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The Sims4 e alfabetização midiática

Raquel Cardoso de Castro1

RESUMO: O texto é um relato sobre o uso do videojogo The Sims4 para o aprendizado de
competências gerais relacionadas a alfabetização midiática. O videojogo se mostrou uma
ferramenta excelente.
Palavras-chave: alfabetização midiática, competência gerais, BNCC, videojogo, The Sims4.

1
Formada em Letras (PUC-RJ), mestrado em Ciência da Informação (IBICT), doutorado em Comunicação
(UFRJ), e pós-doutorado em Educomunicação (UERJ). Atualmente profissional autônoma.
A alfabetização midiática
A alfabetização midiática (ou Letramento Midiático / Media Literacy) tem como objetivo
desenvolver conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias para as pessoas entenderem a
função dos provedores de informação e o conteúdo produzido:

“[...] a alfabetização midiática e informacional incorpora conhecimentos essenciais sobre


(a) as funções da mídia, das bibliotecas, dos arquivos e de outros provedores de informação
em sociedades democráticas; (b) as condições sob as quais os provedores de informação
podem cumprir efetivamente essas funções; e (c) como avaliar o desempenho dessas funções
pela avaliação dos conteúdos e dos serviços que são oferecidos. Esse conhecimento, por sua
vez, deveria permitir que os usuários se engajassem junto às mídias e aos canais de
informação de uma maneira significativa. As competências adquiridas pela alfabetização
midiática e informacional podem equipar os cidadãos com habilidades de raciocínio
crítico, permitindo que eles demandem serviços de alta qualidade das mídias e de outros
provedores de informação. Conjuntamente os cidadãos fomentam um ambiente propício em
que as mídias e outros provedores de informação possam prestar serviços de qualidade
[...]”2.

Tendo em vista a importância de uma alfabetização midiática, procuramos conjuminar


videojogos e programas de reality show para dar continuidade a alfabetização midiática das
crianças, mais precisamente, as crianças foram convidadas a escolher e reproduzir reality
shows no videojogo The Sims4. O videojogo The Sims4 já era conhecido das crianças, por
conta de outros trabalhos escolares que desenvolveram. Trata-se de um jogo eletrônico de
simulação de vida - https://sims.fandom.com/pt-br/

O reality show
Mas, os reality shows as crianças ainda não conheciam. E como elas manifestaram interesse
pelos reality shows recentemente - com os diversos comentários que presenciaram no recém
instalado TikTok por conta de uma figura chamada Karol Conká - nós aproveitamos a
oportunidade - já que elas queriam tanto ver o BBB e outros reality shows pelos quais
também se interessaram - para complementar a alfabetização midiática delas, que já
havíamos iniciado com outras atividades. Nós buscamos primeiramente uma definição de
reality show que ficasse clara para as crianças e encontramos a seguinte:

“[...] Todos nós conhecemos reality shows de TV como O Aprendiz, Survivor ou Big Brother.
Mas o que exatamente é um reality show? Que elementos são comuns a todos esses
programas? Suas características compartilhadas são o que definem o gênero de realidade. A
palavra gênero significa simplesmente "ordem". Quando aplicado a obras artísticas, um
gênero é um tipo, classe ou categoria de apresentação que compartilha características

2
UNESCO - Alfabetização midiática e informacional: currículo para formação de professores. [Disponível em
https://bit.ly/3CmUwGn consultado a setembro de 2021].
distintas e facilmente identificáveis. Exemplos de gêneros incluem romances, ficção
científica, comédias e programas de notícias. Mesmo a música popular se enquadra em
gêneros básicos - ou, como são mais comumente conhecidos, formatos. As estações de rádio
são organizadas em torno de formatos específicos, como country, rhythm and blues, hip-hop
e talk radio. Um gênero pode ser identificado por seus próprios padrões distintos de
premissa, enredo, estrutura, personagem, visão de mundo, estilo e convenções. Por causa
desses elementos característicos, a programação genérica (ou seja, um programa que
pertence a um gênero específico) pode ser considerada um corpo de trabalho. Brian G. Rose
explica: “O termo gênero implica que esses grupos de características formais ou técnicas
existem entre obras do mesmo tipo, independentemente da época ou local de composição,
autor ou assunto.” Como a maioria dos programas de mídia pertence a um gênero
específico, como ficção científica ou comédia romântica, um gênero atua como um portal por
meio do qual o público normalmente recebe mensagens da mídia. Cada gênero apresenta
uma visão de mundo consistente que molda a maneira como pensamos sobre o nosso mundo
[...]”3.

As crianças aprenderam sobre os cinco estilos de reality show: (1) os de transformação, em


que a pessoa, sua casa, sua vida são totalmente repaginadas; (2) o de aventura, em que um
grupo de pessoas é colocado numa ilha tendo que enfrentar contratempos de ordem diversa;
(3) os de casais (O solteirão /The Bachelor, Casamento às cegas, O crush perfeito etc), em
que um solteirão ou uma solteirona escolhe, após alguns encontros, um de seus diversos
pretendentes; (4) os de voyeur (Big Brother, Fazenda, Troca de esposas, Troca de família etc),
em que um grupo de pessoas é colocado em uma casa para conviver por alguns meses, ou
onde um membro de uma família é trocado por outro e convivem durante algum tempo; (5)
os de competição, como, por exemplo os de cozinha (Masterchef, Cozinha Sob Pressão,
Sugar Rush etc), em que um grupo de aspirantes a cozinheiro profissional é convidado a
preparar algumas refeições e depois são avaliados por uma banca de especialistas, mas,
também têm de dança (Dança com famosos, Dancing Brasil etc), de canto (Pop idol, Show de
calouros, Superstar etc), de casais (Power Couple Brasil, ) que é um reality show que testa os
relacionamentos de casais.

Aprendemos que o principal objetivo do reality show de um modo geral é a fofoca que
provoca fortes emoções, e ver como os competidores estão reagindo, é isso que o público
espera ver. É natural que assim seja, falamos um com o outro, mostrando interesse na vida de
nossos amigos, nos lugares que eles estiveram, e nos sentimentos variados envolvidos. Mais
do que isso, trocamos informações sobre outras pessoas e as vidas que elas levam.
Resumindo, fofocamos. As fofocas muitas vezes envolvem tons positivos de admiração,
inspiração, orgulho e afeto, bem como uma grande quantidade de conteúdo emocionalmente
neutro. Os cientistas sociais reconhecem que a fofoca cumpre funções sociais importantes. De
acordo com Robin Dunbar, as fofocas sociais dominam o aliciamento humano, ocupando
cerca de dois terços da conversa livremente formada. A fofoca mantém as pessoas unidas

3
Silverblatt, Art. (2007) Genre studies in mass media : a handbook. New York: M.E. Sharpe, Inc [Disponível
em https://bit.ly/3tD4909 consultado a setembro de 2021].
porque nos ajuda a nos relacionarmos uns com os outros. E foi exatamente isso que nós
sentimos em relação às crianças, com o isolamento social, por conta da pandemia, de repente,
vimos nossos filhos muito interessados em reality shows, e acreditamos que isso se deu
porque os reality show abriram de certa forma para eles a oportunidade de “experienciar” /
“vivenciar” como se dão as fofocas.

De acordo com psicólogos, à medida que nos aproximamos de outra pessoa, expandimos
nosso senso de si mesmo para incluí-los. Quanto mais nos aproximamos deles, fofocamos
com eles e deles, mais tendemos a pensar em sua identidade como nossa identidade, de
nossas visões como seus pontos de vista, e "mi casa como su casa". Essa é a definição de
intimidade dos psicólogos: a incorporação do outro em nosso sentido de si mesmo. As
diferenças entre um amigo, um amigo próximo, um íntimo e um amante, equivalem apenas a
questões de grau, de quão profundamente integramos nosso senso deles em nosso senso de si
mesmo. Quanto mais fazemos isso, mais generosa, confiante e íntima a relação se torna.
Amizade e amor podem parecer mágicos, mas não surgem por intervenção sobrenatural. Eles
são construídos através de interações mundanas, prestando atenção mútua, sendo generosos e
divulgando aspectos de nós mesmos um para o outro através das fofocas. Os reality shows
compartilham muitas fofocas para construir a ilusão de intimidade com um público, os
processos que constroem amizade e amor são emulados nesses shows.

Cada gênero é caracterizado por seu próprio conjunto de personagens-estereótipos. Esses


personagens aparecem com tanta frequência em um gênero que são instantaneamente
reconhecidos. A aparência destes personagens permite ao público se envolver na história
imediatamente. Mesmo reality shows improvisados ​empregam personagens-estereótipos. Os
diretores de elenco testam participantes em potencial para os reality shows com a ideia de
preencher os papéis destes personagens entre os candidatos. Em reality shows como Big
Brother, por exemplo, o maior desafio para o diretor de elenco é justamente encontrar pessoas
“reais” que se encaixem nos seguintes papéis de personagem: (1) A boa menina ou o bom
menino; (2) A cadela vadia ou vagabundo escroto; (3) A agitadora ou o agitador (alguém que
atiça as chamas da controvérsia); (4) A descolada ou o descolado 4.

Art Silverblatt atenta para o fato de que os candidatos enfrentam um processo de seleção
intensivo: seis rodadas de cortes, dois questionários extensos, um exame médico, um teste de
inteligência e um tipo de verificação de antecedentes para ajudá-los a identificar os membros
do elenco que “autenticamente” se encaixam nesses papéis pré-concebidos. Vários produtores
contratam psicólogos, que participam do processo de casting para garantir que os finalistas se
enquadrem no perfil psicológico que procuram. Isso se dá desta forma justamente porque as
demonstrações emocionais são um elemento central de gêneros como reality shows. Os
reality shows focam uma grande proporção de cada episódio na reação emocional dos
participantes. Geralmente, a câmera examina e foca nos rostos dos competidores, lágrimas

4
Silverblatt, Art. (2007) Genre studies in mass media : a handbook. New York: M.E. Sharpe, Inc [Disponível
em https://bit.ly/3tD4909 consultado a setembro de 2021].
abundam - tanto de alegria quanto de desespero - e essas respostas afetivas colocam o público
em contato com suas emoções primordiais.

Nesse sentido, foi interessante explorar com as crianças o que o videojogo The Sims 4
estabeleceu como traços (traits) dos Sims5. Nós aprendemos que os traços de personalidade
refletem padrões característicos de pensamentos, sentimentos e comportamentos das pessoas.
A teoria dos traços é da psicologia 6 e se baseia na ideia de que as pessoas diferem umas das
outras com base na força e na intensidade das dimensões básicas dos traços. Entendemos que
existem três critérios que caracterizam os traços de personalidade:

(1) consistência - os indivíduos devem ser um tanto consistentes em todas as situações em


seus comportamentos relacionados ao traço. Por exemplo, se são falantes em casa, também
tendem a ser falantes no trabalho.
(2) estabilidade - um traço também deve ser um tanto estável ao longo do tempo, conforme os
comportamentos demonstrados relacionados ao traço. Por exemplo, aos 30 anos, se alguém é
falante, também tenderá a ser falante aos 40.
(3) diferenças individuais - as pessoas diferem umas das outras nos comportamentos
relacionados ao traço. As pessoas diferem na frequência com que falam e, portanto, existem
traços de personalidade, como o falador.

E as características foram enquadradas em três categorias:

(1) Traços cardinais: os traços cardeais são raros e dominam, geralmente se


desenvolvendo mais tarde na vida. Eles tendem a definir uma pessoa a tal ponto que
seus nomes se tornam sinônimos do tipo de personalidade. Exemplos disso incluem os
seguintes termos descritivos: maquiavélico, narcisista, Don Juan e semelhante a
Cristo.
(2) Traços centrais: Essas características gerais formam os fundamentos básicos da
personalidade. Embora os traços centrais não sejam tão dominantes quanto os traços
cardinais, eles descrevem as principais características que você pode usar para
descrever outra pessoa. Termos como "inteligente", "honesto", "tímido" e "ansioso"
são considerados traços centrais.
(3) Traços secundários: traços secundários às vezes estão relacionados a atitudes ou
preferências. Freqüentemente, eles aparecem apenas em certas situações ou em
circunstâncias específicas. Alguns exemplos incluem ansiedade de falar em público
ou impaciência enquanto espera na fila.

Mais tarde, os psicólogos se concentraram em temperamentos, ao invés de traços, e


hipotetizaram duas dimensões específicas da personalidade: extroversão / introversão e
neuroticismo / estabilidade. E, depois desenvolveram a teoria da personalidade chamada de

5
Pettini, Silvia. Languaging and Translating Personality in Video Games: A Lexical Approach to The Sims 4
Psychological Simulation”. [Disponível em http://bitly.ws/gCI8 consultado a setembro de 2021].
6
Nós encontramos alguns site na Internet que ofereceram ótimos resumos sobre os traços de persnalidade:
http://bitly.ws/gz7Z, http://bitly.ws/gz83, http://bitly.ws/gz84.
Modelo dos Cinco Fatores (FFM). Os cinco fatores são comumente referidos como os Cinco
Grandes traços de personalidade, e é a teoria mais popular na psicologia da personalidade
hoje e a aproximação mais precisa das dimensões básicas dos traços. As características são
pontuadas ao longo de um continuum, de alto a baixo, em vez de presente ou ausente (tudo
ou nada). Isso significa que quando os psicólogos falam sobre introvertidos (por exemplo,
quietos, retraídos, reservados) e extrovertidos (por exemplo, ativos, sociais, falantes), eles
não estão realmente falando sobre dois tipos distintos de pessoas, mas sim sobre pessoas que
pontuam relativamente baixo ou relativamente alto ao longo de uma dimensão contínua. Os
cinco traços são: abertura à experiência, consciência, extroversão, amabilidade e
neuroticismo (ou denominado também sensibilidade).

Nós entendemos que o videojogo The Sims se baseou nessas teorias da personalidade da
psicologia para a criação dos traços disponíveis para os personagens do jogo. Então, as
crianças, assim como na seleção dos participantes para os reality shows de televisão, também
puderam, ao montar os Sims, selecionar os traços dos Sims que participaram na reprodução
do reality show no videojogo. As crianças puderam escolher os traços do lote também no
videojogo The Sims4, assim como o local onde se passa o reality show televisivo é montado
para atender aos propósitos do show. Nós temos a impressão de que o videojogo se inspirou
nos conhecimentos do corretor de imóveis na descrição do tipo de imóvel (residencial,
comercial, varejo, industrial etc.), das propriedades do imóvel (unifamiliar, duplex,
multifamiliar ou terreno dividido em zonas etc.), e dos detalhes do imóvel (se é
aconchegante, se é ecológico, se tem boa internet, se tem boa ventilação, se tem boa acústica
etc.) para estabelecer os traços do lote no jogo.

Foi muito interessante observar, em nossas jogatinas com as crianças, tanto uma
aprendizagem de seus próprios traços / personalidade, ao se identificarem com os traços dos
personagens no videojogo; quanto uma aprendizagem afetiva7 das crianças - isto é, o
processo pelo qual as instâncias de aprendizagem são potencializadas pelas emoções que o
estudante vivencia -, por exemplo: as crianças praticamente memorizaram os traços
apresentados no videojogo The Sims4, elas demonstraram muito interesse em aprender os
traços, e começaram a ver os traços nos familiares. E vimos também uma aprendizagem
socioemocional - isto é, reconhecer e compreender os próprios sentimentos, bem como
reconhecer os sentimentos “dos outros”, no caso, personagens do videojogo The Sims4.

As crianças aprenderam, em nossas jogatinas, sobre a autoconsciência - o reconhecimento e


compreensão dos próprios sentimentos, emoções e o comportamento resultante - e como isso
nos ajuda a reconhecer nossos objetivos pessoais, valores, pontos fortes, fraquezas, atitudes.
E aprenderam que identificando nossas emoções podemos nos ajudar a escolher pensamentos
e ações eficazes em uma variedade de situações. Ao mesmo tempo, aprenderam como a
identificação incorreta de nossas emoções, por outro lado, leva a problemas. Isso se deu
porque o videojogo The Sims4 tem um painel denominado simologia - com diversas

7
Cassinnelli, James. This Emotion of Mine: a diary study on affective learning in videogaming environments.
[Disponível em http://bitly.ws/gCIj consultado a setembro de 2021].
informações sobre o Sims, como: traços, gostos, genealogia, planos de ação da
vizinhança/comunidade em que vive, imagem pública, estatísticas de ações, as emoções.

