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JOÃO LEONARDO MARQUES ROSCHILDT

DA CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS DO DIREITO EM


JOHN RAWLS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Adriano Ferraz

PELOTAS, 2010.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Maria Fernanda Monte Borges – CRB-10/1011

R791d Roschildt, João Leonardo Marques


Da construção dos fundamentos do Direito em John Rawls / João
Leonardo Marques Roschildt ; orientador : Carlos Adriano Ferraz. –
Pelotas, 2010.
209 f.

Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação


em Filosofia. Instituto de Ciências Humanas. Universidade Federal de
Pelotas.

1. Filosofia do Direito. 2. Teoria do Direito. 3. Fundamentação do


Direito. 4. Teoria da Justiça. I. Ferraz, Carlos Adriano, orient. II. Título.

CDD 100
Banca examinadora:

............................................................................
CARLOS ADRIANO FERRAZ (Orientador)

............................................................................
LUIZ BERNARDO LEITE ARAÚJO

............................................................................
DENIS COITINHO SILVEIRA
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Hugo e Nara Regina, pelo amor recebido ao

longo dos anos, pelo incentivo em todos os momentos necessários e pela minha

formação moral.

De igual forma agradeço à minha Avó Iara, que com sua fonte de alegria

constante, me motivou a dar prosseguimento no esforço empreendido nesta

pesquisa.

Um especial agradecimento à minha namorada Priscila, que ao longo

desta jornada foi incansável no que tange ao apoio e carinho em todos os instantes.

Além disto, suas ponderações críticas, leituras e avaliações acerca do meu trabalho

em muito contribuíram para o resultado final.

Um fraterno agradecimento ao meu orientador, professor Carlos Ferraz,

que sempre me auxiliou fazendo apontamentos precisos tanto sobre os aspectos em

que eu apresentava falhas quanto em meus acertos, incentivando a minha vida

acadêmica em sua completude.

Por fim, um agradecimento aos professores do departamento de filosofia

que contribuíram para o meu aprimoramento intelectual, em especial aos

professores Denis Silveira, João Hobuss e Manoel Vasconcellos.


Resumo:

O foco do presente trabalho é a construção de um conceito de Direito que seja


compatível com a noção de justiça construída por John Rawls. A verificação das
estruturas formas e materiais da justiça como eqüidade acabará determinando o tipo
de Direito que cabe ao pensamento rawlsiano, qual seja, a doutrina interpretativa.
Nesta medida é adequado destacar que a teoria do Direito em Rawls se contrapõe
ao positivismo jurídico, e se mostrando independente como uma concepção política
liberal de justiça assim exige.

Palavras-chave: Filosofia do Direito; Teoria do Direito; Fundamentação do Direito;


Teoria da Justiça.
Abstract:

The focus of the present work is the construction of a concept of Right that is
compatible with the notion of justice formulated by John Rawls. The verification of the
formal and material structures of justice as fairness will finish determining the type of
Right that fits to the Rawlsian thought, which is the interpretative doctrine. Thus it is
appropriate to emphasize that the theory of the Right in Rawls is opposed to legal
positivism, showing itself independent as a liberal political conception of justice so
require.

Keywords: Philosophy of Law; Theory of Law; Grounds of Law; Theory of Justice.


Sumário

1 Introdução.......................................................................................................... 8

1.1 O problema..................................................................................................... 8

1.2 Tese proposta................................................................................................. 10

1.3 Estrutura da dissertação............................................................................... 11

2 A teoria da justiça de Rawls e suas idéias elementares............................... 13

2.1 A posição original sob o véu da ignorância................................................ 13

2.2 O princípio da igual liberdade e os seus respectivos desdobramentos 24


formais e materiais...............................................................................................

2.3 O segundo princípio de justiça: igualdade eqüitativa de oportunidades 38


e o princípio da diferença....................................................................................

3 Aprofundamentos teóricos da justiça como eqüidade................................. 52

3.1 O mecanismo justificacional do equilíbrio reflexivo................................... 52

3.2 A idéia dos bens primários como pressuposto material do Direito......... 60

3.3 A justificação pública e a legitimidade política........................................... 71

3.4 O consenso sobreposto: um acordo político independente..................... 78

3.5 Sobre a democracia constitucional.............................................................. 112

4 A efetivação da justiça como eqüidade e o âmbito do Direito..................... 124

4.1 Uma idéia central: a aplicação dos princípios de justiça na seqüência 124
dos quatro estágios.............................................................................................
7

4.2 Por uma idéia do Direito em (e a partir de) Rawls....................................... 152

5 Conclusões........................................................................................................ 204

Referências........................................................................................................... 206
1 Introdução

1.1 O Problema

Desde a publicação de Uma teoria da justiça (1971), do filósofo político John


Rawls, natural de Baltimore, o universo da filosofia política foi radicalmente
transformado. As mudanças foram sentidas de forma mais acentuada na esfera de
fundamentação (justificação) dos preceitos que se utilizam em sociedade, tanto para
designar como ela é como para determinar como a mesma deve ser. Nisto surgiram
correntes interpretativas que em muito se aproximaram do pensamento rawlsiano,
reconhecendo a importância de sua teoria1 e aprofundando os pontos teóricos que
julgaram deficitários, ao passo que outros círculos de pensamento (mais numerosos)
foram criados, se mostrando críticos para com a justiça como eqüidade2.
O objetivo deste trabalho é averiguar um dos momentos de aplicação dos
princípios de justiça de Rawls que se mostram mais obscuros na proposta do filósofo
norte-americano: o Direito3. As razões pelas quais o tema do Direito se apresenta de
forma indeterminada no liberalismo político rawlsiano podem ser fixadas pelos
seguintes pontos: (i) o objetivo do referido filósofo é estabelecer critérios objetivos
(abstratos) que possam reger toda a sociedade e tenham a capacidade de
determinar o que é justo; (ii) pelo fato do pluralismo razoável e das diversas formas
de democracia presentes no ocidente; (iii) pela razão de que o tipo de restrição

1
Como os liberais igualitários, notadamente representados por Ronald Dworkin, que afirma ser a
teoria da justiça de Rawls insuficientemente igualitária.
2
Aqui um dos críticos mais contundentes é representado por robert Nozick em Anarchy, State and
Utopia, no qual repudia principalmente o princípio da diferença de Rawls (e seu Estado
excessivamente ativo na distribuição de renda), declarando este último como um liberal
insuficientemente liberal. Outras críticas advém do marxismo analítico (em que se destacam G. A.
Cohen e Jon Elster, por exemplo), do comunitarismo (com os célebres Alasdair MacIntyre, Michael
Sandel e Charles Taylor) e do republicanismo (nomes fortes são os de Cass Sunstein e Frank
Michelman).
3
Ressalta-se que a órbita analisada diz respeito tão-somente a idéia apresentada para uma
sociedade democrática nacional, o que exclui a obra O direito dos povos do presente trabalho. Tal
ponto pouco trabalhado na justiça como eqüidade é reafirmado por Höffe: “Rawls desenvolve
certamente certos princípios da justiça para a ordem fundamental de uma sociedade; e, contudo, a
legitimação ética de uma realização destes princípios com forma jurídica e do Estado e com isto seu
mandato para o exercício da coerção não surge no programa nuclear da teoria” (2005, p. 14).
9

formal exigida em uma etapa de elaboração dos princípios de justiça difere


substancialmente daquela apresentada em um momento de determinação de quais
direitos os cidadãos possuem.
Todas estas questões estão conectadas, visto que Rawls visa estabelecer
princípios gerais para sua teoria da justiça, não tendo o intento de assentar uma
metodologia de aplicação dos mesmos de forma estanque: cada sociedade, partindo
do padrão da justiça como eqüidade, escolhe o tipo de formatação adequada a
execução dos critérios de justiça4. Lembrando-se que o fato do pluralismo razoável,
além de ser aplicável às doutrinas morais abrangentes razoáveis, também tem um
alvo de aplicação para com as diversas sociedades herdeiras das democracias
ocidentais, e que apresentam peculiaridades distintas mas que podem chegar a um
mesmo resultado justo de diversas formas. Assim, a forma com que o Direito deve
ser exercido, em suas minúcias e procedimentos, não foi o objetivo de Rawls, pois
este era conhecedor daquela dificuldade (do acordo entre doutrinas razoáveis).
Mas mesmo diante destas dificuldades, o objeto de análise da presente
pesquisa (o Direito) não se mostra inviável, pois existem diversos elementos que
conduzem a um tipo de argumento que pode vir a defender uma proposta acerca
desta esfera jurídica. Até mesmo porque para que se imagine uma aplicação para o
justo, se necessita compulsoriamente de um elemento que seja o meio termo entre a
abstração da justiça e a aplicação na realidade, qual seja, o Direito5.
Desta forma os objetivos da presente investigação podem ser resumido em
dois grandes centros: (i) um primeiro que reside no aspecto de construção
metodológica, e (ii) um segundo que busca verificar que tipo de Direito pode ser
extraído da filosofia política rawlsiana e suas implicações sistêmicas. Neste sentido,
as preocupações postas podem ser resumidas pelas seguintes questões: (a) o
Direito em Rawls se mostra com aspectos morais ou meramente formais? (b) O
mesmo tem autonomia frente ao campo da moralidade, é dependente ou é
interdependente? (c) O Direito se aproxima de um viés positivista ou está mais
inclinado a uma noção que seja mais adequada com o interpretivismo jurídico? (d)
como o Direito se refere ao quarto estágio de aplicação dos princípios de justiça,

4
Mesmo que se tenha uma ampla moldura que determine o que é permitido e o que não é.
5
Nenhuma teoria política é elaborada com o mero escopo de ser um simples exercício de abstração
racional sem nenhuma intenção prática.
10

fase em que não se possui mais o véu da ignorância6, ao se adotar uma corrente
como a que possivelmente represente o ideal rawlsiano acerca deste tema, não se
estaria incorrendo em um tipo de doutrina abrangente?

1.2 Tese proposta

Com o desenrolar desta pesquisa, vai ser defendida uma concepção de


Direito7 presente na justiça como eqüidade em Rawls que demonstre os seguintes
aspectos centrais: (i) o Direito, bem como a teoria da justiça, são formais na medida
em que guardam viés procedimental muito firme, mas ao mesmo tempo possuem
conteúdo (o que descaracteriza a crítica de um formalismo vazio para ambos); (ii) a
autonomia do Direito em relação às doutrinas morais abrangentes razoáveis, tal e
qual a proposta de justiça; (iii) a interdependência com a justiça como eqüidade que
este apresenta no que tangem às limitações impostas nos três estágios (anteriores)
de aplicação dos princípios de justiça; (iv) a adequação do Direito rawlsiano com a
formulação interpretativa do sistema jurídico, refutando o positivismo; (v) e por fim
que o Direito em Rawls não pode ser relacionado como uma doutrina moral (ou
política) abrangente qualquer (mesmo sem o véu da ignorância) em virtude deste ser
parte da justiça como eqüidade.
Obviamente que quaisquer das afirmações realizadas acima não encontram
respaldo claro e evidente no desenvolvimento teórico esboçado por Rawls ao longo
de suas obras. Contudo, todas as afirmações realizadas se encontram na base das
melhores interpretações concretizadas nos últimos anos sobre o pensamento
rawlsiano: a própria interpretação sobre o Direito em Rawls se mostra
demasiadamente nova em comparação com as análises disponíveis sobre os
mecanismos de justificação da teoria da justiça.
Assim, para o desenvolvimento da presente dissertação haverá de se dar
conta de temas de fundamentação da justiça como eqüidade para que depois se
6
Sem restrições formais.
7
Convém assinalar que há uma sólida oposição entre Direito e direito: o primeiro é visto como uma
grande moldura no qual o segundo se efetiva nas particularidades dos cidadãos. Em outras palavras,
o segundo apresenta um caráter subjetivo, ao passo que o primeiro se presta a carregar uma
estrutura formal de aplicação e de execução que visa determinar de quem é o direito. Enquanto o
primeiro é objetivado no plano de uma estrutura de justiça (e de instituições sociais), o segundo é
materializado no sujeito, conferindo-lhe poderes perante outrem. O alvo da presente pesquisa é o
Direito.
11

possa depreender uma noção de execução destes pressupostos formais essenciais


e dos conteúdos extraídos. Como corolário, temas que envolvem a participação das
três grandes obras de Rawls8 se fazem necessários para a compreensão do Direito,
tanto em sua forma quanto em sua substância.

1.3 Estrutura da dissertação

Para que os objetivos em questão sejam conquistados, a presente pesquisa


apresentou os seguintes eixos temáticos: (i) em um primeiro momento optou-se
pelas contruções mais fundamentais esboçadas por Rawls acerca da justiça como
eqüidade, quais sejam, as idéias fundamentais que apresentaram o filósofo norte-
americano para o universo político: o revigoramento da teoria do contrato social
aliado aos dois princípios de justiça que dotam de substancialidade a justiça como
eqüidade.
Logo, optou-se por uma análise de pressupostos teóricos que surgiram em
obras posteriores a Uma teoria da justiça (mesmo que tais idéias já estejam latentes
nesta obra), notadamente àqueles voltados para temas de legitimidade política. Uma
ênase especial foi dada para a questão do consenso sobreposto, em virtude de que
este mecanismo justificacional se mostra como uma peça fundamental para que se
compreenda a independência do Direito.
Por fim, partiu-se para um análise acurada acerca do tema da aplicação dos
princípios de justiça na realidade, sub-dividida em duas etapas: no primeiro
momento buscou-se uma averiguação sobres os métodos utilizados por Rawls para
a execução dos princípios abstratos em sociedade, demonstrados os quatro
estágios de aplicação destes. Já em um segundo momento, tentou-se problematizar
o tema do Direito com o escopo de responder as questões fundamentais que
fomentaram a pesquisa, bem como acrescentar uma proposta que pudesse
responder às indagações fundamentais que motivaram esta pesquisa.
A estruturação se deu nestes moldes em virtude da própria disposição trazida
por Rawls acerca dos quatro estágios de aplicação: parte-se de restrições severas a
concepção de pessoa e sociedade para que através dos sucessivos relaxamentos

8
Uma teoria da justiça, O liberalismo político e Justiça como eqüidade:uma reformulação.
12

de execução se obtenha uma efetividade dos princípios de justiça em sociedade.


Desta forma, se mostrou bastante lógico tratar de temas afeitos a estruturação da
justiça como eqüidade9 para que, somente após uma análise minuciosa destes, se
pudesse passar a análise da aplicabilidade dos valores engendrados (os dois
princípios de justiça).

9
Selecionados a partir das necessidades mais prementes. Todavia, cabe lembrar que alguns
mecanismos de justificação ficaram de fora por escolha do autor em virtude da tese defendida nesta
dissertação (por exemplo, a razão pública não mereceu a devida orientação pelo fato de que esta
corrente poderia produzir um não-Direito em Rawls a partir da noção de possível omissão do
judiciário em casos controversos, privilegiando a razão que emana do legislativo).
2 A teoria da justiça de Rawls e suas idéias elementares
2.1 A posição original sob o véu da ignorância

Principia-se a presente exposição com uma crítica desenvolvida por Ronald


Dworkin acerca do tipo contratualista adotado por Rawls em sua teoria da justiça19:

Rawls does not suppose that any group ever entered into a social contract of
the sort he describes. He argues only that if a group of rational men did find
themselves in the predicament of the original position, they would contract for
the two principles. His contract is hypothetical, and hypothetical contracts do
not supply an independent argument for the fairness of enforcing their terms.
A hypothetical contract is not simply a pale form of an actual contract; it is no
contract at all (DWORKIN, 1975, p. 17-18).

Essa representa uma pequena passagem crítica, contudo, dada a sua profundidade
e acidez, merece uma averiguação mais detalhada para que este mecanismo de
justificação rawlsiana não sucumba, levando consigo todo seu sistema.
A este tempo, a título de análise metodológica, surge a necessidade de
responder aos seguintes questionamentos, frente ao espólio contratualista que
Rawls se diz herdeiro: O pacto para a construção principiológica surge como e
quando? Com que forma se aderirá à justice as fairness? A resposta se encontrará
no entendimento do que venha a ser a “posição original” no pensamento rawlsiano,
que dará solidez a urdidura teórica do referido autor, em uma formatação formalista
e procedimental, mas que resguarda um firme espaço substancial.
Assim sendo, primeiramente há de se determinar como se dá a posição
original, em que condições a mesma é estabelecida, bem como os objetivos da
mesma. Assim, a posição original encontra suas raízes no estado de natureza
oriundo de filósofos como Locke e Rousseau, contudo não pode ser entendida como
algo análogo, haja vista que, caso fosse, receberia as mesmas críticas que aqueles
receberam, e não acrescentaria nada para a história da filosofia, significando uma
mera repetição de um pensamento desenvolvido séculos atrás. E tal afirmação é
substancialmente corroborada por uma célebre passagem de Rawls, na qual afirma
que “meu objetivo é apresentar uma concepção de justiça que generalize e eleve a
19
O motivo da adoção de um modelo que vai da crítica para depois efetuar a elucidação do tema do
acordo se mostra para verificar o quão sustentável se mostram os pilares de Rawls, mesmo que se
parta de uma análise contrária – em partes – ao seu pensamento.
14

um nível mais alto de abstração a conhecida teoria do contrato social conforme


encontrada em, digamos, Locke, Rousseau e Kant” (RAWLS, 2008, p. 13). Eis que
fica claro a fonte e os interlocutores necessários para a compreensão dos intentos
rawlsianos em sua teoria da justiça.
Mas há de se entender em que medida ocorre um aprofundamento das
teorias contratualistas dos séculos XVII e XVIII, para que se entenda em que partes
Rawls se diferencia metodologicamente e substancialmente da herança por ele
adotada. Primordialmente, a posição original significa uma situação inicial de
igualdade, para um acordo acerca dos princípios a serem distribuídos entre as
instituições sociais e os seres vistos em suas individualidades. Estes princípios de
justiça são acordados entre as partes sob um véu da ignorância, que garante que as
mesmas não sejam egoístas em seus interesses, construindo assim uma plataforma
que impulsione a todos, sem privilegiar um determinado segmento social em
detrimento de outro, de forma injusta, pois se aduzirão princípios que preservem
tanto o interesse individual como coletivo.
Destarte, pode-se dizer que a idéia da posição original, então, se imiscui com
a de estado de natureza, bem como com a de contrato social para o
estabelecimento da sociedade civil (mas obviamente que tal interpretação rawlsiana
não faz uma apropriação indistinta destas concepções de Locke e Rousseau). A
título de uma simples diferenciação, pode-se aventar que no estado de natureza
lockiano, tem-se a afirmação de que é um estado de perfeita liberdade e igualdade
entre os homens, na qual a liberdade garante o pleno uso e gozo da sua
propriedade (aqui entendida como sendo equivalente a vida, liberdade e posses de
todo o gênero), enquanto a igualdade garante que não haja nenhuma espécie de
submissão entre os seres humanos, não havendo poder pelo qual os homens devam
se submeter.
É claro que até este ponto, a posição original de Rawls talvez convergisse
sem demais correções com o pensamento de Locke, contudo, há neste último
filósofo um acréscimo que merece destaque e talvez possa expor uma diferença
fundamental: a lei da natureza. Ora, para Locke, o estado de natureza não pode ser
um estado de amplas liberdades, de tudo se fazer e querer, mas sim, um estado no
qual seja regido por uma lei da natureza – identificada ao longo de sua obra magna
sobre filosofia política como sendo a razão – que dite aos homens os limites de sua
ação, obrigando-os a não prejudicarem outrem (no mais amplo leque que isto possa
15

significar). Para Rawls, uma lei da natureza seria inconcebível, face sua herança
analítica, que não permite o estabelecimento de uma fundamentação última dos
princípios morais a serem adotados em sociedade.
Esta não aceitação de uma fundamentação verdadeira de princípios morais
pode ser vista da seguinte forma: na maneira em que liberdade e igualdade são
critérios que guardam uma verdade absoluta para Locke – e para Rousseau e Kant,
mas por outras justificativas –, na qual todos aqueles que pensarem contrariamente
a sua argumentação incorrerão em erro, em Rawls “se deve observar que não se
conjetura a aceitação desses princípios como uma lei ou probabilidade psicológica”
(RAWLS, 2008, p. 146), tendo-se que seus princípios de justiça são aqueles que se
apresentam no momento do acordo na posição original, como sendo os mais
corretos para a sua teoria da justiça – o que mostra certo caráter parcial, mas que
não pode ser visto como algo ruim ou errado, na adoção dos mesmos, pois os
princípios se voltam para fundamentar a sua teoria da justiça, que para Rawls se
apresenta como a mais adequada para atender aos anseios individuais e coletivos
do homem pós-iluminismo.
Logo, os princípios de justiça – que serão tratados em partes precedentes –
da posição original são ad hoc, tanto com relação à teoria da justiça, garantindo sua
coerência, quanto para a função que virão a desempenhar para o estabelecimento
(não sendo absoluto nem com força de verdade, mas sim de correção) do que seja o
justo em sociedade. E com relação a parcialidade exposta no parágrafo anterior,
pode-se aventar a argumentação rawlsiana acerca do tema, corroborando tal
assertiva, com o seguinte trecho:

Como já afirmei, há muitas interpretações possíveis da situação inicial. Essa


concepção varia, dependendo de como as partes contratantes são
concebidas, do que se afirma serem suas crenças e interesses, de quais
opções lhe estão disponíveis, e assim por diante. Nesse sentido, há muitas
teorias contratualistas possíveis. A justiça como equidade é apenas uma
delas. Mas a questão da justificação é resolvida, na medida do possível,
demonstrando-se que há uma interpretação da situação inicial que expressa
melhor as condições que em geral se considera razoável impor à escolha dos
princípios que, ao mesmo tempo, leva a uma concepção que caracteriza
nossos juízos ponderados em equilíbrio reflexivo. Essa interpretação
preferida, ou padrão, chamarei de posição original (RAWLS, 2008, p. 147).

Eis que com isso tem-se claramente a admissão por parte de Rawls de que os
princípios de justiça escolhidos, ao lado da teoria de justiça demonstrada, são
expostos e construídos de maneira parcial – objetivando algo que se toma como o
16

mais correto, mas não verdadeiro – a partir de uma posição inicial de igualdade
imparcial das partes. Faz-se uma ressalva de que são todos os juízos morais
existentes em sociedade que podem ser utilizados neste equilíbrio reflexivo que se
efetua na posição original, pois se assim o fosse, recairia o sistema rawlsiano em
uma espécie de falácia naturalista, pois se adquiriria a fundamentação de seus
princípios e de sua teoria, em última análise, nos juízos morais lato sensu contidos
em sociedade; sendo assim, se utilizam os juízos morais ponderados por estes
possuírem um status diferenciado, que não se confunde com tudo o que é
encontrado na realidade natural.
Ainda sobre o trecho citado, poder-se-ia perguntar: como que Rawls assume,
no seio de seu mecanismo contratualista e construtivista, a parcialidade do seu
sistema – ao dizer que existe uma interpretação preferencial para dar conta dos
objetivos de sua teoria da justiça –, mesmo se utilizando largamente do conceito de
imparcialidade, que em última análise é garantido pelo véu da ignorância? Ora,
pode-se vislumbrar com clareza solar que na passagem exposta de Uma Teoria da
Justiça, Rawls fala que há muitas interpretações e concepções sobre uma situação
inicial que gere princípios de justiça, dependendo esta variação das partes, suas
crenças e suas opções. Neste sentido, o autor norte-americano declara que a sua
teoria da justiça é apenas mais uma dentre as diversas teorias contratuais existentes
(ou que existiram), mas seria a que mais se adapta com os tipos de partes
contratantes (que ocupam uma posição inicial de igualdade, sob um véus da
ignorância), seus desejos e possibilidades.
Ao dizer isso, Rawls assevera cabalmente que a sua teoria não é a
verdadeira, mas sim a que pode produzir os melhores resultados (uma breve
vertente utilitária, mas que não desconsidera a pessoa tomada em sua
individualidade), bem como ser a mais correta para o tipo de situação inicial
esboçada por ele, aceitando a existência da diversidade de concepções filosóficas
acerca da temática (fato do pluralismo razoável). Por fim, respondendo a questão
proposta, pode-se ter: o autor de Uma Teoria da Justiça cria um mecanismo de
justificação que se utiliza de uma concepção de pessoa de forma imparcial (todas as
partes são vistas de forma igual, possuindo uma esfera inviolável de direitos que
nenhuma espécie de acordo pode romper), sendo parcial na sua escolha da
estrutura que melhor se ajusta a esta idéia de pessoa com todas as circunstâncias
sociais e naturais; e ao admitir esta parcialidade em sua escolha, sem dizer que sua
17

tomada de posição representa a verdade absoluta, admite que existam outras


concepções que possam produzir resultados diversos do seu (mesmo que para o
tipo de pessoa idealizada por ele, no fim das contas, se verifique que sua concepção
de pessoa é a mais adequada).
Mas qual seria a real definição, ou a que mais se pode aproximar da idéia de
Rawls, acerca da posição original? Esta pode ser entendida de forma autônoma ou
deve se recorrer a complementaridade do véu da ignorância e outros mecanismos
que foram desenvolvidos em escritos posteriores? Primordialmente, há de se
entender que “na justiça como eqüidade, a situação original de igualdade
corresponde ao estado de natureza da teoria tradicional do contrato” (RAWLS, 2008,
p. 14). Esta afirmativa inicial pode entrar em choque com algumas premissas
delineadas no início desta parte expositiva sobre a posição original, pois algumas
diferenciações severas foram feitas no que tange aos aprofundamentos contratuais
trabalhados por Rawls em relação aos filósofos contratualistas de séculos
anteriores. Contudo, há de se entender que a correspondência entre a posição
original e o estado de natureza, que Rawls assume, se dá muito mais como um
plano de elucidação exemplificativa da idéia do referido autor, para que o leitor tenha
uma noção básica do que seja esta posição original, através de um exemplo retirado
da história da filosofia, haja vista que, conforme já foi exposto, ocorre um grande
aprofundamento das teorias contratuais dos séculos XVII e XVIII.
Desta maneira, a “posição original” é “a situação hipotética na qual as partes
contratantes (representando pessoas racionais e morais, isto é livres e iguais),
escolhem, sob um ‟véu da ignorância‟ (veil of ignorance), os princípios de justiça que
devem governar a „estrutura básica da sociedade‟ (basic estructure of society)”
(OLIVEIRA, 2003, p.14). E tal estrutura, conforme assinala Scanlon, há de ser
entendida de forma a destacar o seu caráter teorético e dedutivo, qual seja:
“principles of justice are justified if they could be derived in the right way, institutions
are just if they conform to these principles, and particular distributions are just if they
are the products of just institutions” (SCANLON, 2003, p. 139).
Há de se rememorar que na obra rawlsiana, os princípios formadores da
justiça como eqüidade são frutos dos juízos morais cotidianos que convergem,
encontrando aqui o seu critério de absoluto, no plano, obviamente, do razoável (o
absoluto em questão não faz referência alguma a algo como verdadeiro ou falso). E
especial cuidado há de se ter quando Rawls identifica a “posição original” como um
18

contrato lato sensu em que as partes se inserem para fundar a estrutura da


sociedade. Partes não são pessoas nem indivíduos, o que faz-se mister estabelecer
uma diferença fundamental que ofertará ainda mais substancialidade a doutrina de
Uma Teoria da Justiça: os indivíduos são os sujeitos pertencentes a uma categoria
histórico-contingentes, que apresentam como características básicas,
eventualidades pessoais como idade, sexo, etc.; as pessoas são as formalizações
dos indivíduos, sem distinção alguma; já as partes, são as consciências fazendo um
acordo representando as pessoas. Neste último âmbito atinge-se um altíssimo grau
de imparcialidade moral, que dará o norte da orientação teórica de Rawls.
Isto posto, outra idéia básica que se deve ter acerca da posição original, é
que a mesma “é entendida como situação puramente hipotética, assim caracterizada
para levar a determinada concepção de justiça” (RAWLS, 2008, p. 14), em que há
uma clara vertente kantiana nesta determinação. Ao declarar que a situação original
é meramente uma hipótese filosófica, que por consequência apresentará o contrato
como mera hipótese – lembrando-se fundamentalmente aqui, da crítica de Ronald
Dworkin no início desta exposição –, Rawls afirma que seu mecanismo de
justificação dos princípios de justiça não é real e nem recorre de comprovações
históricas de existência fática e natural. E, ao não se engajar em tal corrente de
pensamento que declara que algum dia os homens estiveram ou podem vir a se
encontrar em um estado de natureza, o filósofo de Uma Teoria da Justiça se
diferencia de Locke e Rousseau, pois estes, continuamente asseveram a existência,
em tempos remotos, de homens que se encontravam em um estado de natureza
(Locke chega a exemplificar povos que em algum tempo estiveram em tal estágio de
desenvolvimento social, como espartanos ou tribos indígenas na América).
Por não acatar tal posicionamento naturalista (por assim dizer), Rawls se
assemelha ao posicionamento kantiano de concepção contratual, mas sem se
aproximar de seu fundacionalismo moral, que estabelece uma verdade única e
absoluta do que seja o bem e o justo, não admitindo outra visão que discorde de tais
determinações teóricas. Até mesmo porque, frente aos entendimentos da filosofia
analítica e com os avanços da lógica, na qual Rawls faz ampla aplicação ao longo
de suas obras, em que se tem uma afirmação de que os valores morais nada mais
são do que valores determinados pelos sujeitos envolvidos na questão, seria de
difícil defesa imaginar uma situação original que houvesse existido na prática para
comprovar determinados valores defendidos por um filósofo sobre o que deve ser o
19

melhor para uma sociedade civil, sem cair em uma enorme falácia naturalista, pois
comprovações reais e valores morais pertencem a registros lógicos evidentemente
distintos.
Outra razão para Rawls não abraçar a tese de que a posição original e o
contrato social tenham existido no mundo real, é o fato de que se estes existiram
foram concretizados e realizados por sujeitos reais, o que traz a seguinte crítica:
como efetuar um contrato que preserve os direitos oriundos do estado de natureza,
com homens que apresentam vontades distintas, com poderes e instrumentos de
barganha diversificados, sem que alguma parcela social não perca excessivamente,
ou ceda, os direitos originais do estado de natureza em prol de outro segmento
social? Eis que

A descrição costumeira do estado de natureza é injusta porque algumas


pessoas têm mais poder de barganha do que outras – mais talentos naturais,
recursos naturais ou simples força física – e conseguem resistir mais para
obter um negócio melhor, ao passo que os menos fortes e talentosos têm de
fazer concessões (KYMLICKA, 2006, p. 78).

Portanto, o que surge é que a posição inicial de filósofos como Locke e Rousseau
apresenta-se como sendo problemática pelo motivo de que ela, ao tratar de homens
reais que tem propriedades físicas e sabem de seus lugares no mundo – status
social, gênero, raça, etc. –, não se mostra totalmente imparcial em seu limiar, haja
vista as contingências que cercam os mesmos. E ao se apelar para a racionalidade,
é racional que os homens no estado de natureza venham a lutar pela defesa –
através do contrato civil – de seus interesses prévios e parciais: ou seja, não se
pregaria uma defesa ao bem político e público – preservando espaço para a esfera
individual – de forma imparcial, pois é natural que os homens busquem a sua
preservação, que é representada pela defesa de seus interesses individuais.
E este seria um resumo crítico do que os filósofos contratualistas que
enfatizaram a realidade prévia de um estado de natureza que outorgasse direitos
aos sujeitos sofreram por parte dos seus adversários. Assim, fica claro que a
viragem filosófica empreendida por Rawls necessita de outro dispositivo que garanta
a igualdade moral dos agentes do contrato hipotético, para que os mesmos não
obtenham vantagens pessoais que ofusquem a intuição rawlsiana de que a
cooperação – levar em conta o interesse próprio e de outros – é algo bom para
20

estabilidade social, fundamentando com uma igualdade moral os direitos


decorrentes do pacto: a isto se dá o nome de véu da ignorância.
Com isto tem-se que a posição original não pode ser compreendida de forma
autônoma, visto que se for por este caminho, acabará por aderir – e em nada
acrescer tanto metodologicamente quanto substancialmente – ao caminho
contratualista traçado por Locke, Rousseau e Kant (mesmo este último
apresentando o mecanismo contratual como hipotético). Necessário faz-se a
introdução de um véu da ignorância na posição original, que represente um
obstáculo ao egoísmo pleno e simbólico que a simples racionalidade – sem a
razoabilidade – possa representar para uma sociedade que almeje se fundar por
bases da imparcialidade, sem nenhum tipo de vício (que advém naturalmente
quando os sujeitos sabem das contingências que cercam um acordo).
E o que representaria o “véu da ignorância”, bem como qual seu significado?
Como significação, pode-se afirmar que este é um procedimento sob o qual as
partes ficam adstritas para que realizem o elenco de princípios formadores da justiça
como eqüidade, sem conhecerem as posições e situações que vivenciarão na
comunidade real que foi elaborada na posição original. Logo, o “véu da ignorância”
daria uma maior força ao critério da imparcialidade moral igualitária presente neste
neo-contratualismo, e que, em contratualistas do séc. XVIII foi duramente criticado
por não apresentar justificativas que se esquivassem de que: como (1) o contrato
social é feito por homens, (2) estes defenderão seus interesses de forma egoísta, o
que traz como consequência a noção (3) de que o contrato não visa a defesa do
bem público, sendo (4) uma quimera sujeita a um jogo de interesses entre os
contratantes, no qual o mais forte e com maior poder de barganha acabará por deter
mais direitos (não se atingindo uma igualdade plena).
Nesta seara, nunca se pode olvidar da argumentação que traz anexada ao
mecanismo da posição original sob o véu da ignorância, o efeito aduzido pelo
equilíbrio reflexivo, pois este dota de coerência circular (sem um ponto último de
fundamentação que estabeleça um critério de verdade) e subjaz a escolha de
princípios naquela posição inicial da sociedade. Com isto, tem-se a realização de um
fluxo e refluxo entre juízos morais ponderados, princípios morais (chamados de
princípios de justiça) e uma teoria moral (a teoria da justiça de Rawls).
Sem mais delongas, ao rememorar a crítica inicial de Dworkin para com a
posição original e o contrato social de Rawls, há de se salientar que a posição
21

original é um “device of representation, or alternatively, a thought experiment for the


purpose of public – and self – clarification” (RAWLS, 2001, p. 17). Evidente, portanto,
que ao ser designada a posição original como um mecanismo com a finalidade de
uma justificação pública acerca dos princípios de justiça a serem adotados em
sociedade, é claro que não se tem a presença de uma obrigação para algo. Note-se
que Rawls não deseja obrigar moralmente os indivíduos a seguir os acordos do
pacto hipotético, pois o mesmo não existe de fato, mas sim criar um instrumento
abstrato e representativo que possibilite uma visualização idealizada dos mais
corretos princípios de justiça para uma sociedade bem-ordenada: falar em falta de
obrigação moral na posição original rawlsiana pelo fato da mesma ser hipotética, se
torna descabido.
Poder-se-ia trazer à tona o argumento de que um mecanismo hipotético,
como o da posição original, por ser algo sem concretude real, não possuiria um vigor
argumentativo suficiente para sustentar uma teoria da justiça que visasse uma
estabilidade social. Eis que surge uma lição lapidar:

Moreover, the fact that na agreement or other event is hipothetical surely


cannot imply that it hás no probative value. Some of the most fundamental
advances in inqury are based on thought experiments regarding the
behaviour of individuals or objects in hipotethical situations that are not
practicalyy possible (for example, conditions of perfect competition in price
theory, motion in vacuum in Newtonian physics, and objects with mass
traveling at the speed of light in special relativity). Just as hipothetical
situations can be used to state fundamental laws of physics or economics,
they should be helpful in philosophy in discovering or justifying basic moral
principles (FREEMAN, 2007, p. 144-145).

E isto pode ser dirigido a todos aqueles que argumentam que tal mecanismo de
representação não se efetiva na prática por uma diferenciação entre o plano ideal e
uma dita real natureza humana (que não seria compatível com tais enunciações
rawlsianas).
Frente ao que foi asseverado, fica claro que o instrumento contratualista
utilizado pela teoria da justiça de Rawls, representa uma ferramenta poderosa para
desenvolver os princípios de justiça sob uma ótica imparcial: a posição original
acaba por salvaguardar os valores de liberdade e igualdade. Eis que a original
position (caráter substancial, tratando-a ontologicamente) não seria mais do que
algo que explicitaria a maneira (caráter formal) com que a conceituação de justiça
22

como eqüidade adquire forma, demonstrando suas implicações com relação aos
princípios de justiça, que se aplicam aos indivíduos e instituições sociais.
Mesmo assim, como fugir de uma crítica que trata da “posição original” como
mera abstração formalista para justificar a construção de princípios e adentrar no
plano da substancialidade metodológica? Ao se fixar a igualdade como chave
mestra do procedimentalismo rawlsiano da “posição original”, dota-se o
entendimento desta abstração hipotética com um caráter substancial que lhe poderia
ser aduzido como faltante, ao se entender, por exemplo, como a proposição de que
a igualdade é boa. Ainda resta uma indagação sobre que tipo de igualdade estaria
Rawls tratando? Tal acepção da palavra pode ser traduzida por igual condição de
possibilidade das partes, que nada mais são do que consciências morais
representantes de formalizações de indivíduos, capazes de estabelecerem princípios
balizadores de uma estrutura social, que dará forma a justiça como eqüidade (e aqui
encontra-se um forte caráter abstrato garantidor de uma imparcialidade moral muito
rígida).
Frente as proposições expostas, há de se pressupor a posição original como
um contrato de uma pluralidade de partes com o escopo de ofertar uma publicidade,
através do consenso, para os princípios de justiça. E o ponto de partida utilizado, há
de se lembrar, é o de uma moral mínima comum, demonstrado, por exemplo, por um
consenso sobre um repúdio à escravidão bem como o de uma tolerância religiosa,
no qual vem a ser juízos morais convergentes, que por sua vez serão o substrato
para que se derivem princípios (não entendidos como verdadeiros ou falsos, mas
sim como razoáveis ou não razoáveis).
O procedimento de representação das pessoas através de partes na “posição
original” há de ser entendido como uma abstração filosófica, ou em outras palavras,
como um processo de justificação da espécie de teoria a ser fundamentada (no caso
em tela, o de Uma Teoria da Justiça, a carga principiológica é a que necessita de
bases sólidas), sendo assim, um maquinismo formal. Este formalismo garante com
que não haja nenhuma obrigatoriedade de concretização no mundo real (caso
exigisse tal comprovação, se aproximaria de um empirismo), logo, hipotético, ao
mesmo tempo em que se adapta a qualquer tempo ou época, fruto da representação
das partes (consciências morais), o que afiança a sua a-historicidade.
E quanto à crítica realizada contra os contratualistas do séc. XVIII
(especialmente), de que suas teorias filosóficas de um pacto inicial para a formação
23

de uma sociedade seriam abstrações pouco efetivas? Esta crítica se alargaria a


Rawls?
Deste modo, afasta-se (tal e qual já foi dito em outra banda) a crítica da
doutrina de um estado de natureza, e conseqüentemente da “posição original” de
Rawls, do âmbito da historicidade, pois esta não entra no cerne da questão, nem se
apresenta como melhor via de interpretação. A presença forte de um viés ligado a
idéia de uma igualdade moral individual atrelado ao estabelecimento de novas
liberdades políticas parece ser a que melhor se adapta a intenção dos
contratualistas e neo-contratualistas aqui representados por Rawls, pois aliaria um
formalismo construtivista e justificador (de um governo, de um Estado ou de
princípios de justiça, por exemplo) com a substancialidade que uma igualdade inicial
pode ofertar para as partes poderem construir estruturas sociais com o critério da
imparcialidade moral. Nesta ótica, o contrato social lato sensu (sejam os do séc.
XVIII ou o de Rawls) foge da crítica tênue da existência ou não histórica de seu
procedimento e adentra no campo de uma solidez lógica justificadora (dentro de
uma razoabilidade) muito robusta para fundamentar sua pretensão de formação da
sociedade.
Isto posto, Rawls segue esta padrão contratualista desenvolvido a partir do
séc. XVIII, mas com a dinâmica diferenciada em que os princípios de justiça (linha
mestra da sociedade) são determinações a partir de uma densa posição de
igualdade das consciências morais (nominadas de partes). Eis que

In justice as fairness the original position of equality corresponds to the state


of nature in the traditional theory of the social contract. This original position is
not, of course thought of as na actual historical state of affairs, muche less as
a primitive condition of culture. It is understood as a purely hypothetical
situation characterized so as to lead to a certain conception of justice
(RAWLS, 1971, p. 12).

Mas esta correspondência entre a posição original e o estado de natureza não se dá


em grau, quantidade e valor, e sim somente através de equivalência de parentesco
muito tênue, conforme já foi exaustivamente tratado.
E como o mecanismo de revestimento para escapulir da semelhança integral
entre o Estado de Natureza e a posição original é representado pelo véu da
ignorância, há de se conhecer pelas palavras do próprio autor norte-americano a
formatação de significação desta metodologia, em que
24

ninguém conhece seu lugar na sociedade, sua classe ou seu status social; e
ninguém conhece sua sorte na distribuição dos recursos e das habilidades
naturais, sua inteligência, força e coisas do gênero. Presumirei até mesmo
que as partes não conhecem suas concepções do bem nem suas
propensões psicológicas especiais. Os princípios de justiça são escolhidos
por trás de um véu da ignorância. Isso garante que ninguém seja favorecido
ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural
ou pela contingência de circunstâncias sociais. Já que todos estão em
situação semelhante e ninguém pode propor princípios que favoreçam sua
própria situação, os princípios de justiça são resultantes de um acordo ou
pacto justo (RAWLS, 2008, p. 15).

Destarte, a “posição original” visa uma igualdade dentro do campo de pessoas


morais em que se extraem princípios de justiça derivados de um não conhecimento
de fortunas naturais e demais contingências; e tais princípios são gerados
eqüitativamente dentro do plano de uma elaboração metodológica, atingindo o alvo
da justice as fairness. Com isso fica evidente o espírito que a posição neo-
contratualista de Rawls procura demonstrar, conciliando o contratualismo clássico
com a tese de que não existem (ou fica difícil estabelecer) princípios definitivos e
absolutos a serem escolhidos na “posição original”, o que (esta última parte)
coaduna com a filosofia analítica. Sedimentado está, desta forma, que se os
princípios a serem escolhidos não se pautam por um critério no qual esteja
destacado um conceito de “bem” ontológico (sujeitos a forte carga da filosofia
analítica) e seguem por um critério de imparcialidade moral construtivista, logo
estarão sempre sujeitos a verificação através da razoabilidade. E a congregação de
teorias filosóficas de séculos distintos, sublinhando a razoabilidade como o critério
absoluto na elaboração principiológica da “posição original”, consegue responder
que entre os diversos juízos morais divergentes, podem-se extrair juízos morais que
convirjam pensados razoavelmente, sob o lume da imparcialidade moral.

2.2 O princípio da igual liberdade e os seus respectivos desdobramentos


formais e materiais

Para principiar este sub-capítulo, há de se entender à luz de quais origens o


pensamento de Rawls percorre em sua doutrina acerca da igual liberdade, afim de
que se descubra a natureza – não no sentido metafísico ou relativamente a uma
teoria do conhecimento que inspire em uma verdade absoluta ofertada por um
Criador comprovada na prática, haja vista a herança lógica rawlsiana na qual toda e
qualquer determinação de valores morais para algo, nada mais são do que meros
25

valores dados pelo próprio ser humano – da mesma, para assim fixar seus objetivos
e seu papel na fundamentação de uma teoria da justiça. Há de se destacar que o
liberalismo – corrente do pensamento filosófico, político e econômico, que carrega
consigo o conceito de liberdade – apresentou ao longo da história duas espécies de
doutrinas distintas, mas que por vezes andaram de mãos dadas, produzindo
resultados sociais mais ou menos perversos: pode-se destacar (1) uma vertente
econômica e (2) uma vertente político-filosófica do pensamento liberal. A primeira
pode ser vista, em linhas gerais, como uma defesa de mercados livres, ou com
pouquíssima, regulamentação estatal.
A segunda espécie pode ser analisada sob a ótica na qual todos os homens
são vistos como iguais e livres desde o momento de seu nascimento; “that
governments have a duty to respect these liberties and tolerate different religious
confessions; and that polítical power is to be exercised for the common good”
(FREEMAN, 2007, p. 43). E é exatamente esta última corrente de pensamento
liberal que Rawls adota em seu discurso acerca da igual liberdade em seu corpo
sistemático sobre a teoria da justiça.
Ressalta-se que o posicionamento assinalado como pertencente a Rawls, é
derivado fundamentalmente, por assim dizer, do filósofo John Locke, tratando do
aspecto religioso principalmente na sua Carta Acerca da Tolerância, na qual
expressa que “nenhum indivíduo deve atacar ou prejudicar de qualquer maneira a
outrem nos seus bens civis porque professa outra religião ou forma de culto. Todos
os direitos que lhe pertencem como indivíduo ou como cidadão, são invioláveis e
devem ser-lhe preservados” (LOCKE, 1978, p. 9). Há de se destacar que a
conceituação de bens civis em Locke é bem abrangente e não pode ser confundida
com bens móveis e imóveis tão-somente, pois abarca a vida, a liberdade, a proteção
física ao sujeito, assim como a posse de bens materiais externos – propriedades lato
sensu, no sentido jurídico hodierno (LOCKE, 1978, p. 5).
No tocante às liberdades que dizem respeito a sociedade civil e o respeito
que o governo deve ter para com o fato de que todos os homens nascem livres e
iguais, ou seja, agindo visando o bem comum, é de se salientar que os homens são
“por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de
sua propriedade e submetido ao poder político de outrem se dar consentimento”
(LOCKE, 1978, p. 71). Tem-se, assim, limitações ao exercício do poder político, bem
como ao papel da religião – tolerância –, circunscrito por determinações acerca de
26

qualidades morais que os homens apresentam por natureza: livres e iguais. E tal raiz
é a que Rawls segue no intuito de fundamentar sua teoria da justiça. Obviamente
que o pensamento lockiano assumiu, ao longo dos tempos, variegadas correntes de
pensamento com consequências distintas, que são muito diferentes do pensamento
desenvolvido pelo filósofo norte-americano em tela, como o que pode se vislumbrar
em Anarquia, Estado e Utopia de Robert Nozick, no qual também se vislumbra uma
matiz lockiana.
Desta forma, de antemão pode-se fixar que a

Rawls‟s conception of social justice, „justice as fairness‟, is a liberal


conception in that it protects and gives priority to certain equal basic liberties,
which enable individuals to freely exercise their consciences, decide their
values, and live their chosen way of life. Liberal governments and societies
respect individual‟s choices and tolerate many different lifestyles as well as
religious, philosofical, and moral doctrines (FREEMAN, 2007, p. 44).

Mas como seguir o padrão esboçado por Locke, sem cair em uma argumentação
que represente uma fundamentação última da moral?
A indagação acima é efetuada pelo motivo de que o pensamento lockiano
segue um padrão de investigação empirista, ou seja, ao afirmar que a igualdade e a
liberdade são inerentes ao ser humano, o pensador inglês está asseverando a
verdade absoluta (no plano da moralidade e da política) de sua afirmação, o que
para a filosofia analítica e contemporânea (da qual Rawls é herdeiro) seria um
enorme erro. Assim, pode-se esboçar que Rawls assume efetivamente o
pensamento de Locke, mas sem considerar a igual liberdade como valor verdadeiro
(pois implicaria em ter de provar a falsidade de todo e qualquer argumento contrário,
tarefa árdua e quase inviável), mas sim como correto, pois desta forma basta criar
um mecanismo metodológico que mostre coerência entre certos juízos morais,
princípios morais e uma teoria moral, em que não se atestará a verdade, mas sim a
correção do argumento.
Para tratar do princípio da igual liberdade em Rawls, há de se cuidar uma
diferenciação básica: “Rawls‟s first principle refers, not to „liberty‟ but to „basic
liberties‟” (FREEMAN, 2007, p.45). Esta distinção serve como base de enunciação
na qual o filósofo norte-americano não faz uma defesa ampla da liberdade lato
sensu, o que traria como implicação a necessidade de uma explanação acerca do
que seria tal liberdade em si mesma ou na defesa de qualquer tipo de liberdade
27

(pois dentro da aposta de que há critérios de correção moral, existem liberdades


indefensáveis), ou ainda na exposição que poderia redundar naquilo que se pode
chamar como liberdades básicas, caso adotasse o caminho de determinar de que
tipo de liberdade se está tratando, sua natureza e objetivos, o que simplesmente
tomaria fôlego sem qualquer grande acréscimo a sua teoria da justiça. E, desta
maneira, Rawls parte diretamente para uma análise e exposição das liberdades
básicas, pois para pressupor a existência destas, há de se admitir, nem que seja
implicitamente, que os cidadãos sejam livres.
Destarte, qual é a idéia central do primeiro princípio de justiça exposto por
Rawls em sua teoria da justiça? Ao afirmar que todas as pessoas devem possuir um
programa de liberdades e direitos iguais para todos, na qual este programa, para
sua plena e satisfatória existência, deva ser compatível com os programas de
direitos e liberdades de outros indivíduos, Rawls busca dizer que existem certos
direitos e liberdades – não no sentido ontológico da mesma – que devem ser
privilegiados em detrimento de outros direitos e liberdades em sociedade. Acresce-
se que esta dinâmica engloba uma noção moral dos cidadãos, pois os toma como
cidadãos livres e iguais para que assim estruturem a legislação na qual hão de
conviver, no âmbito público, ao passo que lhes permitem adotar e modelar um plano
de vida da forma com que desejarem, sendo isto, intrínseco a tradição liberal de
Locke e Kant.
Mas se foi afirmado no parágrafo anterior que os cidadãos possuem plenos
direitos de determinarem seus rumos na vida privada, por que ao tratar a teoria da
justiça como um aprofundamento da tradição liberal e contratualista demonstradas
por Locke, Rousseau e Kant (RAWLS, 2008, p. 13), Rawls não acresceu o
pensamento de Hobbes? Ora, uma pequena digressão há de ser feita neste âmbito
para entender, em linhas gerais, os motivos de não adotar o modelo contratual
hobbesiano. Em um primeiro momento, o tipo de liberdade tratada por Hobbes é
muito distinta das liberdades formuladas nos modelos de Locke, Rousseau e Kant:
enquanto Hobbes entende o homem no Estado de Natureza com uma liberdade
ilimitada, podendo efetivar tudo o quanto deseja para a defesa de seus interesses,
pois ali não há regras, se não a regra da auto-preservação, em Locke, por exemplo,
ao tratar do estado de natureza e da liberdade do homem, há a seguinte afirmação:
28

embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; apesar


de ter o homem naquele estado liberdade incontrolável de dispor da própria
pessoa e posses, não tem a de destruir-se a si mesmo ou a qualquer criatura
que esteja em sua posse, senão quando uso mais nobre do que a simples
conservação o exija. O estado de natureza tem uma lei de natureza para
governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os
homens que tão-só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que
nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou
nas posses (LOCKE, 1978, p. 36).

Logo, para Locke, existem regras definidas para o exercício da liberdade. E neste
mesmo esquema se assemelha o pensamento de Rousseau, pelo qual o homem
submetido a um corpo legislativo de leis, dadas por ele mesmo através do conceito
de vontade geral e na participação da comunidade, se encontra mesmo assim livre;
assim como se segue com a doutrina filosófica kantiana e as famosas leis da
liberdade, conceito que parece contraditório, mas que em uma análise acurada se
mostra plenamente aceitável.
Outra diferença vislumbrada entre Hobbes e os contratualistas posteriores,
mais especificamente em Locke, pode ser visto a partir do ponto de vista no qual no
primeiro filósofo acaba por ocorrer um pacto de transferência de poder, na qual os
sujeitos, pretendendo obter segurança e tranqüilidade social, acabam por outorgar a
um terceiro, o poder coercitivo da comunidade, concedendo sua liberdade em
benefício estatal. Em Locke, o pacto para a formação do estado civil, ocorre por
consentimento e aprovação de todos os cidadãos, objetivando preservar seus
direitos originários do estado de natureza, sem concedê-los a um terceiro (pois os
direitos são inalienáveis), mas sim a um corpo político unitário que representa todos
os cidadãos. Há de se destacar que quando não são atendidas as expectativas
sociais do governo constituído pelo consentimento de todos, ou quando o mesmo
faz algo que excede aquilo que foi legitimamente pactuado, o poder político retorna
para os cidadãos vistos individualmente (ASHCRAFT, 2006, p. 226-230), para que
constituam novo estado ou reforme o existente, o que caracterizaria a possibilidade
de uma desobediência civil, o que não se vislumbra em Hobbes.
Eis que Rawls não concebe a liberdade nos moldes hobbesianos, tampouco
aceita a forma contratual de submissão total ao poder de outrem para a garantia da
paz e estabilidade social. A primeira porque traria como consequência o fato de que
ao se permitir que um sujeito faça tudo que lhe seja permitido para a defesa de seus
interesses, acabe por não considerar outros sujeitos como detentores de um valor
29

intrínseco de uma igual liberdade, ou, mesmo que considere, adotaria para a
resolução de conflitos, fatores contingentes como os dotes naturais ou aspectos
econômicos eventuais, o que para Rawls não é justo, conforme será aclarado em
outras passagens. Em um segundo momento, Rawls não aceita em hipótese alguma
uma transferência de certos direitos, que em sua visão (compartilhada desde Locke),
são considerados inalienáveis, contrariando Hobbes.
O presente aspecto da teoria da justiça se presta a uma investigação acerca
da esfera da igual liberdade na doutrina da justiça exposta por John Rawls,
enfocando esta questão, primordialmente, a partir da análise de seu opus magnum,
que é Uma Teoria da Justiça. O ato de perscrutar a liberdade e sua função para a
fundamentação do sistema rawlsiano como um todo, terá como objetivo central (1)
verificar as bases e justificações adotadas pelo filósofo norte-americano acerca dos
motivos pelos quais a liberdade é prioritária frente a igualdade, (2) em que medida a
liberdade se sobrepõe em face da igualdade (ou melhor dizendo, em que dimensão
e circunstâncias o primeiro princípio de justiça se agiganta frente ao segundo
princípio de justiça), e (3) se de certas determinações da liberdade (como os direitos
provenientes dela ou mesmo o próprio princípio da igual liberdade), Rawls não cairia
em uma espécie de fundamentação última da sua teoria da justiça, levando ao
entendimento de que a liberdade seria o motor absoluto de sua estrutura filosófica, o
que redundaria em graves problemas de justificação, face aos avanços da lógica e
da epistemologia do século passado.
Para tanto, há de se ter claro que o grande corpo crítico do pensamento
filosófico de Rawls não se deteve tanto neste primeiro princípio de justiça –
conforme é denominado o princípio da igual liberdade –, pois “a suposição de que os
direitos civis e políticos devem ter prioridade é amplamente compartilhada em nossa
sociedade” (KYMLICKA, 2006, p. 68). Mesmo sem severas críticas a respeito –
cotejando com o seu segundo princípio de justiça, obviamente –, a análise da
liberdade não pode ser deixada de lado, pois se o seu conceito e sua metodologia
de aplicação não forem bem aclarados, todo o corpo sistemático da teoria da justiça
rawlsiana pode sucumbir, ou dar margem para interpretações equivocadas (a título
exemplificativo, o sentido de uma igual liberdade em Rawls é completamente distinto
da concepção de liberdade atribuído por Nozick, conforme já citado).
Outra questão fulcral para a exposição em questão advém das origens e dos
objetivos do conceito de liberdade adotado por Rawls: em um primeiro momento
30

exsurge como um aprofundamento doutrinário de determinações emanadas por


John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant, filósofos apegados a uma
dogmática liberal (Rawls se diferencia fundamentalmente, entre tantas distinções,
por não julgar a liberdade como um fundamento último da moral e da política); e
como objetivo central, a teoria da justiça rawlsiana visa dar uma resposta na seara
da filosofia política que (1) não represente uma fundamentação última nos moldes
iluministas (já tratados), ao mesmo tempo em que (2) busca se esquivar das
consequências ruins do utilitarismo, que traz consigo o princípio do sacrifício (maior
bem para a coletividade, mesmo que um sujeito saia prejudicado), o que contraria
um sistema de igual liberdade entre os cidadãos, e que era largamente defendido
nos países norte-americanos.
Obviamente que ao se tratar dos mecanismos de justificação que consolidam
a ordem lexical da liberdade frente a igualdade, inerente será a presença de
estruturas e categorias presentes em obras posteriores a Uma Teoria da Justiça,
mesmo que o foco seja nesta última. Questões acerca do consenso sobreposto,
razão pública e equilíbrio reflexivo poderiam ser levantadas para dotar de maior
sustentabilidade a argumentação rawlsiana a respeito deste tema, contudo, pode-se
facilmente explicitar esta temática recorrendo-se a posição original, que em última
análise engloba os mecanismos citados (salienta-se que os mesmos receberão
tratamento adequado em outros capítulos).
Para tratar do segundo aspecto da liberdade, qual a seja, a medida pela qual
esta se mostra para o sistema da teoria da justiça do filósofo em questão, é
necessário verificar sobre qual arcabouço está assentado a mesma, como por
exemplo, quais os direitos que dela decorrem, como os agentes são livres, quais os
deveres decorrentes da liberdade, bem como o que os agentes podem fazer com a
liberdade. No que tange ao terceiro aspecto a ser demonstrado, há de se ter em
conta, a partir de sua intersecção íntima com o ponto que trata a respeito da
limitação da liberdade, se a tentativa de prevalência da liberdade frente a igualdade,
não leva a formação de um sistema, que em última análise, crie um tipo filosófico de
fundamentação última da moral, alicerçada neste princípio e conceito que está
sendo debatido.
Dividindo a análise da liberdade em três grupos, não se deseja criar
categorias estanques, mas tão-somente dividir de forma didática e clara a
conceituação de liberdade, demonstrando qual é a fundamentação exposta por
31

Rawls ao adotar o princípio da igual-liberdade como uma das balizas de sua teoria
da justiça. O autor de uma teoria da justiça mostra explicitamente a igual liberdade
como sendo um princípio de seu sistema de justiça no § 11 de Uma Teoria da
Justiça, embasando-se no melhor modelo kantiano: “A primeira formulação dos dois
princípios é a seguinte: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema
mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um
sistema similar de liberdades para as outras pessoas” (RAWLS, 2008, p. 73). Há de
se deixar claro que este primeiro princípio de justiça, tal e qual o segundo, se aplica
a estrutura básica da sociedade, objetivando a estabilidade do corpo social. É claro
que este, auxiliado pelo princípio da igualdade equitativa de oportunidades e o
princípio da diferença, acabam, também, por distribuir direitos e deveres para os
cidadãos, tomados em suas particularidades, o que pode ser entendido por uma
estabilidade lato sensu.
Mas uma distinção básica, entre o princípio da igual liberdade e o segundo
princípio de justiça, que se ramifica em duas partes, há de ser feita no âmbito da
aplicabilidade. Ao se falar de liberdade (e dos direitos decorrentes) trata-se de
“aspectos do sistema social que definem e garantem as iguais liberdades
fundamentais” (RAWLS, 2008, p. 74), ao passo que o princípio da igualdade
equitativa de oportunidades e o princípio da diferença se referem a estrutura
destinada a um ajuste no recinto das desigualdades sociais e econômicas. Ou seja,
pode-se expandir tal diferenciação nos seguintes termos: o primeiro princípio toma
conta daquilo que é pertencente a esfera individual, ao passo que o segundo
princípio se destina muito mais ao âmbito da coletividade. Uma ressalva frente a
afirmação realizada deve ser feita: ao se afirmar que a igual liberdade se destina ao
indivíduo visto de forma privada, enquanto a igualdade equitativa de oportunidades e
o princípio da diferença estariam mais voltados para o corpo social, não se quer
limitar de maneira estanque os âmbitos de atuação, haja vista que a igual liberdade
também se destina a uma estabilidade da estrutura básica da sociedade.
Mas haveria possibilidade da igual liberdade se voltar muito mais para garantir
determinados interesses dos indivíduos, vistos de forma privada, mesmo destinada,
de acordo com o sistema rawlsiano, a garantir a estabilidade social (aliada ao
segundo princípio de justiça)? Para elucidar esta questão, há de se trazer à tona os
direitos que emanam do primeiro princípio de justiça, quais sejam:
32

a liberdade política (o direito ao voto e a exercer cargo público) e a liberdade


de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; a
liberdade individual, que compreende a proteção contra a opressão
psicológica, a agressão e a mutilação (integridade da pessoa); o direito à
propriedade pessoal e a proteção contra prisão e detenção arbitrárias,
segundo o Estado de Direito” (RAWLS, 2008, p.74).

