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ACARNn

ODIABO
RUSSELL SHEDD

edições vida nova


® 1991 de Russell Philip Shedd
1? edição: 1991
Reimpressão: 1992
2? edição: 1995
Publicado no Brasil com a devida autorização
e com todos os direitos reservados por
Sociedade Religiosa E dições Vida N ova ,
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Coordenação de produção • ROBINSON M alkomes


Revisão • L ucy Yamakami
Capa • ÍBIS Roxane

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Shedd, Russell P., 1929-


0 mundo, a carne e o diabo / Russell Shedd. —
Sâo Paulo : Vida Nova, 1995.

Bibliografia.
ISBN 85-275-0031-0

1. Aconselhamento 2. Conduta de vida 3. Diabo


4. Espírito e corpo 5. Materialismo 6. Vida espiri­
tual I. Título.
95-1998 cdd-248.4

índices para catálogo sistemático


1. Guias de vida cristã : Religião 248.4
CONTEÚDO

Prefácio dos editores ............................................................ 7


In tro d u ção ............................................................................. 9

1. Mundo: Criação e Inim ig o .................................................... 11


2. O Mundo e o Século ............................................................. 16
3. O Mundo: A Rede que nos P r e n d e ....................................... 27
4. A Carne ................................................................................ 49
5. As Marcas da Carne . .......................................................... 52
6. Como Lutar Para Vencer a Carne .......................................... 71
7. Satanás: O Inimigo Destruidor do C ris tã o ............................ 84
8. As Estratégias Satânicas ....................................................... 95
9. O Ataque e a Defesa do Cristão ......................................... 107
10. Conclusão: O Mundo, a Carne e o Diabo ............................... 121
Dedicatória

À memória dos meus pais, Leslie M. e Delia


J. Shedd, incansáveis guerreiros de Deus, que
deram ú mais convincente modelo da vida
que vence o mundo, a carne e o diabo.
Prefácio dos Editores

Em nenhum lugar da Bíblia temos a promessa de que a pessoa que


vive segundo os princípios do cristianismo tem uma vida imune a lutas e
dificuldades. Pelo contrário, o texto inspirado está repleto de passagens
que confirmam que o cristão, enquanto estiver vivendo na terra, estará
sempre sujeito a ataques provenientes de três fontes inimigas, as quais são
analisadas de forma cativante pelo autor.
A primeira é o mundo em que vivemos, corrompido cada vez mais
pelo “pecado que tenazmente nos assedia” (Hebreus 12.1). O grau de
secularização da humanidade atinge níveis elevadíssimos, provocando um
efeito imediato sobre os cristãos sinceros, os quais se sentem como peixes
fora d’água, lutando para não sucumbir em um ambiente onde o
verdadeiro oxigênio espiritual está cada vez mais rarefeito.
O segundo inimigo é a natureza adâmica, que recebemos como
herança espiritual de nossos pais, ou, emprestando as palavras do apóstolo
Paulo, a “carne” com todas as suas obras tão conhecidas dos cristãos que
têm uma consciência sensível ao padrão de vida divino. Segundo o autor,
trata-se do “vírus do pecado”, o qual, através da desobediência de Adão,
contaminou toda a raça. Os cristãos se vêem lutando arduamente contra
a inclinação carnal, quando desejam se comportar segundo o exemplo do
Mestre.
Em último lugar, o cristão tem de enfrentar o diabo e suas hostes
demoníacas, os quais incansavelmente procuram, através das tentações e
empecilhos de toda sorte, barrar-lhe o caminho em direção à santidade.
As táticas de ataque do inimigo são apresentadas, mas o autor não se
esquece de enfatizar e esclarecer as armas que o cristão têm à sua
disposição para esta batalha espiritual.
Dr. Shedd, consciente destas realidades, ajuda-nos a reconhecer
- 7 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

estes inimigos, dando-nos uma visão bem clara de suas características.


Além disso, e o que é mais importante, oferece as estratégias bíblicas para
a guerra da qual todo cristão está obrigado a participar. Dê a este livro
uma atenção especial e o leitor amigo poderá vislumbrar as reais
possibilidades de vitória em sua luta contra o mundo, a carne e o diabo.

Os editores

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Introdução

o cristão vive no inundo, mas não é do mundo (Jo 17.14); pelo menos
não deve ser. O tema deste livro levanta o enigma mais desafiante: qual é
a relevância de Jesus Cristo na situação em que o cristão vive? Ou
indagaríamos de outra forma: como o crente deve se identificar com a
cultura ao seu redor? H. Richard Niebuhr, em seu famoso livro Cristo e
Cultura, define a cultura como o ambiente secundário que a humanidade
impõe à ordem natural (o mundo físico). A cultura é composta de língua,
hábitos, idéias, fé, costumes, organização social, invenções, processos
tecnológicos e valores. O Dr. Theodore Williams, da Missão Evangélica
da índia, nos lembra de que “toda cultura é manchada pelo pecado, seja
ela americana ou africana, britânica ou indiana. Deve ser colocada
debaixo de escrutínio da Palavra de Deus e purificada de tudo que não
1
seja cristão...” Estas eram a herança e a condição de vida que os escritores
do Novo Testamento queriam comunicar com o termo “mundo”.
Queiramos ou não, a cultura se mantém em fluxo constante. Em
poucas décadas podemos notar grandes e pequenas mudanças nas idéias
e práticas da sociedade. O mesmo ocorre com a Igreja. Não há como parar
o tempo e afastar todas as influências mundanas. Essas mudanças no
comportamento geram muita tensão e, ocasionalmente, frustração. Se as
idéias e os valores que se supõe terem sido moldados sob a orientação
imutável da Palavra de Deus não valem mais, onde estaria a rocha sobre
a qual deveríamos lançar os alicerces de fé e prática? Como a Bíblia vê
esse nosso mundo moderno e sua influência tão difundida nas igrejas?
Desejamos reexaminar a avaliação bíblica do mundo, da “carne”

1. Outreach, dezembro de 1988.


2. Richard Quebedeaux, The Worldly Evangelicals (Nova lorque: Harper and Row), 1978,
p. 10.

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o MUNDO, A CARNE E O DIABO

(natureza humana) e de Satanás. Esperamos entender o significado desses


termos e descobrir a natureza e a importância da ameaça que confronta
os cristãos e as igrejas. A Bíblia fornece importantes instruções para
identificar esses inimigos e nos orientar sobre a luta eficaz contra tais
adversários.

10-
Mundo: Criação e Inimigo

o pessimismo que a Bíblia reflete diante do mundo não é


compreensível à parte da relação que existe entre o diabo, o pecado e a
criação. Bem distinto do dualismo gnóstico que os apóstolos combateram,
o conceito negativo do mundo incorpora um fator dominante que é a
idolatria. Não é por ser material que o mundo é condenável, mas por se
tornar fonte de sedução para o homem caído.
Jesus advertiu os seus seguidores acerca do perigo que o mundo
apresenta, quando pronunciou: “Que aproveita ao homem ganhar o
mundo inteiro, se vier a perder-se?” (Lc 9.25; cf. Mc 8.36; Mt 16.26). O
m u n d o ex erce u m a a tra ç ã o so b re tpdQS.nós, c o m o u m su p o sto te s o u ro q u e
vale a pena conquistar e possuir. Desse modo, o mundo e Deus se
oferecem como tesouros alternativos. Se Deus fosse tudo para nós, g
mundo nada valeria. Mas o contrário também é válido: à medida que
^valorizamos e amamos o mundo, tornamo-nos inimigos de Deus ÍTg 4.4V
O famoso filósofo dinamarquês S0ren Kierkegaard advertiu, há mais de
um século: “No dia em que o cristianismo e o mundo tornarem-se amigos,
1
0 cristianismo deixará de existir”.
Não fosse a atuação de Satanás que invadiu a criação, esta não
ofereceria nenhuma possibilidade de tropeço. Aquele maravilhoso Jardim
do Éden nunca poderia chegar a se interpor entre Adão e Deus.
Convencido p ela serp en te a buscar igualdade com D eus e,
conseqüentemente, comendo o fruto proibido, Adão e seus incontáveis
descendentes experimentaram a transformação do mundo bom em canal

1. Citado na revista Time, 8 de abril, 1966, p. 40.

11
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

de tentação e provação (Gn 3.1-19; Rm 5.12).


Como foi que o universo, que na criação original era “muito bom”
(Gn 1.31), veio a ser condenável, objeto de tropeço e escravidão moral?
O mundo nunca seria considerado digno de condenação simplesmente por
ser material. Vejamos de onde emanam o perigo e a contaminação do
mundo, segundo a Palavra de Deus.
Há nada menos que quatro termos gregos empregados no Novo
Testamento que se referem ao mundo.
1) Gê, “terra”, “campo”, “chão”, etc., no sentido puramente físico.
Contrasta a terra com os céus.^
2) Oikoumenê é um particípio derivado das palavras “casa”,
“habitar”; significa, portanto, a “terra habitada” (e.g., Mt 24.14; Lc 2.1,
onde se refere ao império romano como o mundo conhecido). Em Hb 2.5
refere-se ao mundo vindouro que será habitado.
3) Aiõn significa essencialmente “tempo”, mas por extensão inclui
também o espaço. Indica tudo que existe sob o condicionamento do tempo
e do espaço. Não deixa de ter também um aspecto ético-espiritual debaixo
do poder do príncipe das trevas (c/. Ef 2.2; G11.4; 2 Co 4.4).
• 4) Kosmos originalmente significava o mundo físico, apontando, de
modo especial, para a sua ordem ou arranjo {cf. 1 Pe 3.3, onde significa
uma aparência agradável por estar arrumada; uma boa combinação dc
o
vestuário [himation kosmos]). Aponta para o universo material como um
sistema que Deus criou segundo seus propósitos (Mt 13.35; Jo 17.5; At
17.24; Fp 2.15). Também transmite a idéia do universo como a habitação
dos homens (Jo 16.21; 1 Jo 3.17). Daí veio a significar a humanidade em
sua totalidade (Jo 1.29; 3.16; 4.42, etc.). Além desses sentidos,
particularmente nos escritos de João, trata do sistema de valores alienado

1. A LXX (Septuaginta) usoug? para a terra em Gn 1.1, e, geralmente, o mesmo ocorre


no restante do Antigo Testamento.
2. Os gregos aplicavam a palavra kosmos a um cavalo, a palavras bem escolhidas ou à
beleza feminina.
3. João usa kosmos 105 vezes: 78 no evangelho, 24 nas epístolas e 3 no Apocalipse; duas
vezes e meia mais do que o resto do Novo Testamento.

