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ALTERIDADE E FENOMENOLOGIA DAS PSICOSES

Rodrigo Alvarenga
Núcleo de Direitos Humanos/PUCPR
alvarenga.rodrigo@pucpr.br

RESUMO

Ludwig Binswanger compreendeu que era necessário reestruturar o método de investigação e


abordagem dos fenômenos psicóticos, por meio de uma investigação fenomenológica que
permitisse ultrapassar os limites da ontologia cartesiana do sujeito e do objeto, a fim de que a
psicoterapia não se constituísse como uma prática de negação da alteridade. Desse modo, esse
trabalho visa examinar a legitimidade da Daseinsanalyse psiquiátrica de Ludwig Binswanger,
no que se refere ao cumprimento daquilo para o qual ela própria se propôs, por meio da
assimilação da investigação transcendental no campo das psicoses. O critério de legitimidade
da articulação realizada pelo psiquiatra entre o transcendental e o empírico, na elaboração de
uma fenomenologia das psicoses, foi buscado pelo confronto com a questão da
intersubjetividade na obra de Merleau-Ponty. Conforme foi possível perceber, a
Daseinsanalyse psiquiátrica, na medida em que se estrutura a partir do ego transcendental
husserliano, ao compreender a percepção de outrem por analogia, permanecerá concebendo o
alter ego psicótico a partir do ego psiquiátrico, comprometendo sua alteridade.

Palavras-chave: Alteridade. Daseinsanalyse. Fenomenologia. Psicose.

INTRODUÇÃO

A busca racional que se constituiu na modernidade, desde Descartes, como impulso


incessante em direção a verdade objetiva fundada no poder constituinte do ego cogito estabelece
o problema clássico da intersubjetividade e da constituição do alter ego. Na perspectiva
cartesiana da objetividade científica bastaria abstrair da realidade percebida a noção pura de
sujeito e de objeto, de modo que não houvesse nenhuma mistura, a fim de tornar possível o
conhecimento verdadeiro, quer fosse por meio de parâmetros lógicos e dedutivos ou
experimentais e indutivos. Foi por meio da acentuação da dicotomia do sujeito e do objeto que
foi possível o desenvolvimento das ciências, uma vez que se desencadeou a partir dessa
fragmentação primária a estrutura mecanicista do pensamento objetivo e da análise reflexiva,
sempre distanciada do mundo humano.
Quanto mais a atividade racional abstraiu um ego meditante e seu respectivo mundo
observado exterior a si mesmo, mais se acreditou na possibilidade de um conhecimento seguro
e verdadeiro, ou seja, objetivo. Derivadas da dicotomia fundante da modernidade clássica,
surgem, por volta do século XVIII, as diversas ciências sobre o humano e, por consequência,
uma ciência sobre a loucura. Com o surgimento do saber psiquiátrico, comportamentos
diferentes, divergentes dos padrões de sociabilidade e destoantes na multidão, pautados por
profunda diferença em relação à norma, já não serão mais simplesmente suspeitos de uma
intervenção demoníaca ou êxtase religioso, envoltos em aspectos místicos e sobrenaturais, mas
serão objetivados na perspectiva de uma doença mental.
Com Descartes, a loucura, que havia sido libertada pelo Renascimento de sua
interpretação estritamente cristã e religiosa, colocada sobre a aura do mistério e da
expressividade artística, sofrerá um novo golpe em seu processo de objetivação, sendo limitada
à silenciosa condição de objeto puro, diante de um ego puro. Um dos passos necessários para
isso foi justamente a identificação da loucura com o erro, conforme os exemplos de Descartes,
em sua primeira meditação metafísica, ao referir-se aos delírios dos insensatos. De acordo com
Foucault (2003, p. 67), “no caminho da dúvida, Descartes encontra a loucura ao lado do sonho
e de todas as formas de erro”, o que possibilitará, posteriormente, a submissão completa do
louco aos ideais de verdade da cultura clássica. Contudo, diferentemente do sonho e do erro dos
sentidos, que não são opostos às verdades da razão, a loucura se apresenta como a negação do
pensamento, no sentido de que não há um pensamento válido nos estados considerados
