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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LOGOTERAPIA E ANÁLISE EXISTENCIAL 1 (2), 115-127, 2012
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RESUMO
A obra de Viktor Frankl é altamente mobilizadora e convoca a pessoa humana a uma postura livre e responsável
diante da própria vida. Verificar se isto aconteceu com seu autor, ou seja, verificar se há coerência entre a vida e a
obra de Frankl, aumentará a credibilidade não só na teoria, mas na efetividade de sua aplicação. O presente
trabalho pretende responder a esta questão em três momentos: 1) Contextualização histórica, familiar e de vida
pessoal; 2) A partir de seu livro “Em busca de sentido”, extrair as atitudes que favoreceram a superação dos
obstáculos no campo de concentração e relacionar com sua teoria; 3) A partir de seu livro “O que não está escrito
nos meus livros”, extrair os princípios de vida do autor. A validação da Análise Existencial e da Logoterapia pela
coerência da vida de seu autor com sua obra, como tentamos demonstrar neste artigo, sem dúvida agrega valor
inestimável à teoria. Para nós, ficou evidente que a vida de Viktor Frankl é coerente com sua obra. Constatamos
a congruência de um homem, vivendo e pensando do mesmo modo.
ABSTRACT
The work of Viktor Frankl is highly mobilizing and summons in a human being a free and responsible attitude
towards its own life. Checking to if this happened to its author, or rather, checking for consistency between the
life and work of Frankl will increase the credibility, not only in the theory, but also in the effectiveness of its
implementation. This article aims to answer this question in three stages: 1) Historical contextualization, that of
family and of personal life; 2) Extract the attitudes that favored the overcoming of obstacles in the concentration
camps from his book "Man’s Search for Meaning" and relate them to his theory; 3) Extract from his book
"Viktor Frankl - Recollections", the principles of the author's life. The validation of Existential Analysis and
Logotherapy according to the consistency of its author’s life with his work, as we try to demonstrate in this
article, undoubtedly proves invaluable to the theory. To us it was evident that Viktor Frankl’s life is consistent
with his work; we found congruence of a man living and thinking the same way.
O
filósofo Romano Guardini (1949,
citado por Marz, 1981, p. 9) disse sobre
aquele que ensina que “o primeiro que O pai, Gabriel Frankl, cursou Medicina até
influi é a personalidade do educador; o o 5º ano, mas por motivos econômicos, ou anti-
segundo, sua maneira de agir; somente em terceiro semitas, não pôde se formar. Foi contemporâneo de
lugar, o que diz” ou escreve, podemos acrescentar. É Freud durante seu curso, na mesma escola que
fundamental, portanto, haver coerência entre a vida futuramente seu filho Viktor iria cursar. Trabalhava
e a obra de um autor, de um mestre, pois isto para a monarquia e depois para o governo. Faleceu
aumenta a credibilidade de sua obra. por inanição no campo de Theresienstadt, sob os
Nestes tempos atuais, de virada de milênio, cuidados de Viktor. Sua mãe, Elza Lion,
de crise existencial e de valores, de violência e descendente de um famoso rabino de Praga, morreu
depressão, Viktor Emil Frankl é citado como o na câmara de gás em Auschwitz. Tiveram três filhos:
pensador, o cientista, o filósofo que ofereceu uma Walter Augusto, Viktor Emil e Stella Josefina.
das mais importantes contribuições para a Os pais eram judeus praticantes, mas não
humanidade. Sua influência tem aumentado ortodoxos, e rezavam diariamente. Conviviam bem
significativamente neste início de século e está se com os vizinhos, independentemente de suas crenças
estendendo a várias áreas da ciência e da religiosas. Já enfrentavam a discriminação, mas isto
convivência. não afetou o sentido de segurança e satisfação da
A obra de Viktor Frankl é altamente infância.
mobilizadora e convoca a pessoa humana a uma Viktor nasceu a 26 de março de 1905. Ao
postura livre e responsável diante da própria vida. longo de sua vida honrou seu pai e sua mãe,
Verificar se isto aconteceu com seu autor, ou seja, mantendo-se fiel a um dos grandes mandamentos da
verificar se há coerência entre a vida e a obra de sua fé. Sempre tomava a bênção dos pais, e, depois
Frankl, aumentará a credibilidade não só na teoria, que o pai faleceu, quando ainda estavam no campo
mas na efetividade de sua aplicação. de Theresienstadt, o fazia toda vez que encontrava e
O presente trabalho pretende responder a se despedia de sua mãe, até ser transferido para
esta questão em três momentos: Auschwitz.