12 -
MUNDO: CRIAÇÃO EINIMIGO

de Deus, que orienta o pensamento dos homens em oposição a Ele. Assim,


o kosmos]az no maligno (o diabo, 1 Jo 5.19; cf. Jo 12.31; 14.30). As trevas
dominam este mundo (Jo 1.5; 12.46) e o pecado macula sua existência
como um todo. Na sua oposição contra Deus, o mundo se mantém sempre
debaixo da condenação divina (Jo 9.39).
Mas o mundo também é o alvo do amor de Deus. Foi para salvá-lo
que o Filho unigénito foi enviado (Jo 3.16). Encontramos, portanto, o
kosmos como o contexto em que a pecaminosidade e a responsabilidade
humana se posicionam em relação a Deus. O mundo passa a ser uma
realidade em que ois poderes demoníacos se opõem a Deus, como também
o local onde a redenção de Deus se realiza historicamente.
Quando estudamos os verbos que acompanham o termo kosmos em
João, descobrimos algo importante a seu respeito.^
a) O mundo não conhece Jesus (1.10), nem o Pai (15.21), nem os
discípulos (1 Jo 3.1). Não recebe o Espírito da verdade (14.17) e não mais
verá (í.e. reconhecerá) a Jesus (14.19). Quando o mundo escuta, dá
atenção apenas aos falsos profetas (1 Jo 4.5). Mesmo assim, o amor de
Deus não corta as relações com o kosmos. Deus mandou o Salvador ao
mundo para que esse saiba que Jesus ama o Pai (14.31) e creia que Deus
enviou o Filho (17.21,23).
N b) Quanto ao amor, o mundo falha por completo. Odeia os discípulos
(15.18s.; 17.14; 1 Jo 3.13), mas ama os que lhe pertencem (15.19). O mundo
não pode odiar os irmãos de Jesus, filhos de Maria, porque eles são
incrédulos (7.7).
c) Outros verbos declaram que o mundo “passa” (1 Jo 2.17), “vai após
Jesus”, mas só temporariamente (12.19), dá uma paz que não é igual à de
Jesus (14.27), regozijar-se-á quando os discípulos chorarem (16.20) e jaz
no maligno (1 Jo 5.19).

1. As linhas que seguem foram parcialmente extraídas de N . H. Cassem, “A Grammatical


and Contextual Inventory of the U se of KOSMOS in the Johannine Corpus with Some
Implications for a Joharmine Cosmic Theology”, New Testament Studies, vol. XÇ
1972-73, pp. 81ss.

-13-
0 MUNDO, A CARNE E O DIABO

^ d) Como objeto direto, o mundo é vencido por Jesus e os discípulos


(16.33; 1 Jo 5.4s.). O mundo, mesmo sendo objeto do amor de Deus (3.16),
não escapa da condenação. Os fiéis não devem amar o mundo (IJo 2.15).
Jesus Cristo não veio a primeira vez para julgar o mundo (12.47), mas para
salvá-lo (3.17). O Espírito convence o mundo do pecado (16.8), porque
sem essa convicção não haverá arrependimento.
'' e) A preposição eis, “para dentro”, “ao”, frequentemente usada com
o verbo “vir”, mostra a missão salvadora, principalmente de Jesus. Ele
veio, nasceu, cresceu e viveu dentro do mundo como o Enviado, o
“Apóstolo” de Deus para o mundo. Os discípulos receberam a mesma
missão. “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao
mundo” (17.18).
^ f) A frase “do mundo” {ek tou kosmou) encontra-se 15 vezes. Em 11
ocasiões, ser do mundo (ek tou kosmou) significa ter a natureza do mundo
(15:19 [três vezes]; 17.14 [duas]; 17.16 [duas]; 18.36 [dua.s]; 1 Jo 2.16; 4.5
[duas]). Por outro lado, na noite da traição, chegou a hora de Jesus sair do
mundo (13.1), i.e., de voltar ao Pai. Os discípulos foram retirados do
mundo para pertencerem a Cristo (17.6), mas Jesus não pede que eles
sejam retirados do mundo (no sentido físico, 17.15).
g) Em contraste com os que são do mundo, encontramos a frase “no
mundo” (en tõ kosrríõ). Várias vezes, simplesmente se refere a uma
localidade, mas outras, ao aspecto negativo do mundo, onde haverá
tribulação (16.33). Não devemos amar as coisas que estão no mundo (1 Jo
2.15), mas odiar nossa vida (psychê) neste mundo (12.25). Quem está no
mundo é o maligno (1 Jo 4.4); juntamente com ele, estão todas as coisas
(1 Jo 2.16). Possivelmente, é por essa razão que Jesus não ora pelo (pen)
mundo (17.9).
'' h) Ainda mais notável é descobrir que cada passagem onde se usa a
expressão “este (outos) mundo” indica um modo de viver incompatível
com a nova vida do Filho de Deus (8.23 [duas vezes]; 9.39; 11.9; 12.25;
12.31 [duas]; 13.1; 16.11; 18.36 [duas]; 1 Jo 4.17). Existe nessa expressão
uma idéia similar à do aiõn, o século presente (cf. en toutõ tõ aiõni, Mt
12.32) que se opõe a Deus. Somente a nova era vindoura proporciona

- 14 -
MUNDO: CRIAÇÃO E INIMIGO e

esperança real aos homens presos a este mundo perdido. Daí a


necessidade de salvar-se desta geração perversa (Lc 3.6s.), o que equivale
a escapar da condenação que paira sobre o mundo.
T orna-se n e ce ssá rio exam inar mais d e ta lh a d a m e n te as
características do mundo que ameaçam o cristão. À primeira vista, não é
óbvio por que o amor ao mundo exclui o amor pelo Senhor (1 Jo 2.15).
Tanto a beleza da criação como a dependência humana do mundo, que
mantém nossa vida física, deveriam fornecer motivos incessantes de
gratidão. Paulo destacou esta bela faceta do mundo em sua mensagem
evangelística dirigida aos pagãos de Listra: “... anunciamos o evangelho
para que... vos convertais ao Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo
o que há neles... fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações
frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria” (At
14.15-17).
Nas páginas seguintes desejamos mostrar como o mundo está
inextricavelmente comprometido com “este século”, através da
secularização. Além do mais, este mundo facilmente se transforma em
fonte de tentação sutil que pode separar de Deus o cristão. Paulo
confiantemente declarou sua firmeza na luta contra o mundo, ao
perguntar: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou
angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?” (Rm
8.35). São claramente tais ameaças com origem no mundo que põem em
perigo um andar cristão que seja digno de sua vocação (Ef 4.1).

- 15 -
o Mundo e o Século

Para entendermos melhor o que significa o substantivo “mundo”,


devemos ir mais fundo para avaliar como o mundo e os santos têm
convivido ao longo da história. O desafio do mundanismo não se apresenta
pela primeira vez em nossos dias. No tempo de Jesus, o mundo atraía os
discípulos. Foram os valores “seculares” que motivaram João e Tiago a
pedir a honra de se assentarem aos dois lados de Jesus no Seu reino (Mc
10.35-45).
Séculos depois de o Império Romano ter dobrado os joelhos diante
do judeu crucificado, o mundanismo tornou-se religioso. O sucesso do
evangelho na conquista da bacia mediterrânica não foi acompanhado pelo
mesmo fervor espiritual. O domínio da religião cristã e o poder da Igreja
Romana cresceram, chegando ao seu ponto culminante no século XIII.
Foi a autoridade suprema da Igreja que provocou a reação secularizante
com que nos deparamos no mundo ocidental.
Certamente, a contaminação do cristianismo pelos valores do mundo
(especialmente o poder político, as riquezas deste mundo e o domínio
sobre a vida de multidões) cristalizou as forças de oposição à religião cristã,
que continuam criando o ateísmo teórico e prático da nossa geração. Em
sua oposição ao cristianismo, o mundo ganha outro título, “secularismo”,
e o processo de transformação dos valores, “secularização”. O desafio
deste capítulo, portanto, é analisar e avaliar o processo que está mudando
a fé e a prática dos cristãos.
O perigo da secularização se agrava dia a dia. “O movimento que
iniciou a emancipação humana, que começou mais ou menos pelo século
XIII... chegou em nossos dias a uma certa conclusão. O homem aprendeu
a se defender, por conta própria, contra todos os problemas mais

- 16 -
o MUNDO E O SÉCULO

importantes em que recorresse à ‘hipótese de trabalho: Deus’... Assim


sendo, o tornarmo-nos emancipados nos conduz ao verdadeiro
reconhecimento de nossa situação diante de Deus. Deus nos faz saber que
devemos viver como aqueles que se arranjam na vida sem Deus.”^
Cada vez mais, percebemos que os meios de comunicação em massa,
os jornais, o rádio, a televisão e as revistas pressupõem um mundo que
ignora a Deus. Os problemas não são discutidos à luz da Palavra de Deus,
nem se levanta a possibilidade de se recorrer a Deus em oração, à procura
de uma solução. A influência sutil do mundo ao redor, através dos meios
de entretenimento e informação, exclui a voz do Senhor. Quem pensa que
esta influência negativa não atinge os membros da igreja é como a avestruz
que esconde a cabeça na areia. Nossos filhos, ainda menos preparados
para entender como Deus atua no mundo, são vítimas dos bombardeios
diários dos professores em todos os níveis educacionais, além das pressões
dos colegas que menosprezam qualquer comprometimento com Cristo
como sinal de fraqueza ou mesmo debilidade mental.
Além do kosmos, rival de Deus que atrai e manipula as almas, há o
termo aiõn, traduzido em algumas versões como “mundo”, em outras
“século” e, ainda no plural, “para sempre” (Mt 6.13), “eternamente” ou
“antigüidade” (Lc 1.70 ARA).
Na mente popular do primeiro século existiam dois aiõn, “mundos”
ou “séculos”. Era fácil compreender que não haveria perdão neste mundo
(aiõn) nem no mundo futuro (Mt 12.32). A recompensa para quem
abandonar casa e parentes, a fim de seguir a Jesus e pregar o evangelho,
é receber no presente o cêntuplo de casas, irmãos, e no mUndo (aiõn) por
vir, a vida eterna (Mc 10.30). “Os filhos deste mundo (aiõn) são mais hábeis
na sua geração do que os filhos da luz” (Lc 16.8). Os dois mundos ou
séculos tinham “filhos” distintos, referindo-se ao tempo e espaço de
maneira diferente dos termos “mundo” e “época” em português.
As origens do conceito provavelmente remontam ao cativeiro

1. Dietrich Bonhoeffer, Resistência e Submissão (R io de Janeiro: Paz e Terra; São


Leopoldo: Sinodal), 1980 pp. 155,173.