Assim, ao se exemplificarem os direitos decorrentes do primeiro princípio de justiça,


pode-se vislumbrar que estes se destinam fundamentalmente a garantir uma esfera
de inviolabilidade de direitos básicos para sustentar a estrutura básica de justiça,
direitos estes que se voltam a esfera privada dos cidadãos.
Destarte, Rawls busca fundamentar seu princípio da igual liberdade (e que
nesta exposição está sendo referido como a liberdade em seu mais amplo sentido),
a partir de uma forte garantia a um mínimo razoável de direitos a todos os
indivíduos, que não possa ser transgredido em hipótese alguma por qualquer tipo
decisão que avalie que determinada vantagem social deve prevalecer frente a tais
direitos oriundos da igual liberdade. E isto ocorre devido ao forte embate que o autor
faz contra o utilitarismo, visto que deste, por vezes, se tem o princípio do sacrifício
como que um critério justificador para se obterem maiores benefícios sociais. Nesta
lógica, o objetivo é o maior bem para o maior número de pessoas, mesmo que isto
rompa com uma possível esfera de direitos que os cidadãos vistos em sua
individualidade, teriam, o que contraria o objetivo de Rawls.
Obviamente que não tratar-se-á da doutrina utilitarista e as objeções
demonstradas pelo filósofo norte-americano em questão, contudo, quer-se deixar
claro que ao estabelecer (através do mecanismo da posição original) o princípio da
igual liberdade garantida a todos os cidadãos, Rawls refuta fundamentalmente a
prevalência de vantagens sociais frente aos interesses individuais. Tal
demonstração também pode ser vista no artigo Two Concepts of Rules, escrito pelo
autor de Uma Teoria da justiça em 1955, no qual este já expõe de maneira clara as
consequências nefastas que o princípio do sacrifício e a própria doutrina utilitarista
possuem para gerar uma instabilidade social. É trazido à baila, neste artigo, o
exemplo em que em uma determinada localidade, há um assassino a solta e que já
cometeu diversos homicídios sem que a polícia o tenha identificado; para tanto, para
uma maximização do bem para o maior número de pessoas, deve-se forjar provas
contra algum suspeito (mesmo que este não seja o próprio assassino), condená-lo e
33

levá-lo a forca, para que, a partir deste exemplo, outros possíveis assassinos se
sintam intimidados e não venham a praticar mais atos nocivos ao corpo social.
Ora, frente ao exemplo extraído da doutrina utilitarista e demonstrado no
artigo de Rawls em 1955, pode-se concluir que ao permitir que o poder judiciário ou
poder policial forjem provas contra um dado indivíduo suspeito, a fim de servir de
exemplo social para evitar a prática de novos homicídios, os cidadãos viverão em
enorme incerteza institucional, pois nunca saberão quando poderão ser culpados ou
não de algo que não fizeram. Dito de outro modo, o sujeito não possui nenhuma
garantia de direitos básicos que o protejam frente a maximização do bem da
sociedade, o que pode gerar graves injustiças. Desta forma, ao não se preservarem
os direitos básicos e razoáveis de um sujeito, não se garantirá a tão almejada
estabilidade social.
Eis que assim já se pode vislumbrar a prioridade do primeiro princípio de
justiça (liberdade) em face ao segundo princípio de justiça (igualdade e fraternidade,
por assim dizer), na maneira em que para Rawls o utilitarismo, de maneira errônea,
sacrificaria o indivíduo em detrimento da sociedade. Mas como e por que isto não
poderia ser aceito? Para tal resposta poderia se recorrer ao mecanismo da posição
original sob o véu da ignorância: não pareceria ser racional que a parte ao não saber
de sua futura posição social, étnica e econômica, optasse por efetuar um tipo de
decisão aos moldes de um contrato original para a sociedade em que admitisse o
princípio do sacrifício (ou seja, a maximização do bem para o maior número de
cidadãos), pois este poderia recair não sobre outrem, mas sobre si própria.
Ainda sobre o tema da prioridade da liberdade sobre a igualdade, pode-se
indagar: de que tipo de preponderância se está tratando? Ora, Rawls expõe que tal
prioridade se dá de acordo como uma ordem serial (em outras passagens denomina
de ordem léxica), tal e qual a apresentada em um dicionário, por exemplo. Este
ordenamento faz com que para que se obtenha de forma plena o princípio
subseqüente, o anterior há de estar totalmente efetivado. Isto foi expresso por
Rawls, ao tratar genericamente do ordenamento serial, da seguinte maneira:

é uma ordem que nos exige a satisfação do primeiro princípio para que
possamos passar ao segundo; do segundo para passar ao terceiro, e assim
por diante. Determinado princípio entra em ação depois que os anteriores a
ele estejam totalmente satisfeitos ou não se apliquem (RAWLS, 2008, p. 52).
34

Para o caso de sua teoria da justiça, o filósofo norte-americano acaba por asseverar
que para a plena efetivação do segundo princípio de justiça, garantindo igualdade e
fraternidade (se é que se pode utilizar tal terminologia), há de se ter uma garantia
mínima de liberdades básicas distribuídas de forma igual.
Outra forma de expor o pensamento acima demonstrado é na maneira de que
a ordem serial, dentro da teoria da justiça de Rawls, garante a sua repulsa ao
utilitarismo: nenhuma vantagem social ou econômica pode sobrepujar ao princípio
da igual liberdade que os cidadãos possuem, exatamente pelas características
apresentadas pelas partes na posição original, e que já foram aclaradas. Na esteira
deste pensamento de aversão a esta parte do utilitarismo (e falo esta parcela, pois
Rawls deseja em seu sistema da teoria da justiça os melhores resultados possíveis
em sociedade, tal e qual a doutrina utilitarista, com a ressalva de um forte resguardo
ao âmbito do indivíduo, o que a caracterizaria, talvez, como uma doutrina utilitarista
mitigada) em confronto com o primeiro princípio de justiça, o filósofo norte-americano
afirma que princípios de bases consequencialistas ou teleológicas “na melhor das
hipóteses concedem bases incertas para a liberdade ou pelo menos para as
liberdades iguais” (RAWLS, 2008, p. 302), o que pode ser facilmente corroborado
pelo exemplo extraído do artigo Two Concepts of Rules.
Assim, ao definir o sistema rawlsiano de ordenação principiológica no formato
serial, tem-se a base metodológica da prioridade do primeiro princípio de justiça em
face ao segundo princípio de justiça, ao passo que ao apresentar a fundamentação
material a respeito dos motivos que o levam a tomar a liberdade como prioritária
sobre a igualdade e fraternidade, pode-se dividir o argumento de Rawls em várias
esferas de atuação.
Uma primeira justificativa pode ser aduzida a respeito de um mecanismo de
justificação, independente e complementar ao da posição original, que é o do
consenso sobreposto, ou mesmo o do equilíbrio reflexivo (este último presente de
forma evidente na própria posição original). Ao se falar em consenso sobreposto e
em equilíbrio reflexivo, Rawls trata enfaticamente de doutrinas morais abrangentes
razoáveis que os sujeitos, no momento de um acordo (lato sensu), carregam consigo
para que fundamentem racionalmente a estrutura básica em sociedade (isto está
posto em linhas gerais, pois não vou me ater a cada um destes mecanismos de
justificação, visto não ser o foco do presente trabalho).
35

Ora, ao ser admitido um pluralismo razoável em sociedade (diversas


doutrinas morais abrangentes) e ao não se buscar uma fundamentação última da
moral (ou seja, regras morais que representem a verdade absoluta e assim, venham
a excluir outras regras morais que sejam julgadas falsas, mesmo que sejam
razoáveis), fica evidente que deve ser resguardada a esfera das liberdades básicas
dos cidadãos. Logo, para fundar um pacto (lato sensu) que garanta uma estabilidade
social, há uma dependência implícita da possibilidade de exposição de uma doutrina
moral abrangente razoável, o que traz como corolário, que se opte pela igual
liberdade como prioritária a respeito do segundo princípio de justiça, que se
destinará muito mais ao estabelecimento e correção de desigualdades econômicas e
sociais.
Aclarando ainda mais as afirmações feitas acima, pode-se pensar que
somente se pode admitir o fato do pluralismo razoável na maneira de que este
garanta a estabilidade social, se ocorra uma prioridade da liberdade sobre o
segundo princípio de justiça, pois é a liberdade que garante que as doutrinas morais
abrangentes razoáveis se façam respeitar e dividam o espaço público de forma
harmônica (a liberdade em John Rawls pode figurar como sinônimo de igual
liberdade). Um ponto a ser lembrado é que as liberdades (aqui no sentido dos
direitos decorrentes do princípio da igual liberdade) não se apresentam de forma
absoluta, “já que podem ser limitadas quando se chocam umas com as outras”
(RAWLS, 2008, p. 74), bem como que “a primazia da liberdade significa que a
liberdade só pode ser limitada em nome da própria liberdade” (RAWLS, 2008, p.
302). Ao não se apresentarem como absolutas, e ao poderem ser limitadas em
nome da própria liberdade, as liberdades básicas assumem uma das vestes
fundamentais do sistema rawlsiano: a razoabilidade.
Uma segunda forma de apresentar razões materiais dos motivos que o
levaram a estabelecer a ordem léxica da primazia do primeiro princípio de justiça
pode ser destacada a partir dos resultados provenientes dos dois princípios de
justiça. Estes resultados podem ser entendidos como os direitos que surgem para
que a estrutura básica social possua a estabilidade necessária, visando os melhores
efeitos sociais ao mesmo tempo em que permita com que os indivíduos
desenvolvam seus objetivos e planos de vida de forma razoável. Estes direitos
recebem classificações derivadas a partir do princípio de justiça nos quais estão
36

vinculados: do primeiro princípio de justiça advém direitos perfeitos, ao passo que do


segundo princípio de justiça surgem direitos imperfeitos.
Ambos os direitos são construídos a partir dos deveres assumidos em
sociedade, que podem ser entendidos como juízos morais que não são fatos morais,
mas sim convicções de que se deve algo para com a sociedade, ou seja, existem
deveres universais e deveres públicos que devem ser efetivados. Os princípios de
justiça são obtidos porque se assumem determinados valores políticos a partir das
doutrinas morais abrangentes razoáveis (mais uma vez a liberdade vista de forma
velada, justificando em parte a adoção do primeiro princípio de justiça como
preponderante em face ao segundo princípio de justiça), sem as quais a teoria da
justiça de Rawls não poderia sequer existir, pois não se teriam princípios de justiça
na formatação e construção apresentadas.
Retornando-se aos direitos oriundos dos princípios de justiça, pode-se então
dizer que a prioridade do primeiro princípio de justiça sobre o segundo princípio de
justiça se dá pela evidência na qual os direitos perfeitos (oriundos da igual liberdade)
seriam maiores e mais qualificados do que os direitos imperfeitos (frutos do segundo
princípio de justiça), haja vista que o primeiro grupo de direitos gera deveres, ao
passo que o segundo não gera deveres. Assim, dos direitos perfeitos, estabelecendo
fortemente os deveres, se vai aos direitos imperfeitos, ou seja, do primeiro princípio
de justiça se chega ao segundo princípio de justiça. Se fosse ao contrário, haveria
de se ter uma doutrina fundacionalista que explicitasse uma verdade absoluta
justificando tal premissa, o que não ocorre em Rawls.
Adentrando no debate acerca da medida em que a liberdade prepondera
sobre a igualdade, crê-se que tal temática foi abordada ao longo da explanação do
primeiro ponto, contudo, pequenas considerações podem ser trazidas. Não se pode
pensar que a preponderância da liberdade em face ao segundo princípio de justiça
traz como consequência uma aproximação de Rawls ao libertarianismo demonstrado
por Nozick em Anarquia, Estado e Utopia, no qual entende a liberdade tão-somente
como algo que não deva ser preenchida por nenhuma espécie de redistribuição de
bens. Ou seja, Rawls ao pensar em sua ordem serial de prioridades está dizendo
que se deve efetivar o primeiro princípio de justiça para assim se buscar a
concretude do segundo princípio de justiça. Nozick não avança nestes termos, pois
entende que a distribuição de bens é coercitiva e negadora da dignidade da pessoa
humana. Para este, qualquer tentativa de redistribuição seria uma intromissão na
37

vida das pessoas, contrárias a sua liberdade (o argumento Wilt Chamberlain de


Nozick trata a respeito do tema).
Outra observação acerca dos limites da preponderância da igual liberdade
sobre o segundo princípio de justiça há de ser feita no sentido de que Rawls, em
Uma teoria da justiça admite que “pode haver a necessidade de se abdicar de parte
dessas liberdades, quando isso for exigido para transformar uma sociedade menos
afortunada em uma sociedade na qual as liberdades fundamentais possam ser
plenamente desfrutadas” (RAWLS, 2008, p. 307). Poder-se-ia aventar uma crítica a
Rawls no sentido de que mesmo em face de sua contínua luta contra o utilitarismo,
em uma simples passagem, ele cairia em contradição sistêmica. Mas esta crítica não
se sustentaria, pois uma pequena supressão de partes destas liberdades
fundamentais teria como alvo a concretização de uma sociedade que
potencializasse o pleno gozo das liberdades fundamentais mais importantes (aliado
ao fato de que tudo isto se dirige a situações sociais extremas), e não o rompimento
destas em prol do maior benefício social.
Outro ponto a ser tratado é o relativo ao qual poderia se pensar que a igual
liberdade com todas as suas derivações de direitos e deveres, representaria a
fundamentação última da moral rawlsiana, haja vista sua primazia sobre o segundo
princípio de justiça e sua grandiosa importância para a justificação dos juízos morais
razoáveis. Isto é impossível pelo simples fato de que, para Rawls, os princípios de
justiça são tidos como provisórios (entendidos como históricos ou como uma
verdade ad hoc), ou seja, sujeitos a reformulações caso a sociedade julgue
necessária.
Por fim, a igual liberdade rawlsiana visa dotar a sociedade de um mecanismo
que escape do princípio do sacrifício (utilitarista), em face ao reconhecimento de que
cada indivíduo possui um valor intrínseco que não deve ser violado em prol de
nenhuma soma de interesses coletivos. E o diferencial da doutrina da justiça é
apresentado na maneira em que “a força da justiça como equidade parece provir de
duas coisas: a exigência de que todas as desigualdades sejam justificadas para os
menos favorecidos e a prioridade da liberdade” (RAWLS, 2008, p. 310). Fixa-se,
através das palavras do autor, uma centralidade muito clara de sua teoria da justiça,
demonstrada em torno do eixo que gravita entre uma justificação pública de
interesses e um respeito a esfera de inviolabilidade de cada pessoa – garantidos
pela igual liberdade –, ambos objetivando em conjunto, a estabilidade social.
38

2.3 O segundo princípio de justiça: igualdade eqüitativa de oportunidades e o


princípio da diferença

O segundo princípio da teoria da justiça de Rawls é de longe o mais


problemático e contencioso de acordo com os críticos mais ferrenhos, haja vista
determinadas imperfeições argumentativas e justificacionais que possam ser
vislumbradas a partir de uma análise mais acurada. É claro que para os defensores
da teoria rawlsiana, este princípio de justiça não se acha tão defeituoso face a
necessidade de compreensão sistemática da teoria da justiça com todos os seus
pressupostos, ao lado de uma interpretação que não trate exclusivamente do
segundo princípio de justiça, sem conectá-lo ao princípio da igual liberdade (e sem
olvidar da prevalência não absoluta, conforme já explicado, deste em relação
aquele).
Portanto, a fim de vislumbrar a idéia moral (ou não) subjacente a este
princípio para uma fundamentação do Direito (e dos direitos) em sociedade, há de
se partir da descrição efetuada por Rawls sobre o seu segundo princípio de justiça
com o escopo de averiguar sua natureza, conceito e fundamentação. Assim, diz o
filósofo norte-americano a respeito deste segundo princípio de justiça que “as
desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto
(a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos
como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos” (RAWLS,
2008, p. 73). Esta primeira formulação do segundo princípio de justiça apresentou
determinadas concepções de duplo sentido, como benefício de todos e acessíveis a
todos conforme foram assinaladas pelo próprio autor de Uma Teoria da Justiça
(RAWLS, 2008, p. 73), o que poderia trazer alguns problemas com relação a
especificidade da aplicação deste princípio.
Assim, com o escopo de determinar mais claramente o que significa o
segundo princípio de justiça sem deixar grandes arestas para os leitores, e
buscando maior especificidade de aplicação para o mesmo, visto que o destino
deste princípio já havia sido traçado quando Rawls asseverou que este se destina a
estrutura básica da sociedade para o estabelecimento de regras de distribuição de
vantagens sócio-econômicas, e que em última análise, concorre para o
favorecimento primordial da estabilidade social, com a promoção daquelas parcelas
39

da sociedade que foram vilipendiadas pelas contingências naturais e sociais. Assim,


o filósofo norte-americano traz à baila de forma mais definitiva (sem caráter de
absoluto) e detalhada que:

As desigualdades econômicas e sociais devem ser dispostas de modo a que


tanto: (a) se estabeleçam para o máximo benefício possível dos menos
favorecidos que seja compatível com as restrições do princípio de poupança
justa, como (b) estejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em
condições de igualdade eqüitativa de oportunidades (RAWLS, 2008, p. 376).

Colocado nestes termos, há de se deixar claro que não existe nenhuma espécie de
dissociação entre a primeira formulação e a segunda formulação do mesmo,
podendo-se interpretar o princípio por ambas as exposições, mas ficando-se a
ressalva que a segunda formulação se apresenta de forma muito mais aprofundada
que a primeira elaboração, o que a dota de um caráter mais claro, buscando maior
especificidade e determinação.
Desta maneira pode-se ver que o segundo princípio de justiça de Rawls
apresenta duas divisões: uma que fixa a determinação política de que se tenha uma
igualdade eqüitativa de oportunidades, e outra que estabeleça que as desigualdades
econômicas e sociais fiquem voltadas para o máximo benefício das camadas sociais
menos privilegiadas. Este último segmento recebeu o nome de princípio da
diferença, e é a parcela mais polêmica do segundo princípio de justiça de Rawls 20.
Pode-se claramente visualizar que com o segundo princípio da justiça, Rawls busca
equalizar uma desejável justiça distributiva em sociedade, que não pode ser
alcançada tão-somente com o princípio da igual liberdade, pois este visa unicamente
garantir os anseios privados dos cidadãos21
Eis que para encetar a exposição é necessário assinalar que o argumento
referente ao segundo princípio de justiça se baseia em uma intuição básica dos
filósofos liberais a partir do século XVIII, mais precisamente: a de que para se ter
uma real distribuição econômica que salvaguarde a moralidade inerente de que
todos os indivíduos são livre e iguais, (1) fruto de uma natureza humana, que define

20
Em uma ordem, tem-se que o princípio da igual liberdade é menos problemático que o segundo
princípio de justiça, ao passo que a esfera do segundo princípio de justiça que garante a igualdade de
oportunidades é um alvo menos atacado do que o princípio da diferença: tudo isto, dentro da visão
dos críticos.
21
Mesmo que a efetivação das liberdades elencadas pelo filósofo de Uma Teoria da Justiça, se
expressem em um plano público – político –, como por exemplo, na liberdade de expressão, em que
um sujeito tem determinada concepção sobre algum assunto no foro íntimo antes de expor a outros
sujeitos (e quando expõe publicamente, efetiva a sua liberdade de expressão).
40

a igualdade e a liberdade como verdades absolutas, ou (2) mesmo estabelecendo a


partir dos avanços da filosofia analítica e da lógica do século XX, em que estas
qualidades morais não possuem uma verdade total, mas sim se apresentam como
as mais corretas (como defende Rawls), há de se ter uma idéia firme que garanta
uma igualdade de oportunidades a todos os indivíduos. É claro que os métodos
adotados para a efetivação da igualdade de oportunidades, bem como os resultados
alcançados com esta parte do segundo princípio de justiça rawlsiano podem diferir
muito de um autor liberal para outro. Isto é confirmado pela seguinte passagem em
que é afirmado que os “liberals have different understandings of equal opportunity”
(FREEMAN, 2007, p. 88): os mecanismos de efetivação e de como é compreendida
a natureza da igualdade de oportunidades de Rawls é completamente distinta do
entendimento de Nozick, mesmo que ambos aceitem uma igualdade de
oportunidade a todos os membros em sociedade.
Nesta monta, ao identificar a derivação de todo o segundo princípio de justiça
da questão da igualdade de oportunidades22, imperioso faz-se uma elucidação
acerca de suas origens e premissas básicas para que se possa compreender os
motivos que levaram o filósofo de Baltimore a adotá-lo como um princípio que
garante solidez a sua teoria, bem como a todos os direitos decorrentes da mesma.
Conforme já foi destacado, “the idea of equal opportunity is a fixed point in liberal
thought” (FREEMAN, 2007, p. 88), ou seja, ao se imaginar uma doutrina política que
tente renascer e aprofundar as teorias políticas dos séculos XVII e XVIII, há de se
proteger necessariamente este ponto, que garantirá com que todos os indivíduos
possam ascender na sociedade e no plano político sem depender de suas origens
de nascimento.
Como Rawls deseja revigorar os contratualistas que serviram de base para o
iluminismo, ele se enquadra amplamente neste contexto, o que justifica assim sua
adesão para com a defesa da igualdade de oportunidades. É importante destacar
que a “equal oppotunity is another way that liberals incorporate the value of equality
(in addition to equality of basic rights and liberties)” (FREEMAN, 2007, p. 88). O que
se vê assim é que a igualdade de oportunidade representa um acréscimo
substancial da idéia de que a igualdade é algo encontrado por natureza nos homens

22
E que depois é complementada por Rawls pelo princípio da diferença, o que mostra que a simples
igualdade eqüitativa de oportunidades não garante a plena realização da estabilidade social almejada
por ele.
41

(liberais clássicos), e que foi adotado por Rawls com outra roupagem: em Rawls,
parte-se da noção de que a cooperação é boa (mas não dada por natureza) e adota-
se uma metodologia construtivista que conduzirá a argumentação para um
reconhecimento de que a igualdade de oportunidade é um princípio que se
apresenta como um dos mais corretos (mas não verdadeiro) para a justificação do
que se deseja como sociedade democrática hodiernamente.
Pode-se resumir tal distinção da seguinte forma: enquanto os liberais
clássicos partem da verdade natural23 de que a igualdade é verdadeira e inerente a
todos os homens24 para se construir a igualdade de oportunidade em sociedade,
transmutando faticamente para um estado civil o conceito abstrato de igualdade, em
Rawls tem-se uma intuição mitigada de que a cooperação no estado social é algo
bom e desejável (não verdadeiro), e que, sistemicamente, conduzirá a igualdade de
oportunidade que nada mais é do que uma representação fática da idéia abstrata de
cooperação. Obrigatório destacar que a igualdade de oportunidade em Rawls
mesmo sendo muito vinculada a uma idéia primordial de cooperação, não se
dissocia da idéia abstrata de igualdade pois esta é condição de possibilidade para
aquela parcela do segundo princípio de justiça.
Destarte, apesar de Rawls assumir o conceito amplo de igualdade de
oportunidades, esta deve ser vista á luz da justiça como eqüidade, o que faz com
que a igualdade referida tome corpo como uma igualdade eqüitativa de
oportunidades25, conforme ele próprio destaca em sua formulação do segundo
princípio de justiça. Em última análise, haveria diferença, portanto, entre uma
igualdade de oportunidades e uma igualdade eqüitativa de oportunidades?
Obviamente que sim, pois há uma troca entre uma concepção meramente formal
(igualdade de oportunidade) que não toma partido moral ou promocional, para uma
real igualdade entre os indivíduos, ou seja, para uma idéia muito mais substancial de
igualdade (igualdade eqüitativa de oportunidades).

23
Dada por um Criador ou mesmo pela própria natureza.
24
Quem pensar distinto a isso, incorrerá em erro, ao passo que os que a defendem devem comprovar
sua existência no mundo dos fatos.
25
“Uma distribuição formalmente igualitária dos direitos não pode, sozinha, garantir a igualdade de
autonomia privada e pública de todos os cidadãos. Uma “igualdade jurídica” compreendida
materialmente – a igualdade do conteúdo jurídico – exige para todos chances iguais de fazer uso, de
fato, dos direitos igualmente distribuídos. Direitos iguais devem conservar “valor igual” para as
pessoas jurídicas que, não por mérito ou falta próprios, se encontram em situações de vida
extremamente diferentes. John Rawls fala nesse contexto do “fair value of equal rights”.
(HABERMAS, 2004, p. 58-59). Eis o motivo pelo qual Rawls efetua um avanço no campo da
igualdade.
42

Isto tudo ocorre “in addition to preventing discrimination and enforcing open
positions, fair equal opportunity seeks to correct for social disadvantage” (FREEMAN,
2007, p. 89). Com isso tem-se que a igualdade eqüitativa de oportunidades é um
mecanismo que propicia aos indivíduos em sociedade a garantia de meios
igualitários para que possam efetivar plenamente seus planos de vida em
correspondência eqüitativa de oportunidades com os outros indivíduos, bem como
obterem efetiva participação política sobre os mesmos parâmetros mencionados
sem serem diferenciados por características sociais e naturais injustas, como classe
social, raça, gênero, etc.
Colocadas estas questões, pode-se perguntar: então, ao adotar uma postura
mais substancial acerca da igualdade eqüitativa de oportunidades, Rawls busca uma
promoção de políticas públicas que possam tornar essa igualdade mais efetiva?

So-called “affirmative action,” or giving preferential treatment for socially


disadvantaged minorities, it not part of fair equality of opportunity for Rawls,
and is perhaps incompatible with it. This does not mean that Rawls never
regarded preferential treatment in hiring and education as appropriate. In
lectures he indicated that it may be a proper corrective for remedying the
present effects of past discrimination. But this assumes it is temporary. Under
the ideal conditions of a “well-ordered society,” Rawls did not regard
preferential treatment as compatible with fair equal opportunity. It does not fit
with the emphasis on individuals and individual rights, rather than groups or
group rights, that is central to liberalism (FREEMAN, 2007, p. 90-91).

Com esta passagem criam-se duas estruturas de sociedade para o autor de Uma
Teoria da Justiça: (1) uma na qual necessita de determinadas ações que promovam
uma igualdade real de oportunidades, haja vista as agruras que determinadas
parcelas da população ou grupos étnicos, por exemplo, sofreram ao longo dos
anos26, que é a sociedade ordinária prática, e (2) outra estrutura social que não
aceita tratamentos que ofertem preferência a determinados grupos sociais, pois tal
arcabouço está assentado sobre a idéia de uma sociedade bem-ordenada, ou seja,
aquela que “(1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios
de justiça; e (2) as instituições sociais fundamentais geralmente atendem, a esses
princípios” (RAWLS, 2008, p. 5). Esta, por ser idealizada, apresenta instituições em
sua forma ideal, direitos ideais e todos os sujeitos (independente de sua raça, status
social e gênero), como sendo livres, iguais, autônomos, racionais e razoáveis, tanto
na defesa de seus interesses quanto para com a preservação dos interesses

26
Mas isto deve ser realizado por um período, e não eternamente.
43

alheios, ou seja, também sendo ideais, o que dispensa uma possível correção para
compensar danos discriminatórios de algum passado haja vista que estas injustiças,
no plano ideal, não existem.
Desta maneira, fica-se claro que o alvo de Rawls ao elaborar uma sociedade
bem-ordenada não é o de estabelecer políticas públicas que visem melhorias na
igualdade de oportunidades, mas sim asseverar que um acesso a todos,
relativamente a plena execução dos planos privados de vida, a cargos públicos e a
participação política deve ser garantido de forma que não seja pautado por
contingências naturais e sociais, daí ser uma igualdade eqüitativa de oportunidades.
Mas ao mesmo tempo reconhece que para nos aproximarmos do plano ideal de
sociedade, alguns tipos de políticas de promoção social são necessárias para tal
intento durante um determinado período, para que os vilipendiados socialmente 27
consigam se equiparar àqueles que não sofreram tais injustiças.
Contudo, o segundo princípio de justiça não está completo. Pode-se afirmar
claramente que Rawls deseja trazer para sua teoria os ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade, mas com métodos lógicos que não demonstrem a verdade
dos mesmos. É uma demonstração de que mesmo dentro de uma herança analítica
que não permita asseverar a verdade dos juízos morais, consegue-se dar um critério
de correção para os mesmos, escapando de um relativismo moral: em outras
palavras, liberdade (princípio da igual liberdade), igualdade (igualdade eqüitativa de
oportunidades) e fraternidade (princípio da diferença) se apresentam como os mais
corretos, não verdadeiros, para a concepção de justiça almejada pelo autor de Uma
teoria da justiça.
E ao desejar uma fraternidade com o fim claro de completar o projeto
iluminista, representada pelo princípio da diferença, é que Rawls encontrou o maior
número de críticas. Estas se mostram óbvias, haja vista que o cerne das doutrinas
liberais é a ênfase na proteção dos direitos dos indivíduos, e não de uma
coletividade no sentido de distribuição dos recursos, ou seja, enquanto com relação
a defesa das liberdades individuais praticamente todos os liberais concordam com a
grossa parte de direitos elencados por Rawls. Mas no que tange a forma com que o
princípio da diferença deve ser efetivado ou mesmo com relação a própria natureza

27
No mais amplo sentido, como fatores econômicos, de grupos sociais, de gênero, de raça, etc.
44

do mesmo (de ênfase muito maior para com a coletividade no que tange a
distribuição de recursos), a discordância é tremenda.
Todavia, em que consiste o princípio da diferença e quais os seus objetivos?
Basicamente o princípio da diferença está representado pela letra a da enunciação
proposta por Rawls a respeito de seu segundo princípio de justiça, significando
assim uma divisão do segundo princípio de justiça. É declarado assim que as
desigualdades sociais e econômicas só devem ser perpetradas para o maior
benefício possível dos indivíduos menos favorecidos, estabelecida de forma
razoável. Logo, o filósofo norte-americano acaba por fixar um tipo de desigualdade
justa, que é aquela que obedece a regra exposta.
Ainda resta indagar por que tal desigualdade, que intuitivamente todos crêem
que não contribui efetivamente para certa estabilidade social, se mostra de forma
justa? Todos os tipos de desigualdade são justos? Obviamente que Rawls ao se
referir a uma permissibilidade de desigualdades econômicas e sociais tem por
objetivo excluir do leque de diferenças justas entre os sujeitos, as arbitrariedades e
contingências naturais, algo que está marcado desde uma idéia inicial acerca da
posição original que serve como mecanismo para a escolha de princípios. Estas
últimas diferenciações entre os sujeitos28 existem pois o fato do pluralismo razoável
os engloba, contudo não deve ser base para justificar as desigualdades sociais,
podendo se declarar que diferenças existentes nestes padrões, se mostram de
forma injusta. Mas Rawls, por ser liberal, não poderia conceber uma teoria da justiça
que travasse o livre desenvolvimento dos seres nos mais diversos campos sociais 29,
pois se proibisse tal possibilidade se aproximaria de um igualitarismo social – muito
trabalhado por correntes socialistas e comunistas –, bem como cairia em
contradição lógica com o seu primeiro princípio de justiça que garante amplas iguais
liberdades a todos os sujeitos no que tange a efetivação dos seus planos de vida.
Assim sendo, tem-se que as desigualdades oriundas de acasos naturais se
mostram injustas, ao passo que as desigualdades econômicas e sociais são justas
na medida em que produzem um maior número de benefícios para os indivíduos
menos favorecidos. E isto pode ser mais bem compreendido através da seguinte
lição luminar:

28
Acasos naturais acerca de talentos, diferenças do nascimento, diferenças de raças, diferenças de
gêneros, etc.
29
Por exemplo, um sujeito que ascende socialmente, se diferencia daqueles que não conseguiram tal
êxito.
45

A grande inovação deste filósofo consiste, outrossim, em fazer das


desigualdades um subcaso das igualdades: se há desigualdades, estas se
inserem na esfera maior das igualdades, sendo por tanto aceitáveis. Como
todos possuem os mesmos direitos e deveres, as desigualdades (de riqueza
e autoridade, por exemplo) são justas, fair, eqüitativas, na medida em que
promovem benefícios para todos, em particular para os menos privilegiados,
por exemplo, através da ação afirmativa (sistema de cotas) (OLIVEIRA, 2003,
p. 20).

Note-se que há diferença de interpretação entre Samuel Freeman e Nythamar de


Oliveira quanto ao local exato do sistema de cotas: enquanto no primeiro tal política
pública ficaria muito mais voltada a parte da igualdade eqüitativa de oportunidades,
para o segundo comentador, esta estaria presente no princípio da diferença.
Obviamente que não se adentrará em tal debate, pois o importante aqui é
estabelecer que a referida política pública está inserida lato sensu no segundo
princípio de justiça como um todo.
Desenhado tal esboço acerca desta parte do segundo princípio de justiça,
podem-se aventar algumas críticas realizadas contra este ideal de justo identificado
por Rawls. Uma primeira observação é que a argumentação permitindo
desigualdades econômicas e sociais somente quando estas propiciam melhorias aos
indivíduos menos favorecidos, não trabalha em prol de uma sociedade de méritos,
ou seja, a popular meritocracia. O próprio Rawls, ao se referir as desigualdades
profundas e evidentes que se encontram em sociedade, expressamente se declarou
contrário a idéia de mérito social (RAWLS, 2008, p. 9), haja vista que falar de mérito
sem igualar eqüitativamente os sujeitos para que possam concorrer de forma justa e
estabelecerem planos de vida a partir de patamares equivalentes, é no mínimo um
falso mérito.
Um exemplo pode aclarar a maneira como se dá a crítica a respeito deste
princípio da diferença e sua relação com a meritocracia: imaginem-se dois
trabalhadores pertencentes a uma mesma profissão e que ganham ao fim do mês o
mesmo salário, não sendo pobres no sentido mais aprofundado do termo. Enquanto
o trabalhador A resolve gastar seu salário com despesas relativas a atividades de
lazer30, o trabalhador B estrutura seu salário para gastá-lo com atividades que o
especializem ainda mais em sua profissão. Acresce-se que ao final do mês, ambos
os trabalhadores não contem com um centavo em seus bolsos visto os gastos

30
Como por exemplo, gastos com teatro, cinema, eventos esportivos, etc.
46

efetuados. Desta maneira, ao passar de algum tempo, enquanto o trabalhador B por


seus próprios méritos haverá ascendido em cargos dentro de sua empresa,
melhorando significativamente o seu salário – imaginando que a sua especialização
o conduziu para tal destino –, o trabalhador A, por ter efetuado outras decisões que
privilegiaram seu lazer e bem-estar pessoal ficou estagnado em sua função na
empresa, o que não gerou nenhuma melhoria salarial.
Comentadores como Ronald Dworkin e até Will Kymlicka asseveram que esta
diferença salarial só seria justificada se beneficiasse ao indivíduo menos favorecido,
ou seja, algo que trouxesse a seguinte implicação: seria permitido ao trabalhador B
ganhar um maior salário se ajudasse (e aqui as formas de auxílio e benefício podem
ser as mais variadas) aos menos favorecidos economicamente, no caso, o
trabalhador A. Como corolário, os críticos dizem que Rawls cria uma injustiça dentro
da esfera das rendas e méritos pessoais: aquele indivíduo que se esforça mais para
obter rendimentos maiores acaba por ter de distribuir sua riqueza (via sociedade)
para outros que não desejam melhorar suas condições de vida por não
apresentarem esforços compatíveis com esta idéia.
E tal interpretação ácida31 sobre o princípio da diferença rawlsiano, pode ser
aceita? Estaria correta tal interpretação? Para obter uma resposta satisfatória, há de
se ter uma noção patente de quem são os menos favorecidos, pois é em última
análise a estes que o princípio da diferença se dirige bem como compreender a
estruturação fundacional (sob quais bases) em que está assentado o sistema da
teoria da justiça – e do Direito – de Rawls. Estas etapas que possibilitam responder
a crítica efetivada contra o segundo princípio de justiça do referido autor fazem-se
necessárias na medida em que não se pode interpretar os princípios de justiça de
forma isolada, como se fossem compartimentos que não se conectassem e que não
existissem dentro de uma ordem de prioridades (mesmo que não absoluta), ou
mesmo que não estivessem atrelados a outros mecanismos e ideais
complementares de todo o sistema criado por Rawls.
Com o objetivo de saber se o trabalhador A é parte integrante dos menos
favorecidos para o autor de Uma Teoria da Justiça, o que dotaria de um válido
caráter a crítica supra mencionada, é importante destacar que

31
Contrária a algumas intuições mais latentes em nossa sociedade como é a idéia de que o mérito é
algo louvável.
47

Rawls means least advantaged in the sense of a group‟s share of primary


goods. He says that, since one‟s share of income and wealth generally
corresponds also with one‟s share of the primary goods of powers, positions
of authority, and bases of self-respect, we can regard the least advantaged to
be the economically least advantaged people in a society – i.e., the poorest
people (though they may not in fact be poor in absolute sense) (FREEMAN,
2007, p. 106).

O que salta aos olhos neste momento é que pela passagem exposta, em
concomitância com o princípio da diferença, o indivíduo que se esforçou mais para
obter melhores lucros em seus rendimentos (trabalhador B), somente pode fazê-lo
se acabar por beneficiar os que menos ganham, que para o exemplo em tela é
representado pelo trabalhador A, haja vista que os menos favorecidos não
necessariamente são os pobres em sentido absoluto.
Fazendo-se esta averiguação, o que se pode vislumbrar é que o Estado pode
se valer no direito de promover impostos que visem distribuir mais igualitariamente
os ganhos de alguns poucos em prol dos menos afortunados 32, criando, por
exemplo, impostos sobre grandes rendas que acabem por estabelecer planos de
previdência social acessível para os menos favorecidos (financiados pelos mais
abastados). Obviamente que se está levando ao extremo tal interpretação, mas que
encontra respaldo e total aplicabilidade em uma sociedade marcada por diferenças e
discriminações culturais fruto de um passado injusto para com determinadas classes
sociais, raças ou gênero, com o escopo de se aproximar o máximo possível de uma
sociedade bem-ordenada. Mas então, o sujeito que se dedica arduamente a
melhorar suas condições de vida estaria limitado perante uma melhoria dos menos
favorecidos?
Para uma argumentação que dê conta destas e das outras questões se tem
de conhecer quais seriam os bens primários, bem como qual sua natureza. Logo, os
bens primários “são coisas que se presume que um indivíduo racional deseje, não
importando o que mais ele deseje. Sejam quais forem as minúcias dos planos
racionais de um indivíduo, presume-se que há várias coisas que ele preferia ter mais
a ter menos” (RAWLS, 2008, p. 110). Assim sendo, pode-se pensar que os bens
primários representariam um mínimo necessário para a consecução de planos
individuais de vida, sem os quais a vida perderia toda a razão de ser vivida e a
sociedade como um todo não seria estável de forma justa (eqüitativa).

32
Mesmo que não tenham se esforçado para tal.
48

Assim sendo, são bens primários (ou como Rawls chama, bens sociais)
“direitos, liberdades e oportunidades, bem como renda e riqueza” (RAWLS, 2008, p.
110), acrescidos de uma significação de um valor próprio do ser humano que é
designado no § 67 de Uma Teoria da Justiça como o auto-respeito (RAWLS, 2008,
p. 543). E nesta seara tem-se uma exemplificação mais detalhada, apesar da
amplitude que é permitida em cada um dos elementos componentes dos bens
primários, do que deve fazer parte da vida de cada um dos indivíduos em sociedade
para que possam guiar seus desejos racionais e razoáveis.
Mas como Rawls não deseja elaborar uma teoria da justiça que estabeleça
uma verdade no campo político e moral, e sim algo que pareça o mais correto de
acordo com os pressupostos aceitos33 por sua teoria34, surge a regra do maximin,
que busca uma complementaridade ao segundo princípio de justiça da seguinte
forma, em que:

não se pode prever de antemão quais serão os resultados particulares


obtidos; daí o recurso proposto por Rawls à chamada “regra de maximin”,
aplicada ao segundo princípio. Isso significa que se deve “maximizar o
mínimo”, isto é, optar pelo “menor dos piores resultados possíveis” (the least-
worst possible outcome) ou o melhor resultado dentre os menos favorecidos
pela escolha realizada na posição original (OLIVEIRA, 2003, p. 20-21).

Desta maneira, o filósofo em questão deixa claro, dentro de uma vertente utilitarista
mitigada de maximização de bons resultados35, que deve existir um mínimo de bens
sociais garantidos para que os indivíduos possam racionalmente perseguir seus
objetivos. O destaque é que para tudo isso Rawls não assenta uma regra
metodológica nem substancial firme, mas tão-somente linhas gerais que podem ser
revistas continuamente caso a sociedade mude seus parâmetros acerca dos juízos
morais.
Outro destaque para elucidar a presente questão pode ser aduzido a partir de
uma intuição muito cara a Rawls, qual seja, a da cooperação. O autor de Uma
Teoria da Justiça constantemente faz uso da idéia de que a cooperação é algo bom
e que deve ser perseguido para a sociedade. Logo, com esta concepção em mente
e para dar solidez a sua elaboração teórica, seria impensável imaginar pessoas que

33
Frutos do iluminismo, cultura pública e intuições de justiça.
34
O que traz como consequência que seu sistema de justiça não delimite nem trace os destinos dos
indivíduos em sociedade de forma fixa, deixando em aberto a construção dos planos de vida
individuais.
35
Mesmo que ele continuamente não se filie a esta corrente filosófica, haja vista a regra do sacrifício.
49

fossem semelhantes a mônadas, ou seja, isoladas e voltadas unicamente a defesa


de seus interesses, pois assim se cairia em contradição lógica36. Ora, partindo-se do
que foi mencionado, o princípio da diferença mostra-se como algo plenamente
palatável haja vista ser um princípio que realmente encorpa esta intuição (mitigada)
a respeito da cooperação em sociedade: Rawls se mostra coerente no plano lógico e
substancial.
De acordo com tudo que foi dito, pode-se mencionar que há um mínimo
material37 para a efetivação de conquistas no plano privado e público, que não
implica que os destinos privados estejam limitados por regras da coletividade, mas
sim em equilíbrio reflexivo, por mais forte que esta expressão possa parecer. Ambos
os planos, analisando sistematicamente os princípios de justiça rawlsianos, estão
em um coerentismo circular dentro da esfera de uma teoria da justiça liberal em que
não se pode pressupor uma estabilidade social sem uma realização dos planos de
vidas individuais, muito menos imaginar uma autonomia privada plena e
independente da esfera pública pois se poderia cair em um relativismo moral que
não ofertaria critério algum para qualquer decisão jurídica e política.
Por fim, com o objetivo de verificar a correção ou não da crítica tratada aqui, e
analisando-a em sintonia com o sistema de Rawls, ainda faz-se obrigatório referir
que “for example, the least advantaged are not beggars or homeless people, or
people who just hate work and had rather surf all day off the California coast while
making do as best they can” (FREEMAN, 2007, p. 106), o que poderia facilmente
enquadrar o trabalhador A dentro desta ótica38, e excluir qualquer crítica referente a
esta situação: o princípio da diferença, assim, não se postaria como viável em uma
sociedade em que não há cooperação, onde um indivíduo trabalha e se esforça para
obter melhores rendimentos, e outro simplesmente resolve gastar tudo o que possui
com lazer pessoal.
Mas o que não se pode esquecer é que o trabalhador A é um elemento
produtivo em sociedade, o que garante sua participação na cooperação social
anexado ao fato de que a utilização do dinheiro recebido por meio do seu salário
diga respeito tão-somente a sua racionalidade: se deseja gastar em lazer ou em
aperfeiçoamento profissional este, não é o alvo de Rawls, visto que em sua teoria da

36
Resposta para com a crítica comunitarista que afirma que o liberalismo rawlsiano mostra os
indivíduos apartados da sociedade, como que atomizados.
37
Garantido pelo princípio da diferença, e esquematizado pela regra do maximin.
38
Que preza o lazer, como no exemplo do surfe.
50

justiça não se estabelece uma fundamentação última da moral que diria o que fazer,
como fazer e quais objetivos de vida devem-se perseguir.
Em última análise a crítica que recai sobre o princípio da diferença, em termo
semânticos e formais se apresenta como correta, mas nas circunstâncias
substanciais não se sustenta. Explica-se:

Rawls means the least advantaged working person, as mesured by the


income he/she obtains for gainful employment. So the least advantaged are,
in effect, people who earn the least and whose skills are least in demand – in
effect, the class of minimum-wage workers” (FREEMAN, 2007, p. 106).

Ao analisar o princípio da diferença pode-se ver claramente que a sua aplicação tem
a possibilidade de se enquadrar no caso exemplificado entre o trabalhador A e B,
pois o primeiro efetivamente produz algo em sociedade e ficou alijado de melhores
salários: os motivos que o levaram a esta deficiência não podem ser criticados por
Rawls haja vista que este trabalhador supre a idéia de que a cooperação é boa 39, e
o destino que o mesmo oferta ao seu dinheiro com gastos particulares é pertencente
a sua esfera de liberdade40.
Fixada tais diretrizes, a crítica é semântica e formal na medida em que realiza
a correta análise do princípio da diferença: o trabalhador B pode obter ganhos
maiores pelo seu esforço ou acaso, “mas apenas se isso beneficia todos os
membros da sociedade” (KYMLICKA, 2006, p. 70). O ponto nodal é que esta
representação não pode ser entendida como nociva para com os indivíduos 41 nem
como para a sociedade, pois: (1) existe uma idéia intuitiva de que a cooperação é
algo desejável para uma sociedade bem-ordenada42, assim como (2) no momento
em que Rawls estabelece uma ordem léxica da igual liberdade (e todos os seus
direitos) frente ao segundo princípio de justiça, tem-se que nunca é permitido o
sacrifício de um indivíduo em prol da coletividade. Além disto, há a evidência de que
uma redistribuição de rendas e riquezas em hipótese alguma pode visar uma
sociedade igualitária em um amplo sentido, pois trata-se de uma teoria liberal de
justiça.

39
Ajudando, com o seu trabalho, no fomento da economia e do desenvolvimento em sociedade.
40
Se Rawls afirmasse que este trabalhador incorre em erro, ao dispor de seu dinheiro para seu lazer,
seria o mesmo que estabelecer, através de sua teoria da justiça, uma doutrina fundacionalista da
moralidade, o que não é a intenção rawlsiana.
41
Ao estabelecer pelo pacto um mecanismo de redistribuição de renda e riquezas.
42
Que implica nesta noção de fraternidade representada pelo princípio da diferença.
51

Sendo assim, por estas razões expostas, o princípio da diferença não aceita a
crítica aqui denominada como material, pois o mesmo apresenta vigor dentro do
âmbito de uma sociedade bem-ordenada, sem desmerecer os ganhos pessoais
oriundos dos esforços dos indivíduos, desde que tais ganhos sejam efetivados em
benefício de todos, em que “isso significa que deve ser razoável para cada indivíduo
representativo relevante definido por essa estrutura, quando cada qual a considera
um empreendimento bem-sucedido, preferir suas perspectivas com a desigualdade
a suas perspectivas sem ela” (RAWLS, 2008, p. 78), no cerne de uma idéia de
cooperação.
Com isso não se objetiva a anulação de rendas individuais em prol de outrem,
mas uma idéia que vise uma compatibilidade social para que todos possam se
desenvolver plenamente. E em que medida tal redistribuição de renda deve ser feita
para que as desigualdades sejam justas? Na exata dimensão em que não se
rompam com as iguais liberdades dos cidadãos, em consonância com uma alta dose
de razoabilidade.
3 Aprofundamentos teóricos da justiça como eqüidade

3.1 O mecanismo justificacional do equilíbrio reflexivo

A noção de equilíbrio reflexivo, para ser compreendida de forma clara, deve


ser vista à luz da concepção idealizada de pessoa que Rawls apresenta ao longo de
suas obras. Os cidadãos devem ser vistos como indivíduos com capacidade de
razão (neste sentido, teórica e prática) e possuidores de um senso de justiça
mínimo. O papel de tal senso de justiça para o filósofo de Baltimore é o de ser
utilizado quando da elaboração dos juízos morais ponderados, pois este deve ser
visto não somente como defesa de interesses egoístas, mas também tendo em vista
o interesse de outrem sobre o juízo moral a ser emitido: “the sense of justice
resembles the desire to be rational, also a desire to act on normative principles (e.g.,
to take effective means or to have consistent ends)” (FREEMAN, 2007, p. 250). Para
tanto, devem ser utilizadas a própria razão, a imaginação e os julgamentos acerca
dos temas a serem abordados, visto serem estas partes dos sentimentos morais
encontrados na natureza humana. O objetivo de atentar para o fato de uma
concepção idealizada de pessoa é que suas faculdades racionais, representadas
pelos âmbitos teórico e prático, auxiliados pelos sentimentos morais determinados
por um senso de justiça, devem ser aplicados em duas esferas sociais: tanto na
estrutura básica da sociedade quanto na vida particular dos agentes políticos. Mas
então a crítica comunitarista seria adequada quando esta afirma que a partir de uma
noção de um eu, racional e abstraído do contexto no qual está inserido, fundamenta
a construção e aplicação dos princípios de justiça em sociedade?
Crê-se que a observação acerba oriunda dos comunitaristas não se faz valer
pois a concepção idealizada de pessoa apresentada na justiça como eqüidade de
Rawls não aparta o sujeito do meio no qual este está colocado. O que o filósofo
norte-americano deseja é que determinados conjuntos de direitos, construídos
racionalmente por partes que representam pessoas em uma posição original (mas
que tenham conhecimento da história moral e democrática ocidental) sejam tidos
como invioláveis em virtude de sua essencialidade para com a existência
cooperativa da sociedade, sem desrespeitar os interesses privados dos agentes
políticos. Assim, os sujeitos não se colocam fora do meio no qual dialogam, estando
53

pois incluídos na herança democrática ocidental mas podendo questionar a mesma,


caso seja necessária, para que sejam avaliados seus pressupostos de justiça e se
possam (re)construir princípios adequados com as necessidades contemporâneas
(viés pragmático).
Mas obviamente que em Rawls nem todos os juízos morais podem ser
utilizados para a concretização de um equilíbrio reflexivo amplo, pois o autor
apresenta restrições formais típicas do liberalismo. Estes trazem como resultado o
fato de que ao não se adequarem os juízos morais abrangentes com as limitações
(formais) típicas (pessoas tomadas como livres e iguais, um ideal de cooperação,
etc.), estes se tornam inadequados para o estabelecimento do primeiro passo de
execução do equilíbrio reflexivo amplo: sua verificação com os princípios morais e
sua harmonização. Como um exemplo típico de um juízo moral que não serve para
os moldes do liberalismo político de Rawls tem-se aquelas noções que defendem
que o trabalho escravo é algo que deveria ser praticado em sociedade, pois ele
produz maiores lucros aos detentores dos meios de produção. Ora, tal juízo é
totalmente contrário ao senso de justiça mais elementar que define que a justiça não
aceita o mesmo. Mas como se dá esta construção? Mais uma vez surge a noção
pragmatista do autor de Uma teoria da justiça, que tira do pragmatismo a
sustentação de suas afirmações: a sociedade apresenta um movimento contínuo
rumo ao progresso moral, em que determinados juízos morais já se apresentam
solidamente estabelecidos ao longo da história, ao respeitarem a dignidade da
pessoa humana. Por mais vazio que este conceito possa parecer 67, ele tem o
escopo de proteger, em linhas gerais, as liberdades básicas dos cidadãos sem
permitir qualquer tipo de discriminação religiosa, sexual, filosófica, etc.; e tais noções
foram delimitadas ao longo da história moral e política, resultados de pensamentos
construídos racionalmente mas que não esqueceram de se utilizar dos
acontecimentos históricos para verificar sua validade e legitimidade (por este mesmo
motivo, por exemplo, o nazismo é uma doutrina moral abrangente contrária ao ideal
de justiça rawlsiano).
Logo, os juízos que devem ser utilizados para o equilíbrio reflexivo amplo são
aqueles em que já passaram por um filtro de racionalidade histórica geradora de sua
legitimidade pública, o que traz à baila que os juízos morais ponderados são aqueles

67
Em virtude de derivar de uma intuição.
54

“em que nossa capacidade de julgamento pôde ser plenamente exercida e não foi
afetada por influências distorcivas” (RAWLS, 2003, p. 41)68. Com tudo isso, os juízos
morais ponderados podem ser definidos como aqueles em que se tem “a
capacidade, a oportunidade e o desejo de fazer um julgamento correto” (RAWLS,
2003, p. 41). Há de se reparar a sutileza argumentativa empregada pelo filósofo
norte-americano nesta passagem em que ao fazer a correlação entre os juízos
refletidos e um julgamento justo (correto), o mesmo está vinculado com uma
potencialidade se proferir um julgamento correto, e não o julgamento correto. Ao
utilizar um, Rawls abre mão de qualquer espécie de possibilidade de acusação
sobre sua teoria da justiça como algo absoluto (fundacionalista), visto que o
pronome indefinido, exatamente por sua classificação gramatical, não se refere a um
tipo específico de julgamento69, ao passo que se utilizasse o, poderia incorrer na
referida crítica pois se estaria remetendo a um único e exclusivo tipo de julgamento
correto (justo).
Como definição crucial tem-se que os juízos morais ponderados são aqueles
em que a sociedade demonstra uma clara intenção de não regredir, valorativamente
falando, com relação às concepções tidas como boas e razoáveis, como por
exemplo, em temas que versam sobre a escravidão e sobre a tolerância religiosa.
No entanto, ao ser asseverado isto não se exclui a possibilidade de que existam
dissidências sobre tais assuntos, o que traz como corolário que os defensores de
posições abandonadas sejam tomados como não razoáveis. Em suma, os
portadores de tais juízos morais abrangentes não podem ser aceitos em sociedade
em virtude de serem nocivos à mesma e para com cada indivíduo que não
compartilhe de sua doutrina, ao não respeitarem os direitos de outrem 70. E qual o
papel do Direito neste ponto?
Este deve buscar enfatizar o progresso moral e político da sociedade
resguardando os direitos de todos os agentes políticos, guiado pelos princípios de
justiça que garantem a legitimidade das doutrinas morais abrangentes razoáveis e
sua convivência harmônica. Para tanto

68
Ver Uma teoria da justiça, §9.
69
Deixando em aberto o mesmo para uma construção racional.
70
Exemplo clássico: é notória a existência de grupos neo-nazistas e suas práticas homofóbicas e
racistas, contudo tais atitudes são amplamente condenadas em sociedade.
55

as posições de juízes e árbitros são concebidas visando incluir condições


que estimulem o exercício das virtudes judiciais, entre as quais a
imparcialidade e a prudência, para que se possa considerar seus veredictos
próximos de juízos bem-ponderados, até onde o caso permita (RAWLS,
2003, p. 41).

Mas diante de tais determinações, em que todos os aspectos corroboram e


contribuem para a plena efetivação de um consenso social profundo, em que todos
os agentes políticos e as instituições sociais obedecem e se guiam através dos
princípios de justiça, ainda cabe espaço para discordância moral e política? Deve-se
pensar que sim, visto que os juízos morais podem divergir plenamente de duas
formas: com juízos morais proferidos por outras pessoas (discordantes na maneira
externa) e com os juízos morais contraditórios existentes em nosso próprio sistema
de elaboração dos mesmos (discordantes de maneira interna). Diante disto, o foco
justificacional no presente tema volta-se para uma maior coerência interna e externa,
da maneira que engrandeça o grau de legitimidade política.
Como corolário, pode-se asseverar que há (e muito) espaço suficiente para a
permanência da divergência entre juízos morais abrangentes razoáveis, até porque
Rawls não desejou realizar uma teoria acerca da justiça de cunho abrangente: se o
fizesse seria fundacionalista, o que implicaria que a justiça como eqüidade excluiria
determinados juízos morais razoáveis em proveito de sua noção acerca do justo.
Com isso, não seriam permitidos juízos discrepantes muito menos pensamentos que
se pautassem por uma reflexão profunda acerca das instituições sociais e seus
resultados políticos, o que seria o contrário apregoado por qualquer teórico e
defensor do liberalismo político guiado por uma democracia que tem no fato do
pluralismo razoável o seu ponto nodal. Ao se permitirem juízos divergentes sobre os
diversos temas sociais, desde que tais noções sejam razoáveis 71, se consegue uma
justificação pública plena, obtendo assim um consenso sobreposto 72. Do contrário
existiria uma teoria do Direito que gerasse exclusão de grupos sociais em proveito
daqueles que detém o poder73.

71
Levem em conta seus próprios interesses e respeitem os de outrem, desde que estes não infrinjam
o círculo virtual de direitos que aqueles possuem.
72
Sem esquecer que uma noção que deve ser aduzida sempre que se deseja compreender o
mecanismo justificacional alvo deste capítulo, é que “o método do equilíbrio reflexivo se caracteriza
por procurar estabelecer a regra a partir do uso, visando evitar uma reivindicação fundacionista para
os critérios universais” (SILVEIRA, 2008, p. 87).
73
Como exemplo pode-se trazer à tona o conjunto de determinações jurídicas efetivadas pelo regime
nazista nos anos que antecederam aos da Segunda Guerra Mundial, contra direitos políticos e sociais
de judeus; ou mesmo quando um Estado qualquer adota uma política pública que vise o benefício da
56

Mas então, diante de todo este aparato conceitual gerador da justiça como
eqüidade, qual seria o método utilizado no eixo do equilíbrio reflexivo amplo? Há de
se compreender que para a consecução harmônica deste, necessita-se da
consideração de toda a espécie de juízos relativos a formação de uma doutrina
moral abrangente razoável e de uma concepção política. Neste sentido,
obrigatoriamente leva-se em consideração os juízos gerais, os juízos específicos e
os juízos que tratam de noções acerca da justiça, em que todos são considerados
de igual forma. Salienta-se que no que tangem às noções gerais, estas ficam
colocadas “sobre as restrições a serem impostas às razões apresentadas em prol de
princípios de justiça para a estrutura básica” (RAWLS, 2003, p. 42), em que se utiliza
“como modelo a idéia do véu da ignorância na posição original” (RAWLS , 2003, p.
42). O pensamento rawlsiano acerca deste tema avança no sentido de defender o
posicionamento no qual mesmo que admita a existência de que haja a possibilidade
racional de que todos os juízos presentes no ser humano possam ter uma dose
essencial de razoabilidade, estes podem ser conflitantes tanto em seu plano interno
quanto com relação aos outros juízos de outras pessoas (externos).
Nestes termos é que se torna adequado o processamento de determinadas
ações com relação aos juízos que visam dotá-los de razoabilidade pública, quais
sejam: a possibilidade de revisão, de suspensão e de retratação dos juízos mais
evidentes em sociedade. Estes se dão em vistas da obtenção de um acordo
razoável para a efetivação da justiça como eqüidade, de forma a beneficiar a todos
os agentes políticos e não somente um grupo específico. Para a viabilidade do
equilíbrio reflexivo deve-se pensar que este se aplica tanto a posição original sob um
véu da ignorância quanto as partes que realizam a revisão, suspensão ou retratação
dos seus próprios juízos74. Isto implica que até mesmo a concepção política da
justiça como eqüidade deve ser submetida as três formas de questionamento dos
juízos, pois a mesma pode se mostrar insuficiente a partir de uma dada mudança

maioria sem levar em conta as peculiaridades de determinados grupos étnicos ou sociais, que podem
ser prejudicados com as mesmas.
74
Salienta-se que tal ajuste reflexivo, por apresentar a propriedade de potencializar a revisão,
suspensão ou retratação dos juízos morais e políticos das partes, acaba por interferir nas formas com
que as instituições de justiça estão colocadas em sociedade (visto que as partes sãos os agentes
políticos que constroem estas últimas): “Rawls concorda plenamente com Habermas no que diz
respeito à correlação entre democracia e direito constitucional: não há sociedade justa sem uma
constituição justa. Portanto, o equilíbrio reflexivo nos remete inevitavelmente a convenções e
instâncias de reformas constitucionais, reformas do judiciário e do Estado democrático de direito”
(OLIVEIRA, 2003, p. 447).
57

social, por exemplo. Mas e no que tangem as partes (ou pessoas), como estas
efetivam o equilíbrio reflexivo?
Ao se imaginar um agente político que vise se adequar ao equilíbrio reflexivo,
deve-se pensar que o mesmo tende a adotar uma concepção política que menos
faça influência nos seus próprios juízos morais, a fim de que tanto a revisão, a
suspensão e a retratação não sejam efetivadas, pois se o forem seus juízos prévios
provavelmente tenham de ser amplamente mudados. Isto se dá em virtude da
natureza humana e da restrição formal que as partes possuem: é de se esperar que
as mesmas defendam seus interesses particulares (juízos), mas em virtude de não
saberem as contingências mundanas devem adotar princípios de justiça que
beneficiem a todos, pois todos são tidos como iguais e livres em uma sociedade de
cooperação. Mas pensando-se exclusivamente em uma pessoa, esta não poderia
adotar postura diferente e conceber princípios de justiça distintos dos que Rawls
teoriza por saber exatamente quais contingências a circundam? Poderia, contudo
este não é o alvo da presente questão, sendo tão-somente a análise do equilíbrio
reflexivo e como este é executado. A distinção entre pessoas e partes, para este
momento, só é válida na medida em que ao não ser efetivada, abriria espaço para a
mesma crítica que os liberais clássicos sofreram75: se as pessoas possuem
contingências e elas tendem a defesa de seus interesses, por que escolhem
princípios que não protejam-nas de forma egoísta? Por que escolher um conjunto X
de princípios quando se poderia escolher Y, Z ou W como alguns conjuntos que
defendem uma melhor forma os interesses privados dos agentes políticos? Não
seria mera opção do filósofo que escreve a teoria?
Todavia, retornando ao tema em que se imagina uma parte na posição
original76 (ou uma pessoa, tanto faz para os propósitos de compreensão do
mecanismo citado), ficou claro que esta adotará uma concepção política que menos
influa em seus juízos morais, por razões óbvias. Ao alinhar tal concepção política
(acerca do justo) e efetuar uma harmonização (ou adequação) com seus outros

75
E que Dworkin tentou transmutar para o pensamento de Rawls com a idéia de pessoas jogadoras e
não conservadoras (no artigo The original position) não logrando êxito pois Rawls usa o conceito de
partes (e não indivíduos que possuem uma psicologia moral sujeita às contingências mundanas), ao
lado de uma concepção de pessoa e de sociedade que estão sbmetidas a um véu da ignorância (no
procedimento da posição original), o que escapa da crítica. Neste sentido, lembra-se que Rawls usa
uma moralidade no sentido do imperativo categórico kantiano: “nos iguala a todos em uma mesma
posição de humildade, e não como uma atividade na qual alguns são jogadores experientes e outros
são jogadores fracos” (FLEISCHACKER, 2006, p. 106).
76
Ou uma pessoa, tanto faz para os propósitos de compreensão do mecanismo citado.
58

juízos morais acerca de outras questões, tem-se um equilíbrio reflexivo estreito


(narrow). Em suma, uma compatibilidade circular entre juízos morais e princípios
morais, ou em um nível mais profundo, entre juízos morais ponderados e princípios
de justiça oferece este tipo de equilíbrio reflexivo. Destaca-se que

o equilíbrio é restrito porque, embora as convicções gerais, os princípios


fundamentais e os juízos específicos estejam alinhados, procurávamos a
concepção de justiça que exigisse menos revisões para ganhar consistência,
e nem concepções distintas de justiça nem a força dos vários argumentos
que sustentam essas concepções foram levadas em conta pela pessoa em
questão (RAWLS, 2003, p. 43).

