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Resumo
A intencionalidade primordial desta resenha é fazer uma reflexão acerca do filme
“O Escafandro e a Borboleta” (2007) e as condutas que os profissionais da saúde
realizam diante dos corpos hospitalizados. O longa-metragem é baseado numa
história real sobre o ex-editor da revista francesa Elle, Jean-Dominique Bauby, que
aos 43 anos teve um súbito acidente vascular cerebral que desencadeou uma
paralisia em que o único movimento no corpo limitava-se à pálpebra do olho
esquerdo. Buscou-se na história de Bauby respaldo para se fazer uma reflexão
exemplificada dos valores do corpo e de como este é conduzido no ambiente
hospitalar.
Palavras-chave: Valores; Escafandro; Sentido da Vida.
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LEONARDO MAGELA LOPES MATOSO é acadêmico do curso de Enfermagem na
Universidade Potiguar-UnP, campus Mossoró, e bolsista do COHM/CNPq.
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Equipamento de mergulho hermeticamente
fechado que consiste em uma vestimenta
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Dificuldade ou impossibilidade de articular impermeável provida de um aparelho respiratório
palavras, por efeito da paralisia de certos que permite aos mergulhadores trabalhar debaixo
músculos (AMORA, 2009). de água.
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específica, por ser ele o meio de contato Uma das reflexões que marca o filme são
primário do indivíduo com o ambiente as relações sociais muito presentes, como
que o cerca. Bauby, mesmo tendo seu por exemplo, a relação entre pai e filho
corpo físico comprometido, não se deixou bem discutida durante a data
perder o contato com o mundo a sua comemorativa do Dia dos Pais, onde
volta, criando forças com a ajuda da Bauby é levado à praia pela sua ex-esposa
equipe multidisciplinar e de seus amigos e seus três filhos Theóphile, Céleste e
para seguir em frente e superar os Hortensie, no qual em seus pensamentos
obstáculos que a vida a essa altura lhe ele relata:
impôs. “Palavras não podem exprimir a dor
O estabelecimento do processo de que me corrói. Eu, o pai deles... não
comunicação de Bauby ocorre de forma posso afagar seus cabelos, beliscar
branda, exigindo paciência e devoção seus pescoços fofos... ou abraçar seus
tanto por parte dele quanto de seus delicados e quentes corpinhos. Mas
eu me alegro em vê-los ativos...
amigos. Porém, a partir do momento que espertos, sorridentes... É o que posso
Henriette percebe que ele era capaz de chamar de um belo dia” (BAUBY,
estabelecer um contato mais direto com 58h42m).
as pessoas, ela lhe apresenta um método
tortuoso, como ele mesmo relata em certo Percebe-se nessa cena que os valores
momento do filme. Ela lhe ensina a vivenciais ressurgem novamente, pois
utilizar uma série de letras embaralhadas, Bauby encontra sentido no amor, e na
seguindo a lógica de um alfabeto, só que relação com sua família. Se antes, essas
em frequência de uso mais utilizado no relações eram de alguma maneira afetada
vocábulo francês, para que facilitasse a e de pouca significância, agora era
comunicação de Bauby que passou a revestida de sentido e significados. Frente
formar palavras e consequentemente a essa condição, Bauby começa a fazer
frases. uma autorreflexão sobre as pequenas
coisas que poderia ter aproveitado, mas
Através do método de comunicação que por algum motivo não foi capaz. Uma
proposto por Henriette, Bauby percebeu data comemorativa que nunca constou em
que poderia expressar seus pensamentos e seu calendário e que ele nunca dera valor,
sentimentos através dele, vislumbrando a só que agora apreciava este dia com
possibilidade de concretizar um projeto outros olhos. Entre suas divagações,
que tinha em mente antes de sofrer o relembrava a relação com o pai, o carinho
AVC, que era produzir um livro. Seu real que sente por ele e como ele estaria
sonho seria escrever um livro sobre a sozinho sem a sua presença.