- 17-
o MUNDO, A CARNE E O DLABO

babilónico. Os astrônomos/astrólogos daquela terra conseguiram


descobrir o “ano mundial”. Por causa das seis horas além dos 365 dias que
marcam a extensão do ano, paulatinamente as estações iam se deslocando
em relação ao calendário. Num período de 1.460 anos (multiplicando 4 x
365), o dia mais comprido do ano passava por todas as datas do calendário,
voltando para o dia em que o ano mundial havia começado (hoje evitamos
esta virada das estações, intercalando um dia extra [29 de fevereiro] a cada
quatro anos). O “ano mundial” tornou-se para os judeus um conceito
escatológico amorfo para distinguir entre o tempo presente (em heb.,
‘ôlãm hazzeh) e a época que o Messias introduziria {‘ôlãm habbã’), a era
vindoura. No judaísmo rabínico e apocalíptico do século I, aparece o
1
conceito espacial bem como temporal. Findado este mundo e sua
natureza injusta, insegura e pecaminosa, ele será substituído pelo mundo
novo, em que os justos viverão na paz celestial.
Assim, nas parábolas de Mateus, o julgamento se realizará no fim do
século (aiõn, Mt 13.39s.; 24.3). O ministério de evangelizar e discipular
contará com o acompanhamento do Senhor ressurreto, “até o fim do
século” (aiõn, Mt 28.20).
Jesus, sendo o Messias que viveu uma vida sem pecado, morreu para
expiar pecados, ressuscitou e foi exaltado à destra de Deus, inaugurou a
nova época ou século. Todavia, isto não significa que esses eventos
aniquilaram o presente século. O cristão, portanto, vive nas duas épocas
simultaneamente. Após ter morrido e ressuscitado com Cristo (Rm 6.1-Íl;
Cl 3.1), continua suj'eito às influências do presente século, ainda que seja
cidadão do céu (Ef 1.3; 2.6; Fp 3.20). O crente é intimado a não se
conformar com este século (aiõn, Rm 12.2).
A rápida expansão do cristianismo no Império Romano possibilitou,
que a Igreja se tornasse detentora da religião oficial. Mas a influência
sobre a sociedade e o poder político não conseguiram barrar o

1. J. Guhrt, Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, vol. IV (São


Paulo: Vida N ova), 1983, p. 561.
2. Md.

-18-
o MUNDO E O SÉCULO

mundanismo. Os mosteiros surgiram justamente para dar uma opção para


os que queriam consagrar a vida a Deus e afastar-se do mundo. A disciplina
do monasticismo representava a corrente de pensamento que se
preocupava com a Igreja minada pelo mundanismo. Vendo o sistema à
distância do século XX, alguns lhe atribuem uma glória que emana do
sublime esforço quase sobre-humano para alcançar a perfeição. Para os
críticos, os monges lutavam contra a natureza, degradando o homem até
torná-lo máquina, abandonando o conflito no mundo, sem perceber as
outras tentações igualmente perigosas.^ A influência do ascetismo,
arraigado na filosofia platônica que ganhou ascendência nas escolas
alexandrinas, juntamente com a luxúria e a profligação da alta sociedade
romana, alienou da vida rotineira os discípulos mais dedicados. Os monges
eram conhecidos como “amantes de Deus”, “servos de D eus”,
“renunciadores”, “atletas de Cristo” (indicando os extremos de renúncia
'y *
e rigor na disciplina da autoconsagração).
O ideal seria a Cidade de Deus, dentro dos moldes descritos por
Agostinho. Essa “cidade”, fundamentada no amor a Deus, está em eterno
conflito com a cidade terrena, fundamentada no amor próprio. Ainda que
na história humana surjam impérios e reinos fundamentados no amor
o
próprio, no fim permanecerá somente a Cidade de Deus. Cresceu a
esperança de que o mundo secularizado seria transformado no reino
universal de Deus. O reino deste mundo, conquistado por Cristo (cf. Ap
11.15), passaria a se submeter ao seu controle, como Paulo predisse (1 Co
15.24-28). O mundo mau seria derrotado pelo benevolente poder do Filho
de Deus. Esse domínio de Cristo foi instalado em sua Igreja, e seu vigário,
em Roma. Os papas entronizados em Roma logo conseguiram exercer o

1. I. G. Smith, A Dictionary o f Antiquities, ed. W. Smith e S. Cheetham (Londres: John


Murray), 1880, p. 1219. Veja J. Gonzalez, A Era das Trevas (São Paulo: Vida Nova),
1985^ pp. 39-59.
2. I. G. Smith, Ibid.
3. J. G onzalez,^ Era dos Gigantes (São Paulo: Vida Nova), 1985^, p. 176.

-19-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

poder das “duas espadas”, de Deus e dos homens.^ O sonho de Agostinho


concretizava-se no Santo Império Romano, em que a autoridade suprema
era o papa, que exercia o poder de Deus na terra. A bula Unam Sanctum,
de Bonifácio VIII, mostra até que ponto os papas atribuíam à Igreja
Romana autoridade espiritual e temporal sobre todos. A submissão ao
papa era “necessária para a salvação”.
Um mínimo de conhecimento da história mostra, com uma luz
deslumbrante de meio-dia, que a Igreja nunca foi a manifestação da
perfeição, do paraíso ou da restauração do mundo às glórias milenares,
nem da Nova Terra de Apocalipse 21 e 22. Foi justamente o fim do século
XIII que marcou o auge do poder hierárquico da Igreja Romana. Então
se vislumbravam a Renascença e o começo da separação entre o mundo
ocidental e o poder da religião cristã na Europa, que se sentia cercada e
algemada pelas forças eclesiásticas tradicionais. Aí estão as sementes da
secularização: “... as instituições sociais, a visão do mundo, a vida
particular, a instrução e a responsabilidade se afastando ou se
emancipando da autoridade eclesiástica e divina”.^ O processo
secularizante foi denominado “Renascença”, marcada pela liberdade de
pensamento e decisão.
O desafio à Igreja, que supostamente falava em lugar de Deus, logo
passou a ser um desafio à própria fé e à revelação. Já no século XIII,
criou-se na Universidade de Paris uma dicotomia entre a revelação divina
e a razão humana. Aí germinou também o conflito entre o indivíduo e a
instituição da Igreja. Se a Igreja não era detentora da verdade, Lutero,

1. Veja J. G onzalez,^ &Û das Trevas, pp. 61-85.


2. E. E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos (São Paulo; Vida Nova), 1988^, pp.
176,177.
3. K. Bockmuehl, “Secularization and Secularism; Some Christian Considerations” em
Evangelical Review of Theology, vol 10,1986, p. 54.

20 -
o MUNDO E O SÉCULO
Calvino e os reformadores postulavam que a Bíblia era a suprema
autoridade. ^A possibilidade de discordar da instituição foi revolucionária.
Lutero teria morrido pela sua temeridade, da mesma forma que João Hus
e Savonarola, se não fosse a proteção que o príncipe Frederico lhe
'1
concedeu.
Galileu Galilei foi proibido pela Igreja de ensinar que a Terra girava
em torno do Sol. Retratou-se de sua declaração para não ser morto (1616)
e viveu o resto da vida preso em casa, devido à discordância com a
autoridade eclesiástica. Deflagrou-se o conflito entre a ciência e a religião,
que repercute até o presente.
O espírito revolucionário contra o rei e a autoridade alastrou-se pela
França no fim do século XVIII. As colônias da América do Norte
declararam sua independência da Inglaterra. Passo a passo, o ideal da
liberdade democrática ganhou ímpeto com o desenvolvimento da
interpretação materialista da realidade. O ateísmo prático, senão
totalmente filosófico, teve seus heróis em figuras como Feuerbach na
Alemanha, o anarquista Bakunin e Büchner da Revolução Francesa. É
significante notar que Voltaire, o intelectual mais famoso do século,
recusava-se a conversar acerca do ateísmo na presença das empregadas,
porque a religião sustenta a moralidade.^ Napoleão também expressou a
opinião de que a religião é o que segura os pobres, evitando que
assassinem os ricos.
K. Marx desenvolveu sua teoria de determinismo materialista
fundada na visão utópica da igualdade de todo ser humano. Recusou-se a
aceitar a criação, apoiando sua visão de autonomia humana em um
universo autogerador. A euforia invadiu o mundo ocidental no século XIX,

1. Veja a discussão em torno da questão da autoridade das Escrituras acima da tradição


da Igreja, em R. C. Sproul, “Sola Scriptura” em O Alicerce da Autoridade Bíblica, ed.
J. M. Boice, (São Paulo: Vida Nova), 1989^, pp. 126,127.
2. E. E. Cairns, pp. 205-207.
3. Ibid., p. 251.
4. K. Bockmuehl, op. cit., p. 53.