Então, surge a necessidade de compreensão a respeito do equilíbrio reflexivo amplo


pois aquele não satisfaz as exigências profundas de Rawls para um consenso
sobreposto, além do fato de que não influi de forma adequada no filtro de
racionalidade e de razoabilidade solicitado perante os juízos morais de todos os
agentes sociais: ou a legitimidade é política de forma unânime, ou não se obtém
princípios de justiça que sigam a eqüidade.
Fica indicado desta forma, que o equilíbrio reflexivo amplo (wide ou full) acaba
por acrescentar em seu mecanismo justificacional77 duas esferas que ficaram
excluídas da forma anterior mencionada: tanto as concepções de justiça política
quanto as diversas concepções morais presentes na história da filosofia 78, com seus
variegados argumentos, acabam por entrar no jogo de um equilíbrio reflexivo amplo.
Desta forma, acabam-se colocando de forma coerentista as convicções morais, os
princípios fundamentais e os juízos particulares dos agentes políticos para a
obtenção de um sólido equilíbrio reflexivo amplo: em suma, todas estas noções
morais são aquelas que foram denominadas de variegados argumentos nas linhas
precedentes, pois não pertencem somente a uma dada concepção moral abrangente
de uma única pessoa, estando presentes em toda a sociedade em suas variadas
doutrinas morais abrangentes e nas diversas pessoas que compõem a sociedade,
podendo fomentar uma legítima concepção política.
Contudo, o equilíbrio reflexivo amplo é partícipe em cada cidadão e na
sociedade como um todo na exata noção que estes carregam ao estarem dentro de

77
A fim de se extrair uma teoria da justiça que respeite o interesse de todos, que seja legítima de
forma pública a partir de bases políticas e que possa ser deduzida como efetivamente justa.
78
Entendendo-se concepções políticas e morais aquelas que abarcam noções filosóficas
propriamente ditas, religiosas, estritamente políticas, e de qualquer cunho racional.
59

uma sociedade bem-ordenada, ou seja, em uma sociedade em que todos os


agentes políticos e todas as instituições sociais compartilham do mesmo ideal
acerca do que seja o justo, em que tal noção é reforçada através dos juízos
emanados da doutrinas morais abrangentes razoáveis. Com tal equilíbrio reflexivo
pleno (no sentido de amplo), se constrói um ponto equânime público (político) pelo
qual a sociedade pode julgar qualquer juízo moral ou ação moral (no recinto público)
e apontar se a mesma se mostra correta ou incorreta: disto nasce um acordo moral e
político profundo que representa a base de determinação do que seja o Direito. Mas
resta uma pergunta: por que razão necessita-se de um equilíbrio reflexivo amplo, ao
invés de um equilíbrio reflexivo estreito? Pela exata razão de que em um equilíbrio
reflexivo de cunho estreito (narrow), as pessoas buscam uma mera adequação de
seus juízos morais e uma idéia política acerca da justiça que influa em menor grau
em seus próprios juízos, pois se assim o for, muito pouco acerca de suas próprias
concepções sobre o bem e o justo haverão de ser mudadas. O grande problema de
tal noção é que ao se fazer isso, o equilíbrio reflexivo acaba provocando uma
situação em que a escolha dos princípios de justiça pode ficar intimamente
conectada com uma percepção determinada sobre uma dada doutrina moral
abrangente razoável, não sendo desta forma, pública (ou política): uma concepção
política de justiça não pode ser uma simples adequação entre os juízos particulares
que apresentam um olhar razoável e princípios morais políticos, pelo motivo de que
desta maneira não passam plenamente pelo filtro integral de uma razão pública.
Como corolário, ter-se-ia uma noção de justiça que não daria conta de todas
as doutrinas morais abrangentes razoáveis, tendendo a se aproximar de uma em
exclusividade pela razão de seu vício de origem: estar gerada no seio de juízos
morais particulares que não desejam uma forte revisão, suspensão ou retratação.
Uma conseqüência nefasta de teorias de justiça que aceitam esta simples
adequação se dá no exemplo de que com um equilíbrio reflexivo estreito se pode
claramente legitimar um regime nazista no campo da política e da moralidade: ao se
adequarem juízos políticos que influam muito pouco nas noções morais que os
agentes políticos carregam consigo, se legitima algo com viés político mascarando
uma doutrina moral abrangente (no caso, uma doutrina não razoável). Para evitar
este problema é que Rawls propõe o modelo do equilíbrio reflexivo amplo, que
apresenta um elemento em anexo para a fundamentação coerentista, que seria o
caso de uma teoria moral que nasce da herança cultural democrática ocidental, de
60

marca cooperativa e que serve de pilar para que gravitem revisões profundas acerca
dos juízos morais encontrados em sociedade: levam-se em consideração todas as
concepções políticas de justiça (e sobre a moralidade) que respeitem a idéia de
pessoas livres79 e iguais com todo o corpo argumentativo que as envolve 80, para
poder revisar, suspender, retratar ou afirmar um determinado valor político ou moral.
No entanto, pode-se pensar que o equilíbrio reflexivo amplo e a noção de
justiça que dele se extrai, podem ser elevados a categoria de um ponto último de
fundamentação política? A relação existente entre os diversos juízos morais
ponderados e o equilíbrio reflexivo amplo acaba por fugir de um pensamento
fundacionalista, pois para Rawls

não se pensa que algum tipo específico de juízo refletido de justiça política
ou nível particular de generalidade possa carregar consigo todo o peso da
justificação pública. Juízos refletidos de todos os tipos e níveis podem ter
uma razoabilidade intrínseca, ou aceitabilidade, para pessoas razoáveis que
persiste depois da devida reflexão. A concepção política mais razoável para
nós é aquela que melhor se ajusta a todas as nossas convicções refletidas e
as organiza numa visão coerente (RAWLS, 2003, p. 44).

Para finalizar, pode-se asseverar de forma adequada que o mecanismo


justificacional aqui trabalhado claramente conduz a uma situação em que se
constrói, de forma racional e dentro dos limites da razoabilidade, um acordo pleno e
prático para um entendimento sobre a justiça, ou sobre os princípios de justiça que
expressam a significação daquela. E este consenso nada mais é do que uma ampla
coerência entre todos os graus de juízos morais ponderados que compõem a
sociedade: tudo isto assinalado como essencial para a fundamentação do Direito.

3.2 A idéia dos bens primários como pressuposto material do Direito

A fim de determinar como se fixa a classe das pessoas menos favorecidas na


teoria da justiça como eqüidade em Rawls, e desta forma estabelecer que tipo de

79
Ao se assinalar esta característica presente no modelo ideal de pessoa, reconhecendo que o
sujeito com capacidade de racionalidade é aquele que pode ser tido como livre para com as
determinações de seus planos de vida, Rawls assume um dos apanágios do liberalismo: “a
autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres conforme a elas:
contrariamente, toda a heteronomia do arbítrio não só não funda obrigação alguma mas, antes,
contraria o princípio da mesma e da moralidade da vontade” (KANT, 2008, p. 55). Sabendo-se que o
pressuposto central para que se pense em um sujeito autônomo é a existência e a garantia de
exercício de sua liberdade.
80
Para estabelecer os princípios de justiça na posição original através de um tipo de contrato social.
61

direitos a pessoas virão a possuir e qual a essência do Direito ao estabelecer que a


(re)distribuição é uma fator preponderante para que se obtenha mais justiça nas
relações interpessoais, deve-se estudar o conceito de bens primários. Isto surge
para possibilitar a definição de quem são os sujeitos em mais desvantagem social,
ou seja, aqueles que recebem as menores parcelas de bens sociais existentes em
sociedade. Com isso, tem-se uma primeira definição elucidativa sobre o mesmo:
“Estes consistem em diferentes condições sociais e meios polivalentes geralmente
necessários para que os cidadãos possam desenvolver-se adequadamente e
exercer plenamente suas duas faculdades morais, além de procurar realizar suas
concepções do bem” (RAWLS, 2003, p. 81). Com esta definição, deve-se deixar
claro que tal noção deve ser encarada como representativa daquilo que é necessário
e exigido como um mínimo básico para que um cidadão possa concretizar uma vida
feliz81: isto assinalado como uma idéia política de justiça que tem uma concepção
firme de pessoa, em que estas estão inseridas em uma noção clara de que a
cooperação produz os melhores resultados sociais82.
Ao se declarar que os bens primários se identificam como coisas necessárias
para a consecução de uma concepção política 83, deve-se se deixar claro que isto
representa aquilo que é avaliado como fundamentalmente necessário para que os
cidadãos possam realizar os seus objetivos de vida, dentro de uma noção de que os
mesmos estão postos em sociedade de forma livre e igual. Salienta-se que os meios
polivalentes que potencializam a realização das faculdades morais da racionalidade
e da razoabilidade e que caracterizam os bens primários, devem partir (para sua
definição e listagem) de uma concepção política de justiça, e não de uma doutrina
moral abrangente razoável específica, ou mesmo de uma conjuntura de doutrinas
morais abrangentes razoáveis (ao estabelecerem um ponto mínimo comum
compartilhado), o que, neste sentido, há forte semelhança de fundamentação entre o
conceito de bens primários com o de consenso sobreposto.
Estabelecida a primeira definição de bens primários, a questão passa a ser
como estabelecer a lista dos bens primários que compõem tal conceito, visto que o

81
Aqui sente-se a herança rawlsiana para com o filósofo de Königsberg: “Ser feliz é necessariamente
a aspiração de todo o ente racional, porém finito e, portanto, um inevitável fundamento determinante
de sua faculdade de apetição” (KANT, 2008, p. 42).
82
Não no sentido exposto pela filosofia política de Hobbes ou mesmo a partir de uma noção
utilitarista clássica.
83
Que é benéfica ao ideal liberal em que todos os sujeitos são tratados em igualdade de direitos,
independente de suas origens, classes ou status.
62

mesmo se mostra de forma ampla sem grandes definições. E mais, salienta-se que
tanto o conceito quanto a lista de bens primários não devem entrar em conflito com
os princípios de justiça, bem como devem possuir forte legitimidade diante de uma
cultura pública. Assim sendo, para esta tarefa, há de se ter cuidado perante duas
grandes etapas restritivas que condicionam seu detalhamento: (a) a lista, desta
forma, depende de forma ampla de (a¹) um conhecimento sobre os fatos gerais a
respeito da vida, (a²) de noções que digam respeito acerca das necessidades e das
aptidões humanas84, analisando-as em seus mínimos detalhes privados e públicos,
bem como (a³) um conhecimento profundo acerca das relações de interdependência
social. Em anexo a esta etapa necessária ao conhecimento dos bens primários,
outra deve ser colocada em termos: (b) determinar de forma geral a amplitude dos
tipos de planos de vida racionais que os indivíduos podem executar, bem como por
quê os mesmos precisam de tais bens primários para a realização daqueles, com o
escopo de que os projetos de vida possam ser (b¹) formados, (b²) executados e (b³)
revisados.
Mas mesmo assim não parece existir incongruência entre o que foi defendido
– que uma idéia de bens primários não pode ser resultado de uma noção que se
tenha acerca da natureza humana – e o que foi prolatado posteriormente – que não
pode depender da natureza humana e sim de uma concepção política –, quando é
asseverado que em Rawls há a presença de fatores de uma psicologia moral (fatos
gerais da vida, planos racionais de vida, etc.) para o estabelecimento dos mesmos?
Apesar da aparente noção incompatível deve-se deixar claro que isto não ocorre,
visto que os bens primários não devem depender com exclusividade absoluta das
contingências sociais ou humanas, mas também de “uma concepção política da
pessoa como livre e igual, dotada de faculdades morais, e capaz de ser um membro
plenamente cooperativo em sociedade” (RAWLS, 2003, p. 82). Em linhas gerais, se
pode asseverar que a idéia normativa deve preceder a relevância dos fatores
contingenciais, mas sem prescindir dos mesmos, pois estes são fundamentais para
o próprio ato de propor algo no campo da filosofia política em virtude de que não se
fazem determinações em uma esfera supra-real.

84
Mesmo que antes tenha se excluído a dependência de uma concepção de bens primários para com
um tipo de natureza humana que poderia ser encontrada neste ponto, Rawls não exclui a presença
dos mesmos para a consecução de seu conceito, contudo, não deve haver dependência direta.
63

Frente ao que foi defendido, Rawls argumenta que existem cinco tipos de
bens primários que se harmonizam com uma concepção política de justiça, ao
mesmo tempo em que encontram congruência fática com as determinações
contingenciais presentes no mundo, e que em regra geral podem ser expostos da
seguinte forma: (1) a definição clássica tratada no primeiro princípio de justiça
rawlsiano e que está amplamente vinculado ao seu estágio constitucional de
aplicabilidade da justiça em sociedade, diz respeito ao fato de que todos os cidadãos
possuem direitos e liberdades fundamentais e que nenhuma convenção social pode
anulá-los, sendo classificados como “condições institucionais essenciais para o
adequado desenvolvimento e exercício pleno e consciente das duas faculdades
morais” (RAWLS, 2003, p. 82); (2) uma liberdade ampla de movimento e de livre
escolha perante o grande leque de oportunidades sociais existentes, que fazem com
que sejam possibilitadas as concretizações dos diversos planos de vida; (3) tal bem
primário se refere “aos poderes e prerrogativas de cargos e posições de autoridade
e de responsabilidade” (RAWLS, 2003, p. 82); (4) renda e riqueza, que fazem com
que os planos de vida possam ser atingidos ao mesmo tempo em que podem ser
classificados como meios que têm um valor de troca no mercado econômico e
social; (5) e por fim, o estabelecimento do auto-respeito, que não pode ser
confundido com uma visão intrinsecamente voltada para a esfera privada do
indivíduo (em que este possui um respeito por si próprio e todos aceitam tais
determinações), mas sim como um aspecto presente nas instituições sociais
básicas, com dois objetivos claros (5¹) de que o cidadão possua uma noção de seu
valor (pessoal e social), bem como (5²) possam concretizar moralmente seus planos
de vida.
Desta forma, tem-se que os princípios de justiça rawlsianos são aqueles que
devem ser aplicados a estrutura básica da sociedade, ou seja, os mesmos que
acabam por avaliar85 as instituições e a própria estrutura básica. Nisto tem-se um
duplo sentido dos mesmos, em que por um lado os mesmos se aplicam e devem ser
executados na vida cotidiana de uma sociedade ideal, na mesma medida em que
servem de critério para a avaliação das condutas públicas e privadas 86. Mas como
deve ser feita a avaliação da estrutura básica social, a partir dos princípios de

85
Serve de critério normativo para tal ato, dentro de um viés deontológico.
86
Não como uma doutrina abrangente, mas sim como um critério legitimador daquilo que pode ser
aceito ou não em sociedade – em vistas de uma convivência que respeite o ideal de pessoa liberal e
o fato de que a cooperação é algo bom, mas não nos moldes hobbesianos.
64

justiça? Pois a noção de que os mesmos podem ser critérios elucidativos para tal
problemática ajuda em parte, pois não define claramente como se deve efetuar tal
idéia, nem fica estabelecida de forma lapidar o conteúdo que serve para o
embasamento prático87. Assim, surge um papel muito claro para os bens primários,
qual seja, o de fixar a referida análise a partir dos princípios de justiça em vistas de
uma distribuição (ou da forma como estão distribuídos) dos bens primários, com o
estabelecimento de um índice apropriado.
Esta idéia de adequação de um índice para submeter uma avaliação das
estruturas sociais existentes encontra respaldo pela razão de que o estabelecimento
dos bens primários se pauta por uma noção que os define de forma objetiva, de
acordo com determinadas circunstâncias presentes em sociedade que são
legitimadas (ou não) de forma pública. Tudo deve passar pelo crivo de uma razão
pública, sejam direitos e liberdades ou mesmo questões atinentes a renda e riqueza.
Neste sentido, “as desigualdades a que se aplica o princípio da diferença são
diferenças nas expectativas (razoáveis) de bens primários dos cidadãos ao longo da
vida toda” (RAWLS, 2003, p. 83). Com esta determinação, pode-se extrair, em uma
dedução sistêmica, que o filósofo de Baltimore afirma que a classe que possuir
expectativas mais baixas em relação aos seus próprios planos de vida equivale ao
grupo que é o menos favorecido, e que está ligado fundamentalmente à renda e a
riqueza produzida em sociedade. Mas salienta-se que ao se declarar tal vinculação
(de que os menos favorecidos são aqueles que pertencem a classe que possui
renda com menor expectativa social global), não se pode inferir que tal adequação
se dê também no âmbito de condições naturais (físicas) presentes nos indivíduos 88,
visto que existe a possibilidade real de serem estabelecidos diversos esquemas de
cooperação social, em que em um esquema Y determinado tipo de indivíduo seria
menos privilegiado caso fosse colocado em outro esquema X no qual ele poderia
pertencer a uma esfera com melhores expectativa sociais.
Com isso, ficam excluídas da argumentação a possibilidade de se vincular um
grupo de menos favorecidos com determinada classe social (negros ou
descendentes de indígenas) de forma universal, pois isto acaba sendo cambiante de
87
Principalmente no segundo princípio de justiça e em particular no princípio da diferença que nada
mais é do que uma regra que visa maximizar o mínimo necessário para os cidadãos menos
favorecidos, deixando este campo demasiadamente aberto.
88
Ser negro, ou ter descendência indígena, não é condição para ser classificado como sujeito
portador de uma menor expectativa social e com menor possibilidade de realização de seu plano de
vida.
65

acordo com a realidade posta em jogo. Nisto se vê uma determinada crítica que
Rawls faz a um severo erro lógico que alguns ramos das ciências sociais
(notadamente na antropologia) podem efetuar ao agrupar em uma esfera de
vilipendiados sociais os indivíduos que pertencem a um dado grupo 89. Deixa-se
claro, desta maneira, que para Rawls somente se verifica quem é menos favorecido
em um dado esquema de cooperação social próprio. Isto implica que mesmo que a
sociologia política acabe por definir de forma lapidar que os menos favorecidos com
renda e riqueza são aqueles (i) nascidos em classes mais baixas, (ii) que são menos
dotados naturalmente e (iii) que possuem má-sorte e infortúnios (VER § 16), estes
não devem ser fatores que comprovem os menos favorecidos, pois não conseguem
definir claramente que estes possuem menores expectativas sociais. Sem parecer
contra-intuitivo, nada impede que tais fatores estejam presentes (e muitas vezes
estão) naqueles que sãos os menos favorecidos e possuem as menores
expectativas de concretização da sua forma de bem: é uma passagem lógica que
não há necessidade de que a mesma aconteça, mesmo que possa se realizar.
Sobre o trecho rawlsiano (citado) em que fica claro a relação entre o princípio
da diferença e sua aplicabilidade nas expectativas de bens primários básicos dos
cidadãos, deve-se deixar evidente que no que tangem as desigualdades admitidas
em um esquema de cooperação liberal (justiça como eqüidade), estas somente são
aceitas se elevarem ao máximo as pretensões dos menos favorecidos 90. Para tanto,
há de se cotejar de forma clara os variegados esquemas de cooperação social
existentes para que se escolha o melhor. Isto se justifica pela aplicação da
argumentação precedente que leva em consideração que diversos esquemas
cooperativos possuem diversos sujeitos que podem ser os menos favorecidos.
Desta forma, há de se confrontar os esquemas para escolher aquele que produz os
melhores resultados (sem uma fundamentação no formato de Hobbes) para os

89
Por exemplo, podem pensar que um negro sempre será aquele que possui menores expectativas
sociais, independente do esquema social no qual este esteja inserido, o que pode provocar um
argumento falacioso, pois pode-se imaginar que em um dado esquema social que apresente diversas
mazelas sociais como o racismo, determinado negro – ou grupos de negros – não sofram
discriminações raciais em virtude de sua potencialidade financeira, ou seja, sua participação no
esquema de cooperação se dá de uma dada maneira que não leva em consideração sua condição
natural.
90
Neste sentido, “o princípio da diferença é um critério que permite a desigualdade socioeconômica.
Ele significa que as melhores expectativas dos favorecidos são justas somente se elas, e as
circunstâncias socioeconômicas que as possibilitam, contribuem para melhoria das expectativas dos
membros menos favorecidos da sociedade, que a sociedade deve instituir e garantir a alguns de seus
membros expectativas mais favoráveis para privilegiados, se isso também resulta em benefício dos
menos favorecidos” (KERSTING, 2006, p. 199).
66

cidadãos com as menores expectativas sociais. Isto acaba funcionando da mesma


forma que a escolha dos princípios de justiça na posição original sob o véu da
ignorância, bem como na forma com que uma teoria moral é escolhida para a
fundamentação em um equilíbrio reflexivo: ambos devem ser dispostos de forma a
realizar uma comparação efetiva entre os vários princípios que poderiam ser
construídos ou dentre as várias doutrinas existentes, para que se verifique a que
mais se harmoniza com a concepção de pessoa91 que melhor representa os anseios
privados e públicos.
Conforme já ficou declarado, sobre quinto bem primário listado, cabe destacar
novamente que o mesmo não deve ser visto como uma base de auto-respeito que
se vincule unicamente ao indivíduo, visto que se o fosse provavelmente não
conduziria a uma forma social que pregasse a cooperação social. Neste sentido,
reforça-se que o ideal de auto-respeito é aquele que oferta as melhores bases
sociais para a concretização do mesmo para todos os cidadãos. Mas em linhas
gerais, quais podem ser as bases institucionais fundamentais para a realização do
auto-respeito? Rawls acaba declarando que tais bases podem ser aquelas que se
mostram correlacionadas a três tipos de fatos institucionais, quais sejam: (a) o de
que os cidadãos têm direitos básicos iguais; (b) a questão de que há um
reconhecimento público de tais direitos; (c) um amplo endosso no que tange a
existência e aplicação do princípio da diferença para os fins de uma sociedade de
cooperação em que todos devem possuir igual consideração e respeito 92, ou seja, o
respeito a um ideal de sujeitos livres e iguais.
No que tange a objetividade dos bens primários morais, este não deve levar
em conta três fatores: (1) não se pode levar em consideração a felicidade dos
cidadãos como algo que é dado na natureza, extraído de uma racionalidade ou de
desejos – recusa de um intuicionismo; (2) o bem dos agentes políticos não pode ser
visto como algo (2¹) pessoal, (2²) moral ou (2³) associativo93; (3) não se necessita

91
“As pessoas são consideradas livres e iguais em virtude de possuírem no grau necessário, as duas
faculdades da personalidade moral, quais sejam, a capacidade de ter senso de justiça e a capcidade
de ter uma concepção de bem” (RAWLS, 2000, p. 78). Acrescido destes fatores esta a noção de
cooperação e de cláusulas cooperativas entre os membros da sociedade.
92
Nos dizeres de Dworkin. Para este filósofo do Direito este é o princípio fundamental, em que aqui
reside a crítica ao modelo neocontratualista de Rawls, em outras palavras isto deve ser entendido
com enormes ressalvas, não podendo ser confundido como algo presente em Rawls.
93
A razão destas três recusas tem vinculação direta com a noção da justiça como eqüidade que não
aceita que o justo se depreenda do bem, o que geraria uma justiça moral e viciada pois dependeria
de uma concepção de bem; ao passo que a mesma não pode ser de origem privada pois é pública e
derivada da sociedade; ao mesmo tempo em que não deve ser de pertencimento a uma associação
67

também de uma medida evidente das faculdades morais dos cidadãos e de sua
concretização, pois isto pertence a esfera privada de cada agente político e não é
alvo de uma concepção política de justiça, mas sim de uma doutrina moral
abrangente. Convém destacar que para esta última recusa basta ter a noção de que
as faculdades morais permitem que todos ajam de forma cooperativa respeitando a
concepção idealizada de pessoa (livre e igual), estando o ideal de bens primários
plenamente justificado.
Outra noção que deve ser elucidada é o fato de que os bens primários
expressam, em noções gerais, um conjunto de bens que podem ser tomados por
uma forma de bem político (público): estes se destinam a consecução da justiça
(preponderância do justo sobre o bem) não importando as opiniões personalistas a
respeito de sua materialidade. Os cidadãos utilizam os bens primários para a
concretização de seus planos de vida (pois aqueles potencializam a existência
destes), em que os bens primários nada mais são do que as condições (e restrições)
efetivas ao pleno exercício de qualquer tipo de doutrina moral abrangente razoável:
sem a presença destes, (i) os cidadãos ficam impossibilitados de realizarem suas
duas faculdades morais bem como desenvolverem o plano de vida que escolheram
(em virtude da escassez material), ao mesmo tempo em que (ii) a estrutura básica
da sociedade não atinge seus objetivos primários, quais sejam, o ato de distribuir
justiça como eqüidade dentro de uma concepção liberal da mesma que leve em
consideração o ideal de pessoa e sua noção de cooperação social. Destarte, pode-
se asseverar que os bens primários acabam por representar o bem da justiça em
sentido concreto, na noção que oferta as bases de realização humana individual, um
dos pilares de sustentação da proposta de justiça rawlsiana: preservar os direitos e
liberdades fundamentais de todos os indivíduos.
Mas ao declarar isto, uma questão pode ser levantada: como se determina a
fração mais adequada à noção de cada indivíduo acerca de sua vontade (desejo) de
concretizar uma dada noção de bem? Pois esta pode variar de acordo com o que
cada cidadão almeja para seu plano de vida, ou há de ser entendida de maneira
rígida, estabelecida de forma publica, válida de forma universal (para todos)? O que
se pode declarar é que tal parcela apropriada de distribuição de bens primários 94,

por recair no mesmo problema de que a justiça não pode ser extraída de uma doutrina moral
abrangente.
94
Ou de avaliação da justiça em sociedade a partir de uma lista mínima de bens primários – índice.
68

não pode ser relacionada com duas idéias intuitivas elementares: (1) com a noção
presente no que uma dada doutrina moral abrangente acha acerca do que seja o
bem, gerando uma lista de bens primários, bem como (2) não estabelecer vínculo
com o que várias doutrinas morais abrangentes razoáveis acham que seja uma
doutrina acerca do bem95. Ora, a primeira noção fica muito clara pois Rawls não
mostra em momento algum que sua teoria da justiça como eqüidade deve se
mostrar como uma teoria fundacionalista ou mesmo de cunho moral abrangente, ou
seja, há impossibilidade total de fundamentação do tema 1. Nem mesmo há espaço
para pensar que sua concepção política poderia funcionar como uma doutrina moral
abrangente, pois a mesma é tão-somente uma concepção política, o que exclui
ainda mais o âmbito de ação da impossibilidade referida acerca do tema dos bens
primários.
No que tange à 2, a mesma rejeição demonstrada com relação ao ponto
comum existente no que tange a um acordo de doutrinas morais abrangentes
razoáveis que fixe um ponto de aceitabilidade entre as mesmas (no que toca ao
consenso sobreposto), se aplica aos bens primários: em primeiro lugar, tanto
consenso sobreposto quanto uma idéia de bens primários devem estar plenamente
desvinculadas de doutrinas morais abrangentes razoáveis em sua elaboração –
independentes –, pois caso contrário poderiam estar viciadas em sua origem e
privilegiar mais uma dada doutrina do que outra, o que geraria exclusão social e falta
de profundidade em um acordo; em segundo lugar, outro elemento que ajuda na
negação demonstrada é que uma idéia de bens primários que estivesse tão-
somente ligada a um ponto de equilíbrio entre diversas doutrinas morais
abrangentes razoáveis, no momento em que uma dada doutrina moral tomasse
conta do poder político ou angariasse um número substancial de adeptos e estes
controlassem as instituições básicas, somente a sua noção de bens primários
poderia valer, o que levaria à intolerância e ao fato da opressão social, pois as
pessoas que pensassem ao contrário com certeza seriam excluídas do universo
político96.
À luz destas noções fundamentais, “a interpretação dos bens primários,
portanto, é parte integral da justiça como eqüidade como concepção política de

95
Mínimo comum sobre esta esfera, ou o ponto de equilíbrio de doutrinas morais abrangentes
razoáveis em um acordo, que é um mero modus vivendi, e não um consenso sobreposto.
96
E muito provavelmente impossibilitadas de praticarem suas ações no plano privado.
69

justiça” (RAWLS, 2003, p. 85), em que esta idéia de bens primários, portadora de
uma carga política de justiça na qual são oriundos (e partícipes) desta, serve para
“manter aberta a possibilidade de encontrar uma base pública de justificação
apoiada por um consenso sobreposto” (RAWLS, 2003, p. 85). Realizadas todas
estas conexões umbilicais entre a noção de bens primários a partir de suas
negatividades97 e de suas positividades98 em aproximação com um consenso
sobreposto, tanto em suas bases de justificação pública quanto em sua
interdependência99, pode-se fixar de forma mais repleta de precisão o que sejam os
tais bens primários. Nesta segunda definição (a primeira foi posta nas primeiras
linhas deste capítulo) fica claro que os mesmos “são, portanto, aquilo de que
pessoas livres e iguais (conforme especificado pela concepção política) precisam
como cidadãos” (RAWLS, 2003, p. 85). Esta noção mais precisa, contudo mais
simplificada, está repleta de implicações que dizem respeito a outras esferas da
justiça como eqüidade e que tratam do fato do pluralismo razoável.
Sobre o pluralismo razoável100, Rawls mostra uma idéia de que esta
apresenta dois grandes reflexos em sua determinação: um primeiro diz respeito a
uma categorização negativa, ao passo que o segundo apresenta conseqüências
dentro de uma ótica positiva. No que tange a sua negação, o pluralismo razoável
traz como corolário o fato de que haveria uma plena impossibilidade de acordo dado
que as doutrinas morais abrangentes101 não conseguem estabelecer um acordo
claro sobre o que seja verdadeiro e falso: uma professa que A é a verdade, ao passo
que outra professa B, outra C e assim por diante. Como um segundo momento, em
uma etapa positiva, do que foi exposto não decorre que não haja possibilidade de
que se tenha algum tipo de acordo: que não seja em um grau absoluto, mas um
acordo razoável entre estas é viável, o que gera um modus vivendi; ou mesmo ainda
há a chance de se obter um acordo profundo, independente e político, qual seja, um
consenso sobreposto.

97
Ao que o mesmo não pode estar vinculado ou apto para realizar.
98
O que o mesmo representa e sua listagem elucidativa.
99
Uma idéia de bens primários somente pode ser entendida quando o consenso sobreposto é
claramente compreendido e executado, pois é este acordo profundo sobre uma concepção política de
justiça que permite a existência de bens primários sociais.
100
“The diversity of reasonable comprehensive doctrines affirmed by reasonable persons in liberal
societies, even when well-ordered. It is the long-run outcome of the work of human reason under free
conditions, and a permanent feature of a democratic society due to the burdens of judgment. As a
result, even fully reasonable and rational persons often cannot agree on philosophical, moral, and
religious principles” (FREEMAN, 2007, p. 481).
101
Em virtude de que cada uma professa uma dada verdade moral e política.
70

Mas com o que foi exposto, diante desta noção política de justiça 102 que seja
independente e não vinculada a nenhuma espécie de doutrina moral abrangente por
caracterizar um vício de origem que causa uma mácula em toda a justiça como
eqüidade103, cabe sublinhar que estas últimas “são indispensáveis a qualquer
descrição de justiça, política ou não; e podem ser livremente utilizadas na justiça
como eqüidade desde que sejam compatíveis com ela enquanto concepções
políticas” (RAWLS, 2003, p. 85-86). Em outras palavras, a idéia de bens primários é
independente mas na exata medida que não atrela seus fundamentos a nenhuma
espécie determinada de doutrina moral abrangente, contudo aceita a participação
das mesmas pois os juízos morais ponderados104 nascem de tais teorias morais e
políticas filtradas pela história social e representam a base pragmática sobre a qual
Rawls assenta sua teoria da justiça: caso isto não fosse permitido, Rawls poderia
recair em um fundacionalismo de cunho kantiano (factum da razão), ou mesmo se
dirigir a um relativismo moral que coloca suas bases em qualquer terreno.
Deve-se reforçar que ao permitir a utilização de concepções morais que
sejam compatíveis com a idéia política que subjaz uma noção de bens primários,
isto não quer dizer que tal listagem de bens sociais deva proceder de uma doutrina
moral abrangente ou mesmo de um ponto mínimo comum encontrado por um acordo
entre as doutrinas morais abrangentes existentes, conforme já ficou claro, mas sim
fixados através de um reconhecimento da existência de uma cultura pública que dita
o mínimo (razoável) político necessário para que os cidadãos consigam efetivar seus
planos de vida. Todavia, lembra-se que o consenso sobreposto e a lista de bens
primários devem estar isentos de qualquer influência direta que alguma doutrina
moral abrangente (ou o conjunto das mesmas) deseja perfazer. Mas ao defender a
harmonia pragmática necessária, a fim de encorpar sua teoria da justiça como
eqüidade, Rawls acaba por declarar que a lista de bens primários básicos que deve
estar na posse de cada cidadão a partir de um respeito aos princípios de justiça,
acaba sendo algo parcial105 como se fosse próprio de uma teoria moral que entra no
jogo político (respeitando a preponderância de que o justo é prioritário em relação ao
bem).

102
Tanto para o consenso sobreposto como para uma idéia acerca de bens primários.
103
Pois esta defenderá fundamentalmente um interesse privado e não político.
104
Que são partícipes do equilíbrio reflexivo e ofertam materialidade às avaliações dos cidadãos
acerca dos variados temas sociais.
105
Ou que possui parte das doutrinas morais abrangentes.
71

Destarte, fica claro então que se podem fixar a lista de bens primários de
duas formas básicas, quais sejam, (i) aquelas que representam uma média
estabelecida por um ponto central mínimo de doutrinas morais abrangentes, e (ii)
uma concepção política que parta de uma noção ideal de pessoa em anexo com a
idéia intuitiva de que a cooperação é algo bom. É evidente que Rawls adota a
segunda postura pelos amplos motivos já demonstrados, mas ainda mais pela razão
de que a partir desta noção independente, com a listagem de bens primários em
mãos, os cidadãos possam obter apoio para a aceitação e execução de um
consenso sobreposto. Para finalizar, deve-se lembrar que da mesma forma que se
estabelece um consenso sobreposto a respeito de uma concepção política se fixam
os bens primários: deve-se esquecer que tais bens sociais se voltam para as
doutrinas morais abrangentes razoáveis (e até de que se fazem uso daquelas que
se harmonizam com a concepção política de justiça), e erigir uma concepção
independente106.

3.3 A justificação pública e a legitimidade política

No tocante a verificação de quais seriam os pressupostos de uma justificação


pública nos níveis propostos por Rawls em sua justiça como eqüidade, há de se
compreender que tal temática está englobada dentro de diversos conceitos e
mecanismos justificacionais que ofertem tal idéia. Assim, coloca-se
fundamentalmente esta questão no centro de uma explanação que envolve três
grandes eixos nos quais gravitam todo o liberalismo político rawlsiano, quais sejam:
(i) equilíbrio reflexivo, (ii) consenso sobreposto e (iii) a noção de uma razão pública.
Cabe salientar que todos estes temas estão correlacionados com o tema da
legitimidade, que é peça fundamental para a justificação pública, visto que sem
aquele pressuposto os juízos morais ponderados e os princípios de justiça carecem
de força para sua aplicabilidade na sociedade. Logo, esta noção de justificação
pública é extremamente adequada às sociedade que congregam o conjunto de
características que seguem: o fato de apresentarem uma pluralidade de doutrinas
morais abrangentes razoáveis, o que faz com que coexistam diversos níveis de

106
Com estas afirmações, “os bens primários são eqüitativos para cidadãos livres e iguais: esses
bens permitem que eles coloquem em prática suas concepções permissíveis do bem (aquelas cuja
busca é compatível com a justiça)” (RAWLS, 2003, p. 86).
72

juízos de valor sobre os mais variegados temas sociais; a existência viável dentro de
uma sociedade democrática que segue os padrões herdados através da história, e
que aprimora seus procedimentos e conteúdos ao longo do tempo; a noção de que
uma sociedade cooperativa produz melhores resultados em contraposição a uma
sociedade de competição (derivada de uma noção sobre as teorias econômicas,
sem qualquer relação com Hobbes).
Mas de onde deriva-se a justificação pública? Em suma, quais são seus
fundamentos que obrigam a sua presença no seio de uma sociedade? Para tanto, a
noção de justificação pública107 deve ser anexa a uma noção clara de sociedade
bem-ordenada (sociedade ideal) em virtude de sua necessidade de harmonização
com a noção de pessoa idealizada que Rawls apresenta: coerência entre respeito
aos interesses individuais e uma concepção política 108 de justiça cria a necessidade
de uma legitimação pública plena.
No centro desta proposta, Rawls elenca três características fundamentais
explicando as razões pelas quais a teoria da justiça como eqüidade é política
(RAWLS, 2003, p. 37), não podendo ser vista como uma doutrina moral abrangente
ou metafísica. Uma primeira chave de leitura reside na declaração de que a justiça
como eqüidade é política, não fazendo parte do campo da moralidade, o que tem
seu equivalente em que sua destinação é para a sociedade como um todo, não
tendo intenção de fazer regulamentos principiológicos destinados a grupos
específicos109. Em uma segunda característica fundamental, tem-se a conseqüência
desta não se apresentar de forma abrangente, ou seja, a justificação pública nos
moldes rawlsianos expressa unicamente valores mínimos comuns, sendo válidos
para todos os agentes políticos e representando os valores políticos ofertados para a
estrutura básica da sociedade. A última característica se fixa no limite desejado para
uma concepção política de justiça nos moldes de Rawls, qual seja, uma limitação
presente nos juízos mais elementares presentes em sociedade, em outras palavras,

107
Pois não se pode pensar em algo justificado somente para um grupo de indivíduos e ao mesmo
tempo válido para todos.
108
Convém destacar que esta deve estar de acordo com a proposição que declara que a justiça como
eqüidade deve ser neutra em seus objetivos: “O significado correto da neutralidade liberal é a de que
os princípios políticos não devem favorecer nenhuma das concepções de bem que são motivo de
desacordo entre os membros da sociedade” (ARAÚJO, 2003, p. 36).
109
Mesmo que de forma indireta, ao limitar o que são doutrinas morais abrangentes razoáveis, a
teoria da justiça rawlsiana apresenta participação na esfera moral salientando que não é seu objetivo
imediato, apresentando reflexos na determinação dos tipos de direitos que o cidadão pode defender e
de quais atitudes morais e políticas este deve se afastar.
73

os juízos habituais frutos de uma história moral e política que sejam baseados na
idéia de uma sociedade em cooperação e que respeite o ideal de pessoas livres e
iguais.
Respeitando tais noções elementares, a justificação pública garante com que
todos os princípios de justiça sejam publicamente reconhecidos, o que implica que
todos aceitam unanimemente a aplicabilidade destes para seus planos de vida
particulares e para os temas envolvendo o âmbito público. Assim, “as reivindicações
dos cidadãos dirigidas às principais instituições da estrutura básica podem ser
arbitradas” (RAWLS, 2003, p. 37-38), o que demonstra a inserção dos princípios de
justiça em dois recintos distintos, e de formas díspares: (i) na moralidade, este se
insere de forma indireta, limitando a escolha de doutrinas morais abrangentes para
se escolher como plano de vida a partir de um critério de razoabilidade (pública); (ii)
quando na esfera pública os princípios de justiça se fazem presentes para a
determinação do que seja o correto (ou justo), estes se colocam no âmago do Direito
(e dos direitos dos cidadãos), pois são condições de possibilidade para a existência
deste, visto que sem eles o Direito se torna uma determinação vazia que no máximo
obedece a uma validade lógica.
Com isso, surge a necessidade de se compreender o significado geral de uma
justificação pública, visto a forte dependência que os juízos morais ponderados (que
fazem parte das doutrinas morais abrangentes razoáveis) e os princípios de justiça
apresentam perante a sua existência. Nesta medida a simbologia que está evidente
na legitimidade pública de um dado juízo ou princípio está na questão de que todos
devem cooperar a partir de cláusulas bilaterais e multilaterais, em virtude da
concepção de pessoa e de sociedade construída por Rawls a partir da noção de
cooperação e que são avaliadas como justas110. Mas como dizer o que é uma
cláusula justa ou injusta? Somente se compreende isso a partir da noção de que o
filósofo norte-americano parte de um modelo liberal que preserva uma esfera de
direitos individuais tidos como invioláveis111, a partir de uma noção que parte de uma
cultura pública solidamente estabelecida ao longo da história que oferta uma
validade pragmática para seus princípios de justiça: estes representam a noção
chave para uma fundamentação de direitos.

110
Forte deontologia vislumbrada.
111
Não dados por uma natureza, mas construídos racionalmente.
74

E tal justificação pública surge de um acordo amplo fruto “de premissas


comuns que todas as partes em desacordo, consideradas livres e iguais e
plenamente capazes de razão, podem endossar razoavelmente” (RAWLS, 2003, p.
38). Todavia é adequado lembrar que tais premissas não são ofertadas a priori,
mesmo que sejam dadas por juízos morais que são imaginados como presentes
anteriormente ao estabelecimento do acordo profundo da justiça como eqüidade,
mas sim presentes na cultura pública ao longo da história democrática ocidental:
passaram por um filtro racional e razoável em que mesmo que apresentem
fundamentos fundacionalistas para suas estruturas, aceitam a convivência
harmônica com outras doutrinas morais abrangentes. O que deve-se deixar claro é
que a fundamentação que estas doutrinas morais abrangentes razoáveis se utilizam
não é o alvo da análise rawlsiana. Seu motor de verificação se limita ao fato de que
as doutrinas morais abrangentes razoáveis que estão presentes hodiernamente se
estabeleceram em virtude de suas qualidades públicas, e deve-se descobrir a
metodologia de utilizar tais construções racionais para a fixação de uma concepção
acerca da justiça: para o filósofo em tela, a justiça como eqüidade.
Além disso, com sua validade política, a justificação pública acaba agrupando
em um único nicho de atuação três noções fundamentais presentes no plano da
construção inferencial de juízos morais a respeito de temas políticos e privados: as
idéias básicas (que derivam de uma intuição), as afirmações gerais e os juízos
particulares propriamente ditos. Nestes três elementos interconectados se encontra
a força fundamental pragmática da justificação pública, fazendo uma importante
ressalva de que mesmo que as premissas e conclusões se mostrem com validade
lógica, mas não sirvam para o respeito e garantias de direitos invioláveis para todos
da sociedade, não se obterá a referida justificação pública: para ter validade de
acordo com o pensamento liberal rawlsiano, há de se estar inserido em um equilíbrio
reflexivo amplo (wide ou full), que anexa uma teoria moral (ou teoria da justiça) aos
juízos morais ponderados e aos princípios de justiça.
Contudo, mesmo que a justificação pública acerca dos princípios de justiça
seja um ótimo parâmetro para se viabilizar um acordo profundo sobre questões de
justiça política (ou talvez a melhor forma de se obter tal consenso), Rawls deixa claro
que um acordo completo que seja pleno em suas realizações e objetivos, é tido
como impossível. As razões para tal noção podem ser abraçadas por três pólos. Um
primeiro pelo fato de que se sua teoria da justiça como eqüidade obtivesse um
75

acordo pleno sobre todas as questões que envolvem o plano político e sobre todos
os juízos morais ponderados, fixando quais são os corretos e quais não são justos,
sua teoria se assemelharia a uma doutrina moral abrangente, pois se apresentaria
com caráter de verdade perante outras propostas de justiça: ao se conquistar um
consenso absoluto (total) e profundo sobre todos os âmbitos da vida, a verdade
pode ser claramente deduzida de tais premissas, o que não é o escopo de Rawls.
Uma segunda noção é pela razão de que nem todas as variantes e especialidades
dos diversos temas que abarcam as questões da vida são atingidos por um acordo
de cunho político112, visto que nem todos os agentes seguem integralmente uma
dada doutrina moral abrangente de forma coerente, podendo mesclar juízos morais
de doutrinas completamente distintas, gerando conclusões imprevisíveis. Um
terceiro motivo reside no fato de que os princípios de justiça extraídos da posição
original sob o véu da ignorância são ad hoc (para algo) em uma dada cultura pública
fruto de uma herança cultural democrática, podendo ser revistos caso a sociedade
mude suas concepções113.
O alvo buscado por uma justificação pública, portanto, é o de reduzir os
dissensos políticos114 e angariar um mínimo comum razoável para a fixação da
justiça através de uma determinação dos elementos constitucionais básicos. Desta
forma, a justiça como eqüidade apresenta seus reflexos na esfera jurídica
obedecendo a uma formulação que parte do exercício de abstração que deriva da
posição original sob o véu da ignorância, que apresenta condições ideais de
restrições formais para que se tenha um modelo ideal a seguir dentro do campo do
constitucionalismo115. Com isso, Rawls fixa que dois pontos devem ser adequados
de forma emergencial em um acordo político, quais sejam:

(1) os princípios fundamentais que determinam a estrutura geral de governo


e seu processo político; as prerrogativas dos poderes legislativo, executivo e
judiciário; os limites da regra majoritária; e (2) os direitos e liberdades básicos
iguais da cidadania que as maiorias legislativas têm de respeitar, como o
direito de votar e de participar da política, a liberdade de pensamento e
associação, a liberdade de consciência, bem como as garantias do estado de
direito (RAWLS, 2003, p. 39).

112
Mesmo que leve em conta os juízos morais ponderados, o que garantiria certa inserção indireta na
esfera moral.
113
Sempre pautada por um ideal de evolução, pois há algumas noções básicas em que a sociedade
não espera retroceder em suas concepções, como por exemplo, repúdio a escravidão e tolerância
religiosa.
114
E morais, dentro do campo público.
115
Que é o ordenamento máximo em um dado país de tradição democrática.
76

Mas por que o filósofo de Baltimore dá tanta importância aos elementos


constitucionais fundamentais?
A razão que pode responder de forma clara a presente explanação se dá em
virtude de que com estes elementos constitucionais fundamentais se tem a
possibilidade de que sejam resolvidos todos os problemas de justiça básica (os
problemas essenciais), ao passo que outras contendas inconciliáveis são resolvidas
à luz indireta destes ou a partir de questões totalmente externas às meras doutrinas
morais abrangentes razoáveis: pode-se, com isso, resgatar valores políticos que não
estão presentes na justificação pública, mas que não fazem parte do objetivo
fundamental rawlsiano. Em suma, um acordo no que diz respeito aos elementos
constitucionais básicos acaba garantindo a efetividade de dois motores de ação
justificacional presentes na justiça como eqüidade: a cooperação política de forma
plena e o respeito dos direitos de cada cidadão livre e igual, em que este último
representa a materialidade da justiça na realidade.
Essas colocações remetem a uma pergunta crucial: qual seria o objetivo
intrínseco presente na justificação pública? Ou seja, tratando teoricamente a
mesma, pautada por um pragmatismo inerente dentro das doutrinas morais
abrangentes que compõem a mesma, o que pode ser definido como o alvo que
busca tal espécie justificacional? Para isso, Rawls assevera que a mesma visa
“preservar as condições de cooperação social efetiva e democrática alicerçadas no
respeito mútuo entre cidadãos livres e iguais” (RAWLS, 2003, p. 39), o que faz com
que os objetivos se coadunem com aquilo no qual o acordo visa garantir. Há, desta
forma, uma remissão patente destas garantias e objetivos ao tema dos elementos
constitucionais básicos e a toda a justiça como eqüidade pois aquelas são condições
sine qua non para a existência de todo o método e proposta rawlsiana: o direito de
todos respeitados (como sujeitos livres e iguais) e a cooperação são peças
fundamentais para compreensão adequada de um liberalismo político hodierno.
A questão é estabelecer os motivos pelos quais não se pode utilizar uma
justificação pública a partir de uma doutrina moral abrangente e as razões pelas
quais se deve estabelecer uma justiça como eqüidade fruto de uma noção política, o
que representam duas idéias opostas, proponentes, de justificação no recinto
público. Ora, uma das principais características do liberalismo político
77

contemporâneo116 é resumida do seguinte modo: (a) a mesma exclui controvérsias


fundacionalistas, (b) não se utiliza do intuicionismo nem do utilitarismo, (c) constrói
condições essenciais cooperativas para os membros da sociedade e (d) estabelece
“uma base pública de justificação que todos os cidadãos, considerados razoáveis e
racionais, possam endossar a partir de suas próprias doutrinas abrangentes”
(RAWLS, 2003, p. 40). Com isso plenamente garantido e efetivado, tem-se um
consenso sobreposto, que é confirmado pelo equilíbrio reflexivo amplo (wide ou full).
Frente ao que foi determinado até o presente momento, cabe salientar que ao
excluir contradições morais entre doutrinas fundacionalistas, o liberalismo político de
Rawls não quer excluir estas do debate público, mas sim afirmar que as mesmas
podem e devem participar da construção de um consenso sobreposto, desde que
entendam que o tipo de fundamentação utilizada para o plano privado não pode ser
imaginado como idêntico àquele que se almeja no recinto público (político) 117. E com
relação ao ponto em que o consenso sobreposto é obtido, através do
estabelecimento das condições mínimas (formais e materiais) indicadas pelo
liberalismo político, é adequado lembrar que o equilíbrio reflexivo é o fator
concernente a garantia de que o acordo se dê com a profundidade necessária para
abarcar todas as doutrinas morais abrangentes razoáveis e fixar um (ou alguns)
ponto mínimo comum (princípios de justiça), garantindo a diferença substancial para
com um mero acordo (modus vivendi).

116
Faz-se esta distinção em virtude de que o liberalismo político clássico apresentava um viés
fundacionalista, em todos os autores mais ilustres citados por Rawls como Locke, Rousseau e Kant,
no qual fundamentavam seus princípios de justiça – se assim pode-se declarar – a partir de uma
razão que era ou ofertada por um Criador, ou ancorada racionalmente em um factum da razão, onde
se substitui a metafísica medieval por uma metafísica racionalista. Desta forma, o tipo de liberalismo
fomentado por Rawls conseguiu vencer as amarras do liberalismo moderno, conforme pode ser
declarado pela seguinte passagem: “foi o liberalismo como filosofia abrangente que possibilitou esse
passo decisivo, mas é precisamente tarefa da teoria da justiça, tal como elaborada por Rawls,
desvincular o liberalismo político do liberalismo „metafísico‟ que continua competindo com outras
visões de mundo, sejam elas religiosas, filosóficas ou morais” (RICOEUR, 2008, p. 104) Ainda sobre
este tema, por exemplo, cabe destacar que o direito de propriedade em Rawls não é algo inerente ao
ser humano, conforme pode ser destacado na seguinte passagem: “In Rawls‟s theory individual
property rights are the consequence, and not the foundation, of the justice of economic institutions. In
theories of a libertarian tendency the reverse is the case” (NAGEL, 2003, p. 68). Isto mostra o quanto
o filósofo de Baltimore deseja evitar um tipo de doutrina política fundacionalista.
117
Corroborando tal asserção, tem que “a idéia central do ‟liberalismo político‟ é, segundo Rawls, o
fato de ele se constituir como uma concepção que se move dentro da categoria do político e que
deixa a filosofia como ela está, abstendo-se de realizar asserções no domínio de visões
compreensivas” (ARAÚJO, 1998, p. 213), o que evita com que esta visão caia em um
fundacionalismo ou seja confundida como uma doutrina moral abrangente razoável.
78

3.4 O consenso sobreposto: um acordo político independente

Antes de adentrar em uma explicação conceitual e do papel que este exerce


na teoria da justiça rawlsiana, é adequado investigar a seguinte questão: qual a
necessidade que esta proposta de acordo justificacional público tem para com a
justiça como eqüidade? O mesmo surge como que “para tornar a noção de
sociedade bem-ordenada mais realista e ajustá-la às condições históricas e sociais
de sociedades democráticas, que incluem o fato do pluralismo razoável” (RAWLS,
2003, p. 44-45). Estabelecidas estas linhas preliminares, é adequado salientar que a
noção utilizada por Rawls em Justiça como eqüidade: uma reformulação representa
uma explanação acerca de uma idéia implícita em Uma teoria da justiça, no qual o
filósofo norte-americano parte de uma noção no qual apesar de existir a
possibilidade de se construir um acordo profundo sobre o tema da justiça, as
pessoas (e as partes) chegam a tal contrato por motivos e razões completamente
distintas umas das outras118. Neste sentido, é de se mencionar que esta intuição
primitiva sobre a psicologia moral e as motivações dos agentes não impede que se
objetive um ponto mínimo comum no tema da justiça (e de seus princípios), que ao
mesmo tempo em que possa se determinar o que é correto no âmbito público
também tenha a possibilidade de se respeitar o recinto privado (acerca do que é
abrangente), sendo tal acordo sobre o justo a peça chave para se poder resolver
contendas que se dêem com os elementos constitucionais básicos (na esfera
jurídica).
A questão de existirem diversas espécies de fundamentação moral e política
aliada a variadas formas de se atingir um mesmo resultado político, se dá em virtude
da existência evidente (nas sociedades democráticas ocidentais) de um fato do
pluralismo razoável que torna notório a coexistência de diversas doutrinas morais
abrangentes razoáveis. E é exatamente esta pluralidade de atores sociais, de
grupos sociais e de pensamentos morais e políticos que oferta o fio condutor para a
unidade política almejada por Rawls através do acordo: uma união calcada na
diversidade. Desta forma, não se parte de uma dada concepção moral abrangente

118
Mesmo que a diversidade de motivos pelos quais se chega a um acordo mútuo possa levar a uma
descrença na viabilidade de tal ponto em comum (em virtude do fato do pluralismo razoável, salienta-
se que a idéia de Rawls é que “por meio do contrato, a sociedade é desde o início tratada como
fenômeno congregacionalista mutualista” (RICOEUR, 2008, p. 90).
79

para que se formule o acordo mas sim desta ampla gama de variedades morais 119,
pois somente esta consegue enfatizar e viabilizar o ideal democrático e liberal de
respeito à noção de pessoa igual e livre, racional e moral. Mais uma vez pode se
vislumbrar a circularidade justificacional exposta pelo filósofo norte-americano nos
seguintes termos: (i) o consenso sobreposto acaba sendo aquele acordo que
consegue afirmar uma concepção política de justiça, (ii) ao passo que este se
fundamenta a partir da noção extraída das diversas doutrinas morais abrangentes
razoáveis que fazem parte da sociedade, (iii) em que estas representam os pilares
do consenso sobreposto. Com relação ao ponto (ii), é conveniente mencionar que

embora as doutrinas compreensivas sejam a plataforma a partir da qual cada


indivíduo se lança a um debate público, os conteúdos expressos dessas
doutrinas não têm um papel normativo na justificação. Os cidadãos são
entendidos como uns não olhando para dentro da doutrina dos outros e é
assim que podem permanecer, em termos de justificação, nos limites do
político (ARAÚJO, 1998, p. 216).

Ressalta-se que as idéias acerca dos juízos ponderados que são oriundos de
doutrinas morais abrangentes razoáveis, são resultados de concepções filosóficas,
religiosas e políticas “que ganham um corpo significativo de adeptos e perduram ao
longo do tempo de uma geração para outra” (RAWLS, 2003, p. 45), o que expõe o
pragmatismo de sua justiça como eqüidade.
Com isso, o filósofo de Baltimore não quer determinar que sua teoria da
justiça seja aquela na qual todos os que lêem seus escritos devem aceitar
integralmente, mas simplesmente demonstrar que ela pode ser a que apresenta
melhores bases consensuais para as sociedades democráticas hodiernas. Isto é
reforçado pela afirmação de que até mesmo os princípios constitucionais
elementares podem (e devem) ser revisados para se adequarem aos anseios
sociais. E ao se declarar tais premissas, deve-se concluir que os princípios de justiça
que são postos dentro da moldura dos mecanismos justificacionais, podem
permanecer em aberto para que sejam atendidas as demandas que novas
realidades sociais possam vir a reivindicar. O trajeto até aqui colocado conduz
claramente a noção de um Direito permanentemente disposto a aceitar novos
paradigmas, desde que estes sejam justificados publicamente e tratem as pessoas
como livres e iguais dentro de uma sociedade de cooperação. Salienta-se que ao
119
Partir deste ponto não significa obter uma média de juízos convergentes entre doutrinas morais
abrangentes, mas sim usar a história moral e política para fundar algo independente.
80

fazer tal afirmação, tais restrições não são tidas como auto-evidentes mas são
resultados do viés pragmático rawlsiano e fruto da construção filosófica da posição
original sob um véu da ignorância: é como se houvesse um misto entre a
racionalidade abstrata120 e a realidade concreta.
Uma forma de compreender melhor o consenso sobreposto é imaginá-lo
como uma situação em que os cidadãos tendem a corroborar as suas grandes
esferas de racionalidade prática, que envolvem o âmbito público e os interesses
privados. Nestas colocações, fica evidente que aqueles asseveram de um lado uma
concepção política de justiça ao mesmo tempo em que declaram suas próprias
doutrinas morais abrangentes razoáveis121. Isto tudo no sentido de que elas (as
doutrinas morais abrangentes razoáveis) possuem validade (a) para os agentes que
integram tais concepções e que também (b) estão aptas para a coexistência social,
dividindo uma parte de suas noções com outros grupo sociais. Mesmo existindo a
participação destas duas amplas noções (pública e privada), convém lembrar que a
justiça como eqüidade existe para os propósitos de viabilizar a existência plena de
uma democracia constitucional que garanta direitos a todos, ou seja, “a concepção
pública de justiça deve ser, tanto quanto possível, apresentada como independente
das doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes” (RAWLS, 2000, p. 190).
Cabe declarar que no centro da justiça como eqüidade existem três grandes
características de uma concepção política que a reforçam para que possa vir a
conseguir de forma profunda, o apoio necessário de um consenso sobreposto, pois
sem este, os princípios de justiça dentro de uma sociedade democrática e plural
perdem sua força (em virtude da falta de legitimidade).
Destaca-se que estas características apresentadas em Justiça como
eqüidade: uma reformulação são distintas daquelas elencadas em O liberalismo
político, mesmo que se mostrem em conexão interdependente122 conforme será
tratado mais adiante, pois não se imagina a teoria da justiça de Rawls sem a noção
de um consenso sobreposto. Nesta monta, as principais características da teoria da
justiça rawlsiana que são compulsórias para a obtenção de um acordo profundo são
as seguintes: (1) há uma clara necessidade de estabelecer restrição de sua órbita de

120
Mas que não se dá em um plano supra-mundano.
121
Pois os não razoáveis são tomados como incapazes de compartilhar tal noção pública de justiça.
122
Visto que as que dizem respeito à Justiça como eqüidade: uma reformulação são ligadas
precipuamente ao próprio consenso sobreposto, ao passo que as que se referem ao O liberalismo
político ficam conectadas a idéia da justiça como eqüidade.
81

ação somente para a estrutura básica da sociedade; (2) sua proposta não é
resultado de nenhuma doutrina moral abrangente específica, mesmo que o
consenso sobreposto e a justiça como eqüidade contenham123 tais juízos morais e
políticos; (3) as idéias basilares de sua teoria são resultantes de uma cultura pública
que se solidificou ao longo da história moral e política de geração para geração
(pragmatismo). Com estas noções centrais pode-se declarar com certeza absoluta
que é possível a defesa das liberdades constitucionais básicas, que são construídas
com base nos princípios de justiça fruto da posição original sob um véu da
ignorância em equilíbrio reflexivo amplo (wide ou full), no qual são endossadas pelas
diversas doutrinas morais abrangentes razoáveis em virtude da existência
legitimadora de um consenso sobreposto.
Mas mesmo diante de diversas doutrinas morais abrangentes razoáveis e
sendo elas a base da qual se partem os juízos morais endossados (e que
endossam) uma concepção política de justiça (e do Direito), convém lembrar que
alguns cidadãos mesclam em seus juízos morais as diversas doutrinas morais
abrangentes (quando da emissão daqueles), ou mesmo os misturam com os valores
políticos construídos, o que caracteriza uma não fixação com uma dada doutrina
abrangente específica. Isto de certo, para Rawls, é uma ação da psicologia moral
que “é na verdade benéfica, e ajuda a fazer com que um modus vivendi se
transforme com o tempo em um consenso sobreposto” (RAWLS, 2003, p.46-47). Ao
afirmar a passagem formal e substancial existente de um modus vivendi para um
consenso sobreposto, Rawls deixa claro sua noção a respeito da história da
humanidade: a crença inequívoca de que a mesma apresenta um progresso moral e
político que conduz à autonomia do ser humano. Neste sentido, é adequado
investigar em que dimensão se efetiva esta transição citada para que se possa
compreender a intenção do filósofo norte-americano no campo da justiça, da
moralidade e do Direito124.
Essas afirmações levam a argumentação a uma investigação acerca do que
são tanto o consenso sobreposto como o modus vivendi. Destarte, conforme já foi
asseverado, é claro que a proposta de um consenso sobreposto supera a noção de
um mero acordo entre as diversas doutrinas morais abrangentes com vistas a uma

123
De maneira limitada e independente.
124
Em vistas de uma fundamentação e aplicação deste elemento.
82

pacificação e aceitação simplista de uma coexistência superficial125. Rawls


claramente se refere a um acordo profundo, que penetra nas teorias morais
abrangentes razoáveis e estabelece uma nova regra do jogo político, ao mesmo
tempo em que é trespassada pelas mesmas. Tudo isso pode gerar a crítica no qual
se afirma que tal noção poderia parecer extremamente utópica, no qual não
existiriam de forma efetiva forças (políticas, sociais, morais e psicológicas) que
conduzissem a sua efetividade na realidade caso a mesma ainda não existisse, ou
para que esta buscasse uma estabilidade política em razão de sua existência. Em
suma, ou não se poderia desenvolver o consenso sobreposto126, ou em caso de sua
existência, a mera condição humana com todas as suas propensões em seus
diversos níveis de concretização não permitiria a sua permanência social.
O filósofo de Baltimore se posta contrariamente a tais visões levantando
argumentos que mostram como é possível imaginar um consenso sobreposto, o que
prova mais uma vez sua crença127 de que a sociedade como um todo caminha em
direção a uma melhoria moral e política com o passar dos anos. O exemplo que
pode ser argüido é o seguinte: em uma dada época, deve-se imaginar que uma
determinada concepção política liberal é tomada como algo bom e justo produzindo
excelentes resultados sociais, ou seja, os princípios de justiça são efetivados no
âmago de instituições sociais128, o que caracterizaria um simples modus vivendi em
que a efetivação destes princípios liberais pode ser correlacionada com o tema da
tolerância religiosa apregoada em épocas de Reforma protestante no século XVI
(RAWLS, 2003, p. 274). Em linhas gerais tais afirmações podem ser resumidas da
seguinte forma: em virtude da eterna contenda fundacionalista entre católicos e
protestantes e suas lutas físicas intermináveis, no qual não se consegue estabelecer
qual doutrina é detentora da verdade moral e política, fixa-se um acordo de não
agressão entre os sujeitos. Reluta-se a aceitação da doutrina de outrem mas há a

125
Um acordo limitado e raso pode ser visto na idéia de um modus vivendi, no qual “is a relation
analogous to a treaty between two contending nations, which is adhered to by each, not because
there is a common law and legal authority that each party accepts and that can enforce this law, but
because treaty‟s provisions are in the interests of each; but either party may withdraw from the treaty if
its view of those conditions changes” (WOLFE, 2009, p. 18). O tipo de argumentação que Rawls
busca se mostra bem distinta deste tipo de armistício exemplificativo, pois o filósofo norte-americano
busca algo duradouro, que possa resguardar os direitos e liberdades básicas de todos os cidadãos ao
mesmo tempo em que toda a sociedade demonstra avanços sociais (um mero modus vivendi não
consegue tais ambições de forma plena e estável.
126
O que relegaria tal idéia a um mero exercício de abstração filosófica ou mesmo a um simples
produto da imaginação.
127
Não como ato de fé, mas como ato racional.
128
Sem o objetivo de se espalhar para a vida particular de todos os indivíduos.
83

tolerância como limitação política. Adequando-se a última frase a realidade


brasileira, tal semelhança poderia ser cotejada com o caso da abolição da
escravidão de 1888, em que não era algo plenamente aceito na moralidade das
diversas doutrinas morais abrangentes que se mostravam claramente opostas a
uma integração racial nacional, mas tolerava-se a presença do negro como sujeito
formalmente livre em virtude de pressões internacionais pela sua libertação, bem
como por estes (futuramente) poderem representar de certa forma parte de um novo
mercado consumidor (interesses econômicos), guardadas as devidas proporções
com o exemplo rawlsiano.
Completando-se a apresentação até aqui conduzida, ao se ter um simples
modus vivendi não se consegue um acordo jurídico pleno e adequado para todos,
pois este apresenta a característica de um acordo provisório (na falta de um melhor):
ou se regressará a um estágio anterior em que uma doutrina moral abrangente
solapa outras, ou se avançará a um consenso profundo. No caso em tela, o modus
vivendi apresenta sua significação

em seu sentido usual, como no caso de um tratado entre dois estados cujos
interesses nacionais os pôs em conflito. Ao negociar um tratado seria sábio e
prudente de cada estado assegurar-se de que o tratado seja elaborado de tal
maneira a ser de conhecimento público que não seria vantajoso para nenhum
dos estados violá-lo. Ambos os estados, contudo, continuam dispostos a
perseguir seus objetivos ás expensas do outro, e se as condições se
alterarem, eles os farão (RAWLS, 2003, p. 274).

