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DESIGN E ARTESANATO:

FRAGILIDADES DE UMA APROXIMAÇÃO


Design and Handicraft:
Fragilities of an Approach
v.3, n.2, jul./ dez. 2012
Diseño y Artesanía:
ISSN: 1982-5447
Debilidades de una Aproximación
www.cgs.ufba.br
Revista do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento
e Gestão Social - CIAGS & Rede de Pesquisadores em
Gestão Social - RGS
Maíra Fontenele Santana (SEBRAE)*

*Graduada em Desenho Industrial com habilitação em Projeto de


Produto e Programação Visual pela Universidade de Brasília (UnB).
Especialista em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade
Federal do Tocantins (UFT). Trabalha no SEBRAE Nacional na car-
teira de artesanato. Tem experiência na área de incubação de em-
preendimentos econômicos solidários, com ênfase em artesanato e
atua na coordenação de projetos voltados para o setor artesanal.
Endereço: QNA 39 bloco A Ed. Debea apt 302. Brasília/DF.
Email: mairafs05@gmail.com

Resumo históricos dessa relação; bem como promover


reflexão no sentido de encontrar caminhos de
O campo do design, desde seu surgimento, uma relação colaborativa e harmoniosa.
negou a existência do artesanato e evitou qualquer
contato possível entre os dois. Porém, a partir da Palavras-chave
década de 1980, o Brasil inicia uma aproximação
que quebra paradigmas de conceito e da história Artesanato. Design. Identidade.
de ambos. O artesanato passou a fazer parte
de discussões no âmbito do poder público,
privado e da academia. O avanço para ambos foi Abstract
extraordinário, mas os resultados dessa iniciativa
Since its emergence, the design denied
nem sempre são positivos. A história desse
the existence of the handicraft and avoided
distanciamento ainda apresenta resquícios nos
any possible contact between the two of them.
dias de hoje. Este artigo pretende: discorrer sobre
However, since the 80’s, Brazil has started
essa história de distanciamento e aproximação,
to approximate these subjects, leading to a
expondo os caminhos seguidos durante essa
paradigm shift in the concepts and history of
trajetória e os conceitos estabelecidos para definir
both. Thus, the handcraft became part of several
design e artesanato; apresentar dois exemplos de
discussions in the public and private sector,
intervenções de designers em empreendimentos
as well as the academy. The progress of both
de artesanato, relacionando os pontos de tensão
areas was outstanding, though, the results of
caracterizados por benefícios unilaterais e,
this initiative are not always positive; the legacy
algumas vezes, verticais que espelham problemas

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of this gap still remains nowadays. This article Introdução


intends to expatiate on this history of detachment
and approach, showing the paths taken along
Desde seu surgimento, na Revolução
the way, and also presenting two examples of Industrial, o campo do design traçou seu caminho
designer’s interventions in handicraft ventures, distante do artesanato e foi ator na separação do
connecting the strain points featured by unilateral trabalho intelectual para o trabalho mecânico. A
benefits and even vertical that mirrors historical história das origens do design no Brasil, também,
problems of this relationship; and promoting the segue similar trajeto de distanciamento e, em
reflection to find new ways to a collaborative and alguns momentos, até de negação. A aproximação
harmonious relationship. começou na década de 1980 e partiu dos próprios
designers. Até então, o artesanato no Brasil vivia
Keywords da própria sorte e, somente na década de 1990,
surgem as primeiras instituições de apoio ao
Handicraft. Design. Identity artesanato, que ratificaram a reaproximação.
O artesanato seguiu sendo estudado
por técnicos, acadêmicos e por representantes
Resumen dos poderes público e privado. As instituições
apoiadoras promoveram discussões com
El diseño, desde su creación, ha negado gestores de programas de artesanato, técnicos
la existencia de la artesanía y evitado cualquier e estudiosos do assunto para organizar e
posibilidad de contacto entre los dos, pero desde classificar o artesanato brasileiro. Esses conceitos
la década de 1980 Brasil comenzó un enfoque balizaram as ações dos gestores e devem servir
que rompe los paradigmas del concepto y la como orientação para elaboração de políticas
historia de ambos. La artesanía pasó a formar públicas e políticas de acesso a mercado. Dentre
parte de las discusiones del gobierno, del os conceitos, está o artesanato de referência
sector privado y de la academia. El avance para cultural, que define o artesanato como aquele
ambos fue extraordinario, pero los resultados que sofre alguma intervenção de designers, o
de esta iniciativa no siempre son positivos, la que legitima a aproximação. O Brasil já possui
historia de este distanciamiento todavía muestra vários casos e resultados que conseguiram mudar
restos de esta distancia hoy. En este artículo se a realidade de artesãos e designers. No entanto,
propone discutir la historia de distanciamiento y ainda há interações com benefícios unilaterais,
aproximación, exponiendo los caminos seguidos principalmente para o designer ou para o
durante la trayectoria y los conceptos establecidos mercado, que espelha problemas históricos da
para definir el diseño y la artesanía; presenta relação entre os dois campos.
también dos ejemplos de intervenciones de Os motivos do insucesso são comuns, mas
diseñadores en emprendimientos de artesanía en fáceis de serem percebidos apenas por quem
relación con puntos de tensión caracterizados por acompanha o desenvolvimento do artesanato. Há
beneficios unilaterales y algunas veces verticales projetos de visibilidade nacional ou internacional
que espejan problemas históricos de esta relación; com conflitos nos resultados, que não ficam
y promueve reflexión para encontrar caminos de aparentes apenas na apresentação do produto
una relación colaborativa y harmoniosa. artesanal. Dessa forma, serão abordados, aqui, dois
casos de interação entre designer e artesão que
Palabras clave
não tiveram bons resultados, pelo menos no que
se espera para o desenvolvimento do artesanato e
Artesanía. Diseño. Identidad
do artesão. Esses pontos de conflito ou de tensão,

