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Psicanálise e Nosso Tempo 1

PSICANÁLISE E NOSSO TEMPO

Organização e seleção
de
Nadiá Paulo Ferreira
Marina Machado Rodrigues

Rio de Janeiro
2002

EDITORA
ÁGORA DA ILHA
2 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

FICHA CATALOGRÁFICA

FERREIRA, Nadiá Paulo & RODRIGUES, Marina


Machado

Psicanálise e Nosso tempo

Rio de Janeiro, novembro de 2002


136 páginas

Editora Ágora da Ilha ISBN 7576


Ensaio brasileiro CDD-869-4B

COPYRIGHT: Nadiá Paulo Ferreira &


Marina Machado Rodrigues (organizadora).
Direitos desta edição reservados às organizadoras, conforme
contrato com a Editora. É proibida a reprodução total ou
parcial desta obra sem autorização expressas das mesmas.

PSICANÁLISE E NOSSO TEMPO


ENSAIO BRASILEIRO

REVISÃO E SELEÇÃO DOS ARTIGOS PARA A SEÇÃO NOSSO TEMPO:


CLÁUDIO DE SÁ CAPUANO

ILUSTRAÇÃO DA CAPA: NADIÁ PAULO FERREIRA

RIO DE JANEIRO, NOVEMBRO DE 2002


EDITORA ÁGORA DA ILHA
TEL.: 0 XX 21 - 3393-4212
editoraagoradailha@terra.com.br
Psicanálise e Nosso Tempo 5

Sumário

Psicanálise

Marco Antonio Coutinho Jorge


Quando o psicanalista fala.......................................................11

Nadiá Paulo Ferreira


As mulheres e a violência I......................................................13
As mulheres e a violência II....................................................15
As mulheres e a violência III....................................................17
Eu sou aquele que abdiquei do meu nome................................19
Quanto vale uma sessão de análise..........................................21
As várias faces do amor.........................................................22
Identificação com o desejo da Xuxa........................................23
A vida passada de Alice.........................................................24
A felicidade não é impossível.................................................25
A fé dos esquecidos volta a incomodar....................................26
Por que o Diabo tenta?...........................................................27
O presidente dos EUA e a psicanálise.....................................28
Diferenças entre o psicólogo e o psicanalista...........................29
Freud explica a diferença.......................................................30
Em boca fechada, não entra mosca.........................................31
Por que esquecemos os nomes?...............................................32
A fuga de si mesmo via e-mail................................................33
A escolha de Rogéria.............................................................34
O mandamento impossível......................................................35
Para que serve um pai?..........................................................36
Por que o filho quer matar o pai?............................................37
A importância da palavra da mãe...........................................38
A ligação entre o pai e a Lei...................................................39
A crença da discórdia psicanalítica.........................................40
As muletas e a busca da felicidade.........................................41
6 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

O choro das almas aflitas.......................................................42


A moral que amplia a perversão..............................................43
Amor cortês I: o que é o amor cortês.......................................44
Amor cortês II: o que é o verdadeiro amor...............................45
Amor cortês III: simulacro do objeto do desejo........................46
Amor cortês IV: o jogo sexual do trovador..............................47
Amor cortês V: os prazeres preliminares.................................48
O enigmático sorriso do parvo................................................49
Melanie Klein I: a guerra de Klein x Freud.............................50
Melanie Klein II: golpe de mestre de Klein..............................51
Melanie Klein III: tratamento entra nos trilhos.........................52
Melanie Klein IV: excesso de realidade...................................53
Melanie Klein V: a escuridão de um garoto.............................54
Melanie Klein VI: diferença entre Lingüística e Psicanálise.....55
Melanie Klein VII: convocado para o reino da palavra............56
Desculpas esfarrapadas das almas...........................................57

Nosso tempo
Mário Bruno
Nosso tempo... É preciso acreditar nele...................................61

Ceila Ferreira Brandão


O milagre de Plínio Doyle.....................................................65

Cláudia Maria Amorim


Do ancião ao labrego..............................................................67
Impasses da cultura do individualismo..................................69
Que país é este?....................................................................71
Mário de Sá-Carneiro e o desejo do Outro.............................73

Claudio Cezar Henriques


Sociedade oral... por escrito...................................................75

Cláudio de Sá Capuano
História de um coração roubado............................................77
A nossa pátria é a Língua Portuguesa...................................79
Psicanálise e Nosso Tempo 7

Viver é muito perigoso...........................................................81


Nostalgia do progresso..........................................................83

Darcília Simões
Língua Portuguesa vira balcão de bobagens..........................85

Iremar Maciel de Brito


Teatro vivo.............................................................................87
O teatro popular no circo......................................................88
O cantador de embolada.......................................................89

Leodegário A. de Azevedo Filho


Crônicas de uma atenta viajante...............................................90

Marco Antonio Coutinho Jorge


O poder terapêutico da criança.............................................91

Maria do Amparo Tavares Maleval


A identidade revigorada dos galegos......................................95
Lisboa, jardim da Europa......................................................97
A Idade das trevas não acabou..............................................99
A diversão na corte de D. Manuel.........................................101

Maria Helena Sansão Fontes


O leitor na era eletrônica......................................................103
Quem é o dono da história...................................................105

Mariângela Monsores Furtado Capuano


João do Rio – entre a fama e o preconceito............................107

Marina Machado Rodrigues


A crise da reforma de uma nova época.................................109
Para que servem as fantasias?................................................111
Polícia.................................................................................113
Chic a valer.........................................................................115
Todas as Marias..................................................................117
Velho já era? .......................................................................119
Discriminação ou preconceito social?...................................121
8 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Robson Lacerda Dutra


Sobre o conceito de arte.......................................................123
Uma fábula africana sobre o poder......................................125
Colonizados e colonizadores – 500 anos...............................127

Sérgio Nazar David


Mal-estar na escola.............................................................129
O grupo galpão comemora 15 anos.....................................131
A glória da velha senhora....................................................132
Difícil é saber renunciar.......................................................133
Psicanálise e Nosso Tempo 9

PSICANÁLISE
Psicanálise e Nosso Tempo 11

Quando o psicanalista fala...


Marco Antonio Coutinho Jorge

O psicanalista é tradicionalmente visto como aquele que ouve,


ouve, ouve... mas não fala. Uma certa caricatura do psicanalista,
disseminada em nossa cultura, é a de um sujeito quase em estado de
mutismo. Mas o psicanalista não é mudo e, sim, permanece muitas
vezes calado, o que são coisas bastante diferentes — e isso se deve
ao fato de que ele precisa poder escutar muito para chegar a ter
alguma coisa a dizer. Pois a palavra do psicanalista é uma palavra
perpassada pelo saber inconsciente, que não se dá a conhecer de
uma vez por todas, muito menos de uma hora para outra.
Entretanto, quando o psicanalista fala, ele o faz a partir de um
lugar diferente do discurso comum, denominado por Lacan de dis-
curso corrente. Freqüentemente, a fala do psicanalista expressa al-
guma forma de pontuação do discurso: ela introduz o questionamento
onde se assentam certezas absolutas; afirmações precisas onde só
há confusão; ela vê beleza onde o horror se estampa e presentifica a
falta onde há plenitude... A partir de sua tendência para dialetizar
simbolicamente o tratamento da verdade, se pudéssemos condensá-
la de modo abusivo, diríamos que a fala do psicanalista revela uma
experiência subjetivada de que não há vida sem morte (como no
surpreendente desenho de Ismael Nery, chamado Vida e morte, no
qual um rosto humano é dividido ao meio pelos signos da beleza e
da decomposição...), e que o sujeito está continuamente dilacerado
entre ambas: ora brandindo a chama vital que parece extinguir-se
mas sabe ressurgir subitamente; ora apontando para o deserto quando
a festa parece se esquecer do galope inelutável da finitude.
Dito de outro modo, e em termos teóricos lacanianos, o psicana-
lista opera no simbólico fazendo a dialetização entre a plenitude ima-
ginária e o vazio real: vê-se porque na tripartição estrutural RSI, o
simbólico está situado precisamente entre o real e o imaginário... No
12 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

simbólico não há vazio ou pleno, mas sim vazio e pleno. É assim que,
quando o psicanalista fala, surge sempre algo inesperado que, por um
lado, pode espantar nosso senso comum, mas, por outro, pode trazer
um salutar apaziguamento íntimo.
Nestes brevíssimos e selecionados artigos, Nadiá Paulo Ferreira
consegue estabelecer um verdadeiro diálogo com o leitor (aliás, bem
à maneira como Freud costumava fazer), um diálogo cuja caracterís-
tica primordial é a de que os temas surgem a partir do dia-a-dia que o
próprio leitor está vivendo: o leitor se reconhece naquelas questões e
acompanha seu texto como se ela falasse dele próprio. (Assim como
o sultão Schariar é levado a ouvir Scherazade posto que, nas maravi-
lhosas histórias que contava nas mil e uma noites, era da tradição
dele que ela falava...)
Captando os eventos desse mundo complexo no qual estamos
mergulhados e muitas vezes, por isso mesmo, sem condições de exer-
cer nosso discernimento, o texto de Nadiá aborda constantemente o
problema da segregação das mulheres e das minorias, o logro embu-
tido nos ideais aprisionantes (como os da ciência), que só afastam o
sujeito de si mesmo numa busca desenfreada de algo ilusório.
Assim é que, quando o psicanalista fala, tomam a palavra sujeitos
sufocados e marginalizados milenarmente pela exclusão e pelo racis-
mo... pelo abandono e pela violência... Aqui, o estilo de Nadiá revela
uma surpresa para o leitor, pois ela consegue em poucas linhas recor-
tar temas pungentes a partir da visão psicanalítica e trazer inúmeros
ensinamentos pontuais. Relembro que, para Lacan, a psicanálise é
uma prática puntiforme, seu esclarecimento interpretativo incide sem-
pre sobre determinados pontos e jamais de forma generalizante...
Como a palavra do psicanalista é uma palavra preciosa, fruto de
uma escuta e de uma elaboração que ele tem do mundo no qual vive,
quando o psicanalista fala devemos escutá-lo... E escutar a fala, ao
mesmo tempo incisiva e poética, de Nadiá Paulo Ferreira é algo que
enriquece nossa forma de abordar os problemas da contemporaneidade.
Psicanálise e Nosso Tempo 13

As mulheres e a violência I
Nadiá Paulo Ferreira

Não há dúvida de que as mulheres se destacam entre as vítimas


preferidas, tanto na história da humanidade, quanto neste final de
milênio.
No Afeganistão, uma das primeiras medidas dos revolucionários,
que tomaram o poder, foi o trancafiamento das mulheres. Elas estão
proibidas de trabalhar, de freqüentar escolas e só podem sair à rua
com o corpo praticamente coberto.
Ainda hoje, em algumas tribos africanas e em alguns países
mulçumanos, pratica-se a extirpação do clitóris das mulheres. Às
vezes, este ato é praticado a sangue frio com qualquer instrumento
cortante, provocando infecções que levam à morte.
Cenas de horror fazem parte das páginas que se dedicam a
falar das mulheres na história. Mas só as mulheres são vítimas de
atos truculentos e sanguinários? E os índios, os negros, os judeus,
os marginalizados do capitalismo, os estigmatizados como homos-
sexuais? O que há de comum a todos eles senão o que escapa ao
império da igualdade? Basta uma marca como índice da diferen-
ça: tanto faz que seja a cor da pele ou uma escolha de sexo para
que o semelhante se transforme em perigo ameaçador. Eis a face
do Mal, exigindo para o Bem-de-todos um combate sem tréguas.
Elege-se o ódio como antídoto do próprio amor. Diz o preceito
cristão: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”. Mas se o próxi-
mo não se apresenta como idêntico, em vez de amado, deve ser
odiado, submetido às normas ou destruído.
Nesta concepção, ama-se porque se imagina que o outro é o
que se gostaria de ser ou possuiria o que se deseja ter. Da mesma
forma que se odeia porque se acredita que o outro é um ser despre-
zível ou tem o que não merece. Aqui estamos na ordem da igual-
dade e do excesso, onde o que conta é sempre a suposição de que
14 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

o que falta a um o outro tem. O ódio com que se cultivam os inimi-


gos não traz à tona a diferença e sim as desavenças entre semelhan-
tes. A estes o cristianismo nos ensina a dar a outra face. Porém, se
partimos do pressuposto de que existem seres que, apesar da apa-
rência, não são humanos, encontramos neste argumento a justifica-
tiva da violência. A história nos oferece vários exemplos.
Na época dos descobrimentos, onde reinava de forma
hegemônica o discurso religioso, os índios foram vistos como se-
res sem alma ou como bárbaros gentios. No primeiro caso, podi-
am ser caçados e mortos como animais e, no segundo caso, devi-
am ser cristianizados. Assim foram dizimados por extermínio ou
por assassinato cultural.
Sem a ajuda da ciência e da estética, como fica muito bem
demonstrado no filme Arquitetura da destruição, de Peter Cohen,
Hitler não teria convencido a maioria dos alemães de que os ju-
deus eram a degenerescência da raça humana e, justamente por
isto, comportavam-se como um conjunto de ratos. Animais com
aparência humana são ervas daninhas que devem ser dizimadas.
Os negros, aproximadamente a partir do século XVIII, foram
“domesticados” para servir aos humanos. A isto se chamou escra-
vidão. Em praças públicas, ele eram expostos para serem vendi-
dos, como até hoje se faz com os animais domésticos, cujos pre-
ços de mercado variam de acordo com o pedigree e com a raça.
As mulheres, como representantes do Outro-sexo, represen-
tam um enigma sem decifração e, justamente por isto, se tornam
ameaçadoras e perigosas. Uma das soluções encontradas pelas
leis dos homens foi a dominação que, às vezes, se exerce com
requintes de crueldade.
Psicanálise e Nosso Tempo 15

As mulheres e a violência II
A coisa chamada mulher
Nadiá Paulo Ferreira

Se as mulheres, como representantes do Outro-sexo, permane-


cem incógnitas, o que fazer com o que não se sabe ou se sabe muito
pouco porque saber tudo é impossível? A reação que mais se repete
na história é dominar pela força o que escapa ao entendimento.
A tese, sustentada pelos teólogos medievais de que a mulher
devia ser governada pelo homem, tinha como referência os textos
da Sagrada Escritura. Nos séculos XI e XII, onde o poder da Igreja
invadia a privacidade dos homens, criando leis que regulamenta-
vam as relações íntimas entre os casais, os padres alertavam os
homens contra o perigo representado pelas mulheres. Elas eram
consideradas, em relação à força física, mais frágeis do que os ho-
mens, mas, em relação ao espírito, deviam ser temidas, porque usa-
vam a sedução e a mentira como armas para conduzir o homem ao
pecado, à destruição e à morte. Criaturas perversas e devoradoras,
incapazes de serem satisfeitas — eis a imagem que o cristianismo
medieval construiu, o que sem dúvida isentava e justificava os atos
de violência dos homens contra as mulheres. A função que a socie-
dade lhes reservava era a de esposa, tendo como lugar a casa e
como atribuição a educação dos filhos e a administração do espaço
doméstico. As mulheres só eram integradas à vida social quando
cumpriam o dever de esposas. A ausência de filhos no casamento
tinha sempre como causa a esterilidade feminina, o que permitia ao
homem recorrer ao poder clerical para anular o casamento.
O domínio dos homens tinha efeito apaziguador na medida em
que assassinavam as mulheres, enquanto representantes do Ou-
tro-sexo, para reduzi-las ao signo da maternidade.
O perigo só rondava as mulheres solitárias, aquelas que não
estavam sob o domínio dos homens. Então, a solução encontrada
foi a criação de novos espaços para aprisioná-las: os mosteiros, as
comunidades beguinas e os bordéis. As mulheres sozinhas, que
não estivessem enclausuradas nestes guetos, passavam à respon-
sabilidade do poder público. Uma das funções reais era a proteção
das viúvas e das órfãs. George Duby, em seu livro, Idade Média,
Idade dos homens, conta que o rei da Inglaterra, no início do século
XII, distribuiu as mulheres sem pais e sem maridos como presentes
16 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

para os seus vassalos. Sob a insígnia de proteger as mulheres, os


homens encontravam artifícios para tirar de cena o que permanece
como enigma sem decifração na diferença entre os sexos.
A existência das mulheres leva inexoravelmente à eterna ques-
tão: o que é a mulher? É quem porta a feminilidade. E o que é a
feminilidade? É alguma coisa que agrupa as mulheres em um con-
junto, diferenciando-as do homem. Cada resposta dada para “essa
alguma coisa” é sempre insatisfatória. Há sempre algo mais a ser
dito, a ser acrescentado, a ser discutido, a ser contrariado. Não há
em nenhuma língua a palavra conclusiva para significar a diferen-
ça sexual. Esbarramos com nosso próprio limite. Somos humanos
porque fomos introduzidos nas leis da linguagem. A partir daí,
estamos circunscritos ao universo simbólico e pisamos em terreno
movediço. Ao mesmo tempo que a palavra nos permite nomear a
diferença sexual, nos impede de conhecer seu significado, arre-
messando-nos aos equívocos, aos enganos e às surpresas. No im-
pério das palavras reina de forma soberana e absoluta o qüipro-
quó. Mas é com elas e a partir delas que nos defrontamos com a
diferença sexual e com a falta de palavras para decifrá-la.
A luta das mulheres para se libertar do domínio dos homens con-
seguiu vitórias, retrocessos e revanches. Vitórias, porque a mulher,
na maioria dos países ocidentais, livrou-se do confinamento a que era
submetida e conquistou o seu direito ao trabalho; adquiriu autonomi-
as financeira e jurídica. Retrocessos, porque assistimos, em algumas
culturas, ao retorno ou à manutenção de práticas ignóbeis contra as
mulheres. Revanches, porque a ciência, com suas técnicas e novas
descobertas, oferece a exclusão dos homens, tanto para o nascimento
dos filhos, quanto para o gozo sexual. Estes — veja-se o caso Madonna
— passam a ser reduzidos à função que as mulheres tinham na soci-
edade medieval: reprodutores sadios.
Como se pode ver, as conquistas não levaram ao progresso.
Permanecemos na Idade Média no que diz respeito ao haver da
diferença sexual, porque insistimos em negar o impossível: a pro-
dução de um saber sobre o Outro-sexo.
Psicanálise e Nosso Tempo 17

As mulheres e a violência III


Religião islâmica mutila mulheres
Nadiá Paulo Ferreira

No final deste milênio, a extirpação do clitóris e a infibulação


(retira-se o clitóris e os lábios vaginais, costura-se a vagina, deixando
apenas um orifício para eliminação da urina e da menstruação) vigo-
ram em 28 países da África, em alguns países árabes e do Sudeste
asiático. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, aproxi-
madamente, 130 milhões de mulheres já foram mutiladas.
Essas práticas deixaram o espaço privado e doméstico e se des-
locaram para o espaço público, sob a égide governamental. Neste
ano, por pressão de grupos fundamentalistas, o Tribunal Adminis-
trativo do Cairo anulou o decreto de 1996, que proibia a extirpação
do clitóris em hospitais públicos no Egito. Antes, esta tradição
islâmica se justificava pela religião e ponto final. Hoje, isto não
basta. É preciso pedir socorro ao discurso da ciência. Assim, os
gritos de protestos das entidades internacionais e dos grupos de defesa
dos direitos humanos têm a seguinte resposta do Tribunal do Cairo
sobre as extirpações do clitóris: os últimos estudos científicos pro-
vam que deixar de realizá-los pode causar graves problemas às
meninas. O depoimento do xeque Yusef Al Badri é também primoro-
so para demonstrar como o discurso religioso precisa, agora, de muletas
científicas: (...) Nós rezamos, fazemos jejum e operamos as mulhe-
res. Em 14 séculos de Islã, nossas mães e avós fizeram essas opera-
ções. As que não fazem pegam Aids facilmente (Jornal do Brasil,
quarta-feira, 25 de junho de 1997, Caderno Internacional, p.11).
Sem apelar para um julgamento moral, já que este implica a de-
formação do particular em universal, fazendo com que as
especificidades de uma cultura sejam vistas como aberrações perver-
sas por outra cultura, pergunto: o que está em jogo neste ato? Não é
outra coisa senão a suposição de exterminar o gozo sexual que deve
ser exclusivo do homem.
Durante muitos séculos, a exclusão das mulheres se sustentou
no discurso religioso. O cristianismo, em suas origens, colocou o
amor a Deus no lugar da diferença sexual e condenou o gozo sexual
para todos. Outras religiões restringiram este gozo aos homens e,
justamente por isto, inventaram o ritual de extirpação do clitóris.
Eis a tentativa de reduzir as mulheres à função de procriação, fa-
18 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

zendo com que só existam como mães. Para isto, é preciso também
tapar suas bocas. Sob a insígnia da proteção, os homens encontra-
ram artifícios não só para proibir o gozo sexual às mulheres, mas
também para se prevenirem do insondável que vela o gozo femini-
no. Trata-se de uma estratégia para negar, simultaneamente, o ser
sexuado das mulheres e um gozo suplementar, que não passa pelo
corpo, mas sim pela fala.
Não há opressão sem reação dos oprimidos. As mulheres foram à
luta. Não há dúvida de que, em relação a um passado próximo, pode-
mos dizer que foram feitas algumas conquistas. Mas por outro lado,
as mulheres ainda não se libertaram do império do gozo masculino.
O movimento feminista, o que considero pura ironia, em Nome-da-
igualdade colocou na pauta de suas lutas a reivindicação ao gozo sexu-
al, um dos anseios da grande maioria das mulheres. E assim, em vez da
liberdade de trânsito, passando pelo gozo masculino, as feministas
levantaram bandeiras para que as mulheres se tornassem homens. E os
homens, assustados e perplexos, feminilizaram-se. As descobertas ci-
entíficas possibilitaram também uma vingança: a exclusão dos homens
da vida das mulheres. Falta ainda encontrar a via para que haja na
cultura — será que isto é possível? — lugar para a diversidade de um
gozo singular e enigmático que escapa ao gozo masculino.
Psicanálise e Nosso Tempo 19

Eu sou aquele que abdiquei do meu nome


Nadiá Paulo Ferreira

Tempos difíceis em que vivemos: um cenário social conturbado


e uma subjetividade dilacerada. Deste panorama advêm as marcas
da subjetividade de nossa época: renúncia ao desejo, escolha de
satisfações letárgicas, não implicação subjetiva com o fazer e apo-
logia do anonimato. Sem ética, caminhamos ao sabor dos ventos.
Levantar questões, a partir de uma referência ética, não impli-
ca o retorno à tradição filosófica, onde a reflexão em torno da
ética tinha como finalidade orientar diversas práticas em direção
a um Bem. Hoje, o termo ética se refere ao conjunto de normas,
diretamente ligado à necessidade de se criar uma legislação que
regulamente as novas práticas, em vários campos do saber, em
função das descobertas científicas. As notícias sobre o sucesso da
clonagem de animais desencadearam a necessidade de leis que
proibissem estas experiências com humanos. O desencanto com a
prática política, também, deslanchou uma onda de protestos e de-
núncias indignadas dos cidadãos, fazendo com que a palavra ética
seja usada para condenar a postura cínica dos homens que exer-
cem cargos ou funções públicos.
Para a psicanálise, desenterrar dos escombros uma discussão
em torno da ética significa colocar em cena o sujeito, o desejo e o
inconsciente: não renunciar ao desejo, não rejeitar o saber produ-
zido pelo inconsciente e se implicar subjetivamente com o que é
dito, intencionalmente ou não.
O anonimato, prática que está sendo disseminada pelos pro-
cessos de seleção, é, sem dúvida, uma das formas mais aberrantes
de não implicação do sujeito. Estou-me referindo aos procedimen-
tos de avaliação, que passaram a vigorar nas universidades e nas
instituições ligadas à pesquisa em nosso país. Com o argumento
de que se irá “proteger” alguém de um fazer, de um dizer e de uma
escrita, oferece-se o sigilo do parecerista. Uma comissão, sempre
resguardada pela sigla da Instituição, veta um projeto de pesquisa,
uma bolsa de estudos, um livro ou um artigo, da seguinte forma: a
Comissão X, do órgão Y, participa o veto ao solicitante ou autor,
apoiando-se em um parecer escrito, assinado por Um-sem-nome,
que se apóia e se resguarda nas insígnias. Todos estão garantidos.
Que garantias são estas? Nada mais nada menos do que o agir na
20 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

penumbra. Covardia! — diriam meus avós. Hoje se diz: “necessi-


dade de se preservar” o agente. Quantos membros da Gestapo não
disseram em seus julgamentos que não tinham nada contra os ju-
deus e que simplesmente cumpriam ordens? Eram apenas “funcio-
nários exemplares, fiéis cumpridores dos seus deveres”.
A prática do anonimato substitui o ideal de “raça pura e saudá-
vel” pelo ideal de “alto nível” ou, como diz o jargão universitário,
“padrão de excelência”. Tanto um quanto outro visam ao Bem como
imperativo categórico para todos. Nunca sem os álibis do saber a
serviço do poder. É preciso inventar alguma coisa para encarnar o
Outro e, assim, exigir que o sujeito renuncie ao que há de mais
próprio e singular de si mesmo — o nome próprio — para que, em
regime de servidão, se desculpabilize de um fazer. E há muitos que
dão “graças a Deus” de que isto seja pré-condição para que ele
possa fazer e dizer o que pensa ou o que pediram que seja feito...
Psicanálise e Nosso Tempo 21

Quanto vale uma sessão de análise


Nadiá Paulo Ferreira

— “Psicanálise é um tratamento muito caro.” Já escutei isto inú-


meras vezes. Não há dúvida de que essa crença tem suas origens. Na
década de sessenta, a maioria dos psicanalistas cobrava um preço
alto e prefixado, estabelecendo, no mínimo, três sessões semanais,
tendo cada uma a duração de cinqüenta minutos. Tanto fazia o paci-
ente estar tagarelando, falando de si mesmo e do seu sofrimento, ou
ficar no mais absoluto silêncio, o que contava era o andamento do
ponteiro do relógio.
Este panorama se modificou, radicalmente, em função do ensi-
no do francês Jacques Lacan (1901- 1981). Ao retomar a leitura
dos textos de Freud, privilegiando uns em relação a outros, Lacan
apontou uma série de desvios, realizados pelos pós-freudianos,
introduzindo novos conceitos e uma outra forma de operar com o
tempo que possibilita a abertura do inconsciente.
Se a psicanálise é uma prática clínica que leva em conta a
singularidade de cada ser falante, como explicar e sustentar o exer-
cício desta prática, adotando procedimentos dogmáticos, basea-
dos em um modelo para todos? Não sem muita confusão e dissen-
sões, a influência de Lacan foi produzindo efeitos. Hoje, já temos
um grande número de psicanalistas admitindo que, para cada su-
jeito, há um contrato a ser feito em relação ao preço, até porque o
que é muito caro para um se torna uma bagatela para outro. O
número de sessões é variável, dependendo de múltiplas situações,
e o tempo de duração de uma sessão não pode e não deve
corresponder ao tempo cronológico. Há outro tempo em jogo quan-
do se trata de escutar uma fala.
Quem nunca viveu a experiência de que alguns minutos foram
vividos como se fossem longas horas e vice-versa? Um grande amor
subverte a cronologia do tempo. Os amantes sabem disto mais do
que ninguém. E o que é uma análise senão uma história de amor? Só
que se trata de um amor específico: o amor de transferência.
22 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

