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POÉTICA DO LIVRO DE

ARTISTA
Alguns casos
“Os livros de artista não foram feitos originalmente por artistas, mas
por poetas e escritores e os primeiros foram os poetas concretos: eles
descobriram o potencial espacial e visual das páginas de um
livro.” (Ulises Carrión)

Utilizado por Duchamp, Malevitch, Vicente do Rego Monteiro,


ganha densidade a partir da década de 60, quando a publicação é
espaço alternativo para difusão de arte.

Aqui vale a idéia de que não basta uma intervenção do artista em


um produto isolado (página de revista ou jornal convencional,
por exemplo): são concebidos para veicular uma idéia de arte,
onde é necessário intervir no próprio veículo, recriando-o em
outras bases, traçando equivalências entre o trabalho do editor e
do curador. Para Julio Plaza, curadoria e edição são outras
possibilidades para o artista desenvolver uma questão perseguida
em sua obra.
O livro de artista ou livro-objeto é produção que se insere no
campo dos novos meios, ao lado do vídeo, arte postal, poéticas
visuais. Ele explora as qualidades específicas do livro, como
serialidade e seqüência espaço-temporal do fluxo informativo,
podendo ser :

1. texto xerocado, em papel barato, formato de bolso ou


em material que não seja papel

2. livro – objeto que se converte em escultura portátil

3. séries fotográficas com caráter autobiográfico,


político, filosófico, narrativo, etc.
Repudiam o objeto de arte stricto sensu, adotando toda sorte de
experimentações. O valor destas publicações não vem da
raridade numérica da peça, mas do conteúdo de suas proposições
artísticas. A edição é numerosa, publicada a custos muito baixos e
em tese acessível a todos, agindo de modo alheio às exigências do
mercado.

Na distribuição nos anos 70 no Brasil, busca-se alternativas ao


sistema, são entregues diretamente pelos artistas à entidades do
meio, com o objetivo utópico de subversão das leis de mercado,
aproximando a arte das pessoas. A adoção da imprensa como
meio se populariza com periódicos de várias confecções, jornais,
fanzines, revistas, envelopes, cartões, além de listas de endereços
de “quem é quem”, preconizando a Internet (sendo menos ágil e
mais preocupada com a relação forma-conteúdo)
Advindos dos futuristas e dadaístas (Kurt Schwitters), as poéticas
visuais se difundiram nos anos 50 como poesia concreta, onde se
explora novos campos perceptivos graças ao uso de palavras e
imagens, desenvolvendo uma visão material-construtivista que faz
do módulo sintático o eixo da composição.

AA poesia visual brasileira dos anos 70, segundo Nelson Asher


apresenta:
1. poesia marginal – com expressão direta dos
sentimentos, emoções e desejos.
2. poesia concreta – de caráter construtivista,
agrupou-se em torno de algumas revistas intersemióticas
(Navelouca, Pólem, Código, Muda, Artéria, etc.)
A prosa do transiberiano (1913, MoMa), Blaise Cendrars e Sonia Delaunay
O formato do livro é incomum. Consiste em quatro folhas agrupadas e dobradas ao meio,
verticalmente e depois horizontalmente. Tem dois metros de comprimento e 36 cm de largura. São
445 linhas de texto impressas em mais de dez tipos diferentes de letras, de cores e tamanhos
diversos no lado direito da folha, com a pintura de Delaunay à esquerda e também invadindo os
espaços em branco entre as linhas do texto.
O livro foi concebido para uma tiragem de 150 exemplares, de modo que o total de cópias
completamente abertas tivesse a mesma altura da torre Eiffel, símbolo da modernidade.
Marcel Duchamp, Prière de
toucher, 1947
Marcel Duchamp,
Boîte en valise
Ben Vautier
Stéphane Mallarmé,
Um coup de dés
jamais
ne abolira le hasard,
1896

Marcel Brodthaers,
Um coup de dés
jamais
ne abolira le hasard,
1969
Regina Silveira, Rebus
Barrio, Coleção de Arte
Brasileira Contemporânea,1978

