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O PROFESSOR E O ALUNO - Parte 1

Um dos acontecimentos mais marcantes do século 22, foi a lição que “Justo” Advíncula recebeu
quando da última “Sessão da Plena Justiça”. Assim, ele reconheceu uma insofismável verdade:
todo pescador pode ser um filósofo, tanto quanto todo filósofo pode ser um pescador. Esta era a
opinião corrente em Formiga, naquele ano de 2155. Um dos espectadores da inesquecível sessão
era Stélio, o mais brilhante professor da Faculdade dos Direitos Legais da região. Deitado no
chão, pois era assim que meditava (como era sistemático esse professor) e refletia sobre o
cotidiano, além de para fortalecer seu imbatível poder de argumentação quando das aulas que
dava, momento em que “a inteligência pululava ao sabor da brisa”, conforme gostava de repetir
porque estas eram ao relento. Dessa forma, ele achava que as inspirações chegavam mais rápido
sem a interferência das paredes. “Reconhecer que a verdade absoluta continua inatingível,
demonstra a verdadeira sapiência do legítimo sábio que, humilde, sempre altera seus
pensamentos pois duvida com freqüência. Por outro lado, aquele que se arvora de sabedor das
coisas, é um tolo e obstinado que acredita sem precisar de comprovação. Em resumo, ele pensa
que sabe tudo, mas ignora sua própria ignorância...” Enquando elucubrava, Stélio cochilou mas,
graças ao despertador holográfico, despertou e viu à sua frente grandes números refletidos
dizendo-lhe que chegara a hora da aula. Era comum ele enfrentar aspirantes sagazes que, em
função de seus sólidos argumentos poderiam até absolver o mais culpado dos réus,
transformando-os em vítimas. No coreto da pracinha, onde a aula seria dada, Stelio encontrou
Maurício, um de seus melhores alunos que sobressaía na turma não somente pela sua inteligência
e sagacidade, mas porque era obeso e se vestia muito mal, resquício de uma infância pobre e
desleixada. Mesmo assim, conseguiu vencer, entrando para a faculdade. Era astuto e persistente.
Seu desejo de ser o melhor dos melhores. Ser um advogado proeminente era, pois, a maior de
suas ambições. Para tanto, estudava com afinco retórica, dialética, filosofia, história, além de
outras disciplinas necessárias para o desenvolvimento da arte de argumentar, indispensável a um
bom causídico. “Professor Stélio, pretendo ser um rábula da mais alta estirpe, a fim de
preparar-me para a defesa dos direitos do homem. Por isso, preciso de aulas adicionais do
senhor fora do horário da escola. Não estou me satisfazendo com suas aulas regulares. Quanto o
senhor cobra?” Stélio fitou-o com desconfiança. Apesar de bom aluno, Maurício demonstrava
muita presunção e arrogância com aquele pedido. Seu ar de superioridade era típico de advogados
experientes, jamais de um aspirante. Como seu tempo fora de classe era escasso, dera um preço
bastante elevado, esperando a desistência do brilhante, porém impetuoso aluno que, de fato,
achara o preço alto. Todavia, não fugiu ao seu estilo sagaz e combativo, ponderando: “Seu preço
é razoável e estou pronto a lhe pagar a quantia, mas acontece que não disponho do montante
estipulado, nem agora e nem durante o curso. Proponho-lhe, digno mestre, o seguinte: pagar-
lhe-ei o valor exigido se após defender a minha primeira causa. Porém, se perdê-la, nada lhe
pagarei! Aceita?”. Stélio, então, com a peculiar argúcia, retrucou à altura com tranqüilidade:
“Como as minhas aulas serão fonte de grandes conhecimentos para você, estou certo de que
ganhará fácil a primeira causa que defender. Assim, você me pagará meu preço. Se, como
propõe, perder, o que não acredito, nada precisará pagar-me.”. Após a aula daquele dia, Stélio
passou a dar aulas particulares ao esforçado aluno, mesmo com o pouco tempo que lhe restava.
Durante quase todos os dias, até a formatura, os colegas de Maurício não deixaram por menos e
instigaram-no dizendo-lhe que o Professor Stélio jamais perdia e, por isso, ele ganharia sua
primeira causa, tendo de pagar uma alta soma ao professor que teve de abster de suas folgas para
lhe ministrar aulas em caráter particular. E o tempo passou. Maurício tornou-se um rábula. Na sua
primeira causa, ele venceu. Mas, não pagou o débito com o professor como haviam combinado.
Stélio ficou bastante contrariado com o insolente aluno. Teria que agir com rigor!
