as personalidades de seus comparsas,
ele rapidamente atravessou o chão repleto de escombros até a imensa lareira de
pedra do outro lado da sala. Troféus derrubados e corpos caídos esperavam para
atrapalhá-lo, mas ele conseguiu manter o equilíbrio mesmo assim. — Por aqui! —
ele gritou para os outros. — Nós precisamos fazer uma saída prudente.

Roff olhou para ele, perplexo.

— Onde? Subindo pela chaminé?

Com sua mão livre, Sterling afastou as folhas plásticas que cobriam a
lareira. Uma roseta entalhada adornava o topo do mantel. Segurando o ornamento,
ele o girou em sentido horário.

Um ruído baixo emanou da lareira, enquanto engrenagens escondidas


moveram-se uma contra a outra. O maquinário adormecido despertou do repouso e
os tijolos sujos de fuligem do fundo da lareira se afastaram, para expor a abertura
de um túnel sombrio. Uma brisa fria soprou de algum lugar fora do castelo.

— Ora vejam só! — exclamou Roff.

A passagem secreta era legado de Edmund Wyngate, o caprichoso e


silencioso astro de cinema que havia administrado a reconstrução do castelo oitenta
anos atrás. Conta a lenda que ele usava a passagem para dar acesso secreto a
bebidas ilegais e amantes a sua residência, nos anos vinte. Sterling sempre havia
desconfiado de que essa inovação arquitetônica poderia ser útil qualquer dia. O
túnel levava até uma garagem subterrânea, aninhada ao pé das Colinas Hollywood,
onde um Jaguar com o tanque cheio esperava para levá-los em segurança… Se eles
se movessem rápido o suficiente.

Kenpo arfou de alívio. Ele parecia haver atingido o Nirvana.

— Desculpe, Sterling. Eu jamais deveria ter duvidado…


A porta da sacada superior se escancarou, arrancando as dobradiças.
Richard Tyler, inteiramente coberto por um equipamento de guerra negro, irrompeu
através da porta aberta até o patamar superior da escada. Ele os olhou de cima,
como um anjo vingador, não parecendo nem um pouco abalado por seu recente
cativeiro. Ryland claramente tinha sido muito complacente com ele…

Nós deveríamos ter cuidado dele pessoalmente, pensou Sterling, maléfico.


E não ter delegado o serviço a Haspelcorp.

— Você! –— gritou Roff. Ele apontou a arma para a sacada, tão somente
para tê-la arrancada de suas mãos por uma força invisível. Dedos estalaram de
maneira audível. Ele praguejou.

A pesada mesa de carvalho tombou de lado e atingiu o general como um


aríete, esmagando-o contra a parede atrás dele. O candelabro soltou-se do teto e
se atirou na direção de Roff como um meteoro de cristal. O sangue espirrou sobre
as folhas de plástico penduradas.

Outro tremor sísmico sacudiu o castelo, fazendo Richard se desequilibrar.


Ele se segurou na grade para evitar cair da sacada.

É agora ou nunca, percebeu Sterling.

Agarrando a valise, ele mergulhou através do vão atrás da lareira.


Arrastou-se para o túnel à frente e puxou uma alavanca atrás da lareira. A pesada
porta de tijolos começou a voltar para o lugar.

— Não! — Kenpo gritou, ao perceber que a porta estava se fechando. Ele


saltou para a saída que desaparecia, agarrando-se na lateral da porta com suas
mãos. — Espere! Você não pode me deixar aqui! Eles vão me matar!

Não será uma grande perda, pensou Sterling. Para ele, o monge medroso
era infinitamente mais dispensável do que Song Yu ou Nasir. Ele chutou o rosto e
as mãos de Kenpo.

— Largue a porta, seu idiota!

Um atiçador de ferro ergueu-se por detrás do desesperado lama. A coisa


saltou para frente como se tivesse vida, espetando Kenpo pelas costas. A ponta
vermelha do atiçador irrompeu de dentro de seu peito. Sangue gorgolejou em sua
garganta. Uma espuma sangrenta saiu de seus lábios. Dedos frouxos perderam a
força com que agarravam a porta. Um chute final tirou seu corpo do caminho.

A porta finalmente se fechou por completo.

