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Boa Vista
2004
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
JORNALISMO
Boa Vista
2004
2
Dedico esta monografia a minha família,
em especial à minha mãe e minha irmã, e
a meus amigos que me apoiaram em
todos os momentos difíceis da pesquisa.
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AGRADECIMENTOS
4
À comunidade do Bairro Caetano Filho.
A todas as pessoas que estiveram ao meu lado e me ajudaram de forma
direta ou indireta, em especial Rodrigo Ávila e Ana Paula Vasconcelos, na
montagem do trabalho escrito e Vicente de Paula e Ana Paula Cruz por todas as
informações prestadas.
5
“Quando você ganhar, comemore: é importante um
rito de passagem.”
Esta vitória custou momentos difíceis, noites de
dúvidas, intermináveis dias de espera. Desde os
tempos antigos, celebrar um triunfo faz parte do
próprio ritual da vida.
A comemoração marca o final de uma etapa. Se a
evitarmos – por incrível que pareça, muita gente a
evita por medo de decepção, de atrair mau-olhado –
não estaremos nos beneficiando do melhor presente
que a vitória nos dá: a confiança.
Celebre hoje suas pequenas vitórias de ontem, por
mais insignificantes que pareçam. “Amanhã uma
nova luta se aproximará e irá exigir toda sua atenção
e esforço.” A “lembrança de uma vitória sempre
ajuda a ganhar a próxima batalha”.
(COELHO,1999, p.21)
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A AUSÊNCIA CORPORAL NO COTIDIANO MARGINAL:
TERMO DE APROVAÇÃO
Banca examinadora:
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 10
2 – A BUSCA DO SENTIDO 39
CONSIDERAÇÕES FINAIS 54
REFERÊNCIAS 57
ANEXOS 58
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LISTA DE FOTOS
9
APRESENTAÇÃO
de uma pequena vila em cidade planejada, que recebe elogios de todos que a visitam.
Mesmo assim, os problemas existem, muitos deles bem perto do centro da cidade e
O caso mais falado é o do bairro que não é bairro. Ele fica no centro da cidade,
perto de onde nasceu Boa Vista, como veremos adiante. Ganhou o nome de Francisco
1958. Mas também é conhecido como Beiral, porque fica na beira do Rio Branco.
alagam as poucas ruas e acabam fazendo com que os moradores tenham que sair de
lá, porque as casas ficam inundadas. Mas o que mais aborrece as pessoas que moram
lá é a falta de atenção das autoridades com o bairro. Junto com a fama de lugar de
gente envolvida com problemas policiais, como tráfico de drogas e prostituição, vem a
10
Dedicamos vários dias de pesquisa de campo, onde pudemos colher a opinião
de quem mora num bairro onde todos os problemas acabam sem solução imediata,
ausência. Procuramos ver como essa ausência é sentida pelos moradores e como ela
O bairro é pequeno, tem poucos moradores, mas não encontra apoio nas
mas que têm muita vontade de ter apenas uma vida feliz, com o respeito das
autoridades que têm a responsabilidade de dar àquelas pessoas uma estrutura que
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1 – UMA REALIDADE LOCAL
da base física do país: a figura do território federal, unidade federada ainda sem
Federação.
presidente Getúlio Vargas criou, através do Decreto nº 5.812, cinco Territórios Federais
de uma só vez: Rio Branco (depois Roraima), Guaporé (depois Rondônia), Amapá,
daria com um modelo especial, mais do que município e menos que estado.
com uma área de 230.104 Km². A região que hoje compreende o Estado de Roraima
1
MAGALHÃES, 1997, p. 84
12
Como vimos antes, o Território Federal do Rio Branco foi criado em 1943. Mas
somente no ano seguinte teve sua instalação concretizada, mais precisamente no dia
20 de junho de 1944.