As várias faces do amor


Nadiá Paulo Ferreira

Quem não sabe que o amor tem muitas faces? A mais conheci-
da de todas é o sentimento da paixão. Um olhar, uma voz, um
sorriso... Alguma coisa da ordem do encantamento captura o apai-
xonado. Trata-se de um amor sofrido, cujo desenlace é sempre a
frustração, porque o apaixonado quer ser amado do jeito que ima-
gina que deveria ser amado.
Bem, existe outra modalidade de amor, parecida com a paixão,
na medida em que coloca em cena o fascínio. É o amor de transfe-
rência. Um pouco diferente da paixão, esse associa o amor à su-
posição de saber. Chamo atenção para o fato de que não disse
reconhecimento, mas suposição de um saber. O que se supõe que
o outro saiba? A verdade. De quem? Do próprio sujeito. Uma
espécie de segredo sobre si mesmo que será revelado pelo outro.
Este amor, que é condição e obstáculo do tratamento analítico,
acontece em outras formas de relações sociais, como por exem-
plo, entre aluno e professor. Alguns se apegam ao amor de trans-
ferência para criticar o tratamento psicanalítico. Aqui, justamente
aqui, se inscreve a ética da psicanálise, cuja prática depende, ex-
clusivamente, do desejo do analista. Não se trata das aspirações
de quem ocupa o lugar de analista. Absolutamente não. Mas de
um desejo que se sustenta no relançamento do desejo. Dito de ou-
tra maneira: o ser humano sofre e paga um preço muito caro, toda
vez que renuncia ao mais próprio de si. O desejo do analista apos-
ta que todo falante é um ser desejante. A direção de um tratamento
analítico, sustentado por este desejo, se dirige para o despertar do
sujeito. Não se trata nem de alimentar, nem de recusar o amor de
transferência, mas sim de não exacerbá-lo, introduzindo o equívo-
co e redirecionando a demanda, a fim de que este amor caia por
terra e junto com ele a suposição de saber.
Só quando isto acontece, o sujeito se torna um viajante, não
esquecendo de que tem um tempo de passagem pelo mundo e um
limite que demarca o impossível.
Psicanálise e Nosso Tempo 23

Identificação com o desejo da Xuxa


Nadiá Paulo Ferreira

O desejo do homem é o desejo do Outro. Este aforismo lacaniano


pode parecer à primeira vista incompreensível. Vamos destrinchá-
lo. A existência de discursos, produzindo interpretações sobre o
mundo, antecede o nascimento. O primeiro contacto com este uni-
verso de palavras é dado pelo discurso familiar e, principalmente,
pelo desejo de quem exerce a função materna. Sonhos e esperan-
ças são construídos, enquanto uma vida está se formando e se
desenvolvendo no ventre materno. O futuro bebê já é amado ou
odiado, desejado ou recusado. O recém-nascido chega ao mundo
em estado precário, tornando-se absolutamente dependente de cui-
dados para sobreviver. A “maternagem” é permeada pelo amor e
pelo desejo de quem a pratica.
Vamos, agora, imaginar um lugar para situar esses discursos e
lhe dar um nome: lugar do Outro. Assim definido, o Outro não
tem face nem corpo. Entretanto, este lugar pode ser encarnado por
qualquer um que seja tomado como seu representante. Quem exerce
a função materna é seu primeiro representante. E já disse que o
exercício desta função coloca em cena o desejo da mãe.
Que melhor exemplo poderíamos citar do que o nascimento de
Sasha? Seu destino é anunciado por sua mãe e conclamado aos sete
ventos pelos meios de comunicação: será a “Princesa do Brasil”.
Xuxa, seu séquito, médicos e um hospital transformam um parto
em espetáculo nacional. E todos que aspiram ao desejo da máxima
do capitalismo se identificam com o desejo de Xuxa (Outro), fanta-
siando para Sasha o mito da mais completa Felicidade...
24 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

A vida passada de Alice


Nadiá Paulo Ferreira

Recebi um telefonema de uma senhora, Ana, pedindo para mar-


car uma hora para sua filha adotiva. Trata-se de Alice que tem 11
anos. Ana vem sozinha e começa a contar a história desta menina. É
filha de Tiana1 , uma ex-empregada que queria se livrar de uma
gravidez indesejável, mas desistiu porque Ana prometeu-lhe ajuda.
Quando Alice já estava engatinhando, Ana começou a perceber he-
matomas no seu corpo e deduziu que, durante sua ausência, a crian-
ça era violentamente espancada pela mãe. Esta situação perdurou
até Alice completar cinco anos, quando Tiana foi embora.
A narração de Ana é entrecortada pelas seguintes frases:
—“A mãe dessa menina era coisa muito ruim. Acho que ela é
igual à mãe, porque na escola vive batendo nos seus colegas”.
Ana me pergunta se faço regressão. Respondo que não, que
sou psicanalista. Ela me diz que houve um engano, veio me procu-
rar para marcar uma sessão de regressão, porque Alice está assim
pelo que já fez em outras vidas.
Pergunto: pelo que fez ou pelo que escuta, desde que nasceu?
Imediatamente ela me responde:
— “Não, não, pelo que já fez em outra vida. Ela até se lembra das
surras que levava, quando tinha um ano de idade...”
Um discurso familiar traça o destino de Alice. Com que é feito
um discurso? Com palavras. Logo, são palavras que vão sendo
enfiadas na cabeça de Alice, desde seu nascimento. Já disse vári-
as vezes, nessa coluna, que para a psicanálise o desejo humano é
o desejo do Outro. Alice é tão má como sua mãe. É assim que ela
se apresenta diante dos representantes desse Outro. Alice quer
também ser amada, mas até agora só pôde demandar amor do
lugar que lhe foi reservado, isto é, sendo má como dizem que sua
mãe foi. É preciso reverter este destino. Mas para isto é preciso
falar para alguém que a escute.
Psicanálise e Nosso Tempo 25

A felicidade não é impossível


Nadiá Paulo Ferreira

Estamos vivendo uma crise jamais vista na história do homem.


Esta palavra crise é dita todos os dias, quer pelas pessoas humil-
des, ao falarem do seu cotidiano, da falta de dinheiro, do desem-
prego, quer por economistas, sociólogos, psicanalistas, professo-
res universitários, teóricos da arte, etc. Freud já falava da tensão
inevitável entre o homem e a civilização, denominando-a de mal-
estar. Lacan profetizou a escalada do racismo e da religião, anun-
ciando o fracasso da inserção da psicanálise na cultura. Conside-
ro que esta conjectura lacaniana deve ser entendida no sentido de
que a sociedade contemporânea caminha para manter o homem
adormecido e de boca fechada, usufruindo de um gozo que o lança
na mais profunda apatia e que rompe com os enlaces sociais. Sem
despertar, incapacitado de começar viagem, renunciando ao dese-
jo, o homem vai buscar na religião ou nos achados da ciência um
alento para esquecer e sonhar.
A ciência e a religião substituíram a derrocada da utopia polí-
tica, anunciada por Louis León de Saint-Just, membro do Comitê
de Salvação Pública, quando declarou, na Assembléia Nacional
Francesa, no período da Revolução Francesa, que a Felicidade
era a nova diretriz para a construção da sociedade européia.
Entorpecido, o homem esquece seus limites e suas impossibili-
dades para continuar sonhando com a Felicidade, cuja versão con-
temporânea poderia ser resumida na promessa de um gozo-a-mais.
Sem querer saber da castração, marca de sua humanidade, que não
tem nada de sombrio e de trágico, o homem insiste em ignorar a
impossibilidade de um gozo absoluto, dando as costas para o dese-
jo. É porque não há a Completude que se abre um leque de opções,
onde cada um deve seguir a trilha de suas singularidades, arranjan-
do-se com as falhas do gozo e com seu desejo de descobrir os cami-
nhos a serem percorridos durante sua existência no mundo.
26 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Afetos esquecidos voltam a incomodar


Nadiá Paulo Ferreira

Há inconsciente no ser falante. E, justamente por isto, ele — o


inconsciente — fala. Quando alguém procura um psicanalista, é
porque está sofrendo com seu corpo e com seus pensamentos. O
inconsciente faz com que alguma coisa da ordem do desejo venha
cutucar, incomodar, chatear mesmo, revelando que as coisas não
andam bem. É pela via do mal-estar, tomando conta do corpo, que
o sintoma do homem — como ser de linguagem — se revela.
Corre de boca em boca que a psicanálise não liga para os afe-
tos. É bom, então, perguntar: o que é um afeto? Sentir o disparar
das batidas do coração; um frio no estômago; as lágrimas corre-
rem pela face, porque as palavras ficaram engasgadas na gargan-
ta e a boca ficou muda; descarregar adrenalina num ataque de
cólera, não são sensações vividas com o próprio corpo?
Freud já nos ensinou que, quando um afeto vem nos afligir, nós
o jogamos para o alto. Isto é, por não querermos saber dele, o
retiramos de cena, fazendo com que seja deslocado da consciên-
cia. Mas o que é esquecido volta para ser lembrado. É a insistên-
cia do reaparecimento do que não se quer saber que aponta para a
existência do inconsciente. Como isto acontece? Nos sonhos, nos
equívocos que cometemos em nossa fala, quando dizemos alguma
coisa que não queríamos e não tínhamos a intenção de dizer. A
existência do inconsciente não aponta para uma caixinha de se-
gredos escondidos e sim para o dizer. Quando se fala mal, o corpo
fala pela boca. Os afetos ligados aos desejos, que não queremos
saber, nos fazem adoecer. Então, ficamos tristes, perdemos a von-
tade de comer, de existir, etc. Estamos, assim, afetados pelo dese-
jo. E, justamente por isto, o desejo recusado pela consciência rea-
parece cifrado nos sonhos e escrito na carne.
A psicanálise é um tratamento que se realiza pela via da pala-
vra. Retomaremos isto no próximo número.
Psicanálise e Nosso Tempo 27

Por que o Diabo tenta?


Nadiá Paulo Ferreira

Vou retomar o tema da existência do inconsciente e da prática


da psicanálise. Esta prática se sustenta na aposta de que há o
sujeito do inconsciente e que este haver afeta o corpo do homem.
Se o sujeito deseja, independente de sua vontade e de sua moral, é
preciso decifrar o que é desejado, não para que este desejo seja
realizado em toda a sua plenitude — até porque isto é o que é
verdadeiramente impossível — mas para tirar um “tasco” dessa
tal felicidade, para poder experimentar momentos evanescentes de
alegria. Enfim, correr o risco de estar vivo e passar seu tempo no
mundo, colocando-se na posição de sujeito desejante.
Mas para isso é preciso uma aprendizagem de dizer e de escu-
tar o que se diz. Este é o caminho a ser percorrido por uma análi-
se, não para encontrar a FELICIDADE, mas para experimentar o
próprio dizer do inconsciente. E, a partir daí, se libertar do peso
de uma cruz e se lançar ao mundo que, apesar dos dissabores e
das armadilhas, oferece também surpresas, às vezes, tecidas pelo
acaso, que podem ser deliciosamente experimentadas.
O poeta tem sempre lições a nos ensinar sobre o desejo e as
fantasias que o sustentam. Este é o tema do texto inédito de
Fernando Pessoa que se encontra na Biblioteca Nacional de Lis-
boa, publicado com o título A hora do Diabo.
Termino por aqui, deixando para os leitores alguns trechos da
fala do Diabo: Corrompo, é certo, porque faço imaginar.(...) Nun-
ca pensou no Príncipe Encantado, no homem perfeito, no amante
interminável? (...) O que se deseja e se não pode obter, o que se
sonha porque não pode existir - nisso está meu reino nulo e aí está
assente o trono que me não foi dado.
28 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

O presidente dos EUA e a psicanálise


Nadiá Paulo Ferreira

É verdadeiramente imperdível o filme Mera Coincidência, de


Barry Levinson. Dustin Hoffman representa um produtor de
Hollywood, Stanley Motss, e Robert de Niro, o publicitário Conrad
Brean, que é o responsável pela campanha de reeleição do Presi-
dente dos Estados Unidos.
Faltam, se não me falha a memória, apenas 11 dias para as
eleições, quando surge a denúncia de que o presidente molestou,
sexualmente, uma menina de mais ou menos 13 anos. Conrad Brean
não quer saber se o Presidente é culpado ou inocente. Imediata-
mente, vai procurar Stanley Motss para lhe propor a invenção de
uma guerra contra a Albânia. Quando é anunciado o fim da guer-
ra, voltam as acusações contra o presidente. Stanley Motss inven-
ta um refém americano. Um prisioneiro, condenado por estuprar
uma freira, é entregue para representar este papel. Entretanto, por
um descuido da equipe, este prisioneiro tenta estuprar uma velhi-
nha, sendo assassinado pelo marido dela. Melhor é impossível.
Morto, terá um funeral com todos os rituais dignos de um herói
nacional. O filme termina sem mostrar o rosto do presidente. O
grande espetáculo, que atingiu o coração do povo americano até
as lágrimas, está a serviço de um império de reis sem faces. A
autoria e o compromisso com o que se diz e o que se faz foram
substituídos pelo comércio das almas, cuja perversão exige o ano-
nimato. Em troca de uma grande quantia de dinheiro, é oferecido
um gozo que exige a renúncia à autoria. Mas Stanley Motss usu-
frui de todos os luxos que o dinheiro pode proporcionar no capita-
lismo. Ele quer a autoria do seu trabalho. O feitiço se volta contra
o feiticeiro. Assassinado, terá sua morte anunciada como se tives-
se tido um infarto fulminante. Nesta engrenagem há um preço a
pagar: renuncia ao desejo, excluindo, assim, a singularidade de
cada um, em torno da qual se constrói a ética da psicanálise.
Psicanálise e Nosso Tempo 29

Diferenças entre o psicólogo e o psicanalista


Nadiá Paulo Ferreira

A psicanálise se diferencia da psicologia tanto em relação à práti-


ca clínica, quanto em relação à teoria. No Brasil, ao contrário de
outros países, o ofício de psicanalista não é reconhecido como profis-
são. Isto não acontece com a prática do psicólogo, que é regulamen-
tada por leis, que vão desde a exigência de fazer o curso de Psicologia
até o registro do Conselho Regional de Psicologia — CRP.
O fato de não haver uma legislação para a prática da psicanálise
não significa que não haja uma formação do psicanalista. Esta é feita
por instituições que, visando a essa finalidade, estabelecem não só as
condições de ingresso mas também o desenvolvimento de um ensino.
Ao psicólogo, para abrir um consultório, basta ter o diploma
do curso de Psicologia e o registro do CRP. Um psicanalista só
deve começar sua prática clínica depois de ter ocupado o lugar de
analisando. Ou seja, depois de ter passado pela experiência de
conviver com o saber produzido pelo inconsciente. Um saber que
não se sabe, um saber que comparece nos sonhos e em todas as
formas de tropeços com o dizer. Quantas vezes não escutamos o
que dizemos? Quantas vezes, em nossas falas, somos surpreendi-
dos, dizendo coisas que não queríamos e nem tínhamos a mínima
intenção de dizer? Sem essa experiência, a teoria que a psicanálise
construiu sobre o homem fica reduzida ao discurso universitário.
Isto é, fica reduzida a um conhecimento dessubjetivado, que está
sempre demandando mais saber.
A diferença entre essas práticas não se restringe a uma questão
jurídica. É fundamentalmente uma questão de formação que, por sua
vez, está diretamente articulada com a direção do tratamento. Paro
por aqui. Nos próximos artigos, continuarei desenvolvendo esse tema.
30 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Freud explica a diferença


Nadiá Paulo Ferreira

Um amigo me disse a seguinte preciosidade: o médico pode


recorrer à técnica da psicanálise em sua clínica. É óbvio que esse
dito saiu da boca de um médico, colocando em cena o não reconhe-
cimento da prática da psicanálise. Esta questão é muito mais antiga
do que se possa imaginar e faz parte da história da psicanálise. Em
1926, precisamente há setenta e dois anos, Theodor Reik foi acusa-
do, em Viena, de prática ilegal da psicanálise. Freud, nesse mesmo
ano, escreve o artigo Análise Leiga (Psicanálise e Medicina) para
situar os fundamentos teóricos e o campo de ação da psicanálise,
demarcando a diferença entre os tratamentos analítico e médico. Eu
disse a diferença. Não se trata, em momento algum, de avaliação,
no sentido de privilegiar uma prática em detrimento da outra.
Quando alguém vai procurar um médico, é porque está sentin-
do algum mal-estar, localizado no corpo, ou está querendo se sub-
meter a exames preventivos. A prática clínica da medicina visa à
cura, a partir de um diagnóstico. As descobertas científicas, tanto
na área médica quanto em outras áreas científicas, possibilitam
novos recursos para a cura e a prevenção de doenças.
Por que alguém vai procurar um analista? Em primeiro lugar,
é porque está sofrendo de sintomas que afetam a sua subjetivida-
de, criando transtornos graves em suas relações afetivas, familia-
res e profissionais, provocando, inclusive, efeitos no próprio cor-
po. O que faz um psicanalista, ao contrário de um médico? É bom
lembrar o que Freud disse: O analista concorda em fixar um ho-
rário com o paciente, faz com que ele fale, ouve o que ele diz, por
sua vez conversa com ele e faz com que ele ouça.
O não reconhecimento da prática clínica da psicanálise implica
jogar no limbo a grande descoberta de Freud: há uma outra cena
chamada inconsciente. E, justamente por isto, é preciso saber escutá-
lo para libertar sua fala. Do contrário, ele continuará deslocando
para seu corpo o que não consegue dizer em palavras. Até porque
quando fala não escuta, fazendo com que o ficou dito não seja
integralizado em seu discurso.
Psicanálise e Nosso Tempo 31

Em boca fechada não entra mosca


Nadiá Paulo Ferreira

O descontentamento com o trabalho, com a família ou com a


situação política tece uma fala que se desdobra em lamentos, apon-
tando para uma posição do homem em relação ao desejo. O mal-
estar é convertido em um rosário de queixas, circunscrevendo a
subjetividade ao sentimento da frustração.
Vestígios de corrupção ganham as manchetes dos jornais e do-
minam as notícias sobre o cenário político brasileiro no rádio e na
televisão: — “Este país não tem jeito, não. Tudo acaba em pizza”.
Conflitos entre pais e filhos adolescentes acabam em ressenti-
mentos, fazendo com que o amor seja substituído pelo ódio: —
“Meu filho é um aborrescente.”
As coisas no trabalho não andam bem, as relações se tornam
insuportáveis, sustentadas por uma teia de intrigas: — “O sistema,
os chefes, os governantes são os culpados. Eu não posso fazer nada.”
Se o inferno existe, o seu lugar é aqui na terra: o inferno é o
Outro. Fica-se de boca fechada na hora em que é preciso falar. Diz
o ditado popular: “em boca fechada, não entra mosca”. Entretanto,
no cafezinho, pelos cantos dos corredores, abre-se a boca, diz-se o
que se pensa. Mas é preciso o adendo: — “Se falar o que estou
dizendo para você, eu vou negar.”
O tempo passa e a queixa se infinitiza... Não é dessa forma que
o homem se isenta de qualquer compromisso subjetivo com o que
diz e com o que faz? Isto tem um nome para a psicanálise, chama-
se renúncia ao mais próprio de si mesmo. Esta desistência tem um
preço e um ganho. O sofrimento é o preço. O ganho é o gozo.
Quando se retira uma satisfação com o próprio sofrimento, verda-
deiramente, não há nada a fazer a não ser adoecer de corpo e alma
e ficar dormindo em sono esplêndido.
32 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Por que esquecemos os nomes?


Nadiá Paulo Ferreira

Domingo é um dia sem muitas opções na tv. Os programas de


auditório dominam a programação da tarde. À noite, além do Fantás-
tico, temos alguns filmes ruins e entrevistas. No programa De frente
com Gabi, a entrevistada é a cantora Vanderléia. Depois de muito
blá, blá, blá, vem o bate-bola. Marília Gabriela diz: — Palavrão? E
Vanderléia responde: — Psicopatologia do Cotidiano, acrescentan-
do que este título do texto de Freud bateu em seus ouvidos como se
fosse um palavrão.
Além do significado mais conhecido, isto é, palavra obscena e
grosseira, palavrão tem o sentido de pachouchada: dito disparatado,
tolice, asneira. Imediatamente, pensei: a entrevistada só pode estar se
referindo ao termo psicopatologia. Se ela tivesse consultado o Auré-
lio, aprenderia que é o estudo das doenças mentais no tocante à sua
descrição, classificação, mecanismos de produção e evolução.
Trata-se de um texto que Freud escreveu entre 1900 e 1901,
com o objetivo de mostrar que o esquecimento, em nosso dia a dia,
é uma das formas de manifestação do inconsciente. Por exemplo:
estou falando de um filme e esqueço o nome do ator principal.
Então, vem a minha cabeça uma série de outros nomes que reco-
nheço como errados. Se, por acaso, alguém diz o nome certo, ime-
diatamente eu reconheço que este é o nome esquecido. Alguma
coisa que foi recusada por mim entrou em conexão com esse nome,
fazendo com que tenha esquecido o que não queria esquecer.
O inconsciente é um trabalhador incansável, ele não pára de
trabalhar, nem quando estamos dormindo. É justamente por isto
que sonhamos e esquecemos o que não queremos. Mesmo que se
faça força para esquecer o que não se quer lembrar, de uma forma
ou de outra, o que é esquecido reaparece sob a forma de enigma.
Psicanálise e Nosso Tempo 33

A fuga de si mesmo via e-mail


Nadiá Paulo Ferreira

Início de um novo ano. Retomando um hábito antigo, telefono


para uma amiga. A distância geográfica impede um convívio mais
próximo, fazendo com que nossos laços sejam mantidos via e-
mail. Levo um susto, quando atende a companheira, que divide
com minha amiga o apartamento, e me informa que ela foi ao
médico, porque estava passando muito mal, nessas últimas sema-
nas. No fim da tarde, recebo seu telefonema e fico sabendo que,
há quase um mês, está sofrendo de insônias. Pergunto o que está
acontecendo e ela me responde que tudo vai bem e que acabou de
ser promovida no seu emprego. Mas, na hora de deitar, o sono não
vem, rola à noite toda na cama. Isto a está deixando esgotada e já
emagreceu alguns quilos.
A consulta não durou mais de quinze minutos. Muitos pedidos
de exames e um diagnóstico a ser confirmado pelos resultados
destes exames: estresse. O diagnóstico é ratificado. Por que
estresse? — pergunto. Ela me responde que está trabalhando mui-
to. Imediatamente, retruco: você sempre trabalhou muito, o pro-
blema é que você não está conseguindo dormir. Antes de continu-
ar falando, ela me interrompe, dizendo que o médico lhe receitou
um calmante. Acrescenta que já tomou o remédio, está caindo de
sono, e me manda um e-mail para continuarmos nossa conversa.
Sem se escutar e não querendo ser escutada, o e-mail é uma gran-
de opção, na medida em que elimina o aqui e agora da fala, onde o
sujeito pode se surpreender com o que acabou de dizer sem querer ter
dito. O médico e sua medicação são os grandes álibis para que minha
amiga permaneça na ignorância de seu sintoma. O mal-estar foi apla-
cado por soluções químicas que silenciam sua fala, calando seus de-
sejos. Dormir é preciso. Lá, na terra dos sonhos, o corpo se abandona
ao gozo. Desejar não é preciso. Assim caminha a humanidade...
34 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

A escolha de Rogéria
Nadiá Paulo Ferreira

Domingo, dia 17, o programa De frente com Gabi reprisa a


entrevista com Rogéria. Uma das questões colocadas pela entre-
vistadora se dirigia ao sexo do entrevistado(a). Além do nome
artístico indicar o sexo feminino, uma série de recursos foram
usados para a transformação do seu corpo: ingeriu hormônios para
que lhe nascessem seios e fez uso de eletrólise para eliminar os
pêlos do rosto. Rogéria conta que, antes de descobrir uma nova
marca de hormônios, ficou dois anos impotente e que o tratamento
eletrolítico doía muito.
Em seguida, afirma que o fato de se considerar uma mulher
não tem nada a ver com os caracteres masculinos de seu corpo. —
“É uma questão de cabeça, está dentro de mim.” É claro que qual-
quer espectador com certa argúcia pensaria: se o sexo é uma esco-
lha subjetiva, independente da anatomia corporal, por que, então,
Rogéria fez tantos sacrifícios para operar modificações no seu
corpo? A agudeza do espírito, às vezes, fica embotada pelos pre-
conceitos que herdamos. Ou, como nos ensina o poeta Fernando
Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caeiro, “trazemos a
alma vestida”, o que nos impede de pensar e nos impulsiona a
repetir frases feitas. É preciso “uma aprendizagem de desaprender”,
para que não nos tornemos prisioneiros dos sentidos que, embora
desgastados pelo tempo, continuam sendo repetidos toda vez que
nos defrontamos com a questão da diferença entre os sexos. Saber a
verdade sobre a diferença sexual é impossível. Isto nos ensina a
psicanálise. Mas não é preciso conhecer a obra de Freud e de Lacan
para saber que, quando nasce uma criança e lhe escolhemos um
sexo, baseados em particularidades corporais, não temos nenhuma
garantia? Rogéria quando nasceu teve o seu sexo escolhido pelos
pais. Um bebê que recebeu um nome, sustentado pela esperança de
vir a ser um homem. Mas Rogéria se identificou com as mulheres e
escolheu outro sexo para si mesma. Esta escolha não a libertou da
crença que estabelece uma correspondência unívoca entre sexo e
anatomia. Foi preciso se travestir. Isto é, escrever marcas em seu
corpo para ingressar na série das mulheres.
Psicanálise e Nosso Tempo 35

O mandamento impossível
Nadiá Paulo Ferreira

No último fim de semana de janeiro, fui participar de um


simpósio de psicanálise, em Petrópolis, promovido pela Intersecção
Psicanalítica do Brasil. O tema escolhido para o encontro foi o
Nome-do-Pai. Esta expressão Lacan foi buscar na tradição cristã.
O Nome-do-Pai, como equivalente do Nome-de-Deus, nos leva a
duas questões primordiais: qual é a verdade? O que é um pai?
Nenhuma destas perguntas podem ser respondidas integralmente.
Alguma coisa em torno da verdade e da paternidade permanece
velada, reaparecendo sempre como um enigma sem decifração.
Este enigma nos é apresentado pelo discurso cristão sob a forma
do dogma da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. A
verdade do três em Um é obscura e inquestionável. É preciso ter
fé. É preciso, também, a submissão ao preceito fundamental do
cristianismo, que é o amor. O cristianismo é a religião do amor.
Deus ama, incondicionalmente, todos os homens e estes devem
amar seus semelhantes como amam a si mesmos.
Vocês, leitores, já pensaram o que isto significa? Como posso
amar o outro como se fosse eu mesmo? Em primeiro lugar, é
preciso eliminar a diferença do outro para, só depois, pregar a
tolerância com ele. Ingressamos, assim, no reino da Igualdade. Se
tenho alguns defeitos, o outro também pode ter os seus. Todos
podem cair em tentação. Mas existem princípios universais, ele-
vados à categoria de essência, que não podem ser violados. Todo
aquele que transgride esses princípios tidos como naturais não
pode ser considerado um semelhante. Um corpo “sem alma”
pode ter uma aparência humana mas não será aceito como tal.
Será sempre o Outro: a bruxa, o herege, o homossexual, o judeu,
o negro, o burguês, etc. O Outro, como diferente, deverá ser sub-
jugado ou exterminado. Alguns momentos da história possibilita-
ram a convocação ao extermínio, como foi o caso da Inquisição,
do Nazismo e do Stalinismo. Outros, através dos mecanismos de
impunidade, propiciam a violência contra o próximo. Moro em
Ipanema e estou assistindo aos efeitos cruéis desta impunidade.
36 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Para que serve um pai?


Nadiá Paulo Ferreira

Retomando a questão da paternidade, lanço a pergunta: Qual


é a função do pai, no núcleo familiar, neste final do século? Não
há dúvida de que esta posição está cada vez mais em declínio, em
virtude da intervenção do Estado. Em Nome-do-bem, criam-se leis
que visam à proteção da criança, o que possibilita, em alguns
casos, o seu encaminhamento a instituições governamentais, fa-
zendo com que os maus tratos familiares sejam substituídos pela
brutalidade dos funcionários. Este contra-senso deixo em suspenso
para que vocês, leitores, reflitam sobre isto.
O avanço das pesquisas genéticas tem contribuído bastante não
só para a aplicação de leis, no que diz respeito ao reconhecimento
da paternidade, mas também para a “produção independente”.
Não existem mais, ao nível jurídico, filhos bastardos. Existem,
sim, filhos sem o nome do pai, na certidão de nascimento, até que
alguém resolva recorrer a análises do DNA. Comprovada a pater-
nidade real, a lei exige a inclusão numa linhagem familiar, sem
levar em conta uma escolha subjetiva desejante. Filhos do
espermatozóide são criações deste final do século. Além disto, a
causa desses processos coloca em cena, quase sempre, a reivindi-
cação de ser incluído numa grande herança. Quanto à “produção
independente”, existiria melhor exemplo para indicar o enfraque-
cimento da função do pai nas relações de parentesco?
O grande desafio é que quanto mais esta função entra em declínio,
mais se reivindica que alguém seja investido desta função. Não é por
obra do Acaso que estamos assistindo ao crescimento espantoso de
seitas religiosas, encabeçadas por gurus carismáticos, verdadeiros pais
imaginários. Se Ele deixar, todos vão cair na folia, que é o Carnaval.
Se não, vão para o Retiro pedir a bênção ao Pai espiritual de todos os
homens de fé...
Psicanálise e Nosso Tempo 37

Por que o filho quer matar o pai?