Agradeço a Deus por aquele atiçador! Pensou Sterling. O monge histérico


quase havia matado a ambos. Ele trancou a porta secreta seguramente no lugar, e
então voou para dentro do túnel fracamente iluminado. Ele não sabia quanto ia
levar para que a telecinese de Tyler reabrisse a passagem, mas certamente não iria
ficar por ali para saber. Era hora de se despedir do showbiz para sempre.

Abandonando o castelo Wyngate em mãos inimigas, ele correu por uma


longa escada em espiral para a garagem abaixo. Àquela distância abaixo do castelo,
mal se podia ouvir a tempestuosa batalha travada lá em cima. Ele era o último
remanescente dos Marcados, mas não por muito tempo. Agarrou firmemente a alça
da valise. De uma forma ou de outra, Nasir e Song Yu viveriam novamente.

Isto não acabou, ele jurou. Tyler e seus aliados 4400 podiam estar em
vantagem naquele momento, mas se Hollywood tinha ensinado uma coisa a ele, era
que as melhores estórias não se acabam tão facilmente.

Sempre haverá uma sequência.


VINTE E UM

— JÁ CHEGA — DISSE Richard a Jordan.

A luz do sol brilhava através das grandes janelas de vidro da casa do lago.
A temperatura estava acima de 23 graus, mas Richard não pensava em tirar sua
blusa. Já haviam se passado dias desde que fora resgatado da prisão em Filadélfia,
mas ele só estava começando a sentir-se aquecido novamente.

— Sinto muito em ouvir isso — disse Jordan. Ele se recostou contra o sofá,
enquanto Richard permanecia olhando-o. Xícaras fumegantes de chá de menta
descansavam na mesa de centro entre eles. Os guardas de Jordan estavam do lado
de fora da sala. A conversa era estritamente entre os dois homens. — Pelo que eu
entendi, um dos Marcados ainda está à solta. O produtor de filmes, George
Sterling.

Isso era verdade. No momento em que Richard arrombara


telecineciamente a passagem secreta, Sterling já havia escapado há muito. Seu
sumiço misterioso, seguido do “ataque terrorista” ao Castelo Wyngate, se espalhara
pelos noticiários durante dias. Ninguém, incluindo os paparazzi, o havia visto desde
então.

— Outra pessoa terá que encontrá-lo para você — proferiu Richard. — Já


fiz minha parte.

O massacre no castelo, acima do banho de sangue na prisão, fora a gota


d’água. Ele não gostava do que sua vida havia se tornado. Não gostava do que ele
estava se tornando. Não é o que Lily iria querer, percebeu. Ela viu algo melhor em
mim.

— Mas e a Isabelle? — lembrou-o Jordan. — Esqueceu-se de quem matou


a sua filha?

— Não — respondeu ele. — Mas matar mais pessoas não vai trazê-la de
volta. Pessoas demais pagaram o preço pela minha vingança. Sanchez, Evee, Yul,
Garrity, aquela garota na prisão… — Ele balançou a cabeça. — O preço é muito
caro.

— Mas e o preço de deixar os Marcados à solta? — insistiu Jordan. Ele não


era o tipo de homem que levava um “não” como resposta facilmente. — Precisamos
eliminá-los de uma vez por todas.

— Precisamos mesmo? — desafiou-o Richard. — Isso é outra coisa. Aquela


mulher da NTAC, Meghan Doyle, me contou que é possível curar os Marcados sem
matá-los. — Ele não ficara feliz em saber daquilo. — Você se esqueceu de
mencionar isso antes.

Jordan franziu o rosto.

— Tive minhas razões.

— Claro que teve. Mas duvido que elas são boas o suficiente para mim.
Jordan soltou um suspiro.

— Vejo que não há como dissuadi-lo. Suponho que não eu devia ficar tão
surpreso. Você sempre foi um homem consciente. — Ele levantou-se do sofá. —
Antes que vá, no entanto, tenho um presente para você.

Um presente? Richard sentiu uma pontada de apreensão. Mesmo que


beneficente, Jordan sempre tinha um motivo escondido. Suas bênçãos sempre
vinham com alguma coisa anexada.

— Que tipo de presente?

— Você verá. — Jordan caminhou pela sala e abriu uma porta para um
corredor ao lado. — Por favor, mande Willard entrar.