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que surgem no momento pós-interação, serão importa com os objetos e não com a discussão
apresentados para abrir possibilidade de reflexão sobre design, ou o que questiona a sua
e, assim, encontrar alguns caminhos que acenem participação nos processos de planejamento
para o desenvolvimento de uma metodologia ou de design. Segundo, é a visão do fabricante
mais adequada para essa aproximação entre industrial para produção em série, em que o
designers e artesãos. design é o emprego de meios estéticos para
atrair os clientes. Terceiro, é a critica marxista que
coloca o design como uma droga milagrosa que
1. O que é design? encobre o baixo valor utilitário da mercadoria a
fim de aumentar as vendas, ou seja, o seu valor
Design é um termo, frequentemente, de troca. E, por último, a visão do designer que se
utilizado de forma indiscriminada. Ele é associado, coloca como “solucionador” dos problemas dos
principalmente, à forma e à inovação, sobretudo usuários e fabricantes.
quando se pretende relacionar uma forma Em 2007, o designer Philippe Starck, em
diferente – ‘Olha o design desse produto!’ – ou uma palestra intitulada Por que design? (Why
quando se quer fazer ligação às tendências ou à Design?), abordou os diferentes conceitos e, de
imagem pessoal – ‘design de sobrancelha’, ‘hair maneira pouco acadêmica, categorizou três tipos
design’. Essas utilizações do termo abordam a de designer:
perspectiva estética que é apenas um aspecto de
seu conceito. Um deles, podemos chamar de “Design
O International Council of Societies of Cínico”, que é o design inventado por
Industrial Design – ICSID, conselho internacional Raymond Loewy nos anos 50, que
diz, o que é feio é uma venda ruim, La
que protege e promove os interesses do Laideur se vend mal, o que é terrível.
profissional de Desenho Industrial, define design Quer dizer que o design deveria ser
como apenas uma arma para marketing, para
uma atividade criativa cuja finalidade é o fabricante fazer produtos mais sexy,
estabelecer as qualidades multifacetadas e, assim, vender mais, isso é besteira,
de objetos, processos, serviços e seus é obsoleto, é ridículo. Eu chamo isso de
sistemas em ciclos de vida inteiro. “Design Cínico”. Depois existe o “Design
Portanto, design é o fator central da Narcisista”. É um designer fantástico que
humanização inovadora de tecnologias projeta apenas para outro fantástico
e o fator crucial de intercâmbio cultural designer. Depois há pessoas como
e econômico. (ICSID, 2012) eu, que tentam merecer existir, e que
estão tão envergonhadas de fazer esse
O conceito do ICSID é o mais representativo trabalho inútil, que tentam fazer de
no âmbito internacional e apresenta o design outra maneira, e elas tentam e tentam.
como uma atividade que deve criar produtos Eu tento não fazer o objeto para o objeto,
mas para o resultado, para o lucro do ser
pensando em todas as suas interfaces, seu ciclo humano, para pessoas que irão usá-lo.
de vida e a relação do objeto com usuário e Se nós pegarmos a escova de dente...
sociedade, sem apresentar o aspecto estético Eu não penso sobre a escova de dente.
como foco principal do designer. Eu penso qual será o efeito da escova de
A expansão do design suscitou diferentes dentes dentro da boca? E para entender
qual será o efeito da escova de dentes
pontos de vista e, consequentemente, diferentes na boca, eu preciso imaginar: quem é
conceitos. Löbach (2001) salienta que, para falar o dono da boca? Qual a vida do dono
sobre design, é necessário levar em consideração dessa boca? Em que tipo de sociedade
alguns pontos. Primeiro, é a postura do usuário esse cara vive? Que civilização criou essa
sobre o que vem a ser design, aquele que se sociedade? (STARCK, 2007).

