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A ILHA DE KANT 1

Luís GRECO
Dr. Jur., LL.M. Universidade de Ludwig Maximilian, Munique, Alemanha.

SUMÁRIO: I. Avistando a ilha -li. A ilha c o imperativo categó-


rico- III. Retomando à ilha-IV. Tentando sem sucesso zarpar
da ilha- V. Dando adeus à ilha: I. O argumento da assimetria:
2. O argumento de coerência- VI. Resumo.

I. AVISTANDO A ILHA

Juarez Tavares não é apenas um penalista, mas um penalista crítico,


que entende o direito penal essencialmente como uma crítica jurídica da
pena. 2 Nada mais apropriado, portanto, do que dedicar-lhe um estudo que se
esforça por refletir criticamente sobre a mais célebre c intrigante tentativa de
legitimar apena-o rctributivismo- e, principalmente, sobre a crítica a ele
dirigida.

' Agradeço aos amigos Pro f. Dr. José Milton Peralta, Alaor Leite (LL.M.) c Adriuno Teixeira
pela sua generosa ajuda.
2
Cf., principalmente, TAVARES, Teoria do i11justo penal, 2.• ed., Belo Horizonte, 2002, p.
IX, 159 e ss.: idem, Teoria do crime c11/poso, 3." ed., Rio de Janeiro, 2009, p. 5.