Richard se preparou para uma traição. Ele não esquecia a acusação de


Ryland de que Collier havia armado aquela surra em Virginia secretamente.
Considerara perguntar a Jordan sobre isso cara a cara, mas de que adiantaria? Não
havia como saber qual dos homens dizia a verdade. Ambos eram extremamente
sem compaixão para serem confiáveis.

Ele testou sua telecinese invocando uma xícara de chá da mesa. O inibidor
de Ryland se dissipara rapidamente, como os Marcados haviam descoberto para
seu desgosto. Pelo menos posso me defender se precisar.

— Quem é Willard?

Um homem magricela e sorridente adentrou a sala. Um rabo de cavalo


prateado pendurava-se pelas suas costas. Óculos antiquados descansavam em seu
nariz. Ele vestia um largo poncho de crochê por cima de uma camiseta de manga
comprida e jeans. Suas sandálias faziam barulho ao baterem no chão de madeira
resistente.

— Conheça Willard Trice — disse Jordan. — Willard é um escultor forense


talentoso, atualmente empregado no Departamento de Polícia de Seattle para
reconstruir os rostos de vítimas de assassinatos. Nos anos 80, ajudou a identificar
do Assassino de Green River32. Ele costumava trabalhar com cera e argila, mas,
desde o Grande Passo Adiante, encontrou um jeito mais recompensador.

Richard esperou Jordan chegar ao ponto.

— Muito interessante, mas o que isso tem a ver comigo?

— É muito simples — disse Jordan. — Willard vai te dar um novo rosto.

— Como? — Richard não tinha certeza se ouvira bem. — Um novo rosto?

— Para uma vida nova em folha, a salvo da lista dos mais procurados. —
Jordan parecia se divertir com a reação assustada de Richard. — Estou falando
sério. Willard pode moldar carne e osso tão fácil como ele moldava argila. Pode
rapidamente lhe dar uma nova identidade, se estiver interessado.

32
Gary Leon Ridgway, conhecido como o Assassino de Green River, é um serial killer americano. Matou
inúmeras mulheres em Washington nos anos 80 e 90.
— Melhor que cirurgia plástica — vangloriou-se o escultor. — E muito
menos doloroso.

— Eu confesso — divulgou Jordan. — que pretendia usar o dom de Willard


para ajudá-lo a continuar seu trabalho sem ser reconhecido, mas acho que pode
servir como um presente de despedida também. — Ele colocou uma mão no ombro
de Richard. — Você já sofreu bastante, Richard, algumas vezes por minha causa.
Permita-me consertar as coisas antes que tomemos caminhos separados.

Richard pensou sobre isso. Tinha que admitir que não queria viver o resto
de sua vida se escondendo. E graças à sua façanha em Roma, agora era um
fugitivo internacional.

Ele observou as mãos de Willard com cuidado.

— Machuca?

— De maneira alguma — prometeu o artista. — O processo amortece os


nervos enquanto o tecido está sendo remodelado. — Ele se aproximou e estendeu
as mãos na direção do rosto de Richard. — Pense nisso como um botox psíquico.

Richard hesitou quando os dedos quentes do artista tocaram suas


bochechas. Começou a recuar, mas então pensou melhor. Enquanto tivesse esse
rosto, sempre estaria olhando por cima do ombro por causa de Ryland, Sterling e
pessoas como eles. Talvez Jordan tivesse razão, e essa fosse a melhor chance para
um recomeço.

— Vá em frente.

— Bom homem — disse Willard com aprovação. — Não vai demorar muito.

Dedos calejados, fortes por lutarem com argila durante anos, começaram a
massagear o rosto de Richard. A princípio, parecia estar apenas explorando a
superfície e os contornos do semblante magro de Richard, mas então, com um
pouco de perturbação, o osso e o tecido começou a mudar e a escorregar sob seu
toque. Um som úmido e caudaloso afastou os nervos de Richard enquanto Willard
furava e apertava seu rosto, que de repente parecia ter a consistência de massinha
de modelar. Era fácil imaginar a carne mole caindo ao chão. E se Willard mexesse
muito nas coisas? Eu poderia terminar parecendo um Homem Elefante… ou pior.

— Gostaria de um espelho? — perguntou Jordan.

— Não! — disse Richard abruptamente. Os sons e a sensações já eram


ruins o suficiente. Ele não precisava ver seu rosto se transformando em algum tipo
distorcido de trabalho em progresso. Era tarde demais para desistir agora. Tinha
que deixar o artista terminar, ou passar o resto da vida parecendo uma escultura
de cera derretida.