Nadiá Paulo Ferreira

É preciso marcar as diferenças fundamentais entre Freud e


Lacan, em torno da questão da paternidade, tema sobre o qual
venho insistindo nesta coluna. Em primeiro lugar, a palavra pai e
o nome de Freud, provavelmente, levam o leitor a uma associação
imediata: o complexo de Édipo. Em segundo lugar, já foi muito
divulgado que o ensino do psicanalista francês, Jacques Lacan,
visava a um retorno aos textos freudianos. Permanecem, ainda,
encobertas por névoas, as diferenças que começam a surgir na
trajetória de Lacan, na medida em que ele continua insistindo na
questão colocada por Freud: o que é um pai?
Em Freud, vamos encontrar três abordagens sobre o Édipo: a
tragédia de Sófocles, Édipo rei, o mito darwiniano do pai da horda
primitiva e a versão judaica sobre a história de Moisés. Aqui, só me
interessa destacar a teoria que Freud constrói sobre o complexo
edipiano, a partir de sua leitura do texto trágico: a trama se consti-
tui em torno do ciúme do filho em relação ao pai, na medida em que
este intervém para privar o filho do objeto de seu desejo, que é a
mãe. Daí surgiria o desejo do assassinato do pai, o recalcamento e o
retorno desse desejo, gerando o sentimento de culpa.
Lacan, a partir de 1969, avançando em suas reflexões, começa
a se diferenciar de Freud, o que faz com que no Seminário XVII,
O Avesso da Psicanálise (1969-70), considere o complexo de Édipo
como “sendo um sonho de Freud”. De discípulo a autor de uma
nova teoria sobre o pai, Lacan caminha em direção à construção
do conceito do Nome-do-Pai, percurso que não poderia ter sido
realizado sem Freud.
Não se trata de colocar Lacan contra Freud, oposição bem ao
gosto da mídia, onde tudo tem que virar um grande espetáculo,
mas sim de apontar as distinções entre eles. Neste caminho, nos
próximos artigos, vou falar da ligação entre o pai e a lei e da
importância que a palavra da mãe adquire, ratificando ou tornan-
do sem efeito a palavra do pai.
38 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

A importância da palavra da mãe


Nadiá Paulo Ferreira

Qual a função do pai para uma criança? Lacan desenvolve


esta questão, principalmente, em dois seminários: A Relação de
Objeto, 1956-1957, e As Formações do Inconsciente, 1957-1958,
ambos publicados pela Jorge Zahar. Deixo o primeiro em suspenso,
aguçando a curiosidade do leitor — para, quem sabe, se interessar
por sua leitura — e vou me deter no segundo. Neste, o pai adquire
o valor de metáfora e, como tal, encarna a lei. O que é uma me-
táfora? É a produção de um sentido novo, realizado pela substitui-
ção de uma palavra por outra palavra, a partir de uma identificação
associativa. Por exemplo, aterrado, inicialmente, significava cober-
to por terra. O horror, associado ao fato de ser enterrado vivo, tão
explorado pelos filmes de terror, produz a substituição da expres-
são “ser enterrado vivo” por “aterrado” que passa, então, a signifi-
car um medo domesticado. Nesse sentido, a função do pai, como
representante da Lei, é transmitida pelo desejo da mãe, cujo signifi-
cado é sempre um enigma sem decifração. Vários sentidos serão
produzidos para serem colocados no lugar desse enigma. Estes sen-
tidos se articulam com a versão de uma história familiar, onde a
criança ocupa um lugar determinado na subjetividade materna.
Nesta abordagem, algumas diferenças em relação a Freud já
podem ser apontadas. A relação da criança com o pai se organiza
em torno da palavra da mãe. Ou seja, como a mãe se posiciona
subjetivamente em relação à Lei e, conseqüentemente, ao homem,
que reconhece como pai de seu filho. É isto que, em última instân-
cia, determina a constituição do lugar de um filho. Quanto à fun-
ção paterna, dando origem à imagem do pai, tudo dependerá de
como o pai irá encarnar essa função simbólica, dando ou não pro-
vas do vigor da Lei. A imagem de um pai potente ou impotente —
eis a questão. Um pai que tem ou não alguma coisa preciosa para
doar à mãe. Um pai a quem a mãe, como uma mulher, irá ou não
dirigir seu desejo. Enfim, um pai, portador de bens, com quem o
filho poderá se identificar e a filha desejar.
Psicanálise e Nosso Tempo 39

A ligação entre o pai e a Lei


Nadiá Paulo Ferreira

Insistir na indagação freudiana sobre o que é o pai levou Jacques


Lacan a introduzir na psicanálise o Nome-do-Pai. É na tradição
judaica que irá encontrar a relação entre o Nome-do-Pai e a Lei.
No Antigo Testamento, “Êxodus”, 3, quando Deus aparece para
Moisés, numa chama de fogo, que saía do meio duma sarça,
depois de se apresentar como sendo o Deus de Moisés, o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó e o Deus de Israel, diz
que sabe do sofrimento dos seus filhos e que enviará Moisés para
salvá-los da opressão dos egípcios.
Em seguida, Moisés pergunta: – (...) se eles me disserem: Que
nome é o seu? Que lhes eu hei de responder? E Deus lhe respon-
de: – Eu sou aquele que sou.
A leitura desse episódio faz com que Lacan elabore uma das
funções do Nome-do-Pai, que é a nomeação. É a palavra do pai,
enquanto garantia da verdade, que determina o lugar de filho es-
colhido para uma missão. O desejo de Moisés é o desejo do Pai-
Todo-Poderoso. O Nome-de-Deus, como nome impronunciável,
aponta para uma falha, expressa no provérbio: pater semper
incertus est. A função do pai como nome remete para a impossibi-
lidade de saber a verdade sobre a paternidade. O que não implica
a desistência do homem em procurar esta verdade. Trata-se de
uma questão de fé. Hoje, com o avanço da ciência, pode-se dizer
quem não é o pai. Mas um exame de DNA não tira ninguém da
orfandade do amor paterno. Quem quer ser filho de um
espermatozóide? O mistério do Nome-de-Deus vem recobrir o que
permanece velado e sem decifração para todo ser falante. Desta
impossibilidade advêm os nomes do pai.
Para terminar esta série de textos em torno da paternidade,
coloco a seguinte indagação para o leitor: neste final de século, os
nomes, que se ancoram no Nome-do-Pai, não exercem mais a fun-
ção de outrora, na medida em que fracassam na sustentação do
vigor da Lei.
40 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

A crença da discórdia psicanalítica


Nadiá Paulo Ferreira

A crença, que permanece até hoje em torno da auto-análise, está


diretamente ligada à história da psicanálise. Tudo começou com a
intensa amizade entre Sigmund Freud e o otorrinolaringologista
Wilhelm Fliess, atestada na vasta correspondência entre ambos. O
primeiro encontro aconteceu em outubro de 1887, portanto um ano
após o casamento de Freud com Marta, quando Fliess, de passagem
por Viena, é apresentado a Freud por Josef Breuer. Os temas dessa
correspondência, além do que se convencionou chamar de auto-
análise, eram os mais variados: problemas domésticos, estudos, pro-
jetos, casos clínicos, leituras, etc. A técnica para a auto-análise,
sustentada por uma interpretação das cartas de Freud, aconselha a
interpretação dos próprios sonhos, esquecimentos, atos falhos e a
análise de sintomas, tais como estado depressivo, dores de cabeça,
dores de barriga e etc.
O fato de Freud ter acreditado na auto-análise não significa
que tenha mantido essa crença para o resto de sua vida. Em 14 de
novembro de 1897, numa carta dirigida a Fliess, temos o testemu-
nho desta mudança. Inicialmente ele diz: Antes da viagem de féri-
as, eu lhe disse que o paciente mais importante para mim era eu
mesmo; e então, de repente, depois que voltei das férias, comecei
minha auto-análise, da qual não havia nenhum sinal na época.
Entretanto, no final dessa mesma carta, temos a constatação: Minha
auto-análise continua interrompida. Apercebi-me da razão que só
posso me analisar com o auxílio de conhecimentos objetivamente
adquiridos (como uma pessoa de fora). A verdadeira auto-análise é
impossível, caso contrário, não haveria doença [neurótica].
Por que os pós-freudianos fabricaram o mito da auto-análise,
tornando, inclusive, a análise interminável? Foi preciso surgir um
jovem médico, que não reconheceu neles a marca da letra freudiana
e, justamente por isso, deu início a um ensino, pautado pela reto-
mada dos textos freudianos, para desmistificar a auto-análise. Seu
nome era Jacques Lacan.
Psicanálise e Nosso Tempo 41

As muletas e a busca da felicidade


Nadiá Paulo Ferreira

Freud, no texto de 1930, O mal-estar na cultura, retomando


algumas questões, já abordadas em O futuro de uma ilusão, 1927,
ressalta a insistência do homem em alcançar a Felicidade. Esta
obstinação se sustenta na fé de que a busca da felicidade levaria à
evitação da dor e do sofrimento humanos. Sabemos que isto é uma
ilusão. Além das decepções, que todos nós enfrentamos no conví-
vio com nossos semelhantes, o corpo está condenado à decadência
e ao aniquilamento, segundo as palavras do próprio Freud. Do
nascimento à morte, o mundo impõe uma série de sofrimentos,
afastando o homem desta tão decantada Felicidade.
O desconforto do mundo nunca impediu a vivência de momen-
tos felizes, a invenção e a perseverança no fazer. Mas é preciso
não renunciar a uma posição desejante, o que coloca o sujeito cara
a cara com sua verdade que, como toda verdade, nunca se revela
por inteiro. A cada desejo realizado, alguma coisa falta, relançando
o desejo a um mais ainda que só termina quando a morte vem.
Mas, se o homem abre mão de se colocar como desejante, matan-
do o tempo, esquecendo o que não pode ser esquecido, que é ter a
morte como destino, restam algumas saídas: o sentimento de cul-
pa ou a necessidade de usar muletas.
O sentimento de culpa é um dos sintomas que caracterizam o
mal-estar do homem. A culpa é um afeto que não mente. Não há
remorso sem que o sujeito não se veja de alguma forma implicado.
Mas o recurso das muletas faz com que a culpa seja retirada do
sujeito e deslocada para um outro.
As múltiplas faces do Outro aliviam o sintoma. O sujeito, sem
implicação subjetiva, não faz outra coisa senão se queixar do Outro.
A cada lamento, uma satisfação com seu sintoma e com o descon-
certo do mundo. O gozo com a degradação da renúncia ao desejo
vela o horror do enigma, que causa o próprio sintoma do homem.
42 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

O choro das almas aflitas


Nadiá Paulo Ferreira

Falei das muletas, usadas pelos homens, para aliviar o senti-


mento de culpa, isentando a responsabilidade de cada um com
seus sintomas. Vou me deter, precisamente, na contribuição da
ciência para a desculpabilização do sujeito.
Freud, antes de descobrir a psicanálise, usou a hipnose para li-
vrar seus pacientes dos sofrimentos, que se localizavam tanto no
corpo quanto na alma, provocando paralisias, dificuldades respira-
tórias, taquicardias, angústias, insônias e incapacidades, como é o
caso da mãe que não conseguia amamentar seus filhos recém-nasci-
dos. Aliás, esta mãe confessou sua vergonha a Freud, porque ape-
sar de sua “força de vontade”, só conseguiu amamentar seus filhos
submetendo-se à hipnose.
Estamos diante de uma questão ética: o sujeito, além de per-
manecer na ignorância, não é responsável pela superação do seu
sintoma. Aqui, o que está em jogo, é um tratamento terapêutico
que, ao domesticar o gozo extraído do sintoma, deixa a verdade
no esquecimento. Mas o que é esquecido retorna, repetindo o mes-
mo sintoma ou substituindo-o por outro. É por estas e outras es-
cutas que Freud, por ter insistido, tenazmente, na verdade, aban-
dona a hipnose (método catártico), descobre o inconsciente e in-
venta a psicanálise, cuja regra é a associação livre. É preciso dei-
xar o sujeito falar livremente, para que o analista possa intervir
em sua fala, fazendo com que o saber produzido pelo inconscien-
te seja incorporado pelo sujeito.
O que faz a ciência? Ignora todas as singularidades que consti-
tuem um sujeito, reduzindo-o a um corpo que, em determinado
momento, apresenta defeitos de funcionamento. A tendência, cada
vez mais, é identificar esses “defeitos” de fabricação na genética. A
descoberta de um gene no cromossomo permitirá a correção ou o
alívio do sofrimento. Do assassinato da ética do desejo advém a
inocência da vítima. Belas almas aflitas choram, sussurram, lamen-
tam o mal que o Outro cruel e impune espalha por esse mundo...
Psicanálise e Nosso Tempo 43

A moral que amplia a perversão


Nadiá Paulo Ferreira

Não faz ainda cinqüenta anos, tudo que estava ligado, explicita-
mente, ao sexo tinha que ser mantido em segredo. Não se falava de
sexo, cochichava-se entre risadinhas nervosas e olhares maliciosos.
A virgindade era o grande tabu que assombrava as mulheres, assim
como a iniciação sexual dos homens tinha que ser feita com prosti-
tutas. Quanto mais reprimida, mais a sexualidade transpirava pelos
poros: criança que ficava escondida muito quietinha estava fazendo
“besteira”; menino e menina juntos exigiam atenção redobrada, se
estivessem brincando de médico, aí, nem se fala, era “coisa feia” na
certa. Hoje, basta ligar o computador e escolher de ninfetas e ninfetos
a qualquer perversãozinha preferida ao olhar. O pavor ao vírus da
AIDS veio inclusive facilitar o sexo sem toques, bastando discar
um número para que uma voz se torne objeto de um gozo sexual que
dispensa o parceiro.
Freud, no texto “Moral sexual civilizada e doenças nervosas
modernas”, 1907, frisa com todas as letras que as imposições cul-
turais em relação ao sexo são a causa de um mal-estar na civiliza-
ção, já que as renúncias e os sacrifícios exigidos aos homens e às
mulheres não são poucos. Sem dúvida, a moral sexual de uma
determinada época indica as coordenadas das aflições e dos sofri-
mentos humanos. Mas o que se modificam são os valores e não a
imposição categórica de uma moral. Justamente por isto, Freud
pôde falar de “doença nervosa moderna” assim como nós, hoje,
podemos falar de subjetividade contemporânea.
Se a moral do século XIX abriu um campo fértil para as neu-
roses, será que a moral de nossos dias possibilita a multiplicação
da perversão? Não podemos negar que o progresso do capitalismo
erigiu um apelo ao gozo, que se substancializa no comércio prós-
pero e lucrativo da industrialização do sexo. Para onde caminha-
mos? Esta é a questão que deixo para você, leitor, pensar.
44 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Amor cortês I
O que é o amor cortês
Nadiá Paulo Ferreira

Inicio uma série de textos, nessa coluna, sobre o amor cortês.


Em primeiro lugar, trata-se de um tema que ultrapassou os estu-
dos literários. Em segundo lugar, Jacques Lacan, em seus seminá-
rios, levantou várias questões sobre o assunto, que possibilitam
uma nova abordagem.
O amor cortês está indissociavelmente ligado à história da poesia.
Na Idade Média, surgiu um gênero poético que tinha como tema o
amor não correspondido, que deveria ser decantado em regras bastan-
tes rígidas de cortesia, que ficaram conhecidas como Leis d’Amor. Os
estudiosos, que não conseguiram apreender este fenômeno, considera-
ram-no expressão de um fingimento ou de uma impostura. Não há
dúvida de que estamos diante de um amor inventado para fazer poesia.
Neste sentido, o amor cortês é produto de um artifício com a palavra.
Desventuras, sofrimentos, tormentos e desencontros tecem as tra-
mas de um amor que deve se apresentar como impossível. Logo, o
objeto amado só pode comparecer como inacessível. O poeta-trova-
dor, no lugar de amante, se coloca a serviço de sua amada, suplicando
não seu amor mas compaixão para sua dor. A mulher amada, tal
como o senhor feudal, além de vassalagem e fidelidade, exige um
tratamento especial que a coloque no lugar de soberana absoluta,
cultuada com delicadeza, afeto e admiração. Ou seja, que o amante
seja um cavalheiro.
Interessante observar que o lugar que é dado à mulher na poesia
é radicalmente diferente do lugar que lhe era reservado na sociedade
medieval. Esta dissonância não apontaria para o fato de que o amor
cortês revela o que está em jogo no amor? Não é o amor uma ficção
que se apresenta com valor de verdade para quem ama? Se o amor
cortês é sinônimo de amor impossível, trata-se de um amor que colo-
ca em cena o que a psicanálise considera o paradoxo do próprio amor:
quem ama experimenta alguma coisa da ordem da falta e quem é
amado não tem o que falta ao amante.
Psicanálise e Nosso Tempo 45

Amor cortês II
O que é o verdadeiro amor
Nadiá Paulo Ferreira

Ressaltei a diferença de tratamento dos homens em relação às


mulheres, na Idade Média. No social, reduzidas à função da mater-
nidade, as mulheres ficavam subjugadas ao poder do homem, desde
o nascimento até a morte. Na poesia, sob a pena do poeta, a mulher
se transfigurava na Dama, à qual o trovador dedicaria seu amor,
sua vida, seus pensamentos, enfim, todo o sentido de sua existência.
Nesta época, estava reservado às mulheres o papel social de
filhas ou esposas. Como filhas, tinham um valor de troca a ser ne-
gociado no Contrato de Casamento. Como esposas, tinham a mes-
ma função que as fêmeas no reino animal: a reprodução da espécie.
O lugar recusado às mulheres no social é substituído pelo lugar que
será dado à Mulher na poesia.
Literalmente a serviço do Amor, o trovador iniciava uma batalha
que tinha como estratégia o segredo, a fidelidade, a humildade, a
idolatria e a inibição do sexual. A coisa amada só podia ser represen-
tada como enigma sem decifração assim como o amor exigia do amante
a privação, o luto e a frustração.
As relações entre amante e amada se inscreviam na privação,
porque o amor cortês se sustentava na renúncia do objeto amado.
Conseqüentemente, o luto, como estado de sofrimento permanente
— “coita” —, levava o trovador a desejar a morte, o que se
convencionou chamar, nos estudos literários, de “morrer-de-amor”.
Da privação, passa-se à frustração. O amante, por se encontrar à
deriva do desejo da Dama, lhe atribui uma onipotência máxima, o
que faz com que a Mulher amada seja tomada como objeto do seu
desejo e não como um objeto que lhe causa desejo. Deste lugar,
advém a frustração, sob a forma da recusa de um Bem. Amar,
então, se torna sinônimo de servir ao Amor e de suplicar compai-
xão. A Dama se transforma em símbolo de uma ausência e o que
é amado é o próprio amor. É neste sentido que Jacques Lacan
afirma que o amor cortês é o verdadeiro amor.
46 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Amor cortês III


Simulacro do objeto do desejo
Nadiá Paulo Ferreira

Trata-se de um amor que visa à não satisfação e, justamente


por isto, a Dama é colocada no lugar de objeto amado para que
outra coisa, que está para além das mulheres, seja desejada. As-
sim, as leis das cortes de amor adquirem uma função precisa: tor-
nar o amor impossível.
Ao contrário do Romantismo, é o próprio amor e não o objeto
amado que é idealizado. A mulher, enquanto portadora do agal-
ma2 , é captada por um olhar, sem que haja qualquer particulari-
dade que a singularize. A leitura das cantigas de amor provoca,
inclusive, a sensação no leitor de que todas poderiam ter sido es-
critas para uma mesma mulher. A Dama é dessubjetivada para ser
apresentada como arbitrária, onipotente e indiferente, não medin-
do as exigências que impõe àquele que está a seu serviço.
O homem se situa no lugar de sujeito desejante e a mulher é
colocada no lugar de objeto desejado, para que seja simbolizada a
desarmonia do amor: o que falta ao amante a amada não tem. Não
é isto que Jacques Lacan nos ensina, quando diz que amar é dar o
que não se tem?
O paradoxo do amor é o que sustenta o amor cortês. Se o dese-
jo do homem é o desejo do Outro, o trovador deseja o amor da
Dama porque Ela deseja ser amada por ele. Se o desejo se sustenta
em uma falta radical, a súplica do trovador, dirigida à Dama, re-
vela a constatação deceptiva, que faz parte da estrutura do desejo
humano: não é isto, é outra coisa... Essa Outra Coisa é a Dama
que está ali para ser amada e não para obliterar o que falta ao
amante. A Dama, como simulacro do objeto do desejo, só pode ser
demandada pelo trovador a partir da privação e da frustração.
Justamente por isto, o que é colocado neste lugar é um objeto
enlouquecedor, é um parceiro desumano.
Psicanálise e Nosso Tempo 47

Amor cortês IV
O jogo sexual do trovador
Nadiá Paulo Ferreira

Falei das Leis do Amor com a função de interditar o objeto


amado e de tornar o amor impossível. Vou retomá-las como técni-
cas eróticas, na medida em que estão a serviço da retenção, da
suspensão, enfim do amor interruptus.
Freud, em Três ensaios para uma teoria da sexualidade, 1905,
afirma que todas as circunstâncias que dificultam ou afastam a
realização do fim sexual favorecem a tendência para permanecer
nos atos preparativos, convertendo-os em novos fins sexuais.
O trovador para atingir o grau de amador (Drut) tinha que pas-
sar pelos seguintes estágios: Aspirante (Fenhedor), o que se conso-
me em suspiros e Suplicante (Precador), o que ousa pedir. No ritual
provençal, quando a Dama aceitava a corte do trovador, oferecia-
lhe um anel de ouro e ordenava que se levantasse e lhe beijasse a
fronte. Daí em diante, os amantes estavam unidos pelas leis da cor-
tesia: inibição do sexual, a vassalagem e a consagração do amor.
Esses estágios não exerceriam a mesma função que os prazeres
preliminares têm no ato sexual, na medida em que acabam se trans-
formando num fim em si mesmos? O trovador, depois de conseguir
o grau de amador, iria fazer parte de uma Escola literária, cujas leis
visavam a impor barreiras ao próprio amor. Estamos diante de uma
versão sobre o amor que coloca em cena um jogo. Existe coisa que
mais explicite uma invenção pela palavra do que o jogo?
Naquele tempo, os trovadores sabiam jogar... E, justamente
por isto, sabiam amar o amor.
48 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Amor Cortês V
Os prazeres preliminares
Nadiá Paulo Ferreira

Termino a série de artigos sobre o amor cortês, retomando os


prazeres preliminares. Lacan chama atenção para o seguinte pa-
radoxo: os prazeres preliminares sustentam o prazer e são experi-
mentados como desprazer, na medida em que aumentam o estado
de tensão. No amor cortês, esses prazeres têm a função de interdi-
tar o corpo da mulher amada, fazendo com que o sexual se con-
verta numa arte erótica sublimada. Assim, o impossível de um
amor vela o impossível de, de Dois, fazer Um.
A Dama, como representante do Outro-sexo, só pode ser no-
meada com valor de Coisa (Das Ding freudiano). O que isto quer
dizer? Trata-se de um amor cuja estratégia é apontar para um
vazio. Entre a nomeação e a aparição do objeto se abre uma hiância
para a qual não há palavras. A Coisa como significante é efeito da
existência da linguagem (Cantiga de Amor) e a Coisa como objeto
(a Dama) pertence ao registro do real. E, como tal, está para além
da linguagem e só pode ter como referência o impossível.
A sublimação não tem outra função senão permitir ao homem
se referir à Coisa, isto é, colocá-lo entre o real (impossível) e a
palavra (simbólico/linguagem). No centro desse intervalo, o que
permanece é um vazio. O objeto amado no amor cortês é aborda-
do para situar o desejo ao nível da visada da Coisa. Esta Coisa,
por sua estrutura, só pode ser representada por Outra Coisa. A
Outra Coisa é a Coisa. A Coisa não se procura, acha-se. A perso-
nagem de Angela Carter, no romance A Paixão da Nova Eva,
achou Tristessa: “linda como podem ser apenas as coisas que não
existem: o mais obsedante dos paradoxos, receita de eterna insa-
tisfação”. Mas é claro que esta busca só pode ser feita quando o
homem se torna um verdadeiro artesão da palavra. A Coisa é a
Dama que os poetas encontraram para trovar.
Psicanálise e Nosso Tempo 49

O enigmático sorriso do parvo


Nadiá Paulo Ferreira

Recentemente, foi lançado em vídeo o filme Cubo, do diretor


Vicenzo Natali. Uma médica, uma matemática, um ladrão — que
já tinha escapado de prisões dotadas de sistemas especiais de se-
gurança — um policial e um técnico, que trabalhou no projeto que
deu origem à construção do Cubo, são algumas das personagens
que, ao acordarem, se dão conta de que estão enjaulados num
labirinto, que apresenta armadilhas mortais. Espectadores e per-
sonagens nada sabem sobre esse projeto maquiavélico e, paulati-
namente, todos percebem que cada um não foi escolhido de forma
aleatória, mas em função de uma habilidade ou conhecimento es-
pecífico que ajudaria a encontrar a saída. Passando de um qua-
drado a outro, os personagens vão se encontrando. Alguns mor-
rem de forma violenta pelas armadilhas. Um débil mental é encon-
trado. No desenrolar da trama, a matemática descobre que os nú-
meros primos, que aparecem em cada quadrado, são coordenadas
que indicam a trilha a ser seguida. É preciso fazer contas. Neces-
sita-se de uma calculadora. Aí surge a função do débil mental,
cuja habilidade é saber fazer de cabeça as contas necessárias, in-
dicando os quadrados que podem ser percorridos.
Resolvida a charada, todos encontrariam a saída. Seria assim se
não fosse a reação de cada um diante do perigo, do medo, da morte,
dos desejos não nomeados e dos gozos inconfessos. O recalcado
reaparece sob a forma de horror e a grande armadilha, para a qual
não há coordenadas matemáticas, está dentro de cada um. Assim,
os que restaram matam-se uns aos outros. O filme termina com um
único sobrevivente: o alienado e seu sorriso parvo.
Alegoria do mundo em que vivemos, um corpo vivo e contente,
imerso no gozo idiota, caminha em frente, esperando novas ordens
para serem cumpridas. Os autores do projeto permanecem no ano-
nimato. Deles, só ficamos sabendo do Cubo e de suas vítimas.
50 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Melanie Klein I
A guerra de Klein X Freud
Nadiá Paulo Ferreira

Melanie Klein (1882-1960), austríaca (Viena), de origem judai-


ca, afastando-se dos fundamentos freudianos, elaborou uma teoria
e uma prática psicanalíticas para o tratamento de crianças, que deu
origem a novos princípios para a formação de analistas (análise
didática). Além do livro, em quatro volumes, A psicanálise de cri-
anças, traduzido em quinze línguas, sua produção abrange, aproxi-
madamente, cinqüenta artigos.
Aos 21 anos, casa-se com o engenheiro Arthur Klein e, sete
anos depois, muda-se com o marido para Budapeste, onde entra
em contato com a obra de Freud e começa a fazer análise com
Ferenczi. Em 1918, ao participar do V Congresso da International
Psychoanalytical Association (IPA), realizado em Budapeste, as-
siste à apresentação do trabalho de Freud, “Os novos caminhos da
terapêutica psicanalítica”. Em 1919, a convite de Ferenczi, apre-
senta, na Sociedade Psicanalítica de Budapeste, seu primeiro tra-
balho sobre o tratamento de crianças, que deu origem ao seu pri-
meiro artigo publicado, “O desenvolvimento de uma criança”. Com
o recrudescimento do anti-semitismo, sendo recomendada por
Ferenczi a Karl Abraham, instala-se como psicanalista, em 1921,
na cidade de Berlim. Três anos depois, começa a fazer análise
com Abraham. No VIII Congresso da IPA, em Salzburgo, seu
trabalho apresenta marcantes divergências, tanto em relação à te-
oria de Freud quanto à concepção de sua filha, Anna Freud, em
relação ao tratamento psicanalítico com crianças. É apoiada tan-
to por Abraham quanto por Ernst Jones. Este último, tenta, inclu-
sive, intervir junto a Freud, tentando atenuar seu desagrado. A
partir daí, Melanie Klein e Anna Freud irão se tornar opositoras
sem tréguas. Com a morte de Abraham, em dezembro de 1925, e
a adesão do meio psicanalítico às idéias de Anna Freud, Melanie
Klein, que já estivera, em julho de 1925, dando uma série de confe-
rências em Londres, muda-se definitivamente para esta cidade,
onde vem a morrer de câncer do cólon.
Psicanálise e Nosso Tempo 51