-21-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

de forma que se imaginavam possibilidades futuras ilimitadas. Uma


propaganda que promovia a venda da Enciclopédia Britânica de 1898 fala
da “maravilhosa história” do progresso moderno nas artes, “nas ciências
e indústrias”, prometendo contar como a luz se espalhou.^ O progresso da
secularização criou sonhos extravagantes em que os homens
transformariam o mundo num paraíso. O lema da bandeira brasileira
revela a euforia dos tempos da Proclamação da República, nesse mesmo
século.
No início. Charles Darwin pensava em ser pastor. A vacilação entre
a fé e o agnosticismo afligiu-o com dores psicossomáticas. Ele temia que
a teoria da seleção natural (o cerne da Teoria da Evolução) brutalizasse o
homem. Sem a necessidade de Deus para explicar o avanço da
humanidade e a conquista das barreiras, seria agradável viver sem temor
de Deus, na segurança da civilização avançada e virtuosa, com liberdade
e igualdade para todos. Se o progresso era inevitável, como se acreditava,
seria suficiente aguardar o novo mundo secular.
Outras vozes podiam ser ouvidas, vozes que abalavam o comodismo
sossegado da época. Frederico Nietzsche contou esta parábola:
“Ouviram falar do louco que acendeu uma lâmpada numa manhã
resplandecente e foi para o mercado, gritando sem cessar, ‘Eu procuro
Deus...’Muitos que ali estavam parados não criam, de maneira que riram.
‘Deus estaria perdido? Estaria perdido como uma criancinha... ou estaria
se escondendo? Teria embarcado num navio e emigrado?’ Todos riam. O
louco saltou para o meio deles e olhou-os com animosidade e fúria. ‘Onde
está Deus? Eu lhes direi. Nós o matamos, vocês e eu. Como conseguimos
uma coisa dessas? Tragar o mar? Quem deu a esponja para apagar o
horizonte? Que faremos diante da terra desvinculada do seu sol?’.”
Percebemos as profundas implicações que Nietzsche sentiu, tal qual uma

1. Ibid., p. 58.
2. A Ciência Desprendida.

-22-
o MUNDO E O SÉCULO

formiga que desafia o vulcão.


Segundo alguns historiadores, as contribuições de Sigmund Freud,
médico de Viena, Áustria, ao conhecimento científico do funcionamento
da mente humana são comparáveis às de Plank e Einstein, nas ciências
naturais.^ Além das muitas descobertas e imensa influência, Freud atacou
em cheio a religião que ele afirmava ser “a neurose obsessiva e universal”,
uma projeção da figura do pai.
Com o homem criado à imagem de Deus reduzido a um animal por
Darwin e pelas “explicações” científicas de Freud, não é de admirar a
libertinagem e falta de moralidade dos nossos dias. Juntamente com a
independência humana surgiram outros dragões. Nas palavras de H.
Schreiner; “O temor de Deus morreu. Porém, um novo temor toma o seu
lugar, o temor de tudo (‘Weltangst’)... A adoração da cultura se transforma
em desdém. O portão obscuro, para o qual toda a secularização conduz,
é o pessimismo”. Alexandre Solzhenitsyn, famoso escritor russo, ao
receber o prêmio Templeton, disse: “Por que será que a Revolução
devorou mais de 60 milhões do nosso povo? Não poderia responder mais
acuradamente do que repetir: os homens se esqueceram de Deus. Essa é
a razão de tudo que ocorreu”. O escritor continuou enfatizando o fato
principal que explica os acontecimentos palpitantes deste século: o
esquecimento de Deus.
Se, como fica evidente, é a religião que dá unidade e junta os
elementos incompatíveis da sociedade, perguntamos: o que tomará o lugar
do cristianismo? É evidente na Europa que o abandono de Deus abre
espaço para Satanás. Em Amsterdã, uma das cidades mais secularizadas
do mundo, proliferam seitas esquisitas. No restante da Europa e América
do Norte, é bem conhecido o avanço da superstição, espiritismo e religiões
orientais que ocupam o espaço deixado pelo cristianismo superficial e

1. A . M. Nicholi Jr., “Hope: the Essential Ingredient of Physical and Emotional Health”,
Veritas Reconsidered, ed. G. A. Hangen (Cambridge, MA: Mémorial Church), 1986, p.
36.
2. Citado por K. Bockmuehl, op. cit, p. 58.

-23-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

ritualista. A esperança que Agostinho articulou esvanece diante da


realidade do mundanismo secularizado invadindo a “Cidade de Deus”.
Lutero, há quase 500 anos, tinha percebido que melhor do que a
hierocracia medieval ou a secularização da sociedade, seria uma terceira
opção de dois reinos: o cristianismo e a cristandade. O primeiro seria a
Igreja composta de crentes, e o segundo o Estado, separado da Igreja, mas
não de Deus e suas leis. Mas o Ocidente, que abraçou a secularização com
entusiasmo cada vez maior, empurra a civilização que herdou em direção
aos destinos que os entendidos chamam de era pós-cristã e que têm como
religião predominante o “neo-paganismo”. Os “deuses” modernos, tais
como a ciência, a tecnologia e ideologias como o marxismo e o capitalismo,
todos apoiam a visão de um mundo sem a intervenção da Igreja ou de
Deus. Bonhoeffer previa que, após a Segunda Guerra, o Ocidente seria
dominado pelo “homem emancipado” e um cristianismo sem religião.
Manteria as grandes idéias do cristianismo, sem crer nos fatos históricos e
sem exigir qualquer participação em seus rituais.
Peter Berger, na sua obra O Imperativo Herético, levantou sua voz
como profeta secular para esclarecer o que está ocorrendo. Mostra que o
fato distintivo da cultura ocidental é a inexistência de uma “estrutura
plausível” (fundamento reconhecido como verdade) para sustentar o
mundo social, suas idéias e práticas. Na realidade, há dois mundos
separados: o mundo científico e econômico em que reinam os fatos (do
latim, particípio passado,/ízcfum, “feito”). O outro mundo é o da opinião
pessoal, do “eu acho” ou “eu creio”. A ciência trata do “como”, do controle
de processos de causa e efeito. A opinião pessoal trata do “porquê”. Crer
naquilo que não é crença de todos (como era o cristianismo na Idade
Média) é ser “herético”, colocar-se fora dos limites da “estrutura
plausível” do mundo moderno.^
O “mundanismo” do século XX contamina de maneira contundente

1. Veja L. Newbigin, “Can the West be Converted?”, International Bulletin of Missionary


Research, XI, n** 1 (janeiro de 1987), citado em Evangelical Review o f Theology, pp.
356s.

-24-
o MUNDO E O SÉCULO

O que em séculos passados era considerado sagrado. Uma vez dividida em


duas áreas, a particular (de opiniões pluralistas) e a pública (dos fatos,
onde as afirmações são verdadeiras ou falsas), toda afirmação religiosa ou
moral não passa de uma opção à livre escolha de cada indivíduo. O herege
desta segunda área é aquele que não acredita, após experiências que
comprovam os fatos da ciência. Mas na área de valores pessoais, não se
aplica esta linguagem do certo ou errado. Não há maneira de provar (sem
a Bíblia) a origem do universo, do mundo, do homem, nem o motivo da
■i
sua criação. Nessas duas áreas, o cientista, o pesquisador, simplesmente
pronuncia afirmações. O religioso introduz suas declarações com a frase:
“Eu creio”. Por isso, a moralidade que ainda se mantém no mundo
o
moderno tem suas raízes no mundo pré-científico. Não é possível chegar
a conclusões acerca de propósitos somente pelos fatos científicos. As
crianças estudam fatos em nossas escolas, mas não aprendem que o
homem existe unicamente para glorificar a Deus e alegrar-se nEle
eternamente.
À medida que o cristão se deixa moldar segundo a “estampa” deste
século (Rm 12.2), sua consciência permite práticas como o divórcio, o
aborto, a sonegação de impostos e o suborno, porque sente-se livre para
decidir por si mesmo. Paulo disse diante do Sinédrio: “Varões, irmãos,
tenho andado diante de Deus com toda a boa consciência até ao dia de
hoje” (At 23.1). A segurança moral do apóstolo não dependia do mundo
em torno dele, mas do Espírito constrangedor e da Palavra reveladora.
O mundanismo que se alastra fora das portas das igrejas é bem mais
radical hoje. A liberdade e independência individualista que caracterizam
nosso tempo se opõem aos ideais de Cristo. Brian Wilson, sociólogo de
Oxford, por um lado elogia o fato de o cristianismo não mais influir na
arena das decisões públicas, mas lastima o ocaso daqueles valores que
vieram para nossa cultura por meio da influência cristã, citando exemplos

1. Ibid., pp. 360s.


2. Ibid., p. 362.

-25-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

como “a extensão do clã e da afetividade ao próximo, produzindo


bem-estar e aceitação generalizados”, um “sentimento forte interiorizado
de honestidade impessoal, individual”, e “devoção desinteressada à
vocação”. Certamente, se as igrejas não forem reeducadas pela graça
salvadora, no sentido de negar “a impiedade e as paixões mundanas
(kosmikas)”, e se não nos dedicarmos a viver no presente século (aiõn) de
maneira sensata, justa e piedosa (Tt 2.11 s.). a luz se apagará. Não
esqueçamos também que o homem que abandonou suas velhas crenças e
abraçou o ateísmo prático de nossos dias dificilmente se entregará a
'qualquer “Cristo” que pregamos ao nosso modo. O declínio do
cristianismo, justamente no mundo ocidental, onde em séculos passados
ele dominava, levanta a questão básica: “O Ocidente poderá ser
convertido”?^

í . K. Bockmuehl, p. 63.
2. L. Newbigin, op. cit, p. 355.