psicóticos. Assim, “a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento”
(FOUCAULT, 2003, p. 68).
Nesse sentido, o ego cogito cartesiano, em seu entrincheiramento como unidade solipsista
substancial, afasta de si próprio qualquer experiência delirante ou alucinatória, pois ela teria sua
origem no erro. A exclusão do louco pelas práticas de internação manicomiais necessitava
precisamente de um discurso dessa natureza, o qual se iniciou pela definição do padrão racional
do comportamento virtuoso, do qual o louco encontrava-se alienado, e evoluiu para as teorias
mecanicistas e as classificações supostamente biológicas das doenças mentais. A partir disso
que se deu, portanto, a separação institucionalizada entre os loucos e os normais, entre o ego
são e seu alter ego psicótico, ou seja, em nome da objetividade científica e da noção de cura
psiquiátrica.
A psiquiatria surge, portanto, conforme estrutura-se o exílio da loucura nos moldes da
doença mental. O que num primeiro momento parecerá grande avanço e atitude mais
humanizada, por conferir caráter científico à investigação e ao tratamento, no fundo se revelará
como estratégia biopolítica de institucionalização da loucura pelo saber psiquiátrico. Aquilo
que se iniciou com Descartes, relacionado à ontologia do sujeito e do objeto e à possibilidade
de um conhecimento, enfim, seguro e verdadeiro, quando constituído como ciência psiquiátrica,
colocou nas mãos do médico um poder sobre outrem que historicamente levou a processos
gravemente comprometidos, do ponto de vista ético.
Nesse sentido, a modernidade e a criação do conceito de doença mental orientaram a
criação de estruturas biopolíticas que se fundamentavam na exclusão da loucura do domínio da
verdade, o que possibilitou por meio do discurso psiquiátrico o uso de práticas manicomiais
justificadas sob forma de aplicação de saberes científicos. Esse tipo de prática, que consistiu
em separar e isolar completamente o louco do meio social, “só é possível, só é aceito e só é
institucionalizado no interior de estabelecimentos que recebem nessa época o estatuto médico,
e da parte de pessoas que tem a qualificação médica” (FOUCAULT, 2003b, p. 13). Ao contrário
do que se poderia supor, no sentido de que o surgimento de hospitais psiquiátricos estivesse
relacionado ao desenvolvimento de uma abordagem mais humanizada da loucura, tratar-se-ia
apenas de mais uma forma de exercício da microfísica do poder disciplinar, o qual encontraria
no delírio e na alucinação fronteiras de resistência a serem ultrapassadas.
O que se evidencia a partir da ontologia do sujeito e do objeto, bem como da
epistemologia psiquiátrica do normal e do anormal é a sujeição da loucura ao discurso
verdadeiro do médico, na medida em que a psiquiatria se tornou um novo ramo da medicina,
paralelo à observação e à objetividade dos discursos próprios da fisiologia e da biologia
mecanicistas. Isso possibilitou, ao menos enquanto justificativa teórica, as práticas
manicomiais, pois, “privado de sua liberdade pelo médico todo-poderoso, o doente tornava-se
o centro de todas as sugestões sociais” (FOUCAULT, 2002, p. 15). Daí o sentido da abordagem
fenomenológica aplicada ao campo da psiquiatria, a fim de tentar superar a dicotomia instaurada
pela modernidade, a partir da qual se pensa a loucura como o contrário da razão e, por
consequência, submissa e sujeita aos seus ditames enquanto reino único e exclusivo do saber.
Sendo assim, o que se propõe nesse trabalho é uma investigação sobre a pretensão
psiquiátrica de encontrar na fenomenologia uma maneira de contribuir para uma prática clínica
mais adequada do ponto de vista epistemológico e ético, ao buscar compreender as psicoses
numa perspectiva transcendental. Mais especificamente, trata-se de examinar como se deu a
constituição da Daseinsanalyse psiquiátrica de Ludwig Binswanger, a fim de avaliar sua
efetividade teórico-metodológica a partir da questão da alteridade em Merleau-Ponty.