Regina Silveira,Julio Plaza,


Augusto de Campos, Barrio
Exemplos de Livros de Artista
Julio Plaza,
Augusto de Campos,
Paulo Brusky,
Alto Retrato, 1981.
Paulo Brusky, Ente, 1984

Paulo Brusky

Livrobjetojogo 2, 1993

Rubber Book,
1978

Livrobjetojogo 1,
1992
Variações,
1992
Antonio Dias, Ele não acha mais
graça no público das próprias
graças, s.d.
Amélia Toledo
Waltercio Caldas,
Velasquez

Waltercio Caldas, Vôo noturno Waltercio Caldas, Matisse


Marcelo Silveira
Livro rasgado, cada folha um pouco menor do que a precedente, de
modo a mostrar um pouco do que está na folha de baixo. É um livro
de texto, mas ao mesmo tempo, a leitura é impossível.

Buzz Spector
As façanhas de um jovem Dom Juan é o nome de um livro que, como o famoso
amante que colecionava mulheres, apresenta 120 desenhos de seios formados por
letras, números e sinais de pontuação, como se cada desenho fosse de uma mulher
diferente.

O ato de manusear o livro imita o movimento ao redor de um corpo para ver aspectos
diversos. Este percurso do olhar corresponde ao olhar atento do desenhista em
sessões de desenho com modelo vivo. É preciso conhecer o corpo humano, e assim
conhecer todas as possibilidades de representação gráfica de uma mesma pose, para
compor um repertório de formas e linhas.
A caligrafia como registro de um percurso. Os desenhos caligráficos preenchem um caderno de
páginas sem pautas, em que as linhas imitam o movimento da escrita, como se o texto fosse
escrito em uma língua estrangeira.
Em páginas alternadas, escritas inventadas e outras existentes, algumas extintas ou
desconhecidas pela maioria das pessoas, de modo a dificultar a distinção entre um e outro tipo.
Por comparação, a imitação da escrita foi o suficiente para sugerir a existência de um texto escrito
onde havia apenas desenhos.
As linhas contínuas, sinuosas, são distribuídas pela página de modo que o conjunto de sinais, em
fileiras ou colunas, também forme um desenho. O livro remete às miniaturas medievais, onde a cor
serve para integrar imagem e texto no espaço da página. A caligrafia é um meio para chegar ao
livro.

Amir Brito
Christian Boltansky, Kaddish, 1998
Christian Boltansky,
Monuments,
Leçons de tenèbres,
1986
244 p.
O livro alterado é um tipo de livro de artista que surge a partir de
algo existente, um impresso que recebe interferências gráficas
(caneta, nanquim, guache, colagem).

Klaus – Peter Dienst


Dicionário Grafo-Gramático. Editora M. DuMont Schauberg, Colônia, 1969.
A HUMUMENT é um livro poético-visual em
contínuo progresso . O inglês Tom Philips (1937)
começou em 1966 o “tratamento” da novela
vitoriana de W.H.Mallock A Human Document
(1892) e uma versão completa inicial foi
publicada privadamente em 1970.

Com a primeira edição comercial em 1980 feita


por Thames and Hudson rapidamente tornou-se
um clássico cult.

Considerado por alguns estudiosos como o livro


de artista mais importante do século XX.
Tom Philips,
A Humument: a treated victorian novel, Ed. 1977
Apesar de deixar a impressão de uma escolha fortuita, tudo leva a
crer que o título original da novela (A Human Document) teve um
papel na mesma:

é um título que lembra a idéia de humanismo, básica no


pensamento de Schiller para a formação da verdade individual.

Humanismo também implica no estudo de humanidades


(literatura, filosofia, arte, poesia, música, etc) como o que se
distingue das ciências.

