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Esquecimento,
Silêncio
Michael Pollak
mórias individuais: "Para que nossa preferência onde existe conflito e com
memória se beneficie da dos outros, petição entre memórias concorrentes.
não basta que eles nos tragam seus
testemunhos: é preciso também que
A memória em disputa
ela não tenha deixado de concordar
com suas memórias e que haja sufi
Essa predileção atual dos pesquisa
cientes pontos de contato entre ela e
dores pelos conflitos e disputas em
as outras para que a lembrança que
detrimento dos fatores de continuida
os outros nos trazem possa ser recons
de e de estabilidade deve ser relacio
truída sobre uma base comum."·
nada com as verdadeiras batalhas da
Esse reconhecimento do caráter po
memória a que assistimos, e que assu
tencialmente problemático de uma
miram uma amplitude particular nes
memória coletiva já anuncia a inversão
ses últimos quinze anos na Europa.
de perspectiva que marca os trabalhos
Tomemos, a título de ilustração, o
atuais sobre esse fenômeno. Numa
papel desempenhado pela reescrita da
perspectiva construtivista, não se trata
história em dois momentos fortes da
mais de lidar com os fatos sociais
destalinização, o primeiro deles após
como coisas, mas de analisar como os
o XX Congresso do PC da União So
fatos sociais se tornam coisas. como
viética, quando Nikita Kruschev de
e por quem eles são solidificados e do
nunciou pela primeira vez os crimes
tados de duração e estabilidade. Apli
stalinistas. Essa reviravolta da visão
cada à memória coletiva, essa aborda
da história, indissociavelmente ligada
gem irá se interessar portanto pelos
à da linha política, traduziu-se na des
processos e atores que intervêm no
truição progressiva dos signos e sím
trabalho de constituição e de formali
bolos que lembravam Stalin na União
zação das memórias. Ao privilegiar a
Soviética e nos países satélites, e, final
análise dos excluídos, dos marginaliza
mente na retirada dos despojos de
dos e das minorias, a história oral res
Stalin do mausoléu da Praça Verme
saltou a importância de memórias sub
lha. Essa primeira etapa da destalini
terrâneas que, como parte integrante
zação, conduzida de maneira discreta
das culturas minoritárias e dominadas,
dentro do aparelho, gerou transborda
se opõem à "memória oficial", no caso
mentos e manifestações (das quais a
a memória nacional. Num primeiro mais importante foi a revolta húngara)
momento, essa abordagem faz da em que se apropriaram da destruição das
patia com os grupos dominados estu estátuas de Stalin e a integraram em
dados uma regra metodológica • e rea uma estratégia de independência e de
bilita a periferia e a marginalidade. Ao autonomia.
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caso seja necessário, o fosso que sepa nador e sociedade civil. Encontramos
ra de fato a sociedade civil e a ideolo com mais freqüência esse prob�ema
gia oficial de um partido e de um Es nas relações entre grupos minoritários
tado que pretende a dominação hege e sociedade englobante.
mônica. Uma vez rompido o tabu, urna O exemplo seguinte, completamen
vez que as memórias subterrâneas con te diferente, é o dos sobreviventes dos
seguem invadir o espaço público, rei campos de concentração que, após se
vindicações múltiplas e dificilmente rem libertados, retornaram à Alema
previsíveis se acoplam a essa disputa nha ou à Áustria. Seu silêncio sobre
da memória, no caso, as reivindica O passado está ligado em primeiro lu
dos aqueles que querem evitar culpar e que, com exceção dos deportados
as vítimas. E algumas vítimas, que políticos, se integram mal em um- des
compartilham essa mesma lembran file de ex-combatentes? "1945 organi
ça "comprometedora", preferem, elas za o esquecimento da deportação, os
também, guardar silêncio. Em lugar de deportados chegam quando as ideolo
se arriscar a um mal-entendido sobre gias já estão colocadas, quando a ba
uma questão tão grave, ou até mesmo talha pela memória já começou, a cena
de reforçar a consciência tranqüila e política já está atulhada: eles são de
a propensão ao esquecimento dos an mais," JO A essas razões políticas do
tigos carrascos, não seria melhor se silêncio acrescentam-se aquelas, pes
abster de falar? soais, que consistem em querer poupar
Poucos períodos históricos foram os filhos de crescer na lembrança das
tao estudados como o nazismo, in feridas dos pais. Quarenta anos depois
cluindo-se aí sua política anti-semita e convergem razões políticas e famili a-
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO, SILÊNCIO 7
res que concorrem para romper esse sentido nas primeiras décadas do pós
silêncio: no momento em que as tes guerra.
