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AS GULOSEIMAS FORMIGUENSES – Parte 1

Continua a saga contando as lições dadas pelo Grande Mestre da cidade de Formiga, do
século 22, Ad-Víncula, o sábio dos sábios e lúcido conselheiro que está de volta para novas
audiências, quando se reúne a nata da comunidade e adjacências. É notório, repita-se, que a
fama da “Princesa do Centro-Oeste” não se resumia simplesmente nas suas oficinas do saber.
Os intelectuais e filósofos aproveitavam e adquiriam com inenerrável prazer as guloseimas
que a boa terra formiguense produzia. Portanto, vive-se naquele privilegiado lugar, os maiore
quitandeiros da região. Dentre eles, sobressaía Antônio Lima, o mais exímio “fazedor de
doces” da cidade. Ao saber que o Mestre voltara de seu retiro, certamente para desanuviar-se
um pouco depois dos problemas que tivera com o pescador Marcelo e depois com o professor
Stélio e seu rebelde pupilo, Maurício, Lima fez questão de homenagear o eminente mago.
Então chamou seus filhos, Silvério e Francisco Américo para lhes dar uma incumbência muito
importante. Apontando para um balaio repleto de suculentos quitutes (maria-mole, quindim,
pé-de-moleque, quebra-queixo, e outras delícias de extremo bom gosto), disse-lhes em alto e
bom som: “Meninos, aqui neste cesto tão bem arrumado pela sua irmã Etelvina, há trinta e
duas saborosas quitandas. Foram feitas com muito respeito e consideração. O Frederico e a
Ana muito me ajudaram na sua preparação. Quero, pois, que as leve ao nosso honrado
Advíncula, que tão amável e correto tem sido para a nossa cidade, todavia nem sempre tem
recebido o carinho que merece!”. Lisonjeados por causa da nobre missão, os irmãos pegaram
suas bicicletas planadoras e partiram até à rua Monsenhor João Ivo, número cem, onde o
Mestre já se encontrava, preparando-se para mais uma “Sessão da Plena Justiça”. Durante o
trajeto, ambos puderam apreciar novamente as belas paisagens da encantadora Formiga.
Parecia que a poluição não chegara à formosa cidade das Areias Brancas, pois o céu sempre
estava límpido e o ar respirável. Seria tudo aquilo fruto das energias apaziguadoras que o
Mestre ajudava a espargir ao proferir seus sábios conselhos? Era a questão que a maioria das
pessoas fazia, principalmente as forasteiras. Kiko, mais franzino do que seu irmão, pedalava
com força para que sua bicicleta voasse sempre próxima a dele. Não queria perdê-lo de vista.
De súbito Silvério posou. Qual teria sido o motivo? Francisco o acompanhara imediatamente.
Estava curioso para saber o motivo. Calmamente, Silvério colocou o balaio no chão, olhou
demoradamente para as quitandas e chamou o irmão que acabara de baixar vôo. Então, disse-
lhe com voz firme e decidida. “Kiko, lembre-se que assim que entregarmos estas trinta e
duas sapetiscosas guloseimas feitas pelo nosso velho pai com a ajuda de nossas manas,
Mestre Ad-Víncula, obedecendo a velha tradição formiguense, fará questão absoluta de nos
dar a metade. Ora, qual é a metade de trinta e dois?” . O irmão olhou desconfiado e
respondeu à estranha pergunta do mano: “Silverinho, eu sei que esta é a praxe. Todo mundo
sabe. É claro que é dezesseis, por quê?”, ao que Silvério sorriu sarcasticamente dizendo m
tom de ameaça, “Ótimo. Ainda bem que você é garoto esperto, senão eu ia contar para o
nosso pai. Portanto, está claro que destas trinta e duas caçarolas e outras maravilhas,
dezesseis serão nossas. Logo, não vejo mal algum que as detonemos agora mesmo! Manda
ver, maninho!”. Relutante, porém, tendo compreendido perfeitamente o raciocínio do irmão,
Kiko concordou e os dois devoraram gulosamente as dezesseis iguarias. O restante, ou seja, a
outra metade, ficara no fundo do balaio. Retomaram suas bicicletas e planaram em direção ao
local onde estava Mestre Ad-Víncula. Contudo o vôo durou pouco, pois Silvério parou
novamente. Calmamente, colocou o balaio na beirada da calçada e matutou. Desta vez, seu
irmão imaginou que ele se cansara, já que o vento estava fraco naquele momento e as
pedaladas tinham que ser mais fortes para que as bicicletas se mantivessem no ar. De novo,
Silvério sorriu matreiramente e lançou nova proposta: “Olha aqui, guri, nós dois estamos
levando agora dezesseis apetitosas guloseimas a pedido do nosso velho Antônio Lima, o
melhor quitandeiro desta nossa amada terrinha. Reza a tradição que ele nos dará a metade
do conteúdo da cesta. E eu lhe pergunto: qual é a metade de dezesseis?”. (continua)
AS GULOSEIMAS FORMIGUENSES – Parte 2
Kiko olhou de soslaio para o irmão Silvério, mas desta vez ele estava mais resignado. Não
queria fazer papel de bobo na sua frente. Ele conhecia muito bem as tradições de Formiga,
principalmente quando se tratava de quitutes. “Justiça seja feita, mano. Você tem plena razão.