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Entender-se-á por retributivismo a tese segundo a qual a pena se legi- espanhola, italiana e portuguesa considera a teoria da retribuição não apenas
tima por razões dejustiça. 3 Chamei essa tese de célebre, porque defendida, ao errônea, mas sequer merecedora de discussão, «cientificamente insusten-
menos nominalmente, 4 por grandes nomes, como, nos séculos XVII e XVIII, tável». H Isso significa que, a rigor, deveria dispensar-se à teoria da retribuição
pelos filósofos KA1'<T c HEGEL; no séc. XIX e início do séc. XX, pelos repre- o mesmo tratamento que o astrônomo dispensa aos horóscopos.
sentantes da escola clássica italiana, como CARRARA e Rosst, e da escola clás- Não cuidarei de todos os aspectos da tese retributivista. No prcseme
sica alemã, como BtNDING e BEUNG; c no séc. XX por autores como WEI.ZEL estudo, quero refletir apenas sobre o famoso <<exemplo da ilha» formulado
c BElTtOL. Mas o rctributivismo é igualmente intrigallte, porque se trata de por KANT. K,\NT imagina uma situação em que uma sociedade está a ponto
uma teoria cujo enorme apelo intuitivo- pois o que há de mais natural do de deixar de existir- os habitantes de uma ilha se decidem por abandoná-la
que justificar a pena a partir de considerações de justiça?- contrasta com a e por espalhar-se pelo mundo- e afirma que, ainda assim, a justiça exigiria
má reputação de que goza aos olhos de boa parte da doutrina moderna, espe-
a execução dos últimos assassinos, independentemente do fato de que dessa
cialmente na comunidade científica que integramos, que é a de língua alemã, punição não pudesse decorrer qualquer ganho social. 9 A repercussão desse
espanhola, italiana c portuguesa. Se é verdade que seja possível observar o exemplo não foi, porém, das melhores. No geral, ele parece ser visto como
que já se chamou de um «renascimento da teoria da retribuiçãm>, 5 do qual são uma das mais inaceitáveis consequências do retributivismo, como uma
representantes, na atualidade alemã, autores de inspiração idealista, como reductio ad absurdum dessa teoria.
NAUCKE eM. KOI-ILER, 6 e se também é verdade que no mundo anglo-saxônico,
:em que a discussão sobre os fundamentos do direito penal é travada mais Não a despeito disso, mas justamente por isso, creio adequado retomar
entre filósofos do que entre juristas, a retribuição nunca tenha perdido a sua ao exemplo e fazer dele o ponto de partida de algumas reflexões. Tentarei
majestade. 7 o fato é que a posição standard na comunidade científica alemã, demonstrar que a ilha de K,\NT tem muito mais força argumentativa do que
em geral lhe foi reconhecida, e que ela representa um verdadeiro e não supe-
Com essa dcfiniçilo GRECO. U/Jrndig<'S und Tolrs in Fcuerbachs Slrafthcoric. Bcrlin. rado desafio para a postura dominante. Se nem mesmo nosso rechaço ao
2009. p. 458. mais inaceitável corolário do rctributivismo conta com bases firmes, com
• Porque muitos dos autores auto-denominados c predominantemente considerados muito maior naturalidade se poderá questionar se sabemos por que razões
rctributivistas talvez tenham defendido teorias bem próximas das teorias do tradícion~l recusamos o retributivismo.
campo advcr~ário. que justifica a pena niio por razões de justiça c sem de ganhos sociais
(em especial. prcvcnç~o de delitos) ~ esse é seguramente o caso de BtNPlr-.'G. Grwrdriss des Para evitar mal-entendidos, esclareço que nada do que digo significa um
cleuudzen Stra/rt•clrts. r\1/gem<"im•r Tei/, 8.' cd .. 1913, p. 227 c s.: Bat:o.-a, Gnmd~iige tlt's posicionamento em favor do retributi vismo. Quero apenas demonstrar que a
Slmjreclu.,·. I t.• cd .. TObingen, 1930, p. 5; idem, Die Verge/trmgsidee 1111d ihre Bcdcuumg
fiir das Stmfrechr. Lcipzig, I908, p. VIl, VIII s .. l ss., 36, 43, 49 s. c WEt.zEL, Das dcrrtsche crítica a ele dirigida é, em parte, inadequada, de modo que o anti-retributi-
Strafreclrt, [ !.' cd.. Bcrlin. I 969, p. I c ss .. 238 c ss.). Há quem diga, assim. que esses autotcs vista, isto é, aquele que não justifica a pena reportando-se a considerações
scri~m falsos rctributivistas (referências em GREco, Lebendiges, p. 463 nota 1069). Preferi. em de justiça, to tem de refletir a respeito de quais as verdadeiras razões de seu
trabalho anterior, propor um conceito amplo de retribuição, capaz de também compreender
essas posturas (GRECO, Lebt•11diges, p. 462 c ss.). O presente estudo, porém, cuidará apenas do
rctributivismo no sentido mais estreito de uma teoria que justifica a pena por razões de justiça e ss.); J. MuRPHY, «Marxism and Rctribulion», in: Plrilosoplry & Public Affairs 2 (1973),
e que atribui à justiça um comcúdo não conscqucncialista (meu rctributivismo deontológico p. 217 c ss. (238): c principalmente M. MooRE, «Cioset Rctributivlsm», in: Plucing 8/mn<'.
ou autêntico. GRECO, Lebemliga. p. 463. 465). As teses dos ,.falsos rctributivistas», ponanto, Oxford, 1997, p. 83 c ss.: idem. «Thc Moml Wonh of Retribution», no mesmo volume, p.
não serão objeto do prcscmc estudo. 104 c ss.; idem, «Justifying Rctributivism», no mesmo volume, p. !53 c ss., autor do qual nos
1 ScHG:o."E~IA:o."N, «Aporicn der Strafthcorie in Phi!osophie und Litcratur», in: PRtTTWtTZ etc. ocuparemos mais detidamente adiante.
(coords.), Festsclrrift fi ir Liidcrsseu, Badcn-Badcn, 2002, p. 327 c ss. (p. 332 c ss.). • RoxtN. Strafreclil. Allgem<'itrer Teil. 4.' cd .. Mllnchcn, 2006, § 3 n. 8: já anteriormente
" N,\UCKE, «Kants Strafthcoric», in: Ober die Zerbrcch/ichkeir des rcclrt.~.wwrliclren «Sinn und Grcnzcn st~at!ichcr S!mfe», in: Stmfrec/rrliclre Gnmdlagenproblenw, Bcrlin!Ncw
Strafreclus, Badcn Badcn. 2001. p. 76 c ss.; idem, Die Wechse/wirkung zwisclren Slru/zid wul York, 1973, p. I c ss. (p. 5).
Verbn•clu•nsbegriff, Stuttgart, 1985, p. 180 c s., 196; M. Kmn..ER, Obcr den Zusammenhang " KA:\T, Dic Mclapliysik der Sill<'/1, 1797, p. A 19918 229 (edição Akademie Ausgabc,
t'on Stmfrec/mbegriindrmg mui Strafzrmressrmg, Hcidclbcrg, 1983. p. 33 c ss.. p. 37; idem, Bcrlin, vol. VI, p. 333).
10
Strafrcclu, Allgmreiner T<"il. Bcrlin etc.. I 997, p. 48 ss. O anti-retributivista poderá tanto justilicar a pena com base em outras considerações, não
' Por ex. FLETCHER, «Utilitarismus und PrinzipicndcnkcnimStrafrccht», in: ZStW [OI (1989). referidas à justiça, como razões de conveniência, caso em que ele poderia ser denominado
p. 803 c ss. (p. 803 ss., 810, 813 c ss.); GoLPMAN, «Toward a Ncw Thcory o f Punishmcnt», in: conscquencialisra ou (se essas razões de conveniência se referirem à prevenção de delitos,
Law & Philosoplry I ( 1982), p. 57 c ss. (59 c s.); HA~li'TON, «A Ncw Thcory o f Retribution», como é em geral o caso), prel'l'lltivi.Ha; ou recusar que a pena possa ser justificada por
in: F!!EY/MoRRtS (cds.), Liabilityand Rcsponsibilily, Cambridge u. a., 1991, p. 377 c ss. (384 quaisquer tipos de considerações, caso em que ele poderia ser denominado abolicionista.
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rechaço ao retributivismo. Tentarei, ao fim do trabalho, pelo menos insinuar um dos «estranhos resultados>> do retributivismo, 13 como prova de «lógica
qual talvez a razão verdadeiramente decisiva. impiedosa>> dessa posição. 14• 15
Poucas linhas antes do exemplo da ilha, declarara KANT que a pena é um
li. A ILHA E O IMPERATIVO CATEGÓRICO imperativo categórico, 16 o que também foi predominantemente recusado. O
"Mesmo que a sociedade civil fosse dissolver-se com o consenso de suposto imperativo categórico não passaria de uma afirmativa injustificada,
todos os seus membros (por ex., o povo que habita em uma ilha decide dnescrutáveb>, 17 fruto de uma confusão entre legalidade e moralidade, 18 ou
separar-se e espalhar-se por todo o mundo), o último assassino que se encontra mesmo entre direito e teologia. 19
preso ainda teria de ser executado, para que a todos lhes seja imposto, aquilo
que por seus fatos eles merecem, e para que a culpa pelo derramamento Ill. RETORNANDO À ILHA
de sangue não permaneça apegada ao povo, que não insistiu nessa punição;