A princípio, teve dois municípios: Boa Vista, escolhido para ser a capital, e
Catrimani, que nunca foi instalado. Em seu lugar foi criado o município de Caracaraí,
nenhum deles eleito pelo povo. Afinal, os administradores dos territórios federais eram
no poder. Um dos maiores exemplos foi o senador Vitorino Freire, do Maranhão, que
podia realizar. Com tal descontinuidade, o Território Federal de Roraima teve uma de
2
FREITAS, 2001, p. 73
3
________, ______, p. 115-116
13
Em 1960, o deputado federal Valério Caldas de Magalhães apresentou o Projeto
Essa mudança teve como maior justificativa a grande confusão que era feita em
todo o Brasil com a capital do Estado do Acre – Rio Branco – e o Território Federal de
mesmo nome. Somente dois anos depois o PL foi transformado na Lei nº 4.182, de 13
de dezembro de 1962.
eleitores: para ele, o Território Federal do Rio Branco não mudaria o nome. Mas seu
compromisso com os que o elegeram, em campanha política onde até morte houve,
O antigo Território Federal foi transformado no atual Estado de Roraima, pelo Art.
em 1998. Terminava ali a tutela federal. Depois de 45 anos, surgia o estado membro da
4
MAGALHÃES, 1997, p. 98.
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Eleito com vitória em dois turnos, o brigadeiro Ottomar de Sousa Pinto, ex-
janeiro de 1995.
Apoiado pelo então governador Ottomar Pinto, Neudo derrotou nas urnas o ex-
detentores de mandato executivo, ele foi reeleito em 1998, ao vencer a ex-prefeita e ex-
5
A GAZETA DE RORAIMA
6
FOLHA DE BOA VISTA,
15
Como não atingiu o percentual de 50% mais um dos votos válidos, houve
de lei provincial. Construída em faixa de terra estreita, entre o rio e a baixa alagadiça na
época das chuvas, ficava na proximidade da sede da fazenda Boa Vista (foto 1),
fundada em 1830, pelo capitão Inácio Lopes de Magalhães. A freguesia era pertencente
7
FOLHA DE BOA VISTA.
16
Foto 2 - Início de Boa Vista (1925, Hamilton Rice)
Boa Vista do Rio Branco (foto 2), mantendo os mesmos limites da antiga freguesia, com
Coelho, tomaram assento o capitão doutor Fabio Barreto Leite, comissionado para
instalar a Intendência desta Vila e os cidadãos João Capistrano da Silva Mota como
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Estadual, de 1º de dezembro de 1938, o município teve sua denominação definida para
Boa Vista.
governador, capitão do Exército Brasileiro Ene Garcês dos Reis, convidou o urbanista
tinha os seguintes bairros: Porto da Olaria (Francisco Caetano Filho), Rói-couro (São
projeto para Boa Vista. Ele queria um novo tempo em matéria de urbanismo. Para
surpresa geral, o vencedor foi o engenheiro civil carioca Darci Derenusson, com apenas
28 anos de idade. Só para chegar ao território ele levou 30 dias viajando, desde o Rio,
época:
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Quando ele veio a Boa Vista pela primeira vez, em 1944,
passava pouco mais de um ano que o governo federal transformara o
município de Boa Vista, mais um pedaço de Moura, Estado do
Amazonas, em Território Federal do Rio Branco. O engenheiro civil
Darcy Aleixo Derenusson, então com 28 anos, conhecia uma pequenina
cidade picheira, plantada às margens do Rio Branco, no extremo norte
do Brasil e abrigando esparsos 1.800 brasileiros, pouco mais, pouco
menos. Ruas de terra batida, vida pacata e tardes bucólicas, ‘Boa Vista’
- conta ele – ‘tinha umas oito casas cobertas com telhas, outras de
zinco e a maioria com telhas de palhas de buritis.