Deve-se agregar uma menção a respeito do exemplo citado da Reforma religiosa,


em que é obrigatório ser destacado que na época mencionada (século XVI) os
objetivos políticos eram basicamente esboçados por uma noção fundacionalista em
que era admissível descobrir (teoricamente) a verdade moral e política de um juízo
de valor. Com isso, se buscava precipuamente (entre os governos) a defesa ou a
promoção de uma dada religião (em detrimento de outra) tida como verdadeira, ao
passo que também era foco político a repressão (i) de formas religiosas que não
professassem a verdadeira religião (uma falsa doutrina) bem como de (ii) heresias.
Resultado de tal noção, a tolerância se adequava plenamente com o conceito
de modus vivendi conforme apresentado, não demonstrando oposição com a noção
de que se uma dada concepção de religiosa viesse a se tornar preponderante129 se
abandonaria facilmente a tolerância e se retornaria a um estágio de guerra entre
129
No número de adeptos ou na influência no poder político.
84

doutrinas morais abrangentes. Relativamente ao exemplo trazido sobre a situação


da escravidão no Brasil, como esta foi forjada á luz de uma preservação de uma
forte pressão externa para a sua abolição bem como para atender a interesses
econômicos e não por um entendimento claro de que todas as raças 130 são iguais e
livres131, ao cessarem as pressões internacionais e em não se obtendo grandes
lucros econômicos a escravidão poderia retornar. Não fosse assim, não existiriam
mais casos de discriminação racial no país. Obviamente que tal circunstância não
ocorreu nem em um caso nem em outro, pelo menos no plano político, pois
acontecimentos isolados (tanto de escravidão quanto de intolerância) perduram até
hoje: o fato de não haver um retorno a estágios anteriores, garante o progresso
moral e político (pragmatismo justificacional).
Como corolário, o Direito e os direitos dos cidadãos nesta etapa de modus
vivendi se mostram também como provisórios e instáveis, visto que não estão
submetidos a um tipo de acordo profundo sob princípios de justiça: funcionam
exatamente como a situação de armistício entre dois Estados, que é uma mera
suspensão da guerra e não uma situação de paz. Desta forma, os cidadãos não
possuem uma proteção efetiva de sua igual liberdade, um dos pressupostos para se
pensar (i) em direitos individuais132 e (ii) em direitos sociais que visam uma
(re)distribuição de renda133.
Pensando no movimento que representa o progresso moral e político da
humanidade tem-se o consenso sobreposto, que tem seu foco de ação a partir de
uma avaliação acerca da distribuição do poder em sociedade. Em outras palavras,
isso pode ser declarado na forma de que os cidadãos têm de asseverar uma
concepção política (sobre a justiça) “independente da força política de suas
concepções abrangentes” (RAWLS, 2003, p. 275). Um corolário lógico deste sistema
coerentista134 entre afirmações morais e adoção de uma dada concepção de justiça

130
Conceito não mais utilizado de forma unívoca, pois a biologia julga que não existem raças e sim a
espécie humana, mas que para a presente explanação de distinção entre negros e brancos – em uma
situação de escravidão – o termo se torna útil.
131
Não havendo distinção material e formal que faça com que um grupo de seres humanos possa
subjugar outro grupo.
132
Base do liberalismo político, ou seja, a independência moral e política do agente social perante a
sociedade, já devendo ser assentado que “o liberalismo político defende uma concepção política de
justiça auto-sustentável (freestandig view), isto é, não defende nenhuma doutrina metafísica ou
epistemológica, defendendo, apenas, valores políticos” (SILVEIRA, 2008, p. 88).
133
Que na teoria da justiça de Rawls são efetivados pelo princípio da diferença.
134
Relembra-se que “a teoria da coerência da justiça de Rawls, orientada no equilíbrio refletido, é
metodicamente completada pelo pensamento de uma escolha racional prudencial” (HÖFFE, 2005, p.
85

é que o Direito também deve apresentar um caráter autônomo frente a moralidade,


pois se ficar vinculado a uma dada concepção abrangente estará legislando sobre
direitos de um grupo (ou de grupos) em especial, não estabelecendo normas que
tenham a possibilidade terem validade universal e destinadas a todos os cidadãos.
O ponto central que pode ser deduzido destas idéias é uma questão que atormenta
a filosofia do Direito por tempos: o Direito pode se mostrar plenamente desvinculado
das concepções morais abrangentes? E mais, este pode se mostrar autônomo e
independente? Estas duas questões basicamente vasculham todos os tipos de
fundamentos que o Direito possa apresentar, e em linhas gerais são os objetivos do
presente trabalho.
O ponto nodal passa a ser a metodologia que deve ser desenvolvida para que
se atinja a passagem de um modus vivendi para um consenso sobreposto, com o
objetivo de provar sua viabilidade e sustentação no campo da estabilidade. Neste
sentido, “the stability of Rawls‟s theory of justice depends upon there being an affinity
between the political and the comprehensive” (GRAHAM, 2007, p. 136). Para tanto,
uma das partes fundamentais de investigação deve ser colocada nos termos de uma
descoberta acerca da relação entre uma concepção política de justiça e as doutrinas
morais abrangentes existentes em sociedade, que podem se apresentar de três
formas básicas: (i) uma total incompatibilidade entre estas; (ii) a concepção política
acaba por derivar integralmente de uma doutrina moral abrangente razoável; (iii) ou
a teoria da justiça não provém da doutrina moral abrangente, mas é compatível com
a mesma. Salta aos olhos que diante de tudo que foi mencionado, Rawls não adota
a postura de que sua justiça como eqüidade possa derivar de uma doutrina moral
abrangente, pois se ocorresse tal noção a mesma estaria viciada em sua
fundamentação. Mas antes de entrar no referido problema com estas relações
possíveis, fica claro que também o Direito deve responder a esta noção 135, pois uma
investigação adequada acerca dos fundamentos do mesmo, em Rawls, deve ser
posta nestes termos: (1) imagina-se um Direito independente da moral; (2) um
Direito que se harmoniza com esta; (3) ou um Direito que dependa desta.

33). Com isto, nota-se que alia-se o sistema procedimemental (representado pela noção de justiça)
com os juízos morais (desvendados por uma psicologia moral do razoável e por uma autonomia
racional prudencial), caracterizando o coerentismo moral-político rawlsiano.
135
Apesar de que este obedece a uma idéia de que o véu da ignorância fica menos espesso na
medida em que se obedecem a seqüências dos quatro estágios, que serão explicados no capítulo III,
(i).
86

Rawls declara que não há necessidade de se verificar especificamente quais


das opções relativas a relação entre uma concepção política e uma doutrina moral
abrangente razoável, é a adotada entre os posicionamentos possíveis. Isto se dá em
virtude da diversidade da natureza que as últimas apresentam, que são gerais e
abrangentes, admitindo graus de generalidade e de abrangência, e estes, por seu
turno, acabam influenciando de muitos modos em uma concepção de justiça; ou
esta, ainda, pode ser elaborada com vistas a promoção de uma dada doutrina moral
abrangente. Havendo muitas formas em que uma dada concepção política pode
realizar uma amálgama com uma doutrina moral (parcialmente) abrangente
razoável, pode-se afirmar que também existem diversas maneiras pelas quais esta
pode enfatizar aquela, pois há uma relação de interdependência. Com isso, no tema
proposto não se deve cair em um problema no qual não se obtém resposta: o
filósofo de Baltimore tão-somente deseja expor que o tipo de relação entre estas
esferas, na realidade, transcende a mera escolha de opções entre (i), (ii) ou (iii) –
presentes no parágrafo anterior –, que são reduzidas demais para abarcar a
complexidade do mundo das relações sociais.
Mas isto não exclui que ao se verificar a fundamentação de como se dá a
proposta rawlsiana acerca da justiça como eqüidade, seja averiguando um maior
grau de incidência de uma destas alternativas, pois se não fosse possível tal
apontamento cair-se-ia em um tipo de fundamentação que conduziria a certo
absurdo: qualquer opção seria viável, pois nada se pode descobrir acerca da
temática de forma precisa, o que conduziria a proposição de que tudo é aceitável
como proposta justificacional – relativismo. Isto não é o que não seria o desejo do
autor de Uma teoria da justiça. Mas diante da complexidade mencionada, em que se
possuem diversas formas de relação de uma doutrina moral abrangente e uma dada
concepção de justiça136 aliada a questão de que as pessoas apresentam juízos
morais que entram em contradição interna (com os seus próprios juízos) e externa
(com relação aos juízos de outras pessoas), o filósofo norte-americano crê que
nenhum cidadão vê uma ligação direta entre o tipo de doutrina moral abrangente
razoável que defende e uma dada concepção política 137. O que ocorre é que os
agentes políticos acabam reconhecendo uma teoria sobre a justiça como algo bom

136
Fruto da sociologia política e de uma psicologia moral.
137
Que este cidadão também defende.
87

em si mesmo138 e que, se houver incompatibilidade entre a noção de justiça e a


noção de bem do próprio agente, seria natural um mero ajuste na concepção privada
de bem, pois o justo representa um bem de forma pública com valores políticos mais
elevados que a idéia restrita de bem que um sujeito isolado possui.
Observando-se cuidadosamente, mesmo que Rawls defenda uma
impossibilidade de verificação prática do relacionamento entre uma concepção
política da justiça e uma doutrina moral abrangente devido a ampla gama de
espectros que deveriam ser verificados, fica claro que a noção de equilíbrio reflexivo
e de consenso sobreposto acaba por ofertar uma idéia que criaria uma quarta
alternativa: (iv) a noção de justiça depende em partes de doutrinas (parcialmente)
abrangentes para sua fundamentação mas é independente suficiente para existir em
sociedade139, ao mesmo tempo em que potencializa a existência de todas as teorias
razoáveis. Com relação a probabilidade maior de revisar as doutrinas morais
abrangentes em contrapartida a uma revisão de uma concepção política de
justiça140, cabe salientar que “esses ajustes ou revisões se dão lentamente no
transcurso do tempo à medida que a concepção política molda as visões
abrangentes para que se coadunem com ela” (RAWLS, 2003, p. 276). Com isso
fixam-se dois pontos de análise: um pautado pela realidade que encontra-se em
sociedade, guiado por uma noção fundamentada na história, na sociologia política e
na psicologia moral141 que são claramente representadas pelas opções (i), (ii) e (iii) a
respeito da relação entre doutrinas morais abrangentes e uma concepção política; e
outra noção calcada na proposta da justiça como eqüidade e seu tipo de modelo
ideal, que é a alternativa (iv), que usa do modelo racional e pragmático para sua
efetividade, algo que Rawls defende no campo teórico.
Em suma, o filósofo norte-americano está atento às contingências mundanas
quando defende a complexidade da relação entre doutrinas morais e uma
concepção política, mas, analisando sistematicamente, este não deixa de lado uma
proposta ideal de justiça que tem por escopo sua fundamentação teórica ao lado da
preocupação real de se investigar (indiretamente) o motivo pelo qual não se atinge
tal padrão normativo: para isso precisa-se do Direito como instrumento de
efetivação, na prática, da justiça e de seus princípios. Ainda na esfera da motivação

138
E não como algo correlato ou comparável a concepção de bem particular.
139
Não estando vinculada a nenhuma delas.
140
Opção que Rawls defende para casos concretos – realidade.
141
Esta última para averiguar a motivação dos agentes políticos.
88

dos agentes dentro de uma objetivação de um consenso sobreposto, cabe a


pergunta: quais seriam as razões, em virtude de valores políticos, que levam a
justiça como eqüidade a possuir adeptos que cheguem ao ponto de provavelmente
revisarem suas concepção de bem ao invés de uma modificar a concepção
política142? Uma opção poderia ser a seguinte: interesses privados, hábitos e
tradições, harmonia com o que é correto ou, conforme assevera Hart 143, um respeito
a um conteúdo mínimo fruto de uma lei natural? Obviamente que pensar em um
conteúdo básico de direitos de uma lei natural é tido como algo louvável mas carece
de uma fundamentação que leve em conta os avanços da lógica e da filosofia
analítica, como a questão de onde ancorar este ponto denominado lei natural? Em
Deus, na razão ou em qual outro local? Assim, Rawls poderia claramente
reconhecer os pontos benéficos de tal conteúdo mínimo, mas rejeitaria sua
legitimidade.
Logo, para responder a questão sobre os valores políticos que fazem com
que os cidadãos endossem uma concepção política, há de se ter em mente os
objetivos da mesma. Esta visa estabelecer os regramentos fundamentais das
instituições básicas, perfazendo de forma eficaz (em uma sociedade bem-ordenada)
três grandes exigências basilares para um Estado que apresente um regime
constitucional. Tais solicitações elementares nascem de um anseio que objetiva a
fixação dos seguintes pontos: (a) determinação de um conteúdo que agrupe direitos
e liberdades básicas para todos os cidadãos144; (b) tal noção precedente deve estar
vinculada de forma inequívoca, clara e razoável; (c) e a idéia de que uma razão
pública livre é capaz de fomentar de maneira clara o que se denomina de
cooperação em todos os seus níveis de generalidade e universalizabilidade, que são
as virtudes cooperativas (RAWLS, 2003, p. 276-77). Com a concretização de tais
exigências colocadas no âmago dos indivíduos e da sociedade, em que tais
restrições formais e materiais são atendidas perante um acordo profundo 145, tem-se
que ao valorizar tais pressupostos isto equivale a ofertar de forma integral e sem
instabilidade o apoio necessário a concretização da justiça como eqüidade.
Diante disso, os cidadãos

142
Posicionamento de Rawls.
143
Ver particularmente o capítulo IX de O conceito de direito.
144
Sem que essa esteja vinculada a uma regra da maioria, pois assim podem-se provocar
rompimentos de direitos de grupos de indivíduos.
145
Moral e político, ou seja, o consenso sobreposto.
89

passam a considerar que é tanto razoável como prudente afirmar seus


princípios de justiça como expressão de valores políticos que, nas condições
razoavelmente favoráveis que tornam a democracia possível, normalmente
preponderam sobre quaisquer outros valores que a eles se oponham. Tem-
se assim um consenso sobreposto (RAWLS, 2003, p. 277).

Mas mesmo diante da definição explícita do que seja o acordo profundo almejado (e
necessário) para a consecução real da justiça como eqüidade, o mesmo há de ser
exemplificado para que se possa deixar ainda mais translúcido tal conceito.
Destarte, o fato do pluralismo razoável, a partir da adoção de um modelo que
contenha três modos de conceber o plano político e a esfera das doutrinas morais
abrangentes, pode ser muito útil nos termos em que cada teoria moral razoável
declara uma determinada idéia acerca de si própria para que se estabeleça um
contrato com cláusulas válidas para todos, seguindo a seguinte visão:

um afirma a concepção política porque sua doutrina religiosa e definição de


liberdade credo conduz a um princípio de tolerância e defende as liberdades
básicas de um regime constitucional; o segundo afirma a concepção política
com base numa doutrina moral liberal abrangente como a de Kant ou de J. S.
Mill. O terceiro é apenas uma doutrina pouco articulada que abarca uma
ampla família de valores não-políticos além dos valores políticos de um
regime constitucional; e sustenta que, nas condições razoavelmente
favoráveis que tornam a democracia possível, os valores políticos
normalmente preponderam sobre quaisquer outros valores não-políticos que
possam entrar em conflito com aqueles. Apenas os primeiros dois pontos de
vista – a doutrina religiosa e os liberalismos de Kant e Mill – são bastante
gerais e abrangentes; o terceiro é frouxo e não sistematizado, embora em
condições razoavelmente favoráveis seja normalmente adequado para
questões de justiça política. Os dois primeiros pontos de vista mais
plenamente articulados e sistematizados concordam com os juízos do
terceiro nesses assuntos (RAWLS, 2003, p. 272).

Isto fica em conformidade com que o que já foi defendido: (a) que juízos morais não
muito compactos e não muito coerentes no plano interno146 podem ser os que mais
contribuem para o amplo acordo desejado, e (b) que ao se terem juízos que
pertencem ao terceiro ponto de vista e que pode representar a união dos dois juízos
precedentes, fica de difícil comprovação que tipo de relação possuem as doutrinas
morais abrangentes com uma concepção política de justiça, pois não se tem uma

146
A respeito do que um sujeito pensa sobre determinado assunto.
90

ligação umbilical entre o justo e um bem de marca coerente, sistemática e lógica,


somente com um tipo de bem disperso147.
Na parte precedente, que trata de uma idéia de que a fixação de um conteúdo
sobre as três exigências fundamentais para um regime constitucional deve ser algo
que a teoria da justiça como eqüidade necessita dar particular atenção, o ponto 148
que toca sobre a noção de que os direitos e liberdades básicas devem ser
elaborados de forma clara e inequívoca com o escopo de almejar uma
universalidade, há de se salientar que tal idéia não pode estar vinculada a uma
concepção de verdade, mas pensada nos termos de um confiabilidade pública: ou
seja, os termos e direitos dos cidadãos somente serão legítimos e aceitos
logicamente se passarem pelo crivo de uma razão pública (razoabilidade). Isto
lembra os pressupostos lógico-semânticos do agir-comunicativo de Jürgen
Habermas: a razão pública e o consenso sobreposto devem obedecer tais
premissas comunicativas básicas149. Neste ponto existe uma clara aproximação
entre Rawls e o filósofo alemão, pois é uma condição de possibilidade de uma
legitimação pública que os juízos de valor passem por tais restrições.
Realizada esta pequena digressão a respeito da legitimidade política, cabe
retornar ao exemplo elucidativo apontado como um caso típico de consenso
sobreposto150. Desta forma hipotética elucidativa podem-se depreender dois grandes
eixos que aprofundam ainda mais a compreensão deste mecanismo sólido de
justificação: em um primeiro momento há de se destacar que o ponto nodal do
consenso sobreposto, que nada mais é do que a busca por uma concepção política,
acaba carregando consigo uma idéia de moralidade151; no segundo momento é
adequado lembrar que ao trazerem para um acordo público determinadas razões
morais relativas às diversas doutrinas morais abrangentes razoáveis, aquelas
acabam por abarcar um conjunto de concepções sociais e relativas às pessoas,
princípios de justiça e noções que enfatizam uma promoção de atitudes que visam o

147
Que apresenta irregularidades, inconsistências – para um observador externo – e concepções
diversas em sua conjuntura interna.
148
A respeito de (b), na página anterior.
149
“1.1 A nenhum falante é lícito contradizer-se. 1.2. Todo falante que aplicar um predicado F a um
objeto a tem de estar disposto a aplicar F a qualquer outro objeto que se assemelhe a a sob todos os
aspectos relevantes. 1.3. Não é lícito aos diferentes falantes usar a mesma expressão em sentidos
diferentes” (PINZANI, 2009, p.131).
150
O que apresenta as três correntes de pensamento.
151
Que poderia gerar certa contradição em razão da proposta rawlsiana ser política, e não
abrangente.
91

ideal de cooperação, o que Rawls denomina de virtudes cooperativas. Estas últimas


nada mais são do que uma garantia evidente de que os princípios de justiça devem
extravasar em sua mera formalidade justificacional e entrar na vida de cada um dos
agentes políticos e no seio da sociedade: na etapa em que cada um dos cidadãos e
todas as instituições políticas reconhecem os princípios de justiça e agem segundo
seus ditames tanto em sua vida privada quanto pública, a justiça como eqüidade
completa seu ciclo justificacional e entra efetivamente na prática social.
Isso sugere que “um consenso sobreposto, portanto, não é um mero
consenso quanto à aceitação de certas autoridades, ou quanto à aprovação de
certos arranjos institucionais, baseado na convergência contingente ou histórica de
interesses privados ou de grupos” (RAWLS, 2003, p. 278). No entanto, é adequado
mencionar que ao repelir de sua proposta de acordo profundo as questões de
embasamento histórico quando da formulação do consenso sobreposto 152, Rawls
não está excluindo todo tipo de determinação da história, visto que os juízos morais
e as doutrinas morais abrangentes razoáveis (que sustentam estes) têm sua
legitimidade (pública) e se construíram através da história153. Em resumo, Rawls
estabelece duas grandes limitações com relação a história moral e política e que
serve não só para o consenso sobreposto mas sim para toda a justiça como
eqüidade, visto a participação que os juízos morais têm no equilíbrio reflexivo amplo,
na idéia de uma razão pública e no conhecimento que as partes têm de possuir
sobre as tradições de uma sociedade democrática, por exemplo, que seguem os
seguintes termos: (1) sobre a história moral e política que é contingente 154 , mesmo
que o filósofo norte-americano acredite em uma idéia de progresso nestes campos,
esta não é adequada para fundamentar princípios de justiça ou para se almejar um
acordo moral e político profundo, exatamente por estar baseada em fatos que estão
abertos a quaisquer mudanças sociais e políticas que possam ocorrer, dando
margem a certo relativismo155; (2) ao mesmo tempo a restrição histórica não é plena,
pois os juízos morais são dependentes das mudanças ocorridas em sociedade com
a ressalva de que para serem utilizados na justiça como eqüidade e serem base
152
No estabelecimento de cláusulas ou mesmo na determinação a respeito do quê se pode e se deve
acordar.
153
Isto aparece vinculado a noção de que a “a concepção política de justiça é extraída de dentro das
diferentes doutrinas, afirmadas pelos cidadãos, mas isto é feito „mapeando‟-se os valores políticos de
cada uma delas” (ARAÚJO, 1998, p. 216). Ou seja, tem-se uma dependência relativa para com as
doutrinas morais abrangentes: o limite é dado pelos valores políticos construídos racionalmente.
154
Sofre mutações ao longo do tempo.
155
O que não é o desejo rawlsiano.
92

(indireta) de um consenso sobreposto, devem necessariamente passar por um filtro


racional e razoável, capacidade esta presente em todos os agentes políticos e que
por fim se mostra na idéia de uma razão pública156.
Indo mais longe à análise do consenso sobreposto, é salutar destacar que o
apoio com relação a uma dada concepção política (no caso, a justiça como
eqüidade) deve vir do centro de cada doutrina moral abrangente razoável
trespassando pela publicidade de suas noções, ou seja, tal apoio deve vir da própria
natureza (histórica, sociológica e valorativa) de cada doutrina moral, ao mesmo
tempo em que esteja presente de forma independente e auto-sustentável na
concepção política de justiça157: com isso ter-se-á um Direito que leve em
consideração os juízos morais abrangentes razoáveis existentes em sociedade,
respeite a igual liberdade cada agente político, ao mesmo tempo em que é
plenamente autônomo para sua normatização. Como conseqüência, pode-se
declarar que o consenso sobreposto é aquela situação em que os cidadãos
portadores de juízos morais ponderados reconhecem-se como fazendo parte do
todo político e ao mesmo tempo de si próprios.
Aliado aos dois aspectos mencionados de que a concepção política apresenta
um viés moral e que a mesma é asseverada por razões morais com todos os seus
desdobramentos, deve-se adicionar a esta fórmula rawlsiana um elemento almejado
por ele durante toda sua construção teórica: a estabilidade158. Pode-se afirmar
cabalmente que a justiça como eqüidade rawlsiana está ancorada159 em três
grandes objetivos e noções fundamentais: (i) a idéia intuitiva de que a cooperação é
algo que produz os melhores resultados sociais160 – fruto de uma noção extraída das
teorias econômicas; (ii) uma concepção de pessoa em que estas possuem (ou
devem possuir) direitos invioláveis que nenhum acordo social amplo pode romper;

156
Para os propósitos da presente pesquisa, que visa uma elucidação acerca da aplicação dos
princípios de justiça no quarto estágio (judicial), é adequado lembrar que “num regime constitucional
com revisão judicial, a razão pública é a razão de seu supremo tribunal” (RAWLS, 2000, p. 281).
157
É salutar lembrar que “a idéia do consenso procede da política cotidiana em que a tarefa do
político é alcançar um acordo. A idéia do consenso sobreposto razoável está baseada na concepção
política de justiça, em que é elaborada primeiro como um ponto de vista independente que se pode
justificar pro tanto, sem considerar as doutrinas compreensivas” (SILVEIRA, 2008, p. 107).
158
Convém rememorar que “one conception of justice is more stable than another the more effective it
is in engendering a sense of justice” (GRAHAM, 2007, p. 130), demonstrando a interdependência
entre uma psicologia moral do razoável (que tem ligações com o senso de justiça) e uma
demonstração pública do que é a justiça por um viés pragmático (estabilidade).
159
N.ão de forma fundacionalista, mas de maneira que busca incessantemente tais objetivos.
160
Sem seguir Hobbes.
93

(iii) a busca por uma estabilidade política161 e social que possa permitir a execução
plena do ideal cooperativo com respeito aos direitos de todos os cidadãos: a
estabilidade agrupa as noções precedentes de forma a assumi-las e potencializá-las.
Em face desta busca incessante por estabilidade política social, na qual é a
melhor forma de garantir direitos e liberdades básicas para os indivíduos de uma
geração para outra, é absolutamente adequado lembrar a seguinte passagem:

Rawls says that a conception of justice is stable when, once realized in


political, economic, and social institutions, it generates forces that lead to its
own support. A well-ordered society is “inherently stable,” or “stable for the
right reasons” when the forces that support it are primarily its members‟ moral
motivations and sense of justice. A just and stable well-ordered society is one
regulated according to the correct conception of justice, which its citizens
accept, and also where they are motivated to conform to its requirements and
are motivated for good reasons (as defined by that moral conception of
justice) (FREEMAN, 2007, p. 244).

Com estas declarações, pode-se resumir a noção de estabilidade e sua relação com
os cidadãos, nos termos rawlsianos, da seguinte forma: “aqueles que afirmam as
várias visões que sustentam a concepção política não retirarão seu apoio se o peso
relativo de suas visões na sociedade aumentar e vier a se tornar dominante”
(RAWLS, 2003, p. 278). A questão fundamental é: por que razões os agentes
políticos não retirariam seu apoio, ou melhor, quais são as motivações morais que
fazem com que o consenso sobreposto seja mantido independente de mudanças
sociais no poder político? Obviamente que esta resposta é demasiadamente
complexa para ser respondida em poucas linhas, contudo pode se asseverar que os
motivos pelos quais os sujeitos acabam por resguardar o consenso sobreposto de
quaisquer ingerências de doutrinas morais abrangentes162 reside nas noções (i) e (ii)
do parágrafo precedente, em anexo com uma noção idealizada de pessoa vista
como livre e igual, racional e moral. Mas crê-se que uma resposta completa poderá
ser ofertada nas linhas subseqüentes deste capítulo, na qual trata-se de uma
psicologia moral razoável.
Mas qual vem a ser, então, o grande teste empírico que garante a existência
da estabilidade no cerne de um consenso sobreposto? Este se dá pela possibilidade
161
“O tipo de estabilidade requerido pela justiça como eqüidade baseia-se, portanto, no fato de ser
uma visão política liberal, uma visão que pretende ser aceitável para cidadãos considerados
razoáveis e racionais, bem como livres e iguais, e, por conseguinte, voltada para a razão pública
desses cidadãos” (RAWLS, 2000, p. 189).
162
Inclusive passando por um teste cobiça – não nos moldes de Dworkin –, em que mesmo que sua
teoria abrangente se torne dominante o consenso sobrespoto não é abalado.
94

racional (e efetiva) de se pensar uma dada mudança na ordem do poder político e


institucional, em que se o consenso sobreposto permanece o mesmo se mostra
estável e a justiça como eqüidade é afirmada de forma plena. Isto acaba por tornar o
elemento da estabilidade como o ponto fundamental de distinção entre um simples
modus vivendi e um consenso sobreposto. Se através de um teste de cobiça a
concepção política contratual se desfaz e uma dada doutrina moral abrangente
assume o poder político sem garantir o acordo profundo, tem-se o modus vivendi.
Disto pode ser discorrido que outro ponto nodal no que tange ao próprio consenso
sobreposto diz respeito a idéia de que o pluralismo razoável é algo permanente
dentro de uma noção de um regime constitucional democrático e que é pautado por
um liberalismo político. Buscando apoio na sociologia política e em uma psicologia
moral, Rawls acaba por elencar cinco fatos sociais presentes nas sociedades
democráticas contemporâneas e que se fazem de compreensão compulsória para o
desenvolvimento de um correto entendimento acerca do consenso sobreposto.
Portanto, utilizando tais conceitos e definições extraídas de fontes que
permitem uma interdisciplinaridade que materializa a abstração filosófica
representada pela justiça como eqüidade, o filósofo norte-americano pensa que a
noção do fato do pluralismo moral e político razoável não é algo passageiro mas sim
duradouro, o que conduz a mais um fator que corrobora o pensamento de que há
um progresso moral e político em sociedade: ao se abandonar o pensamento
dominante de que uma única doutrina moral abrangente pode deter o poder político,
o que gera uma política social excludente e opressiva, Rawls concorda com a noção
de que a sociedade pode viver em cooperação respeitando as concepções de bem
de cada indivíduo desde que estas sejam razoáveis163. Assim, uma definição de
pluralismo razoável pode ser ofertada da seguinte maneira:

nas condições políticas e sociais garantidas pelos direitos e liberdades


básicos de instituições livres, pode surgir e perdurar uma grande diversidade
de doutrinas abrangentes conflitantes e irreconciliáveis, mas razoáveis, caso
já não existissem. É esse fato das sociedades livres que denomino fato do
pluralismo razoável (RAWLS, 2003, p. 47).

O que deve ficar claro é que este primeiro fato é aquele no qual embasa a existência
positiva do liberalismo político em toda a teoria da justiça rawlsiana, ao passo que o

163
Respeitem os interesses de outrem no exato limite de onde termina o círculo virtual de direitos de
cada um.
95

fato da opressão (segundo fato social) é aquele no qual fundamenta negativamente


a justiça como eqüidade (para evitar as conseqüências deste, surge o liberalismo
político).
No tocante ao segundo fato social164, o fato da opressão, convém lembrar que
este é intimamente ligado ao fato do pluralismo razoável. Esta idéia da existência da
opressão em sociedade é fundamentada em Rawls a partir de exemplos históricos e
da racionalidade. No que tange a uma proposição teórica calcada em uma sociologia
política, o filósofo de Baltimore define que uma “adesão coletiva continuada a
apenas uma doutrina abrangente só se mantém pelo uso opressivo do poder de
estado, com todos os seus crimes oficiais e as inevitáveis brutalidades e crueldades,
seguidas da corrupção da religião, filosofia e ciência” (RAWLS, 2003, p. 47). Isto
surge como uma necessidade política de uma determinada comunidade: aqui se
verifica uma distinção cabal entre o liberalismo político e as doutrinas comunitaristas
expressadas por Alasdair McIntyre, Michael Sandel e Charles Taylor, em que estes
defendem que para se ter um conceito efetivo de justiça o agente deve estar
colocado dentro de uma participação em uma determinada noção de bem165. Mas
por que isto conduziria à opressão166? O problema é o pacote que se deve assumir
perante a determinação de que um conceito de bem deve fundamentar um de justo:
ao se imaginar esta situação, os cidadãos que não compartilharem da concepção de
bem dominante acabam por serem excluídos da comunidade ou da sociedade por
não se mostrarem como partes integrantes de um todo que mescla bem e justo.
Um exemplo que surge diante de tais afirmações diz respeito à defesa da fé
católica em plena Idade Média, no qual visou-se uma universalização da doutrina
moral abrangente do catolicismo. Com isso, o aparelho estatal acabou por
desenvolver formas e mecanismos para coibir aqueles que professassem doutrinas
religiosas contrárias (i) ao ideal católico romano ou (ii) àquelas ações que fossem
tomadas como heresias167, no qual o mais famoso deles168 foi a Santa inquisição. No
mesmo sentido, seguindo o mesmo ideal de universalização de uma dada doutrina
moral abrangente o nazismo seguiu os mesmos padrões mencionados ao fixar um

164
Da lista dos cinco fatos enumerados por Rawls.
165
A explicação pormenorizada deste aspecto encontra-se de forma clara em As teorias da justiça
depois de Rawls: um breve manual de filosofia política (capítulo 5) de Roberto Gargarella.
166
Visto que não existem posicionamentos expressos em que tais autores defendam isso, nem seria
razoável imaginar que estes seriam favoráveis a opressão.
167
Que não seguissem os dogmas cristãos como um todo.
168
Que englobou um conjunto de ações para oprimir os infiéis – lato sensu.
96

aparelho estatal que viesse a excluir determinadas raças humanas que não
representassem o ideal da pureza da raça ariana. Obviamente que com os exemplos
mencionados não se quer comparar a doutrina católica romana com o nazismo, pois
uma se mostra como razoável ao passo que outra é tida como não razoável para o
âmbito público, mas se deseja demonstrar que quando se pretende universalizar
uma concepção privada do bem os resultados podem ser os mais perversos
possíveis com os indivíduos que não compartilham de tal visão. Com isso, tanto a
Igreja Católica durante a Idade Média169 como a doutrina do nazismo se enquadram
como qualquer doutrina moral abrangente170, tal e qual as teorias morais de Kant e
Mill quando estas almejam tomar conta do campo político.
Além disso, deve-se declarar que o conteúdo de uma determinada concepção
de justiça qualquer é ofertada principalmente pelos fatos históricos com todas as
suas interpretações: a ênfase que se dá aos mesmos é diretamente proporcional ao
tipo de conteúdo defendido dentro de uma noção de justiça. Como corolário, no que
diz respeito a proposta de Rawls esta leva em conta a questão de que a opressão
estatal representa uma etapa de fundamentação negativa: para se fugir deste fato
desenvolve-se uma teoria da justiça contrária ao mesmo. Assim, pode ser declarado
que o liberalismo político é oriundo da Reforma religiosa (pragmaticamente falando)
e estabelece que outras doutrinas morais abrangentes podem existir e
concomitantemente coexistir de forma pacífica.
Rawls traz ainda a idéia de um terceiro fato social em que para se poder
possuir um regime democrático constitucional que seja duradouro, não perpassado
por eternas disputas sociais entre doutrinas morais abrangentes, há de se ter
obrigatoriamente um apoio que respeite a autonomia dos agentes políticos171 em um
contexto que seja respaldado pela maioria substancial dos cidadãos. Mas como
compatibilizar a afirmação de que Rawls refuta a regra da maioria em sua justiça
como eqüidade com esta declaração? A oposição perante a regra da maioria se dá
em razão de que as partes ao estabelecerem os princípios de justiça não podem
privilegiar uma maioria substancial, em razão da recusa de um utilitarismo clássico e
em virtude das restrições formais do véu da ignorância. Com o avanço nos estágios
169
Assim como protestantes, luteranos e todos aqueles que também se contrapuseram ao catolicismo
durante a Reforma religiosa, pois estes perpetraram crimes de igual monta contra aqueles católicos
que não aceitaram a crença protestante lato sensu como a verdadeira.
170
Com a ressalva distintiva da razoabilidade.
171
Para se pensar neste conceito de autonomia, se deve focalizar em uma idéia que respeite a
liberdade e sem coerção.
97

teóricos de aplicação dos princípios de justiça, em que se privilegia uma análise de


um constitucionalismo sem esquecer a realidade na qual a sociedade está
assentada, o mecanismo do véu da ignorância passa a ficar mais delgado 172 o que
faz com que se possa vir a aceitar uma regra de maioria substancial daqueles
agentes políticos que endossem uma concepção política independente 173. Neste
sentido é que se aceita uma regra da maioria na teoria da justiça de Rawls, no exato
momento em que esta fica sedimentada sobre uma concepção política, funcionando
como um mecanismo decisório de regulação política e legislativa, por exemplo. No
que diz respeito a um estabelecimento dos princípios de justiça, estes por serem
basilares de toda a construção de execução posterior174 não podem ser fixados
através de uma regra da maioria, pois esta pode vir a excluir indivíduos ou grupos
sociais que não compartilhem do que a maioria da sociedade deseja mesmo que
esta seja razoável: o filósofo de Baltimore busca uma defesa do interesse de todos
os cidadãos.
Frente ao que foi defendido cabe ressaltar que a união deste terceiro fato
junto com o fato do pluralismo razoável faz com que a justiça como eqüidade, para
que tenha legitimidade social, necessite de que vários agentes políticos
pertencentes a diversas doutrinas morais abrangentes razoáveis 175 endossem a
concepção política em tela para que a mesma represente uma possibilidade efetiva
de que possa existir um regime constitucional estável e duradouro. Há ainda um
quarto fato social geral no qual

a cultura política de uma sociedade democrática que tenha funcionado


razoavelmente bem durante um período considerável de tempo costuma
conter, pelo menos de modo implícito, certas idéias fundamentais a partir das
quais é possível elaborar uma concepção política de justiça apropriada para
um regime constitucional (RAWLS, 2003, p. 48).

172
Para uma boa explicação a respeito do tema, ver Rawls, de Samuel Freeman (capítulo 5 – p. 200-
09).
173
Esta autonomia da idéia de justiça deve ser vista em conexão com o fato do pluralismo razoável:
“numa sociedade pluralista, a teoria da justiça só pode contar com orientação, quando se limitar a
uma concepção pós-metafísica em sentido estrito, ou seja, se evitar tomar sentido na disputa entre
formas de vida e cosmovisões” (HABERMAS, 2003, p. 87).
174
Os estágios de aplicação dos princípios de justiça.
175
Ou aqueles que apresentam juízos morais complexos que mesclam diversas doutrinas morais ou
mesmo que não se filiem a um tipo específico de teoria.
98

Nisto fica claro o pragmatismo adotado por Rawls e como este faz uma recorrência
aos juízos morais ponderados e a uma noção de razão pública (presentes na citação
acima).
Antes de abordar o quinto fato social relevante para o pensamento rawlsiano,
é adequado fazer uma pequena análise sobre o que está por detrás de todos estes
quatro primeiros fatos em que se visa uma resposta para questões básicas: por
quais razões a diversidade moral deve ser estabelecida a partir de uma noção de
direitos e liberdades básicas? Ou ainda, por que o poder estatal luta (em alguns
casos) contra tal afirmação176? Em suma, qual é a passagem lógica necessária que
pode conduzir de uma noção de liberdade básica destinada a todos os cidadãos
para uma de diversidade177, e que pode encetar que o Estado venha a se intrometer
negativamente em tal conclusão? Tais respostas podem ser obtidas à luz de um
detalhamento amplo acerca dos dois primeiros fatos sociais (do pluralismo razoável
e o da opressão), pois estes estão intimamente ligados a tais questionamentos.
Destaca-se que qualquer explicação que se preste a detalhar estas perguntas deve
passar obrigatoriamente por uma espécie de psicologia moral no qual se pode
pensar que, por exemplo, as pessoas venham a defender seus interesses mais
egoístas que respeite a seguinte formulação lógica: diferentes pessoas conduzem a
diferentes interesses, que por seu turno levam a diferentes opiniões. Em
contrapartida, pode-se imaginar que as pessoas se apresentem como irracionais e
ilógicas quando emitem seus juízos morais o que traria a noção de que as opiniões
também se verificariam como distintas. Rawls classifica estas duas concepções
como infrutíferas para se responder as perguntas efetuadas em virtude de sua
simplicidade explicativa.
Em vistas de tal qualificação, a última pergunta deve mudar de tom e de
sentido, buscando-se investigar os motivos que conduzem os sujeitos em sociedade
a obterem um dissenso razoável que leve em conta os limites do juízo e as
restrições formais de justiça, e mesmo assim fazendo com que tal concordância se
mostre boa para todos dentro de idéias de cooperação. Para tentar compreender
tais elaborações teóricas há de ser ter em conta que “as fontes de desacordo
razoável – „os limites do juízo‟ – entre pessoas razoáveis são os muitos obstáculos
ao exercício correto (e consciencioso) de nossas faculdades de razão e julgamento

176
Em que tal contenda é capitaneada pelo fato da opressão.
177
Significada pelo fato do pluralismo razoável.
99

no curso ordinário da vida política” (RAWLS, 2003, p. 49). Logo, há então uma
listagem dos limites – obstáculos – que impedem os cidadãos de adotar uma
posição abrangente unânime e conduzem para um consenso sobreposto pautada
em um desacordo razoável, que podem ser resumidos da seguinte forma: (i)
existiriam fatos empíricos e científicos que estorvam uma análise unívoca acerca das
temáticas do cotidiano, o que faz com que a avaliação acerca de um simples juízo
moral se torne complexa o suficiente ao ponto de gerar um dissenso moral e político
(mesmo que razoável); (ii) pode-se chegar a um ponto concordante e unívoco em
uma cláusula do acordo, contudo a importância que o mesmo possui perante as
diversas concepções morais abrangentes respaldadas por noções empíricas e
científicas, faz com que haja discordância; (iii) como um pano de fundo geral os
juízos ou avaliações morais e políticas acerca dos mais diversos subgrupos que
existam sobre estes grandes eixos (moral e político) se mostram como que vagos e
não conseguem abarcar todas as explicações possíveis, o que faz com que aflore
um espectro que dê margem a revisões, eliminações ou afirmações dos juízos; (iv)
os julgamentos sobre alguns fatos sociais bem como sobre os valores políticos e
morais que existem dentro dos juízos de cada ser humano dependem diretamente
das experiências pessoais e sociais que os agentes políticos possuem, ficando claro
que estas diferem de sujeito para sujeito178; (v) e por fim, a sociedade e suas
diversas formas de expressão acabam por entregar para o corpo social distintas
avaliações normativas179 com pesos180 totalmente distintos ou até mesmo
antagônicos181.
Fica claro que este último obstáculo se dá em razão de que qualquer sistema
de instituições sociais é um campo extremamente limitado na questão dos valores
que o mesmo traz consigo, conduzindo a escolha182 de alguns princípios e valores
que se julgam importantes em detrimento de outros, o que traz a dificuldade da
fixação de quais valores e princípios devem ser prioritários em uma concepção moral
e de justiça: o que se reduz ao fato do pluralismo razoável. Ainda sobre a lista dos
cinco fatos gerais que Rawls elenca, tem-se que o quinto afirma que
178
Ao imaginar os cargos existentes, os distintos status sociais, as diferentes etnias, fica claro que da
maneira que os juízos dependem destes e de suas relações complexas com o mundo da vida,
aqueles se mostrarão também diversos.
179
Que pertencem ao campo do dever-ser.
180
Adotados quando dos fundamentos da argumentação.
181
Quando cotejados com outros julgamentos ou entre si mesmos no caso de uma contradição
interna.
182
Por opção teórica, fruto das experiências que cada um possui ou resultado de um todo complexo.
100

as condições em que muitos de nossos mais importantes juízos políticos,


envolvendo valores políticos básicos, são feitos torna extremamente
improvável que pessoas conscienciosas e plenamente razoáveis possam
exercer suas faculdades da razão de modo que todos cheguem à mesma
conclusão, mesmo depois de uma discussão livre e aberta (RAWLS, 2003, p.
50).

Assim sendo, ficam estabelecidos de forma clara quais são as principais objeções
pelas quais se têm o imperioso desacordo razoável, residindo tais fundamentos em
parte em uma noção pragmática acerca da natureza moral do Homem e na
sociologia política que explica os motivos pelos quais o poder político é algo tão
importante na determinação de um acordo profundo, e por outro lado no viés
racionalista e liberal que faz com que todos os juízos morais e políticos possam ser
afetados pela razão (teórica e prática) com o escopo de averiguar sua legitimidade
pública.
Contudo, deve ficar resguardado que este último fato (v) em que se afirma a
total impossibilidade de um acordo acerca dos valores políticos mesmo depois de
franco debate público não deve conduzir a afirmação de que o filósofo norte-
americano poderia estar defendendo um ceticismo ou mesmo um relativismo moral e
político. Deve-se deixar claro que a impossibilidade de se obter um acordo não traz
como conseqüência lógica as determinações expostas acima (ceticismo ou
relativismo): tal passagem não é obrigatória. O que Rawls defende é que diante das
comprovações lógicas e da filosofia analítica de que no campo dos juízos morais 183
se tem a impossibilidade de se obter um acordo pleno184, mesmo assim deve-se
buscar por uma objetividade dos mesmos pois sem esta se perde o critério de
avaliação moral e política, caindo-se em um subjetivismo: o que tem de se evitar é
certo historicismo contingencial no campo da fundamentação moral e política. Com
isso, fica evidente que o filósofo de Baltimore tão-somente mostra a dificuldade que
um acordo apresenta em virtude das condições nas quais as diversas pessoas com
capacidades racionais e razoáveis possuem, fruto da complexidade substancial que
os valores morais e políticos têm.
Destarte, aquela noção acerca dos limites dos juízos (obstáculos ao exercício
pleno das faculdades da razão) e suas conseqüências fazem com que fique

183
Que por sua vez fundamentam indiretamente os juízos políticos.
184
Em razão de que não se pode comprovar a verdade de quaisquer dos juízos mencionados,
políticos ou morais.
101

plenamente justificada a existência de um pluralismo razoável, chegando ao ponto


de levar tal afirmação a idéia de que é impossível extirpar plenamente o mesmo: o
pluralismo é algo permanente na cultura pública. Diante disto, há de se ter em mente
que uma concepção política que se preze deve angariar apoio suficiente de todos os
indivíduos185 para que de um consenso sobreposto186 se possa obter uma
justificação pública, o que garante a legitimidade acerca da justiça. Com isso, a partir
das determinações emanadas do pensamento rawlsiano pode-se declarar que duas
grandes conclusões surgem de todo este arcabouço conceitual: uma primeira diz
respeito ao tema do apoio real à uma concepção política e uma segunda trata da
idéia de um regime democrático.
Ora, no que tange ao apoio para com uma concepção política de justiça (no
caso em tela, a justiça como eqüidade) é adequado lembrar que diante da ampla
gama de juízos morais existentes em sociedade com suas diversas doutrinas morais
abrangentes razoáveis, não se tem certeza de um apoio efetivo para com uma idéia
de justiça conforme declara o filósofo de Baltimore:

não há garantia de que a justiça como eqüidade, ou qualquer concepção


razoável para um regime democrático, possa granjear o apoio de um
consenso sobreposto e, assim, subscrever a estabilidade de suas instituições
políticas. Muitas doutrinas são claramente incompatíveis com os valores da
democracia. Além disso, o liberalismo político não afirma que os valores
articulados por uma concepção política de justiça, a despeito de sua
importância básica, sobreponham-se aos valores transcendentes (como quer
que as pessoas os interpretem) – religiosos, filosóficos ou morais –, com os
quais a concepção política pode eventualmente entrar em conflito (RAWLS,
2003, p. 51-52).

Com estes termos tem-se uma limitação clara daquilo que pode pertencer a uma
esfera privada e aquilo que pode ser alvo de uma noção pública: o choque entre
uma noção de bem e uma noção de justo não pode ser simplesmente avaliada por
uma noção de grau em que um juízo pertencente a esfera política tem um valor
maior (e absoluto) que aquele adequado às concepções privadas de bem, pois
ambos devem estar ajustados para um acordo profundo. E esta noção não
pressupõe uma submissão de uma das esferas da vida em detrimento de outra187.

185
Ou de uma maioria substancial.
186
E dos indivíduos que estão inseridos neste.
187
A sobreposição do justo perante o bem é conectada unicamente na etapa de fundamentação da
política, e não como uma inserção opressiva perante os cidadãos.
102

Outra conclusão que se pode extrair de tudo que foi exposto é a que diz
respeito ao regime constitucional: a questão é que pode-se partir claramente de uma
idéia de que um regime constitucional democrático pode ser declarado como algo
razoavelmente justo e exeqüível; e que ao se terem tais pressupostos básicos frutos
de uma intuição racional188 o mesmo regime pode ser defendido, em que tal noção
deve estar adequada a uma concepção que toma o fato de que existem diversas
doutrinas morais abrangentes, e que as mesmas devem estar inclusas em tal regime
político. Mas declarar isso não implica que se deva fundamentar uma concepção
política de justiça189 no sentido de uma justificação que parta das doutrinas morais
abrangentes razoáveis, para em seguida se fundar um regime constitucional
democrático a partir de certo meio-termo obtido entre todas aquelas, obedecendo a
seguinte regra: das doutrinas morais se vai a uma concepção política. Isto seria
pensar que tanto o consenso sobreposto quanto a idéia de justiça estão diretamente
dependentes de um acordo que ache um ponto de equilíbrio entre as diversas
doutrinas morais abrangentes razoáveis, o que romperia com a independência que
uma concepção política qualquer (principalmente uma de cunho liberal político) deve
ter. É como imaginar que o ponto comum que diversas doutrinas morais
abrangentes razoáveis apresentam significa o consenso sobreposto, e que tal noção
deva ser alargada para embasar um regime constitucional democrático: dizer isso é
pensar em um acordo demasiadamente superficial e opressor com relação à
concepção de justiça.
O que deve ser feito, portanto, a fim de evitar tal mal-entendido, é pensar em
uma concepção política para um regime constitucional democrático 190 que possa
apresentar uma dupla valoração sistêmica: ser autônoma (independente) e que
possa ser efetivamente aceita e apoiada por todos os indivíduos razoáveis
(portadores de doutrinas morais abrangentes razoáveis). É essencial supor, para
isso, que se deve partir de uma premissa que argumenta que não se pode conhecer
nenhuma doutrina moral abrangente particular de cada cidadão, para que assim seja
possível conceber uma concepção de justiça (política): tal fundamentação estaria
calcada em uma noção que não apresenta vícios prévios para a construção de uma
idéia independente. Na prática, esta pode “ser apoiada por um consenso sobreposto

188
Resultado de análise detalhada de uma concepção de pessoa em uma sociedade cooperativa em
que os juízos ponderados são resultados do filtro da racionalidade lato sensu.
189
Com um regime político próprio coligado a este.
190
E todos os seus meios de estruturação.
103

de doutrinas razoáveis que seja duradouro, se as circunstâncias forem favoráveis e


houver tempo suficiente para que ela conquiste apoio” (RAWLS, 2003, p. 52). Como
conclusão, pode-se asseverar que uma sociedade bem-ordenada é aquela na qual
consegue se adequar com base em dois pilares básicos: um representado pela
natureza humana e outro fundando na solidificação de instituições políticas e sociais
que sejam plenamente executáveis. Se isto é cabível no âmbito da racionalidade, ou
seja, é possível que se pense em tal modelo estruturado na realidade 191, isto conduz
a aceitação de que há possibilidade para se pensar um modelo constitucional
democrático bem como o Direito que decorre do mesmo de forma distinta (ou
aprimorada) da que se tem em sociedade.
A fim de aclarar ainda mais a idéia de uma concepção política e o seu
referencial de legitimidade que é dado pelo consenso sobreposto, convém destacar
que a mesma não pode ser compreendida em seu sentido equivocado 192, devendo
ser entendida a partir de uma noção plenamente correta (sem vícios de construção).
Para tanto, há de se responder: qual é a visão equivocada e por quais motivos a
mesma se apresenta desta forma? Fica claro que a primeira parte da pergunta já foi
previamente exposta, contudo, cabem mais argumentos com relação ao segundo
questionamento e que serão expostos nas linhas que se seguem.
Quando se fala de uma concepção política de forma errada, ou seja, que não
serve para os parâmetros pelos quais se deve guiar uma idéia de justiça para todos
os indivíduos em uma sociedade de cooperação, esta deve ser pensada da seguinte
maneira: ao se afirmar um compromisso público entre cidadãos, para definir o que
seja o justo, estes não podem efetuar tal pacto de maneira (i) a defender interesses
políticos que já estão em pauta no jogo social nem (ii) firmar o acordo entre (ou a
partir de) doutrinas morais abrangentes razoáveis 193 com o escopo de que as
mesmas ofertem o apoio necessário para a sua durabilidade e efetividade social.
Esta última asserção pode gerar um acordo (assim como a primeira) mas não que
seja nos padrões que um consenso sobreposto exige, nem que seja apto para
engendrar uma concepção política tal e qual a justiça como eqüidade solicita.
Opondo-se a tal visão, a idéia proposta por Rawls é fundar uma teoria da justiça que

191
Tal e qual modelos de pesquisas científicas que pautam suas investigações a partir de locais
ideais, como exemplos em que se usam ambientes à vácuo para experiências físicas.
192
Aquele no qual se parte de um ponto comum entre diversas doutrinas morais abrangentes
razoáveis para que se funde uma idéia de justiça.
193
As não razoáveis nem merecem menção por questões óbvias.
104

seja autônoma e independente “dos mais importantes valores (morais) que se


aplicam às relações políticas” (RAWLS, 2003, p. 268). Com isso, fica claro que a
independência de uma da concepção política também tem de ser livre dos
impedimentos que os limites que uma razão pública pode carregar consigo, mesmo
que receba informações desta fonte: é independente na medida em que não
prescinde dos juízos morais relevantes mesmo que faça uso dos mesmos, o que é
resultado de um pragmatismo político.
Portanto, com o escopo de angariar apoio de todos os indivíduos de forma a
não estarem vinculados a uma noção que se fundamente pelas doutrinas morais
abrangentes razoáveis, deve-se averiguar a metodologia a ser utilizada para que tal
noção se concretize. Devendo-se fugir deste mínimo comum entre tais doutrinas
morais194 o que deve ser reforçado é um ideal que pode ser exemplificado pelo
modelo de listagem mínima de bens primários (que nos dizeres de Dworkin são bens
primários de cunho social), e que ainda abre margem para que seja efetuada de
duas formas: pela maneira errada e pela forma mais correta. Na primeira forma de
proceder pode-se partir de uma noção que abarque aquelas intuições comuns
mínimas encontradas em todas as doutrinas morais abrangentes razoáveis, e assim
atuar com esta lista englobando todas as doutrinas morais existentes, o que
redundaria em “um tipo de média do que aqueles que afirmam estas visões exigiriam
a título de direitos e reivindicações institucionais e meios polivalentes” (RAWLS,
2003, p. 269). Isto, de certa forma, poderia garantir a estabilidade social almejada,
mas a custo de um acordo não autônomo e que não se mostraria tão sólido em suas
bases de execução pois dependeria em parte de como o poder político está
distribuído e como será repartido no futuro: ao mudarem as forças políticas195 pode-
se ocorrer uma derrocada do acordo entre as diversas doutrinas morais
abrangentes, pois aqueles que assumem o poder podem rejeitar aquele mínimo
comum e obrigar a sociedade a aceitar a sua concepção de justo, que deriva de uma
de bem196.

194
Para o embasamento de uma concepção política de justiça.
195
Uma doutrina moral abrangente consegue um maior número substancial de adeptos e acaba por
tomar conta do poder político.
196
Isto poderia ser exemplificado (com o sentido de ampliar a visão a respeito de um tipo de doutrina
que deve ser refutada, apesar da busca pela estabilidade) através da concepção hobbesiana e dos
motivos pelos quais a mesma é rejeitada pela justiça como eqüidade: “Hobbes‟s conditions for
stability are decidedly non-liberal and anti-democratic. While an absolute sovereign might provide us
with sufficient reason – or sufficient motivation – to comply with justice, it does not provide good
reasons to comply. In Rawls‟s terms, absolute sovereignty does not provide “stability for the right
105

Mas isto não impede que a mesma lista de bens primários seja elaborada de
forma correta197, bastando que a justiça como eqüidade seja fundada em vistas de
uma independência da mesma e com base em uma idéia intuitiva de que a
cooperação produz os melhores resultados sociais, vinculando os bens primários a
estas noções basilares. E desta maneira ter-se-á a única forma de obter um acordo
profundo, ou seja, um consenso sobreposto. Assim, as doutrinas morais
abrangentes razoáveis que existem ou que virão a existir não podem servir de
fundamento único para a justificação de uma concepção política, em razão de que
isso conduziria a dependência da mesma para com aquelas. Logo,

a idéia não é a de que os bens primários sejam eqüitativos para concepções


abrangentes de bem associadas a tais doutrinas pelo fato de conseguirem
um equilíbrio eqüitativo entre elas, mas antes que sejam eqüitativos para
cidadãos livres e iguais como aquelas pessoas que afirmam essas
concepções do bem (RAWLS, 2003, p. 269).

Desta maneira, ficam claras as distinções entre o tipo de concepção política adotada
por Rawls e o modelo que deve ser rejeitado.
Disto decorre que o ponto nodal de legitimidade passa a ser como viabilizar
um apoio para com uma concepção liberal que apresenta tais níveis de profundidade
e de independência, visto que há a eterna presença de um fato do pluralismo
razoável que pressupõe a existência de doutrinas morais abrangentes razoáveis, o
que leva o acordo a um determinado vício de origem caso este seja pautado por
determinações fundacionalistas (de doutrinas morais abrangentes): tudo isso para
com um regime democrático constitucional. Deve ficar evidente que Rawls acaba
optando por uma maneira que agrupe duas grandes esferas de atuação sistemática
para viabilizar sua proposta, quais sejam, as noções que devem ser guiadas por
uma sociedade democrática: pessoal ideal198 e uma intuição mitigada199 de que a
cooperação é algo bom. Isto, de acordo com pensamento rawlsiano, deve estar em
conformidade com a independência que uma concepção política de justiça deve

reasons.” To begin with, unrestricted sovereignty conflicts with the basic liberties protected by any
liberal and democratic conception of justice. Moreover, the primary motivations reasonable and
rational individuals have for abiding by laws of justice should not be external coercion; rather justice
should in some way be compatible with human nature and conducive to individuals‟ interests
independent of its coercive background” (FREEMAN, 2007, p. 246-47). Logo, o sistema de Hobbes é
rejeitado muito mais pelo fato de que a imposição – fato da opressão – é algo ruim e que deve ser
rejeitado, do que pela noção de que esta teoria se funda em uma idéia de bem para embasar o justo.
197
No entender de um liberalismo político.
198
Livre e igual, racional e moral.
199
Por si mesma e pelos seus resultados sociais.
106

possuir, sem pressupor a participação efetiva de nenhuma doutrina moral


abrangente razoável mas sem excluir a possibilidade de que estas venham a
participar da cultura pública200.
Indo mais fundo na justiça como eqüidade e no tema contratual, deve-se
deixar claro que uma questão permanece: por que se deve aderir ao consenso
sobreposto? Uma melhor colocação desta pergunta: quais são os motivos
subjacentes nos cidadãos que fazem com que estes venham a endossar a
concepção política de justiça201? Para tanto, a fim de averiguar as motivações
morais há a necessidade de que se investigue uma psicologia moral do razoável,
pois sem esta ferramenta de elucidação, a raiz de tal questão não será atingida. Já
ficou claro que se pode, com o tempo, partir de um mero modus vivendi e atingir um
consenso sobreposto em razão da obtenção de determinados estágios políticos nos
quais não se desejará retornar202, ou mesmo em virtude de que um acordo profundo
é algo desejável em razão de sua estabilidade (com relação ao poder político), ou
ainda por que o consenso sobreposto é o único acordo profundo que consegue
efetivamente proteger todos os direitos de todos os cidadãos. E este ponto é
particularmente interessante para a justiça como eqüidade pois o consenso
sobreposto é o que dota de legitimidade a proposta rawlsiana, ou seja, ao se
estabelecer que tal idéia acerca da justiça é viável, Rawls rebate a crítica que
assevera que sua teoria é utópica (não realizável). Para tal intento se deve averiguar
as bases de fundamentação do acordo, que incluem as motivações morais dos
agentes políticos203.
É adequado lembrar que o nome de uma psicologia moral razoável, e não
somente a noção de uma psicologia moral é pressuposto e “apropriado já que a
idéia de reciprocidade aparece tanto como princípio que lhe dá seu conteúdo quanto
como disposição para responder de maneira semelhante” (RAWLS, 2003, p. 279).
Isto tudo parte de um fundamento calcado na noção mais elevada de igualdade que
apresenta o duplo desdobramento da razão, qual seja o do sujeito ser racional e

200
Ao mesmo tempo em que acabam revisando, refutando ou afirmando seus pressupostos, as
mesmas podem também vir a engendrar concepções que possam vir a reformular os princípios de
justiça, desde que não se partam das doutrinas morais abrangentes para tal noção, e sim da idéia
política de justiça que é alimentada em parte pelos juízos de valor de pessoas razoáveis.
201
Visto que os mesmos poderiam criar idéias de justiça a partir de suas próprias concepções de
bem, mesmo que estas não sejam políticas no sentido literal.
202
Repúdio à escravidão e tolerância religiosa, por exemplo.
203
Visto ser esta uma proposta liberal na qual existe uma independência do próprio sujeito perante o
Estado, podendo submeter tudo ao exame da razão – seguindo Kant.
107

razoável, podendo-se declarar que “o razoável engendra a si mesmo e envolve


responder de maneira semelhante” (RAWLS, 2003, p. 279). Mas esta é a versão
resumida do que seja a igualdade pretendida por Rawls, pois seu conceito literal
aclara ainda mais seu posicionamento e a participação do mesmo no seio de uma
psicologia moral, qual seja, o de que em uma sociedade bem-ordenada os cidadãos
são vistos de forma igual nas questões mais basilares204. Destarte,

a igualdade está presente no seu mais alto grau no fato de que os cidadãos
se reconhecem e se vêem uns aos outros como iguais. Ser o que eles são –
cidadãos – inclui o fato de eles se relacionarem como iguais; e se
relacionarem como iguais faz parte tanto do que eles são como daquilo que
os outros reconhecem que eles são (RAWLS, 2003, p. 186).