As emoções são um recurso introduzido no The Sims 4, que é uma parte central da simologia
de um Sim. É semelhante ao humor, mas é mais facilmente afetado por eventos no jogo e
interações sociais com outros Sims. Então, por exemplo, desconfortável é uma emoção
disponível no The Sims 4. Ocorre quando os Sims não têm suas necessidades básicas
atendidas, comem comida ou bebida de qualidade ruim, tem seu ambiente residencial ou de
trabalho sujo ou quebrado, ou quando usam chuveiros, camas, ou outros móveis /
eletrodomésticos de péssima qualidade ou sujos ou quebrados.

A primeira vez que as crianças viram isso, elas tiveram uma reação de descrença e fizeram
comentários do tipo: “Ai que frescurite, ela está se sentindo desconfortável faz horas só
porque achou o banho que tomou de manhã ruim / a refeição ruim / sono ruim”. Mas, alguns
dias depois, eles observaram em si exatamente essas mesmas reações pelas mesmas razões,
por exemplo: ficaram chateados quando o chuveiro elétrico quebrou e tiveram que tomar
banho gelado, ou quando o prato de comida não ficou do gosto deles, e aí as crianças fizeram
comentários de reconhecimento: “Caramba, isso que o videojogo mostrou é tão real, a gente
também tem isso!!”8. E através do videojogo viram que é possível tomar atitudes para se
ajudar e contornar, por exemplo: os desconfortos.

Mas, retornando as características do reality show, aprendemos que outra propriedade


distintiva do reality show é que a programação é totalmente direcionada a segmentos
específicos do público. Os gêneros que visam esse público podem fornecer uma perspectiva
sobre as questões de interesse e preocupação desse grupo. Para ilustrar:

“[...] Gana la Verde (Ganhe o Verde), um reality show de sucesso nas emissoras de língua
espanhola dos Estados Unidos, é sobre as muitas indignidades que os imigrantes devem
suportar para obter o “cartão verde” (green card - a licença que lhes dá direito permanecer
nos Estados Unidos). Os competidores são obrigados a completar uma série de tarefas sem
sentido e humilhantes, como comer burritos recheados de vermes, pegar um porco com
manteiga ou lavar janelas de arranha-céus. O competidor que sai vitorioso no concurso
ganha o equivalente a um ano de honorários advocatícios para ajudar a adquirir um green
card. As horas de filmagem são editadas em segmentos de trinta ou sessenta minutos para
tornar o conteúdo mais dramático e divertido [...]”9.

Uma grande quantidade de “cenas” são filmadas e cabe ao editor e ao diretor tecer os sons e
as imagens em um programa que incorpora uma narrativa. Os reality shows usam um formato
comum aos documentários. Eles alternam repetidamente entre três “pontos de vista”: voyeur -
o ponto de vista da câmera oculta que parece observar cada ação enquanto permanece

8
Carissoli, Claudia. Can Videogames Be Used to Promote Emotional Intelligence in Teenagers? Results from
EmotivaMente, a School Program. [Disponível em http://bitly.ws/gCN6 consultado a setembro de 2021].
9
Silverblatt, Art. (2007) Genre studies in mass media : a handbook. New York: M.E. Sharpe, Inc [Disponível
em https://bit.ly/3tD4909 consultado a setembro de 2021].
discreto; narração / diário - geralmente uma narrativa em primeira pessoa com o sujeito
falando diretamente para o público, embora ocasionalmente feita como uma narração em
terceira pessoa; estabelecimento de transições -; e segmentos curtos de transição que indicam
uma mudança de local, hora do dia, humor, personagem ou assunto. Cada um desses pontos
de vista utiliza um conjunto de elementos de produção que ajuda a definir sua finalidade e
também o distingue dos demais pontos de vista.

Por fim, apontamos para as crianças duas características do reality show sobre as quais é
preciso ficar atento. Primeiro, os reality shows geralmente apresentam uma visão de mundo
darwiniana, egocêntrica, caracterizada pela sobrevivência do mais apto. Só que na vida real
não é assim, pois nós somos de uma espécie animal eussocial, com uma genética evoluída
para cooperar, empatizar e trabalhar em colaboração, nós desdobrarmos melhor esse ponto
mais adiante em nossas análises das produções.

Outro aspecto importante de se atentar é que em nosso sistema de mídia orientado para o
mercado não é incomum que a função ideológica de um gênero seja cooptada e substituída
por uma ideologia de consumo, isto é, o que você precisa consumir - estilo de vida, vestuário,
moradia etc. - para ser aceito socialmente. E isso pode ter graves consequências, tendo em
vista que nem todos podem ou querem se encaixar no determinado e limitado formato
promovido por um dado programa.

Nesse sentido, nós também tentamos explicar para as crianças o que entendemos da obra “O
amor nos tempos do capitalismo”, em que a autora, Eva Illouz, aponta como os afetos e os
sentimentos ligam os atores entre si e aos símbolos centrais da sociedade. Logo, procuramos
observar com as crianças nos reality shows as chamadas emmodoties. Explico: o dinheiro
veio se configurando como um dos símbolos centrais em nossa sociedade, transformando
tudo em commodities. O dinheiro e a vida emocional tornaram-se inseparavelmente
entrelaçados entre si, e ambos são estruturados, moldados e orientados pela cultura
dominante. A socióloga Eva Illouz aponta como as mercadorias facilitam a experiência das
emoções e, portanto, as emoções são convertidas em mercadorias. As emodities, como ela as
chama - emoções transformadas em commodities - se tornaram produtoras de humor,
marcadores das relações e gestores emocionais cujo propósito é mudar e melhorar o eu.
Existe toda uma indústria da cura, com: remédios, terapias, livros de autoajuda etc. Illouz
analisa uma variedade de situações modernas, como: a gestão emocional através da música, a
criação de atmosferas sexuais urbanas, e a transformação emocional por meio da psicoterapia.

O lado negativo das emmodities é que estimulam uma “demanda de se expressar e praticar o
próprio sofrimento, seja em grupos de apoio, seja em programas de entrevistas, na terapia,
nas clínicas, nos tribunais ou nos relacionamentos íntimos”. Mas então, como foi que essa
narrativa se tornou a nossa forma primordial de nos expressarmos, de termos um eu, de
vivermos e externarmos sentimentos? [...] {todos} dedicados ao campo da saúde mental
“traduziram” a narrativa terapêutica dessa forma, porque, por diferentes razões, todos têm
grande interesse em promover e expandir uma narrativa na qual o eu é definido pela
patologia, o que efetivamente promove uma narrativa da doença. Isso porque, para se
melhorar – principal mercadoria promovida ou vendida nesse novo campo –, primeiro é
preciso adoecer. Assim, no mesmíssimo tempo em que esses atores promoveram a saúde, a
autoajuda e a autorrealização, necessariamente também incentivaram e expandiram o campo
dos problemas psíquicos. Em outras palavras, a narrativa da autoajuda terapêutica não é,
como quereriam os estruturalistas, o oposto da “doença”, num par conceitual de opostos.
Antes, a própria narrativa que promove a autoajuda é uma narrativa da doença e do
sofrimento psíquico” (Eva Illouz).

Agora, cabe registrar, por outro lado, que: “o modelo terapêutico da comunicação não é,
como quereriam os construtivistas sociais, uma trama para nos tornar “disciplinados”,
“narcisistas” ou submetidos aos interesses dos psicólogos. Antes, o modelo terapêutico “é
bom para” abordar a natureza volátil da identidade e das relações sociais da modernidade
tardia. “Serve” para estruturar biografias divergentes, proporcionando uma tecnologia para
conciliar a individualidade com as instituições em que ela atua, para lidar com as rupturas que
se tornaram inerentes às biografias modernas e, o que talvez seja o mais importante, para
preservar a posição e o sentimento de segurança do eu, fragilizado justamente pelo fato de
este ser continuamente encenado, avaliado e validado por terceiros. Como disse Richard
Sennett, “o problema que enfrentamos é como organizar agora as nossas histórias de vida,
num capitalismo que nos predispõe a vagar a esmo”.

Tendo isso posto, a seguir, procuramos resumir a seguir o enredo de cada reality show criado
pelas crianças.

Reality show de transformação


O mais poderoso dos enredos de reality shows até o momento é o que explora a aspiração.
Vem dessa fantasia norte-americana de que alguém pode ser quem quiser. Agora, os reality
shows prometem que isso pode acontecer, seja o trabalho perfeito (O Aprendiz), o corpo
perfeito (Extreme Makeover) ou a casa perfeita (Extreme Makeover: Home Edition). E, nesse
sentido, esses shows moldam uma maneira de ver o mundo, um construto social, criando um
formato do que é mais, melhor, bonito, bom, e um formato do que é menos, pior, feio e ruim.

As crianças estavam animadas com esse reality show e resolveram fazer uma remodelação
über extreme total: trabalho, corpo e casa no The Sims4. O reality show, seguindo a análise
de Brenda Weber, teve seis fases: (1) a vergonha inicial do participante como sujeito da
miséria, (2) o parecer de especialistas e a reação da audiência (3) a rendição à reforma do
participante, (4) a transformação, (5) o espetáculo da revelação, e (6) a euforia final do novo,
com a aprovação do público e os especialistas satisfeitos. Assim, as seis fases formam uma
espécie de narrativa quase religiosa, com a transformação no epítome de um bom
cidadão-consumidor neoliberal:

“[...] Como tal, a abordagem de Weber sobre a reformulação da TV está de acordo com os
entendimentos mais recentes da TV de realidade (por Laurie Ouellette, James Hay e Gareth
Palmer mais notavelmente) como uma espécie de formação para a cidadania
contemporânea, laboratórios de conduta e, portanto, uma contribuição para a mediatização
da vida cotidiana. Assim, o primeiro capítulo do livro elabora longamente sobre as maneiras
como a reforma mostra valores articulados de americanidade e ideais de cidadania,
enquanto os três seguintes analisam as maneiras como o sujeito da reforma desenvolve
capacidades para se conformar às economias da aparência e do gênero [...]”10.

Os programas de remodelação tem como base a narrativa neoliberal - como apontaremos


mais adiante em nossas análises - tendem a focar no EU como o problema central: a
aparência do seu corpo, a aparência da sua casa, a aparência do seu trabalho. Então, as
crianças - a fim de retratar isso no reality show que reproduziram no The Sims4 -, assim
como nos reality shows de remodelação, lançaram mão do parecer de especialistas,
geralmente pessoas com algum tipo de experiência na área - para fazer recomendações sobre
o que é preciso mudar. É claro que todas as instruções são conselhos ao consumidor, o que ele
deve comprar para ser “mais, melhor, bonito, bom”. E as crianças atentaram para retratar a
ilusão de que o lado de fora reflete exatamente o lado de dentro. E que se você pode mudar
um, então você pode mudar o outro. Como se o exterior e o interior combinassem. O ledo
engano de que o exterior é algo que pode ser mudado, pode ser cortado, pode ser pintado,
pode ser vestido, pode ser revestido. E com isso o interior também vai ser “melhorado” para
se encaixar no construto social atual do que é “bom e belo”.

Nós apontamos para as crianças que era preciso atentarmos na reprodução desse reality show
de reforma para a fantasia da mitologia neoliberal do que significa estar no “assento do
motorista”, como gerenciar a si mesmo, como temos a obrigação de nos conhecermos, a
grande falácia pregada do self-made man ou self-made woman, uma maneira pela qual cada
um deve usar sua própria força de vontade, tenacidade e motivação para alcançar o “sonho
(do consumista) norte-americano”, e analisamos isto mais adiante.

Tendo em vista estes aspectos do reality show de transformação, antes de reproduzir o reality
show de remodelação no videojogo The Sims, as crianças leram conosco lides de algumas
reportagens sobre preconceitos em nossa atual cultura. Selecionamos as principais e
registramos a seguir:
○ Gordofobia: por que esse preconceito é mais grave do que você pensa:
crescem os casos de preconceito contra pessoas gordas no Brasil
(http://bitly.ws/gvv8).
○ Cientistas teriam descoberto cura eficaz e definitiva para a calvície
(http://bitly.ws/gvvz)
○ Não vejo, não ouço, não falo: árbitros no Brasil obedecem à "lei da mordaça"
e não podem ter barba, cabelo grande ou nome sujo na praça. Ministério
Público do Trabalho cria grupo para apurar condições da classe. Sob pena de
gancho, os árbitros de futebol no Brasil não podem ter barba e, por isso,
precisam se apresentar de cara limpa aos jogos em que são escalados. Não

10
Resenha do livro “Makeover TV: Selfhood, citizenship,and celebrity” de Brenda R. Weber, por Anne Jerslev.
[Disponível em https://tinyurl.com/hv8macr7 consultado a setembro de 2021].
podem ter cabelo grande - com exceção das mulheres, é claro. Também é de
bom tom evitar tatuagens (http://bitly.ws/gvvY).
○ Advogado ironizado por professora no Rio pensou que fosse 'gozação'.
Educadora postou foto questionando roupa: 'Rodoviária ou aeroporto?'.
Marcelo Santos contou que voltava de um cruzeiro internacional.
○ Sensitiva da TV diz que louça suja atrai espírito esfomeado
(http://bitly.ws/gRKn).
○ 4 métodos ajudam a reverter pensamentos negativos que empacam sua vida
(http://bitly.ws/gPAh)
○ Quatro pontos-chave para vencer a procrastinação: A técnica de Wessel é
inspirada na Teoria da Motivação Temporal (http://bitly.ws/gPB2).

Nós aproveitamos também para promover uma reflexão sobre os formatos de moradia
propagados pela mídia. Nós compartilhamos a imagem abaixo e um trecho de um poema a
seguir:
“Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão”11.

11
O Operário Em Construção de Vinicius de Moraes. [Disponível em
https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/87332/ consultado a setembro de 2021].
E ponderamos juntos por que o formato de “puta case de sucesso”, em nossa sociedade
neoliberal consumista, não inclui o camponês que é capaz de fazer, de modo sustentável, com
suas próprias mãos, sua casa de pau-a-pique, sua panela de barro, seus utensílios de cestaria,
seus móveis de madeira, e ainda é capaz de cultivar sua horta, seu pomar …?

Depois, diante do quadro montado a partir das reportagens, as crianças procuraram criar um
Sims com as características rejeitadas em nossa sociedade, um Sims que não se encaixasse no
formato “aplaudido” por nosso coletivo. E assim “nasceu” Fausto Matoso, desempregado:

E com sua casa que não se encaixa também nos padrões estéticos:
Depois a remodelação extrema, em que Fausto passa por algumas cirurgias e uma repaginada
em seu guarda-roupa:
Assim como sua casa, que passa a ter o estilo clean:

Por fim, pontuamos com as crianças que é preciso um olhar criterioso e questionador para o
que está sendo vendido, não só no reality show, mas nos programas de TV de um modo geral.
Com o T-Commerce - resumidamente é a junção da TV com o E-commerce - tudo que é visto
em Reality Shows - assim como novelas, comerciais etc - pode ser comprado. por exemplo: a
Globo Marcas é o portal que comercializa produtos dos programas da Rede Globo de
televisão, incluindo itens exclusivos, assim, as pessoas que se apaixonaram pelos looks dos
personagens das novelas, ou pelo mobiliário do reality show, podem encontrar no site
acessórios e vestuários iguais aos que os artistas usaram nas novelas, ou dos participnates do
reality show.

Reality show de voyeur


As crianças escolheram o formato Big Brother como reality show a ser reproduzido no
videojogo The Sims4. O Big Brother é uma criação holandesa, com o formato em que os
competidores vivem em uma casa isolada, cada parte, incluindo o banheiro e os quartos,
estando sob o controle de câmeras dia e noite, e tentam evitar serem despejados pelos
telespectadores para ganhar um prêmio no final.