Willard assobiava enquanto trabalhava. Ele claramente gostava de sua


profissão. Richard demorou um pouco para entender.

“Rosto engraçado.”
O processo parecia durar uma eternidade. Justo quanto Richard pensava
que não podia aguentar mais, no entanto, Willard deu um passo atrás para admirar
seu trabalho.

— Excelente — declarou ele, sem modéstia. — O meu melhor até agora!

Richard examinou seu rosto. Parecia sólido o suficiente, graças aos céus. A
boca, o nariz e os olhos pareciam estar nos lugares certos, mais ou menos, mas
tudo parecia subitamente diferente. Esse é mesmo o meu queixo?

Jordan estendeu um espelho de mão.

— Dê uma olhada, Richard. Não há o que temer.

É fácil pra você dizer, pensou Richard. Ele aceitou o espelho nervosamente,
então se preparou para o que estava prestes a ver. Sua boca secou. Ele respirou
fundo e olhou para o espelho.

O rosto de um estranho o olhou de volta.

O reflexo pertencia a um homem de boa aparência, cujas feições eram


mais largas e lisas que as de Richard. As linhas de preocupação haviam sido
apagadas, dando-lhe uma aparência mais juvenil. Suas orelhas estavam menores e
mais próximas dos lados de sua cabeça. Uma mandíbula quadrada apresentava
uma fenda distinta. Até mesmo seus olhos pareciam um pouco mais distantes.

Nem mesmo Lily o teria reconhecido.

— Em questões de dias, uma nova identidade e os papeis de viagem


estarão prontos — afirmou Jordan. — Terá que ter cuidado quanto à deixar
impressões digitais e DNA para trás, mas com um novo rosto é improvável que isso
seja um problema.

Richard pensou que ele podia manter-se discreto para evitar complicações.

— Obrigado — disse ele a Jordan e a Willard. — Sou grato por isso.

A curiosidade apareceu nos olhos de Collier.

— O que vai fazer agora, Richard?

— Recomeçar, eu acho. Apenas encontrar paz e tranquilidade em algum


lugar.

De preferência, um lugar quente. Havaí, talvez, ou Jamaica.

— Te desejo sorte, Richard. Mesmo. — Jordan sorriu pesarosamente. —


Deve pensar, no entanto, que pode não ser possível um bom refúgio.

Richard franziu as sobrancelhas.

— O que quer dizer com isso?


— Só que esses são tempos voláteis. Um conflito épico está se formando,
um que irá determinar o destino deste planeta. — Jordan clamava ter
testemunhado tal luta em primeira mão durante sua breve viagem pelo tempo. — O
futuro te escolheu para desempenhar um papel nessa luta, junto com o resto dos
4400. Francamente, e me perdoe por dizer isso, eu duvido que você seja capaz de
se afastar do combate para sempre.

Richard torcia que, pelo menos uma vez, Jordan estivesse errado.

— Me dê esse BlackBerry — disse Diana à sua filha. — E, a propósito, você está de


castigo pelo resto do mês.

Maia olhou por cima de seu smartphone, consternada. Ela estava sentada
no balcão da cozinha em casa, mandando mensagens para seus amigos enquanto
devorava uma bandeja de macarrão com queijo feita no micro-ondas. Um amarelo
amanteigado dava à cozinha um ar mais animado. Ímãs colavam lembretes
escolares à geladeira.

Ela apertou o telefone.

— Por quê?

— Não sei — respondeu Diana sarcasticamente. Ela se preparou para a


briga que viria, que viera adiando já havia dias. — Talvez porque tenha ido direto
ao Jordan Collier com sua última visão. E acredito que não foi a primeira vez.

Um lampejo de culpa passou pelo rosto de Maia, seguido de um beicinho


carrancudo.

— Quem me dedurou? Meghan? Marco?

Diana não queria que Maia culpasse alguém a não ser ela mesma.

— Eles só estão preocupados com você, querida. Porque eles se importam.


— Ela sentou-se do outro lado do balcão. — Essas coisas nas quais está se metendo
são perigosas. Aquela mensagem que mandou ao Jordan… Pessoas se
machucaram, e até morreram, por causa dela.