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Essa é a problematização que vive o nega: apenas aceita este destino. Entre
sinuoso conceito de design. Seu entendimento é o tempo sem tempo de um museu
e o tempo acelerado da tecnologia,
importante, principalmente, quando o designer
o artesanato tem o ritmo do tempo
se propõe a interferir no trabalho artesanal. humano. É um objeto útil que também
Devem-se considerar, como na definição é belo; um objeto que dura, mas que um
do ICSID (2012), as multifacetas do objeto e a dia, porém, se acaba e resigna-se a isto;
sua relação com o usuário, a qual se expressa um objeto que não é único como uma
obra de arte e que pode ser substituído
por suas funções. Como Löbach (2001) propõe,
por outro objeto parecido, mas não
essas funções se tornam perceptíveis no processo idêntico. O artesanato nos ensina a
de uso e possibilitam a satisfação de certas morrer e, fazendo isso, nos ensina a
necessidades. Elas podem ser separadas em viver. (OCTAVIO PAZ apud SEBRAE,
três categorias: função prática, função estética e 2010, p.17).
função simbólica. A função prática refere-se aos
O artesanato, apesar de estar presente
aspectos fisiológicos de uso, em que cumpre um
desde os primórdios da produção de objetos,
papel relacionado à sobrevivência do ser humano
tem seu conceito amplamente discutido e
e sua saúde física. Essa função se preocupa com
categorizado no âmbito do poder público, privado
texturas, dimensões, formas. A função estética
ou acadêmico, principalmente a partir da década
está relacionada aos aspectos multissensoriais
de 80 (NETO, 2007, p.02). Mesmo essas discussões
que irão atuar no sistema nervoso e psicológico
tendo pouca relevância para os artesãos, estas
do ser humano. As características de materiais,
são necessárias para que acadêmicos, técnicos
texturas, cores, som estão envolvidos nessa
e gestores compreendam melhor uma prática
função do objeto. A função simbólica está
da qual estão distantes. Tais discussões terão
ligada às experiências e sentimentos do usuário
importância para o artesão a partir do momento
e engloba os aspectos espirituais, psíquicos e
que forem elaboradas políticas públicas,
sociais do uso, os quais envolvem as relações
estratégias de acesso a mercado e mapeamento
sensoriais que possam remeter às experiências
de cenários mais específicos.
positivas ou negativas do usuário.
A Organização das Nações Unidas para a
Se o papel do design está voltado para a
Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, com
humanização inovadora de tecnologias e é fator
sua atuação também no artesanato, em vários
crucial de intercâmbio cultural e econômico (ICSID,
países em desenvolvimento, conseguiu uma
2012), deve ser tanto na interação do usuário
definição consistente sobre produtos artesanais:
com o objeto, quanto na interação do produtor
com o objeto produzido e na aproximação do Produtos artesanais são aqueles
produtor com o usuário e a sociedade, tendo a confeccionados por artesãos, seja
totalmente a mão, com uso de
responsabilidade e o compromisso de diminuir ferramentas ou até mesmo por meios
a lacuna que provoca a alienação do trabalho e mecânicos, desde que a contribuição
alienação do consumo. direta manual do artesão permaneça
como o componente mais substancial
do produto acabado. Essas peças são
produzidas sem restrição em termos
2. O que é artesanato? de quantidade com o uso de matérias-
primas de recursos sustentáveis.
O artesanato não quer durar milênios A natureza especial dos produtos
nem está possuído da pressa de morrer artesanais deriva de suas características
prontamente. Transcorre com os dias, distintas, que podem ser utilitárias,
flui conosco, se gasta pouco a pouco, estéticas, artísticas, criativas, de caráter
não busca a morte ou tampouco a cultural e simbólicas e significativas do

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ponto de vista social. (UNESCO, 1997 uso, a relação social e cultural da comunidade”
apud, BORGES, 2011, p.21). (BRASIL, 2010, p. 28). O trabalho é coletivo e
utilizado no cotidiano da vida tribal.
Para além da definição do que vem a
Artesanato de referência cultural “são
ser artesanato ou produtos artesanais, houve
produtos cuja característica é a incorporação
uma ampla discussão promovida pelo Programa
de elementos culturais tradicionais da região
do Artesanato Brasileiro do Ministério do
onde são produzidos” (SEBRAE, 2010, p. 14). São
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
produtos que sofreram alguma intervenção, seja
– PAB/MDIC e pelo Serviço Brasileiro de Apoio
de designers, arquitetos e artistas, para diversificar
às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE que
os produtos, dinamizar a produção, agregar valor,
gerou uma classificação das várias categorias
adequando às exigências do mercado.
de artesanato. Essa discussão resultou na Base
Artesanato conceitual “são objetos
Conceitual do Artesanato Brasileiro, publicado
produzidos a partir de um projeto deliberado
pela portaria no 29, em outubro de 2010, pelo
de afirmação de um estilo de vida ou afinidade
MDIC (BRASIL, 2010), e na publicação do Termo de
cultural. A inovação é o elemento principal que
referência do Programa SEBRAE de Artesanato em
distingue este artesanato das demais categorias”
2004, atualizado em 2010 (SEBRAE, 2010). Existem
(SEBRAE, 2010, p.14). Diferentemente do
pequenas diferenças entre as duas publicações,
artesanato de referência cultural, em que o
mas, no geral, as categorias do artesanato são
artista interfere na produção, neste caso, ele é o
divididas em arte popular, artesanato tradicional,
produtor, e utiliza o produto como afirmação de
artesanato indígena, artesanato de referência
valores e estilo de vida.
cultural, artesanato conceitual e trabalho manual.
O trabalho manual, “apesar de exigir
Arte popular é “o conjunto de atividades
destreza e habilidade, a matéria-prima não passa
poéticas, musicais, plásticas, dentre outras
por transformação. Em geral, são utilizados
expressivas que configuram o modo de ser e
moldes pré-definidos e materiais industrializados.
de viver do povo de um lugar” (BRASIL, 2010,
As técnicas são aprendidas em cursos rápidos”
p. 12). São os conhecidos mestres artesãos
(BRASIL, 2010, p. 14). Trata-se de ocupação
que produzem peças únicas, frutos da criação
secundária, sendo, muitas vezes, uma terapia
individual, com profundo compromisso com a
ocupacional. As peças não possuem valor cultural
originalidade, e que revela a identidade cultural
e não há uma produção contínua.
regional.
Além dessas categorias, o Programa do
O artesanato tradicional é o “conjunto
Artesanato Brasileiro (BRASIL, 2010) considera,
de artefatos mais expressivos da cultura de
ainda, o artesanato de reciclagem, e o SEBRAE
um determinado grupo, representativo de
e o Programa do Artesanato Brasileiro discutem
suas tradições, porém incorporados à sua vida
sobre produtos típicos e “industrianato”.
cotidiana” (SEBRAE, 2010, p. 14). Em geral, o
Há pontos convergentes entre as
artesanato tradicional é feito em família ou é
categorias apresentadas, já que todos os produtos
característico de pequenas comunidades, em
passam por transformação da matéria-prima, têm
que o conhecimento é transmitido de geração
predominância de produção manual e possuem
em geração. Suas peças possuem grande valor
identidade cultural e local. Dentre as funções
por representarem a memória cultural de uma
de produto apresentadas, a função simbólica do
comunidade.
produto artesanal é a mais importante, pois vai
O artesanato indígena é “o resultado do
além da sua forma, da sua funcionalidade e da
trabalho produzido no seio de comunidades e
sua matéria-prima. Esse artesanato revela uma
etnias indígenas, onde se identifica o valor de
história, seja de uma região, de uma família,

