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Funari, P.P.A. ‘A Guerra do Peloponeso’. In. Mangnoli, D.

(org) História das Guerras, São Paulo: Editora Contexto, 2006, pp. 19-45.
Leão, D. F. “Licurgo: o mítico criador da constituição espartana”. In. Leão, D.F. A globalização no mundo antigo, São Paulo: Editora
Annablume, 2013, pp. 33-48.

“A Guerra do Peloponeso” compõe a obra “História das Guerras”, organizada por


Demétrio Magnoli. De autoria de Funari, o texto, dividido em 12 tópicos, traça um panorama
sobre o conflito de suma importância histórica, destacando aspectos que contribuíram para lhe
conferir tal estatuto, como as inovações no campo das estratégias militares e diplomáticas, bem
como a sua dimensão (geo)política. Objetivamente, pode ser resumida como uma emblemática
guerra protagonizada por Atenas e Esparta que ocorreu entre 431 e 404 a.C., tendo havido uma
prévia entre 460 e 455 a.C. O dimensionamento desse evento histórico está condicionado tanto
à contextualização do mundo grego e das próprias cidades-Estados que Atenas e Esparta
constituíam, como à explanação acerca da conjuntura de emergência.
O mundo grego no século V a.C. configurava-se por uma série de cidades, política e
economicamente autônomas, dispersas por uma grande extensão do território mediterrâneo que
comungavam traços culturais, religiosos e linguísticos; tendo a guerra como um importante
elemento da tradição. Esparta e Atenas, neste momento, conformavam potências com
marcantes diferenças: Atenas, cujo território havia sido recém-unificado, reunindo aldeias com
habitantes-cidadãos, organizava-se sob regime democrático e voltava-se às trocas comercias;
Esparta, sob poder oligárquico, eminentemente agrícola, militarizada, era fruto de uma
conquista de mais longo prazo da região. No início do século, houvera a luta contra os persas
(Guerras Medo-Persas) que contribuiu para a constituição de alianças militares que marcaram
a época, das quais destacam-se as campeadas por Esparta e por Atenas – contexto que ajudou a
consolidar Atenas como uma potência, sobretudo marítima (comercial e militar). No tocante às
fontes acerca da guerra, Tucídides, que testemunhou boa parte do conflito, destaca-se: “(...) por
2500 anos, um parâmetro para o tratamento do tema”. Outras fontes são citadas, como as
contemporâneas ao período da guerra que ajudam a compreender a época. Das contribuições
mais recentes, a importância das fontes arqueológicas que trouxeram novos dados sobre a
guerra e período – no tocante às dimensões econômicas, tributárias e comerciais de Atenas.
Funari passa ao evento, considerando as motivações estruturais da guerra e citando, para
tanto, Tucídides, que apontou as diferenças de regime político e de origem de cada uma dessas
sociedades. Havia um cenário geopolítico polarizado, com as demais cidades gregas aliadas a
uma ou a outra potência. Além do grande conflito, dividido em seis etapas, pauta eventos
anteriores, como a Primeira Guerra do Peloponeso e o período intermediário de (relativa) paz
que antecedeu o grande confronto, relacionando-os a aspectos como, no caso do primeiro, o
despontar das inovações atenienses (surgimento de estratégia defensiva, à busca por cidades
aliadas; a construção de muralhas de proteção); e, no caso do segundo, o momento de
consolidação daquilo que – passível de questionamento – ficou conhecido como o Império de
Atenas. A demarcação dos domínios marítimos e terrestres entre atenienses e espartanos
encontra-se mais vinculada a este cenário.
Demasiado extensa, da narrativa da guerra em si, elencamos alguns aspectos, a começar
pelo reconhecimento de Tucídides de que o seu motivo último foi o crescimento do poder
ateniense. O conflito, narrado sobremaneira sob o prisma de Atenas, é marcado, em um primeiro
momento, pelas estratégias defensivas e imperiais de Péricles, de cujas as quais, aponta para
uma consequência imprevista que afetaria o rumo da guerra: a dizimação massiva da população
ateniense, confinada na cidade para fugir ao ataque espartano nos campos, causada por uma
praga vinda com os grãos exportados. Na sequência, há o crescente acirramento das tensões
políticas internas relativas ao regime democrático adotado, chegando a haver um golpe de
Estado por parte do poder oligárquico. Outros aspectos interessantes que marcaram o evento
dizem respeito às questões geopolíticas: o fazer/minar alianças estratégicas com as demais
cidades e à possibilidade eminente de revolta daquelas sob égide do Império de Atenas que lhe
deviam tributos. Um ponto importante, nesse sentido, foi o apoio persa aos espartanos, somando
forças em dadas empreitadas. Do ponto de vista das inovações, destacam-se o mecanismo de
arbitragem (previsto em acordo de paz precedente à guerra); o surgimento do embargo
econômico, de estratégias logísticas (ligadas ao abastecimento por via marítimas). A guerra
findou com a derrota ateniense e o fim de seu Império; e teve como consequência o
enfraquecimento da instituição cidade-Estado. Funari conclui que, esta guerra, mais do que um
objeto de estudo, configura um importante dispositivo analítico acionado para compreensão dos
conflitos modernos; contribuindo, inclusive para as estratégias contemporâneas.