pois esse povo poderá ser considerado partícipe dessa violação pública da Ainda assim, creio que valha a pena retomar à ilha. Porque nesse
justiça>>Y Comecemos nossa reflexão polindo o exemplo, isto é. excluindo exemplo se manifesta uma ideia potente, que KANT, ao que parece. não
aquilo que ele tem de acessório c que turva nossa capacidade de perceber sua conseguiu comunicar aos seus leitores. Tentarei demonstrar que é possível
verdadeira força. Não interessa. aqui, que i(;\NT se refira à pena de morte; dar uma nova interpretação ao argumento da ilha, que permitirá reformulá~lo
pensemos numa outra pena qualquer. Tampouco interessa que os diversos de modo que essa idcia potente se tome manifesta.
membros da sociedade dissolvida, autores, vítimas ou terceiros, possam no O exemplo da ilha é entendido predominantemente como uma ilustração
futuro ver seus caminhos se cruzarem, ou relembrar os fatos, ou mesmo se do retributivismo. Parece-me também possível entendê-lo de forma diversa:
sentir motivados a cometer delitos na nova sociedade em que vivem. na espe-
rança de que também ela venha, algum dia, a dissolver-se. Imaginemos, pelo
u REEI'>fTS).!A, Dos Reei// des Opfers o1tj di e B,•strafimg dcs Tiilers- ais Probiem, MUnchcn,
contrário, que se trata de uma ilha tão pequena em um mundo tão grande, que 1999, p. 21.
exista uma probabilidade segura de que cada amigo habitallte da ilha possa " NEUMANN, «Dimensioncn der Strafgcrechtigkcit>>, in; L1UfNf:UMANN {coords.), Gerech-
recomeçar do zero. pouco importando o que antes fez, lhe foi feito. ou sabe tigkcit- nworie und Praxis, Badcn Badcn. 2011, p. tl7 c ss. {117).
que outro fez. Nesse mundo não há registros, não há noticiário internacional,
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Críticos, ademais, BELING, Vergelmug.ddec, p. 49 f : RoxJN, Sinn rmd Gren~cn, p. 17:
d 1AKOBS, Staat/iche Strafe: Bcdcrmmg und Zweck, Padcrbom, 2004, p. 13. KLUG, «Phllnom-
não há internet. enologischc Aspekte der Strafrcchtsphilosophic von Kant und Hegel», in: Fes/schrift fi ir G.
Como todos recomeçarão do zero, o exemplo da ilha traz três implica- Husser/, Frankfurt a. M., 1975, p. 212 c ss. (228 c ss.), acusa o exemplo até de conter uma
contradição lógica, c LAMPE, Strafphilosophie, Ktlln etc .. 1999, p. 13 n. 9, qualifica a teoria da
ções. Primeiro, ninguém, nem individual, nem coletivamente. ganhará nada pena de KANT, pela solução que dã ao exemplo da ilha, de «Ultrapassada».
se a pena for imposta. Em segundo lugar, ninguém, nem individual, nem 16
l<A.\T, Metapllysik der Sit1e11, p. A 196/B 227 (Ak. Aos gabe, p. 33 t).
coletivamente, perderá nada se a pena não for imposta. Por fim, pelo menos 17
Assim jã os contemporâneos ÜROL~lAN, Ueber di<- Begrlindrmg des Strafrechts und der
uma pessoa perderá algo se a pena for imposta, a saber. a pessoa que for Strafgesetzgebrmg, GicBcn, 1799, p. 219, c HENKE, GrundrijJ einer Geschiclue de,t dcutschen
peinlichetl Rec/1/s wul der peinlici!C/1 Recluswissensclmft, vol. 11, Sulzbach, 1809, p. 363,
punida. que, usando as mesmas palavras, falam em um incscrutãvcl («oncrforschlich») imperativo
Assim postas as coisas, parece compreensível porque o rechaço ao categórico; posteriormente Hr:PP, Darstciirmg mul Be11rthci/uug tler dewschen Srrafreclus-
Systeme, 2.' ed., Bd. I. Heidclbcrg, 1843, p. 72, 79; Blt-iDING, Gnmdriss, p. 214: H. MAYER,
exemplo da ilha lenha sido tão difundido. Para dizê-lo em termos economi- «Kant, Hegel und das Strafrcchh>, in: Boci.:ELMnK:-</A. KAUF~!AN:O.'!KUJG (coord.), Fcstschrift
cistas. punir num caso em que ninguém é beneficiado e uma pessoa é preju- fi/r Engisch, Frankfurt a. M .. 1969, p. 54 c ss. (S. 73 c ss.); STII.!õ<''G, «Schu!d, Vcrgcltong,
dicada, apesar da alternativa de não beneficiar nem prejudicar ninguém, é Gcncra\prllvcntion», in: ZStW92 {1980), p. 639 c ss. (640 n. 9).
uma conduta marcadamente anli-paretiana, 12 ou em termos mais cotidianos. •a SALOMON, «Kams Strafrccht in Bezichung zu sei nem Staatsrccht>>, in: ZSr\V 33 ( 1919), p.
1 c ss. (p. 24): idem, «Kant unddic Strafrcchts\chre», in: MSchrKrim 15 (1924), p. 171 c ss.
é fazer o mal pelo mal. Não é à toa que o exemplo da ilha foi entendido como (171, 173); CATIANEO, Dignilli wuam1 e pena IWilafilosofia di Kam, Milano, 1981, p. 302, 306,
315: MocctA,ll diriuo pena/e tra cssere c \'a/ore. Napoli, 1992, p. 45: BECcm, «Vcrgcltung
und Pr:ivention, halienischc Aofkl:irung und dcotscher Idealismos im Vcrglcich», in: ARSP
" KA:-o.T (como a nola 8). 88 (2002), p. 549 c ss. {p. 556).
" Uma condum é entendida como parcto-cficientc quando ela melhora a situação de pelo ,·::
10
menos uma pessoa. sem piorar a si1uação de nenhuma (por todos PosNER, Economic Anaiysis ·i~·. HAAS, Strajbegriff, Sraatsverstlindnis 1111d Prozessstmkmr. TUbingcn, 2008, p. 185 c ss..
oji.lJw, 7." cd .. Ncw York, 2007, p. 12). :'fi\ com ulteriores referências à nota 91.
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como confirmaçclo do retributivismo c conscquente redução ad absurdum da menos uma pessoa perde algo com ela. O essencial é perguntar se em um
posição contrária, que não puniria nesse caso. O exemplo da ilha teria, com caso como esse, ainda consideramos correto punir.
base nessa nova interpretação, a mesma função do exemplo que l<r\NT apre· Michael MOORE, que propõe uma leitura de K,\NT bastante similar,
sente ainda no mesmo parágrafo, do indivíduo que tem a sua pena comutada responde a esta pergunta de modo decididamente afirmativo. 25 - 26 Ele formula
porque aceita ser objeto de experimentos medicinais.w Parece-nos intuitiva- o que ele chama de «exemplos como o da ilha)), com a finalidade de confinnar
mente claro que a pena não pode variar em função de estar o autor de acordo "-'"''
que a retribuição apresenta um valor moral intrínseco. 27 Um desses exemplos :~- v.
ou não com essas experiências, o que provaria que a pena é uma questão de
justiça, e que a conveniência pertenceria a um mundo diverso. Minha tese
8
é o do estuprador Clumey/ que após um acidente perde completamente aJ ."5--.? "
libido, de modo que está excluído qualquer perigo de que ele venha a repetir f -:
exegética é a de que KANT tenha suposto que seus leitores teriam intuições o fato. Necessidades preventivo·especiais seriam, assim, inexistentes. Além ;:; ~
similares no que se refere ao caso da ilha. Só o retributivismo seria capaz de
explicar por que consideramos intuitivamente corr'eto punir também nesse
disso. seria possível simular uma punição, de modo que a sociedade acre- E
ditasse que Chaney está, de fato, sendo punido, o que inclusive acarretaria ··
caso. custos menores do que a real punição. Assim, tampouco haveria necessidade b
)
Aqui, porém, como prova a repercussão do exemplo, KANT parece ter se preventivo-geral de punir. O que dizem, porém, nossas intuições? Julgarí-
enganado, avaliando erroneamente as intuições morais e jurídicas do público amos correto deixar Chancy impune? A maioria das pessoas a quem narrei
leitor. Mas esse engano sequer teria de ser atribuído a uma suposta falta de esse exemplo -pouco importando se de origem europeia, sulamericana ou
senso prático de um filósofo que leu demais, podendo ser explicado já com asiática -considera que há algo errado em deixar Chaney impune. MooRE
base naquilo que acima mencionei como a razão do caráter intrigante do diz que quem assim pensa é um «retributivista no arrnárim) ("closet-retribu-
retributivismo: o fato de que o senso comum o acolhe, enquanto a doutrina tivish))- e insta a que essas pessoas saiam do armário e assumam sua iden-
jurídica, especialmente a atual, mas também a da época de KANT, o rechaça. tidade.29 MoORE menciona outros exemplos, e não parece difícil acrescentar
Para usar um tenno técnico: o exemplo da ilha foi uma tentativa, infeliz, alguns mais à lista. 30 Talvez boa parte das situações que, especialmente no
é verdade. de fonnular um chamado argumento transcendemal, isto é, um direito penal internacional, se discutem sob o impreciso e emocional termo