— Mas eu salvei o mundo, não salvei? — protestou Maia. — Eu impedi uma


guerra. — Ela golpeou o macarrão com o garfo. — O futuro me escolheu com uma
razão. O Jordan sabe disso. Por que não me deixa participar de tudo o que está
acontecendo?

Porque não quero que termine como Kyle Baldwin, pensou Diana. Ela vira
como o Movimento de Collier se interpusera entre Tom e seu filho. E como Kyle
ficara devastado com o que fora forçado a fazer no centro de plasma na outra
noite. Ele parecia uma alma perdida quando saíra se arrastando para a chuva
depois de ter matado aquelas pessoas, rejeitando o amor e o apoio de Tom. Ela
achava que a parte dele naquele derramamento de sangue, acima de tudo o que já
fizera a serviço de Collier, iria deixar cicatrizes em sua alma pelo resto da vida. Sua
vida estava desmoronando por causa de sua relação com o Movimento, isso sem
mencionar sua relação com o pai.

Não deixarei que isso aconteça com a Maia, prometeu ela. Mesmo que isso
a faça pensar que eu sou a pior mãe da história do mundo.
— Porque eu sou sua mãe e estou dizendo. — Ela se inclinou e pegou o
BlackBerry. — Um mês. Sem exceções.

— Que se dane! — Levantando-se com atitude adolescente, Maia derrubou


o banquinho e disparou na direção de seu quarto. Ela parou na soleira da porta
para mais uma tentativa. — Você não pode me impedir, sabe. Eu vou fazer o que
tenho que fazer.

Diana ficou parada. Colocou as mãos em seus lábios.

— Isso é uma visão ou uma ameaça?

— Espere e veja — disse Maia.

Ela bateu a porta do quarto atrás de si.

Kyle estava deitado acordado olhando para o teto. A tela do seu relógio despertador
marcava 4:20 da manhã. Ele estava se mexendo e se virando há horas, incapaz de
cair no sono. Lençóis suados enredavam-se em seu corpo. A fatiga o deixava para
baixo, e ele se sentia mais morto do que vivo, embora o sono fosse elusivo de um
modo frustrante. Nunca se sentira tão cansado.

— Outra noite ruim, amor?

Cassie se materializou na cama ao lado dele. Ela arrastou-se até ele por
debaixo dos lençóis. O calor do corpo dela não adiantou muito para afastar sua
miséria.

— Só não consigo dormir — gemeu ele. — Por mais que eu tente.

Isso estava se tornando uma provação noturna. Ele não tinha uma boa
noite de sono desde o terrível pesadelo no centro de plasma. Toda vez que fechava
os olhos, se via matando Abby e “Danny”. Suas expressões e olhares agonizantes,
seus olhos sem vida o assombravam. Suas mortes violentas o davam nos nervos.
Mesmo quando a total exaustão tomava conta, e ele conseguia algumas horas
difíceis de sono, revivia as experiências infernais em seus sonhos, várias e várias
vezes. O estrondo agudo da arma ecoava infinitas vezes em seus ouvidos. O cheiro
desagradável da pólvora da arma queimava seus pulmões. O sangue quente o
lavava como uma maré incessante.

Soluçando, ele jogou o braço sobre os olhos numa tentativa inútil de


bloquear as terríveis imagens. A culpa dava nós em seu estômago.

— Você tem que aceitar o que aconteceu. — Cassie descansava a cabeça


no travesseiro dele. — Não empurre. Agarre. Deixe que isso te faça mais forte,
mais resistente. Mais como o guerreiro que você precisa se tornar.

Quem disse que quero ser um guerreiro? Ele virou-se, e seus rostos
ficaram separados por poucos centímetros.

— Mas eu matei duas pessoas, Cassie. Como vou viver com isso? Você não
entende? Acabei com a vida deles!
Isso parecia não perturbá-la.

— Criação e destruição são dois lados da mesma moeda. Como um xamã,


você devia entender isso. Estamos mudando o mundo, Kyle, mas não
conseguiremos até que você aceite o sacrifício necessário.

Uma única geração de sacrifico, em troca do Paraíso. Fora isso o que Abby
dissera, citando Jordan, logo antes que ele a matasse. Parecia uma barganha justa,
mas ainda assim…

— Não quero machucar mais ninguém.