Então, o primeiro passo foi criar 8 Sims com traços (traits) e em faixas etárias diferentes.
Assim como há uma seleção dos participantes para se enquadrarem em determinados perfis,
contendo certos traços de personalidade, as crianças também selecionaram os traços dos Sims
(da esquerda para a direita) que entraram na casa para o BBB, e esses Sims foram
reaproveitados para o reality show de casais “O solteirão” (The Bachelor) depois. São eles:

● Wendy Black - desajeitada, materialista e amante de artes, aspiração a rainha das


travessuras;
● Julia Vilela - bondosa, engajada, extrovertida, aspiração a líder do bando;
● Alexandre Palma - glutão, preguiçoso, relaxado, aspiração a grande festeiro;
● Michael da Silva - ambicioso, cleptomaníaco, esnobe, aspiração a fabulosamente rico;
● Sergio Souza - soturno, solitário, devorador de livros, aspiração a cérebro nerd.
● Inocêncio Sacramento - maldoso, maligno, errático, aspiração a inimigo público
● Valentina Franco - ciumenta, egocêntrica, romântica, aspiração a romances em série;
● Tânia Morato - asseada, cabeça quente, ativa, aspiração a nativa da cidade;
Depois as crianças montaram a casa onde os participantes se isolaram, que funcionou tanto
para a reprodução do BBB quanto para “O solteirão / A solteirona”. A casa tinha: três
quartos, 2 quartos com quatro camas de solteiro cada, e um quarto especial com uma cama de
casal, suíte, varanda, para o líder da semana; um quarto cheio de confortos para o líder da
semana; uma sala de estar; um quarto de jogos; uma sala de jantar; uma cozinha com os
electrodomésticos necessários para a confecção de refeições (frigorífico, fogão, micro-ondas,
cafeteira etc.); quatro banheiros (um banheiro para cada quarto, e um banheiro perto da sala
de estar), uma lavanderia, uma sala para os desafios com as tarefas semanais, e um jardim
com sauna, piscina, bar, ambiente para socialização. Escolheram como traços do lote:
vibração maldosa, aura romântica, local de festas.
Como a ideia é que os Sims fiquem isolados do mundo externo dentro dessa casa, as crianças
não colocaram na casa:
- TVs
- Computadores
- Rádios / tocadores de música
- Portas de saída da casa

As crianças pensaram juntas então os desafios com tarefas semanais, pois seria assim que se
determinaria no videojogo quem ganharia a liderança e a imunidade, portanto o direito a
votar quem deveria sair da casa.

As crianças optaram como critério seletivo, todas as semanas, os Sims terem alguma tarefa a
fazer - a produção de um artefato com um valor auferido pelo próprio videojogo -, e o Sim
que produzisse a peça de maior valor era recompensado com a liderança por uma semana, e a
imunidade, o que significa que ele/ela votava/ escolhia quem devia sair da casa. Isso é
possível com código que relaciona quais Sims se relacionaram melhor com o vencedor12. E
durante as semanas de intervalo entre as seleções, as crianças criaram para cada dia uma série
de atividades, através dos feriados do calendário disponível no videojogo:

12
As crianças tiraram esse critério a partir da gameplay que eles viram no canal do PlayLuque -
https://www.youtube.com/c/LuqueSims
Semana 1 - Tarefa Social
As crianças deixaram os Sims se divertirem e se conhecerem na primeira semana. Colocaram
bares, mesas de jogo, tudo para descontrair e todos se conhecerem melhor! Foi uma semana
para socializar e construir relacionamentos.

Semana 2: Tarefa de Pintura


A habilidade de Pintura permite ao Sims ter capacidade e talento para exercer a arte da
pintura, realizando obras artísticas de pintura, por meio de traços, cores, combinações de
cores. As crianças colocaram então na sala dos desafios cavaletes para cada Sims treinar
durante uma semana.

Semana 3: Tarefa Ponto de cruz


A habilidade de Ponto de cruz permite ao Sims usar essa forma popular de bordado em fios
contados na qual os pontos têm formato de “X” e produzir belos artefatos para decorar,
presentear ou vender. As crianças colocaram então na sala dos desafios cestas de ponto de
cruz para cada Sims durante uma semana.

Semana 4: Tarefa de Tricô


A habilidade de Tricô permite ao Sims confeccionar (peça do vestuário, enfeites, utensílios
diversos) em trabalho de tricô. As crianças colocaram então na sala dos desafios o material
necessário para cada Sims treinar durante uma semana.
Semana 5: Tarefa de Escultura
A habilidade de Esculpir permite ao Sims imprimir, cinzelar ou entalhar figuras / ornamentos
em madeira. As crianças colocaram então na sala dos desafios as bancadas de trabalho para
cada Sims esculpir suas peças durante uma semana.

Semana 6: Tarefa Fabricação de velas


A habilidade de fabricação permite ao Sims fazer velas por meio da mistura dos ingredientes
derretidos em máquina específica. As crianças colocaram então na sala dos desafios mesas
para a fabricação de velas.

Semana 7: O Grande Final!


Restaram três finalistas neste momento! Eles lutaram muito para chegar até ali, mas
finalmente era a hora de uma tarefa final para determinar quem seria o campeão. As crianças
colocaram máquinas de suco, e o Sims que produziu o suco mais caro venceu.

Explicamos para as crianças, que os produtores de reality shows como BBB estão preparados
para manipular os competidores para conseguir os efeitos desejados para o programa, em vez
de simplesmente deixarem os eventos seguirem seu curso natural. A começar pela natureza
artificial do ambiente, com muitos determinantes, como o fato de os participantes não terem o
trabalho (o ofício de suas profissões para se ocuparem), e o fato de estarem sem distrações
(tv, tablet, computador, console, revistas, telefone, amigos etc.) que caracterizam nossa vida
cotidiana, mas no show são propositalmente removidos.

Isso se dá justamente porque no reality show se prioriza fortemente as interações pessoais


com base nos gostos e interesses, isso ainda é mais intensificado por meio das intervenções
do próprio Big Brother com as tarefas estabelecidas para os participantes. E para conseguir
narrativas suculentas e dramáticas, os produtores editam implacavelmente a filmagem bruta.
Por exemplo, na primeira série australiana, 182.750 horas de material foram editadas para 70
horas de televisão. Assim como qualquer outra produção televisiva, o Big Brother foi
construído para atrair e manter uma audiência. O programa usa pessoas “reais” em certos
tipos de situações “reais”, mas as escolhe e as manipula para produzir sua narrativa dramática
e recheada de conflitos.

Então, as crianças “produziram” alguns conflitos, algumas crises e alguns romances, ao longo
das atividades, como elementos valiosos para o desenvolvimento do tipo de narrativa que a
"boa televisão" requer para atrair um grande público.

Reality show de casais


As crianças usaram os personagens e a casa já montados para o reality show anterior, mas,
desta vez, os personagens estavam competindo pelo coração de Valentina, uma jovem
bissexual, transexual, lindíssima e jovial. E as crianças propositalmente conduziram o reality
show de forma semelhante ao primeiro The Bachelor como resumido na obra de Silverblatt13.

Valentina compartilhou o que esperava de sua futura companheira, quais habilidades, traços
etc., e foi isso que deu o norte para as competições semanais, o solteirão/solteirona que
apresentasse melhor desenvolvimento da habilidade requerida ganhava. E no final de cada
semana era marcado um grande jantar em que Valentina presenteava um buquê de flores às
candidatas que ela queria que permanecessem no programa, cortando assim as candidatas que
se encaixavam menos no formato de companheira que ela queria.

Semana 1 - Tarefa Social


Valentina gostaria de ter uma companheira sociável. Desta forma, as crianças deixaram os
Sims se divertirem e se conhecerem na primeira semana. O primeiro encontro foi para
socializar. Valentina conheceu as candidatas, e as candidatas se conheceram, numa grande
festa. Colocaram bares, mesas de jogo, tudo para descontrair e todos se conhecerem melhor!
Foi uma semana para socializar e construir relacionamentos. O Sim com o melhor
relacionamento da casa venceu e foi recompensado como líder por uma semana, e o Sim com
o pior relacionamento perdeu e saiu da competição pela mão de Valentina.

Semana 2 - Tarefa Culinária


Valentina almejava uma companheira que soubesse e curtisse cozinhar para juntas apreciarem
uma culinária saudável. Como o nome sugere, esse traço define o quão habilidoso um Sim é
ao cozinhar. Uma habilidade alta diminui a possibilidade de incêndios no fogão, além de
permitir a preparação de novos pratos, pratos saborosos, e mais eficientes para saciar a fome.
As crianças colocaram então na sala dos desafios um fogão para cada Sim cozinhar refeições
durante uma semana.

Semana 3 - Tarefa Mecânica


Valentina sonhava em ter uma companheira que soubesse consertar as coisas para ajudá-la na
casa. A habilidade Mecânica permite que um Sim repare aparelhos quebrados, eletrônicos,
pias, vaso sanitário, camas, banheiras e chuveiros em uma velocidade mais rápida que pode
eliminar a necessidade de um técnico. A habilidade também reduz o risco do Sims
eletrocutar-se quando tenta reparar o equipamento. As crianças colocaram então na sala dos
desafios TV quebrada, vasos sanitários quebrados, chuveiros quebrados, camas a serem
melhoradas etc, para durante uma semana os Sims consertarem.

Semana 4 - Tarefa Jardinagem


Valentina desejava uma companheira que soubesse cultivar plantas como ela. A habilidade
Jardinagem permite que um Sim desenvolva a capacidade de plantar, cuidar e colher
alimentos. As crianças colocaram então na sala dos desafios vasos para cada Sims tentar
jardinar durante uma semana.

13
Silverblatt, Art. (2007) Genre studies in mass media : a handbook. New York: M.E. Sharpe, Inc [Disponível
em https://bit.ly/3tD4909 consultado a setembro de 2021].
Semana 5 - Tarefa Videogame
Valentina se encantava com a ideia de ter uma companheira que soubesse jogar videogame
para acompanhá-la em suas jogatinas. A habilidade de videogame permite ao Sims usufruir
desenvoltura com videojogos, jogando bem em computadores, tablets, consoles ou celular. As
crianças colocaram então na sala dos desafios aparelhos para cada Sims tentar jogar durante
uma semana.

Semana 6 - Tarefa Comédia


Valentina queria para si uma companheira que fosse engraçada, soubesse contar piadas,
enfim: divertida. A habilidade de comédia permite ao Sims divertir, fazer rir; ser cômico e
agradável. As crianças colocaram então na sala dos desafios microfones e espelhos para cada
Sims demonstrar sua habilidade de comédia durante uma semana.

Semana 7 - Tarefa Romance


Depois de semanas de cerimônias de buquês de rosas distribuídos, o número de candidatas
caiu para apenas duas: Tânia e Adão. Neste ponto, Valentina conheceu cada uma em
diferentes locais para encontros individuais. Isso permitiu que a candidata e Valentina se
conhecessem melhor em um ambiente mais íntimo. Valentina também levou as duas para um
jantar na casa de sua família. Cada membro da família ofereceu a Valentina depois suas
opiniões sobre qual candidata seria a melhor opção para ela, mas no final das contas a decisão
foi da Valentina mesmo.

Nessa etapa, as crianças exploraram bastante a visão maniqueísta, que atrai bastante a
audiência, o bem contra o mal é inclusive uma característica marcante das novelas que
chegou aos reality shows. Seguindo os relatos de Silverblatt, Tânia e Inocêncio pareciam tão
opostos quanto a noite e o dia. Tânia foi retratada como o tipo de “garota da porta ao lado”.
Ela era bonita, doce, descontraída e muito querida pelas outras mulheres, fazendo muitos
amigos ao longo do caminho. As crianças colocaram a Tânia para se importar com os
sentimentos das outras candidatas e estava lá quando elas precisavam dela. Seus sorrisos e
adoração tornavam impossível para alguém não gostar dela. Inocêncio, por outro lado, não
estava lá para fazer amigas. Devido ao seu comportamento travesso e falando sobre as outras
candidatas pelas costas para a câmera ou para Valentina, ele foi rapidamente designado como
a antagonista do show. Não havia dúvida de que ele era um gato, mas parecia não haver
qualidades redentoras reais sobre ele. Raramente Inocêncio poupava alguém de suas
travessuras e sua gentileza era dirigida apenas a Valentina. Só quando Inocêncio perdeu é que
vimos aparecer alguma emoção. Em uma cena simulada, depois que Valentina confessou a
ele que havia se apaixonado por Tânia, Inocêncio correu e chorou na parte de trás da casa,
seu medo havia se tornado realidade e o pensamento de Valentina e Tânia juntas se amando o
deixava doente.

O programa tornou assim mais fácil para os supostos “espectadores” vaiarem Inocêncio e
torcerem para que Tânia e Valentina vivessem felizes para sempre. As duas candidatas
competindo pelo coração de Valentina é um script velho mas que não sai de moda: o do
triângulo amoroso. Assim como traição, mentiras e sexo são todos ingredientes ativos em
eras de novela, “O solteirão” (The Bachelor) também incorporou esses elementos no enredo
do programa. Atos de desonestidade e engano estão presentes quando o status de solteiro do
Inocêncio é questionado. Nunca é revelado claramente se Michael é ou não um ex-namorado.
Ele diz a Valentina que ele e e Michael terminaram antes de entrar para fazer o show, mas
enquanto vivia na mansão, Inocêncio e Michael ocasionalmente “sugerem” - por emoções
paqueradoras, pelos balões que denunciam seus desejos - a outras pessoas que pode haver
mais na história do que apenas uma separação limpa e simples. O programa então deu aos
“espectadores” a impressão de que a história de Inocêncio e Michael é sombria. Até a família
da Valentina acha que há algo suspeito em sua explicação. Em um ponto durante o show, o
Valentina é levada a confrontar Inocêncio sobre seu relacionamento anterior com Michael, se
ainda estão envolvidos, e ele explica que ele e o namorado se separaram, mas continuam
amigos. Essa explicação parece acalmar Valentina, porém, com Inocêncio já designado como
o personagem maligno do show, é difícil aceitar sua palavra como verdade, deixando a
situação sem solução.

As crianças procuraram explorar esses valores de produção das novelas, que também são
aplicados ao “Solteirão” (The Bachelor), mas, esse drama suculento não foi possível
reproduzir tão bem no videojogo The Sims4, como: música dramática, close-ups
concentrados e longas pausas cheias de suspense que acontecem ao intensificar os momentos
de clímax. Por exemplo, durante cerimônias do buquê de rosas, quando Valentina cortava
candidatas pelas quais não sentia um interesse romântico, não foi possível focar a câmera no
rosto dos participantes para mostrar as emoções que eles estavam sentindo. Este método e
outros são utilizados para adicionar mais paixão ao programa. “The Bachelor” revela muitos
indícios de que os reality shows da televisão seguem fórmulas convencionais que já existem
há muitos anos. Embora, em vez de personagens, existam pessoas reais nos reality shows
televisivos, e, em vez de um roteiro, haja um diálogo natural, as pessoas reais e o diálogo real
parecem sucumbir às velhas fórmulas da televisão: sexo, mentiras e bem contra o mal.

Reality show de competição


As crianças usaram os mesmos personagens e a casa, já montados, para o reality show
anterior, mas, desta vez, os personagens estavam competindo por popularidade. As crianças
viram conosco alguns reality shows de competição, como: Master Chef, Dancing Brasil, mas
ainda não tinham visto esse novo formato do Círculo. Ora, vivemos em um mundo governado
por mídias sociais e dispositivos móveis. Faz parte da norma iniciar alguns relacionamentos e
fazer amigos primeiro online antes de se encontrar pessoalmente. Isso torna o conceito da
série plausível e fascinante. The Circle também é um show interessante do ponto de vista da
psicologia. Como essas pessoas usarão apenas suas palavras para manipular, ganhar
confiança, construir laços e encantar seu caminho para o prêmio?

Para esse reality show as nossas crianças investiram no módulo “Get together club”. Um
clube é um grupo de Sims, de 2 a 8 membros que compartilham um conjunto comum de
metas quando se reúnem. Cada Sim pode estar envolvido em até 3 clubes. Os dirigentes do
clube decidem quais restrições existem para entrar no clube, e quais atividades o clube se
concentrará em realizar, e eles também podem proibir até 5 tipos diferentes de atividades.