Melanie Klein II
Golpe de mestre de Klein
Nadiá Paulo Ferreira

O caso Dick, como ficou conhecido na literatura analítica, apon-


ta para a diferença radical entre as teorias kleiniana e lacaniana,
em relação à precedência simbólica. Para Melanie Klein, o imagi-
nário é a fonte das primeiras identificações simbólicas, determi-
nando a primeira relação do homem com o mundo exterior e com
a realidade. Já para Jacques Lacan, o simbólico, identificado com
a linguagem e suas leis, é quem possibilita a estruturação do ima-
ginário. É a entrada no simbólico que humaniza um corpo vivo
recém-chegado ao mundo. Só depois dessa inscrição simbólica é
que se constitui o eu, onde irão se organizar as relações do sujeito
com a sua imagem. Um bebê, quando se diverte com sua imagem
no espelho, só identificará esta imagem como sendo a sua e não a
de um outro semelhante, porque quem o segura diz, insistente-
mente — “Olha lá o Pedro”. É a repetição desta cena, cercada por
palavras, que possibilitará o reconhecimento de uma imagem cor-
poral como sendo a própria imagem.
Exemplifiquemos com o caso Dick. Trata-se de um menino de
quatro anos de idade, que é levado por seus pais a Melanie Klein,
com os seguintes sintomas: pobreza de vocabulário; ausência de
reações emocionais à presença da mãe e da babá; pronúncia de sons
ininteligíveis e repetição de certos ruídos; insensibilidade à dor; au-
sência de angústia; indiferença à maioria dos brinquedos e jogos;
preferência em suas brincadeiras por trens, estações rodoviárias e
maçanetas de portas.
Melanie Klein escolherá os trens para começar seu tratamento,
equacionando que o imaginário dessa criança estava estagnado, o
que a impossibilitava de desenvolver a formação de símbolos. Vere-
mos, no próximo artigo, a intervenção genial desta psicanalista,
fazendo com que esse menino, pela primeira vez, saísse de sua indi-
ferença e fizesse um apelo, perguntando pela babá e, depois, cha-
masse Melanie Klein pelo nome. Veremos, também, como este ato
será interpretado de forma radicalmente diferente por Lacan.
52 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Melanie Klein III


Tratamento entra nos trilhos
Nadiá Paulo Ferreira

Dick chega ao consultório, Melanie Klein pega dois trens de


tamanhos diferentes e diz “Trem- papai” (para o grande) e “Trem-
Dick” (para o pequeno). O menino responde “Estação”. A partir
daí, trava-se o seguinte diálogo:
M.K. — Está escuro dentro da mamãe. Dick está dentro da
mamãe-escura. Dick — A ama? A ama? M.K. — A ama vem
logo. Dick — A ama vem logo.
Na próxima sessão, Dick corre da sala em direção ao vestíbu-
lo, que estava escuro, encontra o pequeno trem e insiste em deixá-
lo ali. Em seguida, pergunta a Melanie Klein: — “A ama vem
vindo?” Na sessão seguinte, repete o que tinha feito na sessão
anterior e, depois de se esconder atrás de uma cômoda, cheio de
angústia pronuncia pela primeira vez o nome de Melanie Klein,
chamando-a. A partir daí, se desencadeia o tratamento.
Não há dúvida de que a intervenção desta psicanalista provoca
uma virada, criando, assim, as condições para o início de um trata-
mento analítico. Depois de seu ato, vem a reflexão, onde irá desen-
volver uma teoria sobre a estrutura da subjetividade, na qual o ima-
ginário antecede o simbólico. A causa da inibição do desenvolvi-
mento de Dick está no fracasso dos mecanismos primitivos do ego.
A função mais arcaica do ego é a produção de um imaginário, de-
senvolvendo fantasias sádicas de devoração em relação ao corpo da
mãe. A não constituição deste imaginário impediu a formação de
símbolos, desencadeando uma incapacidade para tolerar a angústia
e para estabelecer uma relação com a exterioridade que o cerca.
Se o ego não pôde ser utilizado como instrumento para a
estruturação do mundo exterior, tudo se apresenta como indife-
rente e indistinto, fazendo com que Dick não responda e não faça
nenhum apelo. Veremos, no próximo artigo, como Lacan irá se
contrapor à interpretação de Melanie Klein, apontando para o fato
de que não houve nenhum fracasso do ego, porque, simplesmente,
ele não foi constituído.
Psicanálise e Nosso Tempo 53

Melanie Klein IV
Excesso de realidade
Nadiá Paulo Ferreira

Para Melanie Klein, como vimos, nos artigos anteriores, Dick


estabeleceu uma relação “excessivamente real com a realidade”,
porque o desenvolvimento precoce de seu ego fez com que fosse
interrompida a constituição de seu imaginário (fantasias), o que
afetou não só as suas relações com o mundo exterior, mas também
impossibilitou-o de simbolizar.
Lacan, indagando-se sobre o que significa essa relação “ex-
cessivamente real com a realidade”, afirma que o ego de Dick não
pôde ser utilizado “de forma válida como aparelho na estruturação
desse mundo exterior” (Seminário 1, Os Escritos Técnicos de
Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 106), simplesmente, porque
não estava constituído. O simbólico — mundo da palavra — não
foi introduzido. E, conseqüentemente, não poderia haver nem uma
organização do imaginário nem uma constituição do real, introdu-
zindo a falta pela via do não. Justamente por isto, tudo para Dick é
igualmente real e indiferente (caráter uniforme da realidade).
Para Melanie Klein, os objetos fazem parte de um jogo ima-
ginário, que se organiza por expulsão, introjeção, projeção e ab-
sorção. É preciso lembrar que, para Lacan, a projeção é um meca-
nismo do ego, portanto da ordem do registro imaginário, cujo re-
gime é o da relação dual, da relação de especularidade. Já a
introjeção é um mecanismo do superego, pertencendo à ordem do
registro simbólico. Neste sentido, introjeção deve ser definida como
a incorporação de palavras. Assim, em vez de um imaginário cons-
tituído, o que vamos encontrar é um esboço de “imaginificação”
do mundo exterior, já que Dick tem alguma coisa de linguagem e
dispõe de um número reduzido de signos para exprimir o dentro e
o fora, o continente e o conteúdo.
54 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Melanie Klein V
A escuridão de um garoto
Nadiá Paulo Ferreira

O leitor deve estar lembrado de quando Dick escapa correndo


da sala de Melanie Klein e se dirige para o vestíbulo de entrada,
que estava escuro. Lá, ele encontra o pequeno trem e insiste em
deixá-lo ali. Melanie Klein interpreta o escuro, onde Dick se refu-
gia, como sendo a representação do interior do corpo da mãe,
repleto de objetos. Lacan, discordando, afirma que o escuro re-
presenta o corpo da mãe como um interior vazio e o que Melanie
Klein não consegue ver é que há uma parte da realidade, que é
imaginada, e há outra parte, que é real. A referida pobreza imagi-
nária de Dick nada mais é do que a impossibilidade de entrar numa
relação efetiva com os objetos enquanto estruturas. Dick tem seu
sistema de linguagem, mas não faz nenhum apelo, isto é, não faz
uso da linguagem para se comunicar e sim para se expressar.
Dick se serve da linguagem de “uma forma negativista” (Seminá-
rio 1, Escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979,
p.101), portanto não responde e não demanda. O modo pelo qual
Dick se situa na linguagem está interrompido ao nível da palavra.
Ele usa a linguagem para estabelecer uma equivalência entre real
e imaginário, porque a palavra não chegou até ele.
Aqui, é importante frisar a diferença que Lacan estabelece en-
tre linguagem e palavra. A linguagem se caracteriza pelos meca-
nismos de combinação e de seleção, os quais podem ser realizados
mecanicamente por qualquer falante. Mas a palavra, a palavra
falada, aponta para o momento em que o sujeito se situa na estru-
tura da linguagem, ou seja, o momento em que irá se estabelecer
uma relação efetiva entre o sujeito e o outro pela via do apelo. Diz
Lacan (Seminário 1, id. ibid., p.106): “(...) vocês devem compre-
ender a virtude da palavra, na medida em que o ato da palavra é
um funcionamento coordenado a um sistema simbólico já esta-
belecido, típico e significativo”.
Psicanálise e Nosso Tempo 55

Melanie Klein VI
Diferença entre Lingüística e Psicanálise
Nadiá Paulo Ferreira

Depois de ter enfatizado a diferença entre a palavra e a lingua-


gem, vamos estabelecer uma das diferenças entre a lingüística e a
psicanálise. A função da linguagem no campo da palavra, para a
psicanálise, ao contrário da lingüística, não é a comunicação mas
o apelo, o que mais tarde Lacan irá denominar de evocação. Qual
é a implicação do apelo? É a possibilidade de recusa, introduzindo
as relações de dependência entre o sujeito e o outro.
A intervenção de Melanie Klein, fazendo com que Dick responda
“estação” é um momento crucial, porque esboça a junção da lingua-
gem e do imaginário do sujeito pela via da palavra. É a partir daí que
tudo se desencadeia, que o tratamento da criança progride. Dick se
coloca dependente da babá, para depois, em seguida, se colocar de-
pendente de Melanie Klein.
O que Melanie Klein fez sem saber? Introduziu a verbalização e
o simbólico, possibilitando que um ser fosse nomeado por outro.
Quando Dick pergunta por sua babá, verbaliza um apelo, realizan-
do sua primeira comunicação.
Melanie Klein deu a Dick “uma pequena célula de simbolismo”,
“abriu as portas do seu inconsciente”. Não há inconsciente nato. É o
discurso de Melanie Klein que enxerta o simbólico em Dick, permi-
tindo-lhe as primeiras simbolizações da situação edipiana. Dick ain-
da não tinha tido acesso à realidade humana, por isso não esboçava
nenhum apelo. É a introdução desta criança no simbólico que permi-
tir-lhe-á fazer articulações com o imaginário e com o real. É, neste
sentido que, do ponto de vista do sujeito, se pode falar de precedência
simbólica. É a entrada no Simbólico que constitui o sujeito.
56 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Melanie Klein VII


Convocado para o reino da palavra
Nadiá Paulo Ferreira

Finalizando a série de artigos sobre Melanie Klein e o caso


Dick, vamos tecer algumas considerações. Para Lacan, não há
dúvida de que esta psicanalista enfia simbolismo “com a maior
brutalidade no pequeno Dick” (Seminário 1, Os escritos técnicos
de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 83). A leitura de Lacan,
discordando da interpretação kleiniana, tem como ponto de parti-
da, como já vimos, a precedência do simbólico sobre o imaginá-
rio. Não podemos esquecer que, logo depois da morte de Freud,
passou a vigorar uma prática clínica que se baseava na teoria do
ego. Acreditava-se que existia um imaginário já estruturado, que
precisava ser trabalhado em uma análise para que se desencade-
asse a proliferação de identificações simbólicas.
A prática clínica de Melanie Klein não pode ser dissociada de
sua construção teórica. A brutalidade a que se refere Lacan está
diretamente articulada à noção kleiniana de ego, que confunde duas
estruturas, radicalmente, diferentes: a estrutura do sujeito e a estru-
tura do ego. Justamente em função desse equívoco, a grande contri-
buição da psicanalista, para a prática clínica com crianças, se situa
no lado do sujeito e não no do ego.
As intervenções de Melanie Klein, no tratamento de Dick, in-
troduziram essa criança no simbólico, o que possibilitou a consti-
tuição do seu eu e, portanto, a estruturação do seu imaginário.
Dick, que era um sujeito imerso no real, recebeu uma injeção de
simbólico. A partir desta inscrição no simbólico, Dick poderá vir
a se constituir como um sujeito, humanizando-se. Dick é convoca-
do para existir no reino da palavra e para iniciar sua viagem pelo
mundo. Dick se torna um ser de linguagem e, como tal, terá como
destino uma aprendizagem que se tece fio por fio na trama do
desejo que se sustenta em uma falta radical.
Psicanálise e Nosso Tempo 57

Desculpas esfarrapadas das almas


Nadiá Paulo Ferreira

O livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, publicado


em 1963, acaba de ser reeditado pela Companhia das Letras. Jorna-
lista, de origem judaica e nacionalidade alemã, exila-se nos Estados
Unidos, em 1941. O nazismo não é uma história dos antepassados,
mas uma experiência que não pode ser esquecida. E, justamente por
isso, em abril de 1961, na cidade de Jerusalém, lá estava Hannah
para assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, o oficial da SS que
comandou o assassinato em massa dos judeus na câmara de gás e,
em maio de 1960, é seqüestrado por um comando israelense em
Buenos Aires. Eichmann, um homem que entrou para a SS e fez
carreira, não é diferente dos outros que ofertaram o saber da ciência
ou o saber-fazer da arte para dar sustentação teórica e estética ao
extermínio étnico, como foi demonstrado no documentário sueco,
Arquitetura da destruição, dirigido por Peter Cohen, em 1989.
Terminada a guerra, com raríssimas exceções, todos os que
participaram dessa barbaridade sem limites se apresentam como
belas almas inocentes. Hannah Arendt fica perplexa diante de
Eichmann, quando diz que nada tem contra os judeus e que sim-
plesmente estava cumprindo a lei. A fala de Eichmann inaugura a
nova postura ética do final do século XX e início do século XXI.
Hannah, tentando dar conta dessa transformação ética, cria a teo-
ria da banalização do mal. Hoje, a lei do Outro, encarnada na
pessoa do Führer, despersonalizou-se nos liames burocráticos que
rondam a nova face das corporações econômicas, universitárias e
de serviços de informações. Hoje, sem o Führer, oferece-se o anoni-
mato em Nome-da-Lei. Aprimoraram-se os meios de proteção à
implicação do sujeito com seus atos. A ética do desejo é jogada no
lixo. Quem não ouviu o dizer das belas almas: — Eu também não
concordo, mas esta é a lei”? Alienado na lei (Outro), o não concor-
dante tomará todas as medidas necessárias para a sua aplicação...
58 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

1
Os nomes são fictícios.
2
Agalma em grego significa ornamento, enfeite. Jacques Lacan, no
Seminário 8, A transferência, publicado por Jorge Zahar, em 1992,
comentando um dos episódios de O Banquete de Platão, que é a chega-
da inesperada de Alcebíades, define agalma como jóia, objeto precio-
so, ou seja, como alguma coisa que remete para uma riqueza interior.
É exatamente neste sentido que uso o termo agalma.
Psicanálise e Nosso Tempo 59

NOSSO TEMPO
Psicanálise e Nosso Tempo 61

Nosso tempo ...


É preciso acreditar nele
Mário Bruno

De certo, é preciso encontrar instrumentos para compreender


este fim de século, com sua materialidade, seu espírito e seus dis-
cursos. Por que não afirmar que precisamos acreditar no nosso
tempo? Talvez, necessitemos de crenças legítimas para o próximo
milênio. Dir-se-ia que temos, na artéria do povo brasileiro, a nos-
sa memória e a do primeiro mundo – com seus erros e acertos. E,
em meio a tantas crises, idas e retornos, é fundamental acreditar
no instante em que vivemos. Urge que re-inventemos nossas uto-
pias, o nosso modo de pensar, viver e sentir. Re-criemos o nosso
povo, na sua alegria e beleza.
Há que ter sonhos. É nesse clima de apostas no porvir que
situaremos alguns dos textos de Marina Machado Rodrigues. Ela
nos fala de uma sentença de morte para a demagogia, para o cinis-
mo e vê no espírito do carnaval a oxigenação da capacidade de
sonhar. Marina reflete com elegância, humor e leveza sobre ques-
tões sérias como a perda da fantasia, a discriminação social, a
repressão e a misoginia.
Num tom crítico e grave, Cláudia Amorim, em seus artigos,
conduz as matrizes e os desenvolvimentos de suas formulações.
Ora percebendo a situação daqueles que perderam o direito à voz
e à vida; ora, localizando, entre o real e o fingimento, a intolerân-
cia que “existe de fato”. Assim, com clareza, procura possibilida-
des de espaços, em meio à razão cínica hodierna, para o desejo e
para a invenção do outro: direito à diferença e à dignidade.
O leitor mais atento perceberá a fina abordagem de As Crôni-
cas de Viagem, de Cecília Meireles. Leodegário Amarante de Aze-
vedo Filho vai direto aos interstícios do texto, dando maior visibi-
lidade à experiência poética da autora para quem “todos os dias
62 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

são novos e antigos e todas as ruas são de hoje e da eternidade”.


Talvez não seja excessivo declarar que Iremar Maciel de Brito
vê no teatro e na arte popular a grande celebração da vida. É isso
que nos encanta em seus artigos: o entusiasmo pela beleza da rusti-
cidade no aparentemente óbvio e simples. Iremar nos conduz a
viajar atravessando mundos mágicos, habitados por poéticos ato-
res de circo e cantores de embolada.
Saliento ainda o que nos diz Cláudio Cézar Henriques, ao ana-
lisar criticamente o uso abusivo, nos dias de hoje, da língua oral
em contextos diferenciados. Cláudio defende, sem dogmatismo,
um conhecimento maior da língua não coloquial e da materialidade
dada às palavras pelos grandes autores.
O que há de fascinante nos textos de Maria do Amparo Tavares
Maleval é a facilidade com que nos reconduz a períodos tão re-
motos e nos mostra o quanto são atuais. Por outras palavras, traz
para a ordem do saber formulável, em nosso tempo, valores, hábi-
tos, poesias, “cousas de folgar”, ... pertencentes a épocas distan-
tes e próximas.
Dois grandes temas são abordados com nitidez e estilo por Ma-
ria Helena Sansão Fontes: o leitor e a história. Sublinhando os im-
perativos do mundo atual, Maria Helena aponta falsos e verdadeiros
dilemas com os quais nos deparamos em nosso cotidiano. Muito
oportunamente, seus textos falam de uma compreensão après coup
da história e da paixão pela escritura como marcha na contramão.
O texto de Darcília Simões é com certeza instigante: ao anali-
sar a comercialização (fast food) do ensino, percebe, como fenô-
meno convergente, o descaso do poder em relação à pesquisa
universitária. Darcília encontra um fio bem humorado para fazer
entrar, no tratamento desses temas, problemáticas fundamentais
em nossos dias.
São diversas as questões apontadas por Cláudio de Sá Capuano,
assim como o âmbito de suas irradiações: a divulgação da literatura
lusófona, o risco de estar vivo, o choque entre o velho e o novo,
erros de interpretação que podem modificar uma vida ... Sublinhe-
se à clareza de seus argumentos e a poeticidade de sua escrita.
Entre tantas coisas que povoam a cultura dos anos 60 aos 90,
tem razão Ceila Ferreira Brandão em ressaltar a importância do
Sabadoyle. Quase um enigma: – como, durante anos, Plínio Doyle
conseguiu congregar tão diversas tendências? Evidentemente, este
artigo nos convida a uma laboriosa pesquisa.
Psicanálise e Nosso Tempo 63

A partir de uma referência à peça Arte, de Yasmine Reza,


Robson Lacerda Dutra aborda dois temas controversos: as difi-
culdades de valoração da arte e a definição dos limites de interferên-
cia na prática interpretativa.
Torna-se sugestivo verificar que, no início do século XX, um
mulato, homossexual, tenha conquistado, numa vida vertiginosa,
popularidade ( acompanhada, é claro, de muitos desafetos) . Mari-
ângela Monsores Furtado Capuano ressalta com justiça a impor-
tância de João do Rio, que despertado agora de seu silêncio, reve-
la-nos faces pouco conhecida de nossa “frívola city” .
É impossível refazer aqui o percurso apaixonante a que Marco
Antônio Coutinho Jorge nos convida. Poder-se-á dizer que nos
deu um belo artigo de crítica aos ideais imediatistas que recalcam,
no mundo moderno, o que há de virtual numa criança. Partindo de
duas obras, Amor, ódio e separação, de Maud Mannoni, e Cen-
tral do Brasil, filme de Walter Salles Jr., Marco Antônio, na abor-
dagem de seu tema, fala da beleza que pode surgir de um simples
encontro ao acaso.
Por fim, informaremos que os artigos, aos quais já nos referi-
mos, foram publicados anteriormente na coluna “Nosso Tempo”,
do jornal O Correio. Desejamos que estes escritos venham a ser,
dentro da diversidade de itinerários e abordagens, portadores de
mudanças e que, em toda a sua vitalidade mobilizadora, inspirem
novos sentimentos e idéias.
Psicanálise e Nosso Tempo 65

O milagre de Plínio Doyle


Ceila Ferreira Brandão

Certa vez, estavam Plínio Doyle, Carlos Drummond de Andrade


e outros confrades comemorando um dos aniversários do Sabadoyle.
Uma repórter se aproximou de Plínio Doyle e perguntou sobre o segre-
do de anos e anos de reuniões de escritores, críticos literários ou sim-
plesmente amantes da literatura e da cultura brasileiras em sua casa,
durante tantos sábados. Plínio respondeu: “Pergunte ao Drummond”.
Foi então que Drummond falou com a clareza de quem tem a chave
onde estão guardadas as palavras e seus sentidos: “Milagre do Doyle”.
Quem conhece Plínio Doyle compreende a verdade contida nas
palavras do Poeta. Somente uma pessoa como ele, com espírito de
perfeito anfitrião, poderia congregar intelectuais de variadas ten-
dências; personalidades tão diferentes; ideologias às vezes antagô-
nicas e manter a paz, a cordialidade e a perenidade das famosas
reuniões aos sábados.
Foi Raul Bopp, um dos expoentes do Modernismo no Brasil,
que, com a sensibilidade inerente aos poetas, criou o neologismo
Sabadoyle. Tais encontros surgiram a partir de uma visita de Carlos
Drummond de Andrade à casa de Plínio Doyle, com o objetivo de
consultar algumas publicações da vasta biblioteca de literatura bra-
sileira. Desde então, um sábado do ano de 1964, começaram a afluir
ao local vários apreciadores de livros e de uma boa conversa.
O Sabadoyle faz hoje parte da história da cultura e da literatura
brasileiras. Através das atas que, desde 1972, passaram a assinalar
esses encontros, podemos colher o testemunho e a palavra de eminen-
tes escritores e intelectuais como: Carlos Drummond de Andrade,
Pedro Nava, Raul Bopp, Mário da Silva Brito e tantos outros.
O Sabadoyle, através das atas, registrou vários momentos da
nossa literatura, a ponto de podermos afirmar que o estudo de tais
documentos enriqueceriam qualquer tese sobre o contexto cultural e
66 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

literário dos anos 60 aos 90.


Nos anos 90, o Sabadoyle assinalou o prestígio da literatura
produzida por mulheres. Entre os sabadoyleanos estavam escrito-
ras e intelectuais de indiscutível talento como Stella Leonardos e
Heloísa Maranhão. A primeira, grande poeta, escritora e
encorajadora de novos talentos. A segunda, escritora de uma obra
que é cada vez mais lida pelo grande público e estudada no meio
universitário brasileiro.
Plínio Doyle soube colecionar livros e lançou as bases para a
criação do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. Hoje, como em
outras épocas, faz amigos fiéis e preserva livros para todos aqueles
que amam a palavra escrita.
Psicanálise e Nosso Tempo 67

Do ancião ao labrego
Cláudia Maria Amorim

Quando Luís de Camões escreveu sua epopéia, o mundo se apre-


sentava em crise. Era a crise dos valores defendidos pelo Humanismo
e pelo Renascimento, contestados pela evidente instabilidade a que
estava sujeito o homem do século XVI. Na sua epopéia, esta crise
ocidental transparece pelo tom maneirista que o autor imprime à obra.
Podemos lê-lo, por exemplo, no episódio do velho do Restelo, canto
IV, de Os Lusíadas.
O velho é, indubitavelmente, um dos personagens mais dignos
da epopéia. É dele a voz que, destoante, tem a coragem de condenar
os desmandos da empresa expansionista, desvelando o seu real ca-
ráter de “vã cobiça”, “vaidade” e “glória de mandar”. Mesmo con-
denando a expansão ultramarina, o velho, “nas praias, entre a gen-
te”, é ouvido com nitidez pelos navegantes. É apresentado pelo en-
tão narrador deste canto (Vasco da Gama) como alguém de “aspeito
venerando” cujo saber é “só de experiências feito”. Fala durante
dez estrofes do poema e, no momento mesmo em que as naus come-
çam a se afastar, continua sua fala, ouvida ainda pelos navegantes
já no “líquido elemento”.
Na esteira destes mares tantas vezes navegados, vamos encon-
trar na obra Memorial do Convento, de José Saramago, um diálogo
com o texto camoniano do qual não poderia faltar a reatualização
do episódio do velho do Restelo. O século XVIII, época de constru-
ção de conventos (e de passarolas), é certamente um período bastante
conturbado em Portugal. Ideais iluministas dividem o cenário com os
autos-de-fé da Inquisição num momento marcado pelas contradições,
presentes, inclusive, nas hesitações do próprio rei D. João V.
Na construção do convento de Mafra, durante o seu reinado,
trabalham os homens não-assinalados, esquecidos pela história, e
sem nenhuma possibilidade redentora na Ilha dos Amores. Na epo-
péia em que se transforma a construção deste convento, o velho
também aparece para denunciar os desmandos do rei e da pátria
portuguesa, metida já numa “austera, apagada e vil tristeza”. Po-
rém, diferentemente do que acontece no episódio camoniano, o ve-
lho que aqui comparece não consegue ser ouvido e, por tamanha
ousadia, é silenciado. Também este velho, entre as gentes, levanta
sua voz e conhecemos que “é um labrego de tanta idade já que o não
68 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

quiseram”. Do alto de um valado, “púlpito de rústicos”, revela o


que vê, naturalmente que também com um saber só de experiências
feito: “Ó glória da mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem
justiça.” Após isto, dá-lhe o quadrilheiro uma cacetada na cabeça,
até que o velho caia por fim morto.
De modo diverso ao que acontece no texto camoniano, o velho
não tem ou não é apresentado como alguém de aspecto venerando.
Ao contrário, é um labrego, um aldeão, rejeitado para o trabalho
pela idade. Dele sabemos ainda que, apesar da avançada idade, con-
segue levantar a voz, não se intimida diante do que vê.
No entanto, não o deixam falar. É silenciado covardemente e o
pouco que consegue dizer nem chega aos ouvidos do rei, sentado em
seu trono, alheio àquilo que se passa nesta nova epopéia.
Dois momentos, dois velhos que sobre sua época se manifestam.
No fim do conturbado século XVI, um velho, digno pelo seu saber de
experiências feito, consegue pelo menos ser ouvido; no século XVIII,
outro velho, igualmente sábio pela sua avançada idade, pela sua co-
ragem e dignidade de não se calar diante do que vê, outro velho,
dizíamos, tenta falar. Mal pronuncia as primeiras palavras, já o im-
pedem os quadrilheiros do rei. Parece que, com o passar dos séculos,
considera-se menos o saber que se adquire com a experiência, com a
idade. O fim do nosso que o diga se de aposentados, de inativos não
só impedem a fala como desejam roubar-lhes o pão e a dignidade.
Psicanálise e Nosso Tempo 69

Impasses da cultura do individualismo


Claudia Maria Amorim

No último feriado, fui assistir ao filme A vida é bela, de Roberto


Benigni, e, de fato, não me surpreendi com o sucesso que vem fazen-
do junto à opinião pública. O filme é uma fábula, como nos adverte o
narrador, sobre a história de uma família judia italiana que, durante o
nazi-fascismo europeu, vai para o campo de concentração. Estranha
proposta esta de se tratar tal temática como fábula. Mas, aberta às
propostas, acompanhei atenta o desenrolar da trama.
Algo, porém, soava estranho, incompatível. Será plausível, para
não entrar no campo da ética, haver espaço para a fábula, para o
riso, ante uma situação profundamente dramática como aquela? Se
lembrarmos que o riso é muitas vezes corrosivo, sarcástico,
demolidor e, portanto, crítico, tudo parece se explicar.
No entanto, a sensação de inquietude permanece e é agravada
em algumas cenas iniciais, como aquela em que o menino, ao ler
uma tabuleta numa loja da cidade, pergunta ingenuamente ao pai o
porquê da proibição da entrada de judeus e cachorros na tal loja.
Indagado, o pai (inocente?) responde ao filho que também na sua
loja ficaria vedada a presença de visigodos e aranhas. Atrás do ab-
surdo da resposta, o preconceito, o desrespeito às diferenças. A
intolerância parece ser algo “normal”. Tudo é uma questão de tabu-
letas. Seria engraçado, mas não é.
Se o riso pode ser corrosivo, neste filme tenuemente adquire
essa função. A cena em que o então garçom invade a escola pública
para conquistar a professora por quem está apaixonado e exibe o seu
corpo magro e frágil é interessante porque desconstrói, pelo avesso, o
discurso da raça ariana. Entretanto, tudo se perde à medida que os
acontecimentos se sucedem e restam apenas os esforços patéticos do
pai que tenta convencer o filho de que o campo de concentração é o
lugar de uma grande gincana da qual sairá um vencedor.
O mundo não é um grande jogo em que todos fingem a intole-
rância. Ela existe de fato. Está hoje na guerra da Iugoslávia, nos
massacres ruidosos e silenciosos de milhares de pessoas em vários
lugares deste planeta. Àquela época, é responsável pelo maior
genocídio da história da humanidade. Mesmo desejando salvar o
próprio filho dos horrores da guerra, inconcebível é a maneira pela
qual tenta fazê-lo. A vida só pode ser bela quando excluímos os
70 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

outros, a dor, o sofrimento (nosso e alheio) dos nossos corações e


mentes? Apela-se para a célula familiar, para o amor paterno e tudo
se resolve? Os outros, os que estão à nossa volta, não importam
porque simplesmente não sabem jogar?
A nossa contemporaneidade fim-de-século parece querer provar
que tudo é uma questão de criatividade individual. Ao fim e ao cabo,
o que conta é a grandiosa imaginação do homem, capaz de fazê-lo
sobreviver até ao holocausto. Basta não se render à tristeza. Sobrevi-
verão os imaginativos, os criativos, aqueles que, apesar de tudo, ain-
da acreditam que a vida é bela.
Ledo engano. Não há salvação possível fora da realidade, fora
do coletivo. Não se pode fechar os olhos para o que acontece em
torno. Tampouco é permitido ser ingênuo, inocente. Num tempo
partido, é preciso tomar partido.
Enquanto o pai fingia jogar e fazia o filho acreditar neste jogo,
o nazismo não brincava. As conseqüências deste terrível momento
continuam na nossa memória e não se pode, sob o risco de se bana-
lizar as atrocidades, encarar um genocídio como uma fábula. As
fábulas fantasiam o nosso imaginário e constroem um final feliz.
O menino se salva, acredita que venceu. Mas os crimes da nossa
História permanecem e não podemos mudar-lhes o final.
Psicanálise e Nosso Tempo 71

Que país é este?