1. Contextualização histórica, familiar e de
vida pessoal. INFÂNCIA
2. A partir de seu livro “Em busca de
sentido”, extrair as atitudes que favoreceram a Viktor teve uma infância feliz, sem carências
superação dos obstáculos no campo de concentração econômicas, com importantes aportes culturais e
e relacionar com sua teoria; religiosos e com um ambiente familiar afetuoso e
3. A partir de seu livro “O que não está sereno. O pequeno “Vicky”, como era chamado,
escrito nos meus livros”, extrair os princípios de vida passeava bastante com os pais pelas praças de Viena,
do autor. principalmente na Praça Prater, e desde pequeno já
começava a perguntar pelo significado, o propósito
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA, das coisas, por exemplo, pelo significado do umbigo,
FAMILIAR E DE VIDA PESSOAL chegando ele mesmo a uma conclusão.
Com três anos, decidiu ser médico; com
Quando, em 1905, Viktor Frankl nasceu em quatro, manifestou seu interesse pela pesquisa,
Viena, Áustria, a cidade era a sede do Império “inventando” um remédio para quem queria se
Austro-húngaro, uma das mais majestosas capitais suicidar, e nesta idade já o inquietava a ideia de
européias, expoente nas artes, na arquitetura, na morte, de finitude. Com cinco anos, quando
filosofia e nas ciências. A Universidade de Viena era despertou, mas ainda mantinha os olhos fechados,
foco de atividade intelectual e de criatividade. A sentiu uma imensa felicidade e bem-aventurança,
comunidade de judeus era numerosa e a grande sentimento de amparo e proteção. Ao abrir os olhos,
maioria dos médicos e advogados era judia. seu pai sorria para ele (Fizzotti & Scarpelli, 2005,
Ninguém podia suspeitar que a monarquia e a p.6).
unidade do Império começavam a desmoronar.
LOGOS & EXISTÊNCIA
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Com a I Guerra, passaram penúria e fome, pensamentos fundamentais (García Pintos, 2007,
pois os alimentos eram racionados; “todos os p.37; Frankl, 2003, p.45-46):
membros da família aprenderam a sobreviver com a) não devemos perguntar pelo sentido da
poucas coisas e entenderam o significado da palavra vida, porque somos nós mesmos que somos pela
pobre” (Klingberg, 2002, p.55) Chegou a pedir pão vida interrogados.
nas casas de campo, durante férias na terra natal de b) o sentido último transcende nossa
seu pai, Pohrlitz. capacidade de compreensão, no qual somente
Com 11 anos, Viktor saia de casa às três podemos crer.
horas da manhã, inclusive no inverno, para ficar na Nestes anos começou a corresponder-se com
fila do mercado para sua mãe comprar pão; e depois, o Prof. Freud, apaixonado pela psicanálise.
ia para a escola. Já nesta idade experimentava a auto-
transcendência, mesmo sem saber conceituá-la. FORMAÇÃO ACADÊMICA
Era um bom aluno, mas frequentemente
lento e centrado em seus próprios interesses. Seu Com 17 anos, escreve o texto: “Sobre a
corpo era pequeno e raquítico, bem diferente dos origem da mímica afirmativa e negativa” enviando-o
irmãos. Com o alpinismo, desafiou suas aparentes a Freud que o publica, posteriormente, no Jornal
limitações físicas. Era alegre e bem humorado e Internacional de Psicanálise (Frankl, 2003, p.39).