E a disputa toda ocorreu em torno de quem seria o líder do grupo, jogando com as diversas
possibilidades que o módulo oferece. Por exemplo: se um Sim tem um relacionamento muito
alto com o líder do clube, ele pode pedir para esse Sim deixar o “cargo" de líder para ele. A
outra opção é fazer com que todos os outros Sims não gostem do líder, criando intrigas e
discórdia, arrebatando assim o título de líder (os motivos para isso são com você, por
exemplo, herdeiro legítimo, melhores idéias para o futuro, mais próximo do líder original,
esteve na comuna por mais tempo).

Reality show de aventura


Nós aproveitamos esse reality show produzido pelas crianças para estudar também um pouco
da pré-história sul americana usando o videojogo The Sims4. A aventura das crianças
começou com três personagens - um antropólogo, uma arqueóloga e uma bióloga - colocadas
numa ilha e com a missão de realizar investigações arqueológicas para uma reconstrução do
passado humano na América do Sul, estudos sobre a fauna e flora para uma monitorização da
biodiversidade, e pesquisa sobre a cultura dos habitantes locais. Os personagens devem
realizar uma pesquisa pela ilha para aprender - num espaço de tempo pré-determinado - sobre
os “locais montados pelo estúdio” simulando escavações arqueológicas com relíquias de
civilizações pré-históricas, os herbários e o povoado local etc. As crianças usaram os pacotes:
“Aventura na selva” e “Retiro ao ar livre” para montar esse reality show.

As crianças aprenderam durante suas jogatinas que um antropólogo estuda vários aspectos
dos seres humanos nas sociedades passadas e presentes. As crianças tiveram um vislumbre do
trabalho do antropólogo durante suas jogatinas ao observarem os costumes do povoado
Selvadoradiano local, provarem de sua culinária, participarem de seus rituais (como danças
etc), ouvirem as histórias (folclore) locais, perguntarem sobre a selva, visitarem os pontos
turísticos locais e o patrimônio local.

As crianças aprenderam que um biólogo estuda a vida em seus mais variados aspectos,
importando-se em compreender, por exemplo, o funcionamento dos organismos vivos, a
relação desses seres com o meio e seu processo de evolução. As crianças tiveram um
vislumbre do trabalho de um biólogo durante suas jogatinas ao observarem a fauna e flora do
local, pesquisarem sobre determinadas plantas e aprenderam a preparar remédios, cremes,
loções, bálsamos, óleos, extratos, infusões e pomadas com essas plantas. Aprenderam que as
plantas medicinais são usadas há muito tempo por nossos antepassados e são conhecidas por
terem um papel importante na cura e tratamento de algumas doenças.
As crianças aprenderam que um arqueólogo estuda as culturas e os modos de vida das
diferentes sociedades humanas - tanto do passado como do presente - a partir da análise de
objetos materiais. As crianças tiveram um vislumbre do trabalho do arqueólogo durante suas
jogatinas ao escavarem e descobrirem fósseis, artefatos antigos e obras de arte.

Aprendemos com a wikipedia que a América do Sul foi provavelmente o último continente
do planeta a ser habitado por humanos, à exceção da Antártida. Segundo a teoria
paleontológica mais consolidada, os primeiros habitantes do continente teriam chegado por
terra, vindos da América do Norte e, antes disso, da Ásia por meio de uma ponte de gelo
existente entre os dois continentes na última Era Glacial. As primeiras evidências de
ocupação humana datam de 20.000 a.C., por vestígios de agricultura, utensílios diversos de
cerâmica, a domesticação de lhamas e alpacas para a produção de carne, lã e como transporte.
Logo, aproveitamos a oportunidade dessa jogatina no The Sims4 para um mergulho sobre a
vida dos primeiros povoados do atual território sul americano, e arte produzida por estes
povos, o livro "Ancient arts of the Andes”. O objetivo era - a cada descoberta das
personagens - estabelecer uma relação entre o que se encontrou no videojogo e o que se
encontrou de fato em sítios arqueológicos, em estudos botânicos e estudos antropológicos na
América do Sul. As crianças aprenderam sobre os seguintes povos pré-históricos da América
Latina:

>> A cultura Mochica - “Cultura pré-histórico típica da região dos vales do norte do Peru,
ocorrida entre os anos 300 a.C. e 1 000 d.C. na qual, o aumento da complexidade na
elaboração da cerâmica e na produção de peças de metais, notadamente ourivesaria, mais a
evolução arquitetônica dos sítios urbanos, com introdução de novas técnicas construtivas,
permite dividi-la em cinco períodos. A base econômica dessa civilização era a atividade
agrícola praticada nos vales da costa do Pacífico aos contrafortes dos Andes, onde a
necessidade levou a introduzir a agricultura irrigada, prova da sofisticação de sua
engenharia. Entretanto, essa cultura não conheceu a escrita e os hábitos, usos e costumes, e
quase tudo quanto dela hoje se pode saber, ficou registrado iconograficamente em artefatos
cerâmicos, com cenas detalhadas da vida comum em seus mais variados aspectos como a
caça, pesca, combate, castigo, prazeres sexuais, cerimônias religiosas e outros afazeres. E as
crianças apreciaram conosco registros da arte produzida pela cultura Mochica”.

>> A cultura de Tiwanaku em Tiauanaco ou Tiwanaku (em castelhano: Tiahuanaco ou


Tiahuanacu) - Tornou-se “um sítio arqueológico pré-histórico no oeste da Bolívia, perto do
lago Titicaca, e um dos maiores sítios arqueológicos da América do Sul. De acordo com
estimativas e através de imagens de satélite usadas para mapear a extensão de suka kollu
fossilizado nos três vales principais de Tiwanaku, acredita-se que tenha chegando a uma
capacidade populacional estimada entre 285 000 e 1 482 000 pessoas. O sítio arqueológico
de Tiauanaco está localizado no vale entre duas montanhas sagradas, Pukara e Chuqi
Q'awa. Em tais templos em eras antigas, cerimônias eram conduzidas para homenagear e
agradecer aos deuses e espíritos”.

>> A cultura dos Sambaquis - Aprendemos com a wikipedia que “ os sambaquis são uma
importante fonte de estudos. Pesquisando seu conteúdo, pode-se saber sobre a vida dos
primeiros povoados do atual território brasileiro, como sua alimentação, seus conhecimentos
técnicos, a fauna e a flora da época etc. Os excrementos humanos fossilizados podem nos
informar, por exemplo, sobre as doenças que aqueles homens e mulheres tinham”.
>> O Império Inca - “O antropólogo Gordon McEwan escreveu que os incas foram capazes
de construir "um dos maiores Estados imperiais da história humana" sem o uso da roda, de
animais de tração, conhecimento de ferro ou aço ou mesmo um sistema de escrita". As
características notáveis do Império Inca incluem a sua monumental arquitetura,
especialmente cantaria, sua extensa rede de estradas que atingia todos os cantos do império,
seus tecidos sofisticados, seu uso de cordas atadas (quipu) para a manutenção de registros e
comunicação, suas inovações agrícolas em um ambiente difícil e sua organização e gestão
imperial. O Império Inca funcionou em grande parte sem dinheiro e sem mercados. Em vez
disso, a troca de bens e serviços era baseada na reciprocidade entre indivíduos, grupos e
governantes incas. Os impostos consistiam em uma obrigação trabalhista de uma pessoa
para com o império. Os governantes incas (que teoricamente possuíam todos os meios de
produção) retribuíam concedendo acesso à terra e bens e fornecendo comida e bebida em
festas comemorativas para seus súditos”.

>> Os quimbaya - “Uma etnia e cultura indígena pré-histórica famosa por sua produção de
peças de ouro de alta qualidade e beleza. Até 1530 estavam organizados na chamada
federação quimbayá, centrada ao redor da cidade de Chinchiná, esta federação opôs uma
férrea resistência armada aos espanhóis, depois da derrota continuou existindo ainda que
desapareceram como grupo por volta de 1700”.

Durante o reality show as crianças alternaram entre os pacotes “Jungle Adventure” e “”. Em
“Aventura na selva” os Sims têm um novo mundo de férias para visitar, chamado
Selvadorada. Selvadorada é inspirada na região latino-americana cercada por vastas
extensões de selva, cachoeiras e belas paisagens, dominadas por pontes e passagens que
podem levar a piscinas naturais, lagoas pitorescas com pontos de pesca, jardins cobertos,
passagens secretas que levam a uma aventura na forma de cartas de azar. A selva também
contém perigos naturais, como abelhas, cobras e aranhas. A chamada Selva de Belomisia tem
as ruínas escondidas para explorar, e aqui entra a arqueóloga que as crianças criaram,
buscando as relíquias, os antigos templos omiscanos, passando por vários quebra-cabeças e
armadilhas. A arqueóloga deve desenterrar, autenticar e estudar os artefatos antigos.

Ao lado da selva Selvadorada habita um pequeno assentamento, chamado Puerto Llamante


Marketplace, e aqui entrou o antropólogo que as crianças criaram, cuja missão no relaity
show é observar e interagir com os locais, experimentar novos alimentos, aprendendo sobre a
cultura selvadoradiana.

Já o biólogo que as crianças criaram para o reality show foi uma adaptação da habilidade de
Herbalismo do Sims 4 que veio com o “Outdoor Retreat Game Pack”. Então, alternando com
o pacote da “Aventura na selva”, o trio do reality show viaja para as Cataratas de Granito,
onde a nossa bióloga deve identificar tudo que lhe chamar a atenção da flora e da fauna
encontradas na enorme Floresta das Cataratas de Granito.

Reality show fantástico


De acordo com o MEC, atualmente, as práticas de linguagem contemporâneas não só
envolvem novos gêneros cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também
novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir. Por isso
a importância dada pela própria BNCC de envolver as crianças em atividades que permitam
ampliar suas capacidades de uso da língua/linguagens (em leitura e em produção) em práticas
situadas. Tanto que a leitura no contexto da BNCC é tomada em um sentido mais amplo,
dizendo respeito não somente ao texto escrito, mas também a imagens estáticas (foto, pintura,
desenho, esquema, gráfico, diagrama) ou em movimento (filmes, vídeos, videogames etc.) e
ao som (música), que acompanha e cossignifica em muitos gêneros digitais14.

Tendo isso em vista, quando as crianças pediram para realizar um “reality show fantástico”15
no The Sims4, aproveitamos para conjuminar: reality show + personagens clássicos da
literatura fantástica16 + narrativa transmídia17. Então, primeiro procuramos explicar para as
crianças a narrativa transmídia de uma maneira simples, como a adaptação de um meio para
outro, por exemplo: um livro se torna um filme, uma história em quadrinhos e também um
videogame - que foi a experiência deles com os personagens da Disney, da Marvel, da DC
Comics, entre outros. Depois, explicamos como a narrativa transmídia pode ser disseminada
em múltiplas plataformas de mídia, exemplos disso seriam:
1. primeiro, a criação de microestórias intersticiais, como: videogames, seriados, clipes
online ou quadrinhos.
2. segundo, a criação de histórias paralelas. Aqui, a ideia é criar outra história que se
desenrole ao mesmo tempo que a macro-história.
3. terceiro, a criação de histórias periféricas é considerada um desdobramento das
histórias originais, em que os textos podem até ter uma relação fraca com a
macro-história, mas ainda são ligados a ela.
4. quarto, são plataformas de conteúdo gerado pelos usuários18, como bloggers,
youtubers, tiktokers, espaços como fóruns, wikis, dentre outras redes sociais. Esses
ambientes são máquinas de criação de histórias de código aberto que permitem que os
usuários contribuam para o mundo fictício. Isso também pode ser chamado de fan
fiction.

14
Vide http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
15
E nós descobrimos que já foi televisionado um: Mad Mad House, um reality show sobre dez pessoas que têm
que viver em uma casa com um Vampiro, uma Sacerdotisa Vodu, um Naturalista, um Wiccan e um Primitivo
Moderno, todos competindo por um prêmio de $ 100.000.
16
Foi Tzvetan Todorov quem escreveu o artigo "Teoria da literatura fantástica", onde consegue definir o que é a
teoria da fantasia, nomeando as principais características que, segundo ele, identificam o gênero da fantasia. E
define o que significa o estranho e o maravilhoso. Em: Tzvetan, Todorov. (1970) Introduction à la Littérature
Fantastique. Paris: Editions du Seuil.
17
Também conhecida como narrativa transmídia ou narrativa multiplataforma, é a técnica de contar uma única
história ou experiência de história em várias plataformas e formatos usando as tecnologias digitais atuais.
Referências: Jenkins, Henry. "Transmedia Storytelling"[Disponível em http://henryjenkins.org/ consultado a
setembro de 2021]; e, Kalinov, Kalin (2017). "Transmedia Narratives: Definition and Social Transformations in
the Consumption of Media Content in the Globalized World" [Disponível em http://bitly.ws/gFFD].
18
Conteúdo gerado pelo usuário (UGC), alternativamente conhecido como conteúdo criado pelo usuário (UCC),
é qualquer forma de conteúdo, como imagens, vídeos, texto e áudio, que é postado por usuários em plataformas
online, como mídia social e wikis. É um produto que os consumidores criam e de certa forma divulga
informações sobre produtos online ou as empresas que os comercializam. J. Krumm, N. Davies and C.
Narayanaswami, "User-Generated Content," in IEEE Pervasive Computing, vol. 7, no. 4, pp. 10-11, Oct.-Dec.
2008, doi: 10.1109/MPRV.2008.85.
E propomos então explorar com nossas crianças a narrativa transmídia do conto maravilhoso,
disseminando no Twitch19 o reality show que eles produziriam trabalhando com personagens
clássicos do conto maravilhoso20, no estilo fan fiction. As crianças escolheram os seguintes
personagens:

● Bruxos - no folclore são pessoas que se acredita terem algum tipo de poder mágico.
São considerados indivíduos com habilidades que os capacitam a dobrar as leis da
natureza, tanto para eventos reais quanto para resultados mortais. Muitos folclores
retratam os bruxos (ou feiticeiros, ou magos) como mulheres, mas os homens também
podem ser encontrados em algumas narrativas.
● Alienígenas - são seres enigmáticos que se dizem originários do espaço ou de outro
universo, e fazem parte do hall de monstros do folclore.
● Fantasmas e Médiuns - são como uma alma ou o espírito de uma pessoa ou animal
morto que pode aparecer para os vivos. No folclore, as descrições de fantasmas
variam amplamente, de uma presença invisível a formas finas translúcidas ou quase
invisíveis, a formas realistas. E o médium é capaz de entrar em contato com os
espíritos e até invocá-los.
● Vampiros - são criaturas do folclore que subsistem alimentando-se da essência vital
dos vivos, criaturas mortas-vivas que frequentemente visitavam seus entes queridos e
faziam travessuras ou causavam mortes nos bairros que antes habitavam enquanto
estavam vivos.