Sua preocupação foi sentir aquela cidade pacata, a qual deveria transformar no
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que a principal medida adotada pelo governo da época foi baixar um
decreto proibindo qualquer construção na cidade até que fosse
entregue o Plano Diretor de Urbanismo. Ele e sua equipe terminaram os
projetos em 1946 e permaneceram em Boa Vista até 1951 para
acompanhar sua execução.
quase cinco décadas, como podemos perceber em suas palavras naquela entrevista:
projeto:
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Ele ressalta que o principal fator para o sucesso de seu trabalho
em Boa Vista foi ter concluído antes o projeto da rede de águas pluviais
e esgotos sanitários antes das construções. ‘Rasgamos todas essas
ruas existentes hoje e colocamos canos de águas e esgotos. É por isso
que não temos as valas negras. Na década de 70, Boa Vista chegou a
ser apontada como a cidade de melhor qualidade de vida em todo o
Brasil’ orgulha-se o engenheiro.
Esse é um serviço essencial para propiciar melhor qualidade de vida. Foi isso
que tornou Boa Vista uma cidade sadia e agradável. O núcleo da capital planejada em
águas pluviais. Foi por isso que a população teve e tem uma melhor qualidade de vida
Uma cidade que nasce sob o signo do respeito à história e com aproveitamento
Pelo menos foi com esse pensamento que o engenheiro carioca executou seu
21
trás suas origens. Minha preocupação foi de não destruir os prédios já
existentes e, com isso, destruir a memória de uma cidade.
cortadas por perimetrais, ligando os vários extremos da cidade. Segundo ele explicou
E o que Derenusson quis dizer com seu desenho? Ele mesmo respondeu, em
8
Artigo “O que representam as radiais” - Darcy Aleixo Derenusson
22
Darcy Derenusson morreu há pouco mais de dois anos, no dia 27 de maio de
da Boa Vista moderna, o então vereador Flávio dos Santos Chaves assim se
habitantes.
Federação e alguns estrangeiros que aqui fixaram residência, agrega traços culturais
de todas as tendências.
9
Censo IBGE - 2000
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Desde 1981 temos o Centro de Tradições Gaúchas Nova Querência, implantado
pelos imigrantes vindos do Rio Grande do Sul, a grande maioria constituída por
Boa Vista um campus avançado, desativado logo após a implantação dos cursos de
Grandes valas abertas nas ruas substituíam o sistema de águas pluviais. Os lotes de
terreno ficaram cada vez menores, reduzindo o conforto das famílias e criando um novo
agrupamento de imóveis com menor espaço físico para o lazer (áreas externas)
Mesmo assim, a urbanização de Boa Vista continua sendo uma das melhores da
região, senão a melhor. O aproveitamento das áreas públicas tem sido feito com
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Obras como os Complexos Sócio-Esportivos Aírton Sena (no centro) e Mané
Garrincha (no bairro Caimbé) ou a Praça das Águas, também no centro, criaram novas
opções de lazer para o boa-vistense, além de revitalizar áreas até então abandonadas
à própria sorte.
cidade de Boa Vista. Seu início fica a menos de duzentos metros da sede da antiga
Mas, nos primeiros tempos, a cidade cresceu mesmo para o outro lado, em
direção à Praça da Bandeira. Somente uns anos mais tarde os pescadores iniciariam a
poderiam construir e/ou permanecer em suas casas. Por estar localizado num baixão, o
bairro constantemente era alagado pelas águas do Rio Branco. Mesmo em décadas
Também por causa da proximidade com o rio, o Francisco Caetano Filho ganhou
outra denominação, pela qual é até mais conhecido: Beiral. Ocupado depois do
planejamento da cidade por Derenusson, não ganhou, nos primeiros anos, rede de
25
A geografia do lugar era incompatível com ocupação por moradias. Com tanto
espaço físico disponível à época, seria inconcebível imaginar construções naquele lugar
onde as inundações eram, como vimos, uma constante em períodos de chuvas fortes.
contratado pelo então deputado federal Félix Valois, general do Exército e segundo
veremos adiante.
