Você está na página 1de 9

O Pacto Demoníaco: A atualização fáustica em Thomas Mann

O mito1 do pacto demoníaco, em suas características mais fundamentais,


quais sejam, o evento no qual um sujeito pactário, a partir de tratativas com o
demônio e seus poderes ínferos obtém alguma espécie – ou espécies - de
benesses (financeiras, amorosas, poder político, amplitude de saber e
conhecimento, dotes físicos e intelectuais, rejuvenescimento etc.) , por um
prazo determinado de tempo, assinando com sangue o contrato em que
empenha, em troca dos bens almejados, a perda de sua alma, é dos mais
poderoso e frutíferos de toda a arte ocidental, em um leque que se estende
da arte literária, passando pela música, pelo cinema, pelo teatro etc. Com
efeito, passando por Christopher Marlowe, Lessing, Goethe, Thomas Mann,
Paul Valéry e Fernando Pessoa, além dos brasileiros Machado de Assis e
Guimarães Rosa, o mito fáustico tem ocupado as reflexões de alguns dos
maiores prosadores e poetas do cânon ocidental. Não é algo que nos deva
causar, de início, imensa espécie: a vitalidade da conformação plástica, a
inegável potência estética e filosófica do tema do pacto com o demônio, com
sua capacidade de abertura filosófica e teológica para uma amplidão de
temas dos mais relevantes, dentre os quais destacaríamos os limites do
entendimento humano e as condições éticas do emprego da técnica, das
ciências e do saber, o pensamento crítico acerca da moral, o tema da
formação da subjetividade, da transcendência, e da relação do sujeito com a
sociedade dos homens, em chave religiosa, a existência do demônio e sua

1Emprego aqui a noção de “mito”, em si mesma bastante problemática, como


explicitida por Ian Watts em seu “Mitos do Individualismo Moderno”. Cito:
“Portanto, a definição de mito com que trabalho no momento de escrever a
abertura deste livro é : “uma história tradicional largamente conhecida no
âmbito da cultura, que é creditada como uma crença histórica ou quase
histórica, e que encarna ou simboliza alguns dos valores básicos de uma
sociedade”. Cf. Watts, Ian, in op. cit., p.16.
capacidade e limites de ação sobre a vida humana, a teleologia salvífica, a
graça e a perdição, enfim, não parece excessivo afirmar que o tema fáustico
tem dimensão conceitual oceânica. Que tal amplidão temática tenha sido
desenvolvida por autores da mais elevada estatura, como Goethe, Thomas
Mann e Guimarães Rosa, parece indicar que o aspecto de iniludível
densidade do assunto parece impor uma fatura estética também, muito
elevada. Assim, o mito fáustico nos legou algumas obras-primas da literatura,
na mais admirável profundidade reflexiva e requintadíssima elaboração
formal.
Na versão atualizada de Thomas Mann do drama, ou dramas desenvolvidos
no Fausto de Goethe2, para além das dimensões filosófico-teológicas
supracitadas, e também presentes, é bom que se relembre, no imenso
romance, parece justo afirmar que um novo vetor se impõe, a partir das
determinações concretas de seu tempo; a saber, ao tentar acertar as contas
com a tragédia nacional da Alemanha – que se tornaria mundial, com a
emergência da Segunda Grande Guerra -, ou seja, a partir da eclosão do
nacional-socialismo de Hitler, o destino do Fausto moderno de Mann, o
compositor Adrian Leverkühn, aparece como inextricavelmente ligado ao de