Ela gentilmente afagou o rosto dele. Sábios olhos verdes lhe ofereceram
absolvição.

— Não é assim que funciona, meu amor. Quanto mais cedo aceitar isso,
melhor você dormirá.

No fundo, ele sabia que ela tinha razão.


VINTE E DOIS

— Então você insiste em dizer que não sabia nada sobre o que Grayson e
Abigail estavam fazendo?

Tom e Diana confrontavam Collier em seu escritório, no centro da cidade.


Tinham levado uma semana para conseguir marcar uma hora com ele. Tom se
perguntava se era porque Collier precisava de tempo para se livrar de qualquer
evidência que o ligasse à operação. Esconder bem a verdade demandava muita
atenção.

— Enfaticamente — declarou Collier. Juntamente com Kyle, ele estava mais


uma vez empenhado em redesenhar Seattle através de seus esquemas
holográficos. Um novo arranha-céu estava aparentemente destinado a se erguer
acima da terra estéril e arrasada, anteriormente ocupada pelo Centro de Coleta de
Plasma do Pacífico. — Imaginem vocês, confesso que a finada Srta. Hunnicut me
forneceu inteligência prática nas operações da NTAC. Eu seria bobo se não tirasse
proveito de tão bem-posicionada fonte. Mas aquele negócio horrendo com o corpo
do seu sobrinho… Eu não tive nada a ver com aquilo.

— Tá vendo, pai? — disse Kyle. Pesados círculos sob seus olhos sugeriam
que ele não vinha dormindo bem. Fazia dias que vinha evitando as ligações de
Tom. — Eu te disse que Jordan estava fora disto.

Seu filho poderia estar inclinado a dar a Collier o benefício da dúvida, mas
Tom não estava convencido da inocência dele.

— E este tal Comitê de Alcance Global? Era parte da sua Fundação, não
era?

— Nossa organização tem crescido exponencialmente desde o Grande


Passo para Adiante — declarou Collier, com irritante autoconfiança. — Infelizmente,
temo que este crescimento rápido tenha superado a minha capacidade de estar por
dentro de cada novo programa ou iniciativa. Grayson e Abigail eram devotos
desencaminhados, que excederam brutalmente sua autoridade. Uma supervisão
mais efetiva é claramente necessária. Você tem a minha palavra de que isto terá
prioridade máxima.

Diana encarou a face de Collier bem de perto. A raiva quase incontrolável


pontuava sua voz.

— Isto é tudo o que você tem a dizer, depois do que fez à minha irmã?

A NTAC havia informado a eles que April Skouris não fazia mais parte do
quadro funcional do governo federal, e por quê. Desde então ela se recusava a
responder as ligações e e-mails de Diana. Eles não tinham nem certeza absoluta de
onde ela estava morando ultimamente.

Jordan não estava surpreso pela explosão de Diana. Sem dúvida ele tinha
se prevenido para responder àquilo.

— Eu não peço desculpas por aquele lamentável incidente. Sua irmã me


forçou àquilo — ele voltou a atenção para a silhueta holográfica. — E, para ser
absolutamente claro, não tive nada a ver com aquela conspiração genocida que
vocês efetivamente frustraram. Eu ofereceria uma medalha a cada um de vocês, se
assim aceitassem. Impor promicina é antiético e contrário a tudo o que eu sempre
sustentei.

A verdade ou ainda mais negação plausível? Infelizmente, não havia


maneira de se saber ao certo. Tanto Grayson quanto Rosita tinham se recusado a
incriminar Collier. April Skouris talvez fosse apta a arrancar a verdade deles, mas,
por bem ou por mal, Collier tinha tirado aquela opção do jogo. E se nós
conseguíssemos incriminar Collier por isto? Tom meditou, entristecido. Isto só iria
dar a Dennis a desculpa de que ele precisa para declarar guerra a Seattle.

Era uma causa perdida.

— Está certo — disse Diana, amargamente. — Você não admite brincar de


ser Deus, a não ser quando é do seu interesse.

Tom admirou o controle de sua parceira. Se Collier desse uma de vampiro


para cima de Meghan ou Kyle, eu voaria em cima dele. Com ou sem seguranças.

— Acreditem em mim, Tom e Diana — insistiu Collier. — Eu jamais lançaria


uma versão aérea de promicina sobre o mundo. Exceto, talvez, em retaliação a um
ataque militar à Terra Prometida.