21
argumento que responde a uma pergunta de estrutura «Como é possível x?>> da impunidade, tenham estrutura similar ao de casos da ilha.~ 1
Enquanto a Crítica da Razão Pura desenvolve o argumento transcendental
que explica como a matemática e a física são possíveis, 22 e a Crítica da Razão MooRE vai além. Ele declara que quem estiver disposto a deixar de
Prática explica como é possível o agir moral, n-u a tese da pena como um punir, ao contrário do que se poderia supor, dá provas não de ser uma pessoa
imperativo categórico pode ser entendida como o argumento transcendental livre de ressentimentos, mas sim da própria indiferença diante do valor da
que explica como é possível que seja moral e juridicamente correto punir em
casos em que ninguém nada ganhe com a punição. " M. MooRE, Closet Rt•tribmil"ism, p. 99: idem, Justifying Rerri/mtivi.,·m, p. !55.
: 6 Omr:rs respostas afirmativ:ts: MMJRACH, Deutsches Strafreclu, Aligemeiner Teil, 4.' Auf\.,
Com isso, o essencial não é nem mesmo a ilha, mas o fato de que todos Kar!sruhc, 1971. p. 77. reportando-se, estranhamente, aos efeitos social-psicológicos dessa
os envolvidos, autor, vítima e terceiros, tenham a possibilidade de recomeçar punição (pergunta-se: em que sociedade, em que psique. já que a sociedade dci;o;:ará de c;o;:istir?);
tudo do zero, de modo que se apresentem os três corolários acima identifi- ZAC"I.\"K, Rainer: Sta.al uml Strafe - Ilcmcrkungcn zu dem sogcnannten "lnselbcispicl" in
Kams Metaphysik der Sincn», in: LM>PWEHR (coord.), Freilwil. G/eichlwit. Selbitstündigkeit,
cados - ninguém ganha nada com a pena, ninguém perde nada sem ela, ao GlJttingcn, 1999, p. 73 c ss. (p. 77, 85); HAMPTON. Rerribmion, p. 404; Ál.TENIIAIN, «Dic
Bcgrllndung der Strafe durch Kant und Feucrbach», in: Gec/iichmisschrift fiir Roi[ Keller,
:<J Kr\t-.T (nota 8), A l97/B 227: Akademic Ausgabc p. 332. Tllbingcn, 2003, p. l e ss. ( 12); Ft.ETCHER, Tlw Grammar of Criminal Law, Bd. I, O;o;:ford,
:t Mais dctalhadamentc em especial R. STIORN, «lntroduclion», in: STERN (coord.), Trmuceu- 2007, p. 204 («igualdade entre vílimas» ).
ll M. MooRE, Closet Retriblllil'ism, p. 83 c ss.: idem, The Morai Worth of Retribltlion, p. 104
deutal Argmueuti. Probienr.ç and Prospects, Oxford, 1999, p. I c ss. (p. 3 c s.).
:!> KANT, Kritik der rl'inen Vemwift, 2." cd. 1787, Akademie Ausgabe vol. Ill, p. 28 c ss., c ss.; idem, Justifying Retributi1-ism, p. !53 e ss.
39 e ss.: idem, Pro/egomena :;:u einer jede11 kiinftigen Metaplrysik. die ais Wissenschaft wird Z~~ M. MooRE, Cioset Rerriblllil'ism. p. 100 c ss.: idem, l11stijying Retribwivism, p. 163.
19 M. MooRE, C/oser Retrib!llit'iim, p. \03.
miftreten kOnnen. 1783, Akadcmic Ausgabe vol. IV, p. 280 e ss., 294 e ss.
ll KA~>oT. Kririk ele r praktisc!Jen Vermuift, 1788, Akademie Ausgabc vol. V, p. 19 c ss. "' M. MooRE, Justifyiug Retributi1•ism, p. 163. Talvez - mas não estou seguro - pode-se
:• Uma tal interpretação de KANT C: avançada igualmente, pore;~;., por AMERIKS. «The Connnon pensar aqui em casos de criminosos de guerra nacional-socialistas, que assumiram novas
Ground of Kant's Critiques», in: lnrerpreting Kant's Critiques, Oxford. p. I e ss. (4 c s.). identidades e há décadas vivem como cidadãos c;~;cmp\arcs.
1' Em breve dedicarei um estudo e5pecrtico à análise desse termo.
Crftico, porC:m, HOFfE, lmmmmel Kam, 5.' ed., MO.nchen, 2000, p. 102 e s.
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vítima. 32 Esses exemplos siio narrados não apenas na terceira pessoa, mas se recusa o retributivismo. Como o que nos interessa, em última análise,
MooRE também se pergunta qual seria nosso juízo se fôssemos nós o autor também são essas razões, o exemplo da ilha nos coloca na posição ideal para
dos crimes em questão. MooRE responde que, provavelmente, nos conside- submetê-las a um exame crítico.
raríamos culpados e, portanto, merecedores de pena. Essa reação deriva, L A primeira e mais natural das respostas, que ainda não chega a
contudo, do fato de nos considerarmos pessoas responsáveis. Sendo assim,
aceitar que um terceiro como Chaney pennaneça impune niio é generosidade,
comprometer-se. ao menos explicitamente, com as razões antí-retributivistas,
consistiria em redescrever as situações, questionar aspectos empíricos nos
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··:·
e sim arrogância, pois significa que nós atribuímos a capacidade de agentes quais ela se funda. Ficando apenas com o exemplo de Chaney:3s poder-se-ia ~~
3 \)
responsáveis apenas <1 nós mesmos, e não ao terceiro.) alegar que não seria possível ocultar da sociedade a mentira, c que tão logo :·.
MOO"RE. enquadra suas considerações num determinada concepção ela fosse descoberta, isso teria efeitos catastróficos; ou que ainda que não 1'.
sobre a natureza do conhecimento moral, a saber, em seu chamado realismo seja de esperar-se que Chaney venha a cometer delitos sexuais, não puni~lo 'il
moral. l-l Da mesma forma que a física formula teorias que expliquem nossas pelo que ele já fez. equivaleria a dizer·lhe que ele agora pode impunemente !<-:'':]
observações sobre aquilo que ocorre no mundo da natureza, a ética formuta matar, desde que depois sofra um outro acidente e tennine numa cadeira t~;
teorias que explicam aquito que se observa no mundo moral, nossos juízos de rodas, ou que ele pode falsitlcar documentos, desde que posteriormente à~
ÍnlUitivos. E a única teoria que pode explicar de modo adequado nossas apresente uma doença degenerativa que lhe prive dos movimentos da mão.
reações a exemplos como o da ilha, a reação de que é correto punir, ainda Essa resposta é tão cômoda como insatisfatória. Primeiro, porque ela, a ..\
que sem ganho algum, é o retributivismo.J 3 Ou seja, MOORE formula um rigor, não responde ao desafio da ilha, mas foge dele. Segundo, porque uma }~·'?
argumento abdutivo, uma inferência à melhor explicação.36 O princípio rctri- boa teoria tem, em princípio, de ter uma resposta também pãra exemplos
butlvista não decorreria de um outro princípio, de na~ureza mais geral ou imaginários. E terceiro, porque parece duvidoso que a ilha de KANT tenha
fundamencal. MooRE propõe, assim. uma justificação não fundacionalista, c natureza exclusivamente imaginária.39
sim coerentísta, de um princípio retribulivista entendido como valor moral
2. Uma segunda resposta seria urn apeto ;i. raciOfutlidctde. Retribuição é
intr!:nsecoF fazer o mal pelo mal; uma cultura esclarecida, moderna, secular, se caracteri-
Creio que MooRE conseguiu, melhor do que ninguém, reformular a ilha zaria pelo abandono dofiat)uslitia retributivista, em favor de uma orientação
de KANT de modo que toda a sua força se tome manifesta. O anti~retributi­ pelas consequências. «A orientação segundo consequências é uma parte da
vista se vê, assim, diante de um fonnidável desafio, que ao mesmo tempo moderna mci.onalidadeH.4(}
representa a oportunidade de certificar-se da qualidade das razões com as
Esse argumento é patentemente circular. Ele propõe um conceito de
quais sustenta a própria posiçiio.
racionalidade, que, sem maior justificação do que um sociologismo duvi-
fV. TENTANDO SEM SUCESSO ZARPAR DA fLHA doso, estipula que a única racionalidade possível é de natureza consequen-
cialista, declarando, assim, irracional ou arracional boa pane daquilo que nos
Como pode o anti~retributivista responder ao desafio? Uma vez que a parece mais valioso. O retributivista sempre poderá replicar que o conceito
ilha de KANT foi mais objeto de repúdio do que de reflexão crítica, teremos de de racionalidade que fundamema essa segunda resposta é um conceito
construir as possíveis respostas nós mesmos. Não estamos, contudo, de mãos empobrecido.
vazias. uma vez que essas respostas, em boa parte (pelo menos as respostas 2 3. Próxima se encontra a·resposta que dá um passo adiante e acusa o
a 6) deixam~se reconduzir às suficientemente conhecidas razões pelas quais retributivismo de apresentar 11aturezu teol6gica. 41 Essa acusação é injustifi-