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do cotidiano ou do próprio artesão. Cada peça habilitados, bastava um bom designer


recebeu uma atenção e um cuidado ao ser para gerar o projeto, um bom gerente
para supervisionar a produção e um
produzido, o que não pode ser dito de nenhum
grande número de operários sem
produto industrial, por mais que tentem vendê- qualificação nenhuma para executar
lo como exclusivo. Este é o grande diferencial do as etapas, de preferência como
artesanato. meros operadores de máquinas. A
remuneração alta dos dois primeiros era
mais do que compensada pelos salários
aviltantes pagos aos últimos, com a
3. História do design e do artesanato vantagem adicional de que estes podiam
ser demitidos sem risco em épocas de
O termo “design” surge depois da demanda baixa. Assim, a produção em
Revolução Industrial, marco das transformações série a partir de um projeto representava
dos modos de produção e de organização do para o fabricante uma economia não
trabalho. De acordo com Hobsbawn (apud somente de tempo mas também de
dinheiro. (CARDOSO, 2004, p. 26).
CARDOSO, 2004), tal Revolução se refere,
essencialmente, à criação de um sistema de O design era voltado para a eficiência da
fabricação que produz quantidades tão grandes e produção e ampliação do lucro. A produção era
a um custo que vai diminuindo tão rapidamente empurrada, ou seja, o designer projetava sem
que passa a não depender mais da demanda saber a real demanda do mercado, cabendo à
existente, mas gera o seu próprio mercado. A empresa convencer o consumidor da necessidade
Revolução Industrial se caracteriza por quatro e importância daquele produto.
mudanças fundamentais na esfera da produção O início dos estudos sobre design data da
de mercadorias: aumento do tamanho das década de 1920, período modernista e, de acordo
oficinas e fábricas, ampliação da escala de com Cardoso (2004), estes tendem a impor uma
produção, expansão da produção seriada com série de normas e restrições ao leitor, como ‘isto
moldes e mecanização e crescimento da divisão é design e aquilo não’, ‘este é designer e aquele
de tarefas com uma especialização cada vez maior não’, estabelecendo sua identidade a partir
da produção. da inclusão de uns e exclusão de outros. Esses
Em contraposição, a produção estudos concebem o design no isolamento entre
manufaturada acontecia em pequenas oficinas, o processo de concepção da ideia do produto e
nas quais havia o mestre artesão e os aprendizes, seu processo de execução e produção, o que
em que todos eram responsáveis por todo o alicerça a separação entre a fabricação artesanal
processo produtivo e era possível desenvolver e a mecanizada, e entre artesão e designer.
produtos personalizados. Com a Revolução No Brasil, o design teve seu impulso na
Industrial, essas pequenas oficinas foram década de 1950, com o desenvolvimentismo e
substituídas, como os ateliês de alfaiates que a rápida expansão da base industrial. Porém, o
foram trocados pelas fábricas de tecidos e de momento inicial popular do design é marcado
vestuário, padronizando as escalas de tamanho pela criação da Escola Superior de Desenho
das vestimentas. Essas pequenas oficinas não Industrial - ESDI, no Rio de Janeiro, em 1963. A
se extinguiram, mas, apesar de numerosas, ESDI adotava a linguagem da Escola Superior de
representavam a minoria do volume produzido Design de Ulm, Alemanha, que seguia padrões
nos países industrializados. estéticos modernista da Bauhaus, primeira escola
O design surge como uma estratégia de de design do mundo que funcionou na Alemanha
ampliação dos lucros das indústrias: entre 1919 e 1933 O fenômeno de difusão das
Em vez de contratar muitos artesãos empresas multinacionais no pós-guerra cria o

