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Guerras: de Napoleão ao século XXI

As Guerras Napoleônicas 1
Marcos da Cunha e Souza
Carlos Roberto Carvalho Daróz (Org.)

Ao estudarmos a História Militar durante a Idade Moderna, observamos grandes


transformações tecnológicas como, por exemplo, a consolidação e a banalização das armas
de fogo, seguidas da reformulação das praças fortificadas e da introdução da baioneta.
Vimos a influência que estes avanços tiveram no campo de batalha, ao mesmo tempo que a
transformação do Estado permitia a formação de exércitos cada vez maiores.

Contudo, as operações militares continuaram a ter alcance limitado, visando a captura de


uma importante fortificação ou de uma província. Eram, frequentemente, prolongadas guerras
de atrito, nas quais um país buscava abater a vontade de combater do adversário, retirando-
lhe território e drenando seus recursos financeiros. Era difícil fugir desta realidade. Vimos que
mesmo o vitorioso Frederico, o Grande, da Prússia, com todo o seu espírito ofensivo, não foi
capaz de impor sua vontade aos adversários.

A Guerra dos Sete Anos (1756-1763), na qual teve destaque esse monarca, terminou devido
ao exaurimento humano e financeiro dos principais estados envolvidos.

Veremos, neste capítulo, que a revolução política ocorrida na França, em 1789, ajudaria a
desencadear agudas transformações no campo militar, como a “nação em armas” e a “guerra
total”. Em parte, por este motivo, os conflitos ocorridos na Europa nos 25 anos seguintes
seriam de uma intensidade poucas vezes vista, levando à rápida submissão - ainda que
temporária - de potências como a Prússia, a Áustria e a Espanha.

Napoleão Bonaparte acabou sendo o ícone desta fase de ruptura, embora não tenha criado
a maior parte dos instrumentos que a caracterizaram. Ironicamente, muito daquilo que a
Revolução e Bonaparte trouxeram à luz ou aprimoraram foi adotado pelos adversários da
França para esmagá-la.

A Revolução Francesa e o jovem Napoleão

A Revolução Francesa (1789), em um primeiro momento, teve como consequência a limitação


do poder do rei Luís XVI, através da promulgação de uma Constituição.

A criação de uma monarquia constitucional, contudo, sofreu a oposição de certas regiões


rurais da França, além de parcela considerável do clero, da nobreza e da aristocracia.
Ademais, muitos oficiais do exército, especialmente das armas de Infantaria e Cavalaria,
abandonaram seus regimentos e buscaram exílio na Inglaterra e nos estados alemães. Estas
reações tiveram um duplo efeito:

•• Internamente, os líderes revolucionários, temendo pela sobrevivência do


movimento, adotaram medidas mais radicais.

1.  SOUZA, Marcos da Cunha e; DAROZ, Carlos Roberto Carvalho. As guerras napoleônicas. In: DAROZ, Carlos Roberto
Carvalho et al. Guerras: de Napoleão ao século XXI. Palhoça: UnisulVirtual, 2015.

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•• Externamente, as monarquias absolutistas sentiram a necessidade de restaurar


pelas armas o poder de Luís XVI.
Outros estados Afinal, a ideologia da Revolução se espalhava pelas nações europeias,
Grã-Bretanha, Espanha,
de modo a ameaçar o absolutismo. Em junho de 1792, Áustria e
Rússia, Holanda,
Nápoles e Toscana. Prússia criaram a Primeira Coalizão contra a Revolução, aliança que
nos anos seguintes seria engrossada por outros estados.

Não nos cabe aqui descrever este primeiro conflito. O que é interessante notar é que as forças
mobilizadas pela Revolução, embora desorganizadas, com carência de oficiais e treinamento,
conseguiram defender o território francês e até ocupar territórios de seus vizinhos. Desses
primeiros combates sairia o germe do exército napoleônico.

Em 1792, ocorreram dois combates marcantes. Em setembro, os generais franceses Dumouriez


e Kellermann se viram incapazes de opor uma defesa direta de Paris dada a inexperiência de
seus comandados. Assim, buscaram agir de forma indireta, posicionando-se em uma elevação
próxima a Valmy, ameaçando a retaguarda e a linha de suprimentos do exército prussiano
invasor. Essa atitude forçou os prussianos a dar meia volta para atacar os franceses com a
frente invertida, de costas para Paris (20 de setembro). A artilharia francesa, concentrada,
manteve afastada a infantaria prussiana e não houve realmente uma batalha. Foi, como disseram
alguns, uma “canhonada” que provocou poucas baixas de lado a lado. Incapazes de deslocar
os franceses e com sua linha de suprimentos comprometida, os invasores abandonaram
seus planos e deixaram a França. Através desta ação indireta, considera-se que Dumouriez e
Kellermann salvaram a Revolução e deram início à guerra napoleônica.

Nesse primeiro teste, os franceses, embora em superioridade numérica - com cerca de 60 mil
homens -, não se sentiram capazes de atacar o experiente exército prussiano. Menos de dois
meses depois, contudo, o mesmo general Dumouriez, à frente de 40 mil homens, atacou as
tropas austríacas entrincheiradas em Jemappes, no Flandres. Embora o ataque tenha sido mal
coordenado, o entusiasmo revolucionário e a esmagadora superioridade numérica varreram
os 14 mil defensores, abrindo as portas para a conquista de boa parte do território que hoje
chamamos de Bélgica.

Coincidentemente, um dia após a batalha de Valmy, a chamada Convenção, encarregada de


rever a Constituição de 1791, aboliu a monarquia e proclamou a república. No dia 21 de janeiro
de 1793, Luís XVI, condenado por traição, foi guilhotinado. Em outubro de 1797, a República
conseguiu firmar a paz com a Áustria, último país da Primeira Coalizão. Como resultado, a
França obteve o controle sobre a margem esquerda do Reno e os Países Baixos se tornavam
uma república “irmã” da República Francesa. Entretanto, menos de dois anos depois, as
ambições francesas na direção da Alemanha, da Suíça, da Itália e até do Próximo Oriente
levariam à formação da Segunda Coalizão contra a República.

Napoleão Bonaparte nasceu em Ajáccio, na Córsega, em 1769, apenas um ano após a ilha
ter passado ao domínio da França. Era o segundo filho de uma família de doze irmãos. Seu
pai era membro da pequena nobreza da Lombardia e tinha aspirações políticas. As ligações
deste com o governador local e a modesta ascendência nobre do jovem corso permitiram sua
matrícula, aos 10 anos de idade, na Escola Real Militar de Brienne.

É muito incomum escrever e estudar sobre a vida de Napoleão sem cometer o erro de formular
juízos de valor. Afinal, é um personagem que até hoje desperta ódio e paixões. Para uns, ele
ainda é “O Ogro” que teria devastado a Europa e causado a morte de mais de 3 milhões de
pessoas. Para outros, é o “gênio militar” que colocou de joelhos quase todos os monarcas
absolutistas da sua geração, transformando para sempre o ocidente.

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Apesar dos equívocos que cometeu, seu talento militar poucas vezes foi colocado em dúvida.
Muitos historiadores, entretanto, se perguntam até que ponto sua meteórica ascensão foi fruto
de suas qualidades pessoais ou se foi decisivamente auxiliada pelas circunstâncias daquele
momento histórico, que se seguiu à Revolução Francesa.

David G. Chandler inicia seu clássico “The Campaigns of Napoleon” com esta, dentre
outras instigantes perguntas.

Diz-se, por exemplo, que o fato de Napoleão ter nascido na pequena nobreza o ajudou a
começar seus estudos e sua carreira militar, mas, em contrapartida, não o comprometeu junto
aos republicanos após a queda do Ancien Régime. Ademais, até mesmo ele reconheceu que
a Revolução o favoreceu, criando um ambiente instável, “aberto aos talentos” (CHANDLER,
1991, p. XXVII) e semeando situações propícias que ele soube habilmente aproveitar, como:

•• A primeira delas foi em 1793, quando Napoleão teve papel decisivo na expulsão
dos ingleses de Toulon. Sua competente atuação somada à carência de oficiais
superiores no Exército francês possibilitaram sua prematura promoção ao posto
de general de brigada.
•• Por outro lado, após passar parte do ano de 1794 acompanhando as operações
militares que se desenrolavam na Itália, quase teve sua carreira interrompida ao
ser preso por sua amizade com o irmão do líder revolucionário Robespierre.
•• Solto pouco depois, manteve sua patente, mas se viu desprestigiado, até que
uma insurreição monarquista em Paris, em outubro de 1795, fez dele o homem
certo na hora certa. Bonaparte, com a ajuda do capitão Murat, trouxe para a
ação os canhões que dispersaram a multidão, ceifando a vida de muitas dezenas
de insurretos.
A partir de então, sua carreira militar não encontraria mais resistência e, em 1796, aos 27 anos
de idade, ele recebeu o comando do exército francês na Itália.