Cláudia Maria Amorim

Tempo de Copa do Mundo. O Brasil pára... olhos postos na


telinha ou no telão, conforme as possibilidades, ouvidos presos à nar-
rativa ligeira do locutor. De leste a oeste, do Oiapoque ao Chuí, todos
movidos pela mesma paixão patriótica, vestidos, mesmo que simboli-
camente, de verde e amarelo.
A televisão nos informa a cada minuto, ainda que em remotíssimo
caso de nada quiséssemos saber, sobre os fatos relacionados à sele-
ção, à família dos jogadores do nosso país e também dos outros.
Somos bombardeados por esse súbito sentimento cívico que
unifica (será mesmo?) toda a nação. O aparato tecnológico que acom-
panha a Copa do Mundo na França é um show à parte.
Chegamos às minúcias tecnocráticas de poder dizer estatisti-
camente quantas vezes o Brasil jogou contra determinado país,
em que dias, quantos gols foram marcados por tal jogador, quantos
minutos aquele artilheiro pegou a bola em campo etc. Números,
imagens que tomam a tela e saturam os olhos e ouvidos dos cida-
dãos, atingindo corações e mentes. Embotados por estas notícias,
chegamos a esquecer de muitas outras, talvez, até de nós mesmos.
Somos o país do futebol - desse fato ninguém se esquece.
Ainda que a seleção brasileira este ano esteja deixando a desejar,
esperamos ansiosos ver confirmada uma das nossas únicas certe-
zas. Talvez nada mais nos reste a dizer do Brasil.
Passada a euforia coletiva, voltamos a nossa rotina e
embotamo-nos agora de nossa vida extremamente individualista.
Esquecemo-nos e esquecidos ficamos da pátria, do coletivo.
Alguns envergonhar-se-ão até do fato de viverem neste país mi-
serável, desigual; outros, distantes de qualquer sentimento patriótico,
envolvidos com seus próprios problemas, ocupar-se-ão de qualquer
coisa, até que o sistema fabrique algo de interessante para entorpecer
os sentidos. As bandeiras, fitas, camisas, sabe-se lá que fim terão e
enquanto isso a mídia busca outro assunto de interesse nacional. Como
será o fim da novela? Qual o destino dos personagens?
Gostamos tanto de futebol e ainda não aprendemos que é pos-
sível virar o jogo que tem o mesmo placar há quase cinco séculos.
Enquanto corações e mentes são tomados pelo ufanismo, enquan-
to vibramos com as jogadas da seleção, as jogatinas, daqueles que
72 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

só têm como pátria os próprios interesses, continuam a reinar so-


beranas, num jogo perverso, já conhecido por alguns de nós.
O futebol é uma das paixões dos brasileiros - isso é indiscutí-
vel. Normalíssimo é, portanto, a mobilização do país em torno da
bola que rola na França. O que não é real é o fato de vivermos em
função disto durante um mês inteiro, vestindo verde e amarelo,
para depois desligarmo-nos de tudo que seja realmente de interes-
se coletivo e social.
Psicanálise e Nosso Tempo 73

Mário de Sá-Carneiro e o desejo do Outro


Cláudia Maria Amorim

Há 82 anos morria Mário de Sá-Carneiro, escritor português,


contemporâneo de Fernando Pessoa e autor de uma obra que inclui
poesia, romance, contos, teatro. Com Pessoa e outros nomes como
José Almada Negreiros, Raul Leal, Santa-Rita Pintor, Luís de
Montalvor e Ronald de Carvalho, ele criou a revista Orpheu, que
teve importância capital na inauguração e consolidação do Moder-
nismo Português.
Embora tenha vivido tão curto tempo, Sá-Carneiro deixou-nos
uma obra coerente em sua amargura e em sua busca por um significado
maior para a arte. Foi daqueles que recusou veementemente a perda de
uma espécie de superioridade que a arte deveria guardar diante da nor-
malidade burguesa do mundo.
Conhecido basicamente pela sua poesia, cuja expressão apre-
senta traços do Decadentismo do fim do século XIX, Sá-Carneiro é
igualmente criador de uma prosa bastante interessante e medular-
mente lírica. É A confissão de Lúcio, sem dúvida, sua obra-prima
como ficcionista. Tal narrativa traz-nos de algum modo o teor trágico
da sua existência, tendo o poeta morrido sem completar os 26 anos.
Nesta narrativa, Lúcio, personagem principal, narra os aconte-
cimentos que antecederam o crime do qual foi acusado e pelo qual
passou preso os últimos dez anos, sendo que logo no início da obra
desenvolve uma ambigüidade em seu relato ao afirmar que deseja
fazer uma exposição clara de fatos, declarando mais adiante, porém,
que a sua confissão resultará decerto a mais incoerente, a mais
perturbadora, a menos lúcida.
Ora, mesmo distanciado dez anos dos fatos que culminaram com
a sua prisão, Lúcio ainda titubeia diante daquilo que seria a verdade,
sendo que esta pode ser inverossímil como nos adverte o personagem.
Assim, a narrativa instaura-se sobre o signo da razão - “exposição
clara dos fatos” - e da loucura - “confissão mais incoerente, mais
perturbadora, menos lúcida”, o que se confirmará no decorrer desta,
especialmente quando se forma o triângulo amoroso Lúcio, Ricardo e a
misteriosa Marta.
Num jogo de espelhos, esta obra traz-nos, entre outras coisas, o
desejo de invenção de um outro, desdobramento narcísico do eu, uma
espécie de heteronímia sem o artifício, sem o lúdico fingimento
74 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

pessoano. Tal desdobramento apresenta-se também em muitos de seus


poemas, como no de n.º 7: “Eu não sou eu nem sou o outro,/ Sou
qualquer coisa de intermédio;/ Pilar da ponte do tédio/ Que vai de
mim para o Outro.”
Oscilando entre estas imagens, o poeta representa, talvez, a
indefinição do próprio país que revia desde o século anterior a sua
imagem de nação desbravadora de mares e continentes, e constitui-
se numa espécie de síntese trágica de um processo de autognose
inaugurado por escritores portugueses do século anterior.
Sujeito de existência trágica, Sá-Carneiro inscreve-se em suas
obras, e n‘A confissão de Lúcio em particular, e sublinha as tênues
fronteiras entre a sanidade e a loucura, resultantes de sua inadaptação
à vida cotidiana. Tal experiência, como se sabe, o levará ao suicídio
na distante Paris, como se fora um dos seus personagens.
Psicanálise e Nosso Tempo 75

Sociedade oral... por escrito...


Claudio Cezar Henriques

Quase toda notícia divulgada a respeito da educação no Brasil


choca, horroriza a sociedade, que se escandaliza com os resultados,
com as práticas e com os números. De vez em quando, algumas
dessas notícias se reportam ao ensino de Língua Portuguesa, e é
desse tema que vamos tratar.
Não há quem não reconheça que, hoje em dia, as pessoas já
não sabem mais se expressar, falam um português precário e escre-
vem – quando muito – numa língua repleta de erros e barbaridades.
Todavia, o sucesso alcançado pelas muitas seções de “tira-dúvidas
de linguagem” nos nossos jornais é uma comprovação de que, ape-
sar do desleixo generalizado em relação aos padrões de linguagem,
ainda existe o sentimento da necessidade de se usar corretamente a
língua nacional. Se bem que, de um lado, temos de ter cuidado para
não transformar esse sentimento numa fixação hipocondríaca ou
policialesca, segundo a qual precisamos retornar à era do “certo ou
errado”, em detrimento do bom senso e do reconhecimento da ade-
quação de certos usos mais recentes. Isto significa, de outro ponto
de vista, que também é perigoso e deletério o liberalismo exagerado
quanto ao emprego de flexões, concordâncias e regências nitida-
mente desvirtuadas e vulgares.
O círculo falar, ler e escrever envolve, portanto, uma atitude
de vida. Lamentavelmente, o que se observa em nossa sociedade
hoje é um privilégio da oralidade, com todos os prós e contras que
isso representa. Daí decorre a natural, mas equivocada, transposi-
ção da oralidade para o campo da leitura e da escrita. Livros e
textos em língua oral não são piores do que nenhum livro ou ne-
nhum texto. Mas é esta a realidade. Coleções de obras literárias
acompanham e alavancam a venda de jornais e de revistas. Macha-
do, Alencar, Saramago, Drummond: todos por apenas três reais...
Tanta gente comprando, quanta gente não lendo... A sedução
consumista, infelizmente, não combate o mal da oralidade na escri-
ta, que só pode ser enfrentado com a leitura de textos em linguagem
não coloquial. Afinal, escrever significa deparar-se com a lingua-
gem em sua concretude, já que a escrita dá corpo às palavras, mate-
rializa a língua. Por isso, é inadmissível que um instrumento tão
essencial seja mal conhecido e mal utilizado.
76 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Enquanto nossa sociedade não exercitar na plenitude todos os


matizes desse círculo, continuará complicada sua autoconstrução.
E esse circuito precisa envolver família e escola de maneira unívoca.
A cidadania de que tanto se fala passa por essa estrada, que, por
enquanto, como diz a canção, ainda não vai dar em nada...
Psicanálise e Nosso Tempo 77

História de um coração roubado


Cláudio de Sá Capuano

No último dia de aula do curso primário, o menino teve a mai-


or decepção de sua vida. Roubaram-lhe o livro O coração. A obra,
do italiano Amicis, que falava justamente da vida escolar de alunos
de sua idade, tinha sido um presente do pai, que deixara na folha de
rosto uma dedicatória. Entretanto, pior que ter perdido o livro que
tanto cobiçara e amara foi descobrir que ele se encontrava sob a
pasta de Plínio, o melhor aluno da classe, aquele que, como alguns
dos personagens do livro, era justamente o melhor dentre todos os
alunos, o perfeito, o modelo a ser seguido.
Este é o enredo de uma crônica chamada “O coração rouba-
do”, composta pelo escritor brasileiro Marcos Rey. Em um texto
breve e denso, o autor narra o que uma forte decepção pôde fazer
com a visão de mundo de um menino que ainda sabia crer nos ou-
tros. O roubo d’O coração foi, para ele, inúmeros outros roubos.
Além do presente paterno, que ele, por sinal, recuperou do compa-
nheiro de classe sem denunciá-lo, havia perdido também a inocên-
cia, essa sim irrecuperável, bem como a capacidade de confiar nas
pessoas, de ter alguém como modelo, de crer na humanidade enfim.
O ladrão? Tornou-se um advogado de respeito, chegou a
desembargador. Enganava a todos, menos ao narrador, que conhe-
cera seu lado mais sombrio ainda na infância. Sempre que podia,
tentava desfazer com amigos ou estranhos a imagem respeitável
que o antigo colega de classe construíra.
Quarenta anos mais tarde, em uma mudança, caído de uma estan-
te, O coração veio-lhe às mãos. Nunca mais o tinha aberto. Tamanha
fora a sua decepção, desgostara-se igualmente do livro. No entanto, os
quarenta anos que o separaram do episódio que marcaria toda a sua
vida suscitaram outros sentimentos, a saudade, a vontade de reler a
dedicatória do falecido pai. Ao abrir o livro, não a encontrou, mas na
página seguinte, numa caligrafia desconhecida, havia as palavras: “Ao
meu querido filho Plínio, com todo amor e carinho de seu pai.”
Encerrado o texto, abre-se uma reflexão. O roubo que quaren-
ta anos antes parecia tão claro, ante tão forte evidência, nada mais
fora que um erro de juízo, uma leitura mal feita de uma situação
aparentemente banal, mas que pôde transformar um menino crédu-
lo em um homem incapaz de se sensibilizar ante a virtude do outro.
78 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Podemos fantasiar, já que tudo afinal é ficção, uma vida pontuada


por julgamentos distorcidos, feitos por um leitor formado, desde a
infância, no equívoco. Podemos principalmente fantasiar a sensa-
ção que teria tido esse menino velho ao descobrir que jamais saberia
quem de fato lhe roubara o livro, tendo que enxergar em si o ato que
julgara ser do outro. Que sensação teria tido ao se dar conta de que
era ele mesmo o responsável pela maior decepção que tivera na
vida? Ele sim, o ladrão de seu o próprio coração.
Psicanálise e Nosso Tempo 79

A nossa pátria é a Língua Portuguesa


Cláudio de Sá Capuano

A IX Bienal do Livro, ocorrida neste final de abril no Rio de


Janeiro, teve Portugal como país homenageado. A numerosa dele-
gação portuguesa contou com a presença de José Saramago, nosso
primeiro Prêmio Nobel de Literatura.
Digo nosso prêmio como forma de valorizar a Língua Portu-
guesa, em detrimento das divisões políticas nacionais. Podemos lem-
brar de Fernando Pessoa afirmando: “A minha pátria é a Língua
Portuguesa”. É o que fez José Saramago várias vezes durante a
semana em que esteve no Brasil. O escritor defendeu a realização de
bienais, cujo objetivo primordial seria tornar visíveis os escritores
de língua portuguesa, aí incluídos obviamente os africanos e asiáti-
cos, além dos brasileiros e portugueses, dentro da própria comuni-
dade lusófona. Tais eventos poderiam ser sediados nos diversos países
em que o português é falado.
Segundo Saramago, a leitura de autores brasileiros por parte
da população portuguesa simplesmente não existe. Podemos afir-
mar o mesmo com relação à Literatura Portuguesa no Brasil. Se
excluirmos da massa de leitores os universitários de Letras e, tal-
vez, os de História e Filosofia, o próprio Saramago não é tão lido no
Brasil. O grande assédio do público a que o escritor sofreu em todos
os locais em que passou demonstra no mínimo duas coisas: o prê-
mio Nobel foi capaz de torná-lo conhecido e festejado por todos no
Brasil, até por parte dos que nunca o leram; os demais escritores,
presentes na comitiva, ficaram totalmente ofuscados pela presença
de Saramago. Ele próprio alertou para este fato em sua fala no
CCBB, no último dia 24 de abril. Autores consagrados como Augusto
Abelaira e Hélder Macedo, para citar apenas dois entre tantos ou-
tros, muito pouco apareceram na imprensa. Ao menos as universi-
dades, como foi o caso da UFRJ e da UERJ, promoveram encontros
entre os escritores e os estudantes. No caso específico da UERJ,
mesmo sem a presença de Saramago, um grande auditório perma-
neceu lotado por estudantes e professores durante cerca de duas
horas, o que demonstra que é possível despertar o interesse do pú-
blico quando se promovem eventos.
Tenho certeza de que muitos dos que viram de perto um autor
conhecido do público universitário como Abelaira, saíram do evento no
80 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

mínimo entusiasmados com a bela fala e a surpreendente poesia do


jovem José Tolentino Mendonça, um dos vários presentes no evento.
Em suma, é de extrema pertinência a sugestão de Saramago, que
muito sabiamente reconhece que “ uma andorinha não faz primave-
ra” e que ele, tampouco, se parece com uma. A divulgação da cultu-
ra lusófona é antes de mais nada uma necessidade para que os fa-
lantes do Português se conscientizem da importância de sua própria
língua na conformação de sua identidade cultural e uma obrigação
das autoridades para com os seus cidadãos.
Psicanálise e Nosso Tempo 81

“Viver é muito perigoso”


Cláudio de Sá Capuano

Certa vez, o homem da cidade, na ânsia de comunhão com a


natureza, partiu para uma expedição no campo. Reuniu tudo o que
julgou necessário e seguiu rumo à nova aventura. Com o propósito de
percorrer trilhas, alcançar solitário o topo de elevações na esperança
de vislumbrar paisagens inusitadas, instalou-se precariamente em um
vilarejo, colheu informações sobre a natureza local e ouviu, antes da
partida, uma aviso severo:
– Cuidado com o cascavel!
Ouviu a advertência e a esqueceu, mas ela passou a ser sua
preocupação subliminar nas incursões que fazia. Ele, que buscava,
antes de tudo, talvez mesmo sem saber, a tranqüilidade, via-se ante
uma situação sempre iminente, que não sabia quando, como ou mes-
mo se aconteceria, mas que poderia ser fatal.
Passou a alternar visitas esporádicas ao campo a sua rotina de
homem burocrático. Cultivou o hábito de anotar em uma caderneta
as impressões que colhia. Registrava fatos, rascunhava paisagens,
traçava perfis de quem eventualmente encontrasse e julgasse digno
de ingressar na sua memória.
Tudo transcorria naturalmente até que houve um encontro es-
pecial: o homem do campo cruzou seu caminho. Movido por uma
curiosidade implacável, que só os mais simples possuem, o homem
do campo foi puxando da caderneta de memórias do homem da
cidade o fio que revelava experiências quase íntimas, nunca antes
reveladas, porque pessoais.
Ao perguntar o motivo de tais visitas a lugares tão ermos, o
homem da cidade, valendo-se da honestidade dos que ignoram, la-
conicamente apontou razões simples, aparentemente sem importân-
cia alguma. O homem do campo, vendo-se na necessidade de tam-
bém revelar algo de si, disse-lhe que ele também, que nunca saíra
dali, onde nascera, tinha vontade de conhecer outros lugares, uma
cidade grande de verdade e ver o mar de perto, mas disse também
que achava que jamais conseguiria realizar o desejo, porque tinha
medo do que poderia encontrar além do que buscava. Tinha medo
da violência que via pelos noticiários, da quantidade de pessoas que
cruzavam as ruas, da velocidade que imperava em tudo por lá.
O homem da cidade, não percebendo naquelas situações que
82 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

vivenciava quotidianamente um perigo real, argumentou, lembran-


do-se da advertência que ouvira na sua primeira vez no campo,
tentou argumentar que ali sim é que havia perigo. Mas o homem do
campo sorriu e disse:
– Cascavel não é perigo, basta não passar perto dele! Ouvindo
o chocalho, pule para trás. Em último caso, é só matar.
Naquele momento, o homem da cidade entendeu que não havia
jeito: a vida era mesmo, de uma forma ou de outra, como havia lido
um dia, realmente muito perigosa.
Psicanálise e Nosso Tempo 83

Nostalgia do progresso
Cláudio de Sá Capuano

Certa vez escutei um comentário de uma senhora bastante


idosa e humilde que me levou imediatamente ao riso. Vendo um
gato e um cachorro juntos, remexendo um saco de lixo, ela, muito
admirada, disse:
– O mundo está mesmo mudado. Veja só isso! Antigamente um
cachorro não podia ver uma gato que era uma briga danada...
Tempos depois lembrei-me dela, quando vi um garotinho de
uns três anos de idade acenando eufórico para dois policiais dentro
de uma rádio-patrulha, como se eles fossem a encarnação de super-
heróis. Na época em que ainda se dizia rádio-patrulha, patrulhinha
ou joaninha e elas ainda eram pintadas de preto e branco, as crian-
ças morriam de medo não só de policiais, mas também de soldados
e talvez até de bombeiros! Senti-me, em parte, como a velhinha
vendo a cena do cão e do gato. Sinto o mesmo quando ouço os
idosos dizerem que, hoje em dia, as crianças já nascem de olho
aberto, quando antigamente levavam muito tempo, depois de nasci-
dos, com os olhos fechados.
Observando esse final de século, podemos claramente perce-
ber que não são as transformações mais óbvias que se operaram no
dia-a-dia do cidadão comum o que houve de mais característico no
século XX. Com certeza, é a velocidade das mudanças que mais
nos impressiona. As pessoas que nasceram no primeiro quartel do
século não apenas viram, por exemplo, o surgimento do automóvel,
mas a sua súbita difusão a partir da década de 50, acompanhada de
um bárbaro aumento da velocidade que podem alcançar. Isto já ha-
via sido prenunciado no final do século XIX, quando do surgimento
do bonde elétrico que atropelava transeuntes desatentos pela falta
do costume de se depararem subitamente, ao virar uma esquina,
com um veículo tão inusitado e veloz.
Em pouquíssimos anos, vemos surgir a nossa volta uma série de
facilidades que o avanço da tecnologia nos proporciona com uma
velocidade tal que o homem, seja ele letrado ou não, muitas vezes não
consegue sequer acompanhar. É fácil constatar isso quando vemos os
idosos de hoje subindo as escadas convencionais de um shopping,
enquanto os jovens utilizam a escada rolante, projetada justamente
para poupar os mais velhos. Quando o assunto são as caixas eletrôni-
84 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

cas dos bancos, o choque entre o velho e o novo é ainda mais gritante,
como constata prontamente a fila de jovens impacientes.
Mas os velhos de hoje, que muitas vezes rejeitam um mínimo do
que a evolução tecnológica pode oferecer, formam um grupo que
aos poucos vai desaparecendo. Os idosos de amanhã são hoje crian-
ças que na sua maioria tomam contato muito cedo com boa parte do
que o progresso tecnológico tem a oferecer. Tento imaginar que sen-
sação o próximo século deixará nos idosos dos seu últimos anos. Os
idosos, nossos netos ou bisnetos, os velhos do final do século XXI.
Psicanálise e Nosso Tempo 85

Língua Portuguesa vira balcão de bobagens


Darcília Simões

Aproveitando a lacuna deixada pelos governos, o comércio


entra em cena e faz um gol: a população teenager, vestibulanda,
passa a ser atendida em língua portuguesa no mesmo balcão onde
compra fast food. Assim a multinacional e o professor de português
passam na prova da boa política.
Isto está acontecendo no Brasil. Uma notável agência comercial
estrangeira entrou a vender sanduíches de língua portuguesa e, de caro-
na, a gestar um novo astro: o professor de português e hambúrguer.
Não discutimos aqui o investimento na divulgação de fatos
gramaticais, no entanto, na qualidade de especialista não só no ver-
náculo mas também em metodologia do ensino de línguas, questio-
namos a impropriedade da forma como tais fatos são veiculados.
Num estágio em que a ciência lingüística e a teoria da variação
vêm promovendo a discussão do “erro” e do “acerto” em língua, o
professor da moda, o do Mc Donald’s, repudia formas como alavancar,
acessar, otimizar (cf. O Globo, 2º caderno - 31-10-97- fl. 1), as quais
comprovam não só a dinâmica da língua mas, sobretudo, a produtivi-
dade do sufixo -ar na vernaculização dos empréstimos lingüísticos.
Este mesmo docente admite o aportuguesamento de hamburguer
e ensina a pluralizar o termo em hambúrgueres. Será casuísmo
lingüístico ou trauma anti-tecnológico. No meio dessa onda, quem
sai perdendo é o consumidor de sanduíches gramaticais que vai con-
tinuar espalhando por aí que a Língua Portuguesa é muito difícil,
pois tem mais exceções que regra.
Outra incoerência: “Falar corretamente não é frescura de quem
não tem o que fazer. Há muita hipocrisia nessa coisa de deixar a
língua de lado” (sic). Os termos que grifamos não cabem no dizer de
alguém que prega a norma culta, pois são usos em sentido gírio: fres-
cura tomado como requinte desnecessário é coisa como hiperônimo
(ou vicário) de mania, hábito etc.
Apesar de concordar com o “co1ega” quanto à falta de domí-
nio do vernáculo por parte de letrados (?) diplomados (até douto-
res), não creio que “consertar” letras de música ou propagandas de
TV seja a solução para um domínio eficiente da norma padrão do
português no Brasil. Pode ser, entretanto, uma saída para uma
melhoria salarial, pois no desespero da baixa remuneração é bastante
86 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

válido que um docente, após 20 anos de exercício profissional, decida


tornar-se um camelô (ou marreteiro, como se diz em Sampa) dos
fatos gramaticais, seguindo a moda de comercia1izarem-se mercado-
rias exóticas tais como bichos de estimação eletrônicos (os tamagoshis).
Help: dicionário de português? Sabe-se que há grandes equí-
vocos neste país, onde uma sem-terra - promovida a sem-roupa -
torna-se estrela de comerciais e de TV; onde o ridículo vende milha-
res de discos; onde o fumo é combatido com propagandas de cigar-
ro cada dia mais atraentes. E pasmem! Intitula-se Help o mais novo
dicionário de Língua Portuguesa. Em suma: é a terra do absurdo ou
o paraíso do non sense.
Na trilha desse festival de “loucuras”, lembramos declaração
do ex-presidente e acadêmico José Sarney para a Rainha dos Baixi-
nhos, quando do lançamento do Dixionário da Xuxa: “Você é a
melhor professora do Brasil!”
E ficamos num impasse entre duas correntes: por um lado, um
programa de TV leva sua apresentadora a receber o laurel de a
melhor professora do Brasil; por outro, um professor contratado
para vender fast food, em venda casada com informações sobre o
idioma nacional, ganha espaço na mídia como nunca o tiveram per-
sonalidades notáveis do porte de Ingedore Koch, Magda Soares
Becker, Walmírio Macedo e outros respeitáveis mestres conhecidos
internacionalmente no âmbito do ensino e da pesquisa.
Concluímos, então, que os conceitos correntes de “professor”,
“ensino”, enfim, “domínio idiomático”. carecem de revisão urgente,
caso contrário, Shakespeare que nos perdoe a horrível paráfrase: há
algo de podre no “reino” brasilis.
Aproveitamos este episódio de merchandising do português e da
figura do professor para fazer uma pergunta a um interlocutor muito
especial: Professor Fernando Henrique, quando é que o magistério na-
cional vai ser remunerado dignamente (sem precisar vender hambúr-
gueres, por exemplo)? Pois só com uma escola eficiente os brasileiros
que apóiam o Plano Real saberiam defender-se sozinhos das propagan-
das, já que estariam realmente preparados para o exercício da cidada-
nia, não acha?
Psicanálise e Nosso Tempo 87