2 A crítica tem destacado o fato de que o o Fausto de Goethe comporta, ao


menos, três grandes dramas: o drama epistêmico, ou do conhecimento, uma
reflexão acerca dos limites do que podemos conhecer (um tema muito caro à
filosofia dos séculos XVII e XVIII, e que fundamenta o pensamento de
Descartes, Hume, Leibniz e Kant, por exemplo), e recorde-se que o Fausto
de Goethe é um erudito que frequentou todo o conhecimento de seu tempo, a
medicina, a jurisprudência, a filosofia, a astronomia, a botânica – e as
chamadas ciências esotéricas, como a astrologia, a alquimia, a magia etc. -,
o embate de Fausto com o saber é, portanto, o primeiro drama no interior da
tragédia. O segundo é o drama amoroso, representado pelo destino trágico
de Margarida, que se perde dentre as tramas diabólicas de Mefistófeles. O
tema serve, inclusive, para a crítica de Goethe a um drama real e grave de
seu tempo ( e do nosso, seria bom relembrar), o das mães solteiras, que
caíam em desgraça e, muitas vezes, sacrificavam os próprios filhos; o
terceiro drama, que seria o que ocuparia, mais fortemente, a crítica
materialista, seria o do do Fausto como empreendedor, ou representante da
camada ascendente da burguesia industrial – e futuramente, de
conquistadores imperiais. No segundo Fausto, as percepções de Goethe, sob
essa ótica, são de clarividência assombrosa: Fausto quer dominar o mar, os
povos, e as pessoas, como um César do comércio e da indústria, ou um
modern capitalista de cunho marcadamente imperialista. A esse respeito,
veja-se, por exemplo, as considerações de Marshall Berman em “Tudo que é
sólido desmancha no ar”.
sua nação: o pacto demoníaco realizado por Adrian – que, por sua vez, tem
ecos na figura altamente paradigmática de Nietzsche – alegoriza, em chave
estética, a decisão politica da Alemanha e sua ruína, ao se entregar aos
poderes, igualmente infernais, do Terceiro Reich. Ainda em chave algo
pedestre, é a partir da experiência do exílio americano, em contato com
outros intelectuais europeus que fugiam da sanha criminosa do nazifascismo,
como Brecht, Schönberg, Horkheimer, e especialmente Adorno, que se
tornaria seu colaborador em seu último e grandioso romance, Thomas Mann
realizaria, para a execução de sua obra-prima, um tour de force filosófico, ao
adotar, em contraposição a seu passado intelectual de fortíssima influência
do pensamento idealista e pessimista de Schopenhauer e da estética de
Nietzsche, a teoria musical do materialismo neo-hegeliano do pensador
frankfurtiano Theodor Adorno. Assim, a eleição de um herói trágico músico,
cuja biografia se inspira, muito de perto, na vida de Nietzsche ( o estudo de
teologia, filosofia e música, o contágio com a sífilis, o adoecimento e perda da
razão etc.) revelam parte da resposta de Mann à tragédia germânica: não há
duas Alemanhas, uma boa (Goethe, Beethoven, Schiller) e uma má,
representada por Hitler, Himmler e Goebbels. Trata-se de uma mesma
Alemanha, que encontra, em si mesma, as raízes intelectuais da barbárie
nazi, a partir do protofascismo de Richard Wagner, Lutero e Nietzsche.3 Ou,
em termos mais precisos, Thomas Mann adota, em sua obra de maturidade
(“estilo tardio”, na expressão de Adorno em sua interpretação da obra final de
Beethoven, ensaio que causaria profundo impacto em Thomas Mann), o
conceito adorniano – dialética negativa, se se permite o jargão – de
“identidade do não-idêntico”, movimento lógico-conceitual não linear, que
escapa da racionalidade instrumental de matiz cartesiana: a Alemanha é,

3 Claro está, essa visão deve ser admitida cum grano salis; Wagner e Lutero
tinham, de forma inegável, traços antissemitas e reacionários; Nietzsche
jamais foi um exemplo de espírito democrático – muito pelo contrário. Isso
não implica desconsiderar a majestade da música de Wagner, a influência da
Reforma, ou a relevância do pensamento de Nietzsche, mas apenas
reconhecer neles, como faz Thomas Mann, traços de conservadorismo que, a
partir de certo desenvolvimento histórico, conduziram ao nazismo. Talvez não
seja ocioso lembrar que Wagner era objeto de devoção maníaca de Hitler, e
que Nietzsche tenha sido alçado ao infeliz posto de pensador par excellence
do Terceiro Reich.
simultaneamente, boa E má, Goethe E Hitler. Não é uma ou outra, isso ou
aquilo, mas uma E outra, diversa e idêntica a si mesma. O espírito
germânico, cujo destino4 trágico desemboca na subversão de todos os
valores humanistas de Goethe, Bach e Beethoven, na barbárie completa, no
irracionalismo, nas trevas, na guerra e na completa destruição, uma ruína
apocalíptica de tons marcadamente bíblicos, revela-se na forma do
pensamento mais requintado, da intelectualidade mais profunda, da filosofia e
da música mais elevadas. E é em tal espírito de idealização e abstração,
portanto, “musical”, que Thomas Mann localiza a causa da ruína alemã. A
Bildung germânica, orgulhosa versão nacional da Paidéia ática, parece muito
bem representada na figura solitária, depressiva, suicida e algo maníaca de
Fausto em seu quarto de trabalho, cercado de livros, mapas e instrumental
alquímico. Ao se voltar para si mesmo, ao ter como único objetivo a
autoafirmação e constituição do caráter individual, o movimento egoico de
Fausto tem, como contraparte, a perda de toda a relação com a sociedade
dos homens, com a comunidade, na expressão de Drummond, da “praça dos
convites”. Entregar-se aos poderes demoníacos, nessa chave, é, portanto,
tornar-se um ser puramente ideal, transitar nas elevadas esferas do Conceito
e do Pensamento, ser, em outras palavras, exclusivamente “musical”: a
música, segundo Schopenhauer, uma das maiores influências do jovem