Os instrumentos da Guerra Napoleônica

Diga-se, desde já, que muitas das vantagens que os exércitos de Bonaparte tiveram sobre os
seus adversários não foram criações suas. Aliás, é comum afirmar que Napoleão pouco fez
no sentido de revolucionar a arte da guerra. Ele teve o privilégio de herdar da Revolução, e
até mesmo do antigo regime monárquico, um exército reformado, com a melhor artilharia da
Europa e com anos de experiência de combate.

A primeira grande modificação, nas palavras do coronel Nilson Vieira Ferreira de Mello, ocorreu
nos efetivos:

A idéia de nação em armas inaugurava o conceito moderno de guerra total,


a guerra nacional que mobiliza todos os recursos do país que se façam
necessários. O voluntariado em massa, resposta ao brado de la nation en danger
lançado pelo Diretório, permitiu a constituição, já em 1794, de um exército de
750.000 homens. Esse enorme contingente deveria compensar pela quantidade
o que lhe faltava em qualidade. Às deficiências individuais de instrução e
treinamento opunham os revolucionários o patriotismo, noção relativamente
nova, e o ardor cívico que os franceses chamam de élan (...). E essas imensas
massas humanas eram entregues a jovens alçados instantaneamente dos postos
inferiores da hierarquia ao generalato. (MELLO, 2004, p. 6).

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A Revolução também teve o mérito de dar seguimento às importantes reformas empreendidas


na artilharia francesa pelo conde Jean-Baptiste de Gribeauval (1715-1789) nos últimos anos do
regime monárquico.

Graças a ele, os canhões foram padronizados, aligeirados e dotados de um desenho mais


eficiente, com reparos e rodas que facilitavam a manobra. Essas reformas deram à França a
artilharia mais eficiente e móvel do mundo. Ademais, dada a origem burguesa de grande parte
dos oficiais de artilharia, essa arma acabou sendo menos afetada pelo êxodo que se seguiu
à Revolução. Em decorrência dessas mudanças, Napoleão obteve no campo de batalha o
emassamento rápido dos fogos e, consequentemente, a abertura de brechas nos dispositivos
inimigos.

Outra importante criação do novo regime foi a constituição da divisão, unidade permanente
de Infantaria ou Cavalaria, inicialmente formada por elementos de todas as armas, com
autonomia administrativa e logística, capaz de combater e marchar separadamente. Foi
um grande passo evolutivo em relação aos exércitos dos séculos XVII e XVIII. Estes,
ou marchavam inteiros em grandes e lentas colunas ou se dividiam em destacamentos
provisórios, sem estrutura administrativa própria.

À medida que o exército napoleônico crescia, as mesmas características foram sendo


transmitidas aos Corpos de Exército, formados por duas ou três divisões de infantaria e uma
divisão de cavalaria. Assim, em 1806, foi um único corpo francês, comandado por Davout, que
suportou o impacto do exército prussiano, como veremos mais adiante.

À reboque da criação das divisões surgiu, durante a Revolução, uma logística mais flexível,
menos dependente dos armazéns que tanto limitaram as ações e a velocidade dos exércitos
do século XVIII. Essa flexibilidade foi um dos pilares das vitórias alcançadas por Napoleão
Bonaparte até 1812. Com centenas de milhares de homens alistados, já em 1793, o Comitê
de Salvação Pública viu-se forçado a adotar o velho princípio de que a guerra deve alimentar
a guerra. As tropas deveriam viver dos recursos extraídos do território que estivessem
ocupando. Essa solução, adotada como um sistema logístico, aparentava ser um retrocesso.

Durante a Idade Moderna, países como a França e a Prússia do século XVIII reuniam
previamente, em armazéns bem protegidos, os meios logísticos a serem empregados na
campanha do ano seguinte. Quando em movimento, os exércitos das monarquias absolutistas
eram acompanhados por numerosas carretas de suprimentos, que garantiam sua subsistência
regular, mas limitavam sua velocidade e raio de ação. “Viver do país”, como propunham os
comandantes da Revolução, seria uma solução impossível de funcionar se um exército tão
grande como o francês mantivesse os sistemas administrativo e de marcha do Antigo Regime,
sem falar na violência intrínseca à coleta de recursos junto à população. Havia, ainda, o
problema das munições, que não podiam ser encontradas em qualquer lugar.

A solução para esses problemas foi desenhada por Lazare Carnot (1753-1823), membro do
Comitê de Salvação Pública durante a República, que conjugou a estrutura das recém-criadas
divisões com a velha prática de extrair dos territórios ocupados o sustento dos soldados.
Os atritos com a população civil foram diminuídos com a entrega de recibos relativos aos
suprimentos recolhidos. Mais tarde, as impetuosas manobras de Napoleão sobre a retaguarda
adversária vieram a capturar enormes quantidades de suprimentos, incluindo armamento,
pólvora, munição e pontes de campanha.

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Outro aspecto importante diz respeito ao recrutamento. Entre 1799 e 1815, Napoleão
obedeceu às regras anunciadas pela Lei Jourdan-Delbrel. O legislativo e, a partir de 1805,
Napoleão estipulavam, a cada ano, o número de homens que cada departamento (província)
deveria fornecer. Os conscritos eram escolhidos por sorteio, mas dependiam da aprovação em
um exame médico.

Apesar dos grandes efetivos alcançados pelo exército francês durante este período, o peso
sobre a população não teria sido tão grande quanto se pensa. Do consulado ao início do
Império, calcula-se que 19% dos conscritos cadastrados teriam sido incorporados. Esse
número chegaria a 30% entre 1805 e 1810. Sobre a população total, o índice chegaria então a
7% (SERMAN; BERTAUD, 1998). É preciso lembrar que cerca de um terço dos soldados que
combateram sob as ordens de Napoleão eram oriundos de territórios anexados pela França
ou de nações aliadas. Destaque-se, ainda, a preocupação de Napoleão com os “campos de
instrução”, dos quais

[...] o mais importante era o de Boulogne, montado em 1803 para concentrar


e instruir os contingentes destinados à invasão da Inglaterra. Nessas áreas,
as tropas adquiriam e aperfeiçoavam a capacidade manobreira, a coesão,
o emprego do armamento e o hábito de trabalhar enquadradas em grandes
unidades. Em Boulogne forjou-se a ‘Grande Armée’, extraordinário instrumento
das campanhas napoleônicas. (MELLO, 2008, p.2).

Em contrapartida, Napoleão mantinha um serviço de estado-maior bastante deficiente.


Sua autoconfiança fazia com que desprezasse a opinião de seus oficiais e evitasse delegar
atribuições. Assim, em lugar de auxiliá-lo na formulação de linhas de ação, o estado-maior
francês era apenas um órgão de redação e expedição de ordens e mensagens.

Você sabia que Napoleão nunca se preocupou em acrescentar qualquer progresso ao


armamento francês? O fuzil continuou a ser o modelo 1777, que disparava 4 vezes por
minuto, com alcance efetivo de 200 metros. Ele suprimiu o corpo de balões, criado pela
Revolução e que fora decisivo na coleta de informações que precedeu a vitória de Fleurus
(1794) e também não deu importância às experiências de Robert Fulton com navios a
vapor.

Do Diretório ao Império

Após a proclamação da República e a morte de Luís XVI, a França mergulhou em profunda crise
interna, enquanto era ameaçada pelas forças militares da Primeira Coalizão. Iniciou-se uma fase
conhecida como “O Terror”, que teve como consequência 2.600 condenações à morte, apenas em
Paris, e cerca de 35 mil mortes através do país.