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chamado Estilo Internacional, que se difunde, meio da preservação das técnicas produtivas que
também, no Brasil, em que se acreditava que haviam sido passadas através de gerações e da
todo objeto teria sua forma ideal e simplificada incorporação de novos elementos, formais e/ou
numa lógica funcionalista, padronizando e técnicos, aos objetos (BORGES, 2011, p. 45). Essas
uniformizando os produtos, independente das iniciativas começaram apenas pelo interesse
questões culturais envolvidas. Seguindo essa individual dos designers, ainda sem instituições
tendência, a institucionalização do design no que promovessem essa interação ou que ao
Brasil rompeu com o saber ancestral manifesto menos respondessem pelos anseios dos artesãos.
em nossa cultura (BORGES, 2011, p. 31), o que Apenas na década de 1990 é que surgem
levou à desconsideração e desvalorização dos as primeiras instituições que deram suporte e
artefatos já produzidos e das técnicas difundidas promoveram o artesanato no Brasil. Em 1995,
pela cultura indígena, colonização de portugueses surge o PAB/MDIC, com atribuição de elaborar
ou fluxos migratórios, políticas públicas para o artesanato e atuar nos
A forte expressão internacional da escola eixos principais: promoção comercial por meio
vanguardista Bauhaus e a internacionalização de feiras e eventos nacionais e internacionais;
dos funcionalistas contribuíram para reforçar mapeamento do setor artesanal pelo Sistema de
o antagonismo dos designers em relação ao Informação do Artesanato – SICAB; promoção
artesanato. No entanto, o design começa a de capacitação para artesãos e multiplicadores
mudar sua perspectiva pelo mundo na década com foco em empreendedorismo; e estruturação
de 1960, sendo marcado, no Brasil, pelo de núcleos de produção artesanal pelos PABs
Tropicalismo, quando os designers, de acordo estaduais. Logo depois, em 1998, é implementado
com Cardoso (2004), abrem os olhos para o o Programa SEBRAE de Artesanato, com alcance
conhecimento tradicional e cultural brasileiro, nacional, objetivando levantar informações
combinando nacionalismo e internacionalismo, sobre o cenário do artesanato brasileiro e atuar
tradição artesanal e progresso industrial. Inicia- na formação dos artesãos, em diversas áreas
se, contudo, outra lógica de produção, ou seja, a vinculadas ao empreendedorismo, e no acesso
produção puxada, em que o consumo do cliente ao mercado, para o fortalecimento do negócio do
é que determina a quantidade produzida, e o artesanato. Outra instituição implementada no
designer projeta a partir das “necessidades e mesmo ano foi o programa Artesanato Solidário –
desejos” do consumidor. Há preocupação em ArteSol, no âmbito do Conselho da Comunidade
expandir a diversidade dos produtos e entender Solidária, em Brasília e, em 2002, transformado
a lógica de consumo para ampliar o mercado. em Oscip (Organização da Sociedade Civil de
O design passa a desenvolver metodologias Interesse Público), quando teve sua atuação
que busquem a resposta sobre as necessidades ampliada. O foco da ArteSol é no artesanato
humanas e como estimular o desejo de consumo. tradicional, buscando sua revitalização e
Nessa época, surge, também, a formação de outro valorização, promovendo formação e capacitação
grupo que discute questões como tecnologias técnica em políticas emancipadoras que levem
alternativas, design social, design participativo, ao protagonismo do artesão, bem como
conceitos que buscam a inserção do aspecto desenvolvendo ações de apoio à comercialização.
humano na produção, tecnologia e produto, Com o foco na tradição, o ArteSol não incentiva
tirando o econômico do foco direto. a interação e a atuação do designer com o
No Brasil, apenas em meados da artesanato.
década de 1980, inicia-se um movimento de As instituições e programas citados foram,
aproximação do designer e do artesão em busca e ainda são, os mais relevantes para o cenário do
da revitalização do artesanato, que se daria por artesanato brasileiro, apesar de terem surgido

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outras tantas com foco em comercialização variável responsável por regular o mercado e o
ou capacitação que, também, têm o seu valor. consumo (NASCIMENTO; TOBIAS, 2008). Na atual
Essas iniciativas inserem o artesanato na pauta estrutura, o indivíduo é definido pelo seu poder
de políticas públicas, além de evidenciar a de compra e “quanto mais objetos o trabalhador
importância do setor para o cenário econômico produz, tanto menos pode possuir e tanto mais
brasileiro. Assim, o artesanato começa a contar fica sob domínio do seu produto” (MARX, 2010. p.
com estratégias que visam sua qualificação 81), formando ciclos contínuos de alienação.
e profissionalização diante de um mercado Há, ainda, o distanciamento pelo seu uso.
consumidor global. Todo objeto tem uma interação com o ambiente,
com o usuário e com a ação a qual se destina
realizar. A tríade formada por esses elementos,
4. Divisão do trabalho e alienação usuário-objeto-ação, é chamada de affordance,
termo criado por Gibson (apud BROCH, 2010)
“O mais antigo princípio inovador do que pode ser entendido como as características
modo capitalista de produção foi a divisão de um objeto ou ambiente que intuitivamente
manufatureira do trabalho, e, de uma forma ou provocam uma ação. Por exemplo, a forma de
de outra, a divisão do trabalho permanece o uma cadeira nos intui a sentar ou a subir, um lápis
princípio fundamental da organização industrial”, nos leva a escrever, ou marcar um livro, prender
afirma Braverman (1987, p. 70). Essa divisão é o cabelo ou matar alguém, mesmo que não seja
caracterizada tanto pelo distanciamento entre o o melhor objeto para executar a ação. Não há
trabalho intelectual e o trabalho mecânico, quanto forma incorreta de imaginar essa interação; o que
dentro do próprio trabalho mecânico, no qual as acontece com muitos objetos é que estes não são
etapas do processo produtivo se segmentam a tal projetados prevendo os affordances e tornam a
ponto que o operário não tem mais visão do todo ação muito mais difícil de ser executada.
e, como consequência, se aliena. De acordo com Broch (2010), um adulto
(...) o objeto que o trabalho produz, tem condições de inferir muito mais affordances
o seu produto, se lhe defronta como do que uma criança, pela sua capacidade de
um ser estranho, como um poder abstração e percepção, mas também pelo seu
independente do produtor. O produto conhecimento adquirido, podendo variar com
do trabalho é o trabalho que se fixou objetos em diferentes ambientes, materiais e
num objeto, fez-se coisal, é a objetivação
do trabalho. A efetivação é a sua disposição espacial. Não há como ter um objeto
objetivação. Esta efetivação do trabalho com todos affordances universais, pois, além
aparece ao estado nacional-econômico das características do objeto, as características
como desefetivação do trabalhador, culturais também são relevantes.
a objetivação como perda do objeto As tecnologias convencionais, produzidas
e servidão ao objeto, a apropriação
como estranhamento, como alienação. e utilizadas pelos trabalhadores, de acordo
(MARX, 2010, p. 80). com Dias (2009), além de serem orientadas
pelos mercados dos países desenvolvidos,
O objeto se distancia do homem enquanto de alta renda, são irradiadas pelas empresas
trabalhador, consumidor e usuário. Enquanto desses países e absorvidas de forma acrítica
trabalhador, porque “o trabalho é externo ao pelas empresas de países subdesenvolvidos.
trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que Para estes, as tecnologias convencionais que, a
ele não se afirma” (MARX, 2010. p. 82). Enquanto princípio, aparentam progresso, são consideradas
consumidor, porque seu poder de compra é “avançadas” tecnologicamente, só que geram
determinado pela questão econômica, que é a maior esforço e despesa, pois não condizem com