A metade de dezesseis só pode ser oito. A aritmética nunca falha...”. O irmão deu uma
gargalhada ainda mais sarcástica do que antes. “Vejo que você está aprendendo rápido
comigo, querida irmãozinho. Além de saber da praxe formiguense quando se oferenda uma
pessos, sabe fazer conta como ninguém! Acertou em cheio. Destas dezesseis quitandas, oito
serão justamente nossas. É o nosso direito, senão estaríamos usurpando leis sagradas da
culinária quintandense. Logo, não vejo mal algum que as detonemos agora mesmo! Manda
ver, maninho!” E, tendo raciocinado deste modo, os irmãos devoraram gulosamente oito
quitandas, deixando o restante no fundo do balaio. E desta mesma forma aconteceu pouco
tempo depois. Graças ao mesmo raciocínio, matematicamente idêntico aos anteriores, e
sempre firmado na velha e soberana praxe formiguense, achou-se o espertalhão do Silvério
com o direito de comer mais quatro quitandas juntamente com seu irmão. Cada vez, eles
comiam a metade das quitandas que haviam sobrado no balaio. Finalmente, eles chegaram à
rua da casa número cem da rua Monsenhor João Ivo. Estacionaram as bicicletas planadoras e
foram procurar Ad-Víncula para oferecer o presente de seu pai, o quitandeiro Antônio, agora
reduzido a somente meia-quitanda. Qual não foi a surpresa do presenteado, ao receber o
balaio. “O que é isso, meninos?”, indagou Ad-Víncula, enquanto observava que no fundo do
balaio havia o que parecia ser um pequeno pedaço de quitanda. “É uma oferenda de nosso
pai, o quitandeiro Antônio Lima, seu admirador. Dentro das tradições formiguenses, é tudo
seu, amado Mestre!” E contou, com a maior desfaçatez e sem-cerimônia o raciocínio que
várias vezes fizera para satisfazer sua gula para com as quitandas destinadas a ele. Ao ouvir o
curioso relato da façanha, o justo senhor disse, com sua peculiar serenidade e ponderação,
tantas vezes demonstradas nas “Sessões da Plena Justiça”, realizadas periodicamente na
cidade: “Pelos Mestres Cósmicos, astuto, porém incompreendido traquinas, Silvério. Sempre
fui um otimista nesta longa e centenária vida. Ultimamente, todavia, tenho tido casos
mirabolantes para opinar. Não à toa tirei forçadas férias. Realmente, meu rapaz. Graças à sua
maneira de proceder, inspirado na velha e tradicional praxe da cidade de Formiga, ainda tive a
fortuna de ganhar meia-quitanda que desgustarei com raro prazer! Quem sabe não fossem
outros mensageiros, não me teria sobrado nada? Devo, pois, contentar com o naco que me
sobrou!” Todavia, quando o Mestre já ia provar a meia-guloseima restante, o sorrateiro
Silvério protestou, esboçando incomum petulância. Desta feita, Kiko o observava com
desconfiança e receio, visto conhecer bem os argumentos que o irmão sempre tinha, nem
sempre razoáveis. “Perdão, honrado e sapiente sábio dos sábios! Também devo clamar aos
seus Mestres Cósmicos! Desta meia-quitanda que ficou no balaio, segundo a velha e
tradicional praxe desta cidade tenho pleno direito à sua metade! Duvido que o senhor
romperia com a tradição, não é verdade?”. Ad-Víncula franziu o cenho, respirou
pronfudamente e disse com a sua habitual paciência: “Por Akhenaton! Sua observação é
deveras justa. Que distração a minha! Devo seguir ainda desta vez, a velha e tradicional
praxe desta cidade. As regras não podem ser aviltadas por ninguém, como você bem afirma.
E de acordo com a perfeita fidalguia que reza a tradição formiguense, você tem pleno direito
à metade deste não muito grande pedaço de doce.” E, dividindo ao meio o diminuto pedaço
de quitanda que já era uma metade, entregou a parte que o menino – aparentemente inocente -
tinha direito. E Silvério deglutiu com prazer a metade da metade da última guloseima que
restara no baialaio onde antes haviam trinta e duas. Nervoso, Kiko olhava para o irmão que
contente mastigava o apetitoso doce. Ad-Víncula também o fitava. Quando terminou de
engolir, ele voltou a falar. Suspirou de novo e falou com mais seriedade: “Este caso das trinta
e duas quitandas, vai ter um desfecho muito interessante, menino metido a esperto!” (cont.)