O segundo texto é de autoria de Delfim Leão, estudioso de história antiga alocado no
Instituto de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra, em que leciona e pesquisa.
Dedicado a pautar os ideais que serviram de sustentáculo à sociedade espartana na Antiguidade
grega, situa-se no bojo dos interesses investigativos do autor no que se refere ao direito e à
teorização política dos Gregos. Dividido em duas partes, pauta primeiro o ideário de Esparta
que se perpetuou ao longo dos séculos e seus principais elementos constitutivos; e finda com
Licurgo, dispondo como, no âmbito da tradição espartana, foi atribuído a essa personagem –
cuja existência histórica é duvidosa – à criação da Grande Rhetra, tida como a lei fundacional
da organização política e social espartana em que se ancora-se a imagem da Esparta guerreira
fundamentada na dedicação e obediência incondicionais à causa da pólis e às suas leis.
A primeira menção relevante à Esparta encontra-se na Ilíada, obra de Homero que narra
a guerra de Tróia. Nesta ficção literária, a guerra foi desencadeada pelo rapto de Helena, esposa
de Menelau, por Páris. Na obra, Menelau, rei espartano, tem um destino bem sucedido: além
de poder e riqueza, recupera Helena cuja figura consistiu em um paradigma de beleza e
liberdade sexual para mulher espartana. Essas figuras remetem à época micênica, portanto
muito anterior à Esparta como cidade-Estado; assim, ao evocá-las, evoca-se também uma
dimensão mítica. O autor pondera, no entanto, que mesmo dimensões da sociedade espartana
de épocas posteriores (da Antiguidade Clássica), são difíceis de reconstituir e estão envoltas em
dúvidas; pois, a fonte direta em Esparta foi escassa e a maior parte do que foi dito sobre ela
provém de autores de outras regiões. A despeito disso, o evento que promoveu a imagem de
Esparta no mundo grego da Antiguidade Clássica foram as Guerras Medo-Persas no início do
século V a.C., de cujo relato ocupou-se Heródoto. Para Leão, a narrativa do intelectual da
antiguidade sobre o evento, colaborou para projeção de Esparta enquanto potência militar
resultante de um modelo de educação e de uma organização política eficaz. Diz-se que, em
meio a um ambiente de muita tensão e de disputa dos persas pelo apoio das cidades gregas,
espartanos constituíram um importante núcleo no âmbito da resistência helênica. Leão atribui
à Batalha de Termópilas, conduzida por Leônidas e seus homens (nela dizimados), a
consolidação da imagem da excelência guerreira espartana, de dedicação resoluta à causa da
pólis e obediência extrema às leis, sendo as leis a que se refere aquelas de natureza inamovível
que, no contexto espartano, é atribuída a Licurgo (a Grande Rhetra). No tocante à Guerra, esta
batalha repercutiu de tal modo no moral das tropas gregas que foi determinante à sua posterior
vitória cuja batalha final foi liderada magistralmente pelo espartano Pausânias: cuja conduta
posterior, vista como boa relação com os persas, acarretou problemas diplomáticos que
implicaram no deslocamento da campanha anti-persa aos atenienses. No que compete à Licurgo
e sua atrelada relação com a imagem de ordem e disciplina espartana, Leão relativiza,
apontando para uma distância entre o postulado e a prática; porém sem diminuir a sua
importância na construção dessa sociedade e seus ideais. Recorrendo à Plutarco, que dedicou à
personagem uma biografia, Leão pauta sua possível existência histórica, apresentando aspectos
que o remetem a uma natureza mítica aproximada (do oráculo) de Apolo. Conclui, por fim, que
há uma estreita relação entre a noção de Esparta e de Licurgo, ligada a crença em uma dimensão
divinal da Rhetra espartana, tida como o documento fundacional e organizacional do Estado.
Os textos contribuem para uma visão panorâmica sobre os dois grandes conflitos da
Grécia do século V a.C. No que compete à relação estabelecida com os persas, há um pequeno
dissenso cuja causa pode derivar do enfoque: Funari aponta para uma aproximação mais
amigável dos espartanos com os persas; Leão, por sua vez, evidencia, um protagonismo dos
espartanos contra os persas no decorrer das Guerras Medo-Persas. Outro ponto interessante, e
de certo modo complementar, é que, em Leão, podemos acessar Esparta (ainda que via fontes
primárias alheias); enquanto em Funari, Atenas está sob foco. A menção à Heródoto e
Tucídides, que levam o título de genitores da História (da historiografia?), leva-nos a observar
a intrincada relação desses dois combates com o nosso campo de saber e seu processo
constitutivo. Por fim, uma indagação sobre a relação da Guerra do Peloponeso com guerras
contemporâneas, tomando em conta uma observação feita em sala. Funari aponta para o uso da
Guerra do Peloponeso como dispositivo analítico para compreensão de conflitos atuais; porém,
em que medida isso não pode ser visto como uma via de mão-dupla? Podemos indagar como
eventos contemporâneos serviram para uma revisão da Guerra do Peloponeso? (A pergunta
decorre da observação de certos aspectos do período entre guerras cujo entendimento
aparentemente pode ser melhor clarificado a partir da experiência que foi a Guerra Fria).

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