~: M. MOOR!i, 711e Moml Worth ofRetriJmtion. p. 119 c ss .. 141 c S$., cspecia\mcme p. !44.
)' Para uma rcdescdção da ilha ALn:.-.;w..ts, Begriincilmg t!er Strafe, p. !2: os habitantes da
'-' M, MooRE, The Moralll'orlfl ofRerribll(icm, p. 145 c ss.; idem. Jusrijying Rerriburivism.
ilha far:io parte de outras socie-dades. Provavelmente também M.WRACll (como a nota 25)
p.l64es. pressupôs. implicitamente uma similar rcdcscrição.
-" Cf. ~qui especialmente M. MooRE. «Morni.Rc~lity». in; Objecrivity in ethics tmd /aw.
w Cf. a no1a 29.
Danmouth. 2004, p. 1 c ss. (principalmente p. 49 e ss.) <ll HASSEMER. Einf/ihnmg in dic Gnwdlagen des Suafrcclus. 2.~ cd., Ml)ncltcn, 1990, p.
-'! Por ex. M. MooRF.. Ju.rrifying Retributil'ism, p. 188. 285.
"" Sobre esses argumentos extensamente L. ScHuL7., Nonnicrres Mis5tnmett. Franldurt a.M ..
~~ RoXJN, Sinnund Grenun. p. 5 (retribuição como "lllodc fê>>)~ potúhimo HAAs, Srrojbegriff,
2001, p. 279 c ss. p. l&S e ss., com referências na nota 91.
-'' M. MooRE, The Moralll'onh o{Retriburion, p. 106 c ss.
,.;