Então, o primeiro passo foi criar 8 Sims com traços (traits) e faixas etárias diferentes. Assim
como há uma seleção dos participantes para se enquadrarem em determinados perfis,
contendo certos traços de personalidade, para participarem do reality show televisivo, as
crianças também selecionaram os traços dos Sims que entraram na casa assombrada para o
reality show fantástico. As crianças formaram um trisal de:

(a) um vampiro - bondoso, pateta, familiar, aspiração família de vampiros

19
O Twitch é um streaming com foco na transmissão de partidas de videogames, desde campeonatos de e-sports
até playthroughs. Através dele, os usuários transmitem os vídeos do seu próprio gameplay ou, na maioria das
vezes, assistem partidas de gamers profissionais.
20
Propp, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. [Disponível em http://bitly.ws/ntbs, consultado a junho
de 2021].
(b) um feiticeiro - familiar, devorador de livros, genial, aspiração de feitiçaria e magia

(c) uma alienígena médium - familiar, genial, ativa, aspiração família grande feliz
e esse trisal teve cinco crianças:

(a) dois vampiros - inspirados pelas histórias de Drácula, de Bram Stoker; Kurt Barlow,
em A hora do vampiro, de Stephen King; Edward Cullen, em Crepúsculo, de
Stephenie Meyer; Varney, o vampiro de James Malcolm Rymer; Lestat de Lioncourt,
criado por Anne Rice em Crônicas vampirescas. As crianças criaram a Camila e o
Conde com traços de devoradores de livros.
(b) dois feiticeiros - inspirados pelas histórias de Morgana e Merlin, de Bernard
Cornwell, em Crônicas de Artur; Gandalf, em O hobbit, da trilogia O senhor dos
Anéis, de J. R. R. Tolkien; Albus Dumbledore, em Harry Potter; Tirésias que é um
dos mais famosos magos/feiticeiros da mitologia greco-romana; Thomas Ward de
John Gregory; Jonathan Strange e Mr. Norrell. As crianças criaram o Cornelius e
Marie, com os traços de genial.
(a) uma alienígena médium que fala com fantasmas - inspirados pelas histórias de
Chewbacca do Guerra nas estrelas; E.T. do filme de Steven Spielberg; Spock da série
Star Trek; Neytiri do filme Avatar; os Kree da Marvel; e, inspirados pelas histórias de
Erik, o Fantasma da Ópera, criado em 1910 no romance de Gaston Leroux, o
personagem ganhou inúmeras adaptações no cinema e no teatro; Fantasma do Natal,
na verdade três famosos fantasmas, o do Natal Passado, o do Natal Presente, e o do
Natal Futuro, que estão presentes na obra clássica de Charles Dickens, Um Conto de
Natal, que também já foi adaptada para o cinema e teatro; Murta que Geme: A
fantasma choramingona que vive no banheiro feminino do segundo andar da Escola
da Magia e Bruxaria de Hogwarts, em Harry Potter e a Câmara Secreta; O Cavaleiro
Sem Cabeça, do conto "The Legend of Sleepy Hollow" de Washington Irving, e
também já ganhou novas versões e adaptações; Sir Simon, o famoso fantasma de
Canterville de Oscar Wilde; Hamlet, o Fantasma, da obra de Shakespeare Rei Hamlet.
As crianças criaram Neytiri com o traço de geek.

Nós buscamos adaptações literárias dessas obras para o público infanto-juvenil para lermos
juntos, assim como os filmes dublados para vermos. Como já tínhamos focado em
personagens folclóricos do Brasil nos anos anteriores, dessa vez, procuramos focar em
personagens do folclore mundial. A importância do folclore e dos estudos do folclore foi
reconhecida globalmente em 1982 no documento da UNESCO “Recommendation on the
Safeguarding of Traditional Culture and Folklore”21. E a UNESCO publicou novamente em
2003 a “Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage”22.

Depois as crianças montaram a casa assombrada onde os participantes se isolaram, com:


cinco quartos peculiares personalizados, com suítes; uma sala de estar; um quarto de jogos;
uma sala de jantar; uma cozinha com os electrodomésticos necessários para a confecção de
refeições (frigorífico, fogão, micro-ondas, cafeteira etc.); uma lavanderia; uma sala para os
desafios com as tarefas semanais, e um jardim com sauna, piscina, bar, ambiente para
socialização. Escolheram como traços do lote: casa assombrada, covil da ciência, covil de
vampiro registrado, conexão vampírica, e como desafios do lote amaldiçoado e assombrado.

As crianças pensaram juntas então qual seria o desafio desse reality show. Depois de um
"tempestade de idéias", optaram por um reality show no estilo do filme “The Truman Show".
Um filme que relata a vida de um homem chamado Truman, que desde da infância viveu
“preso” dentro de um cenário de televisão e cercado de atores. No filme, o protagonista não
sabe que a sua vida é vigiada por milhões de pessoas e que tudo o que está à sua volta não
passa de um cenário e de encenações.

As cinco crianças - vampira, alienígena médium (fala com fantasmas), feiticeira, bruxa - são
as estrelas desavisadas do “Show Fantástico”, um reality show filmado 24 horas por dia, 7
dias por semana, por meio de milhares de câmeras ocultas e transmitido para uma audiência
mundial, do mundo da fantasia, ou “Terra do Meio”. O programa busca capturar as emoções
autênticas das crianças e dar ao público como é a vida de quatro seres fantásticos, passando
pelo nascimento, infância, juventude e a vida adulta.

21
[Disponível em http://bitly.ws/gHS9 consultado a setembro de 2021].
22
[Disponível em https://ich.unesco.org/en/convention consultado a setembro de 2021].
Ou seja, como o pequeno aprendiz de bruxo aprende a colecionar e lançar feitiços, conjurar
comida, transformar os outros em objetos, criar poções que podem fazer os Sims se
apaixonarem, removerem maldições ou viverem para sempre. Como o pequeno aprendiz de
alienígena desenvolve a habilidade de escanear os Sims (no jogo aparece com a opção
"Procurar"), a fim de descobrir um pouco mais sobre a vida do outro Sim, e como transferir
suas necessidades para outro Sims com o bioimpulsionador, como consertar aparelhos
quebrados com o poder de sua mente em questão de segundos, como controlar a mente de
outro Sim, como transmutar objetos, como invocar um meteoro do espaço. Como um
pequeno aprendiz de vampiro desenvolve o poder de controlar as mentes dos Sims e conjurar
energias espirituais. Como um pequeno aprendiz de médium desenvolve a habilidade de
realizar sessões espíritas em uma mesa de sessões, comungando com fantasmas e espíritos
que assombram a casa, vendo o humor dos espectros, promovendo rituais medonhos para os
fantasmas, convocando os personagens Claude René Duplantier Guidry ou Bonehilda, e
convocando seus próprios círculos de sessões no solo, conduzindo sessões em qualquer lugar
por 5 simoleons.

O faz de conta das crianças incluiu a cidade Glimmerbrook e Forgotten Hollow como
cenários completos, como se tivesse sido construído dentro de uma enorme cúpula, igual ao
Show de Truman, habitada por membros da equipe e atores que “destacam as colocações de
produtos” que geram receita para o show23. O conjunto elaborado - que na realidade é a
característica principal do próprio videojogo: microgerenciar TUDO - permite que se controle
todos os aspectos da vida das crianças, e do local, incluindo até o clima. Para evitar que as

23
Esse faz de conta é proposital para chamar atenção das crianças para o T-Commerce - resumidamente é a
junção da TV com o E-commerce - em que tudo que é visto em Reality Shows - assim como novelas, comerciais
etc - pode ser comprado. por exemplo: a Globo Marcas é o portal que comercializa produtos dos programas da
Rede Globo de televisão, incluindo itens exclusivos, assim, as pessoas que se apaixonaram pelos looks dos
personagens das novelas, ou pelo mobiliário do reality show, podem encontrar no site acessórios e vestuários
iguais aos que os artistas usaram nas novelas, ou dos participantes do reality show.
crianças descubram sua falsa realidade, são “fabricados cenários” para dissuadir os desejos
dos Sims de viagem e de exploração.

Em Glimmerbrook há um portal para o Reino da magia, um lugar mágico cheio de feitiços,


poções e duelos mágicos. E lá é onde o Sims encontram todos os itens relacionados magia
(bruxaria, feitiçaria etc); tem uma biblioteca com material de estudo para aumentar a
classificação do Sims como bruxo (feiticeiro, mago); tem um campo de treinamento, onde o
Sims tem a oportunidade de participar de um duelo mágico; tem uma loja para comprar
artefatos mágicos, como varinhas, vassouras, um “familiar”, novos feitiços.

Nós aproveitamos esse reality show para debater sobre diversas questões. Nós promovemos
conversas sobre orientação sexual, tendo em vista o eclético trisal com cinco filhos
diferentes, colocando perguntas para refletirmos juntos, como: o código de conduta do
produtor de um show que cria um mundo e o manipula para servir seus propósitos; e, sobre a
ética midiática de tornar público o que é privado, mais a questão da publicidade veiculada nos
intervalos dos reality shows televisivos, não só da manipulação para tentar convencer o
público de consumir determinadas commodities, mas, também, apontando para publicidades,
nos intervalos dos reality shows, que deflagram tremendas hipocrisias em nossa sociedade24.
Promovemos conversas também sobre: o que é ser normal? O que é ser anormal? O que é ser
mulher? O que é ser homem? E sobre o que é uma família?25

Análise da produção realizada


Nós procuramos compartilhar com as crianças, durante nossas jogatinas, e registramos a
seguir, características da nossa espécie animal que revelam o porquê dos reality shows
fazerem tanto sucesso. E essas características ajudaram as crianças a reproduzir no The Sims4
enredos compatíveis, tornando o reality show delas mais verossímil.

A importância da fofoca em nossas vidas


De acordo com a pesquisa realizada pelo psicólogo e antropólogo evolucionista Robin
Dunbar, “Grooming, Gossip and the Evolution of Language”, a conversa é um fenômeno
exclusivamente humano. E análises de conversas formadas livremente indicam que
aproximadamente dois terços do tempo de conversação é dedicado à fofoca:

“[...] Meus colegas e eu realizamos vários estudos observacionais sobre o conteúdo das
conversas.Os resultados que obtivemos de uma série de estudos em diferentes locais foram
muito consistentes: os tópicos sociais (o que aqui definimos como “fofoca”) representam
aproximadamente 65% do tempo de conversação, com variação limitada devido à idade ou
sexo ( Dunbar, Duncan, & Marriott, 1997; Seepersand, 1999). Todos os outros tópicos
somados representam apenas cerca de um terço do tempo de conversação. Assim, essas
descobertas sugerem que as conversas que ocorrem naturalmente são dominadas por tópicos
sociais. Em resumo, então, a linguagem em conversas naturais de livre formação é usada
principalmente para a troca de informações sociais. Que tais tópicos sejam tão importantes
para nós sugere que esta é uma função primária da linguagem [...]”26.
24
Por exemplo: o fato de estar ok por lei poder anunciar uma droga como o açúcar para crianças e jovens,
cientes do quão mal isso faz para eles, mas, ao mesmo tempo, proibimos um remédio como a maconha,
privando diversas crianças e jovens de um tratamento para suas doenças.
25
O guia “GÊNERO FORA DA CAIXA” do Projeto Juventude, Gênero e Espaço Público nos ajudou
bastante.[Disponível em http://bitly.ws/gJTP consultado a setembro de 2021].
26
"[...] a linguagem evoluiu para nos permitir unir grandes grupos sociais. sem a linguagem como meio de troca
de informações sobre a rede social, grandes grupos não poderiam ser mantidos juntos como entidades sociais
viáveis e coerentes. [...] A linguagem evoluiu entre os seres humanos para substituir o aliciamento (grooming
dos nossos primos macacos) social, porque o tempo exigido por nossos grandes grupos tornava impossível o
aliciamento de todos. A linguagem evoluiu para preencher essa lacuna porque nos permite usar o tempo que
temos disponível para a interação social de forma mais eficiente. A linguagem cumpre esse papel de várias
maneiras diferentes. Isso nos permite alcançar mais indivíduos ao mesmo tempo; nos permite trocar informações
sobre o nosso mundo social para que possamos acompanhar o que está acontecendo entre os membros da nossa
rede social (além de acompanhar as "fraudes" sociais); nos permite nos engajar em autopromoção de uma forma
que macacos não podem; e, por último, mas não menos importante, parece nos permitir produzir os efeitos
reforçadores do grooming (liberação de opiáceos) à distância.[...] A linguagem cuida da troca de informações;
que, afinal, é o que ela (ou, pelo menos, a gramática) é projetada principalmente para fazer. No entanto,
linguistas e a maioria das outras disciplinas interessadas em linguagem tradicionalmente assumiram que a
informação a ser trocada é conhecimento factual sobre o mundo; em outras palavras, a linguagem evoluiu para
permitir que nossos ancestrais trocassem informações sobre aspectos do mundo físico em que viviam. “É assim
que você faz uma boa lança. . . . Se você jogar sua lança dessa maneira, é mais provável que você mate a presa. .
A origem da fofoca foi justamente como um mecanismo para unir grupos sociais, e, por isso,
a fofoca social tornou- se um componente tão importante da interação humana, pois atende às
redes sociais. E não é diferente com nossos primos primatas, segundo Frans de Waal, a
aglomeração entre os primatas leva a muito mais atividades de (grooming) aliciamento /
catação, que mantém a tensão sob controle, do que à agressão. No caso, como somos
primatas linguageiros, a aglomeração leva a mais fofoca.

Ora, os reality shows têm como conteúdo basicamente fofoca social. Está explicado o porquê
de assim ser. A fofoca, no sentido amplo de conversas sobre tópicos sociais e pessoais, é um
pré-requisito fundamental do ser humano. Como alega Robin Dunbar, se não pudéssemos nos
envolver em discussões sobre essas questões, não seríamos capazes de sustentar os tipos de
sociedades que temos. Logo, as crianças procuraram explorar nos respectivos enredos - dos
reality show reproduzidos no The Sims4 - situações de intensa fofoca social, com variados
momentos de comunicação entre os Sims.

A importância do outro
Ao longo da evolução da nossa espécie animal houve diversos saltos de total transformação
em nossos hábitos de autocontrole e autorregulação, pois cada um passou a policiar mais do
que nunca o próprio comportamento. Como veremos mais adiante, a individualização
inclusive nasceu justamente com o desenvolvimento crescente da autoconsciência e
autoregulação27, que se deu em várias fases28, ao longo da nossa evolução, e, levou os

. . Eu acabei de ver um bisonte perto do lago quando estava passando, então vamos caçá-los ... Nunca nade no
rio porque crocodilos [ou espíritos perigosos] vivem lá e vão pegar você! ”. Essa visão tecnológica ou
econômica do uso da linguagem coloriu tão profundamente nossa percepção da função da linguagem que nos
levou a ver quaisquer outros usos da linguagem como triviais e em grande parte impulsionados pelo tédio da
ociosidade. Assim, a fofoca adquiriu sua má reputação, pois é vista como um mero desperdício de tempo
quando poderíamos estar fazendo algo realmente útil com nosso tempo, como falar sobre motores a jato ou
detalhes técnicos de como ganhar mais dinheiro tornando nossas empresas mais eficientes. A questão real aqui,
então, é qual desses dois amplos usos da linguagem é o frango, e qual é o ovo? Em outras palavras, a linguagem
evoluiu para facilitar o intercâmbio de informações tecnológicas (com a fofoca como um subproduto ocioso) ou
evoluiu para facilitar a troca de informações sociais (com o intercâmbio de informações tecnológicas como um
subproduto útil)? E a questão aqui é puramente empírica: como usamos a linguagem? Sobre o que realmente
falamos?
27
Compartilhamos com as crianças imagens que encontramos na Internet (Paleolithic Stock Illustrations,
Vectors & Clipart ) dos nossos ancestrais pierolapithecus, sahelanthropus, orrorin, ardipithecus,
australopithecus, homo habilis, e homo erectus produzindo ferramentas e praticando a aloparentalidade. O
videojogo Ancestors também nos ajudou muitíssimo a explicar para as crianças como as práticas tecnológicas e
sociais dos nossos ancestrais que são consideradas importantes para a evolução da cognição humana, em
particular, a fabricação de ferramentas e aloparentalidade, exigiam controle emocional e aumento da
sensibilidade social, e levaram ao desenvolvimento das emoções sociais de orgulho, vergonha, culpa e
constrangimento. Essas emoções sociais regulam as alianças colaborativas, estabelecem e consolidam a
organização do grupo, são cruciais para a estabilização da cooperação, e para o compartilhamento de
informações. O efeito socialmente moderador dessa evolução emocional (considerando que a genética segue a
cultura) pode ser pensado como parte de um processo de autoconsciência, autoregulação, e autodomesticação
específico do ser humano.
28
Compartilhamos com as crianças como a Bíblia descreve uma passagem do mesmo cunho. No paraíso, os
ancestrais da humanidade eram inconscientes de sua nudez; então, comeram o fruto proibido do conhecimento e
se conscientizaram dela. Aí encontramos uma expressão vívida da estreita medida em que a ampliação da
consciência moral está ligada à ampliação da autoconsciência.
primatas Homo Sapiens a se vivenciarem como sistemas fechados29. A modificação nos
estilos de vida social impôs uma crescente restrição aos sentimentos, uma necessidade maior
de observar e pensar antes de agir, tanto com respeito aos objetos físicos, quanto em relação
aos outros do entorno.