Foto 3 - Casa onde morou Francisco Caetano Filho (Viviane Lima, 2004)
26
Em 1946, o Território Federal do Rio Branco passou a ter um representante na
Câmara Federal, já que até 1943 toda essa área pertencia ao Estado do Amazonas. O
primeiro deputado federal eleito pelo povo foi Antônio Augusto Martins, na época
gerente da filial da firma J.G. Araújo, localizada onde hoje se encontra a Loja Esquina
do Rio (no final da Avenida Jaime Brasil com a Rua Floriano Peixoto).
até matar, caso as coisas não acontecessem como previstas pelo parlamentar.
recebida (e sempre rigorosamente cumprida) era surrar, cortar uma orelha ou, se a
deputado.
vinha agindo pela ordem numérica decrescente. Contava ainda, com a ajuda de alguns
Polícia Militar).
surpresa. O "escolhido" era conduzido em um jipe do governo para algum lugar ermo.
Uma versão antiga do atual local para desova de corpos conhecidos como "Banho da
Tieta".
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O primeiro a passar pelo suplício foi o senhor Manoel dos Passos. O segundo
da lista levou somente uma surra. "Mas uma surra caprichada", como disseram os
Pingarrilho, uma figura folclórica, considerado boa pessoa. Pingarrilho, além da surra
que levou, ainda teve uma das orelhas cortadas pelo pistoleiro Claudionor, a quem teve
outro lado.
Este era o clima político em Boa Vista nos anos de 1957 e 1958.
lista dos perseguidos. Rapidamente, repassou-a aos que estavam nela relacionados.
Todos eles, então, passaram a andar armados, como forma de proteção pessoal. Não
gravata - e arrastado pelos três policiais, foi colocado contra uma parede, ali, bem no
centro da cidade. O pistoleiro Claudionor chegou pelo outro lado, sacou um revólver
Taurus, calibre 38, e o usou como porrete na cabeça de José Pereira. Este, depois da
sétima pancada, conseguiu reagir. Numa sacudidela, jogou a arma do pistoleiro para
longe. Mas o pistoleiro não desanimou: puxou uma faca-peixeira. Os relatos assim
28
definem a luta entre os dois: “Foi briga de macho de verdade”. No meio da confusão, os
guardas correram.
Nesse ínterim, chegou o "listado" de número 5. Sem pensar duas vezes, ele
Francisco Caetano Filho (no final da Avenida Sílvio Botelho, próximo ao terminal de
ônibus). Com poucas casas, para se chegar lá se atravessava uma pequena ponte de
madeira, onde havia um grande terreno baldio. Ali mesmo morava o Chico Caetano.
permitir uma reunião no quintal de sua casa. No início ele até descartou a idéia. Depois,
Valois.
A partir daí, conseguimos duas versões da história, com o mesmo final: Chico
Braços Abertos, da Prefeitura de Boa Vista, informa que, alguns dias depois da reunião,
Caetano estava na porta de sua casa, como já dissemos localizada na entrada principal
do bairro, quando foi baleado e morto pelo simples fato de ter abrigado aquela reunião
política.
29
A outra foi relatada em depoimento pessoal do economista Valério Caldas de
Ele era menino quando ocorreu o crime. Sua versão é de que a esposa de
O crime abalou toda a cidade de Boa Vista. O medo que as pessoas sentiam do
partidos contra Valois) saiu vitorioso Valério Caldas de Magalhães. Este, enquanto foi
parlamentar, apresentou mais de vinte projetos importantes, entre estes o que permite
setembro de 1962). Por sua obra em benefício desta terra, Valério Magalhães foi
30
homenageado pela Câmara Municipal de Boa Vista, dando seu nome a uma rua no
Como vimos, o bairro Francisco Caetano Filho sempre teve uma trajetória
difícil. Até mesmo seu nome tem relação com uma tragédia. Mesmo assim, as pessoas
com a situação do bairro ante um dos mais rigorosos invernos já vistos na cidade,
outras áreas, a pesquisa por ele feita entre os que lá moravam apontou a resistência ao
levantamento estatístico em campo, tendo como base dados de 2001, do programa social
10
Fonte: Banco de Dados do Programa Braços Abertos - 2001
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POPULAÇÃO
32
CHEFES DE FAMÍLIAS
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FAIXA ETÁRIA DOS HABITANTES
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ESCOLARIDADE DA POPULAÇÃO ACIMA DE 07 ANOS DE IDADE
35
SITUAÇÃO OCUPACIONAL ACIMA DE 16 ANOS
36
FUNÇÃO DA POPULAÇÃO ACIMA DE 16 ANOS
37
NÍVEL DE RENDA
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2 – A BUSCA DO SENTIDO
4) foi marcado por grande emoção. Começávamos ali a parte prática do trabalho de
conclusão de curso, sentindo de perto a vida das pessoas que moram lá, por opção ou
por necessidade.