-26-
o Mundo: A Rede que nos Prende

Consideremos alguns dos aspectos do mundo, nos quais reside o


poder, tanto para separar o homem de Deus como para lhe oferecer ura
campo onde servir ao Criador.

O Mundo: Campo de Aflições


Em primeiro lugar, o mundo é o local onde se experimenta alegria e
tristeza; “a tristeza do mundo produz a morte” para os que não têm fé (2
Co 7.10). “No mundo passais por aflições” (Jo 16.33), falou Jesus aos seus
seguidores. Não existe, neste mundo, um paraíso que nos permita escapar
das dores físicas e mentais. Quem não seguir pelo caminho estreito da
salvação, seguramente experimentará o peso da futilidade desta vida (Rm
8.20), além de um sem número de sofrimentos. O homem que gasta todas
as suas forças e capacidades para evitar este vale de dores, amando sua
vida neste mundo (Jo 12.25), certamente ficará mais decepcionado do que
aquele que coloca poucas esperanças no mundo “que passa” (1 Co 7.31).
As aflições que acometem os filhos de Deus surgem de duas fontes.
Eles sofrem as conseqüências da queda e da maldição de Deus sobre o
mundo {cf. Gn 3.16-19) juntamente com toda a raça. Mas, além disso, são
vítimas do ódio dos inimigos de Deus. O diabo não hesita em lançar
“dardos inflamados” contra a igreja (Ef 6.16). Emprega os homens como
seus servos (Jo 8.44) e os próprios demônios com crueldade eficaz (2 Co
12.7).
Mas para os que aguardam a feliz esperança do céu, os sofrimentos
desta vida no mundo devem ser apenas uma “leve e momentânea
tribulação [que] produz para nós eterno peso de glória, acima de toda
comparação” (2 Co 4.17). Toda aflição que o mundo lança contra os

- 27-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

cristãos, seja em forma de perseguição ou outra forma qualquer, será paga


com pesada glória (“peso” vem do hebraico kabod que significa glória e
também peso. Antigamente, a reputação e o valor de uma pessoa eram
medidos pela sua riqueza, bens e honra na comunidade).
Por meio dos sofrimentos característicos do mundo, que envolvem
suor, disciplina, cansaço e uma ampla gama de dores, o crente pode
granjear valores que o alegrarão na eternidade. O mundo, visto sob este
prisma, deve ser considerado uma escola para nossa fé. Deve criar alegria.
Pedro, pelo menos, pensava assim: “Nisso exultais, embora, no presente,
por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações,
para que o valor da vossa fé, uma vez confirmado, muito mais precioso do
que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, glória
e honra na revelação de Jesus Cristo” (1 Pe 1.6s.). Fora do mundo,
escaparíamos das aflições, mas também não teríamos nenhum campo para
aumentar o galardão eterno. No mundo vindouro, não se deve esperar
crescer, amadurecer ou se aperfeiçoar.
Jesus destacou esta verdade em duas parábolas preservadas por
Mateus. Ele as pronunciou com o objetivo de encorajar seus discípulos a
prestarem um serviço cristão no intervalo entre a Ascensão e a Segunda
Vinda. A primeira relata a história de um homem rico que confiou a três
dos seus escravos cinco, dois e um talentos, “segundo a sua própria
capacidade” (Mt 25.14s.). Os escravos não receberam um convite para
acompanhá-lo na viagem, mas foram enviados para negociar. Os dois
primeiros saíram para o mundo para aumentar o valor recebido. Então,
aconteceu que seus negócios foram bem sucedidos e deram um lucro de
100%. Assim como o mordomo incrédulo^ investe prudentemente para
tirar vantagens futuras (Lc 16.1-12), os que amam a Deus usam
sabiamente o mundo para aumentar sua alegria eterna. Nosso Senhor
recomendou: “Das riquezas de origem iníqua (mundana) fazei amigos;
para que, quando estas vos faltarem, esses amigos vos recebam nos

1. O vocábulo grego adiMa pode indicar que ele era desonesto ou que era “mundano”,
agindo sabiamente nessa situação.

-28-
o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE

tabernáculos eternos” (Lc 16.9). Esta vida no mundo, portanto, nos


oferece oportunidades para aumentarmos nosso tesouro celestial (cf. Mt
6.19-21), por meio das pessoas ganhas e servidas. É o mundo que,
necessariamente, nos fornece a matéria-prima. Pela refinação da fé em
conflito com as tentações do mundo, o crente comprova sua salvação (1
Pe 1.7-9). Mais ainda, acrescenta galardões preciosos à própria salvação.
Assim, quem procura desfrutar os valores presentes do mundo acaba por
perdê-los na vida atual e também no mundo vindouro.
O terceiro escravo agiu de modo contrário. Desobedeceu a seu
mestre, enterrando seu talento. O Senhor condenou-o porque não
entregou o dinheiro aos banqueiros para aumentá-lo com juros (Mt 25.27).
Neste dramático exemplo, aprendemos que, se não utilizarmos o mundo
para Deus, sairemos perdendo. A angústia e o remorso inconsolável serão
resultados de uma perda eterna.
A segunda parábola trata do Grande Julgamento (Mt 25.31-46) e
descreve como o Rei Jesus avaliará a vida dos seus seguidores. As ovelhas
representam crentes que serviram a Cristo, identificado com seus
irmãozinhos (v. 40), os cristãos famintos, desabrigados, nus e presos.
Notamos novamente que todas essas manifestações de miséria só podem
ocorrer nesta vida no mundo. Toda possibilidade de servir aos injustiçados
ou precisar do auxílio dos irmãos se limita ao mundo, que com freqüência
provoca fome, necessidades e prisão dos fiéis. ^ Foi com notável clareza
que Paulo se regozijou nos seus sofrimentos (Cl 1.24). Ao mesmo tempo,
não mediu esforços para levantar uma grande oferta nas igrejas que
fundou, para aliviar a miséria dos cristãos famintos da Judéia (2 Co 8 e 9).
Concluímos que o m undo am aldiçoado por D eus não é
necessariamente um obstáculo para quem busca em primeiro lugar o reino
de Deus. Ainda que esbofeteado pelo mundo, o servo obediente
encontrará, precisamente nesse mundo, um campo de batalha, uma
universidade para ganhar medalhas e colar graus para a vida eterna. Mas

1. Nunca devemos esquecer de orar pelos nossos irmãos na fé, que sofrem perseguições
em países hostis ao cristianismo.

-2?-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

para aproveitar as oportunidades que o mundo oferece, o crente precisa


valer-se de alguns valores do mundo e saber alcançar os valores eternos
através deles.

OMundo: Fonte de Ansiedade, Distração e Angústia


Em segundo lugar, por ser a fonte que supre todas as necessidades
da vida, o mundo material gera ansiedade. Ainda que a vida seja mais
preciosa do que o mundo inteiro, não é possível mantê-la aqui sem
alimento, saúde física, casa, meios de locomoção e prpteção. Por ser a
arena em que a humanidade experimenta sua dependência, o mundo
suscita preocupação.
Fomos formados da terra (Gn 2.7), e a morte devolve o corpo ao chão
do qual dependemos (Gn 3.19). Mas por sermos criados à imagem de
Deus, não esperamos pacificamente a dissolução. A morte é o inimigo final
desta vida e, portanto, queremos evitar o maior dos mistérios, custe o que
custar. Instintivamente, desejamos viver; daí a preocupação com o mundo,
que tanto pode manter nossa existência como tirá-la.
Muitos encaram o mundo como o tolo rico na parábola de Jesus (Lc
12.16-21). As terras do fazendeiro deram um lucro extraordinário. Diante
do problema de superabundância, arrazoou consigo mesmo: “Estes grãos
de que não preciso agora poderão servir na aposentadoria”. Assim
esforçou-se em preservar toda a produção para se manter feliz durante
longos anos, quando não teria forças para cultivar suas terras. Mas Deus
lhe chamou de “tolo”, porque naquela mesma noite sua alma seria pedida
(Lc 12.20). Quantas são as pessoas que diariamente confiam num futuro
seguro e abastecido, sem dar a mínima atenção à insegurança da vida no
mundo (Tg 4.13-17)!
Acidentes, doenças, crimes, terremotos, relâmpagos, guerra, secas e
enchentes, além de muitas outras pragas, ameaçam a vida precária do
homem. Todos esses eventos inesperados ocorrem no mundo, inculcando
insegurança diante da incapacidade dos homens de controlarem o mundo
que nos serve como mãe ou como um inimigo assassino, caprichoso. A vida
no mundo se ilustra bem no churrasco em que amigos e familiares

-30-
o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE
comemoravam o aniversário de uma menina, perto do Jardim Miriam, na
cidade de São Paulo, em agosto de 1989. A alegria se transformou em
lágrimas e prantos no instante em que o piso cedeu e quinze pessoas
caíram no poço. Vários morreram afogados e outros ficaram gravemente
feridos.
Jesus nos adverte solenemente contra a ansiedade que a vida cria no
homem. Em sua interpretação da parábola do semeador (Lc 8.11-15), as
preocupações foram comparadas aos abrolhos e espinhos que sufocam a
vida nova em Cristo (v. 14). À medida que cresce o temor a Deus, diminui
nosso medo dos homens, da natureza e de eventos imprevisíveis.
É somente como crianças que ingressamos no reino (Mc 10.15), e
toda criança bem cuidada sabe que não tem motivo algum para se
preocupar. Os bons pais inculcam confiança tal que o medo do futuro
mantém-se desconhecido. Isso também ocorre com os filhos de Deus que
confiam suas vidas aos cuidados do Pai. Mas Deus é invisível. O mundo
está presente e é palpável a toda hora, trazendo-nos a tentação de
abandonar a vida alicerçada na fé, para buscar a segurança no mundo.
A famosa senhora holandesa, Corrie Ten Boom, que foi presa pelos
nazistas nos anos sombrios da última guerra mundial, lembra num livro
seu a preocupação que sentia quando, ainda menina, viajava com o pai de
Haarlem para Amsterdã. O trem se aproximava, mas Corrie não tinha a
passagem na mão. Mas o sábio pai tranquilizava a filhinha: “Não te
preocupes; no instante em que precisares da passagem eu te darei!” Deus
acalma os corações daqueles que lhe pertencem, como Jesus, enquanto
caminhava em cima das vagas do mar da Galiléia. Os discípulos
imaginavam que o desastre brevemente os alcançaria. As palavras de
Jesus: “Sou eu, não temais” (Jo 6.20), ainda valem para todos os discípulos
do século XX, que vêem no mundo uma incontável hoste de ameaças. Se
pudermos crer na promessa de Jesus Cristo: “Eis que estou convosco até
o fim do século” (Le., mundo, Mt 28.20), experimentaremos a paz que
ultrapassa todo entendimento (Fp 4.7). A graça de Deus é suficiente para
enfrentarmos todos os possíveis desafios do mundo (2 Co 12.9).
Toda preocupação suscitada pelas condições do mundo é pecado. A