Robespierre, símbolo deste período, à frente do Comitê de Salvação Pública, acabou sendo
derrubado e guilhotinado em julho de 1794. A situação financeira e a guerra impediram o
estabelecimento de um regime constitucional estável. Foi nessa fase que Napoleão foi preso e,
pouco depois, esmagou uma revolta monarquista na capital.

continua...

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O estabelecimento de uma terceira constituição republicana, em outubro de 1795, instituiu o


regime do diretório, mas não resolveu os problemas internos. Externamente, a magnífica campanha
de Napoleão na Itália (1796-1797), que resultou na paz com a Áustria, colocou o jovem general em
primeiro plano. Novas repúblicas “irmãs” da França foram criadas, reforçando o prestígio político
dos militares.

As ambições francesas levaram Napoleão ao Egito no mês de junho de 1798, para tentar ferir o
poderio britânico na rota da Índia. Enquanto isso, uma paz muito curta no continente terminava
com a criação da Segunda Coalizão contra a França, formada pela Grã-Bretanha, Áustria, Rússia,
Nápoles e Turquia. Enquanto Napoleão se via isolado no Egito pela frota inglesa, os exércitos da
República se viam batidos em todos os fronts europeus.

O diretório, incapaz de resolver os problemas internos e externos, via-se à mercê de um golpe


de estado. Temendo que a guerra levasse à restauração da monarquia ou à subida ao poder de
outra facção republicana, os velhos revolucionários se mostravam dispostos a apoiar quem quer
que pudesse lhes garantir as posições alcançadas pela Revolução. O povo, por sua vez, aspirava
por ordem e paz. O general Joubert, que tinha apoio suficiente para tomar o poder, morreu em
combate em agosto de 1799. Foi assim que Napoleão Bonaparte, após retornar do Egito, obteve
apoio e encorajamento para o golpe de estado de novembro de 1799. Com isto, uma comissão
consular de três membros, dentre os quais Napoleão, foi encarregada de instituir uma nova
Constituição. Desta, Napoleão surgiu como o homem forte da França, com o título de Primeiro
Cônsul. Cinco anos depois, auxiliado pela paz com a Inglaterra e por importantes reformas internas
(como o Código Civil) ele se faria imperador dos franceses.

Estratégia

Inicialmente, precisamos perceber que, para Napoleão, o planejamento estratégico tinha como
foco colocar o exército adversário em uma situação insustentável, que o obrigasse a se render
ou a aceitar uma batalha em condições desvantajosas. Pelo menos até 1807, fica claro
também que seu objetivo era o de obter uma vitória rápida e total com um mínimo de perdas.
Consequentemente, ele não apreciava forçar uma grande batalha frontal, marchando
diretamente contra o adversário posicionado em um terreno previamente escolhido por este.
Napoleão sabia que tais batalhas eram custosas e raramente decisivas, como seria, em 1812,
a batalha de Borodino.

Muitos estudiosos acreditam que o pensamento estratégico de


Sítio Isto é, o assédio
de uma fortificação. Napoleão encontraria sua síntese em um de seus aforismos mais
famosos, proferido em 1794, no início de sua carreira militar: “Os
princípios da guerra são os mesmos de um sítio.

O fogo deve ser concentrado em um único ponto e tão logo seja aberta a brecha o equilíbrio
está rompido e o resto nada representa” (HART, 1982, p. 143).

Liddell Hart, tendo em vista as campanhas nas quais Napoleão teria se servido desta máxima,
concluiu que a palavra “ponto” deve ser interpretada como “junção”. Foi assim na campanha
de 1796, quando seu ataque teve início contra o ponto de junção entre os Exércitos do
Piemonte e da Áustria, separando estes dois aliados para depois batê-los por partes. Afinal,
nos primeiros anos, completa o pensador britânico,

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Bonaparte estava tão imbuído da idéia de economia de força que não iria
desperdiçar seu limitado poderio para martelar um ponto forte do inimigo! Uma
junção, sim, pois ela é, ao mesmo tempo, vital e vulnerável (HART, 1982, p. 144).

Liddell Hart ressalta, ainda, que muitas das vitórias de Napoleão tiveram, na origem, amplas
manobras indiretas, ameaçando a retaguarda do adversário e causando agudo efeito moral.
Entretanto, segundo ele, esta fórmula deixou de ser usada, com toda a sua eficiência, a partir
de 1807. Então, “toda vez que surgiam obstáculos para a execução dessa manobra, sua
impaciência levava-o a arriscar-se a ataques diretos e uma batalha decisiva” (HART, 1982, p.
156-157). Assim teria sido em Friedland, no mês de junho, contra os russos, onde a vitória,
puramente tática, não foi obra nem da surpresa, nem da mobilidade, mas apenas do peso de
seu poderio militar.
Livro inteiro Dentre O general francês Hubert Camon, reconhecido como um dos maiores
as diversas obras de
estudiosos da Guerra Napoleônica, dedicou um livro inteiro à
Camon, falecido em
1942, refiro-me aqui estratégia de Bonaparte. Na essência, suas conclusões não diferem
ao livro “La Guerre muito das de Liddell Hart, pois também identificam a existência de
Napoléonienne”, ataques sobre a “junção” e ataques indiretos. Camon salienta, porém,
reeditado em 1997.
que a conduta de Bonaparte dependia do fato de gozar ou não de
superioridade “real” no teatro de operações. Esta superioridade não
seria apenas de efetivos, mas também “moral” e de “valor” dos soldados.

Havendo superioridade, a estratégia seria a de lançar seu exército sobre a retaguarda do


inimigo, seja para batê-lo em um único golpe, sem lhe dar oportunidade de escapar, seja para
forçá-lo a um recuo desesperado, quando então suas forças desmoralizadas poderiam ser
dominadas ou batidas com maior facilidade.

Esta estratégia foi posta em jogo em Ulm (1805) e Iena-Auerstadt (1806), como veremos
mais adiante.

Finta Denominação Nessas ações contra a retaguarda inimiga, era preciso destacar
para ação diversionária,
destinada a iludir o
uma parte da força para fixar a frente do adversário, mantendo-o
inimigo. relativamente imóvel e ignorante quanto às reais intenções francesas.
Uma finta também poderia ser realizada para causar o mesmo efeito.
Tanto Camon quanto Liddell Hart e David G. Chandler apontam que
Napoleão buscava ocupar na retaguarda uma barreira geográfica, como um rio, uma cadeia de
montanhas, um passo ou uma cidade, constituindo uma “barragem estratégica” que cortasse
as linhas de retraimento do adversário, a fim de isolá-lo completamente. Em seguida, os
diferentes corpos se lançavam sobre o inimigo como uma rede, minuciosamente calculada
para permitir um apoio recíproco entre as unidades.

Em 1800, Bonaparte obteve este resultado tomando o desfiladeiro de Stradella. No início da


campanha de 1805, ele isolou o Exército Austríaco em Ulm ao ocupar a linha do rio Lech,
como veremos mais adiante.

Por outro lado, quando Napoleão não dispunha de uma superioridade “real”, ele buscava “[...]
dividir as forças adversárias ou tirar vantagem de sua separação inicial, para tomar [...] uma
posição central, de onde ele manobrava para esmagá-las sucessivamente” (CAMON, 1991, p.159).
Assim procedendo, ele conseguiu muitas vezes reverter a situação de inferioridade, demonstrando
que “[...] a vitória [...] era sempre, como vós podeis ver, o triunfo do grande número sobre o
pequeno.” (Napoleão, comentando a campanha de 1796, apud CAMON, 1991, p. 160).

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As duas manobras napoleônicas - “posição central” e “sobre a retaguarda” - frequentemente


se combinavam. Em 1800, a ofensiva no norte da Itália caiu sobre a retaguarda de Melas e,
ao mesmo tempo, colocou o Exército Francês entre as frações do exército austríaco, uma
das quais estava na região de Gênova. Nas manobras de Ulm (1805) e Iena (1806), a marcha
envolvente também serviu para isolar frações e batê-las por partes. Por outro lado, após
adotar a posição central em abril de 1796, Napoleão usou a manobra sobre a retaguarda para
tentar destruir os piemonteses de Colli.

A estratégia britânica

Embora a França ocupe uma posição central neste período, não podemos esquecer-nos da
estratégia adotada pela Grã-Bretanha, potência vital para o fracasso do império napoleônico.