Resultados e discussão

Para Binswanger, a fenomenologia de Husserl e Heidegger poderia levar à superação


daquilo que o psiquiatra considerava o grande problema de sua ciência, justamente a aplicação
do método das ciências naturais, com base na ontologia da res cogitans e da res extensa.
Apoiado no método fenomenológico e aplicando-o à psiquiatria, Binswanger (1971) propunha
a renúncia de uma abordagem sobre a loucura que em seu afã de objetividade comprometesse
o reconhecimento da alteridade. Seu objetivo inicial era dar lugar a perspectiva intuitiva, de
inspiração husserliana, que permitisse ultrapassar a lógica exclusivamente objetiva das ciências
naturais. O psiquiatra estava interessado em uma investigação que pudesse desconstruir os
edifícios epistemológicos da modernidade, e todo seu prejuízo para o campo das ciências sobre
o humano, no sentido de uma visão objetiva que condiciona outrem à lógica de saberes
positivos.
Em vários aspectos a preocupação de Binswanger assemelha-se a de Merleau-Ponty, não
apenas no sentido de ultrapassar o dualismo, mas também com relação aos saberes psiquiátricos
e o caráter intersubjetivo do campo clínico. Para o psiquiatra, é importante romper com o
naturalismo das abordagens científicas e a redução de outrem a um objeto de investigação e
intervenção, compreendendo que a psicoterapia só tem sentido na dimensão “do ser em uma
intersubjetividade, em uma relação justa com o semelhante ou a do ser com o mundo
comunitário [Mitwelt]” (BINSWANGER, 1971, p. 120). Do mesmo modo, para o filósofo, é
preciso considerar que o sintoma e a cura não devem ser elaborados no plano de uma
consciência tética, pela aplicação de um saber unilateral do médico em direção ao consulente,
pois o doente não pode assumir o sentido de seus distúrbios, “sem a relação pessoal que travou
com o médico, sem a confiança e a amizade que ele lhe traz e a mudança de existência que
resulta dessa amizade” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 201).
Binswanger e Merleau-Ponty trabalham com a leitura da psicopatologia tendo como
referência a perda de possibilidade da vivência de um mundo comum [Mitwelt], pelo isolamento
na esfera privada da consciência, em um mundo próprio [Eigenwelt], o que nas psicoses pode
se constituir como ruptura com outrem. Nesse sentido, para além de uma abordagem categorial
que visa catalogar os diferentes tipos de neuroses ou psicoses, a psicopatologia passa a ser
compreendida por meio do grau de rompimento com o mundo das relações humanas, pelo
comprometimento da possibilidade de vivenciar a experiência dialética de uma esfera privada
e, ao mesmo tempo, compartilhada da existência.
Assim, o sentido da Daseinsanalyse psiquiátrica de Binswanger está na questão da
alteridade, no problema da relação com outrem, e a chamada doença mental é compreendida na
perspectiva da intersubjetividade, tanto no que se refere à relação do psicótico com o mundo
comum, como na relação entre médico e consulente na psicoterapia. Merleau-Ponty, embora
não trate prioritariamente das psicoses, demonstrou ao longo de seu trabalho profunda relação
com a temática da psicopatologia, analisando vários casos de esquizofrenia, inclusive a partir
dos consulentes comentados pelo próprio Binswanger. Além disso, a questão da alteridade ou
o problema de outrem acompanha transversalmente todo o sentido de seu itinerário filosófico,
desde A estrutura do comportamento até a ontologia indireta de O visível e O invisível.
Será possível observar, pelo estudo de outrem nos dois autores, que o posicionamento do
psiquiatra, ainda muito influenciado pela teoria da intersubjetividade de Husserl, acabou por
comprometer seus trabalhos sobre a loucura, isso em função da centralidade das funções do ego
transcendental no processo constitutivo. Malgrados os esforços do psiquiatra em desenvolver
uma fenomenologia das psicoses, que considere efetivamente a relação intersubjetiva entre
médico e consulente, não foi possível livrar-se do prejuízo intelectualista que reduz outrem a
um objeto diante do saber, tornando-o uma figura ainda secundária em termos da busca do
conhecimento sobre a loucura. Nesse sentido, Binswanger acabou sucumbido àquilo que
Merleau-Ponty já denunciava na Fenomenologia da percepção: “a análise reflexiva acredita
saber aquilo que vivem o sonhador e o esquizofrênico melhor que o próprio sonhador ou o
próprio esquizofrênico” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 388).
Ao perceber o movimento que conduz Merleau-Ponty à ontologia do sensível e à
reversibilidade da tríade eu-outrem-mundo, acredita-se ser possível evidenciar o equívoco de
Binswanger quanto a versão final de sua fenomenologia das psicoses, justamente por ela basear-
se em uma perspectiva sobre o ego e o alter ego, na qual se sobressai descabidamente o ego
meditante em seu papel constituinte. Dessa forma, teria faltado ao psiquiatra uma teoria mais
crítica da intersubjetividade, para que ele pudesse desenvolver uma psiquiatria fenomenológica
e uma compreensão das psicoses que realmente reconhecessem a alteridade, não apenas no que
diz respeito ao aspecto epistemológico da construção do saber psiquiátrico sobre a loucura, mas
também em sua consequência para a ética da psicoterapia.
Nesse sentido, é possível perceber a fecundidade, ainda pouco explorada, do pensamento
de Merleau-Ponty para o campo da psiquiatria e das ciências humanas, não exatamente em
função daquilo que o filósofo teoriza enquanto verdade sobre a psicoterapia e a psicose, mas no
que diz respeito a sua busca incessante de maior profundidade filosófica para pensar o
fenômeno outrem. Nessa perspectiva, o que parece ser o mais interessante na aplicação da
fenomenologia à psiquiatria é, justamente, sua dimensão preventiva quanto à noção de uma
consciência constituinte e suas pretensões objetivas, pela afirmação de uma alteridade
transcendente e estranha aos ideais intelectualistas. O que se problematiza com isso é toda uma
prática fundada em saberes psiquiátricos, os quais, em nome da verdade da razão, mesmo que
razão fenomenológica, comprometem um autêntico reconhecimento de outrem e uma
abordagem realmente ética. Trata-se de algo que, no que diz respeito à Daseinsanalyse
psiquiátrica, a abordagem de Merleau-Ponty sobre a questão da alteridade permite evidenciar.

Referências:

BINSWANGER, L. Introduction a l’analyse existentielle. Traduction par Jaqueline


Verdeaux et Roland Kuhn. Paris: Les editions de minuit, 1971.
FOUCAULT, M. Histoire de la folie à l’âge classique. Mesnil-sur-l’estrée: Gallimard,
2003a.

______. Le povoir psychiatrique: cours au Collège de France (1973-1974). Normandie:


Seuil/Gallimard, 2003b. (Hautes études).

______. Maladie mentale et psychologie. Paris: PUF, 2002.

MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 2009.

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