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os conhecimentos adquiridos e com a realidade que acontecem sobre sua atividade, com o
cultural, tornando a ação muito mais difícil de ser usuário de seu produto, com os novos canais de
executada. Utilizar uma tecnologia convencional, comunicação, e transforme-se em sujeito da sua
para o local o qual não foi concebida, aumenta o própria história, mesmo que seu trabalho seja
custo de qualquer atividade. uma atividade muito tradicional.
Diferente da Tecnologia Convencional, Os artesãos não estão numa redoma,
a Tecnologia Social, segundo Rafael Dias (2009, imunes a qualquer influência exterior.
p. 02), “deveria ser adaptada à pequena escala, Em interação com o mundo à sua volta,
tanto no sentido físico quanto financeiro, o estão se transformando continuamente
e, muitas vezes, transformando o seu
que favoreceria os trabalhadores e pequenos
próprio trabalho. Decidir, desde uma
proprietários em geral, além de (...) permitir a visão de fora, preservar algo a qualquer
plena utilização do potencial criativo do produtor custo pode ser considerado uma espécie
direto”. Produzir para a realidade local, tendo de condecoração à imobilidade e,
como base os problemas reais e as referências portanto, à morte. (BORGES, 2011, p.
138).
culturais, amplia a quantidade de affordances
comuns e gera mais eficiência e eficácia nos O contato com o designer pode ser a ligação
resultados, os quais não visam tão somente ao com essas novas experiências, possibilitando uma
aumento da produtividade e do lucro, mas ao abertura para conquista da sustentabilidade do
favorecimento do trabalhador. artesão, afastando-o da vulnerabilidade social,
Com a tecnologia social, a alienação desde que a abordagem seja por meio de uma
do trabalho é quebrada. O trabalhador é visão sistêmica. A relação deve se estabelecer a
protagonista no desenvolvimento da tecnologia partir da troca de experiências, pautada na cultura
social e se reaproxima do objeto enquanto e no trabalho, na formação para a cidadania, de
trabalhador, consumidor e usuário. O objeto forma que ajude o artesão a entender o mundo
não é produzido para o lucro, tão pouco reforça em que vive. Esse processo deve contribuir para a
o trabalho alienado, mas também reaproxima o articulação de todos os campos dos saberes locais,
trabalhador enquanto consumidor, pois adquire regionais e globais, garantindo livre trânsito entre
“poder de compra” para obter produtos que um campo e outro para a aplicação prática na
representem suas necessidades e/ou desejos. vida diária. Abbonizio e Fontoura (2008, p. 2621)
E, ainda, se reaproxima enquanto usuário, pois observam que a aproximação dessa atuação do
esses produtos apresentarão e cumprirão funções designer com o artesão
representativas para si.
com os princípios pedagógicos de
Paulo Freire, se deve, primeiramente,
pela semelhança – inicial – entre
5. Críticas à atuação dos designers: o que há de alguns de seus conceitos e idéias
com aqueles anunciados e praticados
errado? “intuitivamente” por alguns designers
em intervenções no artesanato.
É cada vez mais comum a atuação de Destacam-se, como: abordagem
designers em empreendimentos artesanais, com participativa, seguir os desejos e
o objetivo de interferir na produção e ampliar aspirações dos envolvidos, respeito ao
seu acesso ao mercado. O Brasil possui vários contexto social, identidade cultural e
outros. (ABBONIZIO; FONTOURA, 2008,
exemplos de sucesso na interação do designer
p. 2621).
com o artesão. É importante que o artesanato
consiga transpor a barreira do acesso à
informação e entre em contato com as discussões As atuações dos designers podem vir por