4 “Destino” deve ser tomado, aqui, não ao pé da letra, como uma


determinacão histórica inescapável. A categorização semântica precisa se
faz necessária, pois justamente parte da intelligentsia alemã se valia, para se
eximir de responsabilidade, da ideia trágica de um “destino inelutável”. Não
parece ser a resposta de Thomas Mann ao que ocorreu com a Alemanha: se
a história germânica, essencialmente de uma vida intelectual, espiritual, de
uma nação dedicada ao pensamento, tem em seu seio vários representantes
de caráter protofascista, deve-se notar que a adoção do Terceiro Reich foi
uma escolha. Hitler não foi eleito, e sim indicado por Hindenburg para o cargo
de chanceler ( a partir de fortíssima pressão popular, destaque-se). A partir
daí, alçou-se ao poder supremo por intermédio de uma série de plebiscitos,
sempre com imenso apoio da população. Os nazistas chegaram ao
Reichstag a partir do voto. No caso de Adrian, também cumpre notar, o pacto
é elegido por livre vontade. Tal tem de ser o caso, já que o pecado e a queda
parecem ser uma possibilidade apenas num regime de livre-arbítrio ( a
questão teológica nos levaria muito longe, mas isso parece ser suficiente no
caso da obra de Thomas Mann; numa perspectiva calvinista radical, por
exemplo, as ações não importam, já que é salvação depende, unicamente,
da dispensa divina da Graça. Mas isso nos levaria muito longe da discussão).
Thomas Mann, é a arte mais pura dentre todas, já que não tem nenhuma
pretensão mimética; a música, segundo Schopenhauer, não representa nada
de exterior a si mesma, não faz nenhuma referência ao mundo externo ou
objetivo, ela é, completamente, em si, ou seja, pertence apenas ao plano da
ideia. É nesse sentido que Thomas Mann relê o pacto de Fausto e sua
versão atualizada, a partir da figura de Adrian Leverkühn- Alemanha: seres (e
nação) puramente do plano ideal e abstrato, eles perdem sua alma no
instante mesmo em que se entregam ao campo exclusivo do Espírito, e ao
renegar os traços efetivos com a comunidade e as pessoas. É curioso notar
que essa resposta de Mann ao drama histórico e intelectual encontra
respaldo na moderna psicologia e psiquiatria: o movimento de introspecção
radical, de caráter egoico, e a cisão radical com a vida social impedem,
contraditoriamente, o próprio projeto de formação do sujeito. É o atalho mas
seguro para a depressão e a psicose (que parecem traços comuns às
personalidades de Nietzsche, Fausto e Adrian Leverkühn). O predomínio da
espiritualidade pura, da alma musical, do etéreo plano do conceito, parece, a
partir dessa perspectiva, especialmente favorável ao avanço do
irracionalismo místico representado, por exemplo, pela politica de caráter
fascista. Ao se dissolverem os laços comunitários, ao apostar todas as fichas
na especulação e na esfera rarefeita da metafísica, a alma “musical” parece,
portanto, infensa aos reclamos da solidariedade e da piedade ( que não seria
demais relembrar, são consideradas, por Nietzsche, como exemplos de
tibieza de caráter, “espírito de rebanho”, e representações da moralidade de
fracos, ética de “judeus e cristãos”.); o espírito “musical de Fausto e Adrian
Leverkühn é, portanto, o mesmo que forma, evidentemente que em chave
muito rebaixada, e propriamente de potência demoníaca, os desvarios
racistas e imperialistas de Hitler.
Na versão goethiana do pacto, parece de fundamental importância o tema da
aposta, que inexiste na obra de Thomas Mann; em Goethe, o drama pessoal
de Fausto, dentre as outra acepções que vimos citando, é representação, em
escala reduzida, de um importante vetor teológico ( e teleológico, parece
justo aduzir): Deus e Diabo apostam acerca da capacidade de resistência de
Fausto à sedução infernal. O elemento de sedução no Doutor Fausto parece
de outra natureza: as diversas aparições do demônio, que se transfigura com
base em variadas personagens do romance, surgem como um empresário
musical, um critico de arte (inspirado, comicamente, em Adorno) etc. Não
parece injustificado afirmar que as seduções demoníacas percebidas por