Segundo o historiador David G. Chandler, a Grã-Bretanha, no início do conflito, usou uma


estratégia que consistia em usar seu formidável poder econômico para subsidiar financeiramente
coalizões antifrancesas no continente europeu, enquanto ela usava sua gigantesca frota naval
para controlar os mares, apresar navios e montar ataques contra as colônias da França e dos
estados por ela ocupados: Holanda e Espanha. Esta estratégia, até 1809, não conseguiu ser
eficaz. Contudo, a partir de 1808, o governo britânico adicionou um elemento a mais a sua política,
aproveitando-se da entrada dos territórios de Portugal e Espanha no contexto da guerra terrestre
europeia (CHANDLER, 1979). Então, na chamada “Guerra Peninsular”, tropas britânicas não muito
numerosas, apoiadas por milhares de portugueses, espanhóis (principalmente guerrilheiros) e pela
Marinha Real inglesa, conseguiram impor aos franceses uma ameaça que consumiria parcela
importante do exército de Napoleão, abrindo as portas para a sua derrota.

A batalha napoleônica

A falta de instrução militar dos primeiros soldados da revolução dificultava o uso eficiente do
combate linear, em um contexto em que as unidades táticas eram desdobradas no campo
de batalha em três fileiras de atiradores. A conjuntura acabou por gerar a chamada “l´order
mixte”, combinando colunas profundas, destinadas ao ataque e ao combate corpo-a-corpo,
com o apoio de fogo prestado por linhas de atiradores. Na vanguarda, no início da batalha, a
chamada infantaria leve combatia em ordem dispersa e oferecia cobertura ao exército.

O coronel Nilson Vieira de Mello é da opinião de que não se pode falar em um sistema
de batalha napoleônica, mas em uma maneira peculiar de agir, segundo princípios
inteligentemente observados. O primeiro, segundo ele, foi

[...] a iniciativa para impor ao adversário o local do combate e para obrigá-lo


a expor sua idéia de manobra. Os outros são a rapidez nos deslocamentos e
nas mudanças de dispositivo, de modo a obter a surpresa e a concentração do
máximo de força no ponto decisivo, concentração esta obtida com a economia
de meios nos setores secundários do campo de batalha. (MELLO, 2004, p.5 - 6).

Na batalha, reencontramos princípios semelhantes àqueles vistos no plano estratégico.


Napoleão não busca vencer sobre toda a frente, mas abrir uma brecha capaz de romper o
equilíbrio. Daí a necessidade de constituir uma massa de ruptura, a ser poupada até o
momento decisivo. Por vezes, ameaçava-se um dos flancos inimigos, obrigando-o a usar suas
reservas ou prolongar sua frente. Era este o sinal para atacar aquele ponto preciso reservado à

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massa de ruptura. A artilharia bate o ponto, a infantaria o rompe e a cavalaria por ele passa,
determinando a vitória.
Perseguição tática Após uma batalha decisiva, como Iena, em 1806, Napoleão buscava
Essa exploração tática
alcançar os últimos destroços do exército vencido. Assim como o
remetia à exploração
máxima do combate. aproveitamento do êxito devia ser seguido, sempre que possível, por
uma perseguição tática, toda campanha deveria ser complementada
por uma perseguição estratégica. Neste momento, a cavalaria deveria
ultrapassar a infantaria e ocupar, sobre a linha de retirada inimiga, posições fortes onde
pudesse deter firmemente o adversário até a chegada dos infantes.

Num esforço de síntese, podemos resumir assim a ação de comando


de Napoleão: inicialmente, analisava as circunstâncias do campo de
batalha (estudo de situação) e levantava alternativas (linhas de ação),
enquanto aguardava as informações buscadas pelos meios de descoberta
(reconhecimento – cavalaria ligeira); devidamente informado sobre o terreno
e o inimigo (atitude, valor, dispositivo e possibilidades), tomava a iniciativa
visando a surpresa; contra um adversário dividido em grupamentos, manobrava
velozmente para impedir sua reunião; então, batia-os separadamente; se
o inimigo apresentava-se com uma única massa, ameaçava suas linhas de
comunicação, levando-o a combater com a frente invertida. Suas batalhas,
portanto, não seguiam um esquema único; variavam segundo as circunstâncias
reveladas pelo estudo de situação. (MELLO, 2004, p. 9 - 10).

Quatro Vitórias Clássicas

Agora que já estudamos o raciocínio estratégico e tático de Napoleão, assim como os


instrumentos que estavam à sua disposição, vamos fazer um exame sucinto da aplicação
prática daquelas ideias e inovações, ao longo de quatro campanhas que ajudaram a construir
sua fama como general.

A primeira campanha da Itália (1796)

Em 1795, embora não tenha sofrido nenhuma derrota importante, a Prússia se retirou da
guerra. Na primavera de 1796, os franceses estavam divididos em três exércitos. Dois deles,
comandados por Jourdan e Moreau estavam no teatro principal de operações, ao longo do
Reno e com vistas a atuar ofensivamente. O terceiro exército, com escassos recursos devido
a menor prioridade recebida, foi entregue ao jovem Napoleão Bonaparte, no front italiano. Os
austríacos, apoiados por pequenos aliados e por recursos financeiros ingleses, conseguiram
formar uma força ligeiramente superior àquela dos revolucionários.

Quando Napoleão assumiu o comando do exército da Itália, encontrou suas quatro divisões
perigosamente espalhadas em um cordão comprimido entre as montanhas e o mar, indo até
Voltri e com um destacamento defendendo o passo de Tende. Sua área de apoio logístico
era Savone e seu eixo principal de suprimentos (EPS) seguia pelo litoral até Nice. À sua frente
estavam dois exércitos adversários, os piemonteses de Colli, à esquerda, e os austríacos de
Beaulieu, à direita. Napoleão não demorou para modificar essa situação desconfortável. A
acidentada geografia fazia de Carcare o ponto de junção dos dois adversários e foi sobre este
ponto que Napoleão lançou três das suas quatro divisões no dia 12 de abril. Com isso, graças
à geografia montanhosa, a ligação entre os adversários foi deslocada 70 km para o norte na
estrada Alba – Acqui.

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Vejamos esta estratégia no mapa a seguir:

Figura 1.1 - Napoleão, por um golpe ofensivo, ocupa uma posição central

Fonte: FreeWebs (2014).

Nos dias 14 e 15 de abril, Bonaparte bateu os austríacos em Dego e os fez recuar. Assim, ele
conseguira, mediante um golpe ofensivo, ocupar uma posição central, com vistas a bater os
adversários separadamente. Isso lhe deu a oportunidade de se voltar contra os Piemonteses,
conseguindo empurrá-los de Ceva até Mondovi.

No dia 19 do mesmo mês, Colli repeliu um novo ataque francês. Bonaparte, então, decidiu
concentrar todos os seus esforços contra os piemonteses, mas, para isso, teve que mudar
sua linha de suprimentos (EPS) mais para o norte. Com essa manobra pôde tirar a divisão do
general Laharpe de Dego e com ela liberar o general Massena para unir-se ao ataque a Colli.
Cobrindo a estrada de Savone - que perdera importância com a mudança do EPS -, deixou
apenas um regimento. Executado o plano, duas divisões conquistaram Mondovi no dia 21. No
dia 25, Alba e Cherasco foram ocupadas. No dia 26, fez-se a ligação com o destacamento no
passo Tende, abrindo caminho para novo EPS. Mas isto não foi necessário, pois no dia 28 os
piemonteses pediram a paz.

Eis, em resumo, uma campanha ofensiva sobre posição central. O sucesso obtido pode ser
resumido em uma única frase de Bonaparte: “A natureza da estratégia consiste em sempre
ter, mesmo com um exército mais fraco, superioridade numérica no ponto de ataque”
(DELBRUCK, 1990, p. 428).

Napoleão, então, conseguiu fazer com que os austríacos recuassem para o leste, na direção
da fortaleza de Mântua, onde se refugiaram e foram cercados. Ocorre que ele não era dado
a perder tempo com o assédio de fortificações, e, basicamente, utilizou a fortaleza como
isca para atrair as colunas austríacas que vieram em seu socorro. Sua postura defensiva
era apenas aparente e poderia ser chamada de uma “expectativa estratégica”. As colunas
inimigas, vindas do norte e divididas pelo lago de Guardia, possibilitaram que Napoleão
assumisse, mais uma vez, uma posição central, batendo-as sucessivamente. Mântua rendeu-
se em fevereiro de 1797, permitindo que Bonaparte, através dos Alpes, ameaçasse a Áustria e
obrigasse o adversário a assinar um armistício em abril do mesmo ano.