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interesse individual, por meio de instituições produtos foram desenvolvidos ou, até mesmo,
públicas, empresas, trabalhos acadêmicos. dizer que o produto é brasileiro, quanto mais
A instituição contratante ou solicitante tem perceber a identidade do artesão. Dessa forma,
responsabilidade pela forma de atuação do o produto artesanal que perdeu sua identidade
designer. As exigências impostas no contrato e cultural não pode mais ser considerado um
as expectativas de resultados do projeto podem produto artesanal. A empresa de comércio justo
interferir nas suas escolhas de metodologia de e solidário que busca, pelos seus princípios,
atuação. oferecer uma vida digna através do trabalho para
Com o intuito de apresentar os que o artesão alcance sua sustentabilidade, não
problemas comuns na atuação do designer em alcança sua missão, pois descaracterizou e ignorou
empreendimentos artesanais, serão apresentadas o produtor do processo. A comercialização
duas simulações de atuação baseadas em fatos acontece, a renda das comunidades aumentou,
conhecidos. pois conseguiram espaço de comercialização
Imagine uma empresa brasileira que tem para os empreendimentos, mas isto não pode
como eixo principal o comércio justo e solidário ser caracterizado como artesanato ou como
e o objetivo de apoiar pequenos produtores e trabalho que emancipa o trabalhador, já que
artesãos no acesso a mercados internacionais. este atua como fornecedor para uma empresa
Para tal, a empresa atua na sensibilização sobre internacional, sem autonomia na criação do seu
os conceitos do comércio justo, consultoria trabalho.
em logística e exportação, análise de mercado, A atuação em prol do crescimento do
aumento da produtividade e no desenvolvimento artesanato não pode ser apenas no discurso,
de produtos que atendam as exigências do o crescimento do setor envolve ações além da
mercado, mas não emite selo de certificação. comercialização. Adélia Borges (2011) salienta
Essa empresa possui parceiros internacionais que que antes da atuação das instituições em prol do
comercializam, em países da Europa, produtos artesanato,
brasileiros de comércio justo, e apresentam o principal agente indutor de mudanças
uma pesquisa das tendências do mercado nos produtos era o comprador que ia
internacional, como preferências de cores, tipos até as comunidades – e esse, muitas
de objetos, dimensão e preço. vezes, não tem escrúpulo, podendo
encomendar réplicas de Mickey no meio
Com o acesso a essas informações, a
do sertão. E o próprio fato de um item de
empresa seleciona empreendimentos artesanais uma produção vender e outro não já leva,
pelo país e desenvolve produtos baseados na naturalmente, a um redirecionamento
pesquisa já elaborada. Dos empreendimentos da produção posterior. (BORGES, 2011,
selecionados, grande parte recebe, além de p. 139).
consultoria no desenvolvimento do produto, uma Alguns designers podem se apresentar
marca que parece cópia uma das outras ou a “cara como anjos que irão salvar o artesão de um
do designer” que as desenvolveu. Além disso, os purgatório que nem os artesãos sabem que
empreendimentos que receberam consultoria em estão. A salvação virá por meio de um produto,
desenvolvimento de produto, apesar de ficarem definitivamente não será um Mickey, mas será
em cidades e estados diferentes, desenvolvem os um belo produto com alto apelo estético. Mas,
mesmos tipos de produtos, em geral, brindes e o que fazer com o produto, qual será o preço,
pequenos acessórios. onde comercializar, o que ele representa, há
Não é possível identificar pelos produtos capacidade produtiva para atender as demandas?
apresentados, observando técnicas produtivas, Que salvação é essa?
formas, cores e grafismo, a região em que esses Agora imagine outro caso, um escritório de

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design com profissional renomado que defende Poucas mudanças ocorreram na comunidade
a transformação pelo design e está atuando com atendida, e nenhuma ampliação de renda, mas
empreendimentos artesanais em municípios com a carreira profissional do designer já conquistou
alta vulnerabilidade social há alguns anos. Toda muita visibilidade.
a equipe do escritório vai ao município, conhece O produto em si não é muita coisa. Todo
a realidade e estabelece uma relação com a produto faz parte de um sistema que também
cultura local. Há um cuidado com o produto que precisa ser estudado, tanto o ambiente de seu
está sendo desenvolvido e, também, com o que uso quanto o ambiente de mercado, em que é
o mercado externo exige, pois a missão é gerar necessário avaliar os custos envolvidos com a
novas oportunidades econômicas e melhorar a logística para comercialização dos produtos, as
qualidade de vida das pessoas. demandas de mercado, o preço, a capacidade
Suponha que esse escritório atue durante produtiva e em quanto isso irá reverter para a
15 dias junto a uma pequena comunidade comunidade, tanto economicamente quanto
rural, no interior do país, e com baixo índice de “humanamente”.
desenvolvimento humano – IDH. Esse projeto Um período curto de atuação ou
possui equipe multidisciplinar, contando com desenvolver trabalhos pontuais apenas com
designers, assistentes sociais, engenheiros, os requisitos de mercado são fatores que não
fotógrafos, arquitetos que realizam oficinas para contribuem para capacitar os artesãos técnica
melhoria e desenvolvimento de novos produtos. ou politicamente. O caminho mais fácil, mais
As oficinas promovem integração da equipe do rápido e mais barato é ter o mínimo de contato
projeto com os agentes locais, e os produtos com o artesão, o que pode ser feito na sala de
desenvolvidos são, em sua maioria, objetos de um escritório. Os resultados serão belos produtos
decoração e apresentam estética contemporânea. bem fotografados e bem apresentados em
Muitas promessas são feitas à comunidade, catálogos, mas que raramente sairão da folha de
que fica mobilizada, cheia de esperança e com papel e da fotografia. O artesão não se apropriará
muita expectativa acerca do produto, uma vez da ideia e não haverá mudança positiva em sua
que a solução, vendida pelo escritório, para realidade.
os problemas do IDH baixo, principalmente
relacionados a saneamento básico, virá de seu
produto, agora comercial e de alto valor agregado. 6. Considerações Finais
Romantizar o trabalho social não deve ser
requisito para que a comunidade possa aderir ao A aproximação do design com o artesanato
projeto. O tempo para qualquer mudança é longo, precisa sempre ser ponderada, mesmo que em
e os problemas de baixo IDH são estruturais e muitos casos tenha resultados positivos para os
muito mais complexos de serem resolvidas do artesãos. É preciso cuidar para que a estrutura
que apenas com a comercialização de artesanato. da alienação do trabalho não se repita, na qual
O projeto, que dura em média 15 dias, a remuneração alta do designer é justificada por
mostra resultados, muitos resultados para gerar uma baixa remuneração para o artesão e
o designer renomado. Ele abre espaços na belos produtos para serem apresentados mundo
mídia para divulgação do trabalho, participa de a fora. O designer que atua com essa perspectiva
exposições, de eventos sobre design, no país e no é contratado/financiado por alguma instituição
exterior, aparece em diversas revistas, sem contar (exceto quando a atuação é pela universidade,
na visibilidade por meio das mídias digitais. O nos casos de trabalho acadêmico sem projeto
projeto possui alto apelo social e os objetos vinculado) e tem como objetivo dar subsídio para
desenvolvidos são “inovadores” pela sua forma. ampliação de renda dos artesãos. No entanto,