Teatro vivo
Iremar Maciel de Brito

O teatro é uma medusa que aponta suas cabeças em várias dire-


ções. Cada uma delas, porém, tem uma cara própria. Sorrindo ou
revelando tristeza, atrai e assusta ao mesmo tempo, trazendo a possi-
bilidade do prazer e a ameaça do perigo. Todas, no entanto, preten-
dem atingir um mesmo alvo. Mas, nem sempre isso é possível.
O espectador, esse alvo fixo, parece esperar tudo, sentado em
sua poltrona. Mas isso é apenas uma aparência, pois em sua via-
gem mental tem a mobilidade do vento. Por isso é difícil para o
espetáculo cravar nele seus dentes e inocular o veneno. Quando isso
acontece, rompe-se, definitivamente, a barreira entre o palco e a
platéia, criando a celebração teatral, uma viagem com o encanto da
vida. É nesse momento que a arte do espetáculo atinge sua plenitu-
de, criando o teatro vivo, um jogo do homem com as forças criado-
ras da vida. Assim, acaba o faz-de-conta e instaura-se a verdade.
De acordo com seus propósitos artísticos, o teatro vivo pode ter
sua ênfase na emoção, como prediz a estética aristotélica; na razão,
criando um distanciamento crítico, caminho seguido por Brecht; ou,
ainda, no puro ludismo das técnicas teatrais. Portanto, não depende
do estilo estético a criação do teatro vivo, mas de um relacionamento
verdadeiro entre o oficiante da cerimônia e o crente. Mas, para que
haja verdade nesse relacionamento, é necessário que ele aconteça no
presente, pois o teatro é uma arte que se inscreve no tempo. Infeliz-
mente, num grande número de espetáculos, esse relacionamento é
cristalizado no passado, impedindo sua realização no presente.
No entanto, outros espetáculos conseguem esse relacionamento
vital entre palco e platéia. E, apenas para citar um exemplo recente,
entre outros que conseguiram atingir esse objetivo, apontamos o
espetáculo “Desobediência civil”, de Denise Stoklos, apresentado
em dezembro de 1997, no Teatro Nelson Rodrigues, onde a parceria
entre o palco e a platéia se estabelece a partir de um relacionamento
no tempo presente. Quebra-se a ilusão do tempo passado e tudo
acontece aqui e agora. Uma elaborada criação artística e um relaci-
onamento verdadeiro com o público criam um teatro vivo, contrário
a tudo aquilo que é morto na arte teatral que não persegue esses
objetivos. Assim, a medusa acerta seu alvo.
88 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

O teatro popular no circo


Iremar Maciel de Brito

Do mamulengo nordestino à majestosa encenação da Paixão


de Cristo, o teatro popular abre-se como um leque de gêneros e
estilos. Nele, estão contidas representações folclóricas como o
Bumba-meu-boi ou a Nau Catarineta, mas também o teatro de rua,
feito por artistas anônimos em qualquer praça da cidade.
Entre as estruturas tradicionais do teatro popular, o drama de
circo gozou de grande prestígio na época anterior ao domínio da
televisão. Era ele que enchia de poesia as noites das pequenas cida-
des onde os circos chegavam.
Quando o apresentador anunciava o “drama” uma deliciosa
expectativa tomava conta da platéia. Todos já haviam visto aquela
encenação no ano anterior, com o mesmo elenco, usando o mesmo
surrado figurino e movimentando-se em antigas marcações que há
muito haviam perdido o frescor criativo. Mas mesmo assim o espe-
táculo dominava o público, fazendo-o mergulhar por um momento
num sonho diferente do sonho da realidade.
Quando um ator retorcia o rosto numa careta que lembrava medo,
isso era o suficiente para representar a emoção. Não se exigia dele
nenhum aprofundamento do personagem nem mesmo um certo capri-
cho na composição do tipo. Nesse teatro, o realismo não tinha impor-
tância, pois ele trabalhava mais com índices das ações humanas do
que com a busca de uma perfeição mimética. Assim, as regras da
representação pautavam-se no melodrama romântico, mas eram mui-
to livres e estavam sobretudo relacionadas à reação da platéia: os
momentos que emocionavam o público eram esticados a tal ponto
que parecia criar uma outra escritura dramatúrgica, pautada no exagero
dos traços melodramáticos. Os argumentos que davam origem a es-
ses espetáculos variavam pouco: quase sempre era a história de um
triângulo amoroso, onde a vítima era a ingênua mocinha. No entanto
isso encantava o público e o fazia sonhar.
Qual o seu segredo e a sua magia, se tudo nesse teatro era apa-
rentemente óbvio, pouco criativo e sem vida? Talvez fosse exata-
mente na rusticidade de sua linguagem que residisse o seu encanto,
a sua maneira de criar a magia, uma arte cada vez mais rarefeita no
universo do teatro.
Psicanálise e Nosso Tempo 89

O cantador de embolada
Iremar Maciel de Brito

Na feira de Campina Grande, um cantador de embolada impro-


visava seus versos, colorindo o espaço entre uma estrofe e outra com
os sons ritmados do pandeiro. Deliciava uma platéia de homens com
a história da primeira noite de um rapaz virgem na zona. Sua poesia,
da qual não restou registro, pois fugiu com o tempo, era semelhante à
de Leandro Gomes de Barros, em “ O peso de uma mulher”: “O
rapaz vê uma moça / Fica por ela encantado / Sedutora e feiticeira /
Que parece um sonho dourado / Os lábios parecem mel, / Mas tem a
taça de fel / No mundo do coração, / O homem passa e não vê /
Depois vem se arrepender / Porém já está na prisão.”
A narrativa, à medida que prosseguia, ficava cada vez mais pi-
cante, até chegar ao clímax de indecência, quando o rapaz era agarra-
do por um bando de prostitutas. Mas, muitas vezes, acontecia algo
inesperado, impedindo a conclusão da história: uma senhora respeitá-
vel, acompanhada da filha menina, aproximava-se para ouvir o
cantador. O artista, sem pensar nem pestanejar, mudava o mote: co-
meçava a louvar os milagres de Nossa Senhora, cantando a conver-
são de um herege diante da imagem da santa que chorava com pena
daquela alma perdida. Assim deixava de glosar o mote da prostituta
para gozar o da Virgem Maria, mudando o tom da cantoria da sátira
licenciosa para o lirismo edificante. E, nessa viagem, carregava o
público consigo, transformando o desenho do sorriso na face da seri-
edade, abrindo as portas da emoção e fazendo a alma sangrar de dor.
O cantador de embolada é antes de tudo um jogador que brinca com
as palavras e as emoções, ocupando um espaço do ludismo na alma
popular ao mesmo tempo em que se transforma em porta-voz de suas
idéias, sejam elas licenciosas ou edificantes. É, por isso mesmo, espe-
lho e reflexo dos homens do seu tempo, como o foram seus antepassa-
dos medievais com suas cantigas de amor e suas sátiras corrosivas nas
cantigas de maldizer.
90 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Crônicas de uma atenta viajante


Leodegário A. de Azevedo Filho

As Crônicas de Viagem, de Cecília Meireles, em edição da Nova


Fronteira, são um ponto alto não só da sua obra em prosa, mas tam-
bém do conjunto de sua produção literária. Há aqui unidade na diver-
sidade, entendendo-se por unidade o que decorre do ponto-de-vista da
autora, sempre poético e presente em tudo o que escreveu.
E, por diversidade, a variedade dos artifícios e artimanhas do
literário, surpreendendo-nos, nos textos, a crônica propriamente dita
– por si só é um gênero compósito – ao lado de pequenas narrativas
ou quase contos, além do fascinante relato de eventos e passeios até
descrições de paisagens, ou mesmo, ao poema em prosa.
Em tudo transparece ainda o seu gosto pelo folclore, com len-
das, pregões, mitos e costumes variados e cosmopolitas, partindo
quase sempre do cotidiano, para dele extrair o sentido poético e
transcendente que põe nas crônicas.
Temas vários transparecem ou se interpenetram sem esquecer as
diferentes formas de educação dos povos, a música, a pintura, a ar-
quitetura, a escultura, a poesia e a dança. Por isso mesmo é que afir-
ma que “a arte de viajar é uma arte de admirar, uma arte de amar”.
Distinguindo sempre o simples “turista” do verdadeiro “viajan-
te”, ela sabe que “todos os dias são novos e antigos e todas as ruas são
de hoje e da eternidade: e o viajante imóvel é uma pessoa sem data e
sem nome, na qual repercutem todos os nomes e datas que clamam
por amor, compreensão, ressurreição”.
Quando a ficção penetra nos interstícios do texto, Cecília é
sempre guiada por sua imaginação e por suas mãos de fada.
Assim, em forma de crônicas de viagem, nesses textos se revela
toda a rica experiência humana da Poeta em seu contato com pesso-
as e coisas. Viajar, para ela – lendo-se as crônicas reunidas – é
conhecer o mundo, deliciar-se com magníficos instantâneos, visitar
grandes universidades européias ou americanas, participar de con-
gressos internacionais, estabelecer relações com seres humanos re-
presentativos de várias culturas, saborear pratos exóticos, valori-
zando sempre o tempo humano, em sua grandeza e precariedade.
Psicanálise e Nosso Tempo 91

O poder terapêutico da criança


Marco Antonio Coutinho Jorge

Para o teatrólogo Jerzy Grotowsky, a força de uma grande obra


reside em ela poder abrir-nos portas que nos permitam “transcender a
nós mesmos, para descobrir o que está oculto em nós e consumar o
ato de ir ao encontro dos outros”. Em sua obra Amor, ódio e separa-
ção, Maud Mannoni cita Grotowsky e eu leio nessa sua citação pala-
vras que podem se aplicar a ela mesma. Com uma obra personalíssima,
cuja influência cresceu entre nós cada vez mais desde a década de 70,
a obra de Maud Mannoni ocupa um lugar singular na psicanálise.
Uma das discípulas de Jacques Lacan mais atuantes, ela sempre
buscou traduzir a teoria em sua prática com crianças e adolescentes
severamente perturbados, fazendo com que seu texto não fosse lido
como um manual de receitas clínicas ou dogmas teóricos, mas inci-
dências e reflexos da teorização rigorosa na prática clínica. Seu texto
assume assim um tom diferente das produções psicanalíticas corri-
queiras, e eu diria até mesmo que ele se aproxima do de Freud nesse
aspecto, ele não está preocupado em citar ou recitar, mas em passar
alguma experiência ao leitor, em falar dela e transmiti-la. Assim sen-
do, trata-se de um texto que apresenta uma força discursiva extrema-
mente grande e consegue nos evocar aquilo que em nós está, parado-
xalmente, mais atuante e mais oculto, a nossa própria infância.
Poder fazer o sujeito deparar-se continuamente com o novo é
uma das funções mais primordiais de um psicanalista em sua práti-
ca. Alain Didier-Weill contou que Freud em uma de suas reuniões
com o grupo de psicanalistas que o cercava inicialmente pôde certo
dia ouvir Rank falar sobre sua concepção do trauma do nascimen-
to. Ao terminar sua exposição, os discípulos de Freud alvejaram-no
de críticas, considerando suas idéias como absolutamente contrári-
as às teorias de Freud. Como Freud estivesse silencioso, calado,
sem dizer uma única palavra, os mesmos discípulos pediram a ele
que também se pronunciasse sobre o que acabava de ouvir. Freud
disse, então, que precisaria de um certo tempo para refletir sobre o
que acabara de ouvir, pois achara-se surpreso diante de algo tão
novo. Alain Didier-Weill comenta a esse respeito que os discípulos
de Freud responderam a Rank a partir de Freud, mas que Freud, ele
mesmo, estava implicado no processo da experiência: Freud não
tinha Freud para responder a partir dele, mas sim a experiência
92 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

psicanalítica como referência maior.


Nesse congresso, cujo tema geral parafraseia o texto freudiano
“bate-se numa criança”, minha intervenção se resumirá em evocar
o poder terapêutico que a criança pode apresentar para cada um de
nós, adultos. Esse poder terapêutico da infância, que justifica que
se denomine essa mesa-redonda de “A infância necessária”, quero
ilustrá-lo por meio de um exemplo cinematográfico recente, o
belissimo filme Central do Brasil, de Walter Salles Jr., um filme
que foi feito, igualmente ao texto de Maud Mannoni, com os senti-
mentos e as palavras absolutamente articulados. Em Amor, ódio e
separação, Maud Mannoni diz que há dois tipos de educação que
se opõem: “uma, fundamentada na aparência e no sucesso a qual-
quer preço, levando em conta unicamente a realidade, e a outra,
deixando ao indivíduo o tempo de se buscar, de descobrir seu cami-
nho, segundo um trajeto em que o importante é conseguir garantir a
qualidade das relações humanas. Nesse espaço há lugar para a ale-
gria e a fantasia”. Com essa assertiva, Mannoni parece estar co-
mentando o filme Central do Brasil. Aliás, falar da infância en-
quanto necessária é o mesmo que dizer, quase que de modo
interpretativo, que o mundo de hoje, com seus ideais imediatistas,
recalca a criança. Os efeitos mais imediatos disso têm sido a obser-
vação cada vez mais crescente de crianças envolvidas com armas e
crimes, drogas e até mesmo assassinatos, unindo-se aos adultos no
que estes têm de pior; ou, então, sendo alvo de estupro, pedofilia e
toda forma de exploração.
O filme é a história de Dora e do menino Josué e mostra a trans-
formação operada na mulher pelo menino. Dora, a personagem femi-
nina principal, é uma mulher sem escrúpulos. Ela vive de escrever
cartas para os nordestinos analfabetos que vivem no Rio de Janeiro e
desejam manter contato com seus entes queridos no nordeste. Mas
Dora não envia a seus destinatários as cartas que escreve; ela as guar-
da numa gaveta ou simplesmente as rasga e embolsa o dinheiro do
correio. Ela representa, assim, a falsa possibilidade de comunicação
daquelas pobres e solitárias pessoas vivendo num mundo inóspito e
diferente do de onde vieram. Assim agindo, Dora iludia os pobres
coitados analfabetos que acreditavam ter enviado sua mensagem para
pessoas queridas. Ela era a encarnação da farsa, da mentira; sua vida,
era apenas uma sobrevivência cotidiana. Como o menino Josué diria
várias vezes para ela, ela não valia nada.
Josué perde sua mãe, morta atropelada por um ônibus, atrope-
Psicanálise e Nosso Tempo 93

lamento que é um símbolo do atropelo urbano e da violência da


cidade grande que mata em segundos. Josué fica só na gare da Cen-
tral do Brasil e Dora se aproveita disso para vendê-lo para um poli-
cial que trafica crianças com o objetivo de comprar uma televisão
nova com controle remoto!... Vende-se uma criança para ter o aces-
so ao prazer medíocre da TV, outro signo de uma cultura que, inte-
ressada no prazer imediato e no consumo, é capaz de vender seus
mais importantes valores.
Contudo, Dora tem uma amiga, Irene, que, ao saber do ocorri-
do, repudia sua ação, adverte-a de que deve-se tratar de tráfico de
órgãos de crianças e termina sua repreensão com uma única e pre-
cisa frase: “Tudo tem limite!”. Dora se arrepende de seu ato, conse-
gue recuperar o menino e decide levá-lo até o nordeste para que ele
reencontrasse seu pai. Dora ainda não sabia, mas era a si mesma
que ela ia reencontrar ao ajudar Josué a buscar o pai. Esse pai,
motivo de toda a trama da história, é precisamente quem não apare-
ce em nenhum momento. Embora ausente, ele move os personagens
em sua direção. Por implicar a Lei, a busca desse pai é o que vai
produzir as mudanças subjetivas.
A viagem de Dora e Josué para o nordeste é cheia de percalços e
contratempos. Na verdade, Dora tenta várias vezes demitir-se dessa
função, ela ainda oscila entre abandonar o menino ao seu destino e
levá-lo até o pai. Mas a interrogação profunda de Josué sobre o pró-
prio pai vai, aos poucos, impondo-se a Dora como algo necessário,
vital. No ônibus, Josué pergunta a Dora qual daqueles homens ali
tinha cara de ser pai; em cada rosto masculino, Josué vislumbra a
possibilidade do pai...
Quando Dora e Josué ficam totalmente sem dinheiro, é do me-
nino que parte a idéia de Dora escrever cartas, só que desta vez do
outro lado, cartas daqueles que estando no Nordeste querem se co-
municar com os que partiram para o Rio, mas, desta vez, tendo ido
até o outro lado para o qual as cartas que redigia no Rio se dirigiam,
Dora não deixa de colocá-las no correio. Agora ela envia as cartas
que redige e restaura o vínculo entre os seres que ela própria havia
ajudado a romper.
Dora, por meio dessa travessia à qual o menino a conduziu,
passou a considerar os sujeitos em questão não mais como presas
que ela podia enganar, fingindo enviar suas cartas. Não, agora Dora
dá valor às histórias narradas nas cartas por aqueles homens e mu-
lheres tão sofridos e sozinhos, ela como que se sensibilizou com as
94 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

histórias humanas de todos os que buscam seu auxílio para escre-


ver, pois tudo se passa como se, de fato, no convívio com Josué,
Dora tivesse se humanizado ela mesma: é também um pouco de sua
história, de sua infância, que ela pôde rememorar com Josué. Dora
se redime com Josué, volta a ter algo da leveza e da alegria infantis.
Nesse sentido, uma das mais belas cenas do filme é aquela em
que, de forma semelhante à imagem de Nossa Senhora com o meni-
no Jesus no colo e em contraponto a ela, vê-se Dora deitada no colo
de Josué, mostrando que o conforto vem aí da criança e não da
mulher adulta, em que a criança mostra toda a sua força criativa.
Dora já estava amando aquele menino, ela já pensava em levá-
lo de volta consigo para o Rio quando, por acaso, eles encontram os
meio-irmãos do menino. Estes revelam ter uma vida organizada,
com trabalho e bem-estar material, e recebem acolhedores Josué.
Josué fica com eles e Dora parte de noite depois de ter sentido que
cumpriu sua missão. A separação de Dora e Josué é sofrida para os
dois, mas assim como Josué foi devolvido para sua história, com
seus irmãos, Dora nesse momento é igualmente devolvida a si mes-
ma, a seus sentimentos, a seu passado, a sua própria infância.
Já no ônibus de volta, sozinha, ela escreve uma carta para
Josué. Ela chora e ri ao mesmo tempo, e é notável que agora, pela
primeira vez, ela não mais esteja escrevendo as palavras que os
outros ditam para ela. São suas próprias palavras que ela põe no
papel, dirigidas ao menino de quem acaba de se separar. E o que ela
diz é muito simples, muito eloqüente e muito profundo: “No dia que
você quiser lembrar de mim, dá uma olhada na fotinho que a gente
tirou junto. Eu digo isso porque tenho medo que um dia você tam-
bém me esqueça. Tenho saudades do meu pai. Tenho saudades de
tudo... Dora”.
Em entrevista a Jurandir Freire Costa, Walter Salles Jr. fala da
“redenção trazida pela presença significativa do outro”. O que é
de chamar a atenção é que esse outro pode ser, para cada um de
nós, a palavra salutar da criança alegre e criativa que cada um
traz dentro de si.
Psicanálise e Nosso Tempo 95

A identidade revigorada dos galegos


Maria do Amparo Tavares Maleval

Olhade a Galiza erguerse


paseniñamente
de tódolos supricios.
Construíndo,
antre o desamparo e a inxuria,
o propio universo.
(Luís Seoane)

Até há bem pouco, entre nós pouco se sabia sobre os galegos.


Mesmo nos meios intelectuais, as referências quase que se restringiam
ao passado medieval, em que se notabilizaram como poetas, então cha-
mados trovadores, que, juntamente com os portugueses e outros povos
ibéricos ou das adjacências, se expressavam em galego (ou galego-
português). Por volta do século XII, as peregrinações a Santiago de
Compostela, hoje capital da Galiza, atingiram o seu apogeu, o qual
certamente contribuiu para o prestígio da língua, tornada koiné literária
do Trovadorismo, e que alcançaria o seu ápice no século seguinte.
A acadêmica Nélida Piñon, de ascendência galega, muito con-
tribuiu para divulgar, através das suas narrativas ficcionais, outro
movimento histórico desse povo, desta vez contrário ao medieval,
já que concernente à sua diáspora. Através do inesquecível perso-
nagem Madruga, de A República dos Sonhos, fixa-se o drama dos
que partem “ao encontro de uma terra arrastando a memória da
outra”. Também outros escritores, galegos ou descendentes, evo-
cam no Rio as rias ancestrais, como Reynaldo Valinho Alvarez,
Domingo González Cruz ou Gonzalo Armán.
Mas o que é um galego para o comum das pessoas no Brasil?...
Aurélio registra, em seu Dicionário, ao lado de “natural ou habitante
da Galiza”- região situada a noroeste da Península Ibérica, perten-
cente ao reino de Espanha -, outras acepções, como “estrangeiro, sem
distinção de nacionalidade” ou “indivíduo louro” - acepções nordesti-
nas -; e ainda uma das alcunhas pejorativas do português.
No entanto, o galego não é um estrangeiro qualquer, muito
menos um português depreciado. Os galegos tiveram, sim, uma pro-
funda crise de identidade, que os atingiu naquilo que um povo tem
de mais definidor - a língua própria. Desde a unificação da Espanha
96 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

pelos Reis Católicos, nos fins do século XV, fora relegada à comu-
nicação oral, à desprestigiada condição de “fala de labregos”, isto
é, de rudes campesinos. Ressurge como língua literária, escrita, no
século XIX, na poesia de Rosalía de Castro, Curros Enríquez e
Eduardo Pondal. Juntamente com todos os demais componentes da
identificação desse povo, é novamente abafada pela ditadura de
Franco, a partir de 1936. Mas novamente ressurge das cinzas, qual
fênix, para o que muito contribuíram os emigrados, que lutaram no
exílio - principalmente em Cuba e na Argentina - por dotar a terra-
mãe inclusive de símbolos próprios, como a bandeira e o hino.
Hoje, solucionados os problemas econômicos e políticos cau-
sadores da diáspora, podemos identificar os galegos não apenas
como um povo trabalhador e hospitaleiro, mas um povo que tem
uma língua oficialmente reconhecida, falada e escrita a par do
castelhano na Comunidade Autônoma da Galiza, dotada de cultura
própria e rica, dentro do mosaico cultural que é atualmente a
Espanha. Além do mais, a capital compostelana vem readquirindo
o seu prestígio religioso e místico, sendo muitos os que têm percor-
rido o Caminho de Santiago e registrado em livros a sua experiên-
cia, dos quais o exemplo mais assombroso é, sem dúvida, Paulo
Coelho, campeão internacional de vendas. Porque, diríamos para
concluir, com o poeta galego Miguel Anxo Fernán-Vello, “o camiño
é un silencio na alma como un vidro, / delicada substancia de sécu-
los e olvido / frente à morte que foxe desta luz entrañada, / deste
mar, desta terra, deste regreso à vida”.
Psicanálise e Nosso Tempo 97

Lisboa, jardim da Europa


Maria do Amparo Tavares Maleval

Lisboa é atualmente considerada, nos meios intelectuais euro-


peus, como uma das mais atraentes cidades da Europa, ombreando
com a encantadora Praga, na Tchecoslováquia. Muito tem contri-
buído para isso a redescoberta da Geração de Orpheu, que promo-
veu, na década de 30, a estética do Modernismo. Mário de Sá Car-
neiro, Almada Negreiros, dentre outros, têm as suas obras revisitadas
com crescente interesse. Mas sobretudo Fernando Pessoa é hoje
reconhecido como um dos poetas mais geniais do século XX.
Mesmo um simples turista poderá, em Lisboa, tornar-se ínti-
mo do grande Pessoa. Isto porque sentado nos aguarda à Rua
Garrett, tornado estátua ao lado do café que muito freqüentara,
para nosso orgulho chamado A Brasileira. Fotografar-se junto a
ele é, pois, um imperdível programa - se não pelo amor à poesia,
pela familiaridade do ambiente, proporcionada pela denominação
do citado Café, ou, ainda, pela esperança de ser profética a colo-
cação de Pessoa à direita d’A Brasileira, apontando para a
consubstancialização do Quinto Império no Brasil.
Subindo por uma das ruas transversais à citada, estamos em
pleno coração da boêmia tradicional, com as suas numerosas casas
de fado. Se o Poeta continuar ao nosso lado, poderemos ouvi-lo
murmurar que, ao contrário do que possamos sentir, “o fado não é
alegre nem triste”, ou que nas suas linhas melódicas “os Deuses
regressam legítimos e longinqüos”.
Deixando o Bairro Alto, gostoso é flanar pela Baixa lisboe-
ta, em direção ao Tejo, pela Rua Augusta, principalmente, palco
de apresentação dos artistas itinerantes. E sentir o agradável do
clima, a urbanidade das pessoas, o aroma da excelente cozinha
dos nossos avós lusitanos, que rescende dos restaurantes vários.
Ou, afastando-nos mais, sonhar com os que partiam para os “ma-
res nunca dantes navegados”, esses lusíadas imortalizados por Camões
no poema-maior, que possibilitaram a D. Manuel o epíteto de rei Ven-
turoso. O Mosteiro dos Jerônimos e a Torre de Belém são edificações
que atestam a glória deste que foi o mais rico soberano cristão do seu
tempo, quando inclusive foi encontrada a nossa Terra de Santa Cruz.
Mas, dentre os tantos outros lugares que poderíamos com satisfa-
ção percorrer, destaca-se o Castelo de São Jorge. Dele temos não ape-
98 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

nas uma das mais belas e abrangentes vistas da cidade, com o seu
gracioso casario limitado pelo rio Tejo, mas uma possibilidade de evo-
carmos o passado medieval a partir da observação das suas ruínas. E se
fazem presentes as agruras dos cercos de que foi vítima, outrora. Pri-
meiramente, imaginamos o cerco comandado por Afonso Henriques à
Lisboa dos mouros nos primórdios da nacionalidade portuguesa, hoje
revivido de forma irônica pelo prêmio Nobel de literatura, José Saramago,
no romance História do cerco de Lisboa, de 1989.
Em seguida, acorre à nossa memória a heróica resistência dos
portugueses verdadeiros, segundo o insigne cronista-mor Fernão
Lopes, ao cerco do rei de Castela. Vencidos os inimigos, acometidos
os seus principais pela peste, a cidade firma-se no seu papel de forte
esteio e coluna de Portugal, no dizer do cronista. E D. João, Mestre
de Avis, inaugura uma nova dinastia, que realizou a gesta da Expan-
são, que nos deu origem.
A Expo 98, Feira Mundial centrada no comércio e em eventos
culturais, realizada com o apoio do Mercado Comum Europeu, co-
incidiu com os 500 anos de descoberta do caminho marítimo para
as Índias. E a cidade, tornada então Capital Cultural da Europa,
recebeu inúmeros visitantes, numa rememoração dos áureos tem-
pos manuelinos, em que atraía as atenções pelo cosmopolitismo e
pelo fausto da corte real.
Enfim, se Lisboa é hoje assaltada por legiões de imigrantes que se
acotovelam nos bairros de lata, semelhantes às nossas favelas, ou in-
festam os seus bons ares com o odor nefasto dos seus excrementos; se
já não é tão segura e limpa como há poucos anos, no entanto ainda
continua sendo um “jardim da Europa à beira-mar plantado”, à espera
de que lhe colhamos as flores.
Psicanálise e Nosso Tempo 99