Adrian Leverkühn são as do mundo do comércio da arte, e da esfera pura do
pensamento – o pecado mortal de Fausto-Adrian-Alemanha, como temos
insistido -; assim, de um modo algo bárbaro, Adrian Leverkühn é seduzido
pelo modo de produção capitalista e pelo mundo puro do irracionalismo e da
metafísica, que parecem ser as chaves, na leitura de Thomas Mann, da
tragédia alemã; Adrian mimetiza, em seu percurso de adoecimento e loucura,
o mergulho do espírito alemão e sua decadência do luminoso humanismo de
Goethe e Beethoven no irracionalismo niilista do Terceiro Reich. Cumpre
relembrar que a cantata final de Adrian Leverkühn, as “Lamentações do
Doutor Fausto”, constituem-se como a negação antitética da obra de
Beethoven. Se a Nona Sinfonia de Beethoven se conclui, em seu quarto
movimento, com a “Ode à Alegria” de Schiller – o que representa o ápice do
humanismo ilustrado alemão – a cantata de Leverkühn apresenta, a partir da
forma dodecafônica tomada de empréstimo ao modernismo de Schönberg,
gritos infernais que emulam o sofrimento dos torturados nas porões da
Gestapo.
“Eu devo reconhecer com pesar que quando era mais jovem partilhei esse
perigoso hábito do pensamento alemão que considera a vida e o intelecto, a
arte e a politica como mundos totalmente separados”, afirmaria Thomas
Mann em uma série de conferências sobre a democracia, em seu exílio
americano. A partir da leitura da “Filosofia da Nova Música” e da “Teoria
Estética” de Adorno, Thomas Mann reconheceria que a ideia de arte “pura”
não faz sentido, e que esse hábito do idealista “espírito alemão” era, em suas
palavras, “perigoso”. É essa cisão radical entre a esfera do pensamento e o
mundo das coisas, a realização estética e a prática política e a vida em
comunidade que constituem a causa da queda de Fausto e de Adrian-
Alemanha.
No final do Fausto de Goethe, o personagem, por fim e por obra da Graça, é
alçado aos céus. O arrogante erudito e alquimista, o médico que mais matou
que curou durante o advento da Peste Negra, o industrial que condena
idosos à morte e se compraz com a luz do maquinário à noite acaba, por fim,
por receber o perdão e enganar os ardis de Mefistófeles. No Doutor Fausto
Adrian não se redime, a não ser por intermédio da realização estética: sua
obra-prima, fruto da dor e da insanidade, é arrancada de sua existência
miserável e solitária: a condição para o pacto, a partir do qual Adrian
receberia poderes excepcionais como artista, é, como se sabe, que o
compositor não pode amar. Sua existência deve ser, permanentemente, fria –
topos que seria recuperado por Guimarães Rosa, em seu Grande
Sertão:Veredas: Riobaldo, um jagunço fáustico, ao fazer o pacto com o
demônio nas Veredas Mortas, recebe uma lufada de ar, e uma sensação
terrível e inexplicável de frialdade), e ao amar o menino Nepomuk5, Adrian o
conduz à doença e à morte, o que se amplifica o seu martírio. Em Adrian
Leverkühn, a esfera da música, embora formalmente autônoma – segundo a
formulação da filosofia adorniana – retira seus elementos do mundo concreto
das coisas. Uma realização feliz, uma completude de uma missa de Bach ou
de uma sinfonia de Beethoven não fazem mais sentido em contexto histórico
de barbárie. “Não se podem mais fazer poemas líricos depois de Auschwitz”,
na afirmação provocativa de Adorno – que seria revista posteriormente, a
partir da poesia de Paul Celan, uma lírica que, precisamente, se debruçava
sobre o evento do Holocausto – ou seja, a música final de Leverkühn se
configura, a partir da ideia de estilo tardio, como uma obra erigida a partir de
ruínas. Ruínas da Alemanha, escombros do pensamento, avanço da barbárie
e da desumanidade, é a partir desse momento histórico concreto efetivo que
os lamentos infernais da cantata de Leverkühn são, ao mesmo tempo,
realização estética suprema e documento histórico de barbárie. Que nunca
existem em separado, como destacaria Walter Benjamin em suas célebres
teses sobre a História. O anjo da História da gravura de Paul Klee é
inapelavelmente enviado ao futuro, mas seus olhos se voltam e contemplam