O norte da Itália foi o teatro de outra campanha famosa. Vamos vê-la?

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Guerras: de Napoleão ao século XXI

A segunda campanha da Itália (1800)

No final de 1799, a posição militar da França estava em declínio face a uma nova coalizão
de adversários. Contudo, ela ainda mantinha presença na Suíça e, mais ao sul, na região
italiana de Gênova. Embora a linha do Reno fosse o teatro principal de operações contra os
austríacos, Napoleão, que já era Primeiro Cônsul, não quis entrar em atrito com o general
Moreau, comandante do exército francês naquela frente e seu discreto rival no campo político.
Assim, decidiu voltar sua atenção para o norte da Itália, onde forças austríacas haviam
recuperado quase todo o terreno perdido em 1796 e controlavam o vale do Pó e a região de
Turim, Milão e Alexandria.

O plano era audacioso. Ele não iria repetir a campanha de 1796, quando iniciara sua ofensiva
a partir do litoral, contra a junção dos exércitos adversários. Sua ideia era usar os 40 mil
franceses estacionados entre Nice e Gênova - comandados por Massena - para fixar as forças
austríacas do general Melas que somavam cerca de 120 mil homens. Então, usando a Suíça
como ponto de partida, a força principal atravessaria o passo do Grande São Bernardo e, por
uma ampla manobra de envolvimento, cortaria as comunicações entre Melas e a Áustria.

Vejamos essa manobra na figura a seguir:

Figura 1.2 - A Segunda Campanha da Itália

Fonte: FreeWebs (2014).

A preparação exigiu grande atenção e segredo. Antes de mais nada, a força principal foi
reunida no interior da França, entre Dijon e Lyon, e para enganar o adversário, ganhou o nome
de “Exército de Reserva”, sob o comando nominal do general Berthier. Por outro lado, cuidou
Napoleão de acumular suprimentos na Suíça para a fase inicial da campanha. A principal
fonte de suprimentos, contudo, dependeria do sucesso do movimento desbordante, quando
esperava conquistar os principais armazéns de Melas. Caso a manobra falhasse ou Napoleão
fosse vencido em combate, ele esperava poder recuar na direção do passo de São Gotardo.

Para auxiliar esse projeto, no dia 28 de abril de 1800, o general Moreau atravessou o rio
Reno, empurrou os austríacos pela Baviera e ocupou o passo de São Gotardo. Com esse
movimento, oferecia cobertura à manobra planejada por Napoleão, além de possibilitar a
passagem de um corpo de exército na direção do norte da Itália.

17
Universidade do Sul de Santa Catarina

Em maio, Napoleão iniciou sua penosa marcha pelos Alpes suíços, com 40 mil homens e
100 canhões. No dia 15, Melas foi informado da presença de franceses naquela região, mas
acreditou ser uma manobra diversionária. A travessia do passo exigiu grandes esforços, mas
foi compensada pela surpresa que causou ao adversário quando, no dia 25, a vanguarda
francesa apareceu no norte da Itália. Entretanto, dois fatos vieram a prejudicar os planos do
comandante francês.

•• Em primeiro lugar, o general Massena, que fixava Melas ao sul, na Riviera italiana,
viu-se batido e cercado dentro de Gênova.
•• Em segundo lugar, a pequena fortaleza de Bard, no caminho de descida do
Grande São Bernardo, resistia mais do que o esperado. Sua posição em um
desfiladeiro conseguiu deter o grosso da artilharia francesa, obrigando Napoleão
a seguir em frente, sem esse precioso apoio.

O envio de uma coluna francesa na direção de Turim fez crer ao comandante austríaco que
aquele era o objetivo de Napoleão. Enquanto Melas pensava assim, o comandante francês
entrou em Milão, no dia 2 de junho, sem encontrar grande resistência. Ali, ele logo foi reforçado
por 18 mil soldados enviados da Alemanha por Morreau, passando pelo São Gotardo.

Veja que a manobra feita contra a retaguarda inimiga, transformou-se em uma manobra
sobre posição central, na medida em que Bonaparte agora estava entre duas frações do
exército austríaco.

A fração maior, sob as ordens de Melas, estava aprisionada entre Napoleão e a fronteira
francesa. A fração menor, a leste de Milão e aturdida por aquela manobra, acabaria por recuar
na direção de Cremona e Mântua. Assim, poderia o cônsul francês dedicar seus esforços no
sentido de destruir as forças de Melas.
Piacenza Nas fontes Para estabelecer a barragem estratégica, típica de suas ações sobre
francesas, chamam a
a retaguarda, como vimos na Seção 4, ele enviou a cavalaria de Murat
cidade de Plaisance.
Localiza-se ao sul de e a divisão Boudet para ocupar Piacenza, enquanto o grosso seguia
Milão, na margem na direção de Stradella, longo desfiladeiro entre os montes Apeninos
direita do Pó. e o rio Pó. Dentro deste quadro, Melas estaria com suas linhas de
suprimento completamente cortadas, além de ter perdido os armazéns
de Milão e Piacenza, capturados pelos franceses.

Figura 1.3 - O primeiro-cônsul Napoleão


cruzando os Alpes no passo de Grande São
Bernardo, por Jacques-Louis David, 1800
O otimismo de Napoleão é visível na sua correspondência
do dia 7 de junho, na qual escreveu que “[...] não resta a
Melas outro recurso senão uma batalha sem outra retirada
que uma das fortalezas de Tortone e Alexandria” (CAMON,
1997, p. 117). E a batalha que se seguiria deveria ser em
uma posição escolhida pelo Primeiro Cônsul, provavelmente
em Stradella. Ocorre que, no dia seguinte, chegou ao
campo francês a notícia de que o general Massena, cercado
em Gênova, havia se rendido. Com a queda desse porto,
abria-se aos austríacos a possibilidade de receberem
suprimentos por mar, com a ajuda da frota inglesa. Assim,
desapareciam as chances de um golpe decisivo e a
campanha corria o risco de terminar inconclusiva. Para
Napoleão, que acabara de tomar o poder na França, isso
Fonte: Acervo do Kunsthistorisches Museum, (2014).
era politicamente perigoso.
18
Guerras: de Napoleão ao século XXI

A solução encontrada por Napoleão foi adotar uma postura considerada, por muitos, como
imprudente. Ele precisava impedir que Melas, à frente do grosso do exército austríaco,
alcançasse Gênova, passando por Alexandria e Novi. Contudo, Bonaparte estava enfraquecido,
pois tivera que destinar alguns destacamentos para observar as forças austríacas a leste, na
direção de Mântua. Assim, ele contava com apenas 28 mil homens para essa tarefa, com pouca
cavalaria e apenas duas dúzias de canhões. No dia 13 de junho, o exército francês deixou a
segurança das posições ocupadas na “barragem estratégica” e seguiu na direção de Alexandria,
onde estavam as tropas do comandante austríaco. Ao chegar à vasta planície de Marengo,
separada de Alexandria pelo rio Bormida, Napoleão dividiu novamente suas forças, dando
ordens para que uma divisão de 5.300 homens, comandada por Desaix, marchasse para o sul,
retardando uma possível fuga de Melas na direção de Gênova.

Na manhã do dia 14, usando pontes que a vanguarda francesa desconhecia, 31 mil
austríacos cruzaram o rio Bormida e atacaram as forças de Bonaparte. Surpresas e em
inferioridade numérica, as tropas francesas passaram a manhã recuando e tentando evitar o
desbordamento de seus flancos. Entretanto, para a sorte de Napoleão, o general Desaix, ao
sul, ao ouvir o troar dos canhões, não esperou ordens superiores e marchou para o campo de
batalha. A intervenção de Desaix, que morreu logo em seguida, e a carga de cavalaria dos 700
homens de Kellermann salvaram o exército francês no final da tarde, transformando a provável
derrota em uma grande vitória.

Embora o número de mortos e feridos tenha sido equilibrado, sete mil austríacos foram
capturados, levando Melas a assinar um armistício. Para Bonaparte, o resultado da batalha
teve grande efeito político. Contudo, ele se viu obrigado a reescrever em seus relatórios a
história da campanha, tentando provar que seu gesto impetuoso na direção de Alexandria
fora, desde o início, cuidadosamente calculado.