31 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

ansiedade nos é proibida pelo mandamento inspirado: “Não andeis ansio­


sos de coisa alguma” (Fp 4.6). A preocupação mostra que não confiamos
de verdade no Todo-poderoso nem cremos que Ele faz com que todas as
coisas (í.e., o mundo) cooperem para o bem daqueles que amam a Deus
(Rm 8.28). No fundo, geralmente somos fatalistas: vivemos sujeitos aos
caprichos das situações temíveis. Mas a palavra de Deus declara: “Tudo o
que não provém de fé é pecado” (Rm 14.23). Para os que se agarram em
Deus e confiam em Jesus Cristo, o mundo se transforma, de um caldeirão
agitado e fervente, na casa segura do Pai que verdadeiramente nos ama
(Jo 14.1s.).
Ê importante ficarmos prevenidos contra as distrações que o mundo
oferece e não apenas contra o seu poder de suscitar temores infundados.
O mundo forma nosso berço. Como bebês, passamos a vida fascinados por
borboletas e brinquedos pendurados, que afastam o enfado durante as
horas desocupadas. A percepção limitadíssima da criança continua
seguindo os jovens e adultos que vivem para serem entretidos pelas
músicas, televisão, teatro, revistas, histórias em quadrinhos, novelas,
conversas nos bares e muito mais. Paulo recomenda que o cristão redima
0 tempo, “porque os dias são maus” (Ef 5.16). A distração, em geral, nada
mais é do que permitir que as horas passem sem qualquer preocupação
em “comprá-las para fora” (exagorazomenoi). Horas desperdiçadas, sem
que se tenha feito nada para a glória de Deus, certamente são um bom
exemplo do que significa viver de modo mundano (c/. 1 Co 10.31).
^ Paulo apontou o perigo da distração na Primeira Carta aos Coríntios.
Respondendo, no capítulo sete, à indagação: “É ou não é pecado
casar-se?” ele diz: “Não é pecado” (7.28). Ainda assim, quem se casa
sofrerá “angústia na carne... o tempo se abrevia... os que se utilizam do
mundo [vivam] como se dele não usassem” (w. 29,31). O que o apóstolo
queria dizer com esta advertência? Certamente, ele trata da capacidade
que o mundo tem de nos prender a atenção a coisas de pouco valor e,
conseqüentemente, fazer-nos perder a oportunidade de alcançar
objetivos superiores.
Veja 0 exemplo do casamento: “O que realmente eu quero é que

-32-
o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE

estejais livres de preocupações. Quem não é casado cuida das coisas do


Senhor, de como agradar ao Senhor; mas o que se casou cuida das coisas
do mundo, de como agradar à esposa” (1 Co 7.32s.). Cuidar dos interesses
da família de maneira alguma seria pecado; muito pelo contrário, não
sustentar os filhos e a esposa é viver como o infiel, negando a fé (1 Tm
5.8). Mas o casamento, como também um sem número de opções e
responsabilidades, pode tornar mais difícil a nossa dedicação ao Senhor e
Seus interesses. Por isso escolhemos a palavra “distração”, indicando o
que desvia nossa atenção para tudo que é menos do que o summum
bonum. Necessitamos maior graça para manter acesa a brasa do amor pelo
Senhor no meio das distrações que o mundo coloca ao nosso redor. Como
um marido que ama profundamente sua esposa. Deus sente ciúmes dos
filhos que se preocupam mais com as coisas mundanas do que com o Reino
{cf. Mt 6.33). “Não ameis... as coisas que há no mundo” (1 Jo 2.15).
“Adúlteras” é o termo muito áspero que Tiago emprega para classificar os
que amam o mundo, tornando-se inimigos de Deus (4.4). “E com ciúme
que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós” (Tg 4.5).
Sendo escravos adquiridos pelo alto preço do sangue de Cristo (Ef
1.7), nossa vida, incluindo tempo, posses, capacidades e relações. Lhe
pertence inteiramente. Mas o mundo tem um pensamento oposto. Ainda
que o mundo e tudo que nele existe pertençam a Deus (SI 24.1), o pecador
valoriza sua independência. Não tendo seu prazer na lei de Deus (SI 1.2),
escolhe a amizade do mundo para estimular e satisfazer seus prazeres (Tg
4.3s.). Não é verdade que todo prazer seja pecado. Foi Deus quem
inventou o prazer, e não o diabo, mas a fonte e o objetivo do prazer devem
ser cuidadosamente avaliados. Bem falou, há mais de três séculos, William
Law: “Se alguém pudesse mostrar que não precisamos agir sempre como
se estivéssemos na presença de Deus... os mesmos argumentos mostrariam
■t
que nunca precisamos agir como se Ele estivesse presente”.
O mundo em que vivemos está caído. Nele, portanto, há prazeres

1. A Serious Call to a Devout and Holy Life, ed. J. M eister e outros (Filadélfia;
Westminster), 1955, p. 39.

-33-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

legítimos concedidos por Deus, assim como há os ilegítimos, contaminados


pelo mundo. Se somos servos de Deus, se todo lugar é igualmente cheio
de Sua presença e tudo que gozamos vem gratuitamente de Suas mãos,
toda satisfação deve suscitar gratidão a Ele. Paulo exorta os efésios a
sempre darem “graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso
Senhor Jesus Cristo” (Ef 5.20).
Por outro lado, se procuramos uma satisfação fora da comunhão com
o Senhor, se tentamos adquirir coisas e dominar pessoas, se nos esforça­
mos para extrair do mundo presentes que não vêm das mãos graciosas de
Deus, para gastar em interesses puramente pessoais, tornamo-nos servos
infiéis, alienados e amigos do mundo.
Não há necessidade de se buscar nas especulações aquilo que
transformou o mundo “bom” numa rocha de tropeço. Foram o egoísmo e
a soberba do coração humano. Tudo que possuímos no mundo pode ser
uma bênção ou uma maldição. Se gastamos para finalidades inúteis e ruins,
não apenas perdemos, como também dificultamos nosso progresso na
santificação. Seria como tomar o dinheiro do pobre necessitado e comprar
veneno para nós mesmos.^
Jesus queria destacar o perigo do mundo como fonte de distração,
quando disse: “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm
riquezas!” (Mc 10.23). O jovem rico ficou triste porque Jesus lhe disse: “Só
uma coisa te falta: Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres, e terás um
tesouro no céu; então vem, e segue-me” (Mc 10.21). Para um indivíduo
que se acostumou com o conforto, a segurança, a independência e as
opções ilimitadas que o mundo lhe oferece, abandonar tudo isso é tão
difícil quanto seria para um camelo passar pelo olho de uma agulha.
Parece-lhe uma loucura, totalmente irracional. É assim que o mundo nos
fascina, desviando para o mundo a visão de Deus e do seu reino. Ele
transfere a beleza e glória de Deus para si mesmo.
O materialismo, não-filosófico nem intelectual, que se limita a ver o
mundo em termos de padrão de vida, conforto e esperança no progresso

1. William Law, ibid., p. 44.

-34-
o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE

da civilização, tem produzido o período chamado “pós-cristão” ou


“secularizado”. A igreja já não interpreta o certo e o errado para a
sociedade. A igreja não é convidada a desaparecer, mas “somente a
ocupar um assento no vasto anfiteatro da sociedade”.^ Sua opinião entra
em competição com os pronunciamentos de universidades, partidos
políticos, cientistas e sindicatos trabalhistas, além das opiniões ventiladas
por artistas, estrelas e locutores da mídia.
Mas, desde o princípio, a sincera postulação do senhorio de Cristo
sobre o mundo (que ele criou, Jo 1.3) e a história (que ele governa, 1 Co
15.24; Ap 11.14s.) mostra que o cristianismo tentou colocar a fé em prática
O
de uma forma coletiva. Não se contentou em elaborar seu credo e fazer
pronunciamentos como acontece com o Conselho Mundial de Igrejas ou
a Igreja Católica Romana, mas foi mais longe. Ela colocou em prática sua
visão de uma sociedade cristã. Através da Encarnação, Cristo viveu no
mundo em perfeita harmonia com a vontade do Pai. Nós não podemos
fazer menos do que tentar seguir seus passos. Somente assim é formado
um povo distinto do mundo, composto de forasteiros e peregrinos (1 Pe
1.1,17) em meio a uma sociedade corrupta e perversa (Tt 2.12). Só assim
criamos um lar para os “forasteiros” e desabrigados, cidadãos do céu aqui
no mundo, “um lar para os que não têm casa”.^ Outra figura empregada
por Paulo intitula embaixadores os servos de Deus. “Deus estava em
Cristo, reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas
transgressões, e nos confiou a palavra de reconciliação. De sorte que
somos embaixadores em nome de Cristo...” (2 Co 5.19s.). Uma vez
regenerado e inserido em Cristo, o cristão pertence a uma nova criação (2
Co 5.17). “As coisas antigas (tais como pecados, ambições egoístas e
domínio de Satanás) já passaram; eis que se fizeram novas” (2 Co 5.17).
Assim, o embaixador é o cidadão do céu (Fp 1.27; 3.20) que reside no

1. Jacques EUul, The New Demons (Nova Iorque: Seabury Press), 1975, tradução de C.
Edward Hopkin, p. 23.
2. Jacques EUul, op. cit, p. 15.
3. U m sugestivo título do livro de J. H. EUiott (São Paulo: Paulinas), 1985, citado por E.
MueUer, / Pedro (São Paulo: Vida Nova), 1988, p. 38.