Isso levou a nossa espécie animal a uma consciência e uma regulação maiores de si mesmo, e
a se ver como um indivíduo desligado de todas as outras pessoas e coisas, como um ser
desprendido, que existe independentemente de todos os demais. Como nos explicou o
sociólogo Norbert Elias, essa autoconsciência e autoregulação passaram a ser vistas como um
componente do ser humano semelhante ao coração, ao estômago ou ao cérebro, uma espécie
de substância insubstancial no ser humano, de uma “inteligência”, uma “razão” ou, um
“espírito”:

“Os dois aspectos do duplo papel das pessoas em relação a si mesmas e ao mundo em geral
— como conhecedoras de si e conhecidas por si, como experimentando a si e aos outros e
sendo experimentadas por si e pelos outros, como desligadas do mundo na contemplação e
indissociavelmente emaranhadas nos acontecimentos do mundo —, esses dois aspectos foram
de tal forma considerados falsamente como realidade nos hábitos do pensamento e do
discurso que se afiguraram objetos diferentes, como: corpo e mente, um dos quais se
abrigava no interior do outro como o caroço numa ameixa30 [...] (O que nos dá a impressão
29
“O que era, a princípio, um ditame social acaba por se tornar, principalmente por intermédio das famílias, uma
segunda natureza no indivíduo, conforme suas experiências particulares. “Não mexa aí”, “Fique quieto”, “Não
coma com as mãos”, “Onde está seu lenço?”, “Não vá se sujar”, “Pare de bater nele”, “Aja como quer que ajam
com você”, “Você não pode esperar?”, “Faça seu dever de matemática”, “Você nunca vai chegar a lugar
nenhum”, “Trabalhe, trabalhe, trabalhe”, “Pense antes de agir”, “Pense em sua família”, “Pense no futuro”,
“Pense no Partido”, “Pense na Igreja”, “Pense na Inglaterra”, ou “na Alemanha, na Rússia, na Índia, na
América”, “Pense em Deus”, “Você não tem vergonha?”, “Você não tem princípios?”, “Você não tem
consciência”. A descarga direta dos impulsos na atividade, ou até no movimento, vai se tornando mais e mais
difícil. Desvios variados e amiúde altamente complexos dessas tendências — para longe da descarga que elas
buscam espontaneamente — transformam-se em regra geral. Reagir precipitadamente, sem longos atos de
ensaio, sem a silenciosa antecipação de futuros movimentos de xadrez a que chamamos “reflexão”, é quase
impossível para os adultos dessas sociedades. Não raro, é perigoso, passível de punição ou marginalizante; e,
para quem perde o controle, a ameaça vinda dos outros é menos intensa, muitas vezes, do que a que vem de si
mesmo — pelo medo, vergonha ou escrúpulo. O intervalo temporal entre o pensamento, os atos experimentais
ensaiados sem nenhum movimento e a atuação dos membros, no ato em si, torna-se cada vez mais longo.
Deixando de lado algumas situações claramente definidas em termos sociais, os impulsos controladores
socialmente instilados, reificados por palavras como “compreensão”, “razão” ou “escrúpulo”, geralmente
bloqueiam o acesso direto de outros impulsos mais espontâneos, seja do instinto, dos sentimentos ou do
pensamento, à descarga motora na ação. Os sentimentos e a autopercepção do indivíduo, que se apresentam no
pensamento e na fala como uma encapsulação de seu “interior”, retirado do mundo “externo”, das outras coisas
e pessoas, estão muito estreitamente ligados a esse crescimento do autocontrole individual no curso de um
desenvolvimento social específico. O que nele se expressa é o desvio das tendências espontâneas para longe da
descarga direta na ação pela interposição das funções mais rígidas e mais complexas de controle do próprio
indivíduo”. Em: Elias, Norbert. The society of individuals. [Disponível em http://bitly.ws/eFK3 consultado a
junho de 2021]. A melhor imagem que nós encontramos para as crianças vislumbrarem o que seria esse
“euzinho”, ou essa “alma” que se acredita existir dentro das pessoas foi a do filme MIB, em que um E.T. aparece
dentro da cabeça de um corpo, e, pinturas que mostram uma alma deixando o corpo. E os melhores textos para
retratarem a educação do autocontrole foram os manuais de etiqueta indicados por Norbert Elias.
30
Elias, Norbert. The society of individuals. [Disponível em http://bitly.ws/eFK3 consultado a junho de 2021].
Norbert Elias ainda aponta diversos romances da literatura que nos ajudaram a explicar para as crianças, através
da leitura de trechos, as mudanças que ocorreram na maneira de ver o mundo nessa época. É nítido como: a
atenção passou a se concentrar não apenas na narração dos acontecimentos, mas em como as pessoas os
de sermos separados uns dos outros, mas, não somos, não existe indivíduo sem sociedade e
não existe sociedade sem indivíduo) [...] O consentimento dado pelo indivíduo para viver em
companhia de outros numa forma específica, por exemplo, num Estado, e estar ligado a
outros como cidadão, operário ou fazendeiro, e não como cavaleiro, servo da gleba ou
criador nômade de gado - esse consentimento e essa justificação são algo retrospectivo.
Nesse assunto, o indivíduo pouca opção tem. Nasce numa ordem que possui instituições de
determinado tipo e é condicionado com maior ou menor sucesso, para conformar-se a elas.
Mesmo que pensasse que essa ordem e suas instituições não eram boas nem úteis, não
poderia simplesmente tirar seu assentimento e cair fora. Poderia tentar escapar dela como
aventureiro, vagabundo, artista ou escritor, ou fugir para uma ilha deserta - mesmo como
refugiado, ele seria produto dela. Desaprová-la ou fugir dela não é menor sinal de
condicionamento do que louvá-la e justificá-la [...] (E a sociedade não ataca, não pressiona,
muito menos destrói a individualidade, justamente) [...] a coexistência de pessoas, o
emaranhamento de suas intenções e planos, os laços com que se prendem mutuamente, tudo
isso, muito longe de destruir a individualidade, proporciona o meio no qual ela pode
desenvolver-se. Estabelece os limites do indivíduo, mas, ao mesmo tempo, lhe dá maior ou
menor raio de ação. O tecido social, nesse sentido, forma o substrato a partir do qual e para
dentro do qual o indivíduo gira constantemente e tece suas finalidades na vida”31.

vivenciavam. Os autores descreviam uma paisagem, por exemplo, e ao mesmo tempo a chamada “paisagem
interior”; e, descreviam encontros entre as pessoas e, ao mesmo tempo, o “fluxo de consciência” delas ao se
encontrarem. O autor também explica o dito de Descartes: “Penso logo sou”. “[...] O que sucedeu na época de
Descartes foi a transição para um novo nível de autoconsciência. As pessoas tomaram essas diferentes
percepções, enquanto sujeito e objeto do conhecimento, como se se tratasse de diferentes componentes de si
mesmos. Essas contradições fazem parecer evidente ao indivíduo que ele é algo distinto “internamente”,
enquanto a “sociedade” e as outras pessoas são “externas” e “alheias”. Essa forma específica de superego, esse
cerceamento especialmente vigoroso e semi-automático de todos os impulsos e afetos direcionados para outrem,
foi o que permitiu ao indivíduo — de maneira cada vez mais perceptível a partir do Renascimento —
perceber-se como “sujeito” e perceber o mundo como uma coisa separada dele por um abismo, como o “objeto”.
Isso facultou-lhe ver-se como um observador externo ao restante da natureza, enquanto a natureza o confrontava
como uma “paisagem”; facultou-lhe sentir-se um indivíduo independente de todas as outras pessoas e ver as
outras pessoas como um campo “estranho” que originalmente nada tivera a ver com seu ser “interior”, como um
“ambiente”, um “meio”, uma “sociedade”. Somente quando o indivíduo pára de tomar a si mesmo como ponto
de partida de seu pensamento, pára de fitar o mundo como alguém que olha de “dentro” de sua casa para a rua
“lá fora”, para as casas “do outro lado”, e quando é capaz — por uma nova revolução copernicana em seus
pensamentos e sentimentos — de ver a si e a sua concha como parte da rua, de vê-los em relação a toda a rede
humana móvel, só então se desfaz, pouco a pouco, seu sentimento de ser uma coisa isolada e contida “do lado de
dentro”, enquanto os outros são algo separado dele por um abismo, são uma “paisagem”, um “ambiente”, uma
“sociedade” [...]”. E esse foi um ponto que julgamos muito importante de compartilhar e fixar com as crianças:
essa maneira de ver o mundo (que Descartes resumiu tão bem), a elaboração dessa autopercepção sob a forma
de teoria do conhecimento deixa de levar em conta, de um modo curioso e que se repete com grande
regularidade, o fato de que todo adulto, quando criança, tem que adquirir o conhecimento de outrem, num longo
processo de aprendizagem, antes de poder desenvolver individualmente esse conhecimento. Portanto, nós somos
parte de um todo, o todo nos define, nos definimos pelo todo. Não existe indivíduo sem sociedade e não existe
sociedade sem indivíduo!
31
Elias, Norbert. (1993) O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar.
As pessoas amam heróis32, mas a verdade é que, no mundo real, ninguém opera no vácuo, nós
não só precisamos uns dos outros, nós vivemos uns para os outros, . E a trajetória dos nossos
ancestrais para chegar nessa configuração foi longa.

Ora, o foco dos reality shows, de um modo geral, são os relacionamentos, como as pessoas se
relacionam, se a dinâmica das relações se dá de forma apropriada ou inapropriada. E das
relações das pessoas consigo mesmas, entre si, e com o trabalho/atividade em curso. Então, as
crianças procuraram retratar no reality show a importância do outro para a construção de si -
eu sou para o outro tanto quanto o outro é para mim, como veremos mais adiante sobre as
dimensões do indivíduo, suas identidades, papéis, subjetividades e suportes existenciais -, e,
ao mesmo tempo, procuraram retratar também, nos reality shows que reproduziram no The
Sims4, a fragilidade das relações interpessoais em nossa atual sociedade. Como colocado
pelo sociólogo Norbert Elias33:

“[...] O avanço da individualização obriga os indivíduos a efetuarem uma espécie de


inventário reiterado, um teste dos relacionamentos, que é, ao mesmo tempo, um teste deles

32
“Não seríamos pensadores tão competentes se tivéssemos que confiar apenas no conhecimento limitado
armazenados em nossas cabeças e nossa facilidade de raciocínio causal. O segredo do nosso sucesso é que
vivemos em um mundo em que o conhecimento está ao nosso redor. Está nas coisas que fazemos, em nossos
corpos e espaços de trabalho, e em outras pessoas. Vivemos em uma comunidade de conhecimento. Temos
acesso a uma grande quantidade de conhecimento que está na cabeça de outras pessoas. Sempre houve o que os
cientistas cognitivos gostam de chamar de divisão de trabalho cognitivo. Desde o início da civilização, as
pessoas desenvolveram conhecimentos distintos dentro de seu grupo, clã ou sociedade. Eles se tornaram os
especialistas locais em agricultura, medicina, manufatura, navegação, música, narração de histórias, culinária,
caça, luta ou uma de muitas outras especialidades. Um indivíduo pode ter alguma experiência em mais de um
habilidade, talvez várias, mas nunca todas, e nunca em todos os aspectos de qualquer coisa. Então, nós
colaboramos. Esse é um grande benefício de viver em grupos sociais, para tornar mais fácil compartilhar nossas
habilidades e conhecimentos. A complexidade abunda. Se todo mundo entendesse isso, nossa sociedade
provavelmente seria menos polarizada [...] Apreciar a natureza comum do conhecimento pode revelar
preconceitos em como vemos o mundo. As pessoas amam heróis. Nós glorificamos a força individual, o talento
e a beleza. Nossos filmes e livros idolatram personagens que, como Superman, podem salvar o planeta eles
mesmos. Os dramas da TV apresentam detetives brilhantes, mas discretos, que resolvem o crime e fazem a
prisão final culminante após um lampejo de visão. Indivíduos recebem crédito por grandes avanços. Marie Curie
é tratada como se ela tivesse trabalhado sozinha para descobrir a radioatividade, Newton como se descobrisse as
leis do movimento em uma bolha. Todos os sucessos dos mongóis no século XII e XIII são atribuídos a Genghis
Khan, e todos os males de Roma durante o tempo de Jesus são frequentemente identificados com uma única
pessoa, Pôncio Pilatos [...] A verdade é que, no mundo real, ninguém opera no vácuo. Detetives têm equipes que
participam de reuniões e pensam e agem em grupo. Os cientistas não têm apenas laboratórios com alunos que
contribuem com ideias críticas, mas também têm colegas, amigos e inimigos que estão fazendo um trabalho
semelhante, tendo pensamentos semelhantes, e sem os quais o cientista não chegaria a lugar nenhum. E há
outros cientistas que estão trabalhando em problemas diferentes, às vezes em campos diferentes, mas, ainda
assim, definem o cenário por meio de suas próprias descobertas e ideias. Uma vez que começamos a perceber
que o conhecimento não está só na cabeça, é compartilhado dentro de uma comunidade, nossos heróis mudam”.
33
“[...] por muito tempo, nos estágios anteriores do desenvolvimento social, a relação com o que agora
chamamos família, isto é, com a associação maior ou menor de parentes, era completamente inevitável para a
maioria dos indivíduos. A identidade-nós era mais forte e preponderante do que a identidade-eu. Durante longo
período, as pessoas fizeram parte de suas famílias para o que desse e viesse. A força dos laços familiares teve
muito a ver com a extensíssima função da família, ou, conforme o caso, do clã, como unidade de sobrevivência.
A mudança decisiva ocorrida na identidade-nós e na correspondente orientação emocional para a família
deveu-se, em grande parte, ao fato de esta já não ser inevitável como grupo-nós. Hoje em dia, com o
Estado-papai e o Mercado-mamãe, a partir de certa idade, é comum o indivíduo poder afastar-se da família sem
perder suas probabilidades de sobrevivência física ou social [...]”. Em: Elias, Norbert. The society of
individuals. [Disponível em http://bitly.ws/eFK3 consultado a junho de 2021]
mesmos. Eles têm que se perguntar com mais frequência: como estamos em relação uns aos
outros? Uma vez que as formas de relação do espectro inteiro, inclusive as que prevalecem
entre homens e mulheres e entre filhos e pais, são relativamente variáveis, sua forma exata
passa a ser, cada vez mais, responsabilidade de cada um dos parceiros. A união passou a ser
voluntária e revogável, o que impõe exigências mais elevadas à capacidade de autodomínio
das pessoas implicadas e o faz igualmente para ambos os sexos. As mudanças nas relações
profissionais tomam o mesmo rumo; nas sociedades mais desenvolvidas, muitas atividades
profissionais remuneradas tornaram-se intercambiáveis. Até a nacionalidade se tornou
passível de troca, dentro de certos limites. Todo esse desenvolvimento contribui para que a
balança eu-nós se incline para o lado do eu. Agora o indivíduo tem que contar muito mais
consigo mesmo ao decidir sobre a forma dos relacionamentos e sobre sua continuação ou
término. Ao lado da permanência reduzida, surgiu uma permutabilidade maior dos
relacionamentos, uma forma peculiar de habitus social. Essa estrutura de relações requer do
indivíduo maior circunspecção, formas de autocontrole mais conscientes e menor
espontaneidade dos atos e do discurso no estabelecimento e na administração das relações.
A individualização traz consigo uma grande diversidade e variabilidade das relações
pessoais. Dentre suas variações, uma que ocorre com frequência é marcada pelo já
mencionado conflito básico do eu desprovido do nós: um anseio de calor afetivo, de ter
afirmada a afeição dos outros e pelos outros, aliado a uma incapacidade de proporcionar
afeição espontânea [...]”.

A importância do trabalho emocional


Como vimos anteriormente, é preciso diferenciar entre emoções e sentimentos, as emoções
são instintivas e muitas das vezes até inconscientes, já os sentimentos são construtos sociais.
Nesse sentido, como aponta o sociólogo Steven Gordon, a cultura desempenha um papel
crítico nos processos básicos de rotular ou definir nossas experiências emocionais. Ao rotular
nossas emoções, devemos nos basear na cultura emocional de nossa sociedade, ou melhor,
nos sentimentos sociais. Um “sentimento social” introduz a importância da cultura e é
definido como "um padrão socialmente construído de sensações, gestos e significados
culturais organizados em torno de uma relação com um objeto social, geralmente outra
pessoa.” Os sentimentos sociais são, portanto, mais um conceito sociológico porque os
sentimentos são definidos pela cultura e requerem socialização para serem aprendidos pelos
indivíduos.