DIREITO PENAL COMO CRfTJCA DA PENA LUÍS GRECO


272 273

cada. O que toma teológica uma teoria? Provavelmente, que ela apresente O argumento, tal como ele é esgrimado pela literatura e, em parte, tal
premissas cuja verdadeira ou falsidade é uma questão de fé. Nossas reações como ele foi exposto por m.im, 46 é, contudo, deficiente. Porque ele vive de
aos exemplos da ilha não parecem pressupor uma premissa dessa natureza. uma distinção entre o âmbito do direito e o âmbito da moral, segundo a qual
Com isso surge a suspeita de que a resposta seja uma adicional manifestação tudo que não tem natureza consequencialista fica fora do primeiro âmbito e
do conceito consequencialista de racionalidade, que, por via de uma estipu- cai, na melhor das hipóteses (isto é, se não for religião), no segundo. Ou seja,
lação tendenciosa, declara que tudo aquilo que nele não cabe é teologia. também a objeção do moralismo acaba se reVelando uma variante da objeção
4. Um difundido argumento de recusa ao retributivismo recorre à ideia da indiferença às consequências, e apresenta a mesma natureza circular que
do Estado de direito. É verdade que a simples menção do termo permanece ela.
vazia de conteúdo. Em geral, portanto, dá-se um passo adicional. A dimensão 6. Outra resposta seria de natureza pragmática - o retributivismo seria
do Estado de direito que aqui nos interessaria é a dada pelo princípio da falso, porque levaria a consequências inaceitáveis,47 porque justificaria um
proporcionalidade. A pena é uma intervenção em direito fundamental, c em direito penal cruel, que em última análise terminaria no talião e é friamente
um Estado de direito uma intervenção em direito fundamental só se justifica indiferente em relação ao destino da pessoa apenada. Isso se trata de uma
quando proporcional. isto é, idônea, necessária e adequada para promover caricatura. O retributivismo não defende penas cruéis, e sim justas, isto
um fim lcgítimo. 4 ! Com o que ficaria excluído punir, por punir, como supos- é, proporcionais ao delito. O conteúdo exato dessa proporcionalidade não
tamente defenderia o rctributivismo. pode ser determinado de antemão com pretensões de validade universal, de
A dificuldade, aqui, é que esse argumento parece cair em um dilema, modo que tampouco o talião é corolário necessário da postura rctributivista.
decorrente do entendimento que sê ao conceito de fim legítimo. Porque se o A indiferença para com o destino da pessoa apenada não é um defeito do
termo for entendido de modo mais amplo, como sinônimo interesse social retributivismo, mas diz a respeito a seu objeto: o retributivismo é uma teoria
justificado ou de boa mz.ão, não se vê por que a retribuição não possa ser sobre a imposição da pena e não (necessariamente) sobre o modo como ela
considerado um fim legítimo. Essa, aliás, parece ser a posição do Tribunal deva ser executada.
Constitucional alemão. que considera a justiça, isto é, o fato de que crimes
7. Uma penúltima resposta consistiria em tomar a ofensiva. O retribu-
não fiquem impunes, uma componente do princípio do Estado de DircitoY
Por outro lado, se o termo fim legítimo for entendido de modo mais técnico, tivismo não passaria de uma racionalização do mesquinho sentimento de
em que o fim será um estado de coisas a ser promovido pela medida em vingança. 4 a Nossas reações ao exemplo da ilha também seriam manifestações
quesrüo, 44 o argumento se torna outra vez circular, uma vez que se est:í desses instintos primitivos. Uma sociedade esclarecida - agora no sentido
excluindo de antemão a possibilidade de que o retributivismo esteja correto, quase psicanalítico do tenno, isto é, uma sociedade consciente da força de
através de uma mera afirmação de que correta é a posição contrária. seu inconsciente, e que se esforça por não se deixar por ele dominar - não
poderia, assim, capitular diante dessa emoção regressiva.
5. Os argumentos de número 2 a 4 são todos, fundamentalmente,
variantes da objeção ao retributivismo que eu denominei de indiferença às
«~ Desenvolvi o argumento da seguinte forma: no infcio do trabalho, destilei principalmente
comequêucias. Como se vê, essa objeção não prospera, porque ela é circular. da discussão sobre o conceito material de crime, isto é, da discussão emrc bem jurfdico
Na minha tese repetidamente citada, identifiquei uma segunda importante c violação de dever, entre hanu pri11ciplc c legal enjorcemenr of morals, um conceito de
objeção ao retributivismo, que chamei de objeçüo do moralismo. 4 s Depois de moralismo cujo conteúdo seria a tese de que o Estado pode limitar a liberd~dc dos cidadãos
proceder a uma série de distinções, afinnei, ao final, que seria essa a objeção ainda que essa limitação não gera benefício nenhum (GR.ECo, ú:bf!11diges, p. 120 c ss.). Ao
cuidar do retributivismo, ~o fim do livro, retomei a esse conceito. e com isso recusei o rctribu-
decisiva contra o rctributivismo. tivismo (p. 474). Vejo hoje que esse saho de uma discussão a outra careceu de verdadeira
justificação. Abaiw V.2. tentarei fornecer essa justificação. explicitando que se tratava, a
•: Por último HOi!.l'!..E. Srrafrlu:urien. TUbingen, 201 t. p. 16 e s.: também eu manifestei rigor, de um argumento de coerência.
1
simpatia para com e>se argumento. erro do qual agora me penitencio (GRECO, Lebcndiges, p. ' Por ex. Roxt;-.;, Simt mul Grenze11, pJs: o retributivismo seria «polftico-criminalmcntc
474). Outra variação desse argumcmo inicia com a idcia de democracia (por último GARD!TZ, nocivo».
«Stralbegri.lndung und Dcmokratieprinzip», in: AOR 2011, p. 33 t e ss. [p. 346. 349 c ss.)l " Nesse sentido principalmente os autores que defenderam a abolição do direito penal a
-como se não fosse possível que maioria se manifestasse em favor do retributivismo! partir de uma perspectiva psicanalítica, como 0STER.\!EYER, Strafimrccht, MUnchcn, 1971, p.
" 8VcrfGE36. t74 (186): 63,45 (61): 107, 104(118 f.): 122.248 (272). 16 e ss .• 120: PJ.....\c~.:, Dic Gesellsclw.ft 1md das DOse, Stuugan!H~mburg, 1967, p. 110 c ss.,
"" Para esse conceito de fim GR.Eco, Lebcndiges, p. 138, 252. 118 c ss.; idem, Pliidoycr fi/r die Abschaffimg dcs Strafrechts, MUnchen, 1974. p. 200 c ss.,
;.-
passinr.
' 1 • GRECO, Lcb('lldiges, p. 460. :;.·.
... ),

--~-- ----------c-------- ---------'"'-~ --·--.-·

274 DIREITO PENAL COMO CRiTICA DA PENA LUiS GRECO


275

Tem-se, aqui, um belo exemplo de uma argumentação reducionista, I. O argumento da assimetria