A seguir, vamos acompanhar os acontecimentos de mais uma campanha liderada por


Bonaparte.

A Campanha de Austerlitz (1805)

A sagração de Napoleão como imperador dos franceses, em dezembro de 1804, serviu para
aumentar a tensão nas capitais europeias, cientes de suas grandes ambições. Entre as
principais famílias reinantes, apenas Carlos IV da Espanha felicitou o novo soberano.Entre abril
e agosto de 1805, a Inglaterra, com promessas de ajuda financeira, conseguiu formar com a
Rússia, a Áustria, Nápoles e a Suécia a Terceira Coalizão antifrancesa. Napoleão, em resposta,
ocupou o Hanover e concentrou seu exército às margens do Mar do Norte, na esperança de
poder invadir a Grã-Bretanha. Mas a permanente superioridade naval inglesa pôs fim a esse
projeto.
Hanover Região do Antes mesmo que sua frota fosse derrotada em Trafalgar, Napoleão já
norte da Alemanha.
Naquele tempo, ligada
se pusera em marcha na direção da Alemanha, à frente de cerca de
à coroa inglesa. 200 mil homens. Era preciso agir com rapidez, pois um exército russo
marchava para fazer junção com os austríacos. Acompanhe o mapa
dessa situação estratégica.

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Figura 1.4 - A Manobra de Ulm

Fonte: FreeWebs (2014).

Napoleão imaginava que os austríacos, após invadir a Baviera, que era aliada da França,
iriam tentar bloquear as saídas da Floresta Negra. Desejando que isto ocorresse, ele imaginou
uma manobra envolvente, contornando a floresta pelo norte com o grosso do seu exército.
Ele esperava, com isto, ou cair sobre a retaguarda do inimigo, ou surpreender os corpos
austríacos, caso estes permanecessem na Baviera. Para fixar os adversários durante a
manobra, ele usou parte da sua força para simular uma travessia da referida floresta. Então,
felizmente para Napoleão, o comandante austríaco Mack agiu como o previsto e posicionou
seus 72 mil homens na região de Ulm.

A marcha feita com uma velocidade incomum pelos padrões da época, com cada corpo de
exército seguindo seu próprio eixo, foi protegida por uma cortina de unidades de cavalaria.
O rio Danúbio foi cruzado sem oposição, no dia 7 de outubro, na embocadura do rio Lech, a
oeste de Munique. Feita a manobra sobre a retaguarda, isolando Mack de sua capital, Viena,
Napoleão conseguira ainda ocupar uma posição central entre as forças austríacas situadas
em Ulm e as russas que vinham do leste. Cabia-lhe agora manobrar seus corpos de exército
para imobilizar completamente o inimigo isolado, forçando-o a uma batalha totalmente
desfavorável, dada a inferioridade numérica e a situação estratégica descrita. Mack,
entretanto, preferiu render-se no dia 20 de outubro.

Napoleão, sem perder tempo, seguiu pela calha do rio Danúbio e entrou em Viena no dia 13 de
novembro, encontrando ali grande quantidade de armamento, além de pontes de campanha.
Os austríacos, contudo, não se renderam. O imperador austríaco Francisco I com o restante
do seu exército, que somava 25 mil homens, recuou para o norte, internando-se na Morávia,
onde fez junção com as forças russas encabeçadas pelo czar Alexandre I.

Napoleão, mais uma vez, tinha pressa e seguiu na direção de seus adversários. A Prússia, que
até então se mantivera neutra, começava a mobilizar seu exército. Se esse reino decidisse se
juntar à Rússia e à Áustria, o exército francês, distante de seu território, corria o risco de ser
esmagado. Napoleão precisava, portanto, urgentemente derrotar os dois aliados. Mas, para
isto, precisava convencê-los ao ataque.

Com muitos homens destacados na proteção de sua linha de suprimentos, Napoleão podia
contar com apenas 75 mil homens e 150 canhões para enfrentar cerca de 85 mil soldados e
278 canhões.

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Guerras: de Napoleão ao século XXI

Visualize, a seguir, o mapa da região na qual ocorreu a batalha de Austerlitz.

Figura 1.5 - A Batalha de Austerlitz

Fonte: FreeWebs (2014).

Posicionado a oeste da vila de Austerlitz, Napoleão fingiu enfraquecer seu flanco direito, que
apontava para o sul, com o intuito de instigar os adversários a realizarem ali o ataque principal.
Por outro lado, ocultou na retaguarda de seu flanco esquerdo o grosso da sua cavalaria, a
Guarda Imperial e um corpo de exército.

O plano do general Kutusov, comandante dos exércitos aliados, era justamente o de lançar o
grosso de suas forças, sob o comando de Buxhowden, pelas alturas de Pratzen, atacando o
flanco direito francês. Um ataque secundário, sob as ordens de Bagration, seria feito contra o
flanco esquerdo.

Posto em execução o plano, na manhã do dia 2 de dezembro de 1805, Napoleão logo sentiu
que, após a passagem das tropas de Buxhowden, as alturas de Pratzen haviam ficado
mal guarnecidas. Tendo ele enviado duas divisões para ocupar aquela posição, os russos
reagiram, empregando suas reservas. Enquanto o flanco direito francês cedia lentamente à
pressão de Buxhowden, em Pratzen, a luta se tornava cada vez mais acirrada, com soldados
sendo enviados por Napoleão e Kutusov. Contudo, no início da tarde, aquela elevação estava
definitivamente nas mãos dos franceses. Então, Napoleão, tendo conseguido dividir o exército
adversário, atacou a retaguarda de Buxhowden com o apoio da artilharia trazida até Pratzen.
As forças deste general perderam toda a coesão e foram logo derrotadas. O restante do
exército aliado recuou para Olmutz.

A “batalha dos três imperadores” custou aos aliados um terço de seus efetivos e retirou a
Áustria da guerra.

Mas esta não foi a última campanha idealizada e guiada por Bonaparte. Vejamos, a seguir, a
Campanha da Prússia.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

A Campanha da Prússia (1806)

Após a vitória de Austerlitz, o exército de Napoleão ficou estacionado no sul da Alemanha para
dar suporte à criação da chamada Confederação do Reno.

Condereção Reno Embora estivesse em paz com a França desde 1795, o governo
Esta confederação era prussiano decidiu, em agosto de 1806, mobilizar suas forças e buscar
formada por pequenos
estados que gravitavam
uma aproximação com a Rússia, a Grã-Bretanha e a Saxônia. Como
sob a influência diria Luísa, rainha da Prússia, o exército prussiano dormia sobre os
francesa. Contrária aos louros de Frederico, o Grande, (DELBRUCK, 1991) e ainda acreditava
interesses da Prússia,
ser o melhor da Europa.
constituía uma ameaça
àquele reino.
O exército prussiano enfrentara o francês no início das guerras da
Revolução, mas não tivera tempo para notar as inovações que este
havia adotado. Clausewitz, que participara dessas lutas ainda adolescente, testemunhou
como o exército prussiano era refratário às mudanças daquele período. Mobilizado, ele
podia alcançar 200 mil homens, mas uma parte deveria ficar a leste, evitando a revolta dos
poloneses, que haviam perdido sua independência poucos anos antes. Cento e cinquenta mil
homens talvez fossem suficientes para deter as forças francesas estacionadas na Alemanha,
mas não para uma guerra prolongada.

Se, por um lado, as forças armadas tinham pouca experiência de combate, os oficiais
superiores e os comandantes eram, segundo Clausewitz (1976, p. 69), “velhinhos quase
sem vida”, presos a sistemas ultrapassados. O auxílio econômico da Grã-Bretanha e o
reforço militar da Rússia e dos príncipes alemães seria vital. Porém, a tempo de receber o
primeiro choque, só poderiam contar com 18 mil saxões. O exército prussiano posicionou-
se então defensivamente na Saxônia, atrás da floresta montanhosa da Turíngia. Mensagens
contraditórias enviadas aos russos retardaram a aproximação do corpo de socorro destes,
forte de 50 mil homens.

Clausewitz ressalta dois aspectos sobre a organização das forças prussianas.