A Idade das trevas não acabou


Maria do Amparo Tavares Maleval

O quotidiano brasileiro, nos dias que correm, apresenta a todo


instante atos irresponsáveis praticados por cidadãos que ocupam fun-
ções importantíssimas na sociedade, algumas até mesmo vitais: são
parlamentares faltosos a sessões do Legislativo, alguns deles corrup-
tos e perfeitos bandidos; governantes que se divertem e ostentam va-
lores materiais e intelectuais, enquanto o Brasil se afunda em grave
crise econômico-social; professores distantes da sala de aula; polici-
ais e juízes omissos e infratores; médicos ausentes dos plantões; etc.
Os meios de comunicação apresentam-se recheados de notíci-
as que parecem representar um “mundo às avessas”, mas que, de-
sastrosamente, é real.
Por outro lado, muito se fala das benesses do terceiro milênio,
do novo mundo solidário e responsável que se instauraria no nosso
triste planeta Terra, ele também vítima de atos criminosos: todos
sabemos que desmatamentos e poluições industriais vêm provocan-
do feridas irreversíveis na sua camada de ozônio protetora, bem
como na rede hidrográfica e na fauna, apontando para um fim não
muito distante. Daí que o novo Milênio, prometido e esperado com
ansiedade, pareça meramente utópico diante dos acontecimentos que
presenciamos a cada hora.
Se atentarmos para os primórdios da civilização ocidental, ve-
remos que da Idade Média para cá houve pouca evolução do gênero
humano, apesar de tantas conquistas tecnológicas e outras. Ocorre-
nos a atualidade das sátiras de Alfonso X, o Rei Sábio, de Leão e
Castela no século XIII, contra a irresponsabilidade dos seus cava-
leiros. Por exemplo, em algumas das suas cantigas de escárnio cri-
tica duramente os nobres que se recusaram a cumprir o dever na
guerra de reconquista da Andaluzia aos “mouros”.
Numa delas, amaldiçoa o fidalgo que viera atrasado e de má
vontade para a batalha, apesar de ter sido muito bem pago. Recor-
demos uma das suas estrofes, cuja grafia atualizamos: “O que le-
vou os dinheiros / e não trouxe os cavaleiros, / é por não ir entre os
primeiros / que faroneja? / Pois que vem com os postumeiros (com
os últimos), / maldito seja!...”
Não poderíamos perfeitamente transpor estes versos para o Bra-
sil atual?... Na guerra contra a miséria, a violência, a falta de educa-
100 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

ção e de cultura, as doenças, etc, onde estão os que são pagos com o
suado dinheiro dos trabalhadores assalariados, através de impostos
exorbitantes e mal administrados?... De que têm medo, se esta guerra
do Brasil de hoje é ainda mais “santa” do que a que se praticava nos
tempos do rei-trovador?...
As trevas com que tantos caracterizaram a Idade Média não se
dissiparam, após tantos séculos. Pestes, fomes e violentações de toda
ordem continuam a assolar o nosso belo planeta azul. Até quando?...
Psicanálise e Nosso Tempo 101

A diversão na corte de D. Manuel


Maria do Amparo Tavares Maleval

No reinado de D. Manuel, as iniciativas tomadas por seu


antecessor, D. João II, visando à expansão marítima portuguesa, co-
briram-se de êxito. E este rei, chamado com justa razão de O Venturo-
so, tornou-se dono de um vasto Império, que incluía o nosso Brasil,
cujos quinhentos anos de “descoberta” pelos portugueses neste ano
2000 festejamos. Estes dados são bastante conhecidos. Como, po-
rém, se divertiam os cortesãos da época, enquanto a árdua gesta
expansionista se realizava?...
Sendo D. Manuel o mais rico soberano da Cristandade no
seu tempo, graças ao comércio exclusivo das especiarias, a sua
corte cresceu sobremaneira (viria possivelmente daí o modelo para
o excesso de funcionalismo público no nosso país). E nos serões
que então aconteciam no palácio real, além da música, da dança,
poesia e pequenas representações teatrais, os jogos de cartas tor-
navam mais agradável o convívio dos nobres e doutores (o Direito
estava altamente em voga) palacianos.
O Cancioneiro Geral, recolha de poesia feita desde o século
XV, por Garcia de Resende, e publicado em 1516, no reinado
manuelino, é um precioso documento dessas diversões. O próprio
Resende, além de outras composições, é autor de trovas encomen-
dadas pelo rei para o carteado em moda.
Este jogo consistia em 48 cartas, cada uma apresentando uma
trova, que podia ser de louvor ou “deslouvor”, distribuídas, após bem
embaralhadas, em igual número, para damas e cavalheiros. Assim,
das 24 cartas destinadas às damas, da mesma forma que aos corte-
sãos, 12 continham trovas elogiosas e 12 eram satíricas. Deveriam
ser lidas em voz alta, e quem tivesse a má sorte de ser agraciado com
alguma(s) destas últimas, seria objeto da zombaria dos presentes.
À primeira vista ingênuo, o jogo, no entanto, trouxe-nos, atra-
vés das trovas de Garcia de Resende, uma amostra do que se consi-
derava valor à época: para as mulheres, gentileza, discrição, saber
(?), manha sedutora, graciosidade, elegância, desenvoltura (inclusi-
ve ou principalmente para bailar), bondade e, sobretudo, formosu-
ra. Para os homens, além da elegância, desenvoltura, brandura, dis-
crição e boa aparência, os valores prezados eram a galanteria, jovi-
alidade, seriedade, prestígio, dotes poéticos, humorísticos e musi-
102 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

cais, fluência verbal, dançar e caçar bem, constância no amor,


autoconfiança... enfim, ser agradável, confiável... domesticado.
Portanto, os jogos de carta del-Rei são altamente instrutivos
para nos inteirarmos das virtudes preconizadas naquela auspiciosa
época. Tinham um caráter não apenas lúdico, mas pedagógico.
Através deles propugnavam-se os principais mandamentos da
cortesania, de modo que o monarca pudesse ter súditos que lhe
criassem um mínimo de problemas, ocupados como estavam com
as “cousas de folgar” e “gentilezas” palacianas.
Também Gil Vicente, o “criador” do teatro português, praticara o
docere cum delectare (isto é, ensinar através da diversão) em seus fa-
mosos Autos. Mas o alvo preferido das suas críticas eram as classes
sociais medianas. O que nos faz valorizar ainda mais o testemunho
desses aparentemente inocentes jogos incentivados pelo Venturoso.
Psicanálise e Nosso Tempo 103

O leitor na era eletrônica


Maria Helena Sansão Fontes

“A juventude já não lê”. Essa frase ouvida hoje aos quatro cantos,
talvez esvaziada da exclamação com que se ensimesmavam os mestres
de outrora, revela a constatação realista dos professores de literatura
que insistem ainda na emoção de passar aos alunos globalizados a pai-
xão pela leitura de romances e (por que não?) de poesia.
Se nos adolescentes o desinteresse se justifica pelo apelo imbatí-
vel da imagem do vídeo e do ritmo alucinante das discotecas, nos
jovens estudantes das faculdades de letras, o descaso pela leitura se
transforma em sintoma de distorção vocacional. Num país assolado
por graves problemas econômicos e sociais - onde o desemprego é um
fator iminente para cada jovem que entra na universidade - escolher a
literatura como opção de carreira poderia significar a vitória do so-
nho sobre a crua realidade da sobrevivência, ou, melhor ainda, a bus-
ca heróica da realização existencial em detrimento do sedutor prestí-
gio social advindo de outras carreiras mais promissoras financeira-
mente. Entretanto, o que se constata é que a corrida por essa última
opção há muito mutila a verdade da vocação, debilitada por anos de
descompromisso dos governos com a cultura e a educação.
A escolha pela literatura já se despojou, assim, de seus méritos
salutares de amor às artes. A disputa pelo mercado de trabalho seguro
e promissor é verdadeira e exige preparo, conhecimento e poder com-
petitivo. Nela não há lugar para todos. E os que sobram, os que não
alcançaram o pódio ou não tiveram ânimo suficiente para enfrentar a
competição, onde ficam? Acomodam-se onde a procura é menor, onde
antes habitavam os sonhadores, os artesãos da existência, os caçadores
da liberdade: as faculdades de letras, entre outras de prestígio também
desvalido. Mas, por estarem fora de lugar, marcham na contramão dos
poucos que ainda buscam, errantes, o seu sonho de realização através
das páginas que insistem em serem escritas.
Buscar saídas que tranqüilizem os professores de literatura em
relação à gradativa extinção do leitor do futuro faz parte de um
complexo questionamento, que abrange a ineficácia dos modelos
educacionais superados diante da velocidade dos tempos. Tal velo-
cidade parece não permitir o paciente exercício da leitura, feito atra-
vés do olhar que percorre cada linha da esquerda para a direita,
enquanto a imaginação tece sua teia de labirintos e sonhos, sem
104 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

pressa de virar a página.


Atendendo a essa louca ânsia da aventura, os meios eletrôni-
cos de comunicação são muito mais eficazes do que os livros. Sons
e imagens exercem seu fascínio em decibéis e explosão de luzes e
cores, sem que se perceba que a emoção dessa era de velocidade
proclama a despedida da sensibilidade despertada pela leitura, que
coloca o homem diante de si mesmo para entender o mundo, e não
diante de imagens virtuais nas quais ele se perde, transformando-se
em meros fragmentos de si mesmo.
Psicanálise e Nosso Tempo 105

Quem é o dono da história?


Maria Helena Sansão Fontes

A peça A dona da história de João Falcão, classificada como


comédia, realmente nos faz dar boas gargalhadas, mas, sobretudo,
cumpre a função primordial da arte, que é mexer com as pessoas,
causando até mesmo desconforto. Ela toca fundo na existência e
levanta o questionamento sobre o nosso destino, nosso livre arbítrio
e, acima de tudo, sobre os limites de uma geração.
Marieta Severo interpreta a personagem de 50 anos que, soli-
tária, busca sua própria história. É preciso ter uma para contar, que
seja interessante, que não seja banal. E a sua história é igualzinha à
da maioria das mulheres de sua geração. A lembrança dos seus 20
anos, personificada por Andréa Beltrão, insiste em lhe trazer a his-
tória que ela nega, que ela tenta mudar, no criativo jogo de hipóteses
que dá formato ao texto.
Em meio às risadas que nos escapam e que trazem a catarse
necessária à vida, fica alguma coisa incomodando, esse
questionamento sobre a falta de gratuidade da existência (ou a
gratuidade completa, quem sabe?). Um convite para uma festa, um
encontro, um simples gesto podem mudar tudo, podem nos levar da
acomodação à infelicidade, ou da descoberta ao gozo supremo. Na
vida, não podemos alterar um momento que se consagrou, não há
jogo de hipóteses. Não podemos resolver mudar um gesto que não
deu certo, é inexorável. A arte pode. Pode levantar hipóteses e brin-
car com o acontecido, desfazendo-o, pode refazer a história tornan-
do-a interessante, pode recriar o destino.
Os limites e valores da geração da personagem de Marieta é
que são, a meu ver, revisitados nessa comédia. As décadas de 60 e
70 foram marcadas por valores rígidos que se impunham no âmbito
social e no familiar. A transgressão a esses limites não era feita
impunemente, sem culpas ou cobranças pessoais, ainda que incons-
cientes. É muito comum nessa geração a constatação de que se hou-
vesse possibilidade não se escolheria o mesmo caminho, caso se
vivesse novamente o tempo da juventude.
A peça traz à tona a dificuldade de transgredir, de mudar o que o
jovem de hoje muda sem pensar muito. A geração que está agora com
20 anos talvez não tenha uma “história para contar” quando tiver 50
anos, mas também não estará preocupada com isso, porque faz e des-
106 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

faz quando tem vontade, casa e descasa quando lhe convém e, sobretu-
do, pensa que descarta a infelicidade no momento certo, como se fosse
a dona da história.
Psicanálise e Nosso Tempo 107

João do Rio - entre a fama e o preconceito


Mariângela Monsores Furtado Capuano

João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-


1921), jornalista e escritor do início do século XX, adotou o pseu-
dônimo de João do Rio, entre outros (em torno de 12 ou 13), e com
ele tornou-se conhecido.
Sua “vida vertiginosa”, no dizer de Raimundo Magalhães
Júnior, seu biógrafo, foi marcada pelo preconceito. Cedo, tornou-se
um jornalista respeitado e famoso, porém essa fama custou-lhe muito.
Mulato, obeso e homossexual, João do Rio, em vida, enfrentou um
grande preconceito, fato este que praticamente o impediu de chegar
à ascensão social que desejava. Mesmo assim, foi membro da Aca-
demia Brasileira de Letras e conhecido internacionalmente, princi-
palmente em Portugal, onde era muito lido e querido.
Este escritor, com uma grande força de trabalho, retratou de
forma apaixonada a vida cotidiana carioca da Belle-Époque, atra-
vés de seu estilo eclético. Foi crítico, cronista, contista; autor de
novelas, romances, peças teatrais e tradutor, sendo a sua paixão
pelas ruas o elemento detonador de toda sua obra.
Figura controvertida, durante sua vida e principalmente nos seus
últimos anos, recebeu numerosos ataques à sua imagem de homem,
jornalista e escritor, através da imprensa. Até mesmo um atentado à
sua casa ele sofreu. Todos estes fatos possivelmente o abalaram, cul-
minando num ataque cardíaco que o levou à morte em junho de 1921,
no auge de sua popularidade.
João do Rio foi mais uma vítima de uma sociedade conservado-
ra e hipócrita, que não consegue conviver e aceitar o outro, ainda
mais em se tratando do diferente, nem tampouco confirmar seu va-
lor. Durante sua vida contraiu grandes afetos e inúmeros desafetos.
Ao mesmo tempo que por uns era muito amado, por outros era
mortalmente odiado. Talvez a razão pela rápida obscuridade que se
formou em torno de seu nome, logo após sua morte, tenha sido fruto
de inveja e desagrado por parte de jornalistas não tão bem sucedi-
dos; de inimigos políticos, contrários às suas idéias de reformas
sociais e, principalmente, pelo preconceito que girava em torno de
sua cor e de sua condição de homossexual.
João do Rio, recentemente despertado de seu silêncio, revela-
nos, através de sua obra, a paixão que sentia por sua Frívola City,
108 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

como ele mesmo intitulava a cidade do Rio de Janeiro, a mesma que


o escondeu e o silenciou por muitos anos.
Psicanálise e Nosso Tempo 109

A crise da reforma de uma nova época


Marina Machado Rodrigues

A chegada do ano 2000 se avizinha. Esta virada, entretanto,


não será trivial, possui um sabor particular. Este é o reveillon que,
de acordo com o imaginário popular, inaugura o novo milênio.
Embora se saiba que as mudanças de século e milênio só se efeti-
vam em 2001, o ano de 2000 não deixa de ser emblemático. Sobre
ele já setenciava a mística cristã: “a 2000 não chegarás!” Não creio,
pessoalmente, que a sentença se cumprirá, ao menos em sentido
literal, assim como as profecias de Nostradamus, que apontavam o
fim da humanidade inadiável em 1999, não se cumpriram. Mas não
são poucos os que antevêem o Apocalipse iminente.
Desde há muito, quando se tratava de estabecer uma data limi-
te para algo longínquo, o imaginário popular fixava o ano de 2000.
Há 40 ou 50 anos atrás, era comum imaginar-se que no próximo
milênio o mundo viveria sob a égide da máquina. Aliás, um ingênuo
e delicioso cartoom da década de 60 antecipava a sociedade do
futuro e as facilidades da vida moderna, onde máquinas e robôs
substituíam o homem nas tarefas cotidianas. Na realidade, hoje,
não estamos muito distantes desta perspectiva futurista.
A engenharia genética inventou os clones e será mesmo capaz,
em muito pouco tempo, de reproduzir órgãos humanos, salvando inú-
meras vidas que dependem de um incerto doador para o transplante
sempre adiado. Neste século que agoniza, foram incalculáveis os avan-
ços conseguidos pela Ciência.
Creio que o mundo não acabará. Ao menos, do ponto de vista
físico. Mas a expectativa que se constrói em torno do próximo mi-
lênio, porém, não deixa de ser o reflexo da decepção presente. Se o
homem galgou imensas distâncias, no que concerne ao campo ma-
terial; no que respeita ao espiritual, cabem outras palavras. É óbvia
a crise de valores. A humanidade necessita de reformas urgentes.
Ela, quem sabe, talvez merecesse ser reinventada.
O Brasil não é uma exceção no panorama mundial, ansiamos
por profundas mudanças. Ninguém tolera mais tanta violência, tan-
ta injustiça e iniquidade. Estamos mergulhados num mar de lama,
onde a corrupção e o crime organizado corroem a sociedade como
um câncer. A CPI do Narcotráfico, todos os dias, denuncia o
envolvimento de membros do Legislativo, do Executivo e de impor-
110 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

tantes empresários, em atividades ilegais. Oxalá, ela própria não se


deixe contaminar, seguindo o destino das anteriores, que acabaram
na pizzaria da esquina mais próxima.
Tim, tim! Neste reveillon, o meu brinde será à recuperação moral
do país. Afinal, se os valores morais estão em estado terminal e a Ciên-
cia ainda não foi capaz de clonar caracteres, só resta esperar que a
própria sociedade se reinvente, cobrando dos cidadãos e homens públi-
cos a seriedade que este país merece. Que 2000 seja de fato o início de
um novo tempo, em que a demagogia e a moral cínica praticadas
indiscriminadamente recebam sentença de morte, até porque não há
limite para o sonho. E como diz a sabedoria popular “a esperança é a
última que morre.”
Psicanálise e Nosso Tempo 111

Para que servem as fantasias?


Marina Machado Rodrigues

Fantasia. Estranha palavra porque se reveste de sonho, voa e


ganha o espaço. Contudo, se cria e se alimenta nos mais profundos
recantos da alma. É devaneio e, como tal, pressupõe a dimensão do
inatingível como possibilidade, permanecendo, ainda assim. Talvez
porque seja impossível ao homem abrir mão da felicidade. A fanta-
sia encobre a realidade, enquanto denegação de um ideal, como um
traje. Ela será então somente uma tentativa de burla? Quem sabe?
Fantasia, em outra acepção, é elemento fundamental ao Carna-
val. Mas aqui o sentido primeiro também não se exclui. O termo
adquire uma dinâmica própria, porque no reinado de Momo tudo é
permitido. Até certo ponto, a fantasia, enquanto disfarce, concede ao
sonho, imponderável, uma face concreta. Será mesmo? O Carnaval é
o momento de se colocar para fora o que se recalcou durante o ano
todo. Assim era já na Idade Média, quando se podia ver uma legião
de reis e rainhas que no restante do ano mal tinha o que comer. Por
esta lógica, se explica a frase antológica do Joãosinho Trinta: “Quem
gosta de pobreza é intelectual, o povo precisa é de luxo!”
Antigamente, o luxo não era uma imposição. O povo saía às
ruas com fantasias improvisadas e a descontração própria do mo-
mento, e, mesmo para os trajes mais elaborados, a sofisticação dos
atuais seria inimaginável. Muitas delas eram, no mínimo, curiosas:
fantasia de bebê, de diabo, de Pierrô, Arlequim ou Colombina, de
preso, de cigana... A de diabo é perfeitamente explicável numa cul-
tura extremamente católica como a nossa. A de bebê, idem, já que
todas as responsabilidades relativas à família recaíam exclusiva-
mente sobre os ombros dos homens. Mas o que dizer dos persona-
gens transpostos diretamente da Comédia del’Arte italiana? É ver-
dade que triângulos amorosos existem desde que mundo é mundo. E
a de preso, traduziria a hipertrofiação de um ego? Ou a reafirmação
de um valor supremo diante de uma situação de extrema privação, o
que amplificaria, pelo contraste, aquele valor? A de cigana repre-
senta, talvez, também a liberdade, um dos valores mais caros a um
povo que sequer cria raízes numa terra.
Antes, a festa pagã servia para justificar desvios de toda or-
dem, significava a possibilidade séria de virar do avesso as regras
rígidas impostas à conduta moral pela sociedade conservadora, em
112 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

alguns dias do ano. A máscara encobria os possíveis transgressores.


Mas e hoje? O que esperar do Carnaval? Já não há o que enco-
brir, as inversões da ordem, da justiça, do senso comum, se fazem
durante os 365 dias do ano.
Bem, as fantasias mudaram, teria mudado também o espírito do
Carnaval? É difícil afirmar, mas o que permanence, indiscutivelmente,
e de forma perene, é a capacidade de sonhar, inerente ao ser humano.
Psicanálise e Nosso Tempo 113

Polícia
Marina Machado Rodrigues

“Polícia para quem precisa... Polícia para quem precisa de


polícia...”
E quem precisa de polícia hoje? De certeza, os cidadãos hones-
tos da Cidade do Rio de Janeiro, onde a insegurança chegou ao
auge. Os noticiários diários mostram que o número de assaltos,
seqüestros e assassinatos têm-se multiplicado em progressão geo-
métrica, ainda que as estatísticas oficiais teimem em negar o óbvio.
Os versos de Toni Belloto, há décadas, já denunciavam o
autoritarismo da polícia cujo objetivo não é a proteção do cidadão
comum. A ironia expressa na canção aponta, outrossim, para a
truculência e o desrespeito de uma instituição que, diferentemente
da de outros países, não tem a função precípua de garantir a segu-
rança dos cidadãos, mas que age no intuito de preservar os direitos
do Estado, refletindo a herança dos tempos de arbítrio.
Dezenas de policiais acreditam que a violência gerada pela
atuação da polícia hoje é fruto de uma Política de Segurança equi-
vocada, que não pretende coibir o crime, mas, ao contrário, necessi-
ta fabricar estatísticas que se baseiam no confronto. Parte-se da
premissa de que os moradores da favela são marginais em potenci-
al. Na prática, o que se tem no Rio de Janeiro é um apartheid sem
arames farpados, já que a polícia invade os morros para manter a
situação sob controle, evitando uma revolta, possivelmente gerada
pelas injustiças sociais. Os moradores do gueto são mantidos como
reféns, condenados apriorísticamente, em razão de sua condição
social, por uma polícia que atira para matar indiscriminadamente.
O confronto envolve policiais civis e militares, cidadãos e ban-
didos. Cada um desses segmentos é também vítima do Estado. O
policial mal formado, mal remunerado e mal-equipado é suscetível
à corrupção e à violência impostas pelo sistema: rouba, extorque e
mata em sua grande maioria. Os cidadãos pobres, além da miséria e
humilhações cotidianas, sofrem tanto a violência praticada pelos xerifes
dos morros quanto a que é perpetrada pela polícia. Quando esta inva-
de as favelas, não se trata de coibir o tráfico de drogas e a
marginalidade. Trata-se, na maioria das vezes, de uma demonstração
de força para impressionar a imprensa e a população. O varejão so-
brevive porque, para cada soldado morto, o tráfico já dispõe de 10
114 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

outros preparados para assumirem o lugar. Os bandidos, por sua vez,


são produto de uma sociedade que exclui desde cedo os que não são
bem-nascidos. Entre trabalhar duro uma vida inteira - e não conse-
guir minimamente o suficiente para viver com dignidade - e a morte
precoce, contingência natural dos que optam pela marginalidade, um
número cada vez maior de meninos, seduzidos pelo ganho fácil e pela
certeza da impossibilidade de ascender socialmente através do traba-
lho, prefere a 2ª via.
Como se sabe, os grandes traficantes não estão nos morros. As
investigações da CPI do Narcotráfico apontam para o envolvimento
de políticos, empresários, policiais e juízes em atividades ilegais. Quem
precisa de polícia? Os cidadãos honestos, que deveriam contar com a
proteção efetiva das instituições que a esse fim se destinam; a própria
polícia, que pratica atividades ilegais sob a capa da lei; os marginais,
pelos motivos óbvios, mas, sobretudo, alguns políticos e juízes que
têm-se alinhado com o crime, escorados na impunidade do sistema.
Psicanálise e Nosso Tempo 115

Chic a valer
Marina Machado Rodrigues

A expressão do título trazida pela memória transportou-me ao


romance Os Maias, de Eça de Queirós- escritor português do sécu-
lo passado - por ser a marca de um de seus personagens. Cada
novidade vinda de Paris ou a adoção de um novo costume da socie-
dade parisiense pelos portugueses na Lisboa do século passado ar-
rancavam a exclamação entusiasmada do personagem: isto ou aquilo
“é chic a valer, hem?”
Ali, a descrição minuciosa dos trajes ou da decoração das resi-
dências requintadas da alta burguesia lisboeta revela o estilo de vida
de um tempo em que se tinha tempo.
O conceito de chic, assim como as sociedades, sofreu uma
mudança profunda em nosso século. O glamour requer tempo, ou a
sobra dele. Quem os têm em nossos dias?
Com a liberação das mulheres e as limitações impostas pela
vida nas modernas cidades, o conceito de chic quase se restringe à
elegância de atitudes, esta também em extinção, num mundo cada
vez mais competitivo e violento.
É então que me pergunto como se pode ser chic, tendo que
correr o dia todo contra o relógio? É impossível ser chic, empurran-
do um carrinho de supermercado, com os minutos contados, porque
está quase na hora da saída da escola das crianças. É necessário não
esquecer dos Correios, do carro que precisa ir para a revisão, da ida
ao Banco para pagar as contas urgentes, e, sobretudo, do relógio de
ponto que assume a dimensão esmagadora de um titã.
De divagação em divagação, o pensamento escorre para Ma-
ria Eduarda , “chic a valer”, - outro personagem do romance - que
tinha tempo de sobra para arranjar flores no vaso, se vestir com o
apuro que a época exigia, ou simplesmente se dedicar ao bordado,
sempre convenientemente arranjado a um canto da sala. E, mais
ainda, podia se deleitar com infindáveis passeios ao ar livre, na
companhia de outras elegantes que também exibiam trajes esplêndi-
dos, sob o cenário ideal de uma natureza quase intocada. Este despren-
dimento me causa uma leve onda de inveja.
A suprema ambição do homem moderno é a egoísta sensação de
dispor de um tempo só para gozar consigo.
A síndrome da perda de tempo é um sintoma da nossa época. Até
116 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

as emergentes, que dispõem de todo o tempo do mundo, foram afetadas


pela doença, elegendo o helicóptero o meio de transporte mais rápido
para percorrer as inúteis distâncias cotidianas, que levam da butique ao
cabelereiro. Pobre tempo o nosso!
A era do computador impele as pessoas a produzirem sempre
mais e melhor, quer se dediquem à produção intelectual, quer a qual-
quer outro ramo de atividade. A concorrência, as exigências
mercadológicas, as crises constantes, fazem do homem um ser cujo
presente é já a sombra do futuro.
Bem, aos homens do passado sempre coube a responsabilidade da
produção, às mulheres, somente a fruição. Diferentemente, a nossa época
impede as mulheres de “verem o tempo passar na janela”. O tempo das
Carolinas já se foi há muito. Há várias décadas, as mulheres “vão à
luta”, complementando a renda familiar do casal ou mesmo são a única
fonte de renda da família. A competitividade gerada pela idêntica ne-
cessidade entre homens e mulheres, o acúmulo de tarefas impingidas às
mulheres modernas, que continuam responsáveis pela educação dos
filhos - tarefa nem sempre dividida com os maridos - a administração
da casa e os compromissos inerentes a estas atividades, requerem da
mulher uma energia muitas vezes superior à dos homens.
Hoje, “chic a valer” é precipuamente garantir um estilo de vida
em que o ser humano possa simplesmente viver. As mudanças trouxe-
ram o progresso necessário, indiscutivelmente. Mas com ele o estresse,
a angústia e a ansiedade, doenças do mundo atual.
Parafraseando outro escritor português, hoje, eu diria somente - Ah,
Maria Eduarda, quem me dera “poder ser tu, sendo eu!”
Psicanálise e Nosso Tempo 117

Todas as Marias
Marina Machado Rodrigues

Maria, metáfora do chamado sexo frágil, é um nome emblemático.