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nesse caso, mantém-se a divisão das tarefas, em é conquistado pela troca de conhecimento. O
que o designer cria e o artesão produz, sendo designer precisa se abrir para as virtudes do objeto,
que o primeiro, em muitos casos, tem uma observá-lo com atenção, procurar compreendê-lo,
remuneração muito maior do que o artesão. perceber a riqueza e a criatividade ‘embutidas’ no
É necessário emancipar o artesão. O trabalho que já foi realizado. Da mesma forma, o
trabalho do designer deve ser independente do artesão precisa se abrir para conhecer e aprender
processo de criação do artesão. As instituições sobre as variáveis de um objeto e do usuário e
de ensino superior de design precisam ver e se como fazer para que isso mude sua realidade. É
aproximar do trabalho fora do “chão de fábrica” e importante planejar a atuação e ter metodologia
de grandes produções em série. As possibilidades específica. O trabalho empírico é comum, mas
de inserção no mercado do designer são diversas não pode ser assistemático; desenvolver uma
e a atuação em empreendimentos artesanais metodologia também é aprender a descobrir.
é um caminho cada vez mais real. O designer A atividade artesanal é criativa. Ela não
precisa ter subsídios para cumprir seu papel em sofreu rompimento do trabalho intelectual,
qualquer caminho que escolher ou cenário que do trabalho mecanizado ou manual. O artesão
encontrar, caso contrário, ainda haverá muitos é figura central no processo de criação, caso
Designers Cínicos e Designers Narcisistas, como contrário, interrompe a produção dos novos
nos casos em questão. produtos, visto que não há identificação com
Esses casos hipotéticos citados no artigo eles, pois teve sua capacidade de criar, imaginar e
representam apenas dois modelos com fragilidades produzir tolhida. Por ser uma atividade criativa, o
em sua atuação e, consequentemente, em seus artesão não consegue se apropriar facilmente da
resultados, mas existem outros exemplos de ideia de terceiros, o que pode descaracterizar o
menor/maior proporção que também geram artesanato e desconstruir a relação cultural dele
resultados negativos. Não é difícil encontrar com o produto. É preciso distanciar a produção
empreendimentos artesanais que tenham artesanal dessa lógica de mercado de consumo,
resistência em receber um designer, pois já se mas absorvendo para si os conhecimentos
frustraram com experiências que não deram adquiridos pelos designers, relacionando as
certo. E arriscar novamente é quase inconcebível, funcionalidades ao bem estar físico dos usuários.
cabendo ao próximo designer convencer que O artesanato não pode ser avaliado
fará um trabalho diferente. Não é raro artesãos apenas pelo objeto, pois esse produto possui
afirmarem que ‘promessa não enche barriga’, haja alto valor simbólico quando está relacionado à
vista tantas tentativas que não geraram mudança história do artesão, da técnica, da matéria-prima,
para eles, mesmo que o trabalho tenha sido da comunidade e do produto, mesmo quando
divulgado e diversas pessoas tenham interesse é artesanato de referência cultural. O produto
em adquirir os produtos. que é projetado longe dos olhares do artesão,
A aproximação do designer e do artesão tornando-o mero fornecedor, não consegue
é importante para as duas partes, e deve ser alcançar o mesmo nível simbólico, apesar de
entendida assim. A unilateralidade do trabalho conquistar valor simbólico maior que muitos
inviabiliza a integração e a descoberta mútua, já produtos industriais.
que o designer faz seu trabalho sem conhecer a Adélia Borges (2011, p.145) afirma,
rotina e cultura do artesão, e este não percebe sabiamente, que “a intervenção adequada
o que diferencia sua criação da criação daquele. consiste, muitas vezes, em apenas ajudá-lo [o
Segundo Adélia Borges (2011), o artesão] a ver, a aperfeiçoar aquilo que faz,
pressuposto básico da aproximação entre mas sempre respeitando a sua essência”. O
designer e artesãos deveria ser o respeito, que designer não deve se revestir de o detentor

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do conhecimento, com o poder transformar a www.ieham.org/html/docs/Tecnologia_Social_


realidade, mas, apenas, como um agente com Actores_Sociais_Medidas_PCT.pdf. Acesso em:
olhar externo, de preferência com uma equipe 16 jun. 2012.
multidisciplinar, que irá aprender e apoiar no que
for possível. INTERNATIONAL COUNCIL OF SOCIETIES OF
INDUSTRIAL DESIGN. Definition of design.
Disponível em: http://www.icsid.org/about/
about/articles31.htm. Acesso em: 06 jun. 2012.
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