Sem adentrar nos pormenores da igualdade que já foram atacados no capítulo II,
(iii), a psicologia moral razoável, então, se coloca como a peça que possibilita
através de suas características intrínsecas afirmar que existem duas capacidades
morais nos cidadãos, em que os mesmos são capazes de racionalidade e de
razoabilidade ao mesmo tempo em que se mostram plenamente aptos para
cooperarem.
Disto decorrem cinco grandes conclusões sistemáticas que buscam a
unificação da investigação acerca da psicologia moral razoável: (i) pode-se
asseverar claramente que todos os cidadãos são capazes de possuir uma noção de
bem e uma noção acerca do justo estando aptos a agirem nestes padrões, ou seja,
os sujeitos se mostram como racionais e razoáveis; (ii) diante da evidência de que
existam práticas sociais e instituições sociais justas (eqüitativas), estabelecidas por
princípios de justiça construídos racionalmente por um modelo que permita com que
todos concordem com estes de forma livre e autônoma (sem serem compelidos),
tem-se a noção de que todos devem passar a colaborar para o pleno
desenvolvimento desta estrutura desde que estejam resguardados de que os outros
cidadãos também cooperarão205. Isto pode ser colocado através da seguinte
passagem:

pessoas razoáveis são aquelas dispostas a propor, ou a reconhecer quando


outros os propõem, os princípios necessários para especificar o que pode ser
considerado por todos como termos eqüitativos de cooperação. Pessoas

204
Sua participação política, direitos e liberdades fundamentais e deveres cooperativos no exato
limite do âmbito político.
205
O que é uma representação implícita do modelo da razoabilidade.
108

razoáveis também entendem que devem honrar esses princípios, mesmo à


custa de seus próprios interesses se as circunstâncias o exigirem, desde que
os outros também devam honrá-los. É insensato não estar disposto a propor
tais princípios, ou não honrar termos eqüitativos de cooperação que, espera-
se, os outros possam razoavelmente aceitar; é pior que insensato quando a
pessoa apenas parece ou finge propô-los ou honrá-los, mas está disposta a
violá-los em benefício próprio assim que a ocasião o permitir (RAWLS, 2003,
p. 9).

Colocados nestes termos, fixa-se de maneira clara o tipo de disposição de boa


vontade que os cidadãos razoáveis apresentam para com a cooperação em uma
sociedade bem-ordenada, resguardadas as garantias de que todos os sujeitos são
livres e iguais, racionais e razoáveis206.
Ainda cabe lembrar que outras características fundamentais presentes na
psicologia moral razoável, seria (iii) que quando há esta intenção manifesta que
todos devem cooperar em uma sociedade bem-ordenada, e todos realmente
praticam os termos estabelecidos pelos princípios de justiça em sociedade, isto
acaba gerando a circunstância de que todos acabam desenvolvendo, de forma
profunda (moral e política), uma confiança que perpassa todos os cidadãos. Isto
acaba sendo um elemento fundamental presente na psicologia moral razoável, ou
seja, o fato de responder à eqüidade dos outrem na mesma medida retributiva, o
que garante uma legitimidade (para os propósitos da justiça como eqüidade) no
âmbito das relações entre as pessoas . Ainda no tocante aquilo que deriva das
premissas esboçadas acerca da psicologia moral razoável, convém lembrar que (iv)
quanto mais tempo durar a cooperação207 e quanto maior for o reconhecimento de
que as instituições sociais são justas (equânimes), maior será a confiança
demonstrada no item (iii). Vale lembrar que a idéia de instituições sociais justas está
de acordo com o conceito idealizado de pessoa, pois aquelas devem defender os
interesses básicos destas, quais sejam, os direitos e liberdades básicas.
Acresce-se que há um aspecto a ser tratado como parte integrante da
psicologia moral razoável e que deve ser depreendido de uma história social e moral
compartilhada entre todos em sociedade, ou seja, (v) todos os agentes políticos
acabam por reconhecer a existência de um fato do pluralismo razoável, sua

206
Fica claro que é muito mais fácil ser adepto da cooperação quando se sabe que os outros
cidadãos também cooperam.
207
E esta for concretizada por todos os membros da sociedade ou pelo menos por uma maioria
substancial, visto que não fica descartada a existência de pessoas que professem juízos morais não
razoáveis ou mesmo que não desejem cooperar socialmente – por exemplo, o ato de somente
praticar esportes para seu prazer individual e não trabalhar visando seus interesses e o bem-estar da
sociedade.
109

permanência em sociedade208 e que a grande oposição ao pluralismo razoável (o


fato da opressão) deve ser algo a ser evitado se a concepção política deseja
efetivar-se de forma eficaz. Com o que foi exposto de forma ampla, é notório e
sensato admitir que os limites do juízo devem ser aceitos de forma plena, fechando
desta forma o círculo argumentativo rawlsiano209. Por fim cabe lembrar que se deve
reconhecer como parte integrante das raízes históricas nas quais a sociedade está
imiscuída210 a questão de há uma escassez moderada dos recursos sociais e
naturais, aliado a noção que garante inúmeras possibilidades de lucros frutos da
cooperação social, com a única e imperiosa condição de que as instituições sociais
que regulam tais estados cooperativos, bem como os cidadãos que participam
desta, devem estar regulados por termos eqüitativos. A situação que foi trazida à
baila sobre tais fatores, condicionantes e condicionados de uma psicologia moral
razoável, permite com que seja afirmado por Rawls que tais fatos gerais extraídos
de uma herança política democrática ocidental, formem a base de sustentação das
circunstâncias da justiça política.
Com tudo isso que foi exposto pode-se agora intentar obter uma resposta
mais efetiva para a pergunta que suscitou a análise da psicologia moral razoável no
presente capítulo, qual seja, a que busca uma resposta pelos motivos pelos quais
um cidadão adere ao consenso sobreposto, ou em outras palavras, buscar razões
pelas quais o consenso sobreposto é aceito por todos e visto como uma evolução
derivada de um modus vivendi. A chave desta questão principia pela noção de que
as doutrinas morais abrangentes não se mostram efetivamente tão abrangentes
como se pensa, sendo classificadas como parcialmente abrangentes, e

isso abre espaço para o desenvolvimento de uma lealdade independente a


uma concepção liberal se a maneira como ela funciona for aprovada. Essa
lealdade independente, por sua vez, leva as pessoas a agirem com intenção
manifesta em conformidade com arranjos liberais, já que têm a certeza
razoável (fundada, em parte, em experiências passadas) de que os outros
também cumprirão com suas exigências (RAWLS, 2003, p. 281).

208
Em vistas da intuição de que há um progresso moral e político em sociedade.
209
Os limites do juízos são aqueles representados por questões como: juízos empíricos e científicos
são de difícil avaliação em virtude de sua complexidade; mesmo concordando sobre algo, pode-se
discordar de nuances cruciais; conceitos morais e políticos se apresentam de forma vaga, o que gera
indeterminação; valores políticos e morais são resultados de experiências reais em que as mesmas
diferem de indivíduo para indivíduo, o que gera avaliações distintas sobre um mesmo tema; e existem
distintas formas de normatização, cada qual com sua perspectiva razoável, o que implica dificuldade
de avaliação.
210
Notadamente de herança democrática pois se tratam de sociedade plurais, liberais e ocidentais.
110

Desta forma, aumentando a confiança, aumenta-se o grau do acordo, o que acaba


garantindo direitos e liberdades de todos os cidadãos211 e faz com que em uma
sociedade ideal se mantenha a cooperação. Isto tudo acaba por conduzir a uma
intenção de autonomia em que todos os cidadãos (ou uma maioria substancial) vem
a concordar com o liberalismo político e filosófico em virtude da capacidade que os
sujeitos possuem de serem razoáveis e daquela certeza de que os outros cidadãos
também farão o mesmo: endossam a concepção política liberal, seguem os
princípios de justiça e as instituições estão fundadas e em plena execução em prol
de uma sociedade bem-ordenada212.
Há com isso o fato de que “a descoberta de uma nova possibilidade social, a
possibilidade de uma sociedade pluralista e democrática razoavelmente harmoniosa
e estável, decorre do sucesso das instituições sociais” (RAWLS, 2003, p. 281). Tal
sucesso é imputado pela construção filosófica (e também religiosa) de uma idéia de
tolerância no âmbito das instituições eclesiásticas, e que é exemplificado por Rawls
na clássica menção no qual somente era possível pensar durante séculos na
intolerância religiosa, em que a política estatal era a de definir a religião verdadeira e
aquelas que não compartilhassem de tal noção eram tidas por falsas, hereges,
imorais e ilegais, nos quais os seus defensores sofriam todos os tipos de opressões
imagináveis: a intolerância repetida ao longo dos anos indicou que as pessoas
devem aderir a uma única doutrina moral abrangente razoável. Mas destaca-se que
ao enfraquecer esta visão com o advento da tolerância religiosa e limitação do
campo de ação estatal213, consegue-se imaginar (ou pleitear racionalmente e na
práxis) a possibilidade de uma sociedade constitucional democrática que respeite
todos os cidadãos. Com isso tem-se a necessidade do estabelecimento de um tipo
de Direito que reforce tais aspectos materiais e formais até aqui demonstrados, que
fortaleça a justiça como eqüidade e que fixe sua atenção nas diversas formas de
possibilidade de vida dos cidadãos racionais214, levando em consideração a questão
da fundamentação do consenso sobreposto, ou seja, um Direito que se mostre
independente e autônomo com relação as doutrinas morais existentes (em sua

211
Foco da justiça como eqüidade e do que pode-se depreender como um objetivo de efetividade de
um Direito de cunho liberal.
212
Lembrando que o fato de que outros cidadãos fazem o mesmo que um indivíduo endossa – justiça
como eqüidade – traz como conseqüência que se aumente a confiança em razão da cooperação
política.
213
Notadamente fruto de um liberalismo político.
214
Doutrinas morais abrangentes razoáveis e sua convivência harmônica.
111

elaboração) e vinculado a uma proposta de justiça liberal que leve em consideração


os limites que o juízo apresenta.
Por conseguinte, “precisamente por não ser geral e abrangente, uma
concepção política de justiça (por exemplo, a teoria da justiça como eqüidade) pode
estimular a eventual transformação de um mero modus vivendi para um consenso
sobreposto” (RAWLS, 2003, p. 281-82), aliado ao fato de que estão presentes em
nossa capacidade racional e razoável as cinco grandes características de uma
psicologia moral acerca dos agentes políticos (já mencionadas), que lhes oferta a
sustentação necessária para se compreender a motivação moral das partes quando
da escolha dos princípios de justiça bem como dos cidadãos quando estes têm em
vista a obtenção de um acordo profundo. Ao tratar desta concepção política, um
argumento que reforça tal visão diz respeito a questão de que ao apresentar um viés
mais restrito de atuação215 em anexo com a maleabilidade dos juízos encontrados
nas diversas doutrinas morais abrangentes, há a possibilidade de se pensar que o
apoio dispensado para a justiça como eqüidade se mostre de simples execução216,
fazendo com que em caso de conflito aparente entre normatizações 217, se deva
recorrer à sua solução com base no liberalismo político218.
Expondo tais assertivas de forma pormenorizada, equivale a dizer que

religiões que outrora rejeitaram a tolerância podem vir a aceitá-la, e a afirmar


uma doutrina de liberdade de credo; os liberalismos abrangentes de Kant e
Mill, embora considerados apropriados para a vida não-pública e como
possíveis bases para a afirmação de um regime constitucional, já não são
propostos como concepções políticas de justiça (RAWLS, 2003, p. 282).

Todos estes são tidos por Rawls como propostas fundacionalistas219.


Complementando o que foi trazido até o presente momento, pode-se concluir que o

215
O liberalismo político se volta precipuamente para o plano público.
216
Em razão do nível de desenvolvimento intelectual no campo do liberalismo filosófico que a
sociedade ocidental hodierna se encontra com relação a tolerância religiosa, por exemplo, mesmo
que existam casos de intolerância neste campo (casos isolados que destoem do razoável, dentro do
fato do pluralismo moral, sempre existirão).
217
Entre doutrinas morais abrangentes razoáveis ou entre estas e a concepção política de justiça.
218
Conflito entre doutrinas morais se resolvem à luz da justiça como eqüidade e sua carga
principiológica; choque entre determinações de uma dada doutrina moral e a concepção política,
deve-se ajustar a doutrina moral abrangente com base no critério de justiça independente, pois este,
em razão desta característica central de independência é construído sem os vícios de uma opinião
particularista – ao se falar de justiça se fala para todos e não para um grupo específico – em que tais
noções públicas têm a peculiaridade de ser um processo que se estende por gerações.
219
Mesmo que existam kantianos que defendam que a unidade da razão exclui tal classificação – o
factum da razão é ponto de fixação da crítica rawlsiana, em que o mesmo é o alicerce de
fundamentação última da moral no filósofo de Königsberg.
112

consenso sobreposto é fruto de uma razão pública alicerçada em longos anos de


movimentos progressivos que avançam e recuam politicamente, em vistas de um
progresso moral e político que busca uma noção de justiça que possa ser executável
em defesa do interesse de todos os indivíduos, construída racionalmente e levando
em consideração as contingências históricas220 mas estando independentes perante
as mesmas. O mesmo deve ser perpassado para o Direito, pois o mesmo tem de
estar vinculado em última análise aos princípios de justiça que são a base material
de um consenso sobreposto.

3.5 Sobre a democracia constitucional

Seguindo a análise acerca do tema da seqüência dos quatro estágios, que


representa a proposta rawlsiana de aplicação dos princípios de justiça na realidade,
convém mencionar uma distinção avaliada como fundamental para que se
compreenda sobre quais pilares está assentado tanto a justiça como eqüidade
quanto a mera aplicação principiológica. É corriqueiro afirmar que o tipo de
liberalismo encontrado em Rawls se mostra de marca democrática e constitucional.
Todavia, há outro tipo de democracia que pode figurar como um padrão de aplicação
dos princípios de justiça mas que não é adotado pelo filósofo norte-americano, e que
diz respeito a democracia procedimental. Neste sentido, é auspicioso analisar os
motivos que levam o filósofo de Baltimore a se afastar deste modelo e tomar a
democracia constitucional como aquela que pode albergar da melhor maneira a sua
concepção política de justiça. Assim sendo, as linhas seguintes travarão o amplo
duelo teórico-prático entre os dois tipos democráticos possíveis para um Estado e
que apresentam conseqüências diretas sobre os quatro estágios de execução dos
princípios de justiça, bem como no âmbito da formulação daquilo que se pode
compreender por Direito na teoria da justiça rawlsiana.
Neste sentido, uma primeira distinção a ser alavancada trata de uma
qualificação que não necessariamente é encontrada em uma democracia
procedimental, qual seja: a democracia constitucional parte da premissa de que há a

220
Pois os juízos morais e políticos, intuições e as idéias atinentes a concepção de pessoa e das
instituições sociais são resultado de longo processo histórico.
113

necessidade desta ser solidificada pela existência de cidadãos-proprietários221.


Colocados nestes termos, pode-se definir um regime constitucional como “aquele
em que as leis e estatutos têm de ser coerentes com certos direitos e liberdades
fundamentais, por exemplo, aqueles abarcados pelo primeiro princípio de justiça”
(RAWLS, 2003, p. 205), em que o foco passa a ser direcionado para uma aplicação
e efetividade dos princípios através de decisões emanadas dos tribunais à luz de
uma interpretação constitucional de todo sistema jurídico222 (já se vislumbra como o
Direito pode ser visto em Rawls). Como contraponto conceitual e prático, tem-se a
democracia procedimental, que apresenta as seguintes características
fundamentais, opostas ao primeiro modelo: (i) apresenta como idéia fundamental o
fato de que a mesma não deve apresentar limite constitucional à produção
legislativa; (ii) a obediência estrita a uma regra da maioria para a produção da lei,
ressalvada a evidência de que necessariamente o procedimento deve ser adequado
com o objetivo intentado. Com relação específica a parte teórica da justiça como
eqüidade, o quê Rawls repudia da democracia procedimental?
Neste ponto se podem mencionar os seguintes elementos que são opostos a
tal noção: (a) o fato de que a seqüência de quatro estágios apresenta a limitação
constitucional como um fator que deve possuir uma prioridade léxica em relação à
legislação bem como com relação a aplicação dos princípios de justiça pelos
tribunais, administradores e cidadãos comuns; (a¹) a limitação constitucional está
engendrada a partir de uma restrição formal de um véu da ignorância (menos
espesso que na posição original), o que não pode ser pensado na democracia
procedimental; (a²) o fato de haver tal prioridade constitucional em Rawls, induz que
o filósofo de Baltimore escapa de um intuicionismo, pois este não oferta critério
objetivo claro e justificado para se avaliar algo, ao passo que a democracia
constitucional consegue propor uma definição (se as bases de avaliação são
equivocadas, viciadas em sua construção ou não servem, é outra questão); (b) o
filósofo norte-americano recusa uma obediência cega a uma regra da maioria dentro
da aplicação dos princípios de justiça e da democracia mesmo que esta seja
alimentada por procedimentos justos e regras justas, em razão de que o mecanismo
utilizado para a produção e fundamentação destes não é a justiça procedimental

221
Para sólidas colocações a respeito do tema, ver Rawls, de Freeman (p. 219-35).
222
Já se vislumbra como o Direito pode ser visto em Rawls, demonstrando um contraponto claro com
o positivismo jurídico.
114

pura (perfeita) e sim a justiça procedimental imperfeita, que apresenta sérias


limitações quanto ao estabelecimento do que seja a justiça de forma lapidar; (b¹) de
uma regra da maioria podem derivar construções legislativas que rompam com os
direitos individuais223, portanto há a necessidade de que seja uma democracia
constitucional que use a regra da maioria, com fortes ressalvas224; (b²) com relação a
singela objeção de que dentro desta regra da maioria há de se ter uma simples
harmonia entre um procedimento adequado225 e a lei, é evidente que para Rawls
tamanho formalismo poderia gerar uma regra (legitimada por uma maioria) que
poderia ser claramente injusta em razão da falta de restrições de base
constitucional226.
Portanto, retornando ao ponto das características de uma democracia
procedimental principalmente em seu aspecto relativo ao item (ii), cabe mencionar
que o conjunto de regras que diz categoricamente o que é lei tem equivalência com
relação a normas básicas para (1) fixar o que é a lei propriamente dita, e (2)
determinar quais são os membros políticos capazes de produzir a legislação 227.
Corroborando a crítica feita no parágrafo anterior em consonância com o que foi dito
neste momento, tem-se que na democracia procedimental, “embora essas regras
especifiquem os procedimentos democráticos exigidos, os procedimentos em si não
impõem nenhum limite ao conteúdo da legislação” (RAWLS, 2003, p. 205-06), o que
pode gerar a injustiça previamente mencionada.

223
Por exemplo, um grupo decide que a ação A é a que produz os melhores resultados sociais, e esta
é legitimada socialmente por uma legislação; neste sentido, todos aqueles que praticarem a ação B,
C e D incorrem em erro, e desta forma podem ser excluídos do convívio social.
224
Como a que nenhum acordo político pode romper com direitos individuais invioláveis estabelecidos
de forma abstrata pelos princípios de justiça e materializados pela constituição.
225
Conjunto de regras que fixam o que é lei e o que não é.
226
Por exemplo, pode-se imaginar que lei é o resultado de um processo legítimo, que deve proceder
a partir de uma regra da maioria – seja direta ou indireta –, e que desta forma está fixado o tipo de
procedimento que determina o que é lei; disto decorre que durante uma escolha de determinada
política legal, chega-se por um consenso da maioria, que a ação X é algo que deve ser permitido,
incentivado e premiado pelo Estado, ao passo que a ação Y deve ser tida como condenável e
intolerável; acresce-se a este exemplo que tanto as ações X e Y são razoáveis, e, em momento
anterior a confecção da lei, conviviam de forma harmônica, pacífica e respeitavam uma concepção
política de justiça que garantisse direitos e liberdades individuais ao mesmo tempo em que
acreditavam que a cooperação produzia os melhores resultados; assim, com a produção de uma
legislação que fomente uma determinada ação e exclua outra, tem-se uma lei claramente injusta
mesmo que legítima no recinto dos procedimentos de produção da mesma – o problema central do
positivismo jurídico.
227
Que diferencia um agente político parlamentar de um agente político que tão-somente elege tal
parlamentar, bem como o fato de poder determinar que aquilo que o parlamento produz é uma lei e
não um mero acordo entre grupos sociais, válido somente em seu nicho.
115

Mas mesmo com estas asserções, Rawls crê da mesma forma que Hart 228,
que possam existir um determinado número de regras procedimentais (para que se
determine o que é lei), que em algum grau (menor ou maior em determinada
sociedade) se apresentam como pressupostas para a definição de um regime
democrático (tanto para a democracia procedimental quanto para a democracia
constitucional). Desta forma, pergunta-se: isto estaria em consonância com a noção
da justiça como eqüidade, no que tange ao seu aspecto teórico, bem como em sua
parcela esparramada para as instituições sociais básicas (que aplicam a justiça)? A
resposta para tal questão se mostra vinculativa com a passagem em que há
congruência entre o pensamento do filósofo político e o filósofo do direito: há uma
dose intuitiva em Rawls, pressuposta e que não apresenta uma firme vinculação
justificacional teórica, que deriva de sua inclinação a aceitar que a cooperação é
algo tido como bom para a sociedade229.
Mas a chave de leitura para compreender o motivo pelo qual Rawls apresenta
uma grande repulsa a democracia procedimental apresenta-se nos seguintes
termos: as normas básicas que servem de pano de fundo para identificar o que é a
lei e quem pode produzi-la (procedimentos de justiça), acabam meramente
indicando o que é legal e o que é ilegal mas não colocando nenhum tipo de
conteúdo como critério de avaliação para que se descubra se uma lei (ou ausência
dela) é justa ou injusta. Note-se, então, que dentro de uma democracia
procedimental há a possibilidade de se estabelecerem normas que preguem pelo
utilitarismo (utilitarianism ou rule-utilitarianism), o que pode claramente romper com
direitos e liberdades básicas (liberdade de expressão e de pensamento, por
exemplo). Contudo, isto não poderia entrar em choque com a afirmação de que em
Rawls não se possui um conteúdo dado, mas sim construído, e que o mesmo cabe
ser revisitado (revisited) quando necessário, ao passo que o modelo que deve
permanecer imóvel deve ser a sua parte estrutural, seu formalismo?
Para obter uma resposta satisfatória desta questão, há de se ter em mente
algumas noções elementares da teoria rawlsiana, dentre elas: (a) o fato de que os
conteúdos da justiça como eqüidade não são dados, mas sim construídos, não traz
228
O conceito do direito (capítulos 5 e 6).
229
Mesmo que a fundamentação desta idéia esteja alicerçada em teorias econômicas que
comprovam a pujança da cooperação em contrapartida da competição, em termos de números
sociais positivos produzidos, tal noção apresenta-se também com um caráter moral intuitivo pois
parece ser mais saudável pensar a humanidade nestes termos do que vislumbrá-la a partir de uma
competição destrutiva.
116

como conseqüência lógica que os mesmos são tomados por inexistentes ou que
Rawls assenta suas bases em quaisquer conteúdos; (b) a noção de que os mesmos
podem ser revistos quando a sociedade assim o desejar (mesmo elementos
constitucionais essenciais), não faz com que isso venha a produzir a tolerância com
relação a qualquer tipo de conteúdo, pois os mesmos devem obedecer a restrições
formais muito bem sedimentadas230; (c) ao se declarar que a parte formal da teoria
da justiça de Rawls é algo que permanece imutável, mesmo frente às mudanças
sociais231, isto não mostra nenhum equivalente com a democracia procedimental,
visto que esta (c¹) apesar de guardar a semelhança de possuir uma parte formal
evidente e que serve de base de determinação de todo conteúdo por ela produzido,
(c²) a mesma pode apresentar qualquer conteúdo em seu interior sem nenhum tipo
de restrição formal.
No entanto, se poderia argumentar que a noção de democracia carrega
intrinsecamente consigo um ideal de que os direitos básicos de liberdade de
expressão e de pensamento não poderiam estar dissociados daquela, seja
procedimental ou constitucional. Para esta pequena objeção, Rawls alega que “nada
impede a legislação de negar liberdade de pensamento e expressão não-políticos,
ou negar a liberdade de consciência, ou as muitas liberdades implícitas no estado de
direito, como o direito de habeas corpus” (RAWLS, 2003, p. 206), sendo tudo isso
vinculado a noção de uma democracia procedimental, obviamente. Mesmo diante de
tais asserções constitutivas das características fundamentais destes dois planos
democráticos, o filósofo de Baltimore põe em dúvida ainda se haveria possibilidade
de realmente existirem argumentos sólidos para que uma concepção política de
justiça se inclinasse para uma de ordem procedimental ou uma de molde
constitucional. Ou ainda, se este tema (de escolha entre um modelo ou outro, a
respeito da democracia) estaria atrelado a uma noção atinente a sociologia política
(ou bem como a ciência política), no qual se deve avaliar a justiça presente nas leis
e princípios de acordo com as necessidades esboçadas por um povo. A dúvida pode
pairar ainda sobre: (a) descobrir se um povo possui realmente um espírito
democrático intrínseco, ou (b) se esta noção é construída a partir de um acordo
originário moral e político profundo.

230
Em cada estágio de aplicação dos princípios de justiça há um tipo de restrição formal a ser
obedecida.
231
Estas só influenciam no conteúdo da justiça como eqüidade, os princípios de justiça.
117

Com relação a esta última declaração, Rawls traz a argumentação de que “se
um povo tiver um espírito realmente democrático, uma constituição com sua carta de
direitos são desnecessárias; ao passo que se um povo não for democrático, uma
constituição não o tornaria democrático” (RAWLS, 2003, p. 206), o que traz a disputa
para a questão da existência ou não de uma essência democrática no corpo da
sociedade. O que fica claro para o filósofo de Baltimore é que o mesmo não rejeita
em sua plenitude esta afirmação, contudo traz um contraponto que põe em dúvida
esta tendência a ver o espírito democrático como algo onipresente naquelas
sociedades que o possuem232: o fato de que uma dada concepção política de justiça
engendrada de forma pública pode influenciar “de forma significativa a sociologia
política das instituições básicas que a realizam” (RAWLS, 2003, p. 206). Neste
momento, a sociologia política pode ser afetada pela maneira educativa com que a
concepção de pessoa e de sociedade estão construídas no entorno de uma
concepção política de justiça: em suma, Rawls segue a ordem de que um dever-ser
pode modificar as situações de fato, sem ficar preso na fórmula que julga que não há
possibilidade de mudar os fatos sociais já dados (exemplo do espírito constitucional
intrínseco) ou mesmo cair em falácia naturalista. Com isso, o filósofo norte-
americano adota o caminho inverso do que foi adotado em larga escala na história
da filosofia moral e política, qual seja, o que fundamenta o justo a partir do bem, mas
agora para o campo prático da democracia: pensa-se em como ela deve ser, para
que se avalie e repense o modelo que está posto.
Esse detalhamento a respeito das hipóteses teóricas acerca da democracia
com o seu fator educativo conduz Rawls a análise do que é denominado por
condição de publicidade233, e que é vislumbrada no § 35 de Justiça como eqüidade:
uma reformulação. Nesta altura, o filósofo norte-americano acaba destacando que a
mesma, quando atinge os seus três grandes níveis dentro de sua concepção de
justiça, acaba adquirindo uma função educativa (RAWLS, 2003, p. 206-07). O que
se verifica com tais noções sócio-educativas, é que o tipo de concepção que os
cidadãos possuem de si próprios e acerca das instituições sociais básicas, deriva
em amplas medidas de uma cultura pública que contenha as concepções de pessoa
e de sociedade próprias de um liberalismo político (RAWLS, 2003, p. 207). Mas por

232
E não tendo possibilidade de existir em sociedades que não carregam tal ponto intrínseco.
233
Presente também em Uma teoria da justiça e em O liberalismo político, como condição de
legitimidade dos valores políticos adotados em sociedade.
118

que o filósofo de Baltimore define como sendo em boa medida (e não de forma total)
a derivação da idéia que o cidadão faz de si mesmo e da sociedade a partir de uma
cultura pública? Isto se dá em razão de que o pensamento rawlsiano é de cunho
liberal, o que garante uma independência do sujeito perante a esfera estatal e diante
da coletividade (que se mostra através de uma razão pública): ao mesmo tempo em
que o cidadão é interdependente com relação a todos os tipos de juízos que derivam
da sociedade (cultura pública), o mesmo resguarda uma parcela de autonomia que
permite submeter todas as doutrinas morais e políticas ao crivo da razão 234 vista de
maneira personalizada235.
Os cidadãos, ao possuírem uma noção de cidadania que deriva de uma
concepção política de justiça, acabam vendo-se a si próprios como portadores de
direitos e liberdades básicas que nenhum tipo de acordo político poderá romper; e
tais direitos e liberdades básicas para serem plenos em sua aplicabilidade, devem
ser também vistos como esferas virtuais invioláveis pertencentes a outros cidadãos,
sendo estes os dois pólos que são guiados por uma proposta educativa oriunda de
uma concepção política de justiça, em que “fazer isso faz parte da concepção de si
mesmos como pessoas que compartilham o mesmo status de cidadania” (RAWLS,
2003, p. 207). Ao mencionar todas estas categorias argumentativas, fica claro que
há inúmeras diferenças substanciais entre uma democracia constitucional e uma
democracia procedimental: essencialmente se pode asseverar que as concepções
de pessoa e de sociedade, assim como direitos e liberdades fundamentais, ficam
“mais plenamente articuladas na carta pública da constituição” (RAWLS, 2003, p.
207), que se comparáveis ao tipo de democracia procedimental no qual apresenta
uma instabilidade valorativa sem precedentes. Nesta última, deve-se lembrar que
basta que o argumento seja tomado como válido para que a lei tenha sua
aplicabilidade justificada (não importando se a mesma pode ser declarada como
injusta). Assim, uma educação política que é potencializada pela noção de
realização dos três níveis de publicidade, acaba gerando uma internalização da
cultura pública no dia-a-dia dos cidadãos, que pode sentir tal mecanismo quando da
determinação de decisões judiciais sobre casos constitucionais ou mesmo quando

234
O que faz com que se ponderem argumentos e se construa um modelo conceitual, sobre os mais
diversos ramos sociais, de forma livre.
235
Em contraposição a uma idéia de razão pública.
119

os partidos políticos236 tomam suas decisões acerca de temas de profunda


relevância estatal.
O que foi retratado até aqui deve estar colocado dentro de uma justiça como
eqüidade que insira direitos e liberdades básicas para todos os cidadãos, e que
contenha em anexo uma firme concepção ideal de pessoa que esteja de acordo com
a possibilidade de execução de suas duas faculdades morais, ao mesmo tempo em
que fique justaposta a uma noção de sociedade guiada pela idéia de que a
cooperação é algo louvável. E desta forma, mesmo diante de juízos discordantes
tanto em decisões judiciais ou atos da administração pública, acabam não sendo
vistas como nocivas para a sociedade, pois diante da diversidade todos devem ser
convocados para um amplo debate público “e assim formar uma concepção das
razões relevantes quando os elementos constitucionais essenciais estão em jogo”
(RAWLS, 2003, p. 207), promovendo desta forma o viés educacional da concepção
política de justiça.
Este esquema de justiça se aplica aos cidadãos como um todo (rememorando
o quarto estágio de execução dos princípios de justiça) quando os mesmos acabam
por adotar em seu âmago moral e político as regras do jogo que foram estabelecidas
de forma independente237 através de uma vinculação com o Direito. Por que a
vinculação com este último elemento? Pois é ele que faz com que a justiça (e seus
princípios) ganhem realidade prática em sociedade, sendo portanto o intermediador
entre a fixação abstrata de um princípio e sua aplicação em sociedade. Mas em que
momento isso se efetiva? No exato instante em que

os cidadãos adquirem uma compreensão da cultura política pública e de suas


tradições de interpretação dos valores constitucionais básicos. Fazem-no ao
perceberem como esses valores são interpretados por juízes em pleitos
constitucionais importantes e reafirmados por partidos políticos (RAWLS,
2003, p. 207).

Examinando-se desta forma, tem-se a plena correlação da compreensão privada de


um cidadão a respeito de uma cultura pública e sua aplicabilidade, colocando-a
dentro de si próprio como parte de sua moralidade no momento em que o quarto
estágio de execução dos princípios de justiça é fixado: através de sentenças de
juízes, atos administrativos e ações praticadas por cidadãos comuns no dia-a-dia.
236
Que representam um agrupamento social, mas devem ter os olhos para a sociedade como um
todo.
237
Por um consenso sobreposto, e legitimadas por este.
120

Todavia, como se estabelecem os valores políticos fundamentais oriundos de


decisões jurídicas controvertidas que não apresentam a mesma unanimidade
demonstrada para com o estabelecimento de princípios de justiça, como é visto na
posição original? A busca de uma resposta que tenha como objetivo a deliberação
acerca de questões políticas fundamentais passa necessariamente, de acordo com
Rawls, por um fórum público de princípios238 que acaba representando “um aspecto
distintivo de um regime constitucional com alguma forma de controle de
constitucionalidade” (RAWLS, 2003, p. 208). Mesmo que este modelo seja o
adotado, nada impede que surjam problemas em sua execução, visto que está-se
tratando de uma justiça procedimental imperfeita, tais como: (i) a possibilidade de
juízes efetivarem uma má interpretação constitucional com relação a temas políticos
relevantes e estas decisões serem de difícil reversão; (ii) ou mesmo a situação em
que os legisladores transferem decisões que são de sua alçada para os tribunais, o
que seria uma inversão de papéis. Tais temas são muito debatidos no direito
brasileiro, em que há autores que defendem que o Supremo Tribunal Federal muitas
vezes faz o papel de legislador em face da omissão destes na produção de normas
que visam garantir, por exemplo, direitos sociais básicos protegidos pela
constituição239 (o que de acordo com Rawls, seria um erro albergar questões que
versam sobre distribuição de renda e riqueza na carta constitucional pelas razões já
postas), quando na verdade sua função é outra. Mesmo assim, pode-se declarar
cabalmente que uma democracia constitucional é preferível a uma democracia
procedimental em virtude da presença de uma concepção política de justiça, que
pode apresentar a função educativa de mudar as contingências nas quais os
cidadãos estão colocados (dever-ser influenciando no ser).
De toda esta exposição, Rawls aduz o exemplo da filosofia política de Mill:

a unidade da visão de Mill depende de uns poucos princípios psicológicos,


entre os quais os princípios de dignidade, individualidade e o crescente
desejo de viver em unidade com os outros. Mill vincula sua concepção de
utilidade aos interesses permanentes dos seres humanos como seres
progressivos. É plausível, pensa ele, que nas condições do mundo moderno,
seguir os princípios de justiça e liberdade dessa concepção é uma maneira
eficaz, se não a melhor, de realizar esses interesses permanentes (RAWLS,
2003, p. 208).

238
Derivado do pensamento de Dworkin.
239
O que de acordo com Rawls, seria um erro albergar questões que versam sobre distribuição de
renda e riqueza na carta constitucional pelas razões já postas.
121

Uma primeira pergunta surge: haveria incongruência em defender justiça e liberdade


(esboçadas na concepção de Mill) na justiça como eqüidade de Rawls? Ora,
provisoriamente pode-se asseverar que não visto que o filósofo norte-americano
defende a justiça (como forma de proceder politicamente) e faz 240 da liberdade
(através do princípio da igual liberdade) uma das condições de possibilidade de
desenvolvimento social e individual241. Contudo, uma diferença fundamental entre
Mill e Rawls, no que tange a estes dois pontos, é a forma de fundamentação
apresentada: para o filósofo inglês tanto a justiça como a liberdade acabam
derivando de uma fundamentação última da moral, quando esta é apresentada
através de fatores psicológicos; para Rawls, o sistema adotado é fincado através de
seu construtivismo político (não fundacionalista).
Ainda pode-se questionar o sistema de Mill a partir de um outro ponto de
vista: e se os princípios psicológicos não se sustentarem por si só ou mesmo forem
enfraquecidos, ou ainda assim, perderem preponderância em face de outros
princípios, como se daria a influência destes através de uma idéia de justiça e
liberdade? O questionamento se justifica em virtude da existência do fato do
pluralismo razoável, que faz com que exista uma pluralidade de juízos morais que
podem ser oriundos de concepções psicológicas distintas e influenciar na esfera
pública e privada uma mudança de comportamento político que pode fazer com que
se rompam com modelos dominantes. Neste sentido, a força da justiça como
eqüidade de Rawls, em contraposição a uma fundamentação nos moldes de Mill,
vem do fato de que

a idéia existente por trás da função educativa de uma concepção política de


justiça adequada para um regime constitucional é que, por estar inserida em
instituições e procedimentos políticos, essa concepção pode por si só tornar-
se uma força moral significativa na cultura pública da sociedade (RAWLS,
2003, p. 208-09).

Mas de que maneira a cultura pública (que tem uma função pedagógica) se coloca
dentro da justiça como eqüidade? Qual é o mecanismo que ativa tal idéia? Em todo
o conjunto textual rawlsiano a indicação aponta para a seqüência dos quatro
estágios, pois estes representam a aplicação dos princípios de justiça no âmbito da
realidade: quando o acordo constituinte se harmoniza com os princípios de justiça,

240
De maneira construtiva.
241
Por ser uma das bandeiras do liberalismo.
122

quando a legislação se vê limitada pela constituição e quando os juízes interpretam


e assumem a força da constituição, consegue-se visualizar a cultura pública inserida
nas insituições básicas de justiça e nos cidadãos.
Transmutando o que foi declarado para o campo específico do Direito, tem-se
que este não precisa se vincular explicitamente com simples regras políticas
gerais242, pois este deve sua fundamentação à questões anteriores ao seu
estabelecimento: princípios de justiça, constituição e uma legislação propriamente
dita. O Direito não pode ser visto como grande expressão de uma concepção política
de justiça, mas sim o elo que vincula esta ao cidadão. Como corolário, o Direito deve
se adequar a uma constituição, que por sua vez deve respeito aos princípios de
justiça. Assim, pode-se declarar que uma determinada concepção política de justiça
dentro de uma democracia de cunho constitucionalista “não precisa ser tão geral
como a concepção de utilidade de Mill nem se apoiar, como a de Mill faz no tocante
ao seu conteúdo mais específico, numa psicologia humana bastante definida”
(RAWLS, 2003, p. 209). O que o filósofo norte-americano quer estabelecer nesta
passagem é que sua teoria da justiça não peca por falta de objetividade 243 para
engendrar os princípios de justiça: estes ficam vinculados a uma idéia clara acerca
dos pontos restritivos que devem ser observados para sua elaboração, e não
abertos a uma dose de subjetividade ou sujeitos às contingências sociais.
Logo, “uma estrutura básica na cultura política pública em que essas
concepções fundamentais e princípios estão inseridos tem uma sociologia política
diferente do que a de uma democracia procedimental” (RAWLS, 2003, p. 209-10) em
razão da possibilidade de que uma democracia constitucional pode apresentar uma
função educativa para influenciar politicamente. Cabe mencionar que ao se referir
todo o momento a função educativa que a concepção política de justiça acaba por
desenvolver em uma democracia constitucional, o filósofo de Baltimore tem em
mente uma idéia que conduz a uma conotação própria de sua justiça como
eqüidade: a noção de que deve-se partir de um dever-ser para que se compreenda o
ser. Em suma, ao se pronunciar a respeito da educação política, Rawls quer dizer
que a mesma ao ter o poder de mudar a sociologia política posta, funciona como um
apanágio ao dever-ser. Adicionam-se que os elementos essenciais que auxiliam

242
Mas sim anexado com uma formulação que preste um devido respeito a todas as instâncias de
aplicação dos princípios de justiça.
243
Ao não ser tão geral e sim mais específica no que tange a concepção de pessoa e de sociedade.
123

nesta educação política presente tão-somente na democracia constitucional244, deve


se colocar em anexo com os princípios de justiça, pois estes representam a força
axiológica dos juízos ponderados presentes em sociedade.
Conforme declarado, acaba sendo mais provável que um regime de marca
constitucional é aquele no qual potencializa de forma mais eficaz a possibilidade de
que os princípios de justiça, a idéia de uma razão pública245 e uma democracia
deliberativa venha a se concretizar, em razão do conteúdo específico que é
albergado por uma concepção política de justiça: aqueles (princípios de justiça,
razão pública e democracia deliberativa) uma vez que são realizados, acaba
potencializando a obtenção de uma idéia (mesmo que parcial) acerca do que é o
bem em sociedade, voltado para todos os cidadãos.

244
E que é rejeitada na democracia procedimental em virtude de que esta não carrega um valor
específico, dado ou construído.
245
É adequado citar que a “public reason involves more than just the idea that the principles of
political association should be an object of public knowledge. Its concern is the very basis of our
collectively binding decisions. We honor public reason when we bring our own reason into accord with
the reason of others, espousing a common point of view for settling the terms of our political life. The
conception of justice by which we live is then a conception we endorse, not for the different reasons
we may each discover, and not simply for reasons we happen to share, but instead for reasons that
count for us because we can affirm them together. This spirit of reciprocity is the foundation of a
democratic society” (LARMORE, 2003, p. 368)
4 A efetivação da justiça como eqüidade e o âmbito do Direito

4.1 Uma idéia central: a aplicação dos princípios de justiça na seqüência dos
quatro estágios

Com o escopo de ofertar aplicabilidade aos princípios de justiça escolhidos


pelas partes na posição original sob o véu da ignorância, Rawls desenvolve um
mecanismo progressivo de retirada do referido véu: a sociedade através de suas
estruturas voltadas para a solução de questões específicas deve estar apta a aplicar
os princípios de justiça de acordo com as circunstâncias existentes. Para tanto, o
filósofo político em tela deve tratar a respeito das estruturas básicas de justiça que
compõem a sociedade, para que se possa averiguar os tipos de direitos e deveres
que decorrem dos mesmos, sempre com o panorama de fundo dos princípios de
justiça. Contudo, construídos de forma racional e razoável dentro de uma concepção
liberal de justiça, os dois princípios de justiça427 somente podem mostrar toda sua
força para a defesa dos interesses de todos os cidadãos se os mesmos forem
aplicados em uma sociedade que defenda uma regime constitucional democrático.
No entanto, sendo esta uma opção do autor, justificado a partir de suas
inferências mais elementares que levam em consideração o equilíbrio reflexivo
amplo428 aliado a racionalidade reflexiva que permite submeter tudo a faculdade da
razão, tal construção não se mostra como fundacionalista, conforme poderia ser
pensado neste momento429. Pelo contrário, com isso Rawls tem o intento de
“demonstrar que os princípios da justiça, até aqui tratados fazendo-se a abstração
de formas institucionais, definem uma concepção política viável e se aproximam
razoavelmente de nossos juízos morais ponderados, dos quais também são uma
extensão” (RAWLS, 2008, p. 239). Desta forma, pode-se afirmar que os princípios
de justiça são ad hoc com relação a uma estrutura de governo, pois permitem a
existência desta ao mesmo tempo em que se efetivam com tais bases, sendo
alargamento das noções morais fundamentais que os cidadãos apresentam.

427
Princípio da igual liberdade e princípio da diferença com desdobramentos no princípio da
igualdade eqüitativa de oportunidades.
428
Que por seu turno trata de juízos morais ponderados, princípios de justiça e uma teoria de justiça.
429
Ao se declarar que tais princípios de justiça só se adéquam em uma única forma de governo.
125

Assim, o filósofo de Baltimore elenca quatro estágios dentro de um regime


constitucional democrático que servem para demonstrar como as instituições sociais
se surgem para dar vazão aos princípios de justiça que geram direitos, deveres e
obrigações, bem como elucidar sua forma de aplicação dentro destes estágios.
Cabe lembrar também que a carga principiológica não se mostra como aquela que
representa o último modelo de fundamentação moral e política, pois se fosse assim
Rawls seria fundacionalista: os princípios são aqueles que melhor se ajustam, na
visão do autor, a herança democrática ocidental bem como com os juízos morais
ponderados que os indivíduos possuem, além de reforçarem o liberalismo político
que preserva fundamentalmente uma esfera inviolável de direitos dos indivíduos.
Mas por que estes possuem este círculo virtual de direitos? De onde a mesma
provém? Quais seus fundamentos? Para tais respostas, que se mostram cruciais
para as pretensões do presente trabalho visto sua vinculação com a fundamentação
de um Direito nas obras do filósofo político, há de se averiguar precipuamente o
modelo de legitimidade adotado pelo filósofo em questão (contrato social) e seu
mecanismo central de restrição formal para com as partes (véu da ignorância).
Para compreender corretamente os questionamentos prolatados, há de se ter
uma exata noção da dimensão de aplicabilidade dos princípios de justiça nas
instituições que fazem parte da sociedade (dentro de um regime constitucional
democrático): em suma, estudar a seqüência dos quatro estágios é verificar como se
dá a aplicação dos princípios de justiça na elaboração das bases do Direito e de sua
execução para todos os cidadãos.
Tal idéia acerca de uma seqüência de quatro estágios no pensamento
rawlsiano, surge da necessidade de aplicabilidade os princípios de justiça no cerne
de instituições sociais básicas bem como nas relações interpessoais. Deve-se deixar
claro que esta seqüência representa passos de aplicabilidade dos princípios de
justiça nas diversas instituições da estrutura básica de justiça, que apresentam por
seu turno diversas funções distintas. Cabe lembrar, preliminarmente, que estas
instituições sociais básicas que são regidas pelos princípios rawlsianos, são aquelas
que estão postas dentro de uma democracia constitucional, pois esta é a que melhor
consegue elevar a concepção de pessoa com suas duas faculdades morais ao
passo que mantém vívido a noção de que a cooperação é algo a ser valorizado em
sociedade. A fim de verificar tais estágios, suas denominações, características e
funções, deve-se ter em mente que para tal empreitada há de se ter a exata
126

dimensão sobre quais são os direitos, deveres e obrigações decorrentes em cada


uma destas etapas, pois tais particularidades são os meios pelos quais se executam
e avaliam os princípios de justiça: fixa-se desta forma o papel central que uma teoria
do Direito em Rawls ocupa. Mesmo que o filósofo norte-americano em tela não
tenha produzido uma doutrina do Direito específica, a mesma se faz presente no
momento em que dá vazão, através das instituições da estrutura básica, aquilo que
foi construído na posição original sob o véu da ignorância: os princípios de justiça
que norteiam toda a concepção política de Rawls.
Cabe salientar mais uma vez que mesmo que tais sejam os princípios de
justiça aplicados dentro de uma estrutura básica colocada dentro de um regime
constitucional democrático430, estes não se mostram como uma necessidade natural
da natureza humana ou como a única proposta de justiça viável ou verdadeira. Mais
uma vez Rawls se coloca como um filósofo produto de seu tempo e de suas
heranças: a filosofia analítica e a lógica do século XX ensinam que nada é possível
afirmar com verdade absoluta acerca de juízos morais e políticos431; mas disto não
decorre que se deva perder um critério objetivo para que se possa avaliar toda a
estrutura citada432. Com isso, a proposta rawlsiana de justiça passa a se assemelhar
àquela que apresenta os princípios de justiça433 que mais se aproximam dos juízos
morais ponderados presentes em sociedade: em suma, são os que melhor se
harmonizam com as necessidades hodiernas da sociedade.
Destarte, a seqüência dos quatro estágios passa a ser aquela que vem a
investigar a formatação da aplicação dos princípios de justiça nas instituições que
compõem a estrutura básica da sociedade, em que existe uma necessidade clara da
presença de um sistema que possa viabilizar a execução da justiça em uma
sociedade bem-ordenada. Para tanto, podem ser verificadas três grandes

430
E que daqui se derivem informações em que se verifiquem quais sejam os direitos, deveres e
obrigações que decorrem da justiça com o eqüidade em cada uma das etapas que serão tratadas
neste capítulo, bem como o tipo de Direito que deve decorrer ao término da análise do último estágio
aqui elencado.
431
A mais precisa contribuição neste campo (para com a teoria da justiça rawlsiana) foi ofertada por
Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus e nas Investigações Filosóficas.
432
Entre instituições, direitos, deveres, obrigações, carga principiológica bem como o Direito em si.
433
Pois nisso todas as teorias da justiça concordam: deve-se partir de princípios de justiça para que
se estabeleçam relações interpessoais, instituições, direitos, deveres, obrigações e o Direito de forma
justa, mesmo que o fato de que tais princípios venham a emanar de locais distintos seja outro
problema a ser resolvido.
127

necessidades sociais434 presentes em juízos que os cidadãos podem vir a emitir,


quais sejam: (a) a questão de que os cidadãos, vivendo em sociedade possuem a
possibilidade de avaliarem a justiça presente nas legislações estabelecidas bem
como em políticas sociais, tendo a exata noção de que suas opiniões podem divergir
facilmente435; (b) outro tema que merece destaque é o que diz respeito aos juízos
que podem ser emitidos acerca da justiça presente em uma constituição (em sua
materialidade e em seu procedimentalismo), em que se devem descobrir quais
ordenações (nos dois âmbitos) são justas para que se possa chegar a algum tipo de
solução; partindo-se de critérios objetivos quando da existência de conflitos sobre o
que seja o justo e sobre casos particulares; (c) já um terceiro tipo de juízo ocorre
quando o cidadão avalia que (c¹) determinada constituição é justa e (c²) que alguns
tipos de métodos para sua execução tidos como os mais tradicionais, acabam por
serem os mais adequados.
Os problemas encontrados no primeiro tipo de avaliação institucional já foram
previamente explicados, pois pelo simples fato dos cidadãos emitirem um dado juízo
sobre um tipo legislativo436, gera discordâncias acerca de cada noção sobre o que
vem a ser a regra justa. Com relação à justiça na constituição, há de se
compreender que a mesma se mostra como um processo político que visa à tomada
de decisão em uma determinada área social, em que tais decisões são oriundas dos
juízos e idéias dos representantes e dos representados: neste sentido, a busca pela
justiça neste âmbito se dá em uma investigação acerca do que é justo em um
processo político. Colocados nestes termos, a justiça, além de servir de guia para a
simples avaliação material de leis e instituições, esta participa também de sua parte
procedimental: deve-se ter a plena capacidade de avaliar a justiça presente na
metodologia que julga quais juízos de valor são permissivos para que se elaborem
as leis e as instituições. No tocante ao terceiro grande problema trazido à baila por
Rawls, este é ligado diretamente ao segundo: quando se fala que o cidadão avalia
uma constituição como sendo a justa e escolhe os seus métodos adequados a
execução de tal materialidade de acordo com uma tradição democrática 437, há de se

434
São necessárias em virtude de que sem a justiça nestes âmbitos, a vida em sociedade se torna
completamente insustentável, instável.
435
Mesmo internamente quando se cai em certa contradição lógica, bem como externamente quando
outrem profere juízos de valor distintos dos que são assimilados e proferidos por aquele.
436
Na avaliação de sua justiça.
437
Como por exemplo, ocorre quando se adota a regra da maioria (mesmo que vista de uma forma
limitada).
128

ter em mente que o processo político é engendrado de uma maneira


procedimental438. Neste sentido, os cidadãos devem ter a possibilidade de avaliar
em que medida e em quais circunstâncias se devem aceitar ou recusar (por carência
de obrigação) tais métodos439.
Como corolário do que foi exposto, o cidadão “deve estar apto a definir os
fundamentos e os limites das obrigações e dos deveres políticos” (RAWLS, 2008, p.
240). Para tanto, com tamanha exigência procedimental e substancial, cabe salientar
que tal noção não pode ser pensada desvinculada da concepção de pessoa racional
e razoável (com suas duas faculdades morais), respeitando os princípios de justiça
construídos na posição original sob um véu da ignorância e tendo em mente a idéia
de que a cooperação é algo moralmente bom. Assim sendo, Rawls propõe que estes
três tipos de juízos que os cidadãos podem emitir, em conexão com os respectivos
problemas que advém dos mesmos440, podem ser resolvidos através de uma
seqüência de quatro estágios.
A efetivação desta seqüência depende em grande parte da noção
apresentada pelo filósofo norte-americano acerca da justiça procedimental
imperfeita441, pois toda a linha argumentativa que se segue deriva desta noção
básica. Assim, para que se compreenda o intento de Rawls, deve-se conectar o
pensamento do mesmo com esta base não-perfeita de construção de um conceito
acerca do que seja o justo. Desta simples adequação procedimental que Rawls julga
ser a mais justa pelos critérios estarem em ligação íntima com as restrições
estabelecidas pela justiça como eqüidade, fica claro que o primeiro estágio que deve
ser realizado para que se tenha um ideal de justiça pleno, autônomo e válido para
todos, é aquele no qual é estabelecido a partir de um contrato originário, qual seja, a
etapa da posição original sob um véu da ignorância. Nesta, as partes acabam por
construir os pilares básicos procedimentais (e em parte, materiais) da idéia que
acompanha todo o desenrolar de sua teoria de justiça quando fixam que os dois
princípios de justiça são aqueles que devem se aplicar a toda estrutura básica da

438
Pelo menos dentro do âmbito de entendimento derivado de uma concepção política de justiça,
pautada por um ideal liberal.
439
No caso em tela, a própria regra da maioria.
440
Que são resultados do fato pluralismo razoável (pois todos eles carregam o problema da
diversidade de juízos morais no seu cerne).
441
“A justiça procedimental imperfeita é exemplificada pelo processo penal. O resultado desejado é
que o réu seja declarado culpado se, e somente se, tiver cometido o crime de que é acusado. O
julgamento é estruturado para procurar estabelecer a verdade a esse respeito” (RAWLS, 2008, p.
104)
129

sociedade, enfatizando que em uma sociedade bem-ordenada os mesmos se acham


inseridos não somente em instituições sociais mas também nas meras relações
interpessoais que os indivíduos concretizam. Mas o que seriam tais relações?
Ora, no tocante a aplicação dos princípios de justiça às instituições sociais
básicas, fica claro que tal noção é elementar no pensamento rawlsiano: uma teoria
da justiça deve ser política (pública), respeitando a célebre dicotomia liberal entre o
que é do âmbito privado e o que é do recinto público. Neste sentido, os princípios de
justiça devem ser voltados para o plano político: e quem ou o quê rege este plano?
As instituições sociais que controlam a estrutura básica, e não um indivíduo X ou
uma associação Y, por serem aquelas destinadas a todos os cidadãos e não
voltadas para a defesa de interesses privados (ou de grupos). Todavia, Rawls
pretende que sua teoria da justiça seja aplicada também em uma sociedade bem-
ordenada, nas relações interpessoais. Estas, por seu turno, seriam aquelas que
pertencem à esfera privada dos indivíduos em suas conexões com outros indivíduos
da mesma sociedade. Neste sentido, a teoria da justiça seria abrangente?
Não, pois esta nunca foi a idéia do filósofo de Baltimore, contudo uma leitura
que aprofundasse este tema mas permanecesse rasteira em sua compreensão
sistêmica poderia conduzir a tal crítica. Há de se destacar que quando Rawls deseja
que os princípios de justiça sejam aplicados nas relações entre os indivíduos442, o
mesmo não tem o intento de que estes se coloquem em contraposição às
concepções de bem razoáveis que cada indivíduo apresenta, mas tão-somente que
aqueles se mostrem como marcos regulatórios acerca do que é permitido e do que
deve ser enfatizado para uma sociedade de cooperação. Mesmo parecendo confusa
tal distinção, deve-se deixar claro que a presença dos princípios de justiça nas
relações interpessoais não traz como conseqüência lógica o fato de que as doutrinas
morais abrangentes razoáveis devem ser abandonadas em prol de uma defesa de
uma concepção de justiça abrangente de cunho rawlsiano. Destarte, a forma como
os princípios de justiça adentram na vida cotidiana dos cidadãos em uma sociedade
bem-ordenada pode ser fixada diante de duas formas de aplicação: (a) através da
seqüência dos quatro estágios443, e (b) em virtude da aplicação de uma concepção

442
Em seu dia-a-dia, sendo mais flesh and blood como os utilitaristas.
443
Excluindo-se o primeiro estágio – posição original –, pois nestes os princípios de justiça são
meramente construídos.
130

de Direito e da listagem dos direitos dos cidadãos444. Note-se que tanto a seqüência
dos quatro estágios quanto a noção de Direito (e suas implicações) são formas de
fazer com que os princípios de justiça se façam presentes nas relações
interpessoais, mas sempre de uma forma política (pública) pois ambos somente
podem ser pensados através de um viés estatal.
Retomando a idéia central do presente capítulo, pode-se declarar que as
partes, após escolherem os princípios de justiça na posição original frente às
restrições impostas por um véu da ignorância que faz com que uma visão sobre a
escolha de tal carga principiológica fique por demais míope445, retornam para a
sociedade com o escopo de fazerem suas reivindicações sociais a partir da noção
estabelecida com os princípios de justiça. Mais uma pequena ressalva deve ser feita
antes de adentrar com a devida profundidade no mecanismo dos quatro estágios de
aplicação dos princípios de justiça: o mecanismo da posição original sob um véu da
ignorância é um procedimento hipotético racional que coloca as partes 446 diante de
um véu da ignorância, mas que não é algo além do mundo; é tão-somente um
exercício de abstração racional. Contudo é adequado colocar que tais possibilidades
de reivindicação de direitos por parte dos cidadãos não se dá de maneira direta: se
pode solicitar tudo, de qualquer forma, sobre qualquer matéria, a todas as
instituições sociais.
Estas solicitações devem, necessariamente, obedecer a uma seqüência de
quatro estágios pois tal ordenamento é o que possibilita a necessária especialização
dos temas que são alvo de reivindicação: cada estágio é apto a responder um tipo
de demanda social. Isto se dá por dois motivos: primeiro pelo fato de que as
instituições sociais não têm a capacidade de serem onipresentes em todos os
segmentos sociais (tem seus limites); segundo, porque há determinadas matérias
que não podem ser misturadas quando da resolução de um problema em virtude de
possuírem peculiaridades que não se agrupam. Tal noção acerca de uma
ramificação profunda em etapas advém em larga medida das noções construídas
pela história constitucional democrática ocidental, que remonta as bases de
444
Em conexão com os bens primários, que potencializam a concretização dos ideais de vida de
todos os agentes políticos.
445
Ao ponto de afirmar que as partes em tal recinto nada sabem acerca de suas contingências e das
peculiaridades da própria sociedade (mesmo que possuam um conhecimento amplo da história do
mundo.
446
Ou representantes de cidadãos conforme alguns trabalhos tardios, mesmo que estes não possam
ser confundidas com as pessoas e com os indivíduos – portanto não é um deputado eleito para que
venha a representar alguém.
131

separação dos poderes de Montesquieu447. Assim fica claro que a posição original
sob o véu da ignorância representa o primeiro estágio, no qual ficam estabelecidos
os princípios de justiça que devem governar toda a sociedade. Surge agora a
segunda etapa desta ampla seqüência de execução dos princípios de justiça: após a
construção dos princípios de justiça, as partes derivam seus intentos para uma
função constitucional.
Desta forma, as partes (como representantes de pessoas) acabam por
realizar uma convenção constitucional com dois objetivos fundamentais: (1)
determinar o que é a justiça que deve estar presente nas formas políticas e (2) fixar
uma constituição. É adequado lembrar que as partes que efetuam tal acordo
constitucional estão sujeitas às restrições formais e materiais que os princípios de
justiça emanam: não há a possibilidade, dentro da justiça como eqüidade, de se
fixar, por exemplo, uma carta constitucional que atente contra a liberdade de
expressão448. Com tais limitações axiológicas, as partes devem estabelecer através
da constituição dois grandes eixos: (a) um que gravite em torno do tipo de sistema
de poderes de governo e um sistema de governo propriamente dito, aliado (b) a
determinação dos direitos e liberdades básicas. Sublinha-se que para a
determinação destes as partes têm de lidar fundamentalmente com o fato do
pluralismo razoável, pois este concorda que existam várias doutrinas morais
abrangentes que discordam entre si mas que podem ser agrupadas dentro de uma
concepção política de acordo: neste ponto Rawls se mostra muito coerente, pois
tanto sua idéia de bens primários quanto de consenso sobreposto vão se mostrar
fundamentais para embasar um acordo constituinte449.
Obtendo-se tal consenso acerca do que seja uma concepção política de
justiça, colocando-se em uma carta constitucional os direitos e liberdades básicas

447
Mesmo que os estágios não se refiram diretamente ao pensamento do filósofo francês
mencionado, herdam dele a concepção de que as instituições sociais devem estar dispostas de tal
maneira que resguardem sua harmonização para com a eficácia de forma agrupada ao mesmo tempo
em que protejam suas especialidades.
448
Obviamente que um contorno acerca da liberdade de expressão e todas as suas nuances deveria
ser feito para a correta compreensão de como se atentaria contra esta liberdade básica e como se
poderia restringir a mesma, sem ir contra tal liberdade fundamental; contudo, para os propósitos aqui
utilizados, deve-se entender a liberdade de expressão lato sensu.
449
Que não pode partir de uma doutrina moral abrangente específica, ou mesmo ser fundido a partir
de um ponto de equilíbrio entre diversas doutrinas morais abrangentes.
132

junto com um sistema ordenado de limitação dos poderes políticos450, pode-se retirar
parcialmente o véu da ignorância:

as pessoas participantes da convenção decerto não têm informações sobre


indivíduos específicos: não conhecem sua própria posição social, seu lugar
na distribuição dos dotes naturais nem sua concepção do bem. Mas, além de
possuírem entendimento dos princípios da teoria social, agora conhecem os
fatos genéricos pertinentes acerca da sociedade, isto é, suas circunstâncias
e recursos naturais, seu nível de desenvolvimento econômico e sua cultura
política, e assim por diante (RAWLS, 2008, p. 241).