O PROFESSOR E O ALUNO – Parte 2
Como se não bastasse, além de Maurício ter deixado de pagar seu professor pelas aulas recebidas,
sequer seguira a profissão que ele tanto almejava. Para Stélio, ele lembrava outros alunos que
tivera: “Estudam durante muitos anos na faculdade. Depois, se conseguem sair da faculdade,
desistem da profissão que abraçaram, agindo tal qual um rio. Segue o curso nunca sair do
leito... Bando de preguiçosos sem perspectivas de vida!” Não foram poucas as vezes que Stélio
procurou pelo indolente ex-aluno esperando que este lhe pagasse o antigo débito. Porém, o
fracassado rábula sempre lhe negava, alegando que ainda não havia defendido causa alguma e o
trato era que a obrigação assumida dependia da vitória numa primeira causa, o que ainda não
acontecera. Após muita insistência, o professor resolveu apelar ao Justo Advíncula, a fim de
resolver a pendenga. O dia da decisão fora marcado mais rápido do que Stélio imaginava. Talvez
por causa do seu prestigio junto aos filósofos da região. Maurício recebera a intimação mas, ao
contrário que esperado, ficou tranqüilo e não se alterou. Para ele, não havia desafio que o
intimidasse. Sua argúcia era sua arma contra temores. Aquele seria seu teste maior. Além do
mais, ter de enfrentar o sapiente e justo Advíncula era um privilégio que poucos tinham. Se
vencesse esse desafio, voltaria a atuar pela profissão pela qual tinha tanta esperança. “O digno
mestre é justo. Ele deu razão até para um pescador, por que não eu teria chances de vencer o
prestigiado Professor Stélio? Confio no meu poder de improvisação, sempre dosado pelo
argumento e pela consistência de boas razões.” No dia da sessão, aguardada por todos,
principalmente pelos ex-colegas de Maurício que esperavam por esse momento, quando dois
“experts das palavras” iriam se defrontar. A rua Monsenhor João Ivo estava repleta de
estudantes, advogados, filósofos e professores que se acotevelavam ávidos por adentrar a casa de
número 100, onde iria acontecer mais um debate de alto nível. Maurício entrou no local sob os
aplausos de seus pares. “Boa sorte, Gordo!”, gritava em uníssono a claque em favor de
Maurício.. Em seguida, chegou Stélio, como sempre, sisudo e sem ligar para as palavras de
ordem contra e a favor à sua pessoa. Em pouco tempo, a sessão começou. Como regia a praxe, a
palavra inicial foi dada ao “acusado”. “Ilustre mestre, o justo: ou eu a ganho ou eu a perco. Se
ganhar, nada tenho a pagar ao meu adversário, porque é a minha primeira causa e, segundo
meu contrato com o estimado professor Stélio, só lhe devo pagar se ganhar a primeira demanda.
Ora, se esta eu ganhar, não é possível que, saindo vitorioso, tenha que pagar alguma coisa ao
vencido. Isto seria uma contradição, aberrando contra todos os princípios da lógica. Porém, se
eu perder, ainda assim nada terei que pagar ao meu ex-Mestre, pois, segundo nosso contrato,
ficarei livre do débito se perder a minha primeira demanda. Assim, em qualquer hipótese nada
lhe devo!” Atônito, portanto, surpreso com mais uma “sessão às avessas”, o Magistrado e justo
Advíncula que comandava a “Sessão da Justiça Plena” deu a palavra ao não menos espantado
professor, que assim falou: “Digníssimo e ilustríssimo mestre dos mestres: ou eu ganho ou eu
perco. Se ganhar, é claro que meu adversário terá de pagar o que me deve, pois assim acontece
com qualquer pessoa que perde uma causa nesta privilegiada sessão que é de justiça integral:
quem perde paga ao vencedor. Entretanto, se eu perder esta causa, terá ele de pagar-me, pois é
esta a sua primeira causa e, segundo o nosso contrato, ele me pagaria as aulas assim que
vencesse a sua primeira demanda. Como vê, elevado e sapiente Mestre, de qualquer modo ele
deve ser condenado a pagar-me as aulas dadas!”. Sem saber como derrubar os dois argumentos,
que, afinal se tornaram sofismas, Advíncula deu por encerrada a sessão, pois não tinha elementos
para dar razão a este ou a aquele. Além de tudo, sua paciência estava acabando, pois já estava
farto das peripécias e do maquiavelismo humano. Mais tarde, recolhido em seus aposentos, com a
serenidade restabelecida, o justo mestre pensou: “Pela primeira vez em mais de 100 anos de
atividade ininterrupta, tive vontade de dar um corretivo naqueles incorrigíveis sofistas...”.

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