1. Finalmente se deixando influenciar pelas reformas ocorridas na França, os


prussianos repartiram sua força em 14 divisões formadas por unidades das três
armas: infantaria, cavalaria e artilharia.
2. As divisões foram distribuídas entre três comandantes. O duque de Brunswick,
que ficou à frente de 6 divisões e era, teoricamente, o comandante das
operações. Os outros dois, contudo, consideravam-se independentes. Essa
postura, junto com a criação de pequenos destacamentos às vésperas dos
combates decisivos, contribuiu ainda mais para diminuir a força que estava
prestes a enfrentar a França.

Ainda sem ter um plano de campanha, a Prússia, no dia primeiro de outubro de 1806, enviou
um ultimatum a Napoleão que, dentre algumas exigências, salientava a necessidade da
retirada imediata das tropas francesas da margem direita do Reno. O imperador francês, sem
perda de tempo, pois temia a chegada dos russos, partiu para o ataque com os 150 mil
homens que tinha ao seu alcance. Sem saber exatamente qual era a posição do exército
prussiano, o imperador escolheu o caminho mais curto, passando por um estreito corredor
Bataillon Carré
cuja “parede” esquerda era a floresta da Turíngia. Nessa marcha, o
Literalmente, “Batalhão “Grande Armée” francês adotou uma formação que ficaria conhecida
Quadrado”. como “Bataillon Carré”.

22
Guerras: de Napoleão ao século XXI

Vejamos a formação na figura a seguir:

Figura 1.6 - “Bataillon Carré”

Fonte: Souza; Daroz (2011).

Usando diferentes estradas, o “grande exército” francês seguiu em três colunas, cada qual
formada por dois corpos de exército e com uma reserva central, constituída pela guarda
imperial e por um corpo de cavalaria pesada. As três colunas e os corpos guardavam uma
distância entre si que permitia o auxílio mútuo em menos de uma jornada de marcha. Ademais,
divisões de cavalaria cobriam a frente e garantiam a ligação entre as diferentes unidades. Por
fim, o trem de suprimentos levava recursos suficientes para que o exército pudesse subsistir
de forma independente por alguns dias. Essa formação “quadrada” permitia que o “Grande
Armée” mudasse rapidamente de direção, em função da posição na qual se encontrava o
inimigo.

Ao confirmar que o exército prussiano se encontrava ao norte da Turíngia e atrás do rio Saale,
que passa por Iena, no dia 14 de outubro de 1806, o flanco esquerdo de Napoleão rapidamente
tornou-se sua vanguarda, engajando as forças inimigas ao seu alcance. Para apoiar essa ação,
recebeu o reforço do antigo flanco direito, formado pelos corpos dos marechais Ney e Soult.
Napoleão havia, mais uma vez, conseguido se colocar na retaguarda do adversário. Pensando
estar combatendo em Iena, o grosso do exército prussiano enviou os corpos de Davout e
Bernadotte para cortar pelo norte a retirada prussiana, isolando o adversário de suas bases de
Bases de suprimento suprimento. Ocorre que o imperador estava enganado. Em Iena,
Essas bases ficavam encontravam-se apenas 38 mil prussianos, que formavam a flancoguarda
em Magdeburgo,
que protegia a retirada do restante do exército. Assim, Davout, com 26
Leipzig e Berlim.
mil soldados, acabou por receber em Auerstadt o impacto de 63 mil
homens, quase dois terços do exército inimigo. O conjunto da estratégia
de Napoleão estava, porém, tão acertado, que as batalhas gêmeas de Iena e Auerstadt
desestruturaram completamente as defesas da Prússia, deixando aberta a rota para Berlim.

A vitória foi aproveitada por Napoleão através de uma perseguição estratégica implacável. Já
nos primeiros dias, ele podia comemorar a captura de grandes depósitos de suprimento e no
dia 25 de outubro o III Corpo de Exército do general Davout entrava na capital inimiga. Vinte
um mil prussianos foram cercados em Magdeburgo e se renderam no dia 11 de novembro.
Outros milhares foram capturados em pequenos grupos, dentre os quais estava Clausewitz.
Enquanto isto, os remanescentes do exército prussiano, com grande dificuldade, fugiam para
o norte e para o leste, buscando segurança junto às forças russas.

23
Universidade do Sul de Santa Catarina

Importante anotar que, após o humilhante Tratado de Tilsit (1807), Scharnhorst, ministro da
guerra daquele reino, iniciou a reestruturação do exército. Uma de suas prioridades foi afastar
Tratado de Tilsit
o uso de mercenários e criar um verdadeiro serviço militar obrigatório.
(1807) Este tratado Do ponto de vista tático, buscou-se diminuir o papel da formação
privou a Prússia de puramente linear em três fileiras, fazendo com que parte da infantaria
grande parte de seu
passasse a combater em ordem dispersa, o que já era feito pelos
território.
franceses. Ofensivamente, os batalhões foram treinados para, partindo
da formação linear, avançar em colunas, rompendo as linhas
adversárias. Essa tática também teve inspiração francesa.

Mesmo com todas essas vitórias, o Império Napoleônico acabou entrando em declínio. Vamos
ver como isso aconteceu?

O declínio e a queda do Império Napoleônico

O declínio do Império Francês teve início nas ações diplomáticas de Bonaparte, que levaram a
atritos talvez desnecessários com a Espanha e a Rússia, que, além de neutros, eram aliados. A
instauração do “Bloqueio Continental”, a partir de 1806, também está
Bloqueio continental
Este bloqueio foi uma por trás de muitas dessas crises. Nem mesmo seu irmão, Luís Bonaparte,
tentativa de impedir a que Napoleão colocara no trono da Holanda, resistiu à pressão dos
entrada de navios e comerciantes locais, desejosos da manutenção do comércio com a
produtos ingleses no
continente europeu.
Grã-Bretanha. O imperador também não soube lidar com as nações
derrotadas, como a Prússia e a Áustria, impondo sua vontade com um
rigor insuportável para a honra e a própria independência daqueles
estados. A reação armada dos vencidos acabou por se tornar inevitável quando a
vulnerabilidade francesa ficou evidente na Espanha e, mais tarde, na Rússia.

A seguir, observaremos o caso da Espanha.

A Espanha, embora tenha participado da Primeira Coalizão antifrancesa (1793-95), tornou-se


aliada da França em 1796 e dividiu com esta o desastre naval de Trafalgar, em 1805. Por ocasião
da chamada Guerra Peninsular, o governo de Madri também mostrou cooperação ao permitir a
passagem de tropas francesas pelo seu território para a invasão de Portugal, em 1807.

A presença de forças francesas na Espanha, contudo, começou por minar a posição da França
ante a população espanhola. Então, sem medir as consequências, Bonaparte serviu-se das
disputas entre o rei espanhol Carlos IV e seu filho, o príncipe Ferdinando. Estes, chamados
para uma conferência com Napoleão em Bayonne (1808), viram-se ali forçados a abdicar do
trono em favor de José Bonaparte, irmão do imperador francês.

Dizem que Napoleão calculou mal a lealdade da população espanhola à deposta família real.
A partir do dia 2 de maio de 1808, uma série de revoltas populares se espalhou pela Espanha,
levando Napoleão a enviar parte de seu exército contra aquele país. Após um sucesso inicial,
um corpo francês, isolado na região centro-sul da Espanha, em Bailen, teve que se render.
Para piorar a situação, os franceses também foram derrotados em Portugal em agosto do
mesmo ano.

Diante desse quadro, Napoleão precisaria agir pessoalmente na Espanha. Para isto foi
necessário trazer forças localizadas na Europa Central, até então empregadas para vigiar
a Prússia e a Áustria. Eram os soldados vencedores da batalha de Austerlitz que vinham
deixar seu sangue e seus ossos na Península Ibérica. Em novembro, à frente de cerca de 200
mil homens, ele atravessou o rio Ebro e, após enfrentar forças espanholas numerosas, mas
descoordenadas, entrou em Madrid no dia 4 do mês seguinte.

24
Guerras: de Napoleão ao século XXI

Trinta mil britânicos, sob as ordens de John Moore, conseguiram escapar da destruição após
uma heroica retirada até La Corunna, onde foram resgatados pela Marinha Real inglesa.