Nessa mesma linha de reflexão - sobre autoregulação na interação com o outro - a socióloga
Arlie Russell Hochschild, em seu livro “The Managed Heart”, fala sobre o "trabalho
emocional", isto é, a gestão das emoções e dos sentimentos para criar uma exibição facial e
corporal observável publicamente. A emoção pode estar e frequentemente é sujeita a atos de
gestão, o indivíduo se autoregula para induzir ou inibir determinados sentimentos, de modo a
torná-los "adequados" a uma situação:

“[...] Por que a experiência emotiva de adultos normais na vida diária é tão ordeira quanto
é? Por que, de modo geral, as pessoas se sentem alegres em festas, tristes em funerais, felizes
em casamentos? Essa questão nos leva a examinar, não convenções de aparência ou
comportamento exterior, mas convenções de sentimento. As convenções de sentimento
tornam-se surpreendentes apenas quando imaginamos, por contraste, como a vida emocional
totalmente sem padrões e imprevisíveis pode realmente ser em festas, funerais, casamentos e
na vida familiar ou profissional de adultos normais [...]”.

As “regras de sentimentos”, como chama a autora, governam como as pessoas tentam ou não
se sentir de maneiras "adequadas à situação". Tal noção demonstra quão profundamente o
indivíduo é "social" e "socializado" para tentar homenagear as definições oficiais das
situações com nada menos que seus sentimentos.

Nesse sentido, a teoria dos jogos evolutivos vê o comportamento emocional como uma forma
de manipular a si mesmo para manipular as expectativas de outros organismos. Na biologia
evolutiva, a manipulação ocorre quando um indivíduo, o manipulador, altera o
comportamento de outro indivíduo de maneiras que são benéficas para o manipulador, mas,
às vezes, podem ser prejudiciais para o indivíduo manipulado. A manipulação não ocorre
apenas em primatas, como nós, mas em outros animais também, por exemplo, no plano
celular, como entre células de um organismo multicelular, ou em parasitas, que podem alterar
o comportamento de seus hospedeiros:

“Considere o caso da lombriga parasita Myrmeconema neotropicum, que uma vez ingerida
pela formiga tropical Cephalotes atratus na América Central e do Sul, faz com que a formiga
cresça um abdômen vermelho vivo, simulando bagas. Este abdômen brilhante constitui um
fenótipo manipulado pela lombriga. Os pássaros comem as "bagas", ou formigas infectadas,
e então espalham o parasita em seus excrementos, que são subsequentemente coletados
forrageando Cephalotes atratus e alimentando suas larvas, e o ciclo de comportamento
manipulado começa novamente”34.

Ao mesmo tempo, foi interessante apontar para as crianças como, enquanto primatas
linguageiros, criamos histórias que aprovam e desaprovam determinadas manipulações. O
neurologista Michael Gazzaniga explica o seguinte:

“Os cérebros são dispositivos automáticos, governados por regras e determinados, enquanto
as pessoas são agentes pessoalmente responsáveis, livres para tomar suas próprias decisões.
Assim como o tráfego é o que acontece quando um carro determinado fisicamente interage, a
responsabilidade é o que acontece quando as pessoas interagem. A responsabilidade pessoal
é um conceito público. Existe em um grupo, não em um indivíduo. Se você fosse a única
pessoa na terra, não haveria o conceito de responsabilidade pessoal. Responsabilidade é um
conceito que você tem sobre as ações de outras pessoas e elas sobre as suas. Os cérebros são
determinados; as pessoas seguem regras, vivem juntas e dessa interação surge o conceito de
liberdade de ação”35.
34
Gonzalez-Forero, Mauricio. Evolution of Manipulated Behavior. [Disponível em http://bitly.ws/gLGL
consultado a setembro de 2021].
35
Gazzaniga, Michael. (2005) The Ethical Brain. New York: Dana Press.
Ou seja, nós evoluímos para sermos, estarmos e nos comportarmos de uma dada forma no
mundo, e isso se dá em muitos planos - não somos do tamanho de um elefante, nem de uma
formiga, não somos cegos como toupeiras, nem temos milhares de olhos como uma aranha,
nossos cérebros evoluíram para cooperar, empatizar, e manipular também - mas, quando
operando em nosso coletivo, porque nos organizamos através de ficções compartilhadas, nos
policiamos para evitar algumas manipulações - por sermos responsabilizados por elas - ou
nos forçamos a realizar algumas manipulações - em prol do coletivo ou por interesse próprio.

Ora, os reality shows focam uma grande porção de cada episódio justamente na reação
emocional dos participantes. Geralmente, a câmera inclusive examina e foca nos rostos dos
competidores, lágrimas abundam - tanto de alegria quanto de desespero - e essas respostas
afetivas colocam o público, não só em contato com suas emoções primordiais, mas também
com as “regras de sentimento” socialmente compartilhadas. E os reality shows focam na
política de poder - arte de guiar, ou influenciar, ou aliciar - dando destaque para as cenas de
rixas e reconciliações. E rixas e reconciliações estas muitas vezes oportunistas, que envolvem
uma certa manipulação, são reconciliações estratégicas, como chama Frans de Waal36. Por
exemplo, entre chimpanzés, dois machos podem colaborar para dominar um terceiro macho
que é individualmente mais forte do que qualquer um dos dois. Dois indivíduos que estão em
uma colaboração que é muito valiosa para eles na manutenção de sua posição hierárquica se
reconciliam muito rapidamente depois de brigar porque eles precisam absolutamente um do
outro. E o mesmo acontece com a nossa espécie, e o reality show explora bem esses
“joguinhos políticos”. E o público muitas das vezes reage apontando para o que reflete um
comportamento “certo e adequado” e o que reflete um comportamento “errado e
inadequado”. Logo, as crianças procuraram explorar nos respectivos enredos - dos reality
shows reproduzidos no The Sims4 - situações que exigem um trabalho emocional dos
participantes, com o conflito interno de sentir uma emoção mas manifestar outra oposta a fim
de se encaixar às regras de sentimentos acordadas coletivamente.

A importância da individualidade
À medida que a nossa espécie animal cresceu demograficamente, observamos uma
organização em hierarquia37, primeiro através da instituição de clãs pertencentes a uma tribo,
depois na forma de Estados (estados-impérios e estados-nações). O Estado é uma ficção, isto
é, uma ordem imaginada38. Somos animais primatas linguageiros e isso significa que nós

36
De Waal, Frnas. Evolutionary Ethics, Aggression, and Violence: Lessons from Primate Research. [Disponível
em http://bitly.ws/gMxN consultado a setembro de 2021].
37
A nossa espécie animal tende a se organizar em hierarquias, exatamente como nossos primos. Frans de Waal
observa que “entre os chimpanzés, a hierarquia permeia tudo”. Entre as mulheres, isso é um dado adquirido e
não leva a conflitos. Mas entre os homens, “o poder está sempre à disposição”. Ele “deve ser combatido e
zelosamente guardado contra os contendores”. Os chimpanzés machos são "maquiavélicos travessos e
intrigantes". Em De Waal, Frans. (1982) Chimpanzee Politics: Power and Sex among Apes .Baltimore ·
Maryland: Johns Hopkins University Press.
38
Nessa mesma linha, a publicação de “Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do
nacionalismo” por Benedict Richard O'Gorman Anderson teorizou a condição que levou ao desenvolvimento do
nacionalismo nos séculos 18 e 19, particularmente nas Américas, e definiu a nação como uma “comunidade
usamos de ficções ("historinhas") para nos orientarmos pelo mundo. Como nos explica o
historiador Yuval N. Harari:

“Os humanos evoluíram por milhões de anos em pequenos bandos de algumas dezenas de
indivíduos. O punhado de milênios separando a Revolução Agrícola do surgimento de
cidades, reinos e impérios não foi tempo suficiente para possibilitar o desenvolvimento de um
instinto de cooperação em massa. Apesar da ausência de tais instintos biológicos, durante a
era dos caçadores-coletores centenas de estranhos foram capazes de cooperar graças as
suas ficções (mitos/ideologias/ narrativas/ historinhas/ religiões) partilhadas [...]
Cooperação soa muito altruísta, mas nem sempre é voluntária e raramente é igualitária. A
maior parte das redes de cooperação humana foi concebida para a opressão e a exploração
[...] (E) todas as redes de cooperação - das cidades da antiga Mesopotâmia aos impérios Qin
e Romano - foram "ordens imaginadas". As normas sociais que as sustentavam não se
baseavam em instintos arraigados nem em relações pessoais, e sim na crença em ficções
partilhadas [...] As ficções habituaram os primatas, praticamente desde o momento do
nascimento, a pensar de determinadas maneiras, a se comportar de acordo com certos
padrões, a desejar certas coisas e a seguir certas regras. Dessa forma, criaram instintos
artificiais que permitiram que milhões de estranhos cooperassem de maneira efetiva"39.

Nós entendemos que os primeiros Estados surgiram na forma de impérios por volta de 4 mil
da época Holoceno, na Ásia e na África, como a forma que os primatas Homo Sapiens
encontraram para muitos de nós coabitarmos um espaço. Com uma hierarquização em larga
escala veio uma redução nos ataques e rixas crônicas que caracterizavam a vida anterior e

imaginada”. Uma nação existe quando um número significativo de pessoas em uma comunidade se imagina
formando uma nação. A nação é imaginada, segundo Anderson, porque acarreta um sentimento de comunhão ou
“camaradagem horizontal” entre pessoas que muitas vezes sequer se conhecem, e, mesmo com todas as suas
diferenças, imaginam pertencer a uma mesma coletividade e atribuem a esta uma história, traços, crenças e
atitudes comuns. Essa foi a forma que a nossa espécie animal - enquanto primatas linguageiros que evoluíram
uma quarta dimensão simbólica - encontrou para se organizar diante do crescimento demográfico exponencial
de primatas Sapiens pelo planeta. O cientista político Benedict Anderson vê essa comunidade imaginada como
limitada e soberana. O que isso significa? A nação é limitada porque mesmo as maiores nações reconhecem
algumas fronteiras e a existência de outras nações além delas; e, a nação é soberana porque substituiu os laços
de parentesco tradicionais como fundamento das comunidades, e o Estado junto ao mercado passaram a cumprir
esse papel. O fato de a nação ser uma construção imaginária não significa, entretanto, que seu efeito político seja
menos real, muito pelo contrário, justamente porque o primata Sapiens se orienta no mundo pelas historinhas
que se conta, essa comunidade imaginada cria uma camaradagem horizontal tão profunda que inúmeras pessoas
até dão suas vidas voluntariamente pela pátria. E por que as nações guerrearam tanto e ainda vemos tantas
disputas? Acontece que, além da cooperação limitada, todo primata carrega consigo uma divisão evolutiva
binária. Isso significa, como explicou Yuval Harari, que todo Homo Sapiens evoluiu para achar que as pessoas
se dividem entre "nós" e "eles”. E o efeito baldwin de um comportamento pacificador ainda não dissipou a
maldição do Neógeno da "síndrome do macaco da bola azul", uma adaptação genética que funcionou muito bem
por milhões de anos de existência de primatas caçadores-coletores, mas é cada vez mais um obstáculo em uma
sociedade globalmente urbana, tecnológica e científica. Assim, a grande maioria dos Homo Sapiens, que
prosperou graças às ficções produzidas por sua evolução simbólica (a linguagem), agora se vê perdida e
escravizada por essas ficções simplistas binárias organizadas de um falso "nós"versus um ilusório "eles", e
lideradas por "macacos da bola azul" que reivindicam poder sobrenatural para competir pela obediência e pelos
recursos.
39
Harari, Yuval. (2014) Sapiens.Porto Alegre: Publibook Livros e Papeis Ltda.
uma diminuição drástica na violência40, e isso se deu graças a ficção do Estado-Nação, que
permitiu o monopólio da violência na mão do Estado. Vários pensadores nos apontam isso,
como: Norbert Elias, Steven Pinker, Jared Diamond, Yuval Noah Harari, entre outros.

De uns anos pra cá, a nossa espécie animal tem vivido, além da ordem imaginada do
Estado-Nação, a mitologia do neoliberalismo como forma de conduzir o Estado e seus
indivíduos:

“O neoliberalismo41, além de definir um conjunto de políticas econômicas (Hall e Lamont,


2013) ou uma época histórica (Ruíz Encina, 2019), em sua mais ambiciosa projeção
ideológica está associado a um novo tipo de sujeito. Freqüentemente, argumenta-se que esse
é o cerne da ideologia neoliberal: uma generalização do princípio da competição em todos
os níveis da vida social. A ideologia neoliberal insta os indivíduos a se responsabilizarem
por seu destino42, a se conceberem principalmente como empresários que devem administrar,
divertir e acumular diferentes formas de capital (estudos, relacionamentos, poupança,
riqueza). O antigo individualismo possessivo, típico do liberalismo emergente do século XVII
(Macpherson, 1962), foi reinventado na nova figura do individualismo competitivo43. Sem

40
Pinker, Steven. (2013) Os bons anjos da nossa natureza : Por que a violência diminuiu. São Paulo :
Companhia das Letras.
41
As aulas do Professor Claudio Teran também nos ajudaram a entender e explicar para as crianças o que prega
a ficção do neoliberalismo e suas consequências. “Psicopolítica - Byung-Chul Han” (Palestra) [S. l.: s. n.], 2018.
1 vídeo (1:10 min). Publicado pelo canal de Claudio Alvarez Teran [Disponível em http://bitly.ws/fkSz
consultado a junho de 2021] | “Sobre el Poder - Byung-Chul Han” (Palestra) [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (1:10
min). Publicado pelo canal de Claudio Alvarez Teran [Disponível em http://bitly.ws/fkSn consultado a junho de
2021] | “Topologia de la Violencia - Byung-Chul Han” (Palestra) [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (1:10 min).
Publicado pelo canal de Claudio Alvarez Teran [Disponível emhttps://bit.ly/3hw3gB2 consultado a junho de
2021].
42
O livro Nikel & Dime, de Barbara Ehrenreich, disponível em https://bit.ly/3hcdN5u, aponta para algumas das
consequências dessa ideologia nos Estados Unidos, argumentando que a sociedade não consegue ver o
desespero dos trabalhadores de baixa renda porque está acostumada a pensar na pobreza como algo relacionado
ao desemprego, e problema do outro, isto é, da conta de cada um. Os trabalhadores pobres, no entanto, têm de
lidar com o aumento dos aluguéis, do alimento e demais custos, mesmo que a “escassez de mão de obra” (que
ocorre em todas as cidades onde ela viveu) pressionasse muito os salários. Bárbara argumenta que os
empregadores têm lutado sem parar para evitar que ocorram aumentos salariais. Nesse ínterim, os trabalhadores
de baixa renda sentem vergonha e são alvos constantes de suspeitas negativas (de roubo, de drogas etc),
enquanto, ao mesmo tempo, estão se tornando cada vez mais invisíveis para as pessoas da classe alta, que
compartilham poucos de seus espaços e raramente interagem com eles.
43
Nesse sentido, complementando a visão de Danilo Martuccelli, Norbert Elias coloca o seguinte: “ o indivíduo
deriva especial satisfação da ideia de que deve tudo, o que considera único e essencial em sua pessoa, apenas a
si mesmo, a sua ‘natureza’, e a mais ninguém. A ideia de que pessoas “estranhas” possam ser parte integrante da
formação de sua individualidade parece, hoje em dia, quase uma transgressão dos direitos do sujeito sobre si
mesmo. Apenas aquela parte de si que a pessoa consegue explicar por sua ‘natureza’ parece-lhe inteiramente
própria. Ao explicá-la através de sua natureza, ela involuntariamente credita seu mérito a si mesma como uma
conquista positiva; e, inversamente, tende a atribuir à sua natureza inata tudo o que vê em si própria como
conquista positiva. Imaginar que sua individualidade especial, sua “essência”, não seja uma criação única da
natureza, súbita e inexplicavelmente saída de seu ventre, tal como Atena brotou da cabeça de Zeus, atribuir seus
próprios dons psíquicos ou até seus problemas a algo tão fortuito quanto às relações com outras pessoas, algo
tão transitório quanto a sociedade humana, parece ao indivíduo uma desvalorização que priva de sentido sua
existência. A ideia de que sua individualidade tenha emergido da natureza imperecível, assim como a ideia de
ter sido criada por Deus, parece proporcionar uma justificativa muito mais segura a tudo aquilo que a pessoa
acredita ser-lhe singular e essencial. Isso ancora as qualidades individuais em algo eterno e regular; ajuda o
indivíduo a compreender a necessidade de ser o que é. Explica-lhe, através de uma palavra — a palavra
dúvida, foi sob a proteção de coordenadas ideológicas desse tipo que uma verdadeira guerra
moral foi lançada em muitos países contra a ajuda aos pobres44, e uma redução dos
programas sociais universais foi proposta em favor de políticas focais reservadas apenas
para os pobres que realmente mereciam45. Formas de solidariedade coletiva baseadas em
direitos sociais universais deram lugar a uma gestão de risco mais individualizada, onde
cada ator, altamente responsável por seu destino (Martuccelli, 2001 e 2007), tem que
garantir seu futuro para si (o que estimula o desenvolvimento de sistemas de saúde privada,
fundos de pensões, mas também a expansão dos serviços privados na educação ou
segurança). No cerne da ideologia neoliberal está, portanto, o redesenho das fronteiras entre
responsabilidade individual e solidariedade coletiva. Assim, a ideia de novos indivíduos que
deveriam se comportar em primeiro lugar como proprietários de várias formas de capital
que teriam de manter e enriquecer (estudos, poupança, compra de bens, várias
capitalizações, redes) para ter sucesso na sua vida social e em sua competência
generalizada”46.