Aquilo era uma confissão? Ou uma advertência?

Tom não conseguia se livrar da sensação de que Collier estava jogando um


jogo muito perigoso.

Ao menos eu ainda sou negativo para promicina, pensou ele. Um teste de


sangue havia confirmado que as U-Pills tinham-no protegido da contaminação. Se
aquela maldita profecia estiver certa, Collier não poderá vencer enquanto eu não
tomar a injeção.

E isto não iria acontecer tão cedo.

Mais tarde, depois de deixar Tom no quartel-general para relatar a Meghan


o encontro inconclusivo com Collier, Diana foi cuidar de outro problema. Ela abriu a
porta do laboratório de Kevin Burkoff no Centro 4400. Ainda havia a questão das
amostras de sangue roubadas a ser resolvida.

— Kevin? Dr. Burkoff?

Para surpresa dela, o laboratório estava desfeito. Todo o equipamento e os


arquivos haviam sumido, exceto por um solitário laptop aberto sobre um balcão
todo marcado de ácido. Não havia sinal nem de Burkoff, nem de Tess.

Mas o que é isso? Ela havia ligado antes, para marcar aquele encontro.
Kevin deveria estar ali. Por um segundo, ela temeu que Collier tivesse abduzido
Burkoff novamente, como fizera alguns meses antes, na esperança de impedir
Kevin de aperfeiçoar seu teste de compatibilidade de promicina. Shawn e Tess
haviam resgatado Kevin das garras de Collier na época, mas talvez o chefão da
Terra Prometida tivesse tentado novamente.

Mas por que deixar aquele laptop para trás?


Diana olhou o computador mais de perto. Uma proteção de tela exibindo
vistas aéreas da Space Needle33 ocupava o monitor. Um papelzinho de aviso estava
colado ao teclado. “Ligue-me”, estava escrito nele, na caligrafia distintamente
apertada de Kevin. Sementes de girassol perdidas haviam se infiltrado entre as
teclas.

Diana pressionou “enter”.

Um videoclipe substituiu a Space Needle. Kevin Burkhoff apareceu na tela.


Ele parecia cansado e nas últimas. Sua voz saiu das caixas de som.

— Olá, Diana. Desculpe-me por não estar aqui para te encontrar, como
planejado, mas Tess e eu estamos indo embora para sempre. Há uma guerra
iminente e não queremos tomar parte nisto. O que aconteceu na prisão foi a gota
d’água. Tess já sofreu demais. Não posso deixar que algo mais aconteça com ela.

“Neste computador estão todas as minhas notas atualizadas sobre o teste


de compatibilidade. Você e Shawn são as únicas pessoas a quem eu confiaria
minhas descobertas. Por favor, agradeça a ele por toda a hospitalidade. Eu não
queria que tivéssemos que sair dessa maneira, mas não poderíamos nos arriscar a
ver você, ou Shawn, ou a NTAC, ou Collier tentarem nos impedir de partir. Vocês
todos terão de tocar o barco sem nós. Já passamos da conta. Adeus e fiquem bem.”

Tess aproximou seu rosto da tela.

— Não tentem nos achar.

O videoclipe acabou.

Que tal esta, pensou Diana. Kevin e Tess haviam desertado novamente.
Apesar disso, ela não podia culpá-los por optarem por sair dos intermináveis
conflitos envolvendo os 4400 e a gloriosa cruzada de Collier. Que se dane, Diana
uma vez tentara fazer o mesmo, fugindo para a Espanha com Maia e um noivo,
apenas para ser sugada de volta para Seattle. O noivo já era passado agora. Ela
desejou sorte para Tess e Kevin. Espero que a fuga de vocês dure mais do que a
minha.

Entretanto, ela não podia deixar de se preocupar com aquelas amostras de


sangue extraviadas. Haveria outro laboratório escondido, em algum lugar, apenas
esperando para achar uma nova maneira de recriar o terrível dom de Danny
Farrell?

Apenas o futuro sabia – e eles não podiam prevê-lo.

33
Fim
Space Needle (agulha espacial) – principal ponto turístico de Seattle, consiste em uma torre de
observação que é o prédio mais alto da cidade e da região noroeste do Pacífico nos Estados Unidos.

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