Com este véu da ignorância que pode ser denominado de menos espesso ou
parcialmente levantado451, Rawls buscou estabelecer uma distinção entre as
limitações apresentadas na posição original e as que são necessárias para a
efetivação de um acordo constituinte em que as primeiras estão adstritas às
circunstâncias da justiça452. Desta forma, busca-se determinar a constituição que
seja mais justa e eficaz à luz dos princípios de justiça. Mas o momento constitucional
de Rawls pára por aqui ou entra em questões procedimentais e materiais mais
específicas?
Há de se ter a clara noção que Rawls elabora uma seqüência de quatro
estágios que faz parte de uma teoria moral mais ampla, qual seja, uma que busque
um acordo com a profundidade necessária para subsidiar uma concepção política de
justiça. Neste sentido, sua idéia acerca da constituição se restringe aos elementos
mais fundamentais que existem em sociedade e que devem ser organizados e
protegidos. Com esta idéia, Rawls não busca estabelecer de forma específica a
maneira como uma constituição deve ser concretizada com todos os seus
detalhamentos, sendo muito restrito seu campo de atuação: tal tarefa de verificar
como uma constituição real deve funcionar é tarefa do Direito Constitucional que
estuda uma constituição específica e explica seus pormenores. Pode-se afirmar que
o tipo de estágio de aplicabilidade dos princípios de justiça que Rawls nomeia de
estágio constitucional é aquele que deve ofertar o pano de fundo (ou a moldura) que

450
Tudo isso a partir de uma concepção de justiça que se guie por um respeito a todos os indivíduos
e que siga um ideal de cooperação.
451
Imaginando-se que as partes não fiquem tentadas, nem possam, burlar tais restrições.
452
“Podemos definir as circunstâncias da justiça como as condições normais nas quais a cooperação
humana é tanto possível quanto necessária” (RAWLS, 2008, p. 153). Tais circunstâncias podem ser
de cunho objetivo e subjetivo: o primeiro diz respeito a aspectos físicos e mentais dos agentes
políticos, bem como recursos naturais (situação de escassez moderada, por exemplo); o segundo
trata das concepções de bem que os cidadãos podem escolher através do exercício de sua
racionalidade.
133

o Direito Constitucional deve utilizar para estudar a mesma. O objetivo do filósofo de


Baltimore, assim, é conceber uma constituição justa453; não uma constituição do tipo
A, B ou C com base nos exemplos constitucionais que se tem na realidade social,
subdividida em vida política e teoria econômica.
Ao mencionar vida política e teoria econômica e que sua idéia de constituição
não deve depender dos tipos encontrados na realidade, Rawls quer deixar claro três
coisas: (1) que não se pode partir de um ser para fundamentar um dever-ser, o que
incorre em uma falácia naturalista; (2) neste sentido, sua idéia de constituição é ideal
pois é a que seria a mais justa e eficaz, limitadas por determinadas restrições de um
véu da ignorância não tão espesso454; (3) ela se mostra independente pois propõe
algo para a realidade calcada em três grandes noções: (3¹) noção idealizada de
pessoa, (3²) consenso sobreposto como base de legitimidade pública e (3³) uma lista
de bens primários, em que (i) todas estas concepções não podem derivar de uma
doutrina moral abrangente razoável nem de um acordo entre várias destas, e (ii)
todas devem participar de uma noção constitucional455. Lembra-se ainda que além
do motivo justificacional da exclusão da teoria econômica para fundamentar uma
constituição456, há outra questão que deve ser anexada: o tema da (re)distribuição
de renda é algo que deve ser plenamente apartado dos limites constitucionais por
razões teóricas muito claras: para que se pense em políticas públicas para
(re)distribuir renda e riqueza, o véu da ignorância necessitaria estar ainda mais fino
(ou mais erguido) para que se tivessem mais informações sobre as contingências
(lato sensu) sociais. Poder-se-ia fazer a seguinte questão: por quê não levantar um
pouco mais o véu da ignorância a fim de satisfazer esta exigência, e incluir assim
alguns (ou mais) direitos sociais na proposta de constituição?
Mesmo não obtendo uma resposta exata sobre o pensamento rawlsiano
acerca deste tema, é propício compreendê-lo de forma sistemática para que se
possa construir uma resposta que ao menos venha a legitimar as opções adotadas
pelo filósofo norte-americano, e fazer com que seu modelo constitucional não pareça
mera opção filosófica sujeita a vontade individual. Mas o curioso é que tal pergunta
pode ser respondida de maneira breve e precisa, mesmo que tal precisão acabe por

453
De acordo com a teoria política que melhor respeite os direitos individuais em um ideal de
cooperação, que no caso é a justiça como eqüidade.
454
Ou não tão abaixado caso se pense em uma cortina em um teatro.
455
Alguns bens primários de forma direta outros de forma indireta.
456
Não usar as teorias econômicas existentes de forma direta por representarem a esfera do ser.
134

gerar outros questionamentos457: o tipo de véu da ignorância pensado por Rawls


acerca dos direitos e liberdades básicas pode e deve ser de cunho mais espesso do
que o que trata de questões de distribuição de renda e riqueza, e neste ponto,
colocar o tema do princípio da diferença dentro de uma carta constitucional
acarretaria um choque entre dois tipos de véu da ignorância. Mas mesmo assim, por
que não estabelecer que no momento constitucional haveriam dois tipos de véu da
ignorância para questões distintas, e que as partes ora usariam um, ora outro para
cada tema a ser resolvido? Desta forma estaria solucionada esta ampla dicotomia
entre uma esfera constitucional e o âmbito legislativo, acrescido ao fato de que as
pessoas se veriam mais protegidas ao estarem estabelecidas na constituição o
princípio da diferença e todas as suas conseqüências458. Ademais, se os princípios
de justiça são escolhidos sob um mesmo véu da ignorância, por que os mesmos não
podem estar submetidos em um mesmo estágio de aplicação, ou sujeitos a um
mesmo véu da ignorância?
Para responder esta última questão, há de se começar por uma simples
distinção: um momento é a construção de algo que possa nortear toda uma estrutura
básica bem como as relações interpessoais, outra coisa é a aplicação destes pois
desta podem derivar juízos dos mais variados (pluralismo razoável) com grandes
problemas de execução que merecem tratamentos distintos em virtude de serem
questões distintas: há diferença substancial entre direitos e liberdades básicas e a
forma com que se devem distribuir bens primários sociais, por exemplo. Mesmo que
todos se apliquem a sociedade, há duas proposições que devem ser levadas em
conta: (1) para os propósitos da justiça como eqüidade deve haver a prioridade
lexical do primeiro princípio de justiça sobre o segundo princípio de justiça, visto que
o primeiro garante que o indivíduo não seja desrespeitado em hipótese alguma, ao
passo que o segundo visa como distribuir (e justificar a desigualdade) os bens
sociais de forma equânime, em que se deve pensar primeiro no indivíduo (célula
básica da sociedade) para que se pense na coletividade459; (2) advém disto que
sendo os princípios pertencentes a prioridades distintas (mesmo que atuem em

457
Aqui se vê parte da corroboração do trilema de Münchausen, no qual uma fundamentação circular
nunca apresentará um ponto de apoio fixo e imutável.
458
Com o que foi demonstrado, pode-se declarar cabalmente que tais argumentos poderiam fazer
parte de uma defesa de uma constituição dirigente – para se apoiar em uma literatura constitucional –
no qual não somente direitos e liberdades básicas estariam protegidas, mas sim direitos de ordem
social, conforme o modelo que é adotado no Brasil.
459
Sem que esta palavra remeta a alguma semelhança integral com o comunitarismo.
135

conjunto), acabam por representar problemas distintos de análise e que não podem
ser submetidos as mesmas restrições de aplicação.
Com relação a pergunta que demonstraria certa incongruência entre pensar
os princípios de justiça na posição original sob um véu da ignorância único, e outra
forma que expõe os mesmos sob dois tipos de véu da ignorância, isto pode ser
colocado nos seguintes termos (em defesa de Rawls): existiria outra diferença
básica entre a idéia de véu da ignorância. Haveria desta forma um véu da ignorância
de construção e outro véu da ignorância de aplicação, em que tal distinção segue a
mesma linha que é adotada pelo filósofo de Baltimore quando este assevera que o
véu da ignorância na seqüência de quatro estágios deve ficar menos espesso com o
avanço dos estágios. Contudo, crê-se que a distinção aqui utilizada é a mais
adequada para responder o questionamento trazido à baila: um véu da ignorância de
construção é aquele que se apresenta com uma validade universalista; que
apresenta restrições que podem ser aceitas por todos independente de sua classe,
raça, status, etc.; e é permitido que com este véu, que as partes possam vir a aceitar
razoavelmente os princípios que se aplicam a estrutura básica de justiça bem como
nas relações interpessoais, por terem um caráter justo e imparcial (para todos); bem
como é um véu que permite que os princípios de justiça extraídos desta posição
original possam ser olhados pelas partes e aceitos como aqueles que tem a
capacidade de respeitar e estabelecer as bases mínimas de cooperação social, sem
romper com os direitos e liberdades básicas dos cidadãos e que todos desejariam
caso não soubessem que lugar ocupariam em sociedade.
No entanto, um véu da ignorância de aplicação apesar de ser pensado dentro
de um viés universalista, ele se mostra com objetivos de execução e que
exatamente por esta característica há a necessidade de que se levem em conta
determinadas contingências específicas da sociedade que não podem estar
presentes na proposta de generalização encontrada no véu da ignorância da
posição original, mas que nem por isso deixam de ter a potencialidade de serem
aceitos por todas as pessoas razoáveis, pois estas levam em conta tanto o auto-
interesse quanto os interesses de outrem. Contudo, para satisfazer as necessidades
que uma constituição deve possuir para que se estabeleçam direitos e liberdades
básicas, bem como para plena efetivação de uma (re)distribuição justa (ambos
sendo a representação na prática do ideal da justiça), há de se verificar
determinadas peculiaridades sociais que em um primeiro momento não se faziam
136

necessárias em virtude da amplitude que a mesma apresentava. Como se busca


uma execução da carga axiológica oriunda de um estágio anterior, Rawls propõe
que o véu da ignorância seja parcialmente erguido (ou diminuída sua espessura)
para que se possa materializar a generalidade dos princípios de justiça, sem com
isso endereçá-los a um sujeito ou a um grupo de sujeitos460.
O que deve se deixar claro é que: (i) a função do véu da ignorância em
qualquer nível ou estágio permanece a mesma, qual seja a de ser uma restrição
formal em maior ou menor grau para a construção ou aplicação dos princípios da
diferença; (ii) ao se admitir certa variação de espessura no véu da ignorância de
acordo com a participação do mesmo em determinado estágio, Rawls admite que
este deve se adequar as necessidades que cada etapa possui, não podendo ser
concebível que um véu da ignorância que se aplique em um exercício hipotético
racional tão profundo como é a posição original, em que há a existência de partes (e
não cidadãos ou pessoas propriamente ditas) construindo princípios de justiça, seja
o mesmo para a consecução de uma constituição, de uma legislação ou mesmo
para a aplicação do Direito, visto que estes apresentam consigo (intrinsecamente)
fatores da realidade que podem ser excluídos da posição original 461; (iii) desta forma
não se mostra incompatível uma noção que utilize dois ou mais tipos de véu da
ignorância (variando a espessura), pois os mesmos possuem destinações e
propostas distintas462 que não se confundem mesmo que de um derive outro e assim
sucessivamente.
Se fosse possível fazer alguma forma de alusão a um tipo de motor imóvel
presente na teoria da justiça como eqüidade em Rawls, especificamente no que diz
respeito a esta restrição formal, isto pode ser declarado da seguinte forma: o véu da
ignorância da posição original é aquele que é o mais espesso em toda a teoria
rawlsiana, e o único que se aplica fundamentalmente ao estabelecimento da
construção de princípios de justiça; dele emanam todos os outros véus da ignorância
(mais finos, ou mais levantados), que servem tão-somente para a aplicação dos
princípios de justiça na realidade; nisto pode se determinar que aquele seria o

460
Pelo menos no âmbito constitucional, pois no que tange a legislação que abarca o princípio da
diferença, pode-se depreender que para (re)distribuir bens sociais, tem-se a necessidade de ter
noção de situações pormenorizadas da sociedade, o que implica o conhecimento de grupos de
indivíduos muito específicos.
461
Igualmente que as partes tenham conhecimento de um mínimo básico para embasarem sua
proposta.
462
Mesmo que possuam em comum a noção de limitação para as partes ou cidadãos.
137

elemento de fundamentação última no qual Rawls apoiaria toda sua restrição


formal463. Estabelecidas tais considerações acerca do véu da ignorância, sua
relação com a vida política e com a teoria econômica, com os princípios de justiça e
suas restrições formais na fase de construção e de aplicação dos mesmos, convém
regressar a seqüência de aplicação dos quatro estágios para que se possa visualizar
o que foi declarado em linhas mais genéricas.
Retornando o que foi declarado acerca do estágio constitucional de aplicação
dos princípios de justiça, havia sido mencionado que o objetivo central nesta etapa
era estabelecer uma constituição justa e não pensar em um tipo constitucional
específico. Rawls nota que disto podem advir dois grandes problemas para a
construção deste tipo ideal de constituição que derivam de um mesmo eixo comum:
o modelo de procedimento a ser adotado. Neste ponto fica claro que para que se
obtenha uma constituição prenhe de justiça, pronta para espargir seus frutos na
legislação e na aplicação mais pormenorizada dos princípios de justiça no dia-a-dia
dos cidadãos (aplicação mais individualizada), deve-se ter em mente que esta deve
ser gerida a partir de uma concepção embasada em um procedimento que seja
igualmente justo. Desta última afirmação podem ser declaradas duas questões
centrais: (a) que o procedimento no qual a assertiva se refere é algo que equivale a
um processo político que controla, estabelece as diretrizes e aplica princípios de
justiça na constituição (uma parte formal); (b) quando se fala em resultado justo isto
sugere que o que se deve extrair da constituição, ou seja, é um amplo leque de leis
(guiadas pelos princípios de justiça). Neste ponto convém lembrar que estes
mesmos princípios de justiça que devem fazer presença em cada estágio a ser
destacado e principalmente na questão da etapa constitucional, ao mesmo tempo
em que participam ativamente da consecução destas seções executórias também
servem como critérios de avaliação para as políticas e ações adotadas em cada
estágio: os mesmos apresentam um duplo aspecto, de aplicação e de avaliação das
medidas adotadas em cada etapa. Tanto para o procedimento quanto para o

463
Salienta-se que em hipótese alguma quer-se declarar que Rawls apresenta elementos
fundacionalistas e que não esteja dentro de um coerentismo circular em sua proposta de justiça, mas
sim meramente cotejar com a asserção que o mesmo faz quando declara que sua proposta de justiça
é tão metafísica que não se enquadra em nenhuma linha metafísica: o véu da ignorância da posição
original é tão fundacionalista que não se enquadra em nenhuma noção fundacionalista – dentro de
um plano de pensamento que partisse de uma noção de que a restrição formal é o ancoradouro de
toda construção teórica rawlsiana.
138

resultado destaca-se que os princípios de justiça devem se mostrar independentes


em sua medida avaliativa, pois são frutos de uma concepção política de justiça.
Com estas declarações, fica claro que o tipo de procedimento (e de
materialidade) que Rawls deseja para a construção de sua teoria constitucional (se é
que se pode adotar tal nome) tem a ver com o conceito de justiça procedimental
pura (ou perfeita), que é aquela no qual usa a seguinte fórmula lapidar: para uma
obtenção de resultados justos os mesmos devem estar necessariamente vinculados
a um tipo de procedimento justo, do contrário, nada se efetiva nestes moldes 464.
Supondo tal concepção, o primeiro problema que é aduzido pelo filósofo norte-
americano diz respeito ao fato de como proceder para obter um procedimento justo:
em suma, qual é a metodologia para obter um procedimento que se enquadre neste
ideal de justiça procedimental justa (perfeita). Por conseguinte, para a concretização
deste ideal de justiça procedimental perfeita há de se pensar fundamentalmente na
idéia da existência de uma defesa clara (na constituição) de uma liberdade igual
para todos os cidadãos. Salienta-se que quando Rawls toca no tema de uma
liberdade igual para todos, esta inclui essencialmente a garantia de uma liberdade
de pensamento, expressão, consciência, uma própria liberdade individual, bem
como a garantia de direitos políticos para que se obtenha uma constituição justa.
Ainda, esta conotação de igual liberdade é a base para que se tenha um sistema
político calcado em uma democracia constitucional. Com esta fórmula justificacional,
Rawls acaba por excluir de sua teoria da justiça como eqüidade a possibilidade da
adoção da democracia procedimental político, pois mesmo que este sistema se
mostre como válido ele também pode gerar graves injustiças sociais.
Mas mesmo declarando ser partidário de tal procedimento perfeito tido como
aquele que de um procedimento justo se chegam a resultados justos, o filósofo de
Baltimore tem a clara noção de que tal mecanismo é inviável na prática pois as
restrições que se aplicam, por exemplo, em uma posição original, não são as
mesmas que se aplicam em outros momentos de execução dos princípios de justiça:
há uma carência fática quanto a normas procedimentais políticas que garantam uma
constituição justa. Com o isso, o modelo ideal previamente pensado por Rawls não é
executável, levando a argumentação a um caminho que indique que o melhor
sistema que pode ser alcançável, é aquele sedimentado sobre uma justiça

464
Isto pode ser remetido ao § 14 de Uma teoria da justiça.
139

procedimental imperfeita. Repare que nos momentos posteriores à posição original


já não se está sob o véu da ignorância. Portanto, os princípios deverão sem dúvida
alguma servir de guias. A questão de sua aplicação é mais complexa e envolve
elementos fáticos. Princípios não são leis: eles devem ser implementados na maior
medida possível. Isso é algo mais apropriadamente desenvolvido por Dworkin 465 (no
âmbito do modelo liberal) do que por Rawls. Por essa razão, o princípio de justiça
como equidade é muitas vezes denominado bridge principle: ele liga os dois
princípios de justiça com as práticas sociais institucionalizadas. As instituições
sociais acabam por materializar os princípios, o que muitas vezes envolve reformas
(ou até mesmo a desobediência civil mesma) sociais, políticas, econômicas, etc.
Como corolário, se segue que diante da amplitude de possibilidades de
desenvolvimento de um sistema político dentro de um regime constitucional
democrático que preze por uma defesa dos direitos e liberdades básicas, bem como
da evidência empírica de que ao se imaginar uma aplicação dos princípios de justiça
no recinto constitucional os mesmos não podem obedecer uma justiça procedimental
pura (perfeita) e sim uma justiça procedimental imperfeita466, há neste ponto a
possibilidade de se pensar em diversos modelos políticos viáveis que produzem leis
igualmente justas em um sentido bem limitado (mínimo). Disto pode-se extrair que
existem diversos sistemas políticos possíveis467, que produzem diversos conjuntos
de leis e que então conduzem a potencialidade de se pensar que há um sistema que
possa gerar leis que sejam mais justas do que as produzidas por outros sistemas.
Não que essa argumentação conduza a um tipo de relativismo que leve a um
pensamento que julgue que existem diversos graus de justiça, cambiando de acordo
com as intenções ou necessidades sociais. Isto deve ser visto como uma proposta
que afirma que subsistem uma variedade de sistemas que em um primeiro momento
podem ser declarados como justos, contudo, uma análise mais acurada indicará que
um determinado sistema político é aquele que melhor se harmoniza com as
necessidades da sociedade.
Da exposição feita deriva o segundo grande problema acerca do
estabelecimento de uma constituição justa: “escolher, dentre os arranjos
procedimentais ao mesmo tempo factíveis e justos, aqueles que tenham maior

465
Um filósofo do Direito propriamente dito.
466
Por carências nas restrições de sua concretização.
467
Todos estes, supondo, que obedeçam o mesmo mínimo comum de defesa dos direitos e
liberdades básicas.
140

probabilidade de conduzir a uma ordem jurídica justa e eficaz” (RAWLS, 2008, p.


242-43). Nesta situação, a grande chave de construção de uma teoria acerca da
etapa constitucional é fixar normas468 que devem ser fomentadas para o desenlace
de uma legislação (resultado justo) que busque primordialmente estar em harmonia
com os princípios de justiça (RAWLS, 2008, p. 243). Esta última frase é
correlacionada a Rawls com a idéia da necessidade de uma identificação artificial de
interesses dos agentes (que assumem o papel de normas em sua teoria da justiça)
de Jeremy Bentham, quando este sente necessidade de uma justificação para a
produção de um ordenamento justo, em que ao final tudo deve estar coligado com o
princípio da utilidade (em virtude deste defender o utilitarismo). Com esta leitura
utilitarista por parte de Rawls, e reconhecendo as virtudes que esta grande escola
do pensamento ocidental possui, o filósofo de Baltimore oferece a seguinte solução
para este problema: há de se ter um conhecimento a respeito de (i) convicções e (ii)
interesses dos agentes políticos envolvidos no sistema político de uma democracia
constitucional, bem como saber o estilo de tática política a ser empregada de
maneira racional frente as vicissitudes encontradas na realidade (RAWLS, 2008, p.
243). E tais noções devem ser os alvos das partes no acordo constituinte para que
estas apliquem os princípios de justiça da melhor forma possível, com a restrição
fundamental de que tal modelo aplicativo não seja personalista nem voltado a
contingência de um determinado grupo social.
Ainda faz-se necessário que na formação da estruturação constitucional esta
deve estar umbilicalmente ligada ao tipo de construtivismo político 469 esboçado para
a delineação dos princípios de justiça destacados na posição original sob um véu da
ignorância, em que aqueles acabam por representar um padrão independente de
avaliação e de consecução da própria conjuntura constitucional. Mas qual é o motivo
que garante autonomia principiológica? Esta se dá, basicamente, em razão: (a) das
limitações impostas pelo véu da ignorância – suas restrições formais; (b) dos
princípios de justiça obedecerem a uma formulação de cunho universalista, a partir
de uma idéia política de justiça que não é dependente de uma teoria moral
abrangente razoável específica ou de um ponto em comum apresentado pelas
468
Que representam o procedimento.
469
Deve-se deixar claro que na justiça como eqüidade “somente os princípios substantivos que
especificam o conteúdo da justiça e dos direitos políticos são construídos. O próprio procedimento é
simplesmente estipulado, usando-se como pontos de partida as concepções básicas de sociedade e
pessoa, os princípios da razão prática e o papel público de uma concepção política de justiça”
(RAWLS, 2000, p. 150).
141

mesmas; (c) de sua justificação ser pública, pautado por uma idéia de razão
pública470 que legitima um consenso sobreposto e faz com que a adoção de uma
concepção política de justiça possa produzir resultados positivos para todos os
cidadãos (e para a sociedade).
Com estas explicações fica evidente que os princípios de justiça se mostram
autônomos, podendo ser aplicáveis (e servir como critério do que seja o justo) tanto
por instituições sociais básicas como por qualquer sujeito que execute as duas
faculdades morais que a concepção ideal de pessoa de Rawls carrega consigo:
racional e razoável. Seguindo nesta linha elucidativa, deve-se deixar assentado que
se a formação constitucional não se pautar por tal noção de que os princípios de
justiça devem se mostrar como independentes, pode-se asseverar que o caixilho
constitucional não está existente para a verificação de qual constituição (com todos
os seus procedimentos e resultados) será a mais justa e eficaz perante determinada
circunstância471.
A equalização do produto principal da posição original sob o véu da
ignorância (os princípios de justiça), com o estabelecimento de premissas básicas
reais através de uma carta constitucional, para Rawls, se mostra esgotado472, o que
faz com que surja a necessidade de um aprofundamento na aplicação dos princípios
rawlsianos. Pois fica muito claro que o segundo princípio de justiça e seus
desdobramentos não foram sequer estabelecidos no ordenamento constitucional; e
como o filósofo de Baltimore, ao desenvolver a seqüência dos quatro estágios de
aplicação dos mesmos deseja a efetivação prática de princípios tomados por
abstratos, e a ausência do segundo princípio de justiça (principalmente do princípio
da diferença) é patente em sua teoria constitucional faz-se necessária nova etapa
para dotar de materialidade aqueles. Discutindo-se sobre este aspecto, surge o
estágio legislativo: neste a justiça de leis deve ser posta em cheque a partir da
noção que obedece a evolução do primeiro e do segundo estágios de aplicação, em

470
Em linhas gerais pode-se asseverar que “a razão pública é a razão de cidadãos iguais que,
enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns sobre os outros ao
promulgar leis e emendar sua constituição” (RAWLS, 2000, p. 263).
471
Salienta-se que ao vincular a constituição com a circunstância, Rawls não cai em um relativismo:
somente reconhece a necessidade de levar em conta a realidade de uma sociologia política para que
a constituição – algo real – possa dialogar com propriedade a respeito daquilo que ela se destina, que
é a aplicação dos princípios de justiça na própria realidade, sem deixar de ser um dever-ser.
472
Em razão da espessura do véu da ignorância e de que a constituição deve estabelecer tão-
somente os regramentos mais elementares da sociedade, quais sejam, os direitos e liberdades
básicas.
142

que há uma dependência funcional e justificacional dos mesmos obedecendo em


parte a ordem léxica já fixada a respeito dos próprios princípios de justiça.
Com isso, Rawls mais uma vez atribui a função de verificar a disponibilidade
dos princípios de justiça no âmbito da legislação473, em que as partes não podem ter
conhecimento de suas particularidades, pois se tivessem seus julgamentos seriam
plenamente viciados. Aqui uma comparação deve ser feita com a idéia de um
espectador ideal utilizada pelo utilitarismo, com a ressalva de que o representante
legislativo rawlsiano não se mostra conhecedor de particularidades: (i) ambos devem
ter um conhecimento substancial (guardadas suas diferenças) para o julgamento do
que seja justo e injusto; e (ii) este conhecimento possibilita que os princípios de
justiça que são formulações abstratas possam ganhar flesh and blood ao imaginar
que estejam sujeitas a avaliações realizadas por agentes políticos habilitados com
noções da realidade. Destarte, a legislação deve atentar a dois padrões políticos
existentes: em primeiro lugar ser adequada aos princípios de justiça e em segundo
lugar respeitar o ordenamento constitucional.
Mas a idéia de aplicação dos princípios de justiça em um estágio legislativo
tem sua força unicamente em seu âmbito de atuação? De acordo com Rawls, seus
reflexos não se mostram unicamente em sua órbita restrita, pois “por meio desses
movimentos para frente e para trás entre os estágios da legislatura e da convenção
constituinte, encontra-se a melhor constituição” (RAWLS, 2008, p. 243). Existindo
este padrão, o filósofo norte-americano mostra em mais um momento o seu
coerentismo justificacional: apesar das etapas destinarem-se a resolver problemas
próprios de suas alçadas474, estas não se mostram como formulações estanques
que não apresentam pontos de conexão. Além desta interdependência da etapa
posterior com a anterior fica evidente que nem todos os problemas da sociedade
podem ser resolvidos com o momento constituinte, pois este necessita de um
complemento material ao individualismo excessivo que o princípio da igual liberdade
poderia conduzir475, em virtude de que com uma legislação que leve em conta a

473
Mesmo que o foco seja do segundo princípio de justiça, e mais particularmente no que diz respeito
ao princípio da diferença, estes devem estar de acordo com o acordo constituinte, seguindo a
tradição democrática constitucional.
474
Em que o estágio constitucional soluciona problemas de direitos e liberdades básicas, ao passo
que o estágio legislativo desenvolve ações voltadas para a aplicação do princípio da diferença.
475
Mas não conduz.
143

igualdade e a solidariedade476 com o escopo de socializar a justiça como eqüidade,


pode-se apresentar uma solução para uma questão que em muito incomoda a
filosofia política, a sociologia política e a ciência política: liberdade ou igualdade?
Para Rawls nem uma nem outra, mas sim uma complementaridade entre
ambas, que apresentam uma ordem léxica de prioridade (não absoluta) para dirimir
possíveis contendas sociais: deve-se garantir primeiramente uma igual liberdade
para que se possa executar o princípio da diferença de forma não absoluta477. E tal
reflexo se faz sentir no campo de aplicação dos princípios de justiça nos quatro
estágios enumerados, bem como na maneira com que o Direito será fundamentado
a partir desta seqüência. Ainda sobre o âmbito legislativo cabe lembrar que Rawls
assevera que um consenso constituinte que obedecesse ao mecanismo da justiça
procedimental pura (perfeita) é impraticável; da mesma forma, diante de tal
impossibilidade decorre que os cidadãos acabam se achando impossibilitados de
definir a noção que se adéqüe àquele parâmetro que seria o ideal, restando a
possibilidade de se encontrar o sistema de justiça que é o melhor dadas as
circunstâncias, o que remete a uma justiça procedimental imperfeita. Um ponto
semelhante ocorre quando na construção das leis, no exato momento em que estas
tem de ser avaliadas à luz de sua justiça e injustiça com relação a políticas
econômicas e sociais, pois o fato do pluralismo razoável permeia toda a justiça como
eqüidade tanto no campo formal quanto pragmático.
No tocante a este aspecto de leis que regem o sistema de distribuição de
renda e riqueza (assim como de bens sociais de uma forma geral), Rawls declara
que em geral as pessoas podem apresentar juízos razoáveis que sejam amplamente
discordantes sobre algum ponto (ou sobre vários pontos), em que estas avaliações
morais e de justiça dependem fundamentalmente (i) do tipo de doutrina política e
econômica adotada bem como (ii) do tipo de teoria social que determinado cidadão
segue. Como corolário, o que se pode depreender com o melhor intuito de agregar
doutrinas morais e políticas amplas e não de tornar as suas convivências
impossíveis, é declarar que uma lei ou política não se mostra claramente injusta. Se
fosse tentado afirmar que uma lei ou política é justa (no sentido científico), isso
476
Se é que se pode fazer tal equivalente com o princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades e
com o princípio da diferença.
477
Isto é garantido pela exceção no qual o princípio da igual liberdade pode ser sobrepujado, admitida
pelo filósofo de Baltimore em Uma teoria da justiça (p. 77), onde este admite que a ordenação
proposta é a melhor possível, podendo haver falhas diante de determinadas circunstâncias (não
especificadas).
144

implicaria que o cidadão que viesse a asseverar tal posicionamento deveria defender
a verdade moral e política da mesma perante outrem que não compartilha da
mesma noção: neste sentido, afirmar que uma lei não é manifestamente injusta abre
uma ampla gama de possibilidades para que no mínimo todos os cidadãos possam
vir a aceitá-la razoavelmente, pelo menos até que uma revisão mais minuciosa
venha a destituí-la de sua função originária, erigindo outra lei também tomada como
uma que não se mostra declaradamente injusta478.
É de fundamental importância ter em mente que a aplicação do princípio da
diferença é deveras exaustiva quando cotejada com a execução do primeiro
princípio de justiça, o que traz implicações no que tange a espessura do véu da
ignorância que deve ser utilizado (ou na altura em que o mesmo é erguido): o
princípio da diferença exige uma grande quantidade de dados econômicos, sociais e
políticos que não precisam ser utilizados para a aplicação do princípio da igual
liberdade. Isto se justifica pelos seguintes motivos intuitivos: é muito claro quando
um direito a uma liberdade básica é rompido em sua proteção, pois o mesmo pode
ser visto (a) como uma injustiça em sua transgressão (quando não é respeitado), ou
(b) quando a estrutura das instituições sociais básicas não fomenta nem respeita o
que é preconizado em uma carta constitucional de um regime democrático pleno 479.
Em contrapartida, questões que envolvem o tema da (re)distribuição de renda e
riqueza (basicamente questões sociais e econômicas) se mostram complexas para a
determinação exata e precisa de quando tais ações políticas são tomadas de forma
indevida ou omitidas, visto que a própria essência do liberalismo admite variações
em que se pense em uma maior ou menor faixa de (re)distribuição daquelas480.
Perante o que foi determinado, Rawls acaba optando para a elucidação da
dificuldade delineada por um tipo de argumentação que parte de uma hipótese
teórica calcada na funcionalidade de cada estágio de aplicação dos princípios de
justiça. Nesta linha, haveriam duas grandes divisões estruturais sob o qual a

478
Este movimento é sucessivo pois está alicerçado em uma idéia de que a humanidade caminha
para um progresso moral e político, logo não pode haver uma verdade absoluta e científica (que
implicaria que qualquer possibilidade de revisão de uma lei ou juízo moral seria considerado um erro,
algo falso), no máximo uma verdade provisória ou mitigada, sujeita a revisões quando necessária.
479
Por exemplo, as estruturas sociais e políticas engendradas pela ditadura militar brasileira no
período de 1964 até 1985 claramente romperam com direitos e liberdades fundamentais dos
cidadãos, promovendo cassações de direitos políticos, censura, e até mesmo tortura contra aqueles
que não compartilhavam da mesma doutrina moral abrangente não razoável estabelecida pelo
regime.
480
O que gera a dificuldade central, de determinação, do que é justo e injusto neste tema.
145

estrutura da justiça como eqüidade visualizaria sua aplicação: um primeiro momento


representado pelo princípio da igual liberdade e uma segunda etapa traçada á luz do
princípio da diferença. No que tange ao primeiro princípio de justiça, deve-se deixar
claro que o mesmo é aquele que deve servir de norte para a elaboração e
concretização de uma teoria constitucional. Para tal empreitada é necessário que os
direitos e liberdades básicas sejam albergados e efetivados pela mesma, além do
que o tipo de procedimento pensado pelo acordo constituinte há de necessariamente
seguir a noção daquilo que seja declarado como o justo481: “a constituição define um
status comum de cidadania igual e realiza a justiça política” (RAWLS, 2008, p. 244).
Já o segundo princípio de justiça e seu principal desdobramento material, qual seja,
o princípio da diferença, encontra respaldo aplicativo no estágio legislativo. Tal
princípio que visa a (re)distribuição de renda e riqueza, ou seja, que entra
diretamente no campo social e econômico, acaba tendo por objetivo precípuo
“maximizar as expectativas de longo prazo dos menos favorecidos, em condições de
igualdade eqüitativa de oportunidades, desde que as liberdades iguais sejam
preservadas” (RAWLS, 2008, p. 244). Com isso, faz-se a seguinte pergunta: que tipo
de véu da ignorância seria utilizado neste ponto?
Ora, acaba ficando evidente que ao se imaginar um princípio da diferença que
vise uma intromissão (sem nenhuma conotação negativa) nas áreas econômicas e
sociais, mexendo na (re)distribuição dos bens sociais existentes em sociedade, não
se pode pensar em um tipo de restrição formal que limite demasiadamente os
cidadãos em suas construções legislativas. Com isso, torna-se imperioso que os
cidadãos tenham um conhecimento mais aprofundado da própria realidade social,
podendo ter acesso a todas as contingências econômicas e sociais que estão
presentes em sociedade com o escopo de fazer uma legislação que melhor se
harmonize com o acordo constituinte e com os princípios de justiça 482. Então, fica
claro que a etapa legislativa “contém as distinções e as hierarquias das formas
sociais, políticas e econômicas necessárias à cooperação social eficaz e
mutuamente benéfica” (RAWLS, 2008, p. 244). Frente a tudo isso, pode-se

481
Dentre os vários sistemas existentes, escolhe-se aquele que é mais eficaz e mais correto para a
consecução do ideal da justiça como eqüidade.
482
Sabendo que este conjunto de leis é o menos injusto que a sociedade pode desenvolver para a
realidade, estando sujeitos a revisões quando necessárias com o escopo de aprimoramento das
mesmas,e seguindo os moldes de uma justiça procedimental imperfeita – se a constituição já é
nestes termos, seria ilógico imaginar que um ordenamento legal sujeito as restrições daquela
apresentasse uma justiça procedimental pura ou perfeita.
146

asseverar que a mesma prioridade lexical existente entre o primeiro princípio de


justiça perante o segundo princípio de justiça é visualizada na ordem que fixa que a
constituição (ou o acordo constituinte) deve ser prioritário em relação ao estágio
legislativo: a mesma fundamentação que limita a construção teórica da igualdade em
face a plena satisfação da liberdade, também fixa que aplicabilidade da igualdade a
partir do momento em que a liberdade esteja plenamente salvaguardada no acordo
constituinte.
Avançando na referida seqüência dos quatro estágios, tem-se que a plena
aplicabilidade dos princípios de justiça não se mostra ainda na forma com que a
práxis social almeja. Visto que somente dois grandes estágios foram concluídos e de
forma generalizante: no estágio do acordo constituinte, direitos e liberdades básicas
são protegidas e o véu da ignorância é parcialmente levantado para esta construção
teórica; já no estágio legislativo, apesar do véu da ignorância ser erguido um pouco
mais em relação a etapa anterior mesmo assim a aplicação do princípio da diferença
se dá de forma geral e não específica. Neste sentido, advém a necessidade de mais
um estágio para dar cabo a este amplo mecanismo de execução prática dos
princípios de justiça. Desta forma, o quarto estágio está caracterizado por uma
noção que vise uma particularização de aplicação das normas por juízes e
administradores políticos, bem como o acatamento público e privado destas
determinações (e dos princípios de justiça) pelos cidadãos (de uma forma geral).
Como conseqüência básica, pode-se declarar que o véu da ignorância acaba sendo
totalmente retirado, pois para a plena aplicação deste estágio tem-se a necessidade
de que os cidadãos possuam a capacidade de conhecerem todos os fatos sociais e
econômicos, tanto da sociedade como um todo, como de grupos sociais, como dos
próprios indivíduos: no caso em tela, o conhecimento passa a ter uma determinação
ilimitada, o que literalmente transmuta a visão de partes que escolhem determinadas
formas de aplicação dos princípios de justiça483, para indivíduos que conhecem
todas as peculiaridades humanas484.
Quando se fala que não há mais restrição ao tipo de conhecimento que os
cidadãos devem possuir para a consecução desta quarta etapa, quer-se fixar que o
sistema elaborado de normas (sejam as constitucionais, ou meramente as
legislativas) já encontra respaldo fático nas circunstâncias e características próprias

483
Ou mesmo a escolha destes na posição original.
484
E aqui há certa aproximação com a noção de um espectador ideal.
147

de cada grupo social ou mesmo em cada cidadão. Cabe salientar que este ponto de
aplicação tem um caráter meramente personalista de aplicação dos princípios de
justiça, não podendo representar um aspecto que estabeleça os fundamentos e
limites da obrigação e do dever político pois estes são forjados quando da
concepção de um acordo primário na posição original (que estabelece os princípios
de justiça), que é a base axiológica existente para que se depreenda as noções
gerais acerca do justo. Logo, ao se pensar em obrigação e em dever político, julga-
se que estes são fixados na forma de princípios e determinados de forma ampla
pelos mesmos; mas para imaginar a aplicação da obrigação e do dever político em
casos particulares, deve-se pensar à luz do quarto estágio aqui apresentado.
A respeito da idéia de um véu da ignorância totalmente erguido neste estágio,
Rawls apresenta a justificação de que tal acesso ao conhecimento absoluto de
circunstâncias e peculiaridades sociais obedece a uma ordem muito clara, que é
paulatinamente trabalhada com o escopo de aplicar os princípios de justiça. Assim
segue-se que de acordo com o pensamento rawlsiano existiriam três grandes tipos
de fatos nos quais os cidadãos estão envolvidos (e que podem conhecer): (a) um
fato que diz respeito a uma noção ampla de princípios morais e políticos
pertencentes a outras doutrinas morais abrangentes razoáveis com todas as suas
inferências; (b) outro fato que diz respeito a informações amplas sobre a sociedade,
tais como as que dizem respeito às suas circunstâncias naturais, econômicas e
sociais485; (c) conhecimento sobre questões muito específicas que dizem respeito
aos indivíduos, seguindo a mesma linha do item anterior com a ressalva de serem,
neste âmbito, aquelas informações particularizadas em virtude da necessidade
própria que este fato apresenta486.
Evidentemente que a construção da aplicação dos princípios de justiça, ao
serem desenvolvidas em quatro estágios (partindo-se da posição original sob um
véu da ignorância), oferece concepções distintas acerca das suas restrições formais
bem como com relação ao tipo de conhecimento (dentre os listados acima) que é
necessário para a efetividade dos princípios previamente acordados no acordo
primário. Destarte, na posição original não devem ficar excluídas as questões que
tratam de fatos determinados, “mas os únicos fatos específicos conhecidos pelas

485
Por exemplo, o conhecimento acerca de um índice de desenvolvimento social e econômico, ou
mesmo alguma informação a respeito dos recursos naturais que uma sociedade possui, etc.
486
Sendo possível ter acesso ao status social de um indivíduo, bem como saber sua renda e riqueza,
etc.
148

partes são os que se podem inferir das circunstâncias da justiça” (RAWLS, 2008, p.
245). Ao ser afirmado isto, pode-se declarar que as partes conhecem como são as
doutrinas morais abrangentes razoáveis existentes em sociedade, mas não sabem
nada a respeito dos caminhos que a história social estabelece (ou estabeleceu, ou
ainda, estabelecerá) no que tange a sua forma, conjunto de adeptos para esta ou
aquela doutrina moral, quem dita o poder político, como é a distribuição atual do
mesmo, no tocante às teorias sociais e suas contribuições para a construção dos
direitos individuais e coletivos, da própria teoria social, etc.
Com a estrutura básica montada, no que diz respeito aos princípios de justiça
e sua participação na posição original, relativamente às limitações formais que
existem, ocorre que para uma práxis principiológica, há de se ter em mente que
devem ocorrer gradualmente dois fatos que concorrem para o objetivo rawlsiano,
quais sejam: (i) deve-se abrir o conhecimento para os fatos genéricos presentes em
sociedade, de forma paulatina, com o escopo de dotar as partes de maiores
informações necessárias a realização de cada estágio de aplicação dos princípio de
justiça487; (ii) mesmo com tal abertura, as partes devem continuar avessas a um
conhecimento acerca das particularidades de cada cidadão488. Isto tudo se justifica
pelo fato de que já foram estabelecidos os princípios basilares da justiça (na posição
original), portanto o arcabouço axiológico já foi muito bem delimitado, permitindo
com que a partir desta sólida armadura se possam executar aqueles no âmbito da
realidade489: os princípios de justiça foram escolhidos na posição original de acordo
com as mais rígidas restrições formais possíveis, o que permite com que os mesmos
tenham a legitimidade necessária para, aos poucos, perderem parte destas
restrições em vistas de sua aplicabilidade.
Assim, fixa-se que

o fluxo de informações é definido, em cada estágio, pelo que se exige para a


aplicação desses princípios de maneira inteligente ao tipo de problema da
justiça em questão; ao mesmo tempo, ficam excluídos quaisquer
conhecimentos com probabilidades de provocar distorções ou preconceitos,
ou a jogar os indivíduos uns contra os outros (RAWLS, 2008, p. 245-46).

487
Um exemplo claro é que para a execução do princípio da diferença, algumas informações de
ordem econômica devem estar presentes, e que não fazem falta no estágio constituinte.
488
Fazendo-se uma ressalva no que tange ao último estágio.
489
Mais uma vez não se quer dizer com isso que os princípios de justiça se apresentam em um outro
mundo, mas sim que os mesmos se mostram meramente abstratos.
149

Com esta passagem, principalmente em seu trecho final, o filósofo norte-americano


deixa claro que devem ficar excluídos os juízos oriundos de doutrinas morais
abrangentes não razoáveis das questões de informação atinentes a aplicação dos
princípios de justiça, em razão de serem contrários aos ideais de uma concepção
política de justiça ao mesmo tempo em que devem ser eliminadas as barreiras do
conhecimento de acordo com as necessidades que cada estágio apresenta: a
exigência de aplicabilidade dos princípios estabelece o conhecimento necessário
para os mesmos, demonstrando a interdependência entre a construção racional
desenvolvida e sua herança pragmática.
Sendo desta forma, no último estágio que pode ser denominado à grosso
modo como a etapa judicial490, é cabível que se retire integralmente do raio de visão
das partes o véu da ignorância, pois aqui se tem a necessidade de particularizar os
princípios de justiça de acordo com as circunstâncias sociais e individuais presentes
na sociedade: para que se determine o que é o Direito bem como qual é o seu titular
no caso concreto, há de se ter em vista (de maneira não embaçada) todas as
relevantes informações necessárias para que se arbitre algo justo; e para tanto, um
conhecimento de qualidades individuais e sociais são imperiosas para tal
empreendimento. Fundamentalmente a questão da seqüência dos quatro estágios
deve ser vista como fazendo parte da justiça como eqüidade, podendo ser afirmada
como uma fórmula de aplicação dos princípios de justiça na realidade. Mas mesmo
assim, ao ser parte integrante da teoria da justiça rawlsiana, a mesma acaba (em
partes) fazendo conexão com o que seja uma teoria ideal491. E nisto não restam
dúvidas, pois se houvesse uma intenção inicial a ser descrita a respeito das formas
com que os princípios devem ser aplicados, esta seguiria o modelo da justiça
procedimental pura (perfeita), conforme defesa de Rawls acerca do acordo
constituinte: é somente na impossibilidade desta que se toma a justiça
procedimental imperfeita como moldura de aplicação, o que em suma, remete esta
parcela da justiça como eqüidade para a esfera da concretização desta, e não para
algo meramente ideal492.
Isto acaba mostrando, mais uma vez, que Rawls segue um modelo
coerentista e que sua teoria da justiça se apresenta com firme interdependência em

490
Sem esquecer que a mesma abarca as decisões dos administradores e dos cidadãos comuns.
491
Haja vista sua dependência derivada dos princípios de justiça.
492
Mesmo que derive do que é considerado mais ideal.
150

todos os seus aspectos, mesmo os mais pormenorizados e que dizem respeito a


execução de sua teoria. Além disto, acresce-se que ao ser determinado que esta
seqüência de quatro estágios seja meramente um recurso de aplicação
principiológica (RAWLS, 2008, p. 246), depreende-se que tal mecanismo acaba não
descrevendo o que se encontra na realidade, ou mesmo o que é a realidade: ao
fazer parte da justiça como eqüidade é evidente que os quatro estágios fazem parte
de um dever-ser. Nesta formatação, ficam estabelecidos “pontos de vista, dos quais
se devem resolver os diversos problemas de justiça, e cada ponto de vista herda as
restrições adotadas nos estágios anteriores” (RAWLS, 2008, p. 246). Esta resolução
ideal produz os resultados já expostos: uma constituição justa só pode derivar de
uma escolha das partes em um estágio constitucional (com todas as suas
peculiaridades); o mesmo se repete para a formação de leis justas e de decisões
(lato sensu) justas493.
Todavia, Rawls admite que a tentativa de estabelecer uma constituição justa,
uma legislação justa e termos decisórios justos, é algo difícil de construir em razão
dos vários aspectos já demonstrados, como por exemplo, o fato do pluralismo
razoável que conduz os cidadãos a possuírem diversos juízos de valor igualmente
razoáveis, que geram distintas noções acerca do que seja uma constituição justa,
uma legislação justa ou ato decisório lato sensu (ou Direito) justo494. Destarte, a
justiça (no âmbito prático e teórico) acaba caindo em certa indeterminação em
virtude das razões postas dentro da aplicação dos princípios de justiça, bem como
aquelas que residem em uma psicologia moral dos agentes políticos (em seus
desejos e vontades racionais). Mas isto não é encarado como algo extremamente
nocivo nem visto como fonte de relativismo495 por Rawls, em razão de que podem
haver formas, mesmo diante desta indeterminação, de que se tenha um critério
objetivo do que se imagina como a justiça (dentro do Direito).
A decorrência natural desta asserção é que tudo o quanto é permitido pode vir
a ser declarado como justo, sem excluir a possibilidade de revisão daquilo que hoje

493
Estas últimas sem nenhum tipo de restrição formal a respeito de conhecimentos sociais,
individuais e econômicos, com a ressalva de serem limitados os tipos de juízos a serem levados em
consideração, pois juízos morais não razoáveis se mostram incompatíveis e ilógicos com a justiça
como eqüidade, e neste sentido não podem ser usados nesta etapa, o que caracteriza a única forte
restrição.
494
Vide o tema que envolve a discricionariedade que um juiz de Direito possui quando do julgamento
de uma lide, mormente em hard cases.
495
Mesmo que possa conduzir a esta corrente teórica, caso não seja a justiça como eqüidade e os
princípios de justiça como panos de fundo formais e materiais, respectivamente.
151

se toma como justiça (no Direito): digamos que a justiça, assim como os princípios
de justiça, é tida como provisória. Logo, a justiça como eqüidade é a mais justa para
a realidade social hodierna; caso mudem as circunstâncias, outra concepção de
justiça pode ser erigida desde que resguardas as restrições formais elencadas na
posição original e em todos os desdobramentos dos estágios de aplicação496.
O filósofo norte-americano, com o objetivo de resolver a problemática da
pluralidade encontrada nos recintos constituinte, legislativo e decisório, apela para o
recurso de uma justiça procedimental quase pura em que “as leis e as políticas são
justas contanto que se situem dentro do âmbito permitido e que a legislatura, das
formas que são autorizadas por uma constituição justa, as tenha de fato
promulgado” (RAWLS, 2008, p. 246). Trazendo á tona uma passagem que define o
repúdio (de forma indireta, neste trecho) ao relativismo e a defesa (também indireta)
do pluralismo razoável, o filósofo de Baltimore afirma:

essa indeterminação da teoria da justiça não constitui um defeito em si. Isso


é o que deveríamos esperar. A justiça como eqüidade demonstrará que é
uma teoria digna de seu nome se definir o âmbito da justiça de maneira mais
compatível com nossos juízos ponderados do que as teorias existentes, e se
especificar de maneira mais nítida as injustiças mais graves que a sociedade
deve evitar (RAWLS, 2008, p. 246-47).

Ao adotar a terminologia de que a justiça como eqüidade deve ser a que melhor se
ajuste (compatibilidade) com relação aos juízos morais ponderados de todos os
cidadãos, levando em consideração a história da filosofia moral e política 497, é
adequado acrescentar que Rawls, com esta declaração, acaba assentando ainda
mais sua visão contrária ao fundacionalismo moral e político pois o mesmo não tem
por objetivo fixar uma teoria da justiça a partir de uma dada doutrina moral
abrangente (ou mesmo fruto de um acordo entra várias doutrinas morais
abrangentes). Uma concepção política independente que aceite a existência de
diversos juízos morais ponderados e que apresente materialidade para potencializar
os planos de vida de cada cidadão, é incompatível com uma visão fundacionalista
que fundamentalmente gera a exclusão social (e não a inclusão). Neste sentido, se
mostra plenamente inconcebível imaginar o Direito pautado por uma noção de um
mero modus vivendi, aplicando os princípios de justiça de acordo com um ponto de

496
Por isso é uma teoria da justiça e não a teoria da justiça.
497
De forma razoável, excluindo de apreciação aquelas que não conseguem conviver com outras
doutrinas morais abrangentes por se mostrarem intolerantes, por exemplo.
152

equilíbrio entre juízos morais abrangentes ou a partir de uma dada doutrina moral
abrangente: o que significaria que o mesmo se transformaria em um instrumento do
fato da opressão, não sendo justo no sentido que Rawls imagina.

4.2 Por uma idéia do Direito em (e a partir de) Rawls

Para que se possam vislumbrar o tipo de proposta de Direito que se pode


extrair da noção rawlisiana acerca do que é o justo, há de se ter em conta os
seguintes pressupostos: (a) a teoria da justiça de Rawls é uma idéia pertencente ao
ramo da filosofia política; (b) e sua noção política não abarca linhas teóricas acerca
de uma noção específica de Direito ou mesmo de sua forma de aplicação, a não ser
de forma indireta com passagens que remetem ao modo como os juízes podem
vislumbrar a justiça como eqüidade em sentenças, que podem ser enquadradas
dentro do último estágio de aplicação dos princípios de justiça. Colocadas estas
afirmações elementares, deve-se deixar claro, então, que toda e qualquer conclusão
que se transmute em afirmações lapidares a respeito do Direito carecem de
confirmações evidentes por parte do autor norte-americano, pois o mesmo não se
ocupou do tema de forma devida. Ao mesmo tempo, não se pode afirmar que a sua
falta de atenção com o tema foi proposital ou não.
Pode ter sido proposital em virtude de que Rawls não desejou se declarar
partidário desta ou de outra concepção de Direito, em razão de que seu desejo era o
de estabelecer princípios de justiça que se mostrassem amplos o suficiente para
abraçar qualquer concepção de Direito adotada neste ou em outro Estado. E mesmo
quando o filósofo de Baltimore fala do quarto estágio de aplicação dos princípios de
justiça, somente faz menção a um modelo que estruture a forma como os princípios
devem ser executados, e não a adoção de uma fórmula específica: se o mesmo
houvesse tomado um tipo de Direito como o padrão, o fundacionalismo rondaria sua
estrutura de justiça, algo indesejável para os propósitos aventados. Então, é mais
fácil delinear como a justiça pode ser aplicada sugerindo um modelo que respeite os
princípios de justiça e o acordo constitucional, do que determinar cabalmente este
ou aquele modelo de Direito como sendo o mais apropriado para que a justiça se
efetive.
Neste sentido, para o escopo do presente trabalho, acaba sendo necessário o
recurso ao entendimento que alguns famosos comentadores fazem a respeito de um
153

possível Direito que possa ser extraído do entendimento de Rawls em sua justiça
como eqüidade. Neste ponto, surge Ronald Dworkin, que é um filósofo do Direito,
como o grande motor que impulsiona a presente investigação, principalmente em
seu artigo Rawls and the Law. A despeito de algumas conclusões que este
comentador possa ter apresentado, e que seja alvo de certo questionamento caso
seja tomada uma averiguação mais aprofundada, crê-se que este artigo possa
apresentar o grande pano de fundo que circunda a justiça como eqüidade em sua
etapa de aplicação mais direta, em que não há mais a presença de um véu da
ignorância que limite o posicionamento das partes quanto a construção de noções
sociais que redundam nos princípios de justiça. Obviamente que, mesmo sem o véu
da ignorância, as restrições que forma impostas nos estágios anteriores
(remontando até a posição original) pelo véu da ignorância são levadas em conta,
haja vista que não se pode imaginar uma concepção de Direito em Rawls que não
tome em consideração o estágio legislativo, constitucional e um acordo originário
que estabeleceu os princípios de justiça, do contrário, a idéia do Direito careceria de
seqüência lógica.
Portanto, pensar em como o Direito se mostra na teoria da justiça de Rawls, é
levar em consideração toda a construção ética-política apresentada pelo autor, a
título de fundamentação dos princípios de justiça que se aplicam a estrutura básica
social, bem como efetuar uma verificação de como aqueles se mostram nos diversos
estágios de sua execução, para que por último se possa engendrar uma teoria do
Direito que se harmonize com o que foi demonstrado: mesmo que esta não esteja
presente de forma explícita em seus textos. Neste sentido fica claro que o
tratamento que pode ser dispensado ao pensamento rawlsiano, diz respeito a
diversas esferas de execução: a forma e as conseqüências, por exemplo, como o
princípio da diferença se faz sentir perante a aplicação dos impostos ou mesmo se
estes impostos se mostram como algo legítimo; ou como a justiça como eqüidade se
faz presente em uma sociedade onde a lei é algo que prevalece acima de todas as
coisas, seja com a sua formulação legislativa mais literal, ou mesmo esboçada com
os princípios do Direito elencados nas Cartas constitucionais; ou ainda a questão de
que um estudo sobre o Direito depende de uma investigação anterior sobre quais os
assuntos (liberdades básicas, princípio da diferença ou os elementos constitucionais
essenciais) extravasam a sua função política e adentram os tribunais para que os
154

juízes decidam demandas existentes em sociedade, seja para a defesa de


interesses privados ou coletivos498.
Neste sentido, há diversas formas de se tratar o pensamento de Rawls no
âmbito do Direito (e dos direitos), até porque este apresenta diversos
desdobramentos práticos (abstratos, quando se tenta definir o que é o Direito e qual
sua fórmula de aplicação) e materiais499. Tal declaração é asseverada por Dworkin,
quando este afirma que

there are several important discussions of law in his work, some of which I will
mention, he made his main contributions to legal theory through his political
philosophy, because legal theory is a department of political philosophy and
Rawls wrote abstractaly about the whole discipline (DWORKIN, 2003-04, p.
1387).

Com isso fica evidente a vinculação presente entre o campo da filosofia política e o
da filosofia do direito, sem olvidar da filosofia moral, pois é esta que em última
análise oferta a base material para a construção dos mesmos500. Com isso tem-se
em mente que, ao mesmo tempo que a filosofia política (como a justiça como
eqüidade) pode apresentar uma função pedagógica para com a mudança de
pensamentos morais arraigados nos cidadãos e em sociedade, se deve imaginar
que este não surge do nada, devendo em muito suas formulações a uma história
moral da humanidade, mas que por fim necessitam de uma formatação que possa
ofertar uma aplicabilidade dos mesmos: e é aqui que entra a filosofia do Direito e
todos os seus desdobramentos.
Mas uma questão central, e que remonta de longas datas é a que busca a
definição do que é o Direito (qual sua essência). E isso se torna deveras importante,
pois desta noção abstrata mais ampla depende toda a aplicação da justiça da forma
com que é entrevista em Rawls. Desta questão inicial para se averiguar a essência
do Direito (e não dos direitos), convém ressaltar que surgem outras duas, que são
peças fundamentais para uma interpretação correta do mesmo: uma primeira diz
respeito ao aspecto metodológico, ao passo que a segunda deriva da primeira, e se

498
Mesmo que a crítica comunitária mais ferrenha, como a de Charles Taylor admita ser impensável a
possibilidade de direitos coletivos, pois uma teoria da justiça de cunho liberal desenvolve direitos
pensando precipuamente em uma prioridade do indivíduo em face da coletividade, o que faz com que
os direitos coletivos careçam de argumentação lógica firme.
499
Quando se tenta afirmar quais são os direitos existentes, bem como a sua efetivação, e que pode
ser visto dentro de uma análise jurisprudencial.
500
Sem pensar que dela tudo se derive, mas a maneira com que se vislumbra que dela derivam as
noções fundamentais de substancialidade no campo da moralidade.
155

insere no aspecto da materialidade do Direito. No que tange a etapa metodológica,


esta busca fundamentalmente investigar qual é a teoria estruturante que serve para
enquadrar um conceito acerca do Direito, pois dependendo da formulação adotada,
os resultados que serão obtidos obedecerão a esta seqüência lógica. Logo, poderia
se imaginar o mesmo como pertencente a um modelo de cunho descritivo, em que o
Direito nada mais seria do que uma reprodução dos fatos sociais e naturais dados,
não cabendo a ele efetuar nenhum tipo de recomendação a respeito de um
determinado assunto. Com esta noção, haveria de se descobrir quais sãos os tipos
de fatos sociais e naturais que o mesmo deve descrever, pois o Direito não pode
abarcar todos em seu bojo. Ou ainda poderia se pensar que o Direito faz parte
meramente de uma análise de conceitos que visam a legalização daquilo que é
tomado também como um fato social, em que a dúvida residiria na forma de julgar
aquilo que representa a melhor análise conceitual. E em última análise, o Direito
poderia se mostrar como sendo pertencente ao campo da normatividade, em que a
dificuldade presente é fixar uma diferença clara entre o que o Direito efetivamente é
do que ele deve ser, e que para os padrões rawlsianos é peça fundamental na
elucidação do quarto estágio de aplicação dos princípios de justiça501.
Por outro lado, a segunda questão a respeito do conhecimento do que é o
Direito tem ligação direta com o tema da metodologia que o mesmo adota. Esta
posição decorre da situação em que satisfeita a espécie metodológica adotada (se
descritiva, analítica ou normativa, por exemplo), deve-se partir para a investigação
de qual é a substancialidade que o Direito adquire perante a fórmula prévia. Assim,
por exemplo, se afirma-se que o Direito é uma ciência502 no qual estabelece o que
deve ser feito, regido então por um viés mais normativo, há de se ter em conta uma
busca pela teoria substancial que é mais efetiva para o caso em questão. Diante
desta situação, notadamente a história do Direito se divide em dois grandes grupos
teóricos, quais sejam, aqueles representados pelas

positivist theories of law, which insist that what the law of any jurisdiction
requires or permits is only a matter of social fact, and anti-positivist theories,

501
Neste estágio, os aplicadores dos princípios já não estão mais sujeitos ao véu da ignorância, ao
mesmo tempo em que precisam individualizar sua execução axiológica dentro de uma sociedade
ideal, obedecendo as restrições do acordo constitucional e dos próprios princípios de justiça, o que
mostra um misto de idealidade com a realidade, de dever-ser com ser.
502
Se é que pode-se dizer que o mesmo é ciência; ou mesmo, ao declará-lo como ciência, deve-se
ter claro que o mesmo não apresenta as idênticas características outorgadas as ciências físicas e
biológicas.
156

which claim that what the law requires sometimes depends not on social facts
alone but also on controversial normative issues including moral issues
(DWORKIN, 2003-04, p. 1388).