temunhas oculares sabem que vão de A partir daí, Freddy Raphael distin
saparecer em breve, elas querem ins gue três grandes etapas: à memória
crever suas lembranças contra o es envergonhada de uma geração perdi
quecimento. E seus filhos, eles tam da seguiu-se a das associaçães de de
bém, querem saber, donde a prolifera sertores, evadidos e recrutados a força
ção atual de testemunhos e de publica que lutam pelo reconhecimento de
ções de jovens intelectuais judeus que lima situação valorizadora das vítimas
fazem "da pesquisa de suas origens e dos" Malgré nous", sublinhando sua
a origem de sua pesquisa", 11 Nesse atitude de recusa e de resistência pas
meio tempo, [oram as associações de siva. Mas hoje, essa memória canali
deportados que, mal ou bem, conser zada e esterilizada se revolta e se afir
varam e transmitiram essa memória. ma a partir de um sentimento de
Um último exemplo mostra até que absurdo e de abandono. Ela se consi
ponto uma situação ambígua e passí dera mal compreendida e vilipendiada
vel de gerar mal-entendidos pode, ela e se engaja num combate contestat6-
também, levar ao silêncio antes de pro· rio e militante. 13 A memória subter
duzir O ressentimento que eSlá na ori rânea dos recrutados n força alsacia·
gem das reivindicações e colltestações nos toma a dianteira e se erige então
inesperadas. Trata-se dos recrutados a contra aqueles que tentaram forjar um
força alsacianos, estudados por Freddy mito, a fim de eliminar o estigma da
Raphael.12 Após O fracosso de uma vergonha: "A organização das lem
política de recrutamento voluntário branças se articula igualmente com a
acionada no início da Segunda Guerra vontade de denunciar aqueles aos
Mundial pelo exército alemão na AI· quais se atribui a maior responsabili
sácia anexada, o recrutamento forçado dade pelas afrontas sofridas ... Pare
foi decidido por decretos de 25 e 29 ce, no entanto, que a culpabilidade
de agosto de 1942. De outubro de alemã como fator de reorganização
1942 a novembro de t944, 130.000 das lembranças intervém relativamen
alsacianos e lorenos foram incorpora te pouco; em todo caso, sua illcidên·
dos a diferentes [ormaçães do exér cia é significativamente reduzida em
cito alemão. Ocorreram atos de re comparação com a denúncia da barbá
volta, de resistência e de desobediên rie russa, bem como da covardia e da
cia, bem como um número significa indiferença francesas." te No momen
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alemão foi feito prisioneiro pelos fran informais e passam despercebidas pela
ceses em 1918; eu, francês, fui feito sociedade englobante.
prisioneiro pelos alemães em junho Por consegujnte, existem nas lem
de 1940, e depois, recrutado a força branças de uns e de outros zonas de
pela Webrmacht em 1943, fui feito sombra, silêncios, "não-ditos". As
prisioneiro pelos russos em 1945. Veja fronteiras desses silêncios e "não-di
o senhor que nÓs temos um sentido tos" com o esquecimento definitivo e
da história muito particular. Estamos o reprimido inconsciente não são evi
sempre do lado errado da história, sis dentemente estanques e estão em per
tematicamente: sempre acabamos as pétuo deslocamento. 17 Essa tipologia
guerras com O uniforme do prisionei de discursos, de silêncios, e também
ro, o nosso único uniforme perma de alusões e metáforas, é moldada pela
nente," 15 angústia de não encontrar uma escuta,
de ser punido por aquilo que se diz,
ou, ao menos, de se expor a mal-enten
A função do "não-dito"
didos. No plano coletivo, esses proces
sos não são tão diferentes dos meca
À primeira vista, os três exemplos
nismos psíquicos ressaltados por Clau
expostos acima não têm nada em co
de Olievenstein: "A linguagem é ape
mum: a irrupção de uma memória
nas a vigia da angústia. .. Mas a lin
subterrânea favorecida, quando não
guagem se condena a ser impotente
suscitada, por uma política de refor
porque organiza o distanciamento da
mas que coloca em crise o aparelho
quilo que não pode ser posto à dis
do partido e do Estado; o silêncio dos
tãncia. E aí que intervém, com todo
deportados, vítimas por excelência,
o poder, o discurso interior, o com
fora de suas redes de sociabilidade,
promisso do não-dito entre aquilo que
mostrando as dificuldades de integrar
o sujeito se conFessa a si mesmo e
suas lembranças na memória coletiva
aquilo que ele pode transmitir ao ex
da nação; os recrutados a força alsa
terior." 18
cianos, remetendo à revolta da figura
A fronteira entre o di7.Ível e o indi
do ffmalamado" e do "incompreendi
zível, o confessável e o inconfessável,
do". que visa superar seu sentimento
separa, em nossos exemplos, uma me·
de exclusão e restabelecer o que COn
mária coletiva subterrânea da socieda
sidera ser a verdade e a justiça.
de civil dominada ou de grupos espe
Mas esses exemplos têm em comum cíficos, de uma memória coletiva or
o fato de testemunharem a vivacidade ganizada que resume a imagem que
das lembranças individuais e de gru uma sociedade majoritária ou o Estado
pos durante dezenas de anos, e até desejam passar e impor.