gostava de contar piadas. Ao mesmo tempo em que se agarrava a Freud,
também começou uma relação, que duraria por toda
ADOLESCÊNCIA a vida, com o Existencialismo, um movimento
europeu que surgiu como reação ao resto dos
No começo da adolescência, gostava de sistemas filosóficos e científicos dominantes. O
discussões com os colegas sobre grandes pensadores jovem Viktor começou a perceber o nihilismo e o
ou novas ideias da filosofia e psicologia. À noite, reducionismo como uma ameaça, não só para seu
assistia aulas de psicologia para adultos. próprio ser como para toda a sociedade. Aproximou-
Quando tinha 13 anos, durante uma aula no se então dos existencialistas mais positivos e
Sperlgymnasium (onde Freud também estudou), o otimistas: Martin Heidegger, Gabriel Marcel, Karl
professor de Ciências falou que a vida não era nada Jaspers, Martin Buber, Max Scheler (Klingberg,
mais que um processo de oxidação e combustão. 2002, p.68-69). Graças a outros filósofos e
Viktor ao ouvir isto, enfrentou o professor e professores, Viktor pôde sair a tempo de sua crise
perguntou: “Senhor, se é assim, qual pode então ser nihilista e começou a forjar suas próprias convicções.
o sentido da vida?” (Klingberg, 2002, p.65) Foi, durante um tempo, porta voz das Juventudes
Também passou por um período ateu, Obreiras Socialistas da Áustria, realizando um
nihilista, uma crise que foi um período de busca, de trabalho social ligado a Adler.
perguntas e desesperança. O pessimismo que sentia Em 1924, com 19 anos, inicia seus estudos
não era típico dele, mas foi um período importante. na faculdade de Medicina da Universidade de
Cedeu à ideia de que a vida carece de sentido e é Viena. Aos 21 anos, estudante de Medicina, faz um
fútil e sucumbiu a alguns efeitos desumanizadores discurso sobre o Sentido da vida, sobre o suicídio e
destas ideias. Este período culminou com olhar de sobre sexualidade para a Juventude Obreira
frente a pergunta: o que é o que, depois de tudo, Socialista. Participou e foi excluído da Associação de
humaniza as pessoas? Qual o sentido da vida? Nesta Psicologia Individual de Adler. Foi vice-presidente
idade já começou sua busca filosófica. da Associação Acadêmica para Psicologia Médica,
Com 14 anos lia sobre filosofia, psicologia e que tinha Freud como assessor. Nesta associação,
fisiologia, escrevia seus próprios textos, centrava sua deu uma conferência em 1926, com 21 anos,
atenção em algumas questões e deixava de lado as falando de Logoterapia pela primeira vez diante de
notas da escola e algumas das matérias que eram um público acadêmico.
ensinadas ali. Com 15 anos, começou a filosofar por Com 24 anos criou as três categorias de
si mesmo. Com 15 ou 16 anos, fez uma conferência valores, ou seja, as três possibilidades de encontrar
sobre o sentido da vida, desenvolvendo dois de seus um sentido para a vida (Frankl, 2003, p.53-54):
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a) uma ação que realizamos ou uma obra que para não ser deportada. E isto aconteceu com Tilly.
criamos; Nove meses depois do casamento, estavam no
b) uma vivência ou um encontro de amor; campo de Theresienstadt. Dois anos mais tarde,
c) dando testemunho da capacidade mais Viktor foi citado para o transporte para Auschwitz e
humana possível: a capacidade de transformar o Tilly apresentou-se espontaneamente para o
sofrimento em uma conquista humana. Ou, dizendo transporte, mesmo contra a advertência de seu
de outra forma, mudar nossa atitude diante do marido. Durante o transporte, “ela foi
sofrimento. autenticamente ela” (Frankl, 2003, p.79). Chegando
ao destino, foram separados para sempre. Tilly
EXERCÍCIO PROFISSIONAL faleceu em Bergen-Belsen, logo após a libertação.
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Sobre a autora
Marina Lemos Silveira Freitas. Doutora e mestre em Medicina pela USP-RP e especialista em Logoterapia
aplicada à Educação; Acadêmica do curso de pós-graduação em Análise Existencial e Logoterapia de Viktor Emil
Frankl, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Campus Curitiba. E-mail: marinalemossf@hotmail.com.