5 A questão da onomástica num romance tão refletido e cuidadosamente


refletido como o Doutor Fausto é da maior relevância: o nome Nepomuk, por
exemplo, ecoa o compositor Johann Nepomuk Hummel e o estilo barroco da
igreja de São João Nepomuceno. Os nomes não têm, na maioria das vezes,
nada de gratuito, como por exemplo o narrador, Serenus Zeitblom, o
humanista que é, portanto, “sereno”, e cujo sobrenome significa “florescer do
tempo”, a partir de “blossom” e “zeit”.
as ruínas do passado, as pilhas de corpos sobre os quais se edificaram a
cultura e os impérios.
Há, portanto, no final do Doutor Fausto, uma réstia de esperança, uma
fímbria de positividade – como sabemos, Mann exibia o manuscrito a Adorno,
que na maioria das vezes o considerava “positivo demais”-, qual seja, mesmo
a partir da dor mais profunda, dentre os escombros da civilização e da
catástrofe dos valores da civilização, a obra de arte se realiza. A poesia de
Celan existe, apesar de ser retirada da dor incomensurável, e de ter de se
expressar em tom hermético, uma vez que deve, precisamente, expressar o
que não pode ser dito, enunciar o horror absoluto, que, por definição, se
apresenta como inominável, para além da linguagem – “minha língua
materna é a língua dos assassinos de minha mãe”, no poderoso verso de
Celan -. A cantata final do Doutor Fausto, se é representação ingente dos
poderes infernais é, ao mesmo tempo, afirmação positiva do espírito humano.
A nota de esperança, muito tímida, ressurge a partir da capacidade do
espírito humano de realizar a arte mesmo a partir do sofrimento impensável.
Temos, portanto, uma versão muito reduzida e negativa do humanismo solar
e acrítico, repleto de ingenuidade de um Settembrini, em seus infindáveis
debates com o jesuíta (comunista) Naphta (Lukács). A história recente, para
Thomas Mann, recua as fronteiras do humanismo mais ingênuo, e o papel do
artista, sua função ética, como artista consciente e crítico, parece,
inexoravelmente, passar por um acerto de contas com as potências infernais
do século.
Que o Doutor Fausto seja, simultaneamente, reflexão filosófica sobre a
Estética e sobre a catástrofe do século XX, romance de formação e
pensamento sobre a filosofia da História, só concorre para elevar nossa
admiração pela obra assombrosa da maturidade de Thomas Mann. Como
Adrian Leverkühn, Thomas Mann enfrenta os poderes de Mefistófeles, as
potências negativas e destruidoras da barbárie, e nos apresenta um romance
total, misto de filosofia e narrativa, de fábula e pensamento, de documento
histórico e humor ferino. Dando adeus à ideia romântica da arte puramente
espiritual que ignora seu tempo, a obra final de Thomas Mann enfrenta a
história, e ouvimos, dentre os acordes da cantata do Doutor Fausto, a
engenharia sinistra da tortura e da barbárie. O destino da Alemanha é aquele
da civilização ocidental, ou seja, de todos nós. E, nesse universo de horror e
destruição, rebrilha a luz, muito tímida, mas real, do poder do espírito
humano.

Você também pode gostar