A linhagem artística de Philips pode ser vista como uma extensão


dos primeiros movimentos do século XX: vanguarda russa,
futurismo italiano, vorticismo britânico, movimentos que foram
marcados pela integração de atividades humanísticas, gerando
aspectos visuais, poéticos, espirituais e intelectuais de visão e
interpretação.
Tom Philips,
A Humument: a treated victorian novel
Foi visto pelos críticos como um produto definidor do
pós-modernismo ligando-se a tradições variadas como
iluminura medieval, poesia experimental narrativa não
linear com procedimentos de arte moderna.

Em cada edição subsequente Tom Phillips re-trabalhou


as versões anteriores das páginas da novela com o
objetivo eventual de re-locar o livro como um todo, com
novas variações.

Ele otimiza o livro comum, demonstrando que um


romance sem grande valor literário pode tornar-se uma
fonte inesgotável de significações inéditas, provocando
atitudes similares em outros artistas.
Tom Philips,
A Humument: a treated victorian novel
A compreensão se dá com a leitura completa do material, mas
cada página pode ser lida como poema isolado.
A primeira página estabelece o mote:
“O seguinte – canto – eu – um livro. – um livro – de – arte – de –
arte-mente / aquilo – que – ele – escondeu – revelo – eu”.

A intenção com os significados do livro de Mallock são


evidentes. A Humument convoca nas letras, nas palavras e nas
imagens também vários momentos da arte moderna, muitas
vezes com citações específicas de pintores, como Cézanne,
Seurat, Picasso ou Bacon, e de escritores, como Gertrude Stein
ou Guillaume Apollinaire.

O interesse da obra de Philips está no fato de que ao mesmo


tempo em que compartilha as referências teóricas saídas do
estruturalismo (que também justificam uma obra com base em
citações ou pastiches, colagens ou reciclagens de obras
pregressas), ele traduz um pensamento do livro e de sua história.
Tom Philips,
A Humument: a treated victorian novel
À primeira vista, A Humument parece ilegível, mas a dedicação à
leitura do texto, de um modo normal, acarretará o entendimento
claríssimo de que estamos presente uma trama inteligível, ainda
que demande investimento de tempo.

Existem duas personagens do romance original presentes,


Grenville e Irma, mas uma terceira surge graças aos gestos de
Phillips: Bill Toge (que nasce do corte das palavras together e
altogether. A leitura dessas frases fará entender as relações que
essa nova personagem tornada visível estabelece com as
restantes, com os espaços, com o próprio livro ou gesto artístico,
chegando mesmo a elaborar considerações mais gerais
(“moderniza a Inglaterra – estrutura A chuva / des-Europa –
me”).

“Subitamente – paz com o passado. / o regresso do – sorriso


triste a – intervalos / estranhos – tempos – e – sempre, - meus –
tempos – e – teus – tempos – tinta – o papel. / lê – a minha voz”.
Tom Philips,
A Humument: a treated
victorian novel
Tom Philips,
A Humument: a treated victorian novel
As relações entre texto e imagem são exploradas em todos os sentidos,
havendo tratamentos do texto que correspondem ao que se diz (como quando
apaga ligeiramente a palavra “obscurecido” ou “sussurrado”), ou propondo
figurações para sentidos textuais ambíguos, ou sublinhando a coincidência
entre representante textual e referente figurativo...

Arte seqüencial e poética literária. O visual e o verbo. A indústria cultural e a


estética perene. O lado esquerdo (racional, verbal) e o direito do cérebro
(intuição, imagem).
A relação entre o significado e a sua manifestação tipográfica na página, que
torna significante toda a matéria que o livro é, faz de A Humument também um
expoente da poesia concreta.

Para Octavio Paz, a prosa, o relato, o discurso e a demonstração são lineares,


têm um começo e um fim. A poesia, assim como a canção, o mito e outras
expressões poéticas, sempre é auto-suficiente, o que corresponde à figura de
um círculo, um desenho que remete a si mesmo e nunca termina.
Tom Philips fez desta novela vitoriana uma poesia. Ele sintetiza no conjunto
destas obras uma parte fundamental das técnicas criativas da arte do século
XX, conseguindo uma expressividade lírica e narrativa sem paralelo.

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