vingança feminina, uma produção
literária semelhante ao Conde de Monte Ao longo do filme Bauby comenta sobre
Cristo, porém na perspectiva feminina. O os olhares tortos que recebe dos visitantes
filme revela isso por meio de flashes do hospital, sobre a televisão que na
subconsciente de Bauby. maioria das vezes fica ligada 24h no
mesmo canal e relata sobre devaneios que
Henriette entra em contato com a editora gostaria de estar flutuando nas ondas da
de Bauby, sendo esse o primeiro passo Martinica ou estar na companhia de
para a realização do seu livro. Para figuras históricas como a Imperatriz
auxiliar Bauby no processo de construção Eugênia, que em décadas atrás ficou
da obra literária, sua editora envia abrigada no Hospital Naval. Podemos
Claude, a pessoa responsável por ditar as entender também toda a tristeza contida
letras do código e anotar a letra escolhida. na impossibilidade da comunicação, que é
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bem retratada em uma conversa ao O modelo assistencial vigente é marcado
telefone entre Bauby e seu pai, ainda por traços da biopolítica,
intermediada por Henriette. impregnados pela tecnocracia
assistencial, onde o sujeito que está
Diante de mudanças aterradoras, a
doente é reduzido a um corpo biológico e
realidade de Bauby era assustadora.
não a um corpo social. O sujeito ao ser
Outrora conseguia fazer voluntariamente
hospitalizado se afasta da sua casa, do seu
todos os movimentos, podia decidir por si
cotidiano e é introduzido no mundo do
mesmo tudo o que quisesse só que agora
hospital, com seus códigos e ritos. O
não possuía mais as rédeas de sua própria
corpo é então colocado em repouso,
vida. Detestava ser tratado como um
conduzido a um leito, a um quarto. Seu
bebê, ter sua respiração e sua alimentação
contato com a natureza é restringido, e ele
aos comandos de aparelhos, ou ser
se afasta do que é público. Assim, o corpo
banhado de forma estática e técnica,
é isolado na doença e fica enclausurado
como se sua subjetividade não existisse e
no seu próprio sofrimento (KRUSE,
seu pudor fora embora assim como seus
2003), ou seja, as relações construídas
movimentos. Tudo isso mostra o quanto
dentro do ambiente hospitalar, em sua
os profissionais foram indiferentes quanto
maioria, se constrói na ótica do sujeito
aos seus cuidados, fazendo dele um
enquanto objeto, e não sujeito, enquanto
simples objeto.
sujeito.
Bauby relatava a crueldade da sua atual
As ideias intrínsecas acerca da concepção
condição, sempre expondo seus
do corpo impregnadas no filme entram
sentimentos de tristeza e constrangimento
em consonância com as ideias de
diante da reação das pessoas ao olharem
Braunstein & Pépin (1999), quando falam
para o seu corpo. Sentimentos
que o corpo não se revela apenas
semelhantes também lhe ocorriam nos
enquanto componente de elementos
momentos em que as enfermeiras lhe
orgânicos, mas também enquanto fato
desejavam bom apetite na hora do
social, psicológico, cultural e religioso. O
almoço, mesmo sabendo que ele se
corpo de Bauby mesmo estático
alimentava através de uma sonda.
encontrava-se em movimento através de
É bem perceptível que a maioria das métodos diferentes, e a comunicação
ações da equipe multidisciplinar é focada mesmo que não verbal, ocorria através
em cima de um corpo limitado ao dos símbolos que seriam os gestos, neste
orgânico, como se houvesse apenas a caso especifico, o piscar.