Napoleão não pôde completar a conquista da Espanha, pois a Áustria decidira aproveitar a
Guerra Peninsular para uma revanche em 1809. Nos anos seguintes, até a primeira abdicação
de Napoleão (1814), a França seria obrigada a manter na Península Ibérica entre 150 e 320
mil homens, lutando contra forças regulares e também guerrilheiras. Os ingleses passariam
a manter na região uma força de cerca de 50 mil homens, apoiados por algumas dezenas de
milhares de portugueses. À frente desses homens se destacaria Sir Arthur Wellesley, o futuro
Duque de Wellington.

Mas como será que ocorreu a reação armada na Rússia?

O czar russo Alexandre I, após ter estado em guerra contra a França, mudou sua postura em
meados de 1807, quando encontrou Napoleão em Tilsit. Além de firmar a paz, Alexandre I
acabaria por aderir ao “Bloqueio Continental” contra a Grã-Bretanha. Contudo, as ambições
de Bonaparte eram incompatíveis com os interesses da Rússia. Dentre os vários atritos, o
maior parece ter sido a crise econômica gerada pelo prolongamento do referido bloqueio, além
da criação, por Napoleão, do Grão-Ducado de Varsóvia junto à fronteira russa.

A ruptura entre estes dois países ocorreu em abril de 1812, após um ultimatum enviado pelo
Exército das 20
czar a Napoleão, que incluía a evacuação da Prússia pelos franceses.
nações Esse exército Os dois monarcas haviam se preparado para a guerra. Napoleão
incluía forças italianas, formara o “exército das 20 nações”, contudo teve que deixar 200 mil
bávaras, polonesas,
homens e alguns de seus melhores comandantes na Espanha. O czar
austríacas e prussianas,
dentre outras. contava com apenas 300 mil homens, mas outros contingentes viriam a
se formar na retaguarda.

Com mais de 400 mil homens prontos para invadir a Rússia, a logística foi uma das
grandes preocupações de Bonaparte.

Vimos, ao examinar as campanhas de 1800, 1805 e 1806, como as rápidas manobras do


exército francês sobre a retaguarda de seus adversários foram úteis para a captura de
suprimentos, incluindo munição e armamento.

Para a campanha de 1812, o sistema de “viver do país” mostrou-se inadequado já na fase


de planejamento. Afinal, tratava-se de suprir um exército duas vezes maior do que aquele
que invadira a Prússia e através de um território muito pobre, relativamente pouco povoado e
imenso. Surgia a necessidade de basear a logística em comboios, tal como se fazia antes de
1789. Napoleão cuidou pessoalmente de organizá-los, tentando torná-los menos embaraçosos
à marcha do exército. Ele desejava, após ultrapassar o rio Niemen, dispor de farinha, biscoitos,
arroz, legumes e mesmo bebidas alcoólicas por um período de vinte dias, lapso de tempo
que lhe parecia suficiente e necessário para desestruturar os exércitos russos. A carne seria
fornecida por rebanhos e pelas bestas que puxariam parte dos comboios (CAMON, 1997).

A guerra com a Rússia poderia ter sido evitada e provavelmente todos os historiadores
militares de renome concordem que foi um erro Napoleão marchar até Moscou naquele
ano. Contudo, é preciso que se diga que Bonaparte não pretendia, quando formulou os
seus planos, alcançar aquela cidade. Seu objetivo era, como em outras vezes, colocar fora
de combate o exército inimigo o mais rapidamente possível. O problema é que os russos
pretendiam evitar ao máximo uma batalha decisiva e estavam dispostos a recuar, ceder
território, fazendo uma estratégia de desgaste.
25
Universidade do Sul de Santa Catarina

Vamos ver um mapa que demonstra o início da campanha de 1812, para, então, contar sua
história.

Figura 1.7 - O início da campanha de 1812

Fonte: FreeWebs (2014).

Napoleão imaginava que o exército russo estivesse posicionado em um cordão, dividido em


dois grandes grupos, comandados por Bagration e Barclay. Seu plano era o de se lançar
contra Kovno e Vilna, para separar esses exércitos. Em seguida, agindo de uma posição
central, ele bateria um ou outro. O plano inicial funcionou, tendo ele alcançado Vilna no dia 28
de junho. Mas a manobra não foi tão rápida, devido aos comboios de suprimento e ao estado
Eugene e Jerome das estradas russas. Dessa forma, as forças adversárias, em lugar de
Eugene era o enteado oferecerem resistência, recuaram. Ainda assim, Bonaparte organizou
de Bonaparte e Jerome,
seu irmão.
três colunas, sob as ordens de Davout, Eugene e Jerome, para
cercarem Bagration. Este, contudo, conseguiu escapar para o leste.

Logo em seguida, Napoleão tentou se aproveitar da separação de Bagration e Barclay


para cortar a retirada do segundo. Barclay se antecipou à manobra e fugiu para Witebsk e
Smolensk, onde conseguiu fazer a junção com Bagration. Uma terceira tentativa de ação
sobre a retaguarda russa, para forçar o adversário à batalha, foi igualmente mal sucedida.
Então, neste momento, já estava o exército invasor no coração da Rússia, sem ter conseguido
a planejada batalha e sofrendo com o calor diurno e com a irregularidade dos suprimentos,
uma vez que os comboios não conseguiam acompanhar a marcha.

Neste ponto, Bonaparte já perdera dezenas de milhares de soldados estropiados no caminho,


doentes ou mortos em pequenos combates. A vitória contra os russos em Borodino, que
ocorreu no dia 7 de setembro, e a captura de Moscou, poucos dias depois, não puderam
mudar o quadro de derrota que se abateu sobre o exército francês. A retirada francesa da
Rússia, como se sabe, foi igualmente desastrosa, sob um frio intenso, apenas 10 mil homens
da coluna principal conseguiram chegar a Kovno em meados de dezembro.

Apesar de tudo, Napoleão ainda conseguiu mobilizar 400 mil homens para a campanha de
1813, na Europa Central. Só que estes não tinham a qualidade, nem a experiência daqueles
que venceram Austerlitz, ou dos que morreram na Espanha e na Rússia. Ademais, sua
cavalaria fora destroçada em 1812. Derrotado na batalha de Leipzig, ele voltou a mostrar

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Guerras: de Napoleão ao século XXI

sua habilidade na defesa da França em 1814, vencendo uma série de pequenas batalhas.
Contudo, pressionado pelos números das forças invasoras, sucumbiu e abdicou pela primeira
vez em abril de 1814.

Exilado na ilha de Elba, Bonaparte tirou partido de seu grande carisma e da impopularidade
da monarquia restaurada por Luís XVIII para retomar o poder em março do ano seguinte.
Mas este novo reinado duraria apenas 100 dias, abreviado pela derrota de Waterloo, no dia
18 de junho, ante uma força de ingleses e prussianos comandados por Wellington e Blücher.
Napoleão veio a falecer exilado na ilha de Santa Helena em maio de 1821.

Contribuições de Napoleão ao pensamento militar

Os conflitos que varreram a Europa entre 1792 e 1815 ficaram marcados pela figura de
Napoleão Bonaparte, a partir de 1796. Vimos que sua estratégia obedecia a um sistema que
intercalava ações sobre a retaguarda inimiga com ações que partiam de uma posição central.

Observamos, ainda, que ele buscava executar campanhas rápidas e decisivas, evitando que
as potências adversárias reunissem suas forças. Desta forma, mesmo quando em inferioridade
numérica, ele conseguia ser o mais forte no ponto escolhido.

Suas batalhas eram influenciadas pelos sucessos estratégicos obtidos, ora dividindo as forças
inimigas, ora abatendo o seu moral. Essas batalhas não obedeciam a um padrão rígido, mas
eram marcadas também pela rapidez de seus movimentos, pela surpresa e concentração de
forças sobre um ponto.

Esse proceder levou Napoleão a comandar pessoalmente exércitos que se deslocaram


ofensivamente entre Madrid e Moscou, em campanhas quase sempre vitoriosas. Vimos,
entretanto, que além de seu talento, Bonaparte pôde contar com avanços técnicos e
administrativos oriundos da monarquia deposta e da república, além de um entusiasmo
popular que remontava à Revolução Francesa e que ele soube multiplicar.

Se for inegável dizer que, ao final, a França foi derrotada, é também indiscutível afirmar que
estes poucos anos mudaram a face do ocidente, a conduta da guerra e o pensamento militar.

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