Neste sentido, com estas duas grandes questões a serem respondidas por qualquer
teórico do direito e da política (e quiçá da moralidade, em seu âmbito externo), há de
se perguntar: qual destas teorias metodológicas e substanciais expostas, Rawls
adota para sua justiça como eqüidade? Pois conforme já foi exposto, não há linhas
explícitas sobre quais destas noções o filósofo de Baltimore toma para si, o que
poderia emperrar a presente pesquisa.
Mas pode-se claramente asseverar que ao não optar por X ou Y (tais letras
representando teorias do direito em quaisquer esferas, metodológica ou material),
isso não traz uma implicação lógica de o filósofo norte-americano não se incline para
nenhuma delas a partir de uma análise de seu sistema de justiça. Ao não tomar
partido por nenhum sistema pela razão de que seu principal foco era o
estabelecimento de princípios de justiça, e não vislumbrar sua aplicação na
realidade, pois isto estaria dependente de uma variedade muito grande de modelos
que apresentariam razões diversas, igualmente justas (por pertencerem a uma
justiça procedimental imperfeita), mesmo assim Rawls pode vir a dar, a partir de
passagens que remetam indiretamente ao tema aqui trabalhado, um sólido respaldo
para alguma destas teorias, conforme será demosntrado. Salienta-se ainda de
acordo com Dworkin, que esta ampla problemática aduzida com as duas questões
demonstradas, acaba trazendo um rescaldo em uma terceira dúvida igualmente
pertinente: o que advogados podem considerar como fixo e determinado na lei
(plenamente estabelecido), diante de casos que tenham uma repercussão grande e
sejam de difícil decisão por envolverem valores sociais e morais contraditórios,
variando de acordo com a teoria adotada, deve-se deixar claro que isto não é
facilmente decidido por um juiz (não podendo ser tomada uma postura de imediato).
Desta forma, pode ser que dentro do viés que pregue uma concepção de
Direito positivista, o juiz pode e deve fazer uso de sua discricionariedade diante de
uma situação enquadrada como um caso de difícil resolução (hard case), em que se
categoriza tal decisão como uma nova lei503, ao passo que uma noção que privilegie
uma concepção contrária ao positivismo, traz a idéia de que o juiz ao decidir (na
mesma situação anterior) deve manter seu foco em uma noção que preserve a

503
Em outras palavras, o juiz se transmuta em um legislador.
157

integridade axiológica do Direito e das decisões já construídas em sociedade


(jurisprudência). Nesta última noção, há de se ter em mente que para que se tenha a
preservação da dita integridade do Direito, deve-se possuir a existência de uma alta
dose de controvérsia a respeito das decisões, que virão em virtude de, por exemplo,
um debate público que envolva toda a sociedade e não somente uma parcela da
mesma, o que traz como corolário que o julgamento deve ser algo revigorado
sempre que as necessidades sociais assim o exigirem 504. Diante deste embate entre
estas duas amplas correntes presentes em todo o Direito ocidental505, deve-se
descobrir quais são os tipos de argumentos que devem ser adotados para que se
defenda a postura positivista e anti-positivista, para que se possa depreender qual a
noção que melhor se enquadra ao pensamento rawlsiano, mesmo que uma pista
central já propalada (controvérsia) possa ter indicado um caminho a seguir.
Em linhas gerais podem-se aventar quais seriam os grandes embasamentos
que podem ser utilizados pelos juízes506 para defender suas sentenças dentro de um
ângulo que refuta o positivismo jurídico: poderiam os juízes estar adstritos a idéias
religiosas, a usa moralidade (privada), a convicções filosóficas, ou utilizarem
argumentos pautados por teorias econômicas ou teorias científicas (da biologia ou
da física)? Via de regra, Dworkin assinala que a filosofia do Direito acaba evitando
entrar em tais noções (DWORKIN, 2003-04, p. 1388), indicando que a filosofia
política de Rawls, através de seu conceito calcado na noção de uma razão pública,
pode vir a indicar o melhor caminho a ser adotado. Mas se a filosofia do Direito
acaba negando o tipo de juízo a ser utilizado na decisão de demandas jurídicas,
pergunta-se: como se pensar em uma filosofia do Direito que negue a forma de
aplicação do mesmo, quando a acepção de Direito primordialmente remete a uma
concepção que toma como um mecanismo de efetivação da justiça na realidade?
Isto acabaria representando uma enorme lacuna no âmbito legal, pois os juristas,
sem o conhecimento de uma fórmula abstrata que mostre como aplicar o Direito,
acabam se tornando meros técnicos que conectam, na forma de uma sentença,
fatos sociais à uma legislação vigente, como no estabelecimento em um jogo em

504
Ao contrário do viés positivista, em que o juiz tomando o papel de legislador, acaba determinando
nova lei diante da lacuna aqui desenhada por um hard case.
505
Pois tal debate não se limita ao recinto norte-americano, podendo ser alargado para o Direito
aplicado no Brasil, com a ressalva crítica de que as noções teóricas em nosso país se mostram longe
do aprofundamento ofertado no universo jurídico norte-americano.
506
Ao decidirem hard cases, que podem vir a ter o mesmo equivalente material que juízes decidindo
sobre elementos constitucionais essenciais.
158

que se devem ligar os pontos para formar uma figura, um jogo infantil muito popular
em jornais e revistas em quadrinhos.
Por conseguinte, Rawls e sua noção de razão pública podem vir a ser a
possibilidade de fixar quais termos podem ser aduzidos como fonte de legitimação
de uma sentença judicial, de forma que a mesma não seja representação daquilo
que o juiz pensa, mas sim como parte da sociedade. Destarte, a idéia de uma razão
publica, em linhas gerais, acaba sendo a única que pode ofertar argumentos
independentes plausíveis para a fundamentação do Direito507, pois a razão pública
não é aquela que é fixada a partir de uma dada doutrina moral abrangente razoável
ou mesmo resultante de um acordo entre várias destas, mas sim estabelecida
através de um acordo político amplo, que não parte de uma noção específica já
posta, mas de noções políticas construídas socialmente: com estas palavras, a
razão pública é um fio condutor para que se pense um ideal de autonomia,
particularmente na sentença judicial em que esta deve expressar a sociedade como
um todo, e não uma dada concepção moral dominante. Com esta visão, Rawls acha
adequado que a razão pública possa vir a ser aplicada integralmente na execução
dos princípios de justiça no quarto estágio de sua seqüência executiva, o que implica
que os juízes devem adotar a idéia como parte integrante de seu mecanismo
metodológico e substancial.
Salienta-se que o comentador citado no início do presente capítulo, acha
plenamente insuficiente a utilização da idéia de razão pública (pelos motivos que se
seguem), fazendo menção que haveria uma outra parte do pensamento de Rawls
que deve ser adotada para a interpretação do Direito neste autor (DWORKIN, 2003-
04, p. 1388). Acredita-se que tal postura limita o raio de ação de uma proposta de
filosofia do Direito em Rawls, pois exclui da mesma um elemento primordial, qual
seja a idéia de uma razão pública, no qual representa um ponto chave para a
aplicação dos princípios de justiça na estrutura básica da sociedade, e fazer com
que os mesmos se internalizem no dia-a-dia dos cidadãos. Claro que esta noção
não pode ser dissociada de uma noção de consenso sobreposto, pois é o mesmo
que oferta as bases legítimas de execução daquela, por isto a ênfase que este
trabalho fez para com o mesmo. Com estas razões, torna-se evidente que é
imprescindível a utilização da razão pública e do consenso sobreposto para que se

507
Em seu viés mais pragmático, através de uma sentença.
159

compreenda a aplicação dos princípios de justiça no último estágio (estágio judicial,


por assim dizer), pois o pensamento do filósofo de Baltimore não pode ser
segmentado em uma parte que utiliza a razão pública, e outra que não faz o uso da
mesma (parte mais importante, de acordo com Dworkin), fazendo-se imperioso
compreender e utilizar ambas as noções para que se tenha uma proposta de Direito
congruente com o coerentismo rawlsiano.
Ainda salta aos olhos uma última questão problemática a ser resolvida, que é
o tema que trata da possibilidade dos tribunais superiores terem a possibilidade de
revisar ou revogar leis democraticamente constituídas (através dos legisladores), e
que é um tema atinente também à teoria do Direito como um todo, sendo tratado por
Rawls também de maneira superficial. As perguntas que se põe por trás deste
problema são as seguintes: (1) o poder de revisão constitucional, no sentido de
afirmar, revisar ou invalidar lei promulgada que obedeceu aos trâmites legais
democráticos, é algo considerado harmônico com a democracia constitucional em
si508? E se é considerado algo que afeta a firmeza das instituições básicas de justiça
como um todo, inclusive afetando a própria democracia, quais seriam os argumentos
que defenderiam tal postura? Mesmo diante do tema da legitimidade ser o foco
primordial da questão da justiça como um todo, e que faz parte da justiça como
eq6uidade, pois é ela que oferta a fundamentação dos princípios de justiça, há de se
compreender que a analítica de tal tema deve ser vista à luz da estratégia
constitucional que deve ser adotada para resolver a sintonia entre uma possível
revisão judicial509 de leis e o acordo constituinte.
Neste sentido, as duas perguntas efetuadas no parágrafo anterior poderiam
ganhar a nova roupagem expressa pelo seguinte questionamento basilar: “should a
constitutional court decline to decide certain issues – for example, about abortion or
assisted suicide – because its nation is not ready for a judicial resolution of the
issue?” (DWORKIN, 2003-04, p. 1389). Com esta pergunta efetuada por Dworkin, e
ao atribuir a mesma ao pensamento rawlsiano, acredita-se que ao defender um
posicionamento jurídico que destine uma papel de omissão (ou ausência) por parte
dos tribunais, ao tratarem de questões de elementos constitucionais elementares ou

508
Repare-se que neste jogo nem entra em cena a democracia procedimental pelos motivos já
expostos.
509
Destaca-se que Rawls apparently believes that provision for some form of judicial review will
usually be apt to the purposes of justice (p. 403). Tal tema também é tratado em O liberalismo político
(Conferência VI, §6).
160

mesmo questões de hard cases, os juízes apresentam uma clara função: a de


possibilitarem u macordo moral e político profundo. O sentido esboçado com esta
afirmação é que o papel da corte no que tange a decisão de um caso difícil pode ser
legítimo e viável no âmbito de uma teoria do Direito que possa vir a ser apoiada por
Rawls, contudo poderia ser mais adequado que a mesma, em virtude de uma
pluralidade de juízos morais ponderados, optasse por não emitir um juízo de valor
acerca de uma questão controversa (aborto ou eutanásia), pois tal papel seria muito
melhor trabalhado por uma esfera legislativa e constitucional que se mostra
grandiosamente mais democrática do que a posição de juízes que são conduzidos
aos seus cargos por questões de mérito, ou indicados por seus pares. Com isso,
pode-se afirmar que Rawls reconhece esta fórmula como algo mais desejável, por
buscar um acordo moral e político que tenha um viés de consenso sobreposto.
Mas ao se afirmar que tal posicionamento é o mais desejável, deve-se deixar
claro que isto se dá por um motivo e apresenta uma conseqüência fundamental. O
corolário é que ao se seguir tal determinação na forma de que a mesma seria a mais
condizente com uma proposta de justiça como eqüidade, não se quer excluir que os
tribunais possam tomar posicionamentos em casos difíceis, até porque, também,
existe outra contenda central: quais seriam os hard cases? E destes, quais casos
um tribunal poderia se pronunciar e quais não? Se em todos os casos difíceis o
tribunal não deveria se pronunciar, privilegiando que tal decisão seja construída no
âmbito político, o tribunal não perderia sua função especializada de resolução de
conflitos jurídicos? Tais questionamentos permanecem intocáveis pela filosofia
política de Rawls, cabendo unicamente ilações. E o motivo pelo qual o filósofo de
Baltimore poderia afirmar que a formulação que defende a omissão dos tribunais
perante casos difíceis se dá nos seguintes termos: a aplicação dos princípios de
justiça nos quatro estágios é efetuada através de uma justiça procedimental
imperfeita, o que neste sentido não permite com que se desenvolva um
procedimento tido como correto (no sentido verdadeiro) para que se obtenha um
resultado igualmente correto (verdadeiro).
Resta ainda um tópico a ser pelo menos delineado para que se possa
compreender a proposta rawlsiana sobre o Direito e suas implicações formais e
materiais: quando se tratam de questões que suscitam ampla controvérsia, o Direito
acaba por adotar um caminho em que a verdade (mesmo que seja mitigada) ou o
conceito de justo são tomados a partir de um viés que pensa em um critério que
161

dependa de uma objetividade normativa ou é algo que deve ser depreendido da


subjetividade? Pode-se declarar que esta colocação que situa estes dois pólos
teóricos, não se mostra presente na prática quotidiana das decisões proferidas pelos
tribunais, bem como presente nas demandas que chegam ao poder judiciário,
contudo ela se faz sentir de maneira indireta na aplicação do Direito, quando, por
exemplo, se quer uma definição do que seja o Direito, e aquele tipo jurídico que é
produzido quando as pessoas detêm o monopólio de adjudicação: em outras
palavras, a dicotomia entre uma objetividade uma subjetividade poderia ser colocada
nos termos de análise acerca de uma liberdade básica qualquer, quando esta é vista
a partir de uma noção do que seja o Direito em si, ou quando esta é exposta a partir
de uma concepção de Direito subjetiva, emanada de uma ordem judicial (que
depende de pessoas para a sua produção). Obviamente que se pode imaginar que o
Direito visto através de um critério objetivo pode ser proferido em uma sentença (por
um juiz de direito), mas é claro que para a efetivação de tal circunstância, há a
necessidade de restrições ao pleno exercício do cargo público referido510.
A mesma situação existente entre uma objetividade e uma subjetividade no
Direito é vista quando há de se tomar uma postura para se averiguar se existe uma
obrigação moral de obediência a lei, ou esta é decorrente de uma mera
determinação legislativa; bem como se o ato de confirmação, rejeição ou de revisão
de norma promulgada pelo poder legislativo por parte do poder judiciário, é algo
legítimo ou não. Com base nisto, “Rawls said a good deal about truth and objectivity,
some of it inconclusive and even obscure, but much of it helpful when lawyers turn to
these more explicity philosophical issues” (DWORKIN, 2003-04, p. 1389). Com esta
asserção, já se pode levar em consideração que o filósofo político norte-americano
refuta uma tese subjetivista acerca do Direito, até porque tal noção poderia implicar
em relativismo: para Rawls, falta de verdade no campo político e moral traz como
corolário a busca pela objetividade (verdade mitigada, ou verdade provisória). Assim,
o enquadramento para a construção dos fundamentos do Direito em Rawls, pode ser
visto através do ângulo em que se deva compreender a medida de objetividade e os
critérios de restrições que uma teoria do Direito deve apresentar para estar de
acordo com a justiça como eqüidade.

510
Nada incomum ao que é visto na prática, quando o juiz tem discricionariedade, mas limitada pela
constituição.
162

A fim de principiar este amplo leque de contendas teóricas que uma proposta
acerca de um entendimento sobre o tipo de Direito que pode ser delineado em
Rawls, o que há de ser pressuposto é uma noção básica a respeito da verdade no
plano jurídico: sem este critério inicial, nada pode ser principiado em qualquer área
do conhecimento, pois é a busca pela mesma (ou por algum critério que se aproxime
desta) que move o pensamento investigativo. Neste sentido, é muito auspicioso
destacar que em um plano jurídico qualquer, seria adequado partir-se da assunção
em que determinada proposição que verse sobre direitos e obrigações jurídicas,
deve ser tomada como verdadeira511. Com isto, fica claro que qualquer teoria que
busque a explicação sobre a verdade (o grau de verdade não é aqui,
especificamente, investigado) de uma dada proposição do Direito, deve coletar
informações ou construir mecanismos de justificação que venham a demonstrar (lato
sensu) como e quais são as circunstâncias que englobam o tipo de verdade
declarada.
Com isto, por exemplo, ao querer descobrir a verdade ou o tipo de critério
objetivo que afirma que uma determinada ordem legal, ou mesmo que uma dada
concepção acerca do Direito em seu plano mais abstrato, é tomada como
verdadeira, deve-se perguntar onde e como se pode buscar tal verdade ou critério
objetivo: estaria este posto em um local, pronto para ser descoberto como no caso
das ciências naturais? Ou tais critérios de verdade e de objetividade estariam
abertos a um tipo de construtivismo? Como por exemplo afirmar a verdade sobre
uma lei que proíbe um veículo de buzinar em locais próximos de hospitais? Ou
ainda, como declarar que uma lei que estabeleça uma (re)distribuição de uma renda
mínima básica para famílias de baixa renda512, desde que estas preencham
determinados requisitos econômicos e sociais513, tal como é a política do Bolsa
Família no Brasil, pode ser tida como uma pressuposição jurídica verdadeira ou que
obedeça a restrições formais que informam a correção de tal legislação? Para obter
uma resposta acerca destes questionamentos, os positivistas, por exemplo,
defendem que “a proposition of law can be true only in virtue of social facts: facts, for
example, about what a legislature has declare dor a judge decided in some prior
case” (DWORKIN, 2003-04, p. 1389). Mesmo afirmando isto, permanecem

511
Mesmo que isso seja tido como hipoteticamente plausível, pois para os propósitos em tela, esta
suposição se mostra suficiente.
512
Com dinheiro oriundo do poder público.
513
Como manter seus filhos freqüentando o Ensino Fundamental em escolas.
163

pertinentes questões de fundo, que são representadas pela busca da verdade


acerca do tipo de proposição jurídica que é feita (baseada em fatos) e sobre o quê é
que faz com que a proposição positivista, que obedece a regra previamente exposta,
possa ser ela mesma marcada por um critério objetivo.
Isto tudo pode ser dito nas seguintes palavras, que muito se assemelham a
um regresso ao infinito (no campo da fundamentação): a proposição jurídica pode
ser definida pela fórmula positivista posta, mas há também a necessidade de
averiguar as bases desta formulação, ou seja, se a própria fórmula é tida como algo
verdadeiro, ou no mínimo quais são os argumentos que fazem com que ela seja
tomada por verdadeira. E é neste campo que a pesquisa acerca da validade de um
argumento positivista deveria ser tratada, pois somente aqui se têm a exata
dimensão da possibilidade de aplicação do mesmo no universo jurídico. Em linhas
gerais, o que ocorre é que no campo da filosofia do Direito, acaba sendo muito mais
fácil pensar na execução do Direito em si como algo ligado a certo tipo de descrição
da realidade. Um exemplo pode ser tratado no momento em que há através de uma
prática social a infração de uma determinação legal prévia: comete-se PSI, e se
enquadra tal ação no artigo R da Lei V, resultando na sanção legal K, o que
caracteriza um típico jogo lógico que liga pontos de um quebra-cabeça sem
nenhuma investigação profunda acerca da realidade posta e de como esta deveria
ser.
Mas mesmo perante o pensamento que toma o Direito como descrição, há
espaço para a discórdia, e que é representado nos hard cases, em que os
aplicadores do Direito e mesmo os filósofos do Direito discordam

for example, about the legal position of a woman who has suffered side
effects from a drug that her mother had taken many years prior, but who
cannot identify the manufacturer of the particular pharmaceuticals her mother
had taken at any particular time because the pill was manufactured by several
companies and she does not know whose pill she took when. Is she legally
entitled to recover damages from all of the companies that manufacture the
drug in proportion to their market share? (DWORKIN, 2003-04, p. 1390).

Isto demonstra bem que mesmo que se tome a descrição como algo a ser seguido,
e se pense que o Direito possa ser visto de tal forma, ainda cabe espaço para
atitudes que suscitem ampla controvérsia. Todavia, mesmo diante de tamanha
discrepância argumentativa que uma situação destas possa gerar no campo das
decisões, cabe lembrar que tal problema pode ser resolvido a partir de uma noção
164

que agregue acordo em pelo menos um nível (dentro do descritivismo): há de se ter


um consenso em um grau básico, pois sem este é impossível se pensar no próprio
Direito514, qual seja, no teste que pode indicar a verificação daquilo que é descrito
como verdadeiro.
Havendo congruência firme e evidente sobre o procedimento que é adotado
para evidenciar a verdade que está mascarando a correta aplicação do Direito
(pensando-o como algo descritivo), e tomando-se isto como algo que realmente
pode ofertar a solução de problemas em casos difíceis “then a philosophical theory
of law should aim to describe that background agreement. It should tell us what law
is by telling us what tests lawyers actually use to identify true or sound proposition of
law” (DWORKIN, 2003-04, p. 1390). Nesta monta, nota-se que o movimento que
partiu de uma simples averiguação de fatos sociais e sua adequação com a lei 515,
acaba tendo que adentrar nas bases que fundamentam o tipo de procedimento
adotado para que se responda o que é o Direito. E como o Direito acaba sendo visto
como um tipo de descrição, a sociologia jurídica acaba se tornando aquela ciência
que melhor pode ofertar as respostas necessárias para o tipo de busca que o
descritivismo faz. Mas disto decorre que em Hart, há a produção de um tipo de
Direito que pode ser tomado como hermeticamente fechado, e que é dependente
tão-somente da etapa legislativa de sua produção516.
Realizando uma sucinta digressão a respeito da temática exposta por Hart,
cabe ressaltar que para este, uma proposição acerca do Direito é tomada como
verdadeira517 quando deriva explicitamente de decisões oriundas de instituições
legais, notadamente legislativas, e que são autorizadas de forma clara por uma
convenção (que obedece a uma regra da maioria), que visa potencializar a referida
instituição para que transforme um ato decisório seu, em lei. Advém assim que o
posicionamento de um advogado acerca de uma determinada situação de fato, pode
tomar dois sentidos opostos sobre qualquer tema mais controverso 518: (a) se um
advogado, ou mesmo um juiz, mostra que a legislatura acaba afirmando de forma
evidente que a mulher envolvida deve ter o direito de receber uma indenização para

514
Estaria sujeito a relatividade, o que emperraria o sistema como um todo.
515
Fruto da simples fórmula positivista esboçada.
516
Seja com o legislador em si, ou com o juiz que faz às vezes daquele quando ocorre a lacuna da
lei.
517
Ou no mínimo apresentando força de verdade.
518
Em estreita ligação com o exemplo da mulher que foi prejudicada por medicamentos tomados por
sua mãe.
165

reparar os danos causados por medicamentos utilizados por sua mãe, esta acaba
sendo portadora de um direito; (b) por outro lado, se a proposição que afirma que tal
mulher é detentora de um direito de ser indenizada, é emanada por um advogado ou
por um juiz, não decorrendo de nenhuma instituição legal, então não é verdadeiro o
Direito que se afirma que a mulher venha a possuir, o que implica que a proposta do
advogado é falsa e que uma decisão do juiz que declare tal direito seja tomada
como falsa e inválida.
Com estas colocações haveria um problema que o descritivismo não
consegue resolver: a descrição na qual se refere Hart, não é uma que esteja em
franca conexão com aquilo que os operadores do Direito tomam como fatos sociais
(e assim reproduzem em suas asserções); logo, o Direito, para o referido autor, deve
ser tomado como algo que decorre unicamente de promulgação que obedeça aos
padrões legais; destarte, como imaginar que uma mulher possa vir a ter direitos sem
uma adequada previsão legal? Este problema está em conexão com a situação em
que se julga uma demanda com base em pressupostos principiológicos, o que fica
excluído (lato sensu) de uma concepção descritivista, o que gera um problema de
aplicabilidade do Direito: que é o meio de execução de uma justiça de cunho
abstrato. Neste sentido, o Direito dentro de uma idéia descritiva, acaba não sendo
fundamentado em sua essência, dependendo exclusivamente de meios que atestam
a sua validade ou não: assim, (i) a descrição não participa de um conceito do que
seja o Direito, e (ii) nem mesmo ela pode ser significada através de um consenso
sobre o que todos os aplicadores do Direito entendem por este, pois é dependente
exclusivo de uma validação de cunho institucional, e não derivada de um acordo
moral e político mais profundo que não envolva bases jurídicas escritas.
Diante de tal emaranhado teórico, pode-se declarar que os operadores
jurídicos que imaginam que o caso da mulher prejudicada por medicamentos possui
Direito de ser ressarcida, não se coadunam com a proposta descritivista 519, pois o
tipo de defesa jurídica oriunda deste posicionamento não decorre explicitamente de
algo institucionalizado. Salienta-se ainda que, mesmo que haja um preenchimento
mais amplo de legalidade, como uma determinação de princípios vasta, não podem
os operadores jurídicos se valerem desta satisfação legal exigida por este
positivismo descritivista, para construírem teses que defendam o Direito de uma

519
Caso não haja provisão legal institucionalizada para o caso em tela.
166

forma ou de outra, valendo-se da indeterminação prévia legal: tal conduta poderia


indicar um relativismo no campo do Direito, algo que é rejeitado pelo sistema
positivista como um todo, que trata o Direito como ciência na qual pode atestar a
verdade ou falsidade do mesmo. Resumidamente, nesta visão, ou o Direito é
descrito na forma institucionalizada (sendo esta uma condição necessária), ou não
se tem Direito; ou a mulher prejudicada por medicamentos utilizados por sua mãe
possui um direito previamente outorgado, ou é impossível realizar uma construção
jurídica que defenda seus interesses, pois tal elaboração carecerá de fatos legais
para que possa ser feita a ligação entre os fatos sociais e o respectivo direito.
Com estas perspectivas que não ensejam uma compreensão do Direito tendo
em vista os seus princípios de justiça (que embasam os princípios constitucionais,
por exemplo), poderia se adotar o positivismo jurídico, neste modelo descritivista,
como uma tese que pode ser utilizada para a construção do Direito dentro de um
viés democrático constitucional? Para esta pergunta, destaca-se que

Rawls spoke directly to that issue by example – through his analysis of the
concept of justice. He did not suppose that everyone who shares and uses
the concept of justice shares some substancial background understanding
about what makes as institution just or unjust. On the contrary, he insisted
that people have radically different conceptions of justice. They do, he
allowed, share some very abstract understanding that makes these all
conceptions of justice rather than of some virtue. But this shared
understanding is exceedingly thin, all but empty of real content. What makes
disagreement about justice possible is that people sufficiently agree on
certain specific instances or examples – everyone agrees that slavery is
unjust, that wage explotation is unjust, and so forth (DWORKIN, 2003-04, p.
1391).

Esta passagem deixa claro que Rawls parte de uma recusa na busca de alguma
essência do que seja a justiça, pois isto implicaria uma noção (quiçá) metafísica, e
sua concepção é política. Mas isto não traz como conseqüência que não se tenha
um critério objetivo para que se fundamente o que é justo ou injusto, mesmo que tal
noção seja fundamentalmente abstrata: é algo compartilhado de forma fraca, e sem
um conteúdo previamente estabelecido (será construído). É um acordo sobre
noções básicas compartilhadas acerca do que representa algo justo (como
tolerância religiosa), que pode ofertar as bases para que se desenvolvam os
princípios de justiça. E neste ponto, ao refutar uma substancialidade na justiça,
pode-se perguntar: e no que tange ao Direito?
167

Ora, tal entendimento deve partir da idéia de que o Direito é a efetividade da


justiça, realizando esta na realidade concreta. Logo, aquilo que se pode tomar como
algo razoável (no campo teórico) para que se compreenda o que é ou representa a
justiça, pode ser alargado para um entendimento sobre o Direito. Pensar que o
Direito pode ser tomado como algo verdadeiro ou falso, implica que se tenha uma
teoria da justiça que apele para concepções metafísicas, pois é ela que em última
instância poderá fornecer os sedimentos para que se possa vislumbrar qual é o
conteúdo do Direito. Mas se é elaborada uma teoria da justiça que não está
governada pelo império de uma metafísica tradicional, estando aberta a construção
racional de seus princípios mais elementares, em que não existe uma verdade dada
ou posta520, e sim critérios objetivos que possam indicar o que parece ser o mais
correto ou justo para que a sociedade possa se desenvolver, como pensar em uma
teoria do Direito que seja tomada como verdadeira (na concepção tradicional)?
Fica claro, assim, que uma proposta de Direito no âmbito da teoria da justiça
de Rawls, está com um espaço muito mais aberto em direção do que se pode
denominar de uma teoria que seja de cunho interpretativo, pois esta é a que pode
estar habilitada a construir um conceito de Direito que esteja em congruência com os
princípios de justiça previamente ajustados. Com isso, não haveria um Direito que
estaria plenamente dependente de uma validade delineada pela promulgação de
uma determinação através de uma instituição legal, podendo ser entendido à luz dos
princípios que a sociedade toma como valores que guiam o acordo constituinte, a
legislação e as determinações judiciais. Desta forma, uma concepção de Direito que
recuse o positivismo descritivista traçado, e que se mostre em um viés interpretativo,
é receptivo com construções teóricas que possam concatenar todo o sistema
axiológico presente em toda a estrutura básica da sociedade, podendo ser declarado
que um direito outorgado para uma pessoa, não necessariamente há de estar
previsto expressamente na legislação interna de um Estado, mas sim estar presente
no espírito521 principiológico da sociedade.

520
Até porque a lógica e a filosofia analítica do século XX refutaram a possibilidade de que os juízos
morais e políticos possam ser decretados com verdadeiros ou falsos.
521
Esta palavra não deve ser vista como uma entidade metafísica, ou algo correlacionado com a
esfera religiosa, mas sim com uma órbita que indica as fontes basilares de justiça notadamente
representadas pelos princípios de justiça, por concepções de bem razoáveis, por uma idéia de que a
cooperação é algo bom, etc.
168

A estratégia rawlsiana, ao aceitar um entendimento abstrato (formal) acerca


do justo, que não necessariamente apresente conteúdo522 definido, e adaptando sua
noção de justiça para o que se pode denominar de Direito, pode ser definida e
exemplificada a partir de algumas instâncias tidas como paradigmáticas da lei (do
Direito), tais como: questões contratuais, o tema do limite de velocidade, etc. Neste
sentido afirma Dworkin que “then we can construct the other pole of an interpretive
equilibrium because we share an abstract ideal that can play the same role in legal
theory as the concepto f justice played for Rawls” (DWORKIN, 2003-04, p. 1391-92).
Com esta construção abstrata sobre o que é o Direito, o mesmo tende a possuir um
status de efetivo conceito, não dependente dos entendimentos diversos que os
operadores jurídicos possuem, nem fruto de uma mera ligação entre aquilo que é
produzido na esfera institucional previamente autorizada para tanto e os fatos
sociais (depreendendo-se o Direito desta correlação). Salienta-se que esta
determinação do que é o Direito, que deriva de uma acepção acerca do que é a
justiça, deve ser vista a partir dos olhos que esta é construída: aquele também se
mostra imerso dentro de uma concepção política, o que induz que tal conceito
derivado do pensamento rawlsiano deve conduzir a uma concepção política do
Direito. Isto, por seu turno, não impede que muitas vezes haja uma confusão entre
tal conceito e a possibilidade de relacioná-lo com a legalidade523 ou mesmo com as
sentenças proferidas pelos juízes524, visto que ambas as situações fazem parte das
vestimentas (constituição e legislação) e da nudez525 com que aquele aparece para
a sociedade.
Mas assinalando que o Direito pode ser visto através da legalidade 526, há de
se compreender o conceito desta para que se possa fazer uma adequada interação
entre os dois elementos, bem como diferenciá-los em vistas de uma melhor precisão
conceitual. Destarte, a legalidade é algo que pode ser vista como algo que “brings
our various pre-analytic assumptions about concrete propositions of law into
equilibrium with the general principles of political morality that seem best to explain
the character and value of legality” (DWORKIN, 2003-04, p. 1392), engendrando que
uma teoria acerca da legalidade pode ser aquela (para os propósitos rawlsianos)
522
Mesmo que o tenha em mínimas parcelas, pois não é um formalismo vazio – vide equilíbrio
reflexivo.
523
Ou com os direitos que estão afixados na constituição e na legislação.
524
Que aclaram quais são os direitos deforma individualizada.
525
Aplicação por juízes, em vistas a uma individualização, sem a restrição do véu da ignorância.
526
Podendo ser confundido com a mesma.
169

que melhor fixa uma teoria acerca das proposições que são tidas como verdadeiras
no universo do Direito, e que estão inseridas tais proposições dentro de um espectro
de valores morais que podem ser levados em consideração527. Sublinha-se que
tanto positivistas quanto modelos interpretativos podem delinear uma noção de
legalidade, pois esta é inerente a existência e aplicação do Direito. Por exemplo,
para um modelo de cunho positivista, a legalidade vai ser vista através de sua
formulação mais básica, qual seja, a adequação da lei com sua produção
institucional, ao mesmo tempo em que serão investigadas as condições materiais e
formais que sustentam as proposições sobre tal legalidade (e mesmo sobre o
Direito) com o escopo de descobrir a verdade528, sem esquecer a presença de uma
noção que fixe uma teoria da justiça que embase solidamente o plano abstrato da
legalidade (e do Direito).
Por outro lado, o modelo interpretativo, que pode ser enquadrado o
pensamento rawlsiano, de aplicação dos princípios de justiça através do Direito e de
sua legalidade, acaba se mostrando (em sua raiz) através de um tipo de
descritivismo extremamente mitigado, e que melhor pode construir uma
argumentação que lide com um Direito posto (na forma da lei) com um Direito que
derive de princípios de justiça. Mas se foi afirmado em outro momento que a teoria
interpretativa não se mostra como descritiva, não haveria incongruência com a
afirmação feita acima? Não, “because it begins with some understanding about what
is taken for granted within the community to which it is adressed, but it is in other
ways substantive and normative because the equilibrium it seeks is with principles
judged for independent appeal” (DWORKIN, 2003-04, p. 1392). Desta maneira,
pode-se asseverar como fazem os comentadores, que o trabalho de Rawls é “a
major contribution to legal philosophy‟s self-understanding” (DWORKIN, 2003-04, p.
1392). De resto, o que cabe estabelecer então é: (i) em que consiste o Direito e (ii)
como este deve ser entendido. Estas são as perguntas que acompanham a filosofia
do Direito e que para os propósitos do presente trabalho podem ser mostradas de
outra forma: (i) em que consiste o Direito em Rawls, e (ii) como este deve ser fixado.
Mas se as questões assinaladas acima podem ser tomadas por legítimas e
capazes de averiguação, haveria então diversos conceitos de Direito bem como
diversas formas de construção deste? Sim, no exato limite em que se pode

527
Juízos ponderados fruto de doutrinas morais abrangentes razoáveis
528
Com todo o peso epistemológico da tradição.
170

estabelecer também uma correlação entre formas de entendimento acerca da


felicidade, do bem, da justiça, da igualdade, assim como de diversos outros
conceitos filosóficos que dependem das elaborações que os teóricos constroem. O
que se pretende, então, é indicar a concepção teórica adotada por Rawls acerca do
Direito, por pressupor que sua concepção de justiça (dentre as diversas existentes)
é a que melhor consegue dar conta das necessidades das sociedades democráticas
contemporâneas, em que tal entendimento pode ser alargado para o universo do
Direito. Frente a esta declaração, ainda pode ser questionado: efetivamente, qual é
a melhor teoria do Direito para uma sociedade plural e democrática? Pois pode ser
aventado que Rawls não tratou de fixar uma doutrina acerca do Direito, o que pode
trazer como conseqüência que existem outras teorias melhor sistematizadas sobre o
tema, e que acabam por relegar a um segundo plano o tipo de Direito que se pode
deduzir indiretamente da justiça como eqüidade. Ou mesmo que não havendo
clareza a respeito do Direito na teoria da justiça rawlsiana, nada pode ser trazido a
respeito, sendo imprópria tal pesquisa. Ou ainda: qual seria realmente a proposta de
Direito que melhor se harmonizaria com a justiça como eqüidade529?
Tendo em mãos uma resposta para esta última pergunta, se poderá
argumentar em defesa de uma concepção de Direito A contra uma idéia B, em que
se tem como pano de fundo a teoria da justiça de Rawls e se possui os elementos
necessários para que se possa compreender as intenções rawlsianas no que dizem
respeito ao último estágio de aplicação dos princípios de justiça. A meta, então,
passa a ser a fixação de uma ligação entre uma proposta clara e evidente de justiça
(como é a justiça como eqüidade) e certo limbo conceitual que é abarcado por uma
teoria do Direito que não foi pensada de maneira sistêmica, sendo representada
indiretamente pela forma com que juízes devem se portar bem como por passagens
esparsas dentro do pensamento do filósofo de Baltimore, pelo quarto estágio de
execução principiológica. Segue-se que dentro do pensamento do filósofo norte-
americano, em sua justiça como eqüidade, há de se sugerir que no cerne da posição
original sob o véu da ignorância, além de uma necessidade óbvia de escolha de
princípios de justiça para a estrutura básica de justiça, surge hipoteticamente,
conforme declara Dworkin, a imperiosidade de que as partes também venham

529
Visto que o autor não define a mesma de forma expressa.
171

escolher uma teoria do Direito para que se efetivem os princípios 530. Mas dentre as
diversas correntes existentes ao longo da história moral e política, há de se ter em
conta a presença de todas para que se construa um conceito de Direito?
Obviamente que sim, pois a humanidade e todos os seus ramos de conhecimento se
mostram através de uma idéia de progresso moral e político, em que as definições
dependem de construções teóricas anteriores que embasam o pensamento
posterior.
Mas, com o escopo de fazer com que a proposta de Direito em Rawls se
mostre de pleno acordo com sua idéia de justiça, sendo ambos contemporâneos
portanto, existiriam duas grandes escolas hodiernas (no mundo democrático
ocidental) que apresentam séquitos bem distintos e tenazes em suas defesas, quais
sejam: (a) a corrente representada pelo positivismo, e (b) a corrente que abarca o
anti-positivismo, notadamente delineado por uma idéia de interpretação do Direito.
Faz-se lembrar que aqueles que apóiam o positivismo, tendem a seguir uma
elaboração formal que obedece o seguinte trâmite compartilhado: para que se defina
o que é o Direito, bem como a verdade de uma proposição, deve-se estar restrito a
um teste que verifique tais condições. Em suma, o positivismo é guiado por uma
metodologia que julga que é capaz de descobrir a verdade e essência do que é o
Direito, bem como do que é uma proposição jurídica531. Contudo, quais seriam as
grandes diferenças entre a concepção positivista e interpretativa sobre o método e o
conteúdo que as mesmas carregam acerca do Direito?
Sobre o método positivista, este já deixou claro sua proposta de verificação
do Direito, quando foi declarado, seguindo Hart, que o direito de uma pessoa só
pode ser concedido quando este recebe um prévio respaldo institucional,
representado pela presença da legislação direcionada a um caso em concreto.
Quanto a isso, os juízes ao proferirem uma sentença, devem estar pautados por
uma noção de execução do ordenamento emanado do legislador, desde que (i) tais
leis não se mostrem ambíguas para o caso em questão, (ii) ou que possam ser
avaliadas como coerentes532 dentro de um sistema que avalie certa história
legislativa ou um histórico de decisões que possam ter analogia com a situação de

530
Tal hipótese é tomada como um exercício investigativo acerca da forma com o que o Direito se
mostra para Rawls.
531
Pois há uma relação de interdependência entre ambos: ao se ter a verdade de cunho metafísico
sobre uma proposição jurídica, pode-se claramente averiguar o que é o Direito em si.
532
Mesmo que em um primeiro momento se mostrem de caráter dúbio.
172

fato que é alvo de análise judicial: ou seja, a condição de possibilidade para que um
juiz declare direitos (ou o Direito) é que a norma não se mostre inequívoca, seja em
sua essência ou em relação a harmonia com o sistema jurídico como um todo 533.
Ainda sobre o positivismo, convém lembrar um tema complexo: e quando tais leis,
previamente escritas e promulgadas de acordo com a fórmula ideal delineada ou
interpretadas dentro da restrição imposta por esta corrente, não conseguem mostrar
(através da decisão judicial) o que é o Direito verdadeiro dentro de um hard case?
Qual é a solução que o positivismo toma para si nesta situação?
Nesta etapa, a doutrina positivista avança suas fronteiras para aquilo que é
denominado de lacuna legal, em que os juízes devem declarar que a lei é
insuficiente para declarar direitos dos cidadãos. O que em última análise equivale a
dizer que o Direito se mostra insuficiente, dentro de um âmbito legalista. Logo, para
suprir esta lacuna, os juízes como cientistas jurídicos devem fazer com que o Direito
se mostre dentro de um determinado fato social, pois até mesmo um positivista
reconhece que independentemente de uma legislação não abarcar todas as
situações da vida, o Direito não deve ficar impedido de ser declarado: o que ocorre
com a ausência de lei prévia para enquadrar um caso concreto, é que não há direito
a ser concedido, levando o positivismo a ser entendido como uma corrente jurídica
que identifica lei com Direito. Note-se que a linha é tênue, pois não havendo, não há
Direito (ou direitos), contudo, mesmo assim há saída para o jurista nestes casos,
representado pelo papel dos juízes: estes, verificando a ausência de direitos para
uma determinada pessoa em uma situação real, mas notando a presença do
Direito534, deve travestir-se de legislador e criar a lei (através da sentença), de forma
moderada e secundária, seguindo os ditames racionais que um parlamentar
apresentaria.
Em outra banda, a posição contrária ao positivismo aqui destacada como a
corrente interpretativa, ao se referir ao posicionamento que os juízes devem adotar
em suas sentenças, indicam um caminho semelhante ao que é proposto pelo
positivismo: os operadores jurídicos que decidem uma lide devem aplicar de forma
clara as regras estabelecidas pelos legisladores, seguindo plano de validade
delineado pelo positivismo jurídico, no qual uma lei não pode ser ambígua nem em

533
Aqui deve-se ler sistema jurídico como o conjunto de ordenamentos legais lato sensu, em que não
se pode fazer reminiscências a princípios de justiça, por exemplo.
534
Visto neste caso como uma entidade misteriosa, no qual crê-se que não apresenta uma
fundamentação adequada, em que ora está presente e ora não.
173

sua essência, nem com relação ao sistema no qual está imersa. No entanto, o
mesmo problema de posicionamento acerca dos hard cases surge na seara do
interpretivismo jurídico: no momento em que há uma determinada lacuna da lei (por
si própria ou anexada ao seu sistema como um todo), o que o juiz deve declarar?
Tomar a mesma postura adotada pelo positivismo? Não podem decidir no caso
concreto? A recomendação que a corrente interpretativa toma para si é que os
juízes “should not attempt to legislate as the legislature would, but should instead try
to identify the principles of fairness or justice that best justify the law of the
community as a whole and apply those principles to the new case” (DWORKIN,
2003-04, p. 1393). Desta forma nota-se que uma tese que leve em consideração tal
posicionamento sobre o Direito acaba apelando não para uma idéia de que um juiz
deva fazer às vezes de um legislador ideal535, mas sim para uma noção de que
quando a lei se declara insuficiente para prolatar o direito de alguém e o Direito se
mostra presente, este pode ser fundamentado em princípios que extrapolam o mero
ordenamento legal. Mas não se poderia cair em um relativismo jurídico no qual tudo
pode servir de fundamento ou mesmo cair em uma busca a uma metafísica ao
delinear princípios de justiça?
Para tal indagação, pode-se afirmar cabalmente que para as duas hipóteses a
resposta se mostra negativa. Em um primeiro momento, o Direito (i) não pode cair
em um relativismo jurídico, pois o Direito não pode ser visto – na teoria da justiça de
Rawls – como algo desconectado da justiça como eqüidade; esta, por seu turno,
apresenta as restrições formais e axiológicas que devem embasar tanto os
princípios de justiça de forma abstrata, quanto a aplicação dos mesmos a partir da
seqüência dos quatro estágios536; em suma, com restrições claras e evidentes, já
demonstradas em capítulos anteriores, no que dizem respeito a justiça como
eqüidade, não se pode imaginar um Direito que possa apresentar uma
fundamentação de cunho relativista. Em uma segunda etapa, (ii) há de se destacar
que as idéias principiológicas da justiça como eqüidade, bem como todos os seus
mecanismos de justificação, se mostram nos moldes políticos, não metafísicos nem
dependentes de doutrinas morais abrangentes específicas (ou de um acordo entre
elas), o que afasta a possibilidade de que se busquem fundamentos últimos no

535
O que remete, em partes, a um espectador ideal – do utilitarismo.
536
Em que o judiciário, ao particularizar direitos, mostra como os princípios devem ser aplicados para
cada cidadão, mostrando como o Direito deve ser entendido.
174

campo da teoria da justiça; como o Direito é o meio que aplica os princípios de


justiça na realidade, com o intuito de individualizar o critério do justo, o que mostra a
dependência daquele para com a justiça, o Direito não pode se mostrar fora do
círculo virtual delineado pela justiça; logo, o mesmo não pode apresentar
fundamentos metafísicos ou derivados de doutrinas morais abrangentes, estando
adstrito a fundamentação política da justiça, que não apresenta uma verdade
absoluta, mas sim um critério de objetividade.
A partir destas explanações, pode-se propor um outro exercício racional de
avaliação dos princípios de justiça e sua aplicação a partir de uma teoria do direito
(DWORKIN, 2003-04, p. 1393). Esta elucidação consiste em uma idéia denominada
de hipótese 1. Nesta circunstância, deve-se imaginar que as partes na posição
original sob o véu da ignorância, acabam por escolher princípios de justiça que
podem vir a ser compartilhados pela doutrina utilitarista: em suma, adota-se uma
concepção utilitária acerca do que é o justo. Obviamente que pelas fortes restrições
formais e dos aparelhos de justificação, tal corrente se mostra afastada como a
escolha que as partes poderiam adotar para reger a estrutura básica da sociedade.
Todavia, para os propósitos de análise do Direito, propõe-se que esta fórmula – o
amplo espectro justificacional, a concepção de pessoa e de sociedade, bem como a
idéia de que a cooperação produz os melhores resultados – que apresenta sólidas
restrições para a escolha dos princípios, sofra uma relativização com o intuito de que
tais princípios utilitaristas possam vir a ser escolhidos como os mais justos537. Neste
caso, ao escolherem o utilitarismo, as partes538 naturalmente optam por uma teoria
positivista acerca do Direito, ao invés de uma teoria interpretativa do mesmo.
Recorrendo-se da literatura,

as Bentham pointed out, sound utilitarian legislation must be organized and


directed from a single source: The best program for maximizing utility is an
integrated program in which different laws and policies can be tweaked and
coordinated so as to yield a maximum utility bang (DWORKIN, 2003-04, p.
1393).

537
Tal relatividade ou abrandamento das restrições e concepções, em seus pormenores, não é alvo
da presente pesquisa. Contudo, pode-se entender que isto deve ocorrer no exato limite que permita a
escolha do utilitarismo como uma concepção de justiça.
538
Dentro daquela obrigatoriedade hipotética anexa de que as mesmas escolham uma teoria do
Direito.
175

Cabe destacar que tanto Bentham quanto Austin, podem ser classificados sem
maiores dúvidas, como dois positivistas que eram utilitaristas, o que reforça a
aproximação destacada entre estas duas correntes do pensamento filosófico. E para
que tal ideal de maximização da utilidade seja efetivado, qual o mecanismo
necessário para impulsionar esta noção? Neste sentido, o utilitarismo e o
positivismo, necessitam de um órgão que possa dar conta de suas pretensões mais
latentes, quais sejam (i) maximizar a utilidade e (ii) encontrar esta maximização a
partir de um olhar que remeta a uma noção de que o direito só pode ser outorgado a
partir de decisões emanadas de instituições previamente autorizadas para tal. O que
surge aqui, é que a legislatura (em seu mais amplo sentido) é a instituição que
melhor pode proteger os ideais de ambas as doutrinas vistas de forma conjugada,
pois esta (a) oferece uma mais adequada estruturação acerca da lei, do Direito e de
organismos que possam proteger os indivíduos e fazer valer a força da lei (e do
Direito) quando os indivíduos não queiram aceitar a maximização da utilidade ou
outra ordem qualquer, bem como (b) o ideal de composição da legislatura, feita por
parlamentares que representam as diversas facções sociais, aliado aos
procedimentos de votação539, acabam ofertando uma sólida amálgama de
preferências do corpo social “that is indispensable to sound calculations of the trade-
offs necessary to achieve maximum aggregate utility” (DWORKIN, 2003-04, p. 1393).
Com esta formatação, os juízes surgem como aqueles operadores jurídicos que
fazem com que a lei se efetive e seja cumprida, mas sem nenhuma função
interpretativa do Direito quando, por exemplo, a lei falha em determinar
explicitamente o direito de alguém.
Logo, a função dos juízes perante uma omissão legal540 é de declarar a
existência desta lacuna, devendo preenchê-la como se fossem os próprios
legisladores, ficando estritamente confinados à instituição da legislatura, pois não se
pode pensar em uma produção do Direito a partir de um ideal interpretativo que
verifique a medida a ser tomada perante a falha legal, em virtude de uma análise do
sistema axiológico de justiça541. Desta forma, o juiz se vê atado ao que um

539
Como a um respeito a regra da maioria, que entra em harmonização com a maximização da
utilidade.
540
No caso em tela, nos moldes em que não há lei para vincular sua decisão.
541
Que não está previsto de forma clara tanto na legislação, quanto na constituição, em decisões
judiciais passadas ou mesmo na história da legislatura.
176

parlamentar pensou542 ou deveria ter pesado (quando da evidência da lacuna legal).


Além destas classificações acerca do positivismo e sua conexão com a corrente do
utilitarismo clássico, pode-se declarar que tal doutrina que mescla estas duas
correntes acaba por defender que a forma interpretativa do Direito 543 se mostra
plenamente irracional, pois os princípios morais e políticos que são defendidos pelo
interpretivismo “are simply rules of thumb for achieving maximum utility in the long
run, and there can be no independent value, and much mischief, in pursuing a
coherence of principle for its own sake” (DWORKIN, 2003-04, p. 1393-94).
Colocando certa inutilidade em interpretações do Direito que dêem margem para
fundamentações baseadas em princípios de justiça, e não em justificações que se
embasam em produções institucionais previamente declaradas como aptas para tal
tarefa, o utilitarismo e o seu positivismo acabam afirmando que a utilidade só tem
serventia para produções legais que visam o futuro, não podendo esta se embasar
em princípios localizados em um passado distante.
Um juiz, em um caso complexo, declara o Direito a partir de duas formas: (1)
a partir de prévia previsão legal, ou (2) em virtude de adquirir certa roupagem
parlamentar para fazer às vezes deste na determinação de um ordenamento legal.
Nunca há retrocesso abstrato em sua fundamentação, com exceção quando tal
movimento retrógrado possa ser cotejado com ações que complementem para com
a utilidade almejada (futuro), a partir de noções que busquem sanar possíveis
ambigüidades. Apesar da complexidade da construção teórica, em que por vezes
parece haver certa inconsistência lógica, o utilitarismo e positivismo no campo do
Direito podem ser expostos assim: (i) não usam princípios abstratos de justiça para a
fundamentação de decisões que outorgam direitos; (ii) não buscam, em um passado
remoto, princípios que possam embasar as decisões que não estão previamente
fixadas pelas instituições competentes; (iii) não crêem nesta última assertiva pois a
legislatura é a instituição que melhor pode representar os anseios de toda
coletividade, em razão de sua composição e de suas regras decisórias, que levam
em consideração a regra da maioria, e que por sua vez está de acordo com o
princípio da utilidade (maximizar o bem-estar geral); (iv) o princípio da utilidade é
elaborado com vistas a um futuro independente de concepções principiológicas que

542
Quando definiu claramente um Direito em um caso concreto.
543
E que pode ser colocada no viés rawlsiano sobre o Direito.
177

buscam integridade com o passado544; (v) o máximo de retrocesso legal que pode
ser feito por juízes, é aquele que busca-se na legislação feita por instituições
competentes o fundamento do Direito; (vi) o Direito, neste sentido, acaba sendo
teleológico545.
É claro que existem outras classificações possíveis deste positivismo com
viés utilitarista, mas acredita-se que para os propósitos da pesquisa, estas
asserções se mostram suficientes. Com isto, surge o que se pode denominar de
hipótese 2: as partes seguem o ordenamento rawlsiano da justiça como eqüidade.
Tornando esta exposição mais clara, isto equivale a pensar que as partes sujeitas ao
véu da ignorância na posição original, acabam optando pelos princípios de justiça
que o filósofo de Baltimore listou como aqueles que seriam construídos dentro de
uma concepção ideal de pessoa e de uma sociedade de cooperação. Neste sentido,
seriam escolhidos os dois princípios de justiça, o que conduziria a um resguardo dos
direitos e liberdades básicas546 bem como uma proteção àqueles indivíduos que
apresentam um status social menos privilegiado, nomeados de menos
favorecidos547.
Diante desta noção clássica defendida por Rawls com o nome de justiça
como eqüidade, poderia ser mais natural, diante da suposta necessidade adicional
de que as partes teriam de escolher uma teoria do Direito548, que estas viessem a
escolher a corrente interpretativa, “because interpretivism would then be a better bet
to achieve justice, at retail as well as wholesale, in the long run” (DWORKIN, 2003-
04, p. 1394). E isto está de acordo com a noção rawlsiana (previamente exposta) de
que os dois princípios de justiça devem ser aplicados de acordo com as
necessidades (e restrições) que as instituições sociais básicas possuem, e que é
desenvolvido pela seqüência dos quatro estágios. Passado o estágio da posição
original, em que as partes escolhem os princípios de justiça549, surge o segundo

544
Na lacuna legal, o juiz cumpre a função de legislador – para o futuro –, não buscando informações
em construções axiológicos abstratas que remontam uma esfera a-temporal.
545
Seu fim é a utilidade, com as diversas acepções que a mesma possa carregar consigo, variando
de acordo com a corrente utilitarista adotada.
546
Que seriam efetivados a partir do conceito abstrato demonstrado pelo primeiro princípio de justiça.
547
Através da integridade do segundo princípio de justiça.
548
Um exercício racional para que se verifique que tipo de filosofia do Direito a justiça como eqüidade
vem a se filiar.
549
De forma abstrata e com as maiores restrições possíveis em virtude de um véu da ignorância
muito espesso ou denso.
178

estágio dos princípios de justiça550, e que é denominado de estágio constitucional,


ou seja, aquele no qual há o estabelecimento de um padrão de fundo de
aplicabilidade, que nada mais é do que a fixação (i) de instituições sociais básicas e
(ii) direitos e liberdades amplas dos cidadãos. Tais produções constitucionais
representam as primeiras necessidades fisiológicas e estruturais para que os dois
princípios de justiça possam produzir algum tipo de resultado na realidade social.
O terceiro estágio de aplicação dos princípios de justiça rawlsianos é a etapa
legislativa, na qual são definidas (lato sensu) leis e políticas sociais e econômicas
fundamentadas sobre bases principiológicas mais autônomas, pois o véu da
ignorância é mais fino (ou foi erguido ainda mais), mesmo que restrição abstrata
ampla dos princípios de justiça fundados na posição original, bem como as
restrições constitucionais estejam presentes. Convém lembrar que é neste estágio
que o segundo princípio de justiça ganha corpo, pois para Rawls, questões de
(re)distribuição não devem estar presentes na constituição pelos motivos já
delineados em capítulo apropriado. É adequado lembrar que há uma crítica que
pode ser aventada no presente estágio: (i) há uma prioridade lexical do princípio da
igual liberdade sobre o princípio que visa a distribuição de renda; (ii) as leis são
forjadas (sem sentido pejorativo) por uma maioria legislativa, que atende a uma
maioria substancial da população; (iii) mas a regra maximin, esboçada na posição
original, vincula que as políticas públicas e leis devem permitir a desigualdade de
renda e riqueza desde que esta gere benefícios para os menos favorecidos; (iv) com
isso, a legislatura deve atender os interesses da classe menos favorecida, mesmo
que seja à custa de outras classes mais favorecidas; (v) desta forma, o legislativo
pode fixar impostos para (re)distribuir renda e riqueza para os menos favorecidos;
(vi) mas isto não conduziria a certo princípio do sacrifício (algo tão rejeitado por
Rawls)?
Antes de passar aos quarto estágio de aplicabilidade principiológica, é
adequado responder esta questão. À luz da justiça como eqüidade, toda a
construção presente no parágrafo acima não se harmoniza com o princípio do
sacrifício em virtude de alguns aspectos cruciais: (a) o primeiro princípio de justiça,
que trata da regularização abstrata de que todos os cidadãos possuem um esquema

550
Notadamente aqui, pela primeira vez, se aplicam efetivamente os mesmos, pois na primeira etapa
os princípios são meramente construídos para dar conta de determinada concepção de pessoa e de
sociedade de uma forma mais abstrata, sempre seguindo um ideal de que a cooperação é algo bom e
desejável.
179

de iguais direitos e liberdades básicas, é preservado, visto que a ordem lexical posta
em este prevalece em face do segundo princípio de justiça, faz com que a
(re)distribuição de renda e riqueza não afete aquela esfera, o que implica em uma
repulsa ao princípio do sacrifício (no utilitarismo, quando se visa uma maximização
do bem-estar geral, esta circunstância não encontra limites de aplicação – lato sensu
–, o que pode traze como conseqüência que determinados direitos e liberdades
básicas de alguns cidadãos, possam ser rompidos); (b) o tema da (re)distribuição de
renda e riqueza faz parte de um amplo programa social que é pautado pela idéia de
que a cooperação produz os melhores resultados para todos, em que pensar nisso
implica na obrigatoriedade de pensamento de que os bens sociais não podem ficar
conservando o poder político daqueles que detém o mesmo, o que gera a
necessidade de (re)distribuição para que todos possam participar da vida política e
desenvolver plenamente seus ideais de vida; (c) para a efetivação desta noção, o
Estado não pode ficar limitado a ser um fiscal das relações interpessoais, sendo que
sua participação em políticas públicas se mostra compulsoriamente ativa, visando
uma melhor igualdade de possibilidades públicas e privadas para todos os cidadão;
(d) uma sociedade justa é sinônimo, para Rawls, de uma sociedade mais equânime,
o que implica que todos os cidadãos devem possuir a mesma possibilidade de
ascenderem socialmente, independente de fatores naturais (raça, sexo, etc.) ou
sociais (status, credo, etc.), o que traz como corolário que uma (re)distribuição de
renda e riqueza faz parte dos fatores que auxiliam na busca desta igualdade social
(que não é uma busca pelo socialismo).
Todavia, mesmo diante desta explanação, surge uma pergunta: ao se
imaginar que a sociedade ideal é composta de uma sociedade de cidadãos
proprietários, em que os mesmos possuem a liberdade de estabelecerem relações
interpessoais, celebrarem acordos e desenvolverem seus planos de vida que julgam
mais pertinentes, não seria lógico supor que cada um possa fazer o que desejar com
sua renda, fruto de seu trabalho? Ou ainda, não seria injusto ter de dividir o produto
de seu esforço laboral com outrem que não faz o mesmo e na mesma medida? Para
o primeiro questionamento, pode-se aventar que o programa rawlsiano de justiça
como eq6uidade não se intromete naquilo que os sujeitos fazem com seus ganhos
laborais, do contrário seria o mesmo que uma doutrina moral abrangente. Mas para
a segunda pergunta (em cotejo com a primeira), deve-se trazer à baila que a idéia
de sociedade trabalhada por Rawls é de uma que apresente a cooperação como
180

algo bom. E este valor não é visualizado soemtne do ponto de vista do filósofo que
produz a idéia política: deve ser visto por cada cidadão que é considerado livre e
igual, possuidor das duas faculdades morais (senso de justiça e concepção de bem).
Neste sentido, todos os cidadãos razoáveis aceitariam o fato deduzido das teorias
econômicas de que uma sociedade de cooperação é melhor para todos do que uma
sociedade de competição. O que traz como conseqüência que pensar em uma
(re)distribuição de renda e riqueza não é algo que interfira nos valores e planos de
vida dos agentes políticos, pois estes vêem a sociedade por dois lados: um que
deve preservar os anseios privados, e outro que deve fomentar o auxílio mútuo entre
os membros desta sociedade. E tudo isto é tido como algo bom e razoável para o
corpo político.
Logo, não há elo nenhum que ligue o princípio da diferença e o princípio do
sacrifício na teoria rawlsiana. Isto tudo não prejudicaria o Direito a ser extraído da
doutrina de Rawls, pois o mesmo também evitaria a possível ligação mencionada,
tanto em seu conceito mais abstrato, quanto em sua aplicação direta a um caso
concreto. Por exemplo, em uma demanda que algum cidadão acione o judiciário
para declarar injusto alguma imposição estatal que tome parte de sua renda, visando
aplicação da mesma em políticas públicas que visem a melhoria dos cidadãos
menos favorecidos, ou mesmo a tomada do Direito dentro de um viés interpretativo
que avalie que tal medida está de acordo com a carga axiológica que a justiça como
eqüidade carrega consigo. Adentrando, por fim, no quarto estágio de aplicação dos
princípios de justiça, pode-se depreender que as partes poderiam “be attracted to
the idea of a judiciary with independent powers and responsabilities” (DWORKIN,
2003-04, p. 1394). Pensar em um judiciário independente equivale a imaginá-lo com
toda a possibilidade de construção de teorias argumentativas acerca do Direito que
não necessariamente emanam de uma legislação previamente institucionalizada.
Mas disto não se decorre que o Direito perca uma base de fundamentação própria e
caia em um relativismo, se assemelhando ao que nomeadamente tem-se por direito
alternativo. O sustentáculo que defende as prerrogativas deste tipo de judiciário, e
seu entendimento sobre o Direito repousam, em última análise nos princípios da
justiça como eqüidade. Contudo, como se faz, em um hard case, para que a
justificação pública de uma decisão ganhe materialidade?
Para esta questão, não se poderia recorrer imediatamente aos princípios de
justiça construídos na posição original, pois estes são elaborados em um momento
181

a-temporal, sem bases palpáveis, pertencendo unicamente a um procedimento (que


equivale a um exercício) de abstração racional, que prova serem melhores estes
princípios, para as sociedades democráticas ocidentais, do que outros. Contudo, tais
noções carecem de substância para fundamentar uma sentença judicial, que versa
sobre questões particulares reais, e visa uma individualização do Direito. Nisto,
haveria assim uma impossibilidade do Direito em Rawls? Não, pois poderia se
adotar o segundo estágio de aplicação dos princípios de justiça como aquele que
oferece os pilares de sustentação legítimos e materiais para fundamentar a
sentença, pois os direitos e liberdades básicas ali listados (na constituição) são
derivados dos princípios de justiça da posição original, com a ressalva de
apresentarem um véu da ignorância mais fino (ou um pouco levantado). Mas outro
problema surge: foi afirmado que em um viés interpretativo pode-se solicitar uma
fundamentação do Direito que não esteja presente na conjuntura legal propriamente
dita, fazendo uso de princípios de justiça amplos; mas por último foi declarado que a
fim de dar maior materialidade a sentença judicial, deveria se utilizar dos valores
indicados no primeiro estágio pós posição original (etapa constitucional), pois esta é
a que oferta uma maior publicidade de princípios aliado a uma segurança jurídica 551;
isto não demonstraria inconsistência lógica, bem como poderia conduzir a um tipo de
positivismo mitigado na doutrina de Rawls?
Crê-se que não, pois uma idéia acerca do Direito esboçada através de uma
justiça como eqüidade não se enquadra nos pressupostos positivistas, que instigam
a uma descoberta de um conceito de verdade de cunho científico (e metafísico), algo
refutado pelo filósofo de Baltimore. Um primeiro ponto a ser destacado é que no viés
positivista, a lei e o Direito são tomados por verdadeiros quando emanados de
instituições que possam estar autorizadas a declararem algo sobre estes temas: há
uma necessária congruência entre um fato social e a regra encontrada na legislação
escrita. E tal lei é verdadeira também, em um hard case, quando não se mostra
ambígua nem para consigo própria, nem para com o sistema jurídico no qual está
atrelada. Rawls552 recusam tais noções de validade legal de uma determinação
judicial553, todavia o conceito de Direito não pode parar no limite desta validez legal.
Nisto, um conceito de Direito que se adapte a teoria da justiça como eqüidade,

551
Visto que os mesmos estão previstos em uma Carta constitucional.
552
E acredita-se que nenhuma teoria sobre o Direito.
553
Caso concreto harmonizado com norma para que se produza uma decisão fundamentada.
182

quando se depara com um hard case, pode sim se socorrer de princípios mais
abstratos possíveis para solucionar o caso em tela, à luz dos pressupostos que
poderiam ser acordados racionalmente em uma hipotética posição original. E isto
não entra em descompasso com o acordo constituinte, pois um hard case, é
exatamente aquela situação em que a racionalidade humana não conseguiu prever
que determinado fato social necessitaria de determinada previsão jurídica.
Portanto, ao mesmo tempo em que se pode (e se deve) utilizar os princípios
emanados do acordo constitucional para fundamentar uma sentença de forma
material, quando estes não se mostrarem suficientes em razão da complexidade da
questão, pode-se apelar para os princípios mais abstratos construídos em um
estágio anterior, quais sejam, os dois princípios de justiça rawlsianos, caso estes já
não estejam transmutados na constituição. E uma possível doutrina do Direito em
Rawls, não apresenta marca positivista, pois diante de um hard case, o juiz deveria
se valer como se fosse um legislador. E tal acepção implicaria na questão de que a
função legislativa obriga a aceitação da regra da maioria substancial, o que poderia
fazer com que a decisão jurídica que usa tal mecanismo, incorresse em um
desrespeito aos direitos e liberdades básicas de cidadãos ou de um grupo destes
(como no utilitarismo clássico). Recorrendo-se a um viés interpretativo, a teoria
rawlsiana pode fazer com que o juiz em um hard case, que decreta o Direito e
individualiza direitos, use o exercício racional e procedimental de retorno a uma
posição original sob um véu da ignorância para que se pensem em quais direitos
poderiam ser decorrentes de uma fundamentação que utilizasse os princípios de
igual liberdade, igualdade eq6uitativa de oportunidades e princípio da diferença, para
cidadãos que não são tomados a partir de suas condições naturais e sociais.
Destarte, o judiciário poderia vir a tomar a função (na justiça como eqüidade)
de revisor da constituição a de aplicador dos princípios de justiça quando estes se
mostram sem o limite que o véu da ignorância apresenta nos outros estágios. Com
isso, os princípios de justiça podem ser vistos de forma individualizada e para todos.
Além destas funções e desta ampla proposta de Direito (e de determinação dos
direitos), os cidadãos poderiam construir um judiciário em que os operadores que
decidem as demandas “should also exercise a less potent, but still important,
supervision over the application and development of the more quotidian law made by
legislatures” (DWORKIN, 2003-04, p. 1394), aliado ao fato de que estes (juízes)
183

should exercise that power in the direction of equality before the law, that is,
in the direction of insisting that, so far as a reasonable doctrine of legislative
supremacy permits, whatever principles are pressuposed by what the
legislature has done for some groups be available generally to all (DWORKIN,
2003-04, p. 1394).