necessidade de serem trabalhados os
Entende-se por comunicação como sendo
aspectos motores. É como se o sujeito
a troca de informações de um sujeito para
fosse reduzido apenas ao corpo, não
o outro através de mensagens codificadas
levando em consideração os aspectos
num sistemas de sinais definidos que
emocionais, expressivos e cognitivos do
podem ser gestos, sons, indícios, uma
indivíduo. Ou seja, Bauby foi tratado por
linguagem natural ou outros códigos que
muitos da equipe como apenas um corpo
possuam um significado. Na troca de
estático que precisava passar por um
comunicação sempre haverá um emissor,
processo de recuperação. Porém,
um código e um receptor (AMORA,
Henriette realiza uma conduta que acaba
2009). Sendo assim, o corpo está dentro
por sair dessa esfera onde o corpo é
da vida quotidiana, e apresenta-se dentro
apenas um produto e passa a atuar em
das relações. É um meio de comunicação,
cima dos sentimentos e das emoções de
pois através de signos ligados à
Bauby.
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linguagem e gestos, permitem a nossa a síndrome, ele rompeu o mundo das
comunicação com o outro. aparências - o mundo da ilusão – e passou
a visualizar um mundo “ideal”. Assumiu
Enquanto havia membros da equipe que
o papel de filosofo e passou a questionar
praticavam uma assistência fragmentada e
inúmeras coisas. Percebeu que, até então,
errônea com Bauby, não levando em
havia vivido uma vida vazia, sem que
conta suas potencialidades, opiniões e
cada detalhe tivesse a riqueza que
limitações, sendo muitas vezes irônicos,
aprendeu a perceber. Durante sua
também havia aqueles que enxergavam
vivência dentro do escafandro, percebe-se
nele a pessoa, fazendo com que o seu
a presença da solidão, do estranhamento
escafandro não fosse tão solitário.
de si mesmo, de sentimentos de negação,
Uma das profissionais que mais se de desespero e de arrependimento.
destaca é Henriette, a quem Bauby Entretanto, mais do que todos esses, havia
chamava de anjo da guarda, pois foi ela ainda, e muito vivo a autenticidade, a
quem instaurou o código de comunicação admiração pela vida, além da esperança e
que lhe possibilitou dar voz às borboletas. da crença na sua capacidade de amar,
Durante o processo de comunicação ela viver e produzir, mesmo estando preso a
intermediava os diálogos dele por si mesmo e com todas as suas limitações.
telefone, fazendo-o ser ouvido por seus
Muitas vezes ele tentava ponderar seus
entes queridos e dando voz as borboletas
sentimentos, para não estourar como uma
que surgiam como fragmentos da sua
panela de pressão, que, aliás, se tratava de
vida.
um dos títulos da peça de teatro que ele
Pode-se até mesmo tecer uma analogia pensava em fazer futuramente caso
acerca do Escafandro e a Borboleta com o conseguisse sair daquele estado. Remetia-
Mito da Caverna. Platão afirma que se a panela de pressão, pois vez ou outra
vivemos presos dentro de uma caverna e achava que iria explodir com o turbilhão
que este mundo no qual acreditamos ser de sentimentos que lhe enchiam a cabeça.
verdadeiro não passa de uma cópia
Bauby possuía uma rotina turbulenta,
imperfeita (aparências) de um outro
geralmente acompanhada por uma equipe
mundo perfeito, que ele chamava de
multidisciplinar, no qual todos os dias
mundo das ideias. No mundo das
realizava hidroginástica, fisioterapia
aparências permanecemos presos às
motora, fisioterapia linguística, banho por
ilusões, às opiniões, às imagens, às falsas
imersão e se comunicava com familiares,
realidades e às falsas promessas e que
amigos e escrevia uma parte do livro com
para atingirmos esse mundo ideal é
Claude ou Henriette. Muitas vezes
preciso que alguém (filosofo) ouse por
relatava os barulhos inconvenientes do
questionar e acreditar que existe outro
hospital, porém, detestava os finais de
mundo e que este, venha a romper todas
semana, pois o hospital ficava em
as barreiras (MATOSO, 2012).
silêncio, assim como ele, e sua única
Neste caso, Bauby estava preso no mundo forma de escapar disso tudo era virando
das aparências, ligado às coisas uma borboleta e voando pra longe dali.