-35-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

mundo até morrer. As implicações são profundas.


1) Ele precisa manter os interesses do reino de Deus acima dos do
mundo ou de si mesmo.
2) Como embaixador, ele representa o rei. Fala em seu nome. A
honra de sua pátria está em suas mãos e comportamento. Disse J. B.
Lightfoot: “O embaixador... atua não só como agente, mas como repre­
sentante do seu soberano... o dever do embaixador não é só de entregar
uma mensagem específica”,^ mas executar um papel, observando, avalian­
do e promovendo tudo que diz respeito aos desejos do Rei e do Seu reino.
Apesar de toda a atração que o mundo oferece aos peregrinos
celestiais no seu meio, seus galardões são temporários e efêmeros. A
tragédia do mundo, especialmente da civilização ocidental, é evidenciada
por uma surpreendente verdade: não sabe responder à pergunta chave da
existência: “Por que vivo?” “Qual é o propósito da vida?” “Viver sem razão
é uma tragédia maior do que morrer por alguma razão.” Nos campos de
concentração nazistas, o famoso psicólogo judeu Victor Frankl descobriu
que não é de prazer (como pensava Freud) nem de poder (segundo Adler)
que todo homem precisa, mas de significado e propósito.
Mas é justamente no ponto nevrálgico do contato entre os súditos do
reino e “os que habitam na terra” que surge o conflito. O mundo acusa o
cristão de escapismo, por não se envolver seriamente nos interesses
centrais do mundo. Aguardando ordens para se aposentar no seu
esperado lar eterno, o povo de Deus pouco se importa com o destino do
mundo, fatalmente sentenciado a ter seus elementos abrasados e
derretidos (2 Pe 3.12).
Mas a aparência do mundo que passa (1 Co 7.31) ainda nos oferece
vistas encantadoras (por isso quero viajar), conforto e facilidades na vida
(por isso faço horas extras para pagar prestações altas de um carro novo).

1. Citado em William Barclay, The Letters to the Corinthians (Filadélfia: Westminster


Press), 1975, p. 211.
2. Cf. Peter Kreeft, Heaven, the Heart’s Deepest Longing (Nova Iorque: Harper euid Row),
1980, p. 2.

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o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE

reconhecimento e honra (por isso quero pastorear a maior igreja do país


ou alcançar o privilégio de ser deputado federal). Disse mui acuradamente
C. S. Lewis: “Se desse a um transeunte em Londres a opção entre uma
refeição num bom restaurante e a garantia de chegar ao céu, seguramente
ele escolhería a refeição”.
Deus proíbe o amor pelo mundo (1 Jo 2.15), porque ele transfere o
amor que se deve a Deus para algo que foi criado. Por isso Jesus relembrou
ao jovem rico que Deus, e somente Ele, é bom e, portanto, digno de
receber todo o amor de suas criaturas (Mc 12.30). Desconhecendo a
santidade de Deus, o indagador rico não sabia a quem tinha ofendido e
nem como (Mc 10.18)! Não entendia que a avareza é uma expressão real
de idolatria (Ef 5.5). O jovem rico pensava que guardava a lei de Deus
desde sua juven tu d e (Mc 10.20, um rap az ju d eu aceitava a
responsabilidade de guardar a lei quando se tornava “filho da lei”, aos doze
anos). Pensava que era “espiritual”, porém era mundano.
Muitos em nossos' dias pensam ser cristãos segundo o coração de
Deus. Não são derrubados pelas tentações comuns, tais como cigarros,
bebidas alcoólicas, roupas que não condizem com a modéstia cristã, nem
pelo cinema e programas isentos de todos os valores cristãos na televisão.
Sem ter pensado seriamente a respeito, nosso cristão modelo chega à
conclusão de que venceu o mundo. Os valores que dominam sua vida são
os religiosos. Ele não falta aos cultos da igreja. É assíduo em manter
“santo” 0 dia do Senhor. Confia de todo o coração que ele não é mundano,
porque guarda rigorosamente a “lei” da suâ igreja ou denominação. Os
membros da igreja confiam nele, porque está entrosado com eles. Não
teria coragem nem interesse de comportar-se diferentemente do grupo
que estabelece os padrões e governa a igreja.^ Impulsionado pelo orgulho,

1. Compare as palavras de Sebastião, irmão de uma igreja do Rio: “Às vezes confio muito
nos irmãos da igreja... Mas às vezes... é, como diria, pela metade. Há alguns que são
descontrolados em sua maneira de viver. Então não posso ser fiador dessa pessoa que
se tornará um embaraço. H á alguns irmãos que ajudam os outros com todo prazer e
alegria...” J. Page, Brasil Para Cristo, uma dissertação não publicada apresentada como
trabalho de doutoramento na Universidade de Nova Iorque em 1984, pp. 313,314.

- 37 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

O mundano destaca as falhas dos outros cristãos e diminui-lhes as vitórias,


enquanto diminui suas próprias carências e destaca suas vitórias.
Mas o mundo, condenado por Deus, tem muito mais a ver com o
desejo de ser alguém, que nos carateriza a todos. “Não procureis ser
pequenos deuses”, é a sugestiva maneira como Phillips traduz 1 Pedro 5.3.
A mais sutil tentação do mundo é a que propõe reconhecimento e
aceitação ao cristão. O mundo, ao contrário da Palavra (Tg 1.23), é um
espelho que nos engrandece e nos coloca sobre um pedestal. Sentimo-nos
incapazes de falhar, uma vez que o mundo nos exalta e conquistamos
algum espaço e proeminência (cf. 3 Jo 9). Disse o famoso J. H. Jowett: “O
espírito mundano de transigência é exatamente o sacrifício do ideal moral
em favor do padrão popular e sua sujeição da convicção pessoal à opinião
em voga”. Mais ainda, Richard Baxter percebeu muito bem: “Que
companheiro astuto e sutil, que comandante tirânico e que insidioso
inimigo é o pecado do orgulho! Fica patente em nossa conversação, em
nosso modo de viver, em nossa companhia e em nossas atitudes pessoais
diante dos outros. Ele é a base de nossos motivos, modela nosso pensar,
determina os nossos desejos, fomenta a inveja e pensamentos amargos
contra os que são mais proeminentes do que nós”.2
O mundo providencia o leite para alimentar o insaciável apetite por
reconhecimento, fama, elogios e glória. O fator principal que faz com que
o mundo seja tão fascinante é nossa revolta contra a exigência de entrar
pela porta estreita e andar pelo caminho pedregoso da humildade (Mt
7.13s.). “... tudo que há no mundo... a concupiscência dos olhos e a soberba
da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo” (1 Jo 2.16). É fácil
esquecer que o reino de Deus pertence aos pequeninos (Mc 10.14) e que
os bem-aventurados são os pobres de espírito (Mt 5.3). O apóstolo Paulo
tem tanta convicção de que o mundo todo tem sua origem em Deus e é

1. o Pregador, Sua Vida e Obra, citado por J. D . Barnett, “Ifeologia Pastoral”, apostila do
Seminário Bíblico Goiano, p. 4.
2. O Pastor Aprovado (São Paulo: PES), 1989, p. 74s.

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o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE

mantido por Ele (Cl 1.17) que não duvida de que toda a ordem criada é
dada para os homens usufruírem.^ A perversão que existe no mundo não
faz parte de sua natureza intrínseca, como argumentavam os gnósticos.
“Pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graça, nada é
recusável” (1 Tm 4.4), foi a resposta inspirada de Paulo aos enganados
inimigos do evangelho. O perigo do mundo jaz na soberba que emana
naturalmente do “espírito do mundo” (1 Co 2.12), que exalta a inteligência
dos entendidos e a sabedoria do mundo (1 Co 1.19s.). Não somos
profanados pela matéria criada, mas pela soberba e o uso indevido do
mundo para controlar os homens (1 Jo 2.16).
Foi a glória e o poder do mundo que o diabo ofereceu a Jesus, após
ter lhe mostrado “num momento todos os reinos do mundo” (Lc 4.5). O
fato de Satanás poder dizer: “Toda esta autoridade e a glória desses
reinos... dou a quem eu quiser” (v. 6), mostra como o mundo se tornou o
instrumento de sua rebelião contra Deus. Por ser o “deus deste século” (2
Co 4.4), entendemos que os que se recusam a ter Deus como soberano se
submetem consciente ou inconscientemente aos desígnios do demônio.
João afirma que “o mundo inteiro jaz no maligno” (1 Jo 5.19). Como
príncipe deste mundo. Satanás espalha nele sua influência {cf. Jo 12.31;
14.30; 16.11). Ele anima o “espírito do anticristo... presentemente já está
no mundo” (1 Jo 4.3), de maneira que, na realidade, o reino das trevas,
composto dos súditos humanos e espirituais do demônio, organiza e
sustenta a oposição contra Cristo e sua Igreja.
Devemos ficar cientes então de que os filhos de Deus e os filhos do
diabo (Jo 8.44) são os únicos agrupamentos básicos em que o mundo
humano se divide. A vinda de Jesus para o mundo na encarnação e sua
vitória sobre o mundo pela sua vida perfeita e conquista das trevas na cruz
deram-Lhe plenos direitos sobre o cativeiro (Cl 2.15; Ef 4.8). “Nisto se
manifestou o amor de Deus em nós, em haver Deus enviado o seu Filho
unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele” (1 Jo 4.9). Toda

1. R. A . Muller, “World”, International Standard Bible Encyclopaedia (ISBE), vol. IV,


(Grand Rapids: Eerdmans), 1988, p. 1115.