mesmo séculos!' Opondo·se à mais le
Distinguir entre conjunturas favorá
gítima das memórias coletivas, a me
veis ou desfavoráveis às memórias
mória nacional, essas lembranças são
marginalizadas é de saída reconhecer
transmitidas no quadro familiar, em
a que ponto o presente colore o pas
associações, em redes de sociabilidade
sado. Conforme as circunstâncias,
afetiva e/ou política. Essas lembran
ocorre a emergência de certas lem
ças proibidas (caso dos crimes stali branças, a ênfase é dada a um ou
nistas), indizíveis (caso dos deporta outro aspecto. Sobretudo a lembrança
dos) ou vergonhosas (caso dos recru de guerras ou de grandes convulsões
tados à força) são zelosamente guar internas remete sempre ao presente.
dadas em estruturas de comunicação deformando e reinterpretando o pas·
M E MÓRIA. ESQUECIME NTO. SILÊNCIO 9
bém durante muito tempo submeter gica. Através desse trabalho de re
a intensificação assassina de sua re construção de si mesmo o indivíduo
pressão sob o nazismo a uma análise tende a definir seu lugar social e suas
científica. relações com os outros.
Assim como uma "memória enqua Pode·se imaginar, para aqueles e
drada". uma história de vida colhida aquelas cuja vida foi marcada por
por meio da entrevista oral. esse re· múltiplas rupturas e traumatismos, a
sumo condensado de uma hislória 50· dificuldade colocada por esse rrabalho
cial individual, é também suscelível de construção de uma coerência e de
de ser apresentada de inúmeras ma· uma conlinuidade de sua própria his·
neiras em função do contexto no qual lória. Assim como as memórias cole·
é relatada. Mas assim como nO caso livas e a ordem social que elas con
de uma memória coletiva, essas varia tribuem para constituir, a memória in·
ções de uma história de vida são Iimi· dividusl resulta da gestão de um equi
tadas. Tanto no n{vrl individual como Ifbrio precário, de um sem·número de
no nível do grupo, tudo se passa como contradições e de tensões. Encontra·
se coerência e continuidade fossem mos traços disso em nossa pesquisa
comumente admitidas como os sinais sobre as mulheres sobreviventes do
distintivos de uma memória crível e campo de concentração de Auschwitz·
de um sentido de identidade .ssegu· llirkenau. sobreludo entre aquelas
rados.3! para as quais a inexistência de um
Em todas as entrevistas sucessivas engajamento polftico impossibilitou
- no caso de histórias de vida de conferir um sentido mais geral ao so
longa duração - em que a mesma frimenlo individual. Assim. as difi·
pessoa volta várias vezes a um núme culdades e bloqueios que eventual
ro restrito de acontecimentos (seja menre .surgiram ao longo de uma en
por sua própria iniciativa, seja provo trevista só raramente resultavam de
cada pelo entrevistador), esse fenô' brancos da memória ou de esqueci
meno pode ser constatado até na en· mentos, mas de uma reflexão sobre a
tonação. A despeito de variações imo própria utilidade de falar e transmi
portantes, encontra-se um núcleo re lir seu passado. Na ausência de toda
sistente, um fio condutor, uma espé possibilidade de se fazer compreender,
cie de leU·mOliv em cada história de o silêncio sobre si próprio - diferen·
vida. Essas características de todas as te do esquecimenlo - pode mesmo
histórias de vida sugerem que eSlas .er uma condição necessária (presu.
últimas devem ser consideradas como mida ou real) para a manulenção da
instrumentos de reconstruçâo da iden· comunicação com o meio-ambiente,
tidade, e nâo apenas como relato, fac t:omo no caso de uma sobrevivente
tuais. Por definição reconstruçõo a judia que escolheu permanecer na
pOSleriori, a história de vida ordena Alemanha.
acontecimentos que balizaram uma Uma entrevista reil8 com uma de
existéncia. Além disso. aO contarmos pOrlada residente em Berlim mostrou
nossa vida, em geral tenlamos estabe que um passado que permanece mudo
lecer lima certa coerência por meio de é muitas vezes menos o produto do
laços lógicos entre acontecimentos· esquecimentO do que de um trabalho
chaves (que aparecem então de uma de gestão da memória segundo as pos
forma cada vez mais solidificada e sibilidades de comunicação. Duranle
estereotipada), e de uma conlinuida todH ;J «.:ntrcvista, a significação das
de, resultante da ordenaçao cronol6· paluvra� "alemã" e "judia" se a:lerou
14 ESTUDOS HISTÓR ICOS - 1989/3
humana, fosse integrada em uma for 16. Ver Ph. JoutaId, Ces voix qui nous
viennent du passé, Paris, Hachette, 1983.
ma qualquer de "memória enquadra
17. C. Olievenstein, Les nOrJ-dils de ['é·
da" que, por princípio, não escapa ao motion, Paris, Odile Jacob, 1988.
trabalho de definição de fronteiras so 18. Idem ib., p. 57.
ciais. t como se esse sofrimento ex- 19. D. Veillon, "La Seconde Guerre
tremo eXIgisse uma ancoragem nwna Mondiale à tra'Vers les sources orales",
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