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Procuramos entrar sem idéias preconceituosas sobre os moradores. Todas as
informações que recebemos antes serviriam apenas como um alerta para aquela
passagem. Agora era diferente. Nosso olhar deveria estar atento para os detalhes.
Antes nem nos preocupávamos com aquela realidade. A pesquisa nos obrigou a mudar
de uma preocupação dos que moram fora para com a comunidade. A própria
todos que lá moram fossem traficantes ou prostitutas (o noticiário dos jornais registra,
Algumas pessoas com as quais tivemos um contato mais próximo, são pessoas
simples, e também atenciosas para com quem busca informações sobre o bairro. Elas
procuram mostrar, de maneira bem clara, o que realmente é viver naquela comunidade
Já vimos que o bairro não existe oficialmente. Mas as pessoas que moram lá não
se incomodam com isso. Elas têm certeza de que moram no bairro Francisco Caetano
Filho, mesmo que algumas vezes algumas sintam vergonha de admitir isso, por causa
da má fama da área. O fato de não ter lei criando o bairro não impede os moradores de
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Todos nós esperamos ter no bairro onde moramos alguns serviços essenciais,
como água, luz, esgoto, saneamento básico, transporte fácil, segurança, escolas,
postos de saúde e bom comércio. Alguns desses serviços não existem no Francisco
Caetano Filho.
O problema das enchentes, por exemplo, marca a vida de todos por lá. Foi assim
em nossa primeira visita ao bairro para esta pesquisa. Choveu muito naqueles dias e 11
problema, mostravam-se conformados. Eles sabiam que morar lá tem seus riscos.
Elisamar Mafra dos Santos, 25 anos, foi com quem primeiro falamos. Ela saíra
da região do Apiaú (Mucajaí) com o marido e três filhos, havia um ano e nove meses,
vindo direto para Boa Vista. A família construiu um pequeno barraco, sobre palafitas,
em uma das partes mais críticas do bairro, no leito do igarapé Caxangá onde existe
uma ponte onde está entendido que o bairro termina. Eles não eram donos de nenhum
terreno. Invadiram a área para morar próximo à mãe dela, mesmo sabendo dos riscos
que correm.
mudar-se para o alojamento do Ginásio Hélio Campos, onde a Defesa Civil aloja os
para ver a situação no local. Tivemos que embarcar numa canoa para chegar. Após
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alguns minutos de travessia, chegamos à casa de sua mãe, dona Maria Euvina Mafra
Ela mora com o marido, seu pai e também com sua irmã, que é deficiente. Seu
barraco, sobre palafitas (foto 5), mede uns 9m². Um espaço muito pequeno para tanta
dificuldades da vida. Há anos lutam por coisa melhor, mas ainda não deu para
melhorar.
42
Naquele dia, faltavam uns 20 centímetros para a água entrar no barraco. Se
isso acontecesse, eles seriam transferidos para o Ginásio Hélio Campos, como ocorreu
nas casas, os dejetos vão direto para o rio (foto 6). Com a enchente, os contatos com
não foi isso que encontramos. Mesmo aborrecidas com os problemas enfrentados, elas
sabiam que aquele espaço representa uma conquista para quem não tem patrimônio.
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Não pagam aluguel, estão próximos ao centro da cidade, os filhos têm onde
estudar, e mais uma série de vantagens que talvez não tivessem antes.
representar algo triste, infeliz, nos faz mudar de idéia quando passamos a conviver com
as crianças que ali estão. Seu mundo se resume no que vivem, pois muitas não saem
maioria por eles inventados na medida do que precisam. São felizes; o sorriso é
suas vidas.