supérfluas, que só depois do acidente
Depois de todos os seus relatos e
percebeu não valerem a pena. Não dava
reflexões lá estava Bauby entre a cadeira
importância pra as pequenas coisas e os
de rodas, o leito e os corredores do
pequenos gestos. O simbolismo do bem
hospital naval. Estava conformado em
material era maior dos que as pequenas
viver ali agora. Então, encerra o filme
relações sociais que tinha. Porém, durante
descrevendo o seu momento atual,
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aguardava notícias de seus amigos que Além de trazer reflexões sobre os valores
viajaram na temporada de férias e vez ou pessoais, científicos, amorosos, sobre a
outra ficava com Claude, que lia trechos coragem e fé, mostra também que diante
do livro que ele acabara de escrever. De dos obstáculos e questionamentos muitos
algumas páginas escritas ele se orgulhava, tendem a cruzar os braços diante da
de outros, nem tanto, mas se perguntava espera do que foi sentenciado, até mesmo
se todo aquele material daria um bom muitos profissionais e usuários de saúde
livro. cruzam os braços e se conformam com a
realidade dura, nua e crua, dizendo que
Relatava também, como estava sendo
nada podem fazer a não ser esperar.
viver com a Síndrome de Locked In,
transmitindo um ar de incertezas quanto Bauby nos mostra que pode haver
ao futuro. Em sua viagem imóvel, Bauby diferença quando não nos conformamos
queria expor suas experiências para as diante de uma realidade e passamos a
outras pessoas, torná-las úteis e provar, lutar e a burlar o que nos foi deliberado,
para elas e para ele mesmo, que era desvelando que sempre há uma brecha, e
possível viver encarcerado, ainda que na pode ser nesta que está a colina cujo sol
companhia das borboletas. Escrever brilhava radiante.
talvez fosse à forma que ele encontrou
para compreender o que essas lhe
causavam. Referências
AMORA, A. S. Minidicionário Soares Amora
Jean-Dominique Bauby faleceu no da língua portuguesa. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
mesmo ano em que a primeira edição de 2009.
seu livro chegou às lojas. Sua história
BRAUNSTEIN, F; PÉPIN, J. F. O lugar do
deixou marcas e inúmeras reflexões, corpo na cultura ocidental. Lisboa: Piaget
podendo ser trabalhada com diversos Editora, 1999.
públicos, principalmente na área da
DAOLIO, J. Da cultura do corpo. Campinas, SP:
saúde. De certa forma o filme sensibiliza, Papirus, 1995.
mostra que um ser humano não está
FILHO, M. F; GOMES, M. P. Síndrome do
pautado apenas no corpo em si, e que o Encarceramento (Locked In Síndrome) Registro
profissional pode trabalha-lo de diversas de um caso de revisão de literatura. Arq.
formas. Revela que a fragmentação do NeuroPsiquiatria (São Paulo) Vol. 40, nº3, Set.
corpo pode ser burlada, passando a ser 1982.
trabalhado em suas múltiplas dimensões. KRUSE, M. C. V. Os poderes dos corpos frios:
das coisas que se ensinam às enfermeiras. Tese
A vida humana não é apenas um de Doutorado. UFRGS, 2003.
amontoado de fatos dentro de um
contexto, onde nela está introduzido um MATOSO, L. M. L. A ética e a moral nas relações
entre-humanos: resenha crítica do filme “A ilha”.
sujeito. Ela perpassa abstrações que vão C&D-Revi. Eletr. Fainor, Vitória da Conquista,
além, como esperança, perseverança e v.5, n.1, p. 210-218, jan./dez. 2012.
amor. E no filme, somos remetidos a
questionamentos imensuráveis sobre o
direito a vida, aos questionamentos Recebido em 2013-09-10
Publicado em 2013-11-30
ético/moral, a conduta da equipe médica e
as relações que tecemos ao longo da vida.
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