que, de forma arrogante, sequer toma conhecimento das razões da tese criti-
cada, mas a recusa através de uma suposta explicação causal, que é entendida O retributivismo afirma que a pena se impõe por razões de justiça. Ele
como uma «desconstruçào». A tese retriburivista não é defendida com apelo a compreende, assim, um aspecto negativo, a proibisrão de punir o inocente, e ·:··
sentimentos de vingança, e sim a razões morais e jurídicas, que teriam de ser um aspecto positivo, o dever de punir o culpado. E. injusto punir o inocente,
refutadas em seus próprios termos, não podendo ser reduzidas, sem mais, a e é injusto não punir o culpado. Mais precisamente: de uma perspectiva \,
9
impulsos irracionais.~ O curioso é indagar por que essa cômoda argumentação retributivista, essas duas injustiças parecem situar-se no mesmo plano. Punir f~
r·~·
reducionista não é usada contra os próprios entusiastas dessa fonna de argu-
memar.so Afinal, bem se poderia replicar no mesmo (baixo) nível, alegando,
o inocente é i'liusto, não punir o culpado é injusto, e punir o inocente é tão
i'liusto quanto não punir o culpado. p
por ex., que a recusa à vingança é, ela sim, uma racionalização de pseudo- Parece-me, contudo, que existe uma assimetria entre essas duas injus- p;
intelectuais, fundada num cartesianismo que separa razão e sentimentos, tiças, e uma assimetria não apenas quantitativa, não apenas no sentido de .....
segundo o qual os sentimentos são algo baixo. Mas fazer isso é transformar o que punir o inocente é mais injusto do que deixar impune o culpado, e sim ,i'-.';l....
que deveria ser uma discussão sobre razões em uma troca de injúrias. qualitativa, no sentido de que punir o inocente é uma injustiça de natureza •:
8. A Ultima resposta imaginável seria, de certa fonna, a oposta da ante- de todo diversa da injustiça de deixar impune o culpado. A melhor maneira
rior. Ao invés de descer ao nível das injúrias do reducionismo psicanalítico, de evidenciar essa assimetria qualitn.tiva entre dimensão positiva. e negativa.
poder-se-ia tentar ascender à meta-ética e questionar o próprio realismo do retributivismo talvez seja recorrer à nossa ilha, ou mais exatamente, a
moral coerentista no qual se baseia MOORE. Na comunidade ciemífica de que duas outras ilhas, de dimensões bastante similares à de KANT, mas que se
fazemos parte, em que quem discute teorias da pena tem formação predo- encontram uuma situação ligcirameme diversa.
minantemente juridicu e raramente filosófica, secá porém difícil encontrar Imagine.se uma ilha, ~ 2 na qual existe uma. sociedade dividida. em
quem possa subir a um ringue (ou a um octógono, se se quiser) em que a luta dois grupos inimigos que "Se esforçam por exterminar-se reciprocamente
se desenvolve nesses termos, isto é, nas regras do adversário. Pessoalmente, já há gerações. Um grande homem consegue conciliar os dois grupos, e é
confesso minha incompetência. A tínica coisa de que estou seguro- e digo principalmente a seu esforço e carisma que se deve a situação de relativa
isso por observar a maneiro como procede a justificação na moral e no direito estubilidade que já há alguns anos impera. Descobre-se, contudo, que esse
- é que a argumemação fundacionalista não é a única forma adequada de grande homem cometeu certos delitos ainda não prescritos e que eles teriam
justificação, e não se pode subestimar a importância de argumentos abdu- de ser punidos com privação de liberdade, o que teria fatais consequências
tivos e de coerênciaY Creio que isso basta para que tenhamos de levar a sério para a solidificação da paz na ilha. Haverá um dever de puni-lo, ainda que
a ilha e nossas reações a ela. essa punição provavelmente signifique o fim da paz c mesma da existência
de uma sociedade nu ilha? Parece intuitivamente claro que não. Observe-se,
V. DANDO ADEUS À ILHA aliás, que aparentemente nem mesmo KANT puniria num caso como esses. 53
O anti-retribuvista que ainda não se tenha declarado por vencido, que Imagine.se agora uma terceira ilha, que poderia chamar-se de ilha/ 4 na
insiste em deixar a ilha para trás e em resistir à sedução de fazer da ilha qual também há dois grupos inimigos, que tumbém finnamn1 um armistício
um novo lar, tem de apresentar argumentos inelhores daqueles que estão em que já dura alguns anos. Um delito assombroso é cometido contra um líder
circulação. Creio ser essa tarefa possível e realizável. A ilha apenas demonstra de um dos grupos, e o conflito, que provavelmente teria por consequência
que ela é muiro mais difícil do que se costuma supor. Desenvolverei dois
argumenros, o primeiro deles fundado em uma assimetria que a posição retri- '
1
J:i em Gru:co, U!bendig'''· p. 234.
butivista tende a diluir (abaixo 1); o segundo deles será a reformulação da '-' Digo isso baseaJ'ldO·llle em uma analogia: pois KA/\T aceita cxprcssarneme que não se
objeção do moralismo como um argumento de coerência (abaixo 2). imponha a pena de morte em si cabível. se forem taJ'ltos os culpados que a sociedade após
a execução deixasse de existir (KANT, Metapliysik der Sitten, A 20l/B 231). Essa concessão
ou esse esclarecimento lhe foi repcridameme criticado como algo inconscquente (Hup,
" C f. j:i GREco, LebendigN. p. 470 com Ldteriows referências. Darsref(lmg, p. 106: BrNDING, Gnmdriu, p. 217: CAITAI\'EO, Dignità umana, p. 315 e ss.:
"' Essa sugest;J.o j:i em GRECO, Lebendiges, p. 226 nota 83. JAKOBS, Sraal/iehe Strafe, p. 14).
" ' GRECo, U!bendiges, p. 27. s. Também em GRroeo, úbendig,•s, p. 274.
DIREITO PENAL COMO CRÍTICA DA PENA LUIS GRECO 277
276

também a dissolução da sociedade na ilha, está a ponto de reiniciar. A única ordem, que pensei serem as relativas à necessidade de obtenção de certos
maneira de impedir a catástrofe é a punição da pessoa que os membros do fins. Daí se enxerga o porquê de existir no máximo um dever relativo de
grupo cujo líder foi agredido consideram culpada. Ocorre que essa pessoa é, punir o culpado: o dever de punir o culpado é relativo, porque derivado da
na verdade, inocente. Estará justificado punir essa pessoa, ainda que inocente? necessidade de obter certos fins, como a paz social, a prevenção de delitos
Aqui, pelo contrário. parece ilegítimo desatender ao princípio retribulivista. etc. Caso esses fins não possam ser obtidos, ou sua obtenção envolva mais
Ainda que a paz social e a existência da sociedade, o bem estar e a vida de custos do que o que estava previsto, o dever perde a sua força. Aquilo que à
vários indivíduos esteja em jogo, não parece correto sacrificar os direitos da primeira vista aparenta ser um princípio retributivista se dissolve, portanto:
inocência, o principal dos quais é o de nunca sofrer uma punição. a proibição de punir o inocente é em verdade um derivado da proibição de
Percebe-se, assim, uma intuitiva assimCtria entre a dimensão positiva, o instrumentalização, o dever de punir o culpado um derivado de exigências de
comando de punir o culpado, e a dimensão negativa, a proibição o inocente, obtenção de certos fins (por ex. preventivos).
da tese retributivista. Enquanto a proibição tem natureza cogellle ou absolwa, Como disse, essa é a explicação que me parece mais natural e correta.
o comando, na melhor das hipóteses,SS tem natureza prima Jacie ou relativa. Ocorre que ela não é a única possível. Pois há uma eJ.plicaçüo altematil'a
Por isso disse que a assimetria não é apenas quantitativa, e sim qualitativa. Se disponível para o retributivista, à qual é necessário dar uma resposta. Essa
se tratasse de uma questão de quantidade, chegaria um momento em que um explicação seria a de questionar que o dever (relativo) de punir o culpado
certo número de culpados não punidos equivaleria à punição de um inocente. deriva de considerações que não exclusivamente de justiça. O retributivista
Melhor que vime culpados escapem do que um inocente seja erroneamente poderia conceder que se trata de um dever relativo, mas, ao mesmo tempo.
punido- vinte e um, porém, já seria intolerável. Essa assimetria tem várias afinnar que deveres de justiça, ao menos quando se tratarem de deveres
outras manifestações: ela está por trás, por ex., de que em caso de dúvida se positivos, isto é, deveres de ação, seriam sempre relativos. Afinal, apenas
tenha de absolver, ou do fato de a maioria dos ordenamentos jurídicos conhe- deveres de omissão podem ser absolutos. O retributivista pode acrescentar
cerem uma revisão criminal em favor do acusado fundada em pressupostos algo que toma uma réplica ainda mais urgente: a saber, o fato de que apenas
mais generosos do que os da revisão criminal contra o acusado (quando esta essa explicação é capaz de dar conta dos casos originais da ilha ou do caso
sequer é reconhecida). de Chaney.
A explicaçüo que me parece não apenas mais natural, mas também
6
correta, para essa assimetria está em por em dúvida a tese relfibutivista.s 2. O argumento de coerência
A dimensão negativa do retribulivismo, a proibição de punir o inocente,
derivaria de outras considerações, ligadas à proibição de instrumentalizar De fato, tenho de conceder que o meu argumento da assimetria dá conta
uma pessoa, de tratá-la como mero meio para a realização de finalidades dos exemplos da ilha 2 e da ilhaJ. A ilha original e casos como o de Chaney
que lhe são estranhas.n Com isso, ficaria explicado porque há uma proi- pennanecem, contudo, por explicar. E; o grande trunfo do ret.ributivismo é
bição absoluta de punir o inocente: aceitar uma relativização dessa proibição que ele consegue fornecer essa explicação, enquanto fundamentações da
significa admitir que o ser humano só tem de ser respeitado na medida em pena como a acima esboçada falham.
que isso convier aos outros. Esse princípio, contudo, não teria o condão de Como acima demonstrei (item lV.l), os esforços de contornar esse
gerar deveres positivos de agir, mas apenas proibições, deveres de omitir.ss estado de coisas, redescrevendo o exemplo original da ilha ou o caso de
Deveres de agir só poderiam ser fundamentados em considerações de outra Chaney, são inviáveis. A única solução honesta, a meu ver, será a de aceitar
que o não-retributivista, que recusa a tese de que a pena se imponha exclusi-
~~ Cf. o pró:~:imo apartado. vamente por razões de justiça, exigindo também que haja algum ganho com
"' Dessa c:~:plicação parte a minha tese, GREco, l..ebendiges, em especial p. 131 c ss .. 230 c
a imposição da pena, de fato, não pode punir Chaney. O não-retributivista