AS GULOSEIMAS FORMIGUENSES – Última Parte
Silvério então pigarreou e olhou para o Mestre Ad-Víncula. Nesse momento, pela primeira
vez, ele temeu pelo pior, pois a voz do sábio estava pausada e estranha, como nunca antes ele
ouvira, mas não se fez de rogado: “Por que diz que esta história terá um desfecho muito
triste, querido Mestre? Que erro teria eu cometido? Acho que, pela primeira vez, o senhor se
enganou. Como é o exemplo deste País, deve seguir as tradições locais ou perderá a
credibilidade.”, disse com a petulância e a arrogância de sempre. Por sua vez, seu irmão Kiko
já não sabia mais para onde olhar, tamanha a sua vergonha. Ad-Vúncula esboçou um pequeno
sorriso.“Muito bem, menino peralta, você sempre tem um argumento na ponta da língua, não
é mesmo? Então, o querido e estimado quitandeiro, Antônio Lima, homem trabalhador e
sério, será severamente castigado! Castigado pela leviandade que praticou enviando a mim
um presente que chegou-me por intermédio de um portador que não merecia a sua confiança
e quem zombou da minha paciência e dos que estão a ouvir suas desculpas intermináveis e
falsas. Será que mereço presente deste quilate? Por este delito, o senhor seu pai haverá de
ser exemplar e severamente punido!”. Temeroso, mas sem se deixar intimidar, o impetuoso
garoto, voltou a carga de impropérios. “Essa é boa. Por acaso, o sábio e iluminado senhor
quer nos dizer que vai castigar nosso inocente pai?” . Nesse momento, já havia uma platéia
presenciando a cena, a mais incomum, porquanto desrespeitosa, acontecida naquele sacro
recinto. “Sim! Vou puní-lo de fato e de direito! E castigá-lo irei com exatas trinta e duas
chibatadas com vara de marmelo!”. Silêncio constrangedor fez no recinto. Apesar da
irritação, Ad-Víncula estava sereno. Então, ele acenou a um de seus assistentes para que este
se aproximasse. Em seguida, completou: “Menino Silvério, como bom portador de presente
que você se revelou, terá o privilégio de receber as trinta e duas varadas, para repassá-las ao
seu distinto genitor. E tem mais: de acordo com as tradições formiguenses, terá direito a
trinta e uma palmadas e meia! E no fim, vai ter, ainda, a metade da metade! Não é assim que
funciona seu privilegiado raciocínio?”. Os pressentimentos do rebelde garoto não eram nada
promissores. E ele continuou ouvindo o Mestre, mas dessa vez estava emudecido de susto,
temendo pelo irreversível castigo que o aguardava... “Todavia, como reza a perfeita
matemática das punições, não é possível calcular meia varada e, por isso mesmo, é seu
direito receber na bunda, de um só vez, as trinta e duas varadas. Leve-as, pois, ao seu
querido pai, ó nem-tão-esperto-assim, menino. Falcão, meu ermelindo andante, você que
manipula tão bem um cajado nessas suas andanças pelas pradarias mineiras e capixabas,
pegue aquela vara de marmelo e faça-nos o favor de aplicar na parte inferior traseira deste
fedelho exatos trinta e dois corretivos. Todavia, faça-o com parcimônica, visto que o guloso
infante ingeriu muito quitanda, evitando, deste modo, que passe mal neste conspícuo
ambiente. E que os estalos sejam bem sonoros! Capriche, pois.”. Ousado, como sempre, o
garoto Silvério quase que teve tempo de fazer mais uma sínica observação, mas foi
prontamente interrompido pelo irmão: “Não poderia levar só dezesseis varadas de acordo...”
Antes que terminasse, e bastante preocupado pelo seu futuro, Kiko resolveu dar um basta nas
suas alegações sem efeito e aproveitou a oportunidade para, resignadamente – embora receoso
– sussurrar ao ouvido do Mestre: “Senhor, só para meu desencargo de consciência e alívio,
será que eu estou nessa também?”. Demonstrando compreensão plena, Ad-Víncula fitou o
garoto com ternura, “Você apenas seguiu às ordens do seu irmão. Não é de todo culpado. Da
próxima vez, não acompanhe seus raciocícinios nem tão exatos como voce imaginava! Da
próxima vez, seja mais previdente...”. Por tudo que causou, Silvério baixou as calças, pendeu-
se e então recebeu, matematicamente, exatas trinta e duas varadas de marmelo na moranga
sob os olhares de uma platéia até certo ponto satisfeita pelo desfecho da história que poderia
ter terminado melhor. A velha e tradicional praxe formiguense foi, até certo ponto, sabiamente
cumprida! Ad-Víncula lembrou-se de um famoso provérbio hindu: “O castigo de Deus está
mais perto do pecador do que as pálpebras estão dos olhos”.

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