Só que o neoliberalismo, com sua cartilha do egoísmo, já se mostrou ineficiente para dirigir
um coletivo de Sapiens que depende desse meio ambiente - o qual está destruindo - e evoluiu
para cooperar e empatizar, não para ferrar uns com os outros. A bíblia do egocentrismo do
neoliberalismo prega uma ilusão pois a realidade é que funcionamos como animais
eussociais, e por conta disso esse sistema de crenças tem gerado graves consequências em
nossas sociedades.

Agora, essa forma de coabitarmos o mundo - demograficamente crescente e nos organizando


em Estados47, como vimos anteriormente - levou ao nascimento da individualidade, muito
antes de nascer o neoliberalismo. E o indivíduo passou então a se constituir por pelo menos
quatro dimensões, e são elas: (a) a subjetividade que é uma construção cultural da
interioridade, tipo um faz de conta que o animal primata homo sapiens é especial, e cada um
deles possui uma alma ou espírito ou essência interior; (b) a identidade que são as ficções
compartilhadas sobre o que significa ser negra, branca, vermelha ou amarela; ser mulher,

‘natureza’ —, aquilo que, de outro modo, seria inexplicável nele mesmo”. Em: Elias, Norbert. The society of
individuals. [Disponível em http://bitly.ws/eFK3 consultado a junho de 2021].
44
“Sobre el Poder - Byung-Chul Han” (Palestra) [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (1:10 min). Publicado pelo canal de
Claudio Alvarez Teran [Disponível em http://bitly.ws/fkSn consultado a junho de 2021]
45
O livro Nikel & Dime, de Barbara Ehrenreich, disponível em https://bit.ly/3hcdN5u, aponta para algumas das
consequências dessa ideologia nos Estados Unidos, argumentando que a sociedade não consegue ver o
desespero dos trabalhadores de baixa renda porque está acostumada a pensar na pobreza como algo relacionado
ao desemprego. Os trabalhadores pobres, no entanto, têm de lidar com o aumento dos aluguéis, do alimento e
demais custos, mesmo que a “escassez de mão de obra” (que ocorre em todas as cidades onde ela viveu)
pressionasse muito os salários. Bárbara argumenta que os empregadores têm lutado sem parar para evitar que
ocorram aumentos salariais. Nesse ínterim, os trabalhadores de baixa renda sentem vergonha e são alvos
constantes de suspeitas negativas (de roubo, de drogas etc), enquanto, ao mesmo tempo, estão se tornando cada
vez mais invisíveis para as pessoas da classe alta, que compartilham poucos de seus espaços e raramente
interagem com eles.
46
Martuccelli, Danilo. Límites y malentendidos del sujeto neoliberal en América Latina. [Disponível em
https://bit.ly/3wiGLVw consultado a junho de 2021].
47
Nós cobrimos as carcaterísticas da forma de organização em estado com nossas crianças utilizando outros
videogames e publicamos essa experiência no artigo: “Educomunicação: aprendendo sobre a trajetória do Homo
Sapiens com videogames”, disponível em https://tinyurl.com/yfj2cdk3
homem; ser rica, classe média, ou pobre; ser brasileira, chinesa, australiana, angolana, ou
alemã; (c) os papéis, que são as ficções compartilhadas sobre o que significa ser
professor-aluno, pais-filhos, patrão-empregado, comerciante-cliente, médico-paciente, ; (d) os
suportes48 que são as redes, formais e informais, que constituem o indivíduo, e que funcionam
como suportes da sua ação, já que expressam as suas capacidades sociais, exemplos seriam o
trabalho, a religião, a cidadania.

“Cada indivíduo, em todas as sociedades históricas, existiu graças aos suportes. Mas em
sociedades que se modernizaram e experimentaram um aumento nos fenômenos de
isolamento, solidão e desinserção da tradição, o problema de como suportar individualmente
a existência torna-se um desafio maior e até central, para muitos de nós [...] Pense que até
algumas décadas atrás (e isso ainda é verdade em muitas camadas sociais), os indivíduos
tinham menos momentos de solidão do que hoje. Poucos tinham um quarto só para si;
geralmente viviam em um espaço comum; e a solidão era uma experiência rara ou
inexistente. Hoje, ao contrário, em cidades como Nova York ou Paris, mais da metade das
pessoas mora sozinha. O desafio de como suportar a existência torna-se mais agudo (e o
abuso do telefone é fundamental nesses contextos) [...] Esses suportes dão origem a cifras
díspares. Vou apenas dar a você algumas delas. Começo com a experiência de maior
‘sucesso’. Existem pessoas nas nossas sociedades que por razões de privilégio (sociais,
culturais ...) possuem "apoios|suportes invisíveis". Ou seja, elas gosam de suportes
socialmente tão legítimos que acabam sendo invisíveis, graças aos quais acabam tendo a
sensação de serem efetivamente autossustentáveis ​por dentro. Um sentimento constantemente
validado socialmente reforça uma autoilusão (e isso ainda mais porque é individual e
coletivo). Quase se poderia dizer que essa ilusão é uma necessidade funcional nas
sociedades que construíram a imagem idealizada do Indivíduo soberano que se sustenta de
dentro: para acreditar nela é preciso postular a existência do grande homem capaz de
encarnar essa ficção (e digo homem, porque são homens, o grande homem que tem e
transmite sobretudo esta representação de si). Este é o (suposto) mundo dos grandes
políticos, dos grandes dirigentes de empresas, entre os quais o vício do trabalho nunca se
apresenta como uma forma de dependência, mas como um mecanismo de grandeza
pessoal”49.
48
“[...] a noção designa a primeira dificuldade que tem todo indivíduo: como pode suportar o mundo. É o que de
alguma maneira o existencialismo chamou de responsabilidade existencial fundamental do indivíduo, existir é
“estar fora”, é “estar arrojado” no mundo [...] Não existe indivíduo sem um conjunto muito importante de
suportes [...] (Mas,) nenhum indivíduo se suporta sozinho. A representação do ator independente, separado do
social, é uma representação ideológica no sentido mais técnico do termo (a lógica de uma ideia a serviço dos
interesses de um grupo). Mas por que digo que não existe indivíduo sem suportes? Porque a ideia de um
indivíduo que se sustenta por dentro, sozinho, é uma imagem heróica perfeitamente distante da realidade. Pense,
por exemplo, em uma das figuras que, durante séculos, melhor personifica este indivíduo que se sustenta por
dentro: o frade no mosteiro. Não precisa ser muito astuto para compreender o incrível conjunto de suportes (toda
a organização da vida monástica) em que se apóia, como suportes externos”. Em: Martuccelli, Danilo. Las
sociologias del individuo. [Disponível em http://bitly.ws/f3md consultado a junho de 2021].
49
“O olhar social quer vê-los como grandes homens, constantemente sobrecarregados de atividade, cansados,
muito cansados, sujeitos ao estresse e à urgência em meio a uma falta crônica de tempo ...Representação tanto
mais necessária porque a grandeza pessoal consiste justamente em mostrar que você pode sair graciosamente do
ritmo frenético de vida e trabalho que [...] você leva se ler a literatura autobiográfica dos "grandes" líderes
políticos ou dos "grandes" chefes da empresas, a insistência - contrafactual - em se sustentar por dentro é o fio
condutor da maioria desses depoimentos [...] eu conto tudo isso porque acho que ajuda a entender o que quais
Por fim, apontamos para as crianças que o individualismo50 -, mesmo tendo essa má fama e
associação com o egoísmo e a indiferença - que na realidade isso é decorrência da mitologia
neoliberal -, como nos lembra bem o sociólogo François de Singly, o individualismo tende a
democracia representativa, e também, óbvio, aos direitos humanos:

“[...] Como justificar o trabalho da Anistia Internacional, por exemplo, ou o da luta contra a
excisão feminina, ou contra os casamentos arranjados, sem apelar para a liberdade de
expressão e ao direito de cada um dispor de seu corpo? O indivíduo emancipado não é
desconectado dos seus elos sociais, feliz em uma ilha deserta. O indivíduo emancipado é
totalmente conectado e entrelaçado ao coletivo. Ele tem, idealmente, o poder - reconhecido e
validado socialmente - para definir suas afiliações, para decidir sua vida, para resistir ao
óbvio de uma identidade que outros poderiam impor a ele [...]”51.

são os suportes. Em nossas sociedades, são os indivíduos que, praticamente, menos se sustentam por dentro, que
encarnam, curiosamente, por razões ideológicas, a figura máxima do Indivíduo soberano que heroicamente se
sustenta em si mesmo [...] Ao contrário, existem indivíduos que possuem suportes "ruins", ou seja, ilegítimos. É
o caso de todos os que dependem de ajudas públicas e, por isso, manifestam a sua incapacidade de se sustentar.
Ou seja, não são pessoas físicas autônomas economicamente, capazes de auferir seus rendimentos de uma
atividade comercial ou salarial. Diante dessa representação, todo aquele que recebe “presentes” públicos (na
verdade, poderíamos dizer melhor que recebe um direito) é visto como um indivíduo assistido e dependente.
Finalmente, alguém incapaz de se sustentar por dentro. Agora, paradoxalmente, se estabelecermos uma
sociologia desideologizada dos suportes, perceberemos imediatamente que os pobres são indivíduos que se
sustentam internamente em doses muito maiores do que o indivíduo "bem-sucedido" de que acabei de falar.
Com efeito, contando com os escassos recursos que obtém graças ao seguro-desemprego ou ainda mais através
do rendimento mínimo, tem que construir uma vida pessoal sem atividade assalariada. Para eles, como tantos
estudos mostram, o peso da existência é particularmente forte, são os sujeitos que mais se aproximam do modelo
de indivíduo que se sustenta por dentro e, curiosamente, são os mais estigmatizados no sentido contrário”. Em:
Martuccelli, Danilo. Las sociologias del individuo. [Disponível em http://bitly.ws/f3md consultado a junho de
2021].
50
Lyn Hunt, em sua obra “A invenção dos direitos humanos”, observa que o auge da Revolução Humanitária ,
em fins do século XVIII, também foi o auge do romance epistolar. “Pamela” e "Clarissa'' de Samuel Richardson,
e, “Julia” de Rousseau foram surpreendentes campeões de venda. O que sugere uma cadeia causal: ler romances
epistolares sobre personagens diferentes de nós exercita a nossa habilidade de nos pôr no lugar de outra pessoa,
o que, por sua vez, nos indispõe contra punições cruéis e outras violações dos direitos humanos universais. Ou
seja, o grande crescimento da literatura pode ter contribuído enormemente para a Revolução Humanitária,
gerando um viveiro, como diz Steven Pinker, de novas ideias em torno dos valores morais e da ordem social.
“[...] em alguns casos, um romance ou relato biográfico muito popular demonstravelmente expôs uma grande
faixa de leitores ao sofrimento de uma classe obscura de vítimas e levou a uma mudança nas políticas. Mais ou
menos na época em que a ‘A cabana do pai Thomás’ mobilizou os sentimentos abolicionistas nos Estados
Unidos, Oliver Twist (1838) e Nicholas Nickelby (1839), de Charles Dickens, abriram os olhos das pessoas para
os maus tratos a crianças nos asilos de pobres e orfanatos públicos, e ‘Dois anos ao pé do mastro’ (1840), de
Richard Henry Dana, e ´White Jacket’, de Herman Melville, ajudaram a por fim ao açoitamento de marinheiros.
No século passado, ‘Nada de novo no front’ , de Erich Maria Remarque, ‘1984’, de George Orwell, ‘O zero e o
infinito’, de Arthur Koesler, ‘Um dia na vida de Ivan Denisovitch’, de Alexander Soljenitsin, ‘O sol é para
todos, de Harper Lee, ‘A noite’, de Elie Wiesel, ‘Matadouro 5’, de Kurt Vonnegut, ‘Raízes’, de Alex Haley,
‘Azaleia vermelha’, de Anchee Min, ‘Lendo Lolita em Teerã’, de Azar Nafisi, e ‘Possessing the secret of a joy,
de Alice Walker (um romance que enfoca a mutilação genital feminina), foram livros que trouxeram ao
conhecimento do público os sofrimentos de pessoas que, sem eles, poderiam continuar ignorados. O cinema e a
televisão atingiram um público ainda mais numeroso e ofereceram experiências ainda mais imediatas. No
capítulo 9 trataremos de experimentos que confirmaram que as narrativas ficcionais podem evocar a empatia e
estimular pessoas a agir”. Em: Pinker, Steven. (2015) Os anjos bons da nossa natureza. São Paulo: Companhia
das Letras.
51
Singly, François de. L’individualisme est un humanisme. [Disponível em https://bit.ly/3khbQGz consultado a
setembro de 2021].
O individualismo é, portanto, inerentemente político, uma vez que deve criar as condições
que permitam ao indivíduo, seja qual for sua cor, sua nação, a sua origem social, seja qual for
seu sexo, idade, ter o direito de ser um humano, no sentido dos direitos humanos. Mas,
apontamos para as crianças que não devemos esquecer - como coloca o sociólogo Danilo
Martuccelli - que o indivíduo que se fabricou com a política de bem-estar do estado-nação
existe graças a uma escora (sustentáculo), em termos de políticas públicas, que permite a el*
verdadeiramente afiançar-se e construiu-se a partir dessa solidariedade coletiva, pois um
indivíduo depende funcionalmente de todos os outros. Um exemplo dessa solidariedade
moderna: uma mulher se acidentou, foi internada num hospital público, onde passou mais de
duas semanas sendo cuidada por enfermeiros, médicos, auxiliares administrativos que
dirigem a instituição - que trabalham em cargas horárias por vezes difíceis, dominam uma
série de conhecimentos e maquinaria especializada - e salvaram a sua vida! E quando ela saiu
desse hospital, ela não os devia nada, nem ao coletivo que através de seus impostos
contribuíram para a existência desse hospital. Essa é a fabulosa forma de solidariedade que
permite que graças a uma certa organização das instituições e papéis (funções) sociais o
indivíduo se sinta profundamente sustentado pela impessoalidade do trabalho das instituições.

Mas, num mundo sem significado nenhum, e sem propósito algum, primatas Sapiens
sedentos por uma narrativa que dê um norte para suas vidas, muitas das vezes, se encantam e
acabam por “comprar” a mitologia do neoliberalismo do “self made man/woman”. Logo, as
crianças procuraram reproduzir em seus reality shows no The Sims4 essa visão de mundo
darwiniana, competitiva, egocêntrica, caracterizada pela sobrevivência do mais apto.

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