Muitas delas passam a maioria do dia sozinhas em casa. Seus pais saem para o
trabalho e os mais velhos são responsáveis pelos mais novos (foto 7). Às vezes um
vizinho mais amigo colabora, com uma “olhada” de vez em quando. Como vimos antes,
11
SANTAELLA,1996, p. 282
44
Foto 7 - Rotina das crianças do Bairro. (Viviane Lima, 2004)
acompanhou-nos até o bairro. Não foram poucas as pessoas que procuraram saber o
Senti medo, pois percebi que a preocupação deles era impedir que a autora
falasse mal do bairro em seu trabalho. Os olhares são de desconfiança, coisa bastante
natural para quem vive sendo visto com olhos de reprovação e repúdio pela sociedade.
Outra moradora, dona Maria das Graças, 49 anos, costureira, está no bairro
desde 1979. Para ela, o Francisco Caetano Filho necessita de algumas coisas, porém
não pensa em sair dele, pois lá se sente bem, lá conheceu o seu esposo, casou-se,
teve seus filhos, hoje todos criados. Ela avalia o local e sua vida.
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O bairro é tranqüilo, pelo menos para nós. Moro aqui por todo
esse tempo e nunca nos aconteceu nada de ruim. Todos nós nos
conhecemos. Mas falta algo; os políticos devem olhar mais por nós.
Eles só aparecem aqui na época da campanha; depois eles somem até
outra eleição.
Outro problema enfrentado por dona Maria e por outros moradores é a questão
Quando tentam matricular seus filhos nas escolas de Ensino Médio do centro da
cidade (lá só existe uma escola de ensino fundamental), percebem a rejeição das
pessoas que não moram no Francisco Caetano Filho, como se as crianças fossem uma
e filho da dona Maria das Graças. Ele gentilmente se dispôs a percorrer todo o bairro
Conhecedor de vários detalhes do bairro, sua ajuda foi de grande valia para nós.
Contou-nos, sob o mais absoluto sigilo, de como a maioria das pessoas ganha suas
46
Foto 8 - Manhã de uma quarta-feira no Bairro (Viviane Lima, 2004)
Eles vivem assim: passam o dia todo e até a noite nos bares
(foto 8), jogando, bebendo e jogando conversa fora. ‘Se envolvem’ em
brigas constantemente e o motivo são as drogas. Aqui, quem você
menos imagina vende drogas. Para eles é o único meio de
sobrevivência. Na verdade, querem ganhar a vida facilmente. As
mulheres usam seus corpos. Isso você pode observar pela maneira que
elas se vestem e os lugares que costumam freqüentar.
O morador quando fala nas mulheres que se prostituem em seu bairro reflete a
12
SANTAELLA, 1996, p. 313.
47
Se levarmos o termo linguagem tão longe quanto possível, não
é difícil chegarmos à conclusão de que tudo é linguagem. A mais
esquemática definição de linguagem seria a de qualquer coisa que é
capaz de tornar presente um ausente para alguém, produzindo nesse
alguém um efeito interpretativo.
sexual nem precisaria perguntar se elas o fariam. Seus gestos, suas roupas e suas
Seu comportamento era bem diferente das senhoras ‘de família’ com quem
tivemos contato no bairro. Duas formas de viver num mesmo bairro. Elas convivem,
mas não se misturam. Daí a revolta das moradoras que não se prostituem com a fama
Ao iniciar a pesquisa, muitas foram as surpresas. Porém, uma das que mais
existência do bairro.
48
Por mais absurdo que possa parecer, o bairro não existe. Para que isso ocorra
é preciso que conste do Plano Diretor do Município, conforme preceitua a Lei nº 244, de
projeto nesse sentido. Nem por iniciativa própria, nem por mensagem do Executivo
Municipal.