1' Uma tese cuja formulaç~o cl:'lssica também está em KANT, Meraphy.dk der Silleu, A 196/B tem de recusar, assim, a intuição do exemplo da ilha. Não será isso, contudo,
226. uma verdadeira reductio atl absurdum da recusa ao retributivismo?
"' Para uma fundamcntnção c f. GRECO, l..ebendiges, p. 134 c ss. A razão principal está em que
a proibição de instrumcnta!iznção é nbsoluta, cogentc, no sentido de impassível de exccçUo,
c apenas deveres de omissão podem ser concebidos como impassíveis de cxccçUo. Tão logo uma situação de conflito de deveres, de modo que se terá de renunciar à pretensão de vigência
sc'accitc um dever de ação situado no mesmo plano dos deveres de omissão, poderá surgir absoluta ao menos de um dos deveres.
DIREITO PENAL COMO CRÍTICA DA PENA LUIS GRECO 279
278

Creio que não. Porque a tese retributivista, de que a pena se justifica VI. RESUMO
por razões de justiça, sendo desnecessário que ela gere algum beneficio, se Vale a pena retomar à ilha de I<ANT. Ela demonstra que o crítico do
por um lado consegue dar conta da intuição de que haveria um dever de retributivismo terá de empenhar um esforço de reflexão muito maior do que
punir Chaney, produz, por outro lado, certas dificuldades, que me parecem até agora tem feito. A maior parte de seus argumentos é circular, porque já
mais relevantes. tanto do ponto de vista prático, quanto do ponto de vista pressupõe uma visão preventivista. A verdadeira razão para recusar o rctribu-
teórico, do que chegar a uma conclusão intuitivamente adequada para o caso tivismo está, assim, em sua dificuldade em explicar a assimetria qualitativa
de Chaney. Em especial, a afirmativa da desnecessidade de que a pena gere entre a não-punição do culpado e a punição do inocente (argumento de assi-
qualquer ganho para que esteja justificada significa que a injustiça intrínseca metria), e, principalmente, na tensão que existe entre a tese de que pode-se
de certos fatos já será uma razão para puni-los, sendo irrelevante se eles punir sem qualquer ganho, subjacente ao retributivismo, e à exigência de que
geram ou não um dano social ou se eles produzem ou não uma lesão a um um delito tem de consistir em uma afetação de bem jurídico ou em um dano
chamado bem jurídico. Nisso consiste meu argumento de coerência: a tese social (argumento de coerência).
retributivista, por considerar irrelevante para a justificação da pena que ela
gera algum ganho, é corolária de um princípio que, portanto, está em contra-
dição com um importante outro princípio do liberalismo jurídico-pena\, o de
que só aquilo que gera um dano social ou uma lesão a um bem jurídico pode
ser apenado.j 9 Aceitar que Chaney fique impune é, portanto, o preço que se
tem de pagar. se não se quiser abrir caminho para revisar o postulado de que
60
toda crimina\ização pressupõe um dano social, uma lesão a bem jurídico.

,., Essa posição é c:o;pressamcote rejeitada por MooRlô, «A Theory ofCriminal Law Theories»,
in: Placing BlanH', p. 3 e ss. (70 e ss.); idem, «A Non-Exclusionary Theory of Lcgislativc
Aim», no mesmo volume, p. 639 c ss. (p. 659 e ss.)- se bem que ele defenda o que ele chama
de um «moralismo libcr.tl», segundo o qual, se de um lado é a imoralidade de uma conduta o
que justifica a sua punição, por outro, se entende que condutas como o homossc:o;ualismo n~o
seriam imorais, chegando, assim, à~ mesmas conclusões que a teoria do bem jurídico ou do
dano social.
w Similar já v. LISZT, «Die detcrministischcn Gegner der Zweckstrafe», in: Slrafreclrtliche
Arifsii/Ze rmd Vorlriige, Bd. 11, Berlin. 1905, p. 25 c s~. (p. 54); RoXIN, S/1111 rmd Grem:e11, p. 3,
9; NEl:MM~N. •<''Altcmntivcn; keine .. - Zur neuercn Kritik ao der pcr.;onalcn Rechtsgutslehrc»,
in: Nn:~IAN1'1PKITII\'1TZ (coords.). «Pasonalc Rcclrtsgurs/elrre» und «Opferoricnricrwrg im
S/rafrecilt», Frankfurt <1. M .. 2007. p. 85 c ss. (p. 87).
Com isso. faço um pequeno mca c11/pa: em minha tese, dirigi aos autores agora cimdos, que
criticam a teoria da retribuição alegando que ela cairia em um «moralismo» (isto é, numa
punição de condutas não dmmsas ou não lesivas a bens jurídicos), a objeção de que eles
estariam confundindo duas questões. que chamei de fins da pena de primeira e de segunda
ordem (LebeJUligcs, p. 304). ou, para dizê-lo de modo mais simples, se bem que não nccessa·
riamcmc sinônimo, a questão de o que punir e a questão de por que punir. É verdade que,
tecnicamente. essa objeção permanece correta. Vejo agora, porém, que a critica desses
autores também pode ser entendida ou refonnulada como o argumento de coerência acima
desenvolvido. Ainda que o retribulivismo seja uma teoria sobre a imposição da pena e não
uma teoria sobre o que punir. ele é corolário de um princfpio segundo o qual a pena se ju5tifica
independentemente de um gm"lho, c esse princípio, que no âmbito da imposição da pena leva
ap rctributivismo, no âmbito da teoria sobre o que punir leva à recusa ao princfpio do dano ou
da lesão a bens jurídicos.

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