Com esta declaração, tem-e uma noção de qual proposta de Direito deve estar
presente na doutrina rawlsiana (pautada pela visão de Dworkin): (a) a mesma
apresenta um corte interpretativo na (a¹) formulação conceitual do que o Direito é, e
(a²) na determinação de direitos para os cidadãos; (b) deve haver uma prevalência
razoável e harmônica dos princípios de justiça em face da lei, nos mesmos moldes
que a ordem lexical apresentada na relação em que o princípio da igual liberdade é
preponderante sobre o segundo princípio de justiça ou no ordenamento da
seqüência dos quatro estágios em que o estágio constituinte é prioritário em face do
estágio legislativo; (c) tal preponderância principiológica indica que os mesmos se
mostram como critérios independentes para avaliar as legislaturas e as decisões
constitucionais, o que pressupõe a existência de um acordo moral e político
profundo, nomeado de consenso sobreposto; (d) a autonomia mencionada, também
se refere que os princípios de justiça têm sua existência garantida, seja quais forem
as determinações emanadas da constituição e da legislação como um todo.
Ainda sobre a última passagem, convém destacar que apesar desta
independência que os princípios de justiça apresentam perante a legislação, a
justiça como eq6uidade (e os princípios agregados a mesma) devem estar em
harmonia com uma doutrina da supremacia legislativa que seja razoável, o que em
outras palavras equivale a dizer que a independência não pode ser vista de forma
absoluta, e sim do ponto de vista lexical. Do contrário, perdem-se por completo as
bases de fundamentação de uma decisão a respeito do Direito. Ademais, quando se
fala na referida passagem que uma doutrina legislativa deve ser inferior lexicalmente
a quaisquer princípios que uma teoria da justiça tenha construído 554, isto não tem
correspondência com o que se denomina criticamente de formalismo vazio, sendo
no máximo um formalismo aberto. Mas quais as diferenças entre estes dois campos
formais e por que a justiça como eqüidade e seu viés no Direito, adota o último
posicionamento?
Ora, um formalismo vazio, é algo que elabora uma estrutura procedimental
para que construam, por exemplo, princípios de justiça, sem nenhuma preocupação

554
Em que não há carga axiológica pré-determinada.
184

com a existência de um valor agregado dentro desta forma. Caso possua um valor,
tal formalismo não se mostra vazio, contudo, pode fatalmente cair em uma
metafísica, pois os princípios, assim, derivam de valores previamente alinhavados, o
que gera uma fundamentação última da moral e da política. Mas então, o que a
teoria da justiça como eqüidade deve fazer? Aceitar a crítica e ser vazia, para não
cair em um fundacionalismo de todo o gênero, ou buscar um valor anexo em sua
estruturação? Rawls foge tanto de um lado quanto de outro, e da mesma forma com
que o pensamento kantiano deve ser entendido: como um formalismo, mas não
vazio. No caso do filósofo norte-americano, o tipo de formalidade que o mesmo tem
para com a justiça como eqüidade reside no fato de que esta se mostra para a
construção de princípios de justiça sem nenhum valor positivo anexado, somente o
fato de conhecer determinadas questões sociais que devem ser repudiadas555, e a
partir delas elaborar uma concepção ideal de pessoa e sociedade, para assim
impulsionar um construtivismo axiológico (representado pelos dois princípios de
justiça). Esta estrutura, ademais, acaba se diferenciando de um formalismo vazio
acrescido pelo fato de que os princípios de justiça elaborados devem obedecer a
uma fundamentação que respeito um equilíbrio reflexivo entre estes, juízos morais
ponderados e uma teoria moral, o que implica em valor. Mas tais valores não são
fixos e imutáveis556, e sim interdependentes daquilo que eles próprios geram: os
princípios de justiça. Pois estes, acabam tendo uma função pedagógica para com os
juízos morais que os engendram, da seguinte forma: os princípios assim elaborados,
acabam influenciando os diversos juízos morais ponderados e as diversas doutrinas
morais abrangentes ao ponto destas, com o passar do tempo, também estarem
abertas a reformulações, em um movimento cíclico e ininterrupto.
E é desta maneira que a justiça como eqüidade se faz presente no universo
do Direito: a partir de um movimento de fundamentação que não busque uma
verdade firme e definitiva (na angulação clássica científica), mas uma verdade
mitigada, que tenha a força de objetividade ad hoc. Logo, os juízes para que
cumpram sua função de fixação do direito para com os cidadãos, devem levar em
conta a estrutura da justiça para uma sociedade ideal, e que obedece a um
formalismo aberto a construções e reformas, tal e qual a função que o judiciário deve

555
Como uma recusa para com a escravidão e para com a intolerância religiosa.
556
Como levaria a condução de uma teoria que se embasasse em uma fundamentação última da
moral e da política.
185

ter, conforme mencionado, nos hard cases e nos filtros constitucionais,


respectivamente. Destarte, uma concepção de Direito que siga esta elaboração
acaba se mostrando dentro dos moldes que a justiça como eqüidade exige,
harmonizando um formalismo com os valores tidos como os mais justos e corretos
para a sociedade democrática hodierna.
Com tais parâmetros estabelecidos, é adequado mencionar que as partes,
diante da hipotética força compulsória que as obrigaria a escolher uma teoria do
Direito para aplicar os princípios de justiça, teriam sólidas propensões para adotar
uma postura que se inclinasse a esta noção interpretativa, em oposição a doutrina
positivista que além de não dar conta de um ideal de justiça como eqüidade,
apresenta, por diversas vezes, firmes ligações com o utilitarismo557. E a motivação
que está por detrás do impulso que as partes possuem para se filiarem a uma
corrente interpretativa se dá em virtude de que as pessoas tem direitos não somente
de acordo com o que é previamente estabelecido em uma dada legislação, mas sim
em concordância e harmonia com as ordenações principiológicas que advém de um
acordo moral e político profundo. O importante para notar neste ponto é que em
nenhum momento têm-se as palavras do filósofo de Baltimore indicando
explicitamente que o caminho a ser adotado deve ser este, ou seja, que o Direito e
os direitos devem ser pensados a partir de uma determinação interpretativa do
mesmo.
E isto fica claro, pois o estabelecimento de uma doutrina do Direito não é o
alvo de Rawls: (i) o objetivo central da justiça como eqüidade é o estabelecimento de
princípios abstratos que possam ter validade para todos os agentes políticos bem
como reger a estrutura básica de uma sociedade democrática; (ii) com isso, a
aplicação daqueles nas diversas instituições básicas que distribuem a justiça, o que
demanda um detalhamento da execução dos princípios elementares, cabe aos
cidadãos de cada Estado, pois os dois princípios de justiça são representações
arquitetônicas para todas a democracia ocidental contemporânea, respeitando as
especificidades de cada sociedade. É frente a estas duas colocações que surge a
necessidade do exercício racional hipotético que visa elucidar qual seria a opção
que as partes tomariam caso lhes fosse instigada o ato compulsório de escolher
uma teoria do Direito que se adequasse a justiça como eqüidade em sua totalidade.

557
Que Rawls rejeita muito, em razão de seu princípio do sacrifício.
186

Tal asserção de que há uma carência sistemática na determinação do que é o


Direito na teoria da justiça como eqüidade é reforçada pela seguinte passagem:

No primeiro nível da construção teórica, Rawls detém-se em questões acerca


da institucionalização constitucional dos princípios da justiça, fundamentados
inicialmente in abstracto. Também não desconhece o aspecto da sanção do
Estado, a qual liga externamente o direito coercitivo ao comportamento de
seus destinatários – o que não acontece com a moral, que pode apelar
apenas ao sentido de justiça. Mesmo assim, ele não consegue esclarecer a
relação entre direito positivo e justiça política. Rawls concentra-se em
questões de legitimidade de direito, sem tematizar a forma de direito
enquanto tal, e com isso, a dimensão institucional do direito. (HABERMAS,
2003, p. 92).

Mas se o filósofo de Baltimore não trata adequadamente do tema, quais são


as razões para a tentativa que a presente pesquisa tenta expor558? O motivo central
se dá em virtude da seqüência dos quatro estágios que é desenvolvida pelo filósofo
norte-americano, e que apresenta no quarto estágio a etapa que mescla o Direito à
sua justiça como eqüidade e que o autor de Uma teoria da justiça deixou inconcluso
e indeterminado com o escopo de que sua teoria da justiça atingisse o exato limite
político proposto: um sistema amplo e geral para reger a estrutura básica de justiça
das sociedades contemporâneas democráticas, sem se ater em minúcias
executivas, pois estas apresentam amplas variações nos diversos estados
nacionais, que são igualmente justas e razoáveis. Todavia, mesmo diante desta
afirmação, salienta-se que o Direito, mesmo tendo esta permissão de adotar formas
distintas em diferentes Estados, deve seguir os ditames da justiça como eqüidade,
do contrário, seria algo desconectado a idéia principal.
Mas mesmo perante tais interrogações sobre qual seria o posicionamento
rawlsiano acerca do universo jurídico, o sistema da justiça como eqüidade pode sim
apoiar a concepção do Direito que apresenta a forma interpretativa, mesmo sem a
citação explícita em prol da mesma, e que pode ser depreendido do que se segue:

o preceito de que em casos semelhantes se tomem decisões semelhantes


limita, de modo significativo, a discricionariedade dos juízes e de outras
autoridades. O preceito os obriga a justificar as distinções que estabelecem
entre pessoas por referência aos princípios e às normas jurídicas pertinentes.
Em qualquer caso específico, se as leis forem algo complicadas e exigirem
interpretação, pode ser fácil justificar uma decisão arbitrária. Mas, à medida
que aumenta o número de casos, torna-se mais difícil elaborar justificativas
plausíveis para julgamentos tendenciosos. A exigência de coerência vale

558
Apresentar os fundamentos de um conceito de Direito em Rawls, no plano de uma sociedade
nacional.
187

naturalmente para a interpretação de todas as leis e para justificativas em


todos os níveis. Por fim, acaba ficando difícil formular os argumentos
fundamentados para juízos discriminatórios, e a tentativa de fazê-lo torna-se
menos convincente. Esse preceito vale também em casos de eqüidade, isto
é, quando se deve abrir uma exceção porque a norma vigente provoca um
dano inesperado. Mas com a seguinte ressalva: uma vez que não há uma
linha divisória clara que separe esses casos excepcionais, chega-se a um
ponto, como nas questões de interpretação, em que quase todas as
diferenças terão importância. Nesses casos, aplica-se o princípio da
autoridade, e basta o peso da jurisprudência ou do veredicto anunciado
(RAWLS, 2008, p. 294).

Diante desta longa passagem destacada, é adequado lembrar alguns pontos que
merecem destaque para a compreensão do pensamento rawlsiano acerca do
Direito: (a) em um primeiro momento surge a questão da discricionariedade do juiz e
o tema da jurisprudência; (b) merece ênfase também o aspecto da consistência
argumentativa que deve ter o Direito em Rawls; (c) e a importante função que o
Direito congrega, que é a de resguardar os direitos e liberdades básicas dos
cidadãos com coerência sistemática entre princípios e leis.
A primeira asserção, que diz respeito a jurisprudência e estuda seu papel
para a construção de uma teoria do Direito está intimamente ligada ao poder
decisório que um juiz possui (seja em hard case ou não). A jurisprudência acaba se
mostrando como uma limitação àquilo que o juiz pode e deve decidir 559, contudo o
poder decisório do mesmo não é afetado quando este deve interpretar um hard
case, pois nesta situação não há precedentes dogmáticos que o vinculem a algo.
Um juiz positivista vai para o caminho de fazer às vezes de um legislador; um juiz
seguidor do modelo interpretativo constrói a decisão que melhor se harmoniza com o
sistema de justiça como um todo, podendo levar em conta valores que não estão
previstos de forma clara no ordenamento legal, e sim de forma abstrata. A recusa ao
modelo positivista se dá em partes pela razão de que o legislador, lato sensu, deve
ser guiado pela regra da maioria, o que pode fazer com que direitos de
determinados grupos sociais possam ser rompidos, ao passo que um juiz não pode
estabelecer direitos que não preservem todos os cidadãos, se a proposta de justiça
que rege toda a estrutura básica deseja ser equânime. Tudo isso, aliado ao fato de
que o juiz-legislador (positivista) pode se mostrar demasiadamente arbitrário em
suas pretensões legislativas, ao optar por aquilo que ele julga que um parlamentar,

559
Em casos parecidos, deve-se tomar uma decisão semelhante.
188

visando defender o interesse de uma maioria560, poderia escolher no momento de


elaboração de uma lei. Mas note-se que em Rawls a discricionariedade do juiz não
fica prejudicada, pois este a possui no exato limite em que casos semelhantes
devem ser julgados de forma semelhante561 dentro de casos menos complexos, ao
passo que quando as exigências mudam (em hard cases), o poder de análise e de
construção judicial pode se mostrar pleno e de acordo com os princípios basilares de
justiça562 e não somente com o ordenamento legal.
A respeito da prolatada consistência argumentativa que o Direito deve
apresentar, sublinha-se que esta noção deve percorrer todo o sistema de justiça e
de Direito em Rawls. Mas isto não vale somente para o campo da análise lingüística
dos argumentos e normas jurídicas, com o escopo de adquirir uma adequação
formal; tem valor também e, sobretudo, no momento em que o juiz, para declarar o
direito de outrem, deve interpretar um caso à luz dos princípios de justiça mais
elementares. Neste sentido, quando se declara que há uma imperiosidade da
coerência para todas as leis e justificativas possíveis e imagináveis para que se
decrete um direito, visualiza-se claramente a presença do modelo coerentista dentro
do quarto estágio de aplicação dos princípios de justiça, qual seja, aquele em que se
individualizam os mesmos, ou seja, se estabelecem direitos para indivíduos
específico: em última análise, a coerência se faz presente na fundamentação do
Direito. Mas para quais propósitos serve tal coerência?
Ora, o modelo coerentista em todo o seu esforço, serve fundamentalmente
para a proteção dos cidadãos contra toda e qualquer espécie de arbitrariedade, pois
vincula atos decisórios dos juízes em um sistema de justiça que é aceito por todos, e
que não está em defesa de determinados grupos sociais. Isto se sente no exato
momento em que os operadores jurídicos que são responsáveis por decisões
judiciais (prolatam sentenças) têm de (i) interpretar a lei e (ii) ofertar decisão em um
hard case com a maior coerência possível para com o sistema de justiça como um
todo. Neste sentido, o poder judiciário se mostra responsável por resguardar não só
os direitos e liberdades básicas dos cidadãos, mas também por proteger a justiça
como eqüidade quando deve tomar decisões que estejam harmonizadas com os

560
Ou até mesmo de um grupo social, pois é intrínseco à composição do parlamento ter tais
elementos.
561
Oferecendo segurança jurídica para os cidadãos.
562
Fixados previamente em um acordo moral e político profundo, sem a necessidade de que os juízes
encontrem a regra Y para o caso concreto X de forma explícita.
189

princípios de justiça. Tal exigência coerentista acaba excluindo a possibilidade de


que os juízes venham a tomar decisões embasadas em determinadas doutrinas
jurídicas (e de justiça) tidas como particulares (como no caso do positivismo e o
tema do juiz-legislador) ou mesmo abrangentes, e não políticas: o desejo rawlsiano
para com a interpretação que os juízes devem efetivar, é que esta apresente uma
“principled coherence with the whole structure of law” (DWORKIN, 2003-04, p. 1395).
Neste momento surge uma indagação: um positivista pode não ser utilitarista no
campo da filosofia do Direito?
Obviamente que pode, como por exemplo, no caso de um juiz que é adepto a
corrente do positivismo e nos casos em que este necessite utilizar amplamente a
sua discricionariedade563, toma para este caso a teoria que mais traz justiça à luz de
outro entendimento, oposto ao utilitarismo. Diante disto, poder-se-ia indagar com:
por quais motivos as partes não poderiam aderir a este tipo de posicionamento ao
invés de pensar no modelo interpretativo do Direito? Por razões que perpassam a
teoria da justiça como eqüidade no sentido de contrariá-la em seu escopo originário.
O filósofo de Baltimore, ao estabelecer as bases de sua teoria da justiça, buscava
desenvolver uma doutrina a cerca do justo que (1) não caísse no fundacionalismo,
(2) nem no relativismo. Na busca deste meio termo entre uma verdade absoluta e a
falta de verdade564, Rawls fixa sua teoria da justiça, em que esta acaba por
determinar critérios objetivos (mais justos) para que se possam avaliar concepções
morais (de forma indireta) e políticas, representando um avanço na esfera
justificacional, preenchendo uma lacuna crucial para os julgamentos de atitudes
públicas. E neste sentido, o modelo exemplificado acima, em que o juiz positivista
pode escolher a teoria que melhor embasa seu pensamento diante de um caso difícil
(que não seja a utilitarista), pode cair no problema da relatividade justificacional, ou
seja, uma fundamentação relativista.

563
Mesmo que o termo amplamente esteja contido nos limites de algo moderado e marginal, visto que
preferencialmente o juiz deve ser um técnico que somente aplica a lei em virtude de um caso
concreto nesta doutrina, devendo evitar ao máximo seu poder unilateral.
564
Contenda esta derivada das descobertas da lógica e da filosofia analítica do século XX que
estabeleceram a impossibilidade sistêmica de haver verdade no campo da moral e da política,
gerando por sua vez o relativismo, e que por seu turno deu vazão a pensamentos totalitários e
discriminatórios, com resultados catastróficos; para evitar tais conseqüências nocivas, em que a
humanidade tinha pleno conhecimento de que era algo ruim, faltava uma fundamentação filosófica
que pudesse embasar a idéia intuitiva de que atitudes totalitárias e discriminatórias eram realmente
coisas não desejáveis.
190

Isto se dá em virtude de que o juiz, ao poder utilizar qualquer teoria da justiça


que ele julgue mais conveniente para o caso concreto que apresenta difícil solução,
fazendo a função de legislador, acaba fundamentando sua sentença de acordo com
aqueles valores que o mesmo entende como sendo os melhores e mais justos. Mas,
diante do fato de um pluralismo razoável, ou seja, da evidência de que as pessoas
efetivamente discordam sobre os diversos temas em sociedade, não seria mais que
natural os juízes apresentarem divergências quanto ao tipo de modelo de justiça que
justifica suas decisões. Logo, os julgamentos tenderiam a ser parciais e permeados
por concepções pré-estabelecidas pertencentes a doutrinas morais abrangentes
razoáveis, ao passo que a justiça como eqüidade é uma noção política sobre o que
é o justo, o que demonstraria uma incongruência caso as partes optassem por este
modelo (de Direito) de efetivação da justiça. Desta forma, se mostra mais razoável
seguir o modelo interpretativo, pois é ele que aparenta possuir a melhor forma de
salvaguardar direitos e liberdades básicas de todos os cidadãos, sem depender dos
humores daqueles que devem outorgar direitos a outrem.
Os cidadãos tendem a se sentir mais seguros perante si mesmos e diante da
sociedade quando sabem que o julgamento que decide uma demanda que verse
sobre seus direitos não está pautado a partir de qualquer concepção de justiça, tanto
na substancialidade como na sua forma de aplicação: nem mesmo que tal
julgamento seja guiado por uma concepção de justiça estabelecida a partir de uma
doutrina moral abrangente que detenha o poder político, ou seja, que se mostre
dominante no campo público e acabe determinando a verdade moral e política.
Destarte, somente uma concepção política de justiça é a que pode lidar com o fato
de existirem diversas doutrinas morais abrangentes razoáveis, permitindo com que o
Direito seja delimitado através de uma corrente interpretativa que leve em
consideração a concepção política, os princípios de justiça que são construídos a
partir desta visão, os quatro estágios de aplicação da justiça, sem cair em um
relativismo moral e político. O que a determinação de que um juiz positivista possa
vir a escolher qualquer concepção de justiça para fundamentar o Direito traz, é que o
mesmo pode estar livre para não seguir nenhum tipo de coerência principiológica
pertencente a um acordo moral e político mais profundo, redundando em um terreno
que apresenta bases deveras gelatinosas e movediças.
Em contraposição, as partes deveriam optar por uma idéia de Direito que
acabasse respeitando uma harmonia entre as determinações legais e judiciais e o
191

conjunto de princípios de justiça que precedem a confecção daquelas. E nos hard


cases, a recorrência aos princípios de justiça para a fundamentação de uma decisão
se mostra como um modelo que melhor responde aos anseios de uma sociedade
democrática, pois resguarda os direitos e liberdades básicas de todos os agentes
políticos. Como corolário, as partes “might well think that they safeguard themselves
better against arbitrariness or discrimination if they do not instruct judges to do justice
as they see it, but seek to discipline judges by insisting that they do their best to
respect principled consistency as they see it” (DWORKIN, 2003-04, p. 1395-96).
Desta forma, os juízes não podem fixar determinações jurídicas a partir de uma
noção particular acerca do justo, pois a sociedade apresenta um desacordo moral e
político razoável que traz a obrigação de respeito a esfera privada de todos os
cidadãos, o que implica em uma necessária idéia política sobre o Direito, que mostre
coerência com a carga axiológica construída. Disto decorre que os princípios que
ofertam as bases desta noção de Direito são independentes; e sendo estes vistos de
forma autônoma, não há como se pensar em uma teoria do Direito que também não
se mostre independente de qualquer doutrina moral abrangente, o que conduz ao
viés interpretativo do mesmo, que pode ser visto como uma transmutação para um
nível jurídico do papel que exerce o equilíbrio reflexivo na fundamentação ética-
política da justiça como eqüidade.
Mas diante de todas estas perspectivas, há de se fixar necessariamente quais
seriam os grandes limites que uma racionalidade dentro de uma teoria di Direito
deveria apresentar. Para tanto, convém fazer breve lembrança sobre como os juízes
fundamentam suas posições em hard cases565, tendo em vista as duas grandes
correntes até aqui delineadas. O positivismo de viés utilitarista, frente a um caso que
suscite determinada complexidade para sua solução (em que não se encontre uma
resposta precisa na legislação) tende a estabelecer um julgamento que vise
preencher a lacuna da lei, através de uma determinação de fundo: fazer com que o
juiz execute a ação que o legislador realizaria diante de tal problema. Por outro lado,
a corrente interpretativa estabelece que o operador jurídico que deve decidir, possuir
o poder de preencher tal vazio de indeterminação legal com uma fundamentação
distinta da corrente positivista. A doutrina interpretativa “instructs them to seek na
interpretive equilibrium between the legal structure as a whole and the general

565
Que estão presentes em qualquer ordenamento jurídico ocidental, seja de matriz romana ou fruto
da common law.
192

principles that are best understood as justifiying that structure” (DWORKIN, 2003-04,
p. 1396). Salienta-se que mesmo que este método seja típico do direito de marca
common law, há notória semelhança nos momentos de controle de
constitucionalidade, bem como em decisões perante casos controversos que versem
sobre direitos e liberdades básicas, no Brasil. Em outras palavras, mesmo que o
modelo interpretativo se mostre com toda a pujança nos Estados Unidos da
América, nada impede com que esta doutrina venha a ser utilizada 566 em um direito
de herança romana, como é o caso brasileiro.
Mas, diante do que foi exposto, não haveriam limites para os tipos de
princípios e razões que os juízes podem se utilizar no momento de fundamentarem
suas decisões? Ou, mesmo havendo limites, quais seriam as restrições e de que
forma estas se mostrariam no momento da aplicação do Direito? Para o primeiro
questionamento, deve-se levantar a argumentação de que existem sim limites claros
e definidos para o tipo de razões que podem ser levantadas dentro da coerência
exigida para o campo do Direito. Estas encontram suas restrições em duas grandes
esferas argumentativas, ou seja, exposições de motivos que não podem ser levados
em conta para a resolução de contendas jurídicas, o que equivale a dizer que os
juízes não podem: (a¹) justificar a adoção de uma postura utilizando suas opiniões
particulares, ou (a²) fixar uma sentença defendendo interesses particulares; (b¹)
estabelecer uma decisão judicial defendendo interesses de grupos ou (b²)
representando os interesses de grupos. Desta forma, ficam demarcados os limites
pelos quais os juízes não podem perpassar para proferir o direito dos cidadãos em
um caso concreto.
Todo este jogo de exclusão de determinadas concepções pessoais ou de
grupos, está atravessada pela idéia de que há um primado, sólido e ferrenho pelo
qual a justiça como eqüidade está ligada: o fato da mesma ser uma concepção
política. Neste viés política acerca da justiça, o que está anexada a mesma é que
esta não pode apresentar uma justificação que não seja pública, e pela razão de
apresentar esta característica, não pode apresentar motivações privadas (pessoais
ou de grupos). E isto se espalha para os confins do Direito. Assim, surge a seguinte

566
Como já é, de forma indireta, quando os ministros do Supremo Tribunal Federal expõem razões
com princípios por vezes não abarcados de forma direta na constituição, o que leva a crer que
existem princípios de justiça além das meras previsões legais.
193

pergunta567: pode um juiz utilizar convicções religiosas para fundamentar sua


sentença, visto que via de regra, uma doutrina religiosa consegue ofertar uma
verdade única? Obviamente que dentro de um viés que pregue pelo liberalismo
político não, pois a verdade única apregoada por uma religião é aquela que pertence
aos indivíduos que acreditam nesta religião; existem uma ampla variedade de
religiões que apresentam a tolerância como um fator que as une dentro do ideal de
razoabilidade, e cada uma professando um tipo de doutrina que é verdadeira
somente para os seus seguidores; logo, fica excluída a possibilidade de fundamentar
uma noção de Direito pautada nesta esfera, pois este tem um objetivo de ser
destinado a todos indistintamente, pautado por regras políticas (públicas) que não
podem privilegiar ou prejudicar um grupo de cidadãos em virtude de fatores naturais
(raça, por exemplo) ou sociais (status ou religião, por exemplo).
No cerne do liberalismo político, então, em Estados que defendem este tipo
de doutrina filosófica e política, ficam excluídos os juízos de natureza religiosa e
todos aqueles que representem defesas de interesses privados (pessoais ou de
grupos), quando da fundamentação de uma sentença que declare direitos. Todavia,
e em um Estado liberal (não em seu sentido mais amplo), que defende uma dada
concepção religiosa específica, o argumento do apelo às razões religiosas568 poderia
ser utilizado? Mesmo nestes Estados tal concepção se mostra contraproducente,
visto que apesar de existir uma religião dominante, a esfera estatal não impede que
os cidadãos adotem outras concepções religiosas que possam conviver com o ideal
dominante, pois um liberalismo que se preze contém em seu interior, no mínimo, o
fato do pluralismo razoável: este pressupõe a tolerância para com as diversas
doutrinas morais abrangentes razoáveis. Desta forma poderia se afirmar que há,
então, uma ampla e irrestrita limitação à religião como um todo? Ou tal limitação
doutrinária poderia se estender a outras esferas da produção do conhecimento como
as concepções filosóficas: utilizar a doutrina moral de Kant ou de Mill para
fundamentar uma sentença, é algo viável dentro de um liberalismo político? Pode
uma sentença ser fundamentada em relevantes justificações que se pautem por
teorias econômicas que sirvam para dar estabilidade ao sistema financeiro como um
todo? E ainda, seria possível um juiz se utilizar dos escritos de Rawls para embasar
sua decisão judicial? Estaria correta tal comparação, entre uma fundamentação que

567
Que apresenta uma resposta mais que natural, em face das exposições até aqui conduzidas.
568
Que representam a verdade única para seus seguidores.
194

utilize Kant, Mill, doutrinas religiosas e teorias econômicas e a teoria da justiça


rawlsiana?
Em um primeiro momento, à exceção da teoria da justiça como eqüidade,
todas as outras questões que pretendem utilizar doutrinas morais abrangentes
razoáveis se mostram inviáveis (lato sensu) dentro do ideal liberal de justiça, pois
apresentam uma fundamentação última que remete a um ponto de vista único que
defende a verdade moral e política. Como contraponto a tal acepção, tem-se o fato
do pluralismo razoável, que impede o fundacionalismo no campo da política, se é
que se deseja ter um critério de justo que seja efetivamente independente. Neste
ponto, a teoria da justiça como eqüidade não pode ser comparada a quaisquer dos
argumentos citados, pois ela se diferencia exatamente por não ser fundacionalista
ou metafísica, e sim política: em outras palavras, utiliza critérios independentes que
não se pautam por uma idéia acerca do bem para estabelecer o que é a justiça.
Logo, um juiz que utilize a teoria da justiça rawlsiana para decretar quais são os
direitos de um cidadão (em um hard case) se mostra coerente com princípios de
justiça autônomos, que reforçam o ideal liberal de respeito aos direitos e liberdades
básicas de todos os indivíduos, pois sua sentença não estará fundamentada a partir
de uma visão particular, e sim pública.
Anexo a este debate, e a título de ilustração daquilo que a idéia de justiça em
Rawls representa para o Direito (se utilizada), surge a noção de razão pública, que
no quarto estágio de aplicação dos princípios de justiça se presta a “to defining the
kinds of arguments that are permissible for officials in a politically liberal community”
(DWORKIN, 2003-04, p. 1397). Tal noção se mostra com força vinculante para com
os juízes e os argumentos que estes devem utilizar (mormente em hard cases),
dentro de um ideal que advém de um consenso sobreposto (que oferta uma
concepção política independente), não podendo ser confundida como uma doutrina
moral abrangente. Com isso, uma idéia de razão pública pode ser utilizada em
largas medidas pelos operadores jurídicos, pois é aquela que melhor pode atender à
necessidade liberal basilar: um igual respeito a todos os cidadãos. Apesar disto, é
adequado mencionar que o tipo de doutrina que a razão pública apresenta acaba
necessitando de dois grandes pilares de sustentação. Um primeiro deriva do ideal de
reciprocidade que deve estar presente em seu âmago, pois o tipo de fundamentação
do Direito que utilize esta forma de razão “permits only those justifications that all
reasonable members of the political community can reasonably accept” (DWORKIN,
195

2003-04, p. 1397). Desta forma, reciprocidade implica em aceitação de critérios


justos de forma unânime, o que remete, como analogia, as restrições das
formulações dos princípios de justiça fixado pelas partes na posição original sob o
véu da ignorância, que devem ser aceitos de maneira universal (por todos e para
todos).
Uma derivação desta noção de reciprocidade, e que serve como sustentação
da razão pública, é a idéia tradicional do liberalismo político de que os juízes só
podem oferecer razões (em suas sentenças que decretam direitos) que se
fundamentem em valores tidos como públicos (políticos), não fruto de uma doutrina
moral abrangente razoável ou de um acordo entre tais doutrinas, o que faria com
que a exposição de motivos se um juiz derivasse de um mero modus vivendi. As
complicações deste acordo superficial na elaboração de uma teoria da justiça já
foram suficientemente tratadas, e os reflexos sentidos no campo do Direito poderiam
ser vistos na seguinte formulação: o mesmo, (i) se fosse partícipe de um modus
vivendi, seria tão parcial quanto qualquer outra doutrina moral abrangente, ao
mesmo tempo em que (ii) seria muito frágil ao ponto de estar dependente do tipo de
composição do poder político vigente (se uma dada doutrina moral tomasse conta do
mesmo, muito provavelmente os julgamentos e a forma de estabelecer o Direito
seriam postos a serviço desta noção, o que derrubaria o acordo inicial).
Como uma derivação destas demonstrações, pode-se assinalar que o Direito
deve seguir os moldes que abarquem uma teoria que “requires judges searching for
a justification of the law‟s structure to avoid controversial religious, moral, or
philosophical doctrines” (DWORKIN, 2003-04, p. 1397), que pode ser representada
pela justiça como eqüidade. Mas frente a isto, haveriam dois problemas de fundo, e
que podem ser identificados como duas hipóteses investigativas: uma primeira
representada pelas controvérsias sobre os juízos morais, e a segunda relativa a uma
diferenciação sobre valores políticos e juízos morais que são pertencentes a
doutrinas morais abrangentes. Sobre o primeiro tópico e sua interligação com o
requerimento de reciprocidade, poderia haver um problema inconcluso na teoria
rawlsiana: havendo divergência entre os cidadãos acerca de determinado juízo de
valor569, mas que por um dado momento se assume que tal juízo de valor possa ser
o mais correto para determinada questão, como se poderia pensar que alguém não

569
Ou mesmo o juízo de valor que deva ser utilizado na fundamentação do Direito.
196

pode razoavelmente aceitá-lo, mesmo que aquele juízo compartilhe ou não com o a
doutrina que o indivíduo toma para si como verdadeira? Em suma, pode-se aventar
que há um determinado juízo moral controverso mas que é tido como justo: poderia
se imaginar que as outras pessoas não poderiam aceitá-lo? Em outras palavras e a
título de exemplificação ainda mais detalhada: o dito juízo moral ou político
controverso, exatamente por carregar esta característica peculiar, é fruto (1) ou de
uma doutrina moral abrangente ou (2) de um acordo entre diversas doutrinas morais
abrangentes570; mas o que impede que este juízo, mesmo que não seja
independente (político) ou que apresente a menor possibilidade de ser alvo de um
acordo moral e profundo, venha a ser aceito razoavelmente para que sirva de
fundamento para uma dada questão complexa (hard case, por exemplo)?
Para enfrentar tal aparato crítico, Rawls quer estabelecer um caminho em que
os “judges should not appeal to ideas that some reasonable citizens could not accept
without abandoning their convictions of a certain sort – their X convictions”
(DWORKIN, 2003-04, p. 1397). Isto vem de encontro a noção de que são os valores
políticos que devem fundamentar uma concepção política de justiça, ao mesmo
tempo em que são tais valores que ajudam a construção do Direito: esta é a melhor
forma de proteger todos os direitos e liberdades básicas (nos mais diversos graus)
de todos os cidadãos, sem correr o perigo de que o Direito caia em um meio de
execução da justiça a serviço de uma dada doutrina moral abrangente, ou submetido
ao tipo de doutrina política que tome conta do poder político de um Estado. O tema
da religião acaba sendo aquele que oferece uma argumentação mais palatável para
a compreensão do problema, diante da configuração estatal liberal. Por exemplo,
pode-se pensar que um cidadão possua uma crença determinada, pautada por
valores que são oriundos da revelação de escritos tidos como sagrados ou algo do
gênero; diante destas afirmações, e aceitando a realidade do fato do pluralismo
razoável, é muito complicado ter um pensamento que determine que pessoas
razoáveis acabarão aceitando razoavelmente a crença que aquele cidadão profere
571
.
Salienta-se que este ponto crítico é concluído e mostrado de forma evidente
em virtude de que “Rawls offers no reason to think that the test of reciprocity

570
Em anexo ao fato do pluralismo razoável, ocorre que outras pessoas preferem outros juízos
morais ou políticos, o que gera inconsistência valorativa e um compulsório desacordo.
571
Só conseguiria angariar adeptos, caso estes não se aproximassem de sua religião por livre
convicção a partir de outro fato, o fato da opressão.
197

excludes any reasonable convictions beyond religious convictions” (DWORKIN,


2003-04, p. 1398). Todavia, crê-se que tal afirmação se mostra equivocada, em
razão de não contemplar a totalidade do pensamento rawlsiano. Ora, tendo em vista
que ao desenvolver um ideal de consenso sobreposto que se mostra em oposição a
um modus vivendi, o filósofo de Baltimore fixou como um modelo exemplar o tema
da Reforma religiosa: em razão das diversas lutas entre católicos e protestantes,
chegou-se a noção de que para evitar uma interminável batalha, deveria se
estabelecer um acordo em que ambas as doutrinas teriam de se tolerar; contudo, tal
acordo não se mostrou profundo o suficiente, pois bastava uma destas religiões
assumir o poder político para que se desencadeassem outras guerras: a justiça
estava sujeita aos humores dos governantes políticos. Com isso, Rawls resolve
estabelecer um tipo de acordo que contenha valores independentes daquelas
doutrinas religiosas abrangentes572, que seja envolvido por valores políticos plenos,
e que ele denomina de consenso sobreposto.
E este, por seu turno está envolto de uma idéia de razão pública. Mas a
pergunta é: quando o filósofo norte-americano utiliza o exemplo da religião, este tem
o poder vinculante de que se deve pensar em um acordo somente neste nível, ou se
pode estender a qualidade de religião para qualquer doutrina moral abrangente
(como a de Kant, por exemplo)? Ora o sistema rawlsiano de justiça não pode ser
visto como uma estrutura que é pautada com exclusividade para oferecer razões
que excluam do domínio de justificação pública, aquelas que se aproximem de
doutrinas religiosas. Pensar em uma concepção política de justiça implica que não
se podem imaginar princípios de justiça que estejam vinculados a quaisquer tipos de
doutrinas morais abrangentes, sejam elas religiosas, filosóficas ou científicas. Mas
isto não traria uma contradição em termos? Pois a justiça como eqüidade de Rawls
é uma teoria filosófica, o que pode mostrar incongruência com o que foi afirmado.
Nisto o filósofo de Baltimore é diferenciado de boa parte da história da
filosofia, pois o mesmo ao defender que preceitos de valor pertencentes a doutrinas
morais abrangentes filosóficas não sejam incorporados no discurso político, quer
asseverar que aquelas doutrinas filosóficas que possuem o intuito de verdade (no
cunho tradicional, metafísico) são as que devem ser apartadas da fundamentação

572
Pois um acordo entre valores morais decorrentes de doutrinas morais abrangentes é algo que se
mostra tão parcial – ou pelo menos aparentando ter uma força semelhante – quanto o domínio de
uma única doutrina moral abrangente.
198

de uma teoria sobre o justo. E como a justiça como eqüidade é política, não
metafísica, a mesma pode servir de base estrutural para fundamentar valores
políticos, e estes, por seu turno, serem aplicados no desenvolvimento interpretativo
do Direito. Com isso, quando se argumenta que a reciprocidade é aquela exigência
que permite que uma dada justificação possa ser utilizada tão-somente se todos os
membros razoáveis de uma sociedade possam vir a aceitar os seus termos, significa
que a dita justificação está vinculada a fundamentação política da justiça (critério
independente) ao mesmo tempo em que se excluem valores adstritos para com
doutrinas morais abrangentes pois não servem para alguns – ou vários – cidadãos.
A segunda hipótese investigativa crítica na qual o pensamento de Rawls pode
ser vislumbrado (sobre o método de que os juízes, em sua fundamentação, devem
evitar doutrinas abrangentes), trata do tema da distinção entre valores políticos e
convicções morais abrangentes. Neste sentido, por vezes parece que há uma
confusão entre valores políticos e aqueles que pertencem a doutrinas morais
abrangentes, ao mesmo tempo em que o pensamento do filósofo norte-americano
se mostra muito dependente, para fundamentar sua justiça como eqüidade, de
controvérsias morais elementares. Um exemplo pode ser aduzido a este respeito,
quando da construção do princípio da diferença: o mesmo é feito no seio de um
equilíbrio reflexivo, sendo apresentado com base em suposições que se pautam por
uma irrelevância moral para com o esforço e para com a responsabilidade dos
agentes políticos, em que “if the arrangement that best maximizes the position of the
worst-off group turns out to reward slackers, that is no objetcion” (DWORKIN, 2003-
04, p. 1398). A defesa desta posição pode ser contrabalançada pelo entendimento
de que a responsabilidade pessoal e o esforço devem ser as bases essenciais para
que se pense em uma teoria (re)distributiva, nos seguintes moldes: auxilia-se
aqueles cidadãos que efetivamente buscam melhorar sua própria qualidade de vida
e a da sociedade, e não se deve ajudar aqueles indivíduos que preferem fazer do
lazer sua vontade última. Para esta definição, entram em jogo conceitos de
psicologia e de moralidade que não estão presentes nos valores políticos
previamente pensados pelo filósofo de Baltimore (se foram imaginados, somente de
forma indireta): se imaginam que os cidadãos podem vir a beneficiar (sendo de seu
interesse social) aqueles outros cidadãos em condições menos favoráveis,
unicamente se estes demonstram esforço e responsabilidade sobre seus atos
(psicologia moral); ao passo que valorizar isto, significa colocar tais pressupostos
199

como valores políticos. Vale lembrar ainda que poder-se-ia pensar em um tipo de
concepção política que repudiasse a (re)distribuição, como o libertarismo de Nozick.
Mesmo que tais definições críticas possam ser tomadas como algo correto 573,
restaria uma contra-argumentação574: qual grau de esforço, em cada ação humana,
merece ser agraciado com uma (re)distribuição de renda e riqueza? Esta pergunta
poderia fazer com que a definição crítica perdesse a objetividade almejada, tornando
sua finalidade impossível de ser delimitada em razão da ampla gama de
possibilidades e de juízos que podem ser emitidos acerca de um determinado
esforço (pode-se declarar que um cidadão se esforçou muito (T) em dada ação ao
ponto de merecer recompensa, ao mesmo tempo em que se tem a possibilidade de
dizer que tal esforço T não é suficiente por não preencher determinados requisitos –
sendo que estes podem variar razoavelmente de cidadão para cidadão).
Estabelecida esta ressalva, pergunta-se: efetivamente, haveria confusão entre uma
definição de valores políticos (aqui representado pelo princípio da diferença) e
valores morais abrangentes? Estes últimos estariam imersos no íntimo construtivista
dos valores políticos, ou estes podem se mostrar plenamente independentes?
Pode-se afirmar que totalmente independentes os mesmos não podem ser
vistos, pois são construídos a partir de uma história democrática ocidental, que
carrega valores sociais. Contudo, ele pode sim ser independente na medida em que
não usa nenhuma das concepções morais e políticas abrangentes para estabelecer
seus paradigmas centrais: princípios de justiça. Neste sentido, mesmo que para
Rawls seja fundamental a contraposição entre valores morais fundamentais575, estes
não participam diretamente no embate de determinação se um valor político é bom,
justo, razoável ou não: o que interessa neste ponto é se ele pode se manter firme,
independente da doutrina moral abrangente razoável que apresente o poder político
ou mesmo um juiz de Direito, aliado a necessidade de ser algo que respeite todos os
indivíduos. Neste ponto, quando há uma contenda moral, conforme fixado por
Dworkin (2003-04, p. 1398) sobre um dado valor político construído (princípio da
diferença), que ponha em risco sua legitimidade e eficácia, na verdade o que está
sendo trazido à tona são alguns juízos de valor parciais que visam a defesa de
interesses de grupos sociais que tomam seus valores como verdadeiros. Isso é algo

573
O que demonstra uma falha no sistema rawlsiano de diferenciação entre valores políticos e juízos
pertencentes a doutrinas morais abrangentes.
574
Caso se aceite que a assertiva crítica tem pujança.
575
Pois a sociedade apresenta o fato do pluralismo razoável.
200

repudiado por Rawls tanto em sua teoria da justiça quanto nos argumentos que
podem ser utilizados quando da fundamentação de uma sentença que decrete
direitos. Os detentores daqueles juízos não conseguiram visualizar que ao fazer isto,
estão sendo intolerantes (em algum grau) para com outrem, e conseqüentemente
não atingem o objetivo da justiça, que é estabelecer um critério do que seja o justo
para todos.
Sobre estas últimas declarações, pode-se ainda indagar: mas a teoria da
justiça como eqüidade não pode ser classificada desta mesma forma ao propor o
seu ideal? Ou seja, ao defender suas matrizes construtivistas não estaria ela
excluindo outras noções sobre o que é o justo, se aproximando de uma doutrina
moral abrangente? O princípio da diferença não se mostra com estas feições
tratadas acima? Para todos estes questionamentos a resposta se mostra negativa
em virtude de diversos fatores. Entre eles: (i) a teoria da justiça como eqüidade é
política, não metafísica; (ii) logo, uma teoria do Direito que se enquadre neste
sistema há de necessariamente também ser política em sua argumentação; (iii) o
tipo de fundamentação utilizada, portanto (na justiça e no Direito), deve respeitar os
limites políticos impostos por um consenso sobreposto e por uma razão pública, pois
estes são os que melhor salvaguardam os interesses de todos os indivíduos,
independentemente de suas condições sociais e naturais576. Mas assegurando que
estas proposições estão corretas, disto se depreende seria impossível imaginar a
sociedade revisando os princípios de justiça previamente estabelecidos?
Obviamente que é permitida tal ação, com a ressalva de que não se pode utilizar os
juízos morais derivados de doutrinas morais abrangentes, mas sim juízos políticos
com o escopo de garantira independência da teoria da justiça.
Adentrando tal problemática no tema da razão pública, seria adequado trazer
o tema do aborto em que pese se este um hard case para qualquer sociedade
democrática ocidental. Mesmo que a discussão em Rawls se dê de forma sucinta577,
pode-se declarar que ele “assumes that the question whether na early fetus hás
rights and interests of it‟s own, including a right to life, is a question for a
comprehensive moral or religious or phiolosophical position and is not settled by any

576
Não apresentam a parcialidade na defesa dos interesses, como as doutrinas morais abrangentes
fazem, o que vicia a justificação de uma decisão.
577
Perante o arcabouço conceitual que é delineado para com os mecanismos de justificação e em
face dos princípios de justiça abstratos, temas do Direito apresentam um percentual ínfimo na
produção intelectual rawlsiana.
201

political value of a liberal community” (DWOKIN, 2003-04, p. 1398). Com esta


afirmação, parece que o pensamento rawlsiano entra em uma encruzilhada, pois no
momento em que se adota um posicionamento acaba-se sendo fundacionalista (a
partir da passagem exposta); ao passo que não tomar nenhum posicionamento
acerca de hard cases não conduz a lugar algum, ainda mais no Direito que se exige
decisões concretas para casos reais, não podendo existir certa omissão em virtude
da própria função ontológica do mesmo578. Mas então, há possibilidade de se decidir
sobre o aborto, por exemplo, sem apelar para as doutrinas morais abrangentes?
Para tal questão convém lembrar que no momento em que se diz que um feto
possui ou não possui um direito imanente de vida acaba sendo uma questão que
deriva fundamentalmente de uma determinada doutrina moral abrangente, pois
afirma um valor que prepondera sobre os demais579. O que se pode depreender
disto é que não há a menor possibilidade de se chegar a uma decisão a respeito de
qualquer assunto, sem partir de um determinado ponto de vista. Com isso, para vir a
aceitar o aborto, uma decisão judicial haveria de desconsiderar o feto como uma
pessoa, pois as restrições constitucionais580 dizem que todas as pessoas têm o
direito a vida. Como contraponto ao que foi afirmado, poderia ser defendido também
que pode haver certo direito moral ao aborto, mesmo existindo a valoração de que o
feto é pessoa, em virtude de que não haveria responsabilidade moral para com a
mulher sobre sua gravidez (e o fato de ter de cuidar do feto). Mesmo com estas
considerações, se mostra muito dificultosa a defesa do aborto nas bases
constitucionais, pois se considera-se o feto como pessoa, a mãe apresenta sólidas
responsabilidades para com este sujeito.
Dworkin crê ser muito difícil a satisfação destas necessidades decisórias, em
Rawls, através da idéia de uma razão pública, em virtude desta apresentar muita
incerteza e forte imprecisão581 no que tange à concepção de legalidade e de
adjudicação: isto sugere que se adote a corrente do interpretivismo para solucionar
as contendas jurídicas mais difíceis. Esta, não necessariamente necessitaria de uma

578
Que é decidir, e que foi muito bem lembrada no quarto estágio de aplicação dos princípios de
justiça.
579
Em contrapartida a teoria da justiça como eqüidade somente afirma valores que não partem de
pressupostos pré-fixados como fazem os defensores da vida, mas sim construídos de forma racional
e válido para todos os cidadãos – a vida, para Rawls, acaba aparecendo como uma mera condição
de possibilidade para a concretização dos outros princípios de justiça.
580
Tanto nos Estados Unidos da América quanto no Brasil.
581
Isto se dá pelo fato do autor não desejar uma verdade moral ou política, não sendo assim
fundacionalista.
202

conceituação acerca da razão pública para que se obtenha uma decisão justa sobre
um tema complexo: “judges may not appeal to religious convictions or goals in liberal
societies because such convictions cannot figure in na overall comprehensive
justification of the legal structure of a liberal and tolerant pluralistic community”
(DWORKIN, 2003-04, p. 1399). Mas isto não exclui a existência da razão pública
como base legitimadora da decisão, mesmo que esta não participe diretamente na
mesma.
Assim, fica claro que os juízes não podem se utilizar (no quarto estágio de
aplicação dos princípios de justiça) de razões presentes nas doutrinas morais
abrangentes pois elas não servem em hipótese alguma para uma justificação política
e independente de justiça (nem razão pública nem o consenso sobreposto
aceitariam a derivação de seus pressupostos a partir de uma doutrina moral
abrangente). Neste sentido, os juízes podem “appeal to Rawls‟s theory of justice as
a ground for rejecting a utilitarian interpretation of past decisions and doctrines in
favor of na interpretation more firmly grouded in a conception of equality”
(DWORKIN, 2003-04, p. 1399): isto se justifica pelo fato da justiça como eqüidade
ser claramente independente. Um último ponto de possível dificuldade para com a
adoção integral da razão pública como noção de fundamentação de decisões
judiciais poderia residir no aspecto em que Rawls exclui do operador jurídico que
decide uma contenda jurídica a possibilidade da utilização de um ponto de vista
moral em sua decisão. Ora, se isto afasta a possibilidade de que um juiz se utilize de
decisões passadas (jurisprudência) porque esta apresenta a melhor solução para
fundamentar a sua decisão sobre um hard case, o pensamento rawlsiano se mostra
plenamente correto (DWORKIN, 2003-04, p. 1399). Contudo, se um juiz não pode vir
a expor uma questão moral controvertida através de seu ato decisório, pela simples
razão de que ele acaba citando opiniões morais suas a respeito de um tema, Rawls
aparentemente se mostraria equivocado (DWORKIN, 2003-04, p. 1399). O motivo
para o erro dentro deste possível entendimento rawlsiano acerca da função do juiz é
que nenhuma concepção do Direito se pauta por uma falta de discricionaridade do
juiz para com a decisão de uma sentença, pois os mesmos não podem cumprir sua
função sem depender de algum grau de controvérsia moral e política: os próprios
temas sobre os quais os juízes têm de decidir o direito de uma pessoa versam sobre
questões controversas; seria demasiadamente insensato pensar que os operadores
de tais contendas não podem se utilizar das controvérsias em suas sentenças.
203

Salienta-se que este tema não foi abordado de forma clara por Rawls, o que traz a
implicação que tais noções se mostram como um exercício hipotético de construção
argumentativa, pois faltam elementos para que se façam afirmações peremptórias.
Para finalizar, resta um grande questionamento que pode ser respondido de
forma breve, mesmo que esteja resguardada a sua complexidade: poderia o Direito
interpretativo se mostrar fundacionalista582? Visto que o quarto estágio de aplicação
dos princípios de justiça presume a não existência do véu da ignorância, com o
escopo de que os princípios abstratos ganhem materialidade na esfera individual
dos agentes políticos. Em não se tendo restrições, a vertente interpretativa se
assemelharia a uma doutrina moral abrangente? Acredita-se que não, pois mesmo
que o quarto estágio de aplicação dos princípios de justiça se mostre sem as
restrições impostas as etapas anteriores, este é fruto de tais limitações: o estágio
judicial só é possível em face dos amplos limites estabelecidos nos momentos
anteriores. Dito de outra forma, o modelo do quarto estágio guarda íntima relação
com a justiça como eqüidade, visto ser derivado desta. Não seria pelo simples fato
de não apresentar mais a limitação formal do véu da ignorância que esta etapa
perderia sua essencialidade vinculativa com a justiça como eqüidade. O mesmo se
pode dizer do modelo de Direito que pode ser conferido para Rawls (o
interpretivismo), pois este é um mero executor das determinações abstratas
construídas racionalmente pelas partes em todos os estágios de aplicação, não
podendo assim ser comparado a uma doutrina moral abrangente razoável. O modelo
interpretativo, desta forma, é independente o suficiente para desenvolver seus
procedimentos e suas tomadas de decisões pois o próprio nome deste padrão
carrega consigo a noção autonomia decisória (interpretação). Mas não se pode
olvidar que esta independência está firmemente conectada com uma concepção
ideal de pessoa e de sociedade que foi largamente desenvolvida no plano da
abstração teórica, o que garante a legitimidade e a harmonia desta concepção de
Direito com a justiça como eqüidade, podendo ser imputado hipoteticamente, em
virtude de Rawls não ser explícito neste tema, ao filósofo político em tela 583.

582
No momento em que um juiz o adota como a teoria que embasa suas decisões,
metodologicamente falando.
583
Mesmo tendo noção das teorias que afirmam que o ideal de razão pública poderia conduzir a
revisão judicial a um movimento de abstenção para com questões complexas, deixando a cargo dos
legisladores esta tarefa em virtude de que estes estariam muito mais imersos na cultura pública do
que os juízes. Pode-se vislumbrar o ensejo de tal posicionamento no próprio Rawls em O liberalismo
político (Conferência VI, §6).
5 Conclusões

O tema envolvendo a presença do Direito no pensamento de Rawls é algo


novo e inexplorado. Talvez em parte pelo fato do referido autor não ter mencionado
de forma explícita suas intenções sobre o assunto que é alvo desta dissertação. Isto
é comprovado pela parca bibliografia específica disponível, aliado ao fato de que a
maior parte dela se predispõe a questões anexas (mas não diretas) no que tange ao
Direito: artigos acerca da redistribuição, do constitucionalismo, etc.
Mas mesmo diante destas dificuldades inerentes a proposta trabalhada,
acredita-se que os intentos previamente delineados foram solucionados. Não que o
posicionamento tomado é o definitivo e verdadeiro, contudo se apresenta como o
mais sólido e mais correto para o corpo sistêmico da justiça como eqüidade pelas
razões amplamente abordadas. Assim, perante um terreno que aparentemente se
mostrava infrutífero em face da indeterminação clara do autor de Uma teoria da
justiça, fez-se uma colheita que se não é digna de bons frutos, pelo menos
apresenta sementes que possam vir a germinar.
Assim, no que tange a pergunta inicial a respeito do tema do Direito em
Rawls, se o mesmo se mostra formal ou moral, pode-se afirmar que a doutrina
jurídica deste filósofo político não se mostra nem de uma maneira nem de outra: o
mesmo participa tanto do formalismo quanto da materialidade. Ao dizer que o
mesmo apresenta uma raiz formal, quer-se afirmar que teoria do Direito em Rawls
depende de um procedimentalismo e de mecanismos de justificação que acabam
determinando uma ligação firme com o construtivismo político. Todavia, ao declarar
que o Direito também apresenta uma diagramação moral com isso não se quer dizer
que o mesmo seja pertencente a uma doutrina moral abrangente razoável, ou que
busque uma moralização da sociedade através de suas determinações741.
Isto posto, fica claro que o Direito em Rawls acaba se mostrando como um
procedimento (formal) que visa aplicar a justiça (substância) no caso concreto.

741
Neste ponto a filosofia do Direito em Rawls se mostra muito próxima a doutrina do Direito em Kant
que não foi utilizada pelas seguintes razões: (i) a mesma apresenta seríssimas controvérsias
argumentativas, o que poderia fazer com que a pesquisa pudesse perder o seu rumo central para
resolver estas disputas; (ii) o próprio tema do Direito em Rawls é insuficiente para ser cotejado de
forma clara e ampla com outros sistemas jurídicos, a não ser de forma indireta e esparsa.
205

Lembrando que para a construção dos princípios de justiça há a necessidade dos


juízos morais ponderados, que nada mais são do que significantes de moralidade
presentes no equilíbrio reflexivo. Neste ponto o Direito, ao utilizar princípios
abstratos em vistas de sua efetivação, participa indiretamente da moralidade.
Colocados nestes temos, a pergunta que avalia a dependência ou
autonomia do Direito para com a moralidade também se aclara: o mesmo é
interdependente com relação ao campo da moral, do contrário seria um simples
instrumento vazio. E ficou evidente que Rawls não se mostra um formalista vazio, o
que conduziria a uma incongruência caso fosse imaginado o Direito nestes termos.
Uma questão ainda mais central para esta dissertação foi a de determinar
a escolha entre o positivismo e a corrente denominada de interpretativa. Este tema
poderia suscitar algum tipo de dúvida, pois ao ser declarado que o Direito em Rawls
se mostra independente (autônomo) em sua fundamentação para dar conta de uma
concepção política e não fica a serviço de uma determinada doutrina moral
abrangente razoável, poderia se pensar uma aproximação com o positivismo, em
face da apregoada ausência de valor (no campo do Direito) que esta corrente prega.
Contudo, nem o Direito em Rawls se mostra neutro de efeitos (mas sim de
objetivos), nem mesmo possui um ideal de verdade (algo inerente ao positivismo).
Disto decorre que o positivismo e Rawls não se mostram muito afeiçoados
para uma sólida harmonização. Com isso, tem-se que a corrente interpretativa se
apresenta como a mais apta para dar conta das necessidades da justiça como
eqüidade, que busca um coerentismo moral e político: somente ao se ter a
possibilidade de interpretar um sistema de justiça aberto mas restringindo por
concepções morais e políticas (fruto de uma construção racional ou de certo
intuicionismo mitigado) é que se pode pensar em um Direito capaz de efetivar a
abstração da teoria da justiça rawlsiana.
Com relação ao último questionamento, que toma como ponto de partida a
possibilidade de que o Direito em Rawls possa se mostrar como uma doutrina moral
abrangente razoável em face da inexistência de um véu da ignorância que restrinja
as visões dos agentes aplicadores da justiça, pode-se afirmar que isto não ocorre,
visto que o Direito é dependente de toda construção ideal arquitetada nos estágios
anteriores. Se esta elaboração funciona de forma eficaz, o Direito será pertencente
também a uma concepção política de justiça, sendo independente.
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