A primeira era já significante de sofrimento.
Contemporaneamente, este sentido foi ampliado e passou a abar-
car também a condição de subserviência delegada às mulheres na soci-
edade; haja vista a acepção moderna e popular do antropônimo, empre-
gado com valor de substantivo comum -como sinônimo de serviçal.
Embora o movimento de emancipação feminina tenha eclodido
na década de 60, o conceito de alguns homens sobre as mulheres
não evoluiu muito, a mentalidade retrógrada ainda pode ser consta-
tada nas ruas. Para estes, o sentido contemporâneo do termo – com
valor de adjetivo - ainda é a sua mais perfeita tradução. Quantas de
nós, no trânsito, imotivadamente ou não, não teve atirada ao rosto a
famosa frase: “Vai para o fogão e/ou tanque, D.Maria?
A autonomia proporcionada pelo automóvel às mulheres repercu-
tiu no espírito masculino como algo semelhante a uma insurreição. Elas
passaram a ocupar um espaço que era privativo deles - a rua. Talvez
por isso se explique a agressividade aludida.
O lugar da maioria das mulheres foi durante muito tempo o
fogão ou o tanque, o que trouxe ao chamado sexo forte uma dupla
segurança - a clausura dificultava deslizes e o condicionamento cul-
tural imposto a ambos os sexos fazia com que a elas coubessem
somente as tarefas menores, domésticas e cotidianas, quase sem-
pre. A projeção da síndrome de Maria se opera também ao nível do
mercado de trabalho, desde o século passado. Por este motivo, a
conquista de posições pelas mulheres não chegou a se configurar
como problema para os homens, pelo contrário, não havia competi-
ção e as mulheres deixavam de ser um peso morto, proporcionando
ao orçamento doméstico uma folga maior. Pesquisas atuais mos-
tram que a força de trabalho feminino tem sido considerada merca-
doria de primeira classe, embora seus salários não sejam compatí-
veis com esta condição.
A posição de retaguarda ocupada pelas “Marias”, introjetada
pelo imaginário popular, cunhou a frase lapidar: “Por trás de um
grande homem há sempre uma grande mulher”. E o pior é que isto
serviu de consolo e ainda serve a muitas de nós. Marias, em termos
absolutos, temos sido todas, vez por outra, em algumas situações, é
118 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

verdade. Para a maioria, contudo, o complexo de inferioridade tem


dado lugar a atitudes mais saudáveis, refletidas no desempenho
satisfatório da classe em todos os campos de atividades, e na cres-
cente afirmação da autonomia.
O temperamento multifacetado das mulheres se traduz melhor
pela metonímia do que pela metáfora. Tanto assim que o perfil fe-
minino pode assumir as características portadas por cada um dos
compostos que o nome compreende, mesmo ao longo de um único
dia. Todas temos nossos momentos de Maria da Anunciação quan-
do, não podendo nos conter, precisamos “espalhar a última” para a
vizinha ou para a amiga. Ou de Maria do Socorro, oferecendo o
ombro amigo àquela que perdeu o namorado e está inconsolável.
Ou de Maria Pia quando somos capazes de jurar que somente os
maridos das outras traem. Todas temos nosso dia de Maria das Gra-
ças, dia de produção, com direito a cabeleireiro e roupa nova, esban-
jando charme, ou jogando somente com as graças que Deus nos deu.
Quem não tem seu dia de Maria das Dores, quando nos ataca aquela
infalível dor de cabeça noturna? Marias, na acepção primeira, são
todas as mães, as dos homens, inclusive, que precisam de um colo de
vez em quando. Cada Maria é uma faceta do chamado sexo frágil,
mas, paradoxalmente, cada Maria é um todo singular. Nisto reside o
enigma não decifrado inteiramente pelos homens.
Antepondo a expressão “com licença da má palavra” ao nome -
como o fazia o poeta Antero de Quental todas as vezes em que se
referia ao seu - Marias somos. Todavia, o sexo forte não tem cansa-
do de nos celebrar ao longo dos séculos. Já imaginaram o que seria
da poesia lírica sem todas as Marias?
Psicanálise e Nosso Tempo 119

Velho já era?
Marina Machado Rodrigues

Os noticiários recentes têm mostrado uma dura realidade em


nosso país: o número de idosos abandonados em hospitais, clínicas
geriátricas e congêneres têm aumentado de forma alarmante. Não se
pode desconhecer as implicações econômicas por trás deste fato. Por
um lado, hoje, o idoso, de maneira geral, é considerado um fardo, em
função das exigências mercadológicas que fazem restrições cada vez
maiores à idade produtiva.
A situação deste segmento da sociedade é reflexo da ótica per-
versa de um capitalismo exacerbado, característico do modelo
neoliberal, onde, assim como as máquinas mais antigas são substi-
tuídas por outras mais modernas, os velhos, como objetos obsole-
tos, são colocados à margem do processo produtivo. Por outro lado,
a situação dos aposentados, na qual se insere a maioria dos idosos,
em nosso país, não é das mais confortáveis. O ônus provocado por
um sistema de saúde falido - diretamente proporcional aos gastos
que a idade demanda - é responsável por um custo com o qual as
famílias nem sempre podem arcar. Este fato produz nos idosos con-
seqüências de ordem emocional extremamente perniciosas, cujo efeito
mais suave é a depressão. O orgulho de toda uma vida produtiva dá
lugar à sensação de inutilidade.
Eu me pergunto em que momento histórico-social a imagem
do idoso teria começado a sofrer tal degradação. Porque no passa-
do, quase sempre, a velhice esteve relacionada com uma imagem
positiva. Era vista como o acúmulo de experiências que orientava;
exibia a serenidade aprendida com a vida e, advinda desta, também
a certeza de que o tempo é senhor de todas as coisas. Esta imagem
é pelo menos a que as grandes obras literárias do passado veicula-
ram, senão, vejamos: o camoniano velho “de aspeito venerando”
que iluminava o senso comum “c’um saber só de experiências fei-
to”; ou o velho Afonso da Maia, personagem de Eça de Queirós,
que, sabiamente, aproveitava, com a calma de quem tem toda a
eternidade pela frente, as pequenas delícias que o espetáculo da vida
pode oferecer aos homens; ou a sabedoria e a coragem do velho
arquiteto Afonso Domingues, de Alexandre Herculano, que foi ca-
paz de sustentar a abóbada do templo, apesar da cegueira, apenas
para citar alguns exemplos clássicos.
120 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

Será que já não é tempo de voltarmos a nossa reflexão para um


problema tão crucial? Não devemos nos esquecer de que a popula-
ção brasileira, nas próximas décadas, será constituída, em sua mai-
oria, por velhos, contrariando a imagem de país jovem que o Brasil
exibia há algumas décadas atrás. O efeito Orloff está aí mesmo!
Psicanálise e Nosso Tempo 121

Discriminação ou preconceito social?


Marina Machado Rodrigues

Afirmações do tipo “aqui não há discriminação racial, o que


há é preconceito social” são expedientes utilizados pelo discurso da
burguesia para mascarar a desigualdade racial, deixando transparecer
a atitude hipócrita assumida no Brasil diante da questão.
A discriminação é um dado real, refletida na criação de leis que
garantem a igualdade de tratamento aos negros. Uma importante con-
quista política foi alcançada com a Constituição de 88, que torna o
racismo crime inafiançável. Também a Lei Afonso Arinos constituiu
um considerável avanço, punindo o tratamento discriminatório com
pena de prisão.
No entanto, estas medidas não têm sido suficientes. O precon-
ceito racial é reafirmado a cada momento no imaginário popular, atra-
vés de um grande número de frases que a cultura branca cunhou e
dissemina, revelando-se de forma velada, mas efetiva, no corpo soci-
al. Uma de suas conseqüências é a flagrante marginalização profissi-
onal de uma população de negros e mestiços num país em que afinal
“são todos quase brancos”.
Em nosso século, os primeiros movimentos de resgate da
conciência negra surgiram na América do Norte, com a indiscutível
liderança de Martin Luther King, que pregava a afirmação da raça
por meios pacíficos; ou de Malcom X, que lutou em defesa dos
direitos do negro, propondo inclusive o confronto com a sociedade
americana majoritariamente branca e racista. Na década de 70, sur-
giu o Black Power, que ganhou repercussão internacional, reafir-
mando o orgulho negro e fundando um novo conceito estético, ao
recusar os padrões impostos pela cultura branca, quando procurou
conscientizar os negros de que “Black is beautiful”.
No Brasil, muito antes disso, a luta de libertação se iniciou com
Zumbi dos Palmares, herói negro que, ao se insurgir contra a opres-
são dos senhores brancos e fundar o mais importante dos quilombos,
assumiu uma postura política em defesa da liberdade da raça, tornan-
do-se referência obrigatória na história da cultura negra.
Contemporaneamente, a consciência negra tem alargado seu espa-
ço de forma significativa. Um exemplo disso é a criação de centros e
instituições, em âmbito universitário, que têm por objetivo aprofundar
a discussão sobre a cultura e importância da raça negra na sociedade
122 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

brasileira. Este é um dos caminhos possíveis para o reconhecimento e


reafirmação da contribuição trazida pelos negros a este país miscigenado.
Outro é enfrentar o problema do preconceito racial sem hipocrisia, por-
que a remissão do erro só será possível a partir de sua assunção.
Psicanálise e Nosso Tempo 123

Sobre o conceito de arte


Robson Lacerda Dutra

Está em cartaz no Rio de Janeiro a peça “Arte” de Yasmine


Reza, na qual se discute o verdadeiro valor que a arte encerra e que,
no caso em questão, gira em torno de um quadro de alguns milhares
de dólares, onde a tela é totalmente branca.
Quais são os critérios que qualificam e distinguem a arte e
fazem com que um quadro de Van Gogh valha mais ou menos que
um outro onde, quer o branco, o azul ou o negro encerrem qualquer
outro conceito artístico?
Bem, a discussão, com certeza, pode assumir diversos contor-
nos e conseqüências sem que se possa concluir muita coisa, dada a
amplitude do tema. De qualquer forma, não é este o objetivo deste
texto, mas sim pensar a integralidade da obra de arte. Até que ponto
ela preserva sua totalidade, se é que isto é possível, e até onde se
pode ir nesta fragmentação?
Muito se fala da revisão, da nova concepção das peças de tea-
tro, por exemplo, numa modernização exacerbada, como se para o
homem moderno fosse difícil ou mesmo impossível compreender
algo que não lhe é contemporâneo. No entanto, não se dão novas
pinceladas em quadros consagrados ou acrescentam-se novos acor-
des às peças de Bach ou Mozart, por exemplo. Isto nos faz supor
que a identificação do conceito de arte nelas incluso não é obstáculo
à compreensão, já que as mesmas vêm sendo executadas há alguns
séculos para diversas platéias, “iniciadas” ou não, atingindo plena-
mente seu objetivo artístico – levar um novo conceito, uma nova
emoção àqueles que as ouvem.
A música, sobretudo, é a maior “vítima” da mutilação artística
que, atendendo a uma falsa premissa de popularização ou “ facilita-
ção”, acaba sofrendo as maiores atrocidades. Como pode alguém
consciente imaginar um movimento avulso de uma sinfonia de
Beethoven, ou de um concerto de Prokofiev ou uma sonata de
Schumann soltos num concerto, numa emissora de rádio ou em qual-
quer situação similar sem que se pague o ônus de uma violência esté-
tica? Do mesmo modo que não se concebe apenas um ato de uma
peça de teatro, um ângulo de um quadro ou até mesmo um segmento
da novela das oito desconectados do seu contexto, não se pode enten-
der apenas um trecho de uma composição musical. O preço, com
124 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

certeza, é a má formação do público e, sobretudo, um sofisma artísti-


co, onde se pode passar a atribuir a determinado autor um estilo, uma
época, elementos que não lhes são inerentes e, por isto, distanciar a
concepção e a apreciação artística em âmbito maior.
Esperamos que, em tempos de globalização, a arte, ao menos ela,
possa permanecer incólume e continuar a permitir o debate e a apreci-
ação estimulantes, baseados, sobretudo, em premissas verdadeiras.
Psicanálise e Nosso Tempo 125

Uma fábula africana sobre o poder


Robson Lacerda Dutra

Em sua última visita ao Brasil, o escritor moçambicano Mia


Couto falou a professores, alunos e interessados sobre seu último
livro - Cada Homem é uma raça - e discorreu sobre diversos assun-
tos ligados ao universo da criação artística.
Incitado por uma aluna, contou duas histórias, as mesmas que
havia contado quando da sua última visita ao Brasil e ditas em encon-
tro similar na Faculdade de Letras da UFRJ. Segundo ele, por oca-
sião das eleições em seu país, vários políticos começaram a visitar
cidades, províncias e demais cantões do distante e distanciado solo
moçambicano. Numa destas visitas, um dos candidatos mostrou ao
povo que estava ali para trazer a eles aquilo que haveria de melhor
para o bem de toda a população. No fim da sua prédica, um dos
anciãos do lugarejo pediu a palavra e contou a história do macaco.
Este, certa vez, passeava pelas margens de um rio, quando viu
um peixe nadando próximo da superfície. “Pobre animal”, disse o
macaco, “está a se afogar”. Prontamente o macaco se debruçou sobre
o rio e pegou o peixe. O animal se debatia loucamente, buscando no
ar o oxigênio necessário. O macaco por sua vez, na ânsia de salvá-lo,
cada vez mais e mais fortemente o segurava. Mais o peixe se movia,
tentando voltar à água, mais o macaco lhe tolhia a liberdade. Por fim,
fatigado pela luta travada, o peixe começou a se encolher, até que lhe
cessaram os movimentos. Por fim, morto, foi posto sobre a terra.
“Pobre animal” pensou outra vez o macaco. “Se eu tivesse chegado
antes, com certeza, o teria salvado”, concluiu então.
A outra parábola fala do morcego que, com corpo de rato, mas
com asas, vivia constantemente visitando seus amigos ratos e pás-
saros, achando-se igual a eles. Um dia, no meio de um vôo, o mor-
cego caiu ferido, exatamente na divisão entre os dois reinos. Vieram
as aves e vendo um ser alado, resolveram socorrê-lo e levá-lo ao seu
rei. Após o examinarem, concluíram, “Ele tem asas, mas não é um
dos nossos, porque o corpo é de rato”, disseram. “Vamos deixá-lo
no reino dos ratos”. Tal dito, tal feito. Deixaram o animal onde o
haviam achado. Os ratos, por sua vez, acharam o morcego e resol-
veram ajudá-lo. Levaram-no ao seu rei que, por sua vez, concluiu:
“Este não é um dos nossos. Tem corpo de rato, mas também tem
asas e por isto é uma ave. Vamos deixá-lo no reino das aves”. Lá
126 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

deixaram o corpo do pobre morcego, que acabou morrendo.


Segundo Mia Couto, a história serve para relatar as relações
entre povo e poder, especialmente quando se vive a proximidade
das eleições.
Qual seria a reflexão brasileira sobre o assunto?
Psicanálise e Nosso Tempo 127

Colonizados e colonizadores – 500 anos


Robson Lacerda Dutra

Os meios de comunicação vêm apregoando já há bastante tem-


po as comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil. Pa-
inéis, relógios, programas de festivais nos mais diversos níveis dão
conta do tempo em que as naus de Pedro Álvares Cabral deixaram
o Tejo em busca de um caminho marítimo que culminaria na desco-
berta do Novo Mundo.
Contudo, a ótica dos festejos se resume tão somente à visão
de brasileiros e portugueses, sem que se observe a dos que já esta-
vam aqui quando as naus aportaram: os índios e as conseqüências
da colonização.
O Romantismo, estilo que buscou resgatar as origens e as cores
do Brasil, em seu primeiro momento, deu voz ao índio. Vemos em
José de Alencar a tentativa de aproximá-lo do homem branco, do
português, através do amor de Peri e Ceci. No entanto, é na lírica de
Gonçalves Dias que vamos deter nosso ponto de vista sobre o que
realmente representou a chegada dos lusitanos no solo brasileiro.
No poema “O Canto do Piaga”, publicado nos Primeiros Can-
tos, o piaga, ou seja, o sacerdote, médico, cantor, aquele que traduzia
os sinais dos deuses, reúne os guerreiros da tribo Tupi para narrar,
com riqueza de detalhes etnográficos, a visão indecifrável e ameaça-
dora. O eclipse, o pio da coruja, a fogueira que se acende sozinha são
apenas alguns destes sinais de agouro que o piaga não compreende.
A visão ameaçadora toma, então, a palavra e traduz seus
vaticínios:

“Pelas ondas do mar sem limites


Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos gigante;
Vossas matas tais monstros contêm.
/.../
Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser.

Ao contrário do aparente progresso conseguido após 500 anos,


128 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

a voz do índio se calou. Não apenas no Brasil, mas nas demais colô-
nias portuguesas. Em Angola e Moçambique, por exemplo, a voz
dos nativos tem sido negada e em muitas delas os efeitos negativos da
colônia se fazem presentes através de guerras e lutas territoriais.
Será necessário que se passem mais 500 anos para que a história
seja assumida em sua totalidade e seu desenrolar plenamente escrito?
Psicanálise e Nosso Tempo 129

Mal-estar na escola
Sérgio Nazar David

Atlanta, subúrbio de classe média... Numa escola, no dia da ce-


rimônia de formatura, um adolescente chega atirando e fere seis
pessoas. Os jornais se perguntam sobre a natureza das feridas
sociais que transformam adolescentes em assassinos.
Também aqui no Brasil, os adolescentes produzem dentro e
fora da escola uma fatia da violência nossa de cada dia. Não são
poucos os sinais que temos de que estamos todos vivendo uma
crise. E que esta crise não deixa de abrir suas feridas e de produzir
seus sintomas, transformando muitas vezes jovens em delinqüen-
tes. O que mais se ouve por aí é que saímos de uma sociedade que
não permitia nada para uma sociedade que permite tudo. Para o
senso comum, é preciso voltar aos velhos limites. Tal solução é,
além de ilusória, hipócrita. Trata-se de uma visão conservadora,
que quer fazer tudo voltar ao que era antes, ao que acabou.
Por acaso a escola antiga não fazia violência? Por acaso os
professores todo-poderosos, com os conteúdos inflexíveis, com
sistemas de avaliação rígidos não faziam violência? Por acaso, a
escola dita tradicional, que ensina que bom é sempre aquele que
tira boas notas, que vencedor é sempre aquele que se sobressai
nos critérios mensuráveis de avaliação, que menina é aquela que
usa esmalte rosa, que menino é quem não usa brinco e nem deixa
o cabelo crescer, e que manda quem pode, para que os ajuizados
obedeçam, esta escola também não faz violência?
Trata-se então de substituir novamente a violência dos adoles-
centes que hoje insultam os professores diariamente por muito pou-
co ou quase nada, ou entram atirando dentro da escola, ou picham
as paredes da sala de aula, pela velha violência que na maior parte
das vezes deixava suas marcas escondidas na subjetividade sem
assumir formas evidentes de um mal praticado contra o outro? E
por acaso nesta escola antiga também muitos adultos não paga-
vam pela posição que assumiam? Nesta escola, que dizem que era
boa, professores também não eram humilhados, incapazes que eram
tantas vezes de pôr em prática o credo de fronteiras tão absolutas
a que pareciam querer servir?
Esta defesa do passado me faz lembrar a cordialidade idílica
pela qual a família tradicional não primava e que estas viúvas e
130 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

viúvos do passado, vivendo no presente, insistem em mitificar.


Neste ponto, eu fico com o meu pai, que dizia sempre: “Meu filho,
Deus me livre de antigamente.”
Psicanálise e Nosso Tempo 131

O grupo Galpão comemora 15 anos


Sérgio Nazar David

O grupo Galpão esteve no Rio comemorando quinze anos de


estrada. No programa da peça Um Moliére Imaginário, Cacá
Brandão escreve que não se trata apenas de um grupo de teatro,
mas “sobretudo de um comprometimento de vida de cada ator com
um ideal comum, ao qual propunham consagrar a própria vida”.
Este ideal, completa Cacá, incluiu, desde o início, três objetivos:
“ampliar a linguagem teatral, resgatar a cultura popular e atingir
um público menos restrito do que aquele que freqüentava as tradici-
onais casas de espetáculo”. O Galpão já passou pelo Rio com: Romeu
e Julieta, Vem buscar-me que ainda sou teu, Rua da amargura... E
em todos estes trabalhos estão presentes a paixão pelos valores po-
pulares e pelo teatro. E digo isto em contraposição ao que a indús-
tria cultural hoje impõe e vende como popular. Digo isto em
contraposição àqueles que usam o teatro só como meio de acesso à
Rede Globo, o que significa dizer que, neste caso, teatro se transfor-
ma unicamente em tudo aquilo que, sobre um palco armado, pode
ser reduzido a dinheiro.
Um Molière imaginário conta a estória da última peça escrita por
Molière, intitulada Um doente imaginário. Molière morreu em 1673,
após uma das apresentações, quando fazia o papel de Argan, o prota-
gonista da referida peça. Por ser um “ator”, é-lhe negado o sacramento
e é enterrado numa vala comum.
Molière foi o comediante favorito da corte de Luís XIV. No
entanto, parece não ter-se furtado a criticá-la. Em Um doente imagi-
nário estão presentes o ataque à lógica do capital, aos casamentos de
conveniência, ao saber vazio coberto pelo manto da retórica, ao mun-
do de aparente bem-estar onde desejar é sinônimo de esperar sentado.
Saí do teatro pensando se Moliére teve a oportunidade de, antes
de morrer, abjurar de seu ofício, arrepender-se das muitas vidas
vividas e morridas numa só vida, em nome da promessa de vida
eterna. Se teve, então, escolheu o teatro, sustentando até o fim o
desejo que o levara por ruas, circos, festas populares e feiras do
interior da França, mambembando, dentro do precário e sempre
provisório mundo da representação.
132 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

A glória da velha senhora


Sérgio Nazar David

Quem nunca chorou em final de novela não vai me entender.


Mas confesso que chorei quando vi na TV que José Saramago ga-
nhou o Nobel de Literatura. Gosto muito de alguns romances deste
escritor: Jangada de pedra, Memorial do convento, Ensaio sobre a
cegueira. Gosto menos de outros: O ano da morte de Ricardo Reis
e História do cerco de Lisboa. Mas isso não vem lá muito ao caso.
Muitos devem ter pensado que é um escritor português. Estes
talvez tenham dado de ombros, considerando talvez que cabe a eles,
portugueses, o júbilo, o orgulho (besta) patriótico. Outros talvez tam-
bém tenham pensado que tudo bem, merecido, é um bom escritor, em-
bora seja português. Sim, porque há aqueles que pensam que é da na-
tureza do português ser assim ou assado.
Mas eu, eu fiquei chorando diante de uma matéria gélida feita
pelo Jornal Hoje, sem fundo musical, sem voz pausada ao fundo,
sem imagem em câmara lenta. Fiquei pensando na língua portugue-
sa, em D. Dinis, em Camões, em Vieira, em Machado de Assis, em
Fernando Pessoa, em Guimarães Rosa, em Clarice Lispector... Fi-
quei pensando em todos aqueles que estão e estiveram na língua,
que fizeram e fazem da língua o modo mais particular de se consti-
tuir enquanto sujeito, fiquei pensando naqueles que, para não serem
boi de presépio, tiveram que escrever. E escreveram.
Não pensei nos que escrevem pensando nos outros. Não pensei
nos que escrevem para encher o bolso de dinheiro. Não pensei nos
estudiosos da obra de Saramago. Acho que nem no Saramago pensei
muito. Preciso dizer isso, sob o risco de, não dizendo, trair a maior de
todas as vitoriosas, hoje: a língua portuguesa, esta velha senhora, que
já beira os novecentos anos. Com este mundo tão em desconcerto,
com os grandes cada vez querendo mais e mais, alguma desordem
atmosférica, algum erro de juízo, amnésia, loucura, desvario, deve ter
ocorrido para que este ateu, comunista não arrependido, protetor dos
fracos e dos desvalidos, escritor da língua portuguesa, ganhasse o
mais importante prêmio da literatura mundial.
Psicanálise e Nosso Tempo 133

Difícil é saber renunciar


Sérgio Nazar David

As alunas e as mães do Instituto de Educação resolveram se rebe-


lar contra a decisão da direção da escola de proibir sutiãs que não sejam
brancos ou cor da pele. Pelo que podemos supor pelo noticiário, o
uniforme deve ser de algum tecido fininho, e, portanto, neste caso, o
sutiã, se for vermelho, azul, preto ou rosa choque, deixará de ser peça
íntima. Mães e alunas, pelo visto, realizaram uma queima de sutiãs em
praça pública, lembrando o brado das feministas de outrora. As emis-
soras de televisão dão destaque à insubordinação das alunas. Mas o
que está em jogo na proibição?
Qualquer professor que esteja vivendo por dentro os dramas da
educação hoje, sobretudo no Brasil, sabe muito bem que casos como
este se multiplicam nas escolas. Alunos chegam atrasados e entram em
sala, professores deixam turmas trabalhando durante o recreio em re-
presália à falta de empenho durante o período regular de aula e os pais
telefonam reclamando da atitude do professor, alunos fazem abaixo-
assinado para tirar professor e a direção acata sem procurar saber o
que está acontecendo de fato... Um amigo meu teve contra si um abai-
xo-assinado de alunos de uma escola do Rio de Janeiro onde eram
pedidas à direção providências porque o professor transpirava muito.
São muitas as histórias. E o que está sempre em jogo é a incapa-
cidade de uns de firmar regras e fazê-las cumprir e a incapacidade de
outros de renunciar. Mas renuncia-se a quê?
Quando ouço estas histórias das bravas mães que se enfileiram
em defesa dos filhos oprimidos, lembro-me das tantas vezes em que eu
chegava em casa reclamando do professor, às vezes com toda a razão,
e minha mãe ouvia, para dar ao final a mesma resposta sempre: “Mas
é o seu professor.” E estava encerrada a conversa. Pois se eu fosse mãe
de uma dessas feministas mirins do Instituto eu lhes diria: “Está muito
bem. Você tem o direito de querer usar o sutiã que você quiser. Tem o
direito também de não usar. Mas... É o seu colégio.” E fim de papo. E
já teria gastado 27 palavras para fazer o que minha mãe fazia com 5.
Vejam bem: não estou aqui gastando o meu latim para discutir se
as alunas deveriam ou não deveriam poder usar sutiãs da cor que qui-
sessem. Mas sim para dizer que pais e alunos não sabem e não sabem
mesmo o quanto é difícil manter uma classe atenta: porque o professor
nem sempre pode dar a aula que gostaria, porque as turmas muitas
134 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

vezes estão cheias, porque os jovens de hoje temem muito pouco... Às


vezes uma brincadeira que o professor faz durante a aula quebra a
concentração dos alunos... Embora às vezes também uma brincadeira
ajude. Os pais deveriam saber, mas muitos não sabem, que educar não
é mole não. Porque o ser humano está longe de ser um poço de bondade
e voluntarismo. Ainda mais quando está abaixo dos 20 anos, e ainda
não levou “paulada na moleira” suficientemente para aprender que co-
nhecimento não entra na cabeça por osmose, que “dinheiro não nasce
no chão”, que “em boca fechada não entra mosca”, que “quem não
trabuca, não manduca...”
O velho Freud entendeu muito bem isso em O futuro de uma
ilusão, há cem anos, quando afirmava que as regras da civilização não
são linearmente opressivas. São necessárias e imperfeitas. É erro achar
que, neste mundo, felizes só mesmo o homem, o adulto, o branco... E
que portanto só existiria um modo de viver e de ser feliz: denunciando,
protestando... Forma tantas vezes fácil de achar que o problema é sem-
pre dos outros. Volto a dizer: não discuto a validade da regra, até por-
que não estou lá dentro do colégio para saber dos motivos que talvez
tenham levado a direção a tomar tal medida coercitiva. Discuto sim o
fato de que as medidas tomadas no ambiente escolar às vezes vão de
encontro ao que muitos de nós pensamos e acreditamos, mas é necessá-
rio um paratodos. E para tanto, todos têm sua cota de renúncia. E neste
caso, vale a pena gastar energia com matéria tão sem importância?
Fico pensando então no silêncio dos pais, dos alunos e da imprensa
diante da inércia, do descaso e da desfaçatez dos poderosos, que tratam
a educação como lixo ou como uma maneira, entre outras mais, de
ganhar dinheiro. Vendo o destaque que a imprensa dava aos sutiãs, não
pude deixar de ver ao fundo o velho prédio do Instituto de Educação
caindo aos pedaços, não pude deixar de pensar nos duzentos e poucos
reais que um professor do Estado ganha, não pude deixar de pensar no
meu amigo, que, para fugir dessa humilhação de trabalhar por essa
esmola, foi trabalhar no Santa Mônica, colégio de gente rica, onde
professor não pode suar, e acabou sendo mais humilhado ainda, fico
pensando nas greves de professores que não têm matéria nos jornais,
fico pensando na educação que o estudante brasileiro tem, seja na esco-
la pública, seja na escola particular. E então chego à conclusão de que
os pais, os alunos e a imprensa estão pegando as causas erradas.

· Mannoni, Maud, Amor, ódio e separação, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,


1995, p.61.
136 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues

EDITORA
ÁGORA DA ILHA
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4 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
10 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
60 Nadiá P. Ferreira & Marina M. Rodrigues
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Psicanálise e Nosso Tempo 135

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