Foto 9 - Entrada do Bairro Francisco Caetano Filho: ausência de pessoas (Viviane Lima, 2004)
Francisco Caetano Filho, mesmo não sendo oficialmente um bairro, recebeu a equipe
49
da secretaria onde foi feito um trabalho em cima do que, para eles, moradores, se
resume no bairro.
anteriormente, não tem o bairro como existente em seu cadastro. Nem poderia ser
diferente, pois também não há aprovação de sua criação pela Prefeitura ou pela
Câmara de Vereadores.
mantêm a área onde se localiza o Francisco Caetano Filho como bairro Centro, mesmo
o Francisco Caetano Filho exista como bairro no imaginário popular. Poderíamos defini-
Na época das enchentes, a ausência existe mesmo (foto 9), pois os moradores
são obrigados a deixar suas casas por causa das águas do rio invadindo as ruas e até
chegando ao telhado das casas situadas na parte mais baixa do bairro. É quando o
Francisco Caetano Filho deixa de existir não apenas oficialmente, mas também pela
saída de seus moradores, até que o nível das águas volte ao normal.
Quando isso acontece, o bairro volta a ter seus moradores, embora continue a
não existir na burocracia municipal. Porque ninguém quer sair de lá, apesar de todos os
No final deste mês de julho e início de agosto, o bairro está envolvido em mais
uma polêmica, onde fica bastante clara a ausência de responsabilidade das autoridades
50
O jornal Folha de Boa Vista publicou reportagem denunciando uma rede de
esgotos clandestina, jogando os detritos direto no Rio Branco (foto 10), criando um foco
de poluição.
brincando próximo à saída do esgoto, na margem do rio (foto 11). A Prefeitura de Boa
51
Foto 11 - Crianças próximo ao esgoto (Folha de Boa Vista)
cuidar da rede de águas pluviais, onde teria sido conectada a rede clandestina.
construiu, em 1989, uma rede de águas pluviais, porque pretendia transformar a área
em espaço de lazer. Disse que os comerciantes de peixe tomaram conta do lugar. Ele
não sabe quem construiu a rede clandestina, mas garante que a rede pluvial tem até
placa de inauguração.
Entre tantas acusações e omissões, surge uma palavra de bom senso, vinda
Boa Vista do dia 31 de julho de 2004: “Quem teria dinheiro aqui para construir uma rede
52
Até o momento em que a autora encerrou sua pesquisa, ninguém havia tomado
Francisco Caetano Filho continuava exposta à poluição gerada pelo despejo dos
detritos das fossas direto para o Rio Branco, onde as crianças brincam.
53
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Centro. Mas seus moradores insistem que o bairro existe com aquele nome, ou como
considera certo. Os moradores não têm ilusão sobre os políticos. Eles sabem que
poucos cumprem o que prometem, como aconteceu com o prefeito que prometeu
mudar o nome do bairro para Francisco Caetano Filho e nunca tomou as providências
12). Eles insistem em ficar por lá mesmo depois das enchentes que alagam o bairro e
fazem com que eles tenham que sair para abrigos improvisados, como o que
águas cobriam suas casas. Eles têm identidade com o bairro e querem continuar
A imagem que a sociedade faz do bairro incomoda seus moradores. Eles não
Fazem questão de dizer que todo lugar tem bons e maus elementos. O
Francisco Caetano Filho não é diferente. Quando os jornais divulgam notícias com
crimes ocorridos no bairro, os cidadãos de bem ficam chateados, porque acabam sendo
atingidos pela notícia, mesmo sem ter nada a ver com o caso. A maioria da sociedade
54
passou a acreditar que todo morador do bairro está envolvido com problemas policiais,
que fizemos. A diferença de comportamento entre os que cumprem a lei e os que levam
uma vida marginalizada já foi explicada por Lúcia Santaella, citada anteriormente.
Foto 12- A vida continua no Bairro Francisco Caetano Filho (Viviane Lima, 2004)
O grupo social determina seus limites de ação, para o bem ou para o mal. O
grupo cria as condições que acha adequada para seu bairro. Se houver diferença de
dentro, mas com má fama do lado de fora, porque o noticiário sempre dá destaque ao
especial, durante o inverno por suas residências e ruas estarem sob as águas do Rio
Branco.
de Roraima.
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REFERÊNCIAS
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ANEXOS
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