- 39-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

autoridade foi dada a Jesus Cristo no céu e na terra (Mt 28.18). Ele deve
reinar até “que haja posto todos os inimigos debaixo dos seus pés” (1 Co
15.27). Ainda não foram destruídos todos os principados, potestades e
poderes (v. 25) e, por isso, continua a luta do cristão contra os dominadores
deste mundo (Ef 6.12, kosmokratoras). É o controle sobre o mundo
humano que interessa a Satanás e os seus aliados. Nas palavras de John
Milton: “O reinado vale pela ambição, mesmo no inferno. É melhor reinar
no inferno do que servir no céu”.^ Este sentimento acalentado pelo Diabo
contamina tudo. Segundo R. Foster: “O pecado do Jardim (do Éden) foi
0 pecado do poder”.^
A ameaça da tentação do mundo não assusta muitos líderes
evangélicos. O caso do famoso casal Jim e Tammy Bakker dá força ao
argumento. Em 1976, o ministério de PTL (Praise the Lord — “Louvem
ao Senhor”) operava em bases precárias. A sede humilde não refletia
confiança nos recursos humanos. Um ano depois, instalados num prédio
novo e moderno, sua maneira de lidar com as pessoas tinha mudado de
modo sensível. Dr. Charles Colson explica este fenômeno como a
“síndrome Imelda Marcos”, que raciocina da seguinte maneira: “Já que
estou nesta posição, tenho o direito de fazer o que quero”.
Não é de admirar que Jim Bakker tenha ficado tão distante do ideal
cristão, não tendo sido capaz de reconhecer o pecado da fraude e a
obrigação de pagar o imposto de renda. Como o profano Esaú, “não achou
lugar de arrependimento, embora, cora lágrimas, o tivesse buscado” (Hb
12:17).
O poder tem uma facilidade inata de corromper qualquer líder que
exerça o direito de manter controle sobre a vida dos outros. A tentação do
poder nos atrai da mesma maneira com que atraiu a Eva, prometendo-nos
o privilégio mais cobiçado de sermos mais parecidos com Deus. Satanás
achou que Jesus cairia diante da tentação de ter a autoridade e a glória de

1. Citado por C. Colson, IQngdoms in Conflict, p. 272.


2. Ibid.
3. Ibid., pp. 172s.

40-
o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE

todos OSreinos do mundo (Lc 4:5s.). Não tinha notado que Cristo ensinava
e praticava a seguinte exortação: “O maior entre vós seja o menor; e
aquele que dirige seja como o que serve” (Lc 22:26).
Não é apenas nas áreas políticas que o culto à personalidade ganha
subsídios. Quando a autoridade que pertence a Cristo é usurpada por
qualquer líder, as conseqüências são previsíveis: a violação psíquica
(lavagem cerebral) das massas; o orgulho de pertencer a um grupo
superior dominado por um líder do tipo “deus encarnado”, que conduz a
um fanatismo estreito e irrefletido; a utilização de punições que produzem
submissão e a adoção de uma ética que valoriza somente aquilo que é
desejado pelo grupo. Estas e outras características do modelo sectário
encaixam-se nitidamente no conceito global do “mundo” segundo a
Bíblia.^

A Vitória sobre o Mundo


Damos o primeiro passo, e um dos mais importantes na conquista do
mundo, ao identificar este inimigo. Saber quem é o adversário é ser
inteirado do seu modo de lutar; e isso oferece vantagens incalculáveis ao
cristão disposto a vencer o mundo.
As linhas seguintes pressupõem que o leitor entende que o mundo,
segundo o Novo Testamento, é um sistema que pensa e age de acordo com
os princípios e alvos de Satanás. Para vencer, é imprescindível levar a sério
os conselhos bíblicos.
1) A maioria não representa necessariamente a vontade de Deus
“Não seguirás a multidão para fazeres o mal” (Êx 23.2). Receosos de
parecermos isolados ou minoritários, curvamo-nos facilmente ante o
argumento de que “todos estão fazendo...” Vencemos quando temos a
convicção de que vale muito mais ficarmos sozinhos com Deus. “Porque

1. Veja Humberto L. Schuffeneger, “Los Cristianos Frente al Totalitarismo Político”,


Boletín Teológico da Fraternidade Tfeológica Latinoamericana, Ano 22, n®38, Junho de
. .19%, pp. 91s.

- 41 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

tudo O que é nascido de Deus vence o mundo, e esta é a vitória que vence
o mundo, a nossa fé” (1 Jo 5.4). Neste versículo, os crentes reais venceram
(particípio aoristo) definitivamente pela sua fé. Rejeitaram de vez a
tentação de seguir os hereges {cf. 1 Jo 4.4). O mundo seria, de acordo com
o comentarista Westcott, “o sistema que reúne a soma de todos os poderes
limitados e transitórios opostos a Deus, que dificultam a obediência”.^
2) O mundo deve ser derrotado pela cruz. Disse Paulo: “Mas long
esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela
qual o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo” (G16.14). O
famoso pastor de Cambridge, Charles Simeon, comenta: “Aos olhos do
apóstolo, o mundo era um objeto crucificado. Ele mesmo foi crucificado
em relação ao mundo. Para uma pessoa que está padecendo numa cruz,
o mundo não é um objeto desejável, qualquer que seja seu valor para nós.
Logo que morrer, o crucificado terá seu corpo sepultado, fora de nossa
vista. Ele não pode esperar quaisquer daqueles confortos que ganhava
outrora... Mas o apóstolo acrescenta que ele estava crucificado para o
mundo. Isto não quer dizer que o mundo o tivesse desprezado ou quisesse
que ele ficasse sepultado fora da sua vista. A expressão sugere que, para
ele, o mundo era um objeto crucificado. Ele contemplava todas as coisas
no mundo como um homem que estava morrendo numa cruz. Pode ser
que 0 amasse intensamente antes, mas agora não o ama mais. Pode ser
que tivesse buscado os seus prazeres, suas riquezas e suas honras com o
mais insaciável ardor; agora não almeja nada dele... Seria como o ladrão
penitente na cruz: mesmo que tivessem oferecido coroas e reinos para
gozar durante as poucas horas restantes de sua vida, não teriam valor
algum para ele”.^ A visão de Jesus exaltado na estrada de Damasco fez
com que os valores de Saulo de Tarso virassem de cabeça para baixo. Os
mais valiosos benefícios jamais contemplados pelos homens vieram pela

1. Citado por J. R. W. Stott, I, II, IlIJoão, Introdução e Comentário (São Paulo: Vida Nova),
1988^ p. 150.
2. Citado por John R. W. Stott em Evangelical Preaching (Portland: Multnomah Press),
1986, pp. 69s.

42 -
o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE

mediação da cruz (cf. Jo 1.29; 1 Pe 1.18s.; Ap 5.9). Para juntar e repassar


essas riquezas, Jesus tinha de ser rejeitado pelo mundo. Também, para ser
identificado com Cristo, era necessário que Paulo (e todo cristão) fosse
crucificado com Ele (G12.19s.). Na cruz, Jesus disse o “não” determinante
a todos os apelos e tentações do mundo. Tomar a cruz e seguir o Mestre
significa o mesmo (G16.12; Mc 8.34). A perseguição por causa da cruz de
Cristo põe em relevo a inimizade intransponível entre a cruz e o mundo,
tal qual existe entre Deus e o mundo (1 Jo 2.15). Pela cruz, ficou evidente
que Deus aceita os pecadores, à parte de seus méritos e obras da lei.
3) É preciso tomar a decisão de evitar conformar-se com a cultura
pagã do secularismo contemporâneo (Rm 12.2). Para se conseguir a nova
mentalidade anti-mundana, é necessário deixar conscientemente de
imitar os “habitantes da terra” (Dt 12.29s.). Não amar ao mundo quer
dizer evitar ter como heróis aqueles que os não-crentes exaltam e, ao
mesmo tempo, “imitar a fé” dos homens de Deus que venceram a tentação
domundanismo (cf. Hb 13.7; 1 Co 11.1) A separação que deve caracterizar
os crentes se fundamenta na advertência de Deus: “Retirai-vos do meio
deles, separai-vos, diz o Senhor...” (2 Co 6.17). A íntima relação que Deus
tem com seus filhos torna inviável um jugo desigual com incrédulos e
também uma sociedade entre justos e iníquos (v. 14). Afastar-se quer
dizer, principalmente, rejeitar os ideais do mundo, permitindo apenas ao
que é justo, puro e de boa fama circular no labirinto de nosso cerébro (Fp
4.8).
4) A vitória sobre o mundo só pode ser alcançada por quem muda o
objeto do seu amor. Somos filhos da terra, fomos criados aqui e, por isso,
amamos, naturalmente, o mundo. Assim como o patriota ama o Brasil e
o carioca, o Rio de Janeiro, todos temos uma afinidade com este mundo.
À semelhança de Demas, que abandonou a Paulo numa hora de extrema
necessidade, por amor ao mundo (“presente século”, 2 Tm 4.10), o cristão
sente uma atração pelo mundo, pelas coisas, pela lisonja e pela
preciosidade de tudo que brilha e entretém, mesmo que temporariamente
(1 Jo 2.16). Esse amor precisa ser desterrado, e um amor maior pelo
Senhor da glória implantado em seu lugar. O irmão Lourenço (Nicolas

- 43-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

Herman) explicou em termos simples como o amor por Deus pode


ultrapassar o amor natural pelo mundo. “Depois de me dar inteiramente
a Deus para que tirasse de mim o pecado, renunciei, por amor a ele, a tudo
que não fosse ele; comecei a viver como se nada existisse no mundo além
dele e eu. Às vezes me considerei diante dele como um pobre criminoso
aos pés do juiz; em outras ocasiões, eu o contemplei como a meu Pai, como
a meu Deus. Adorei-o tantas vezes quanto podia, guardando a minha
mente na sua santa presença, chamando-a de volta cada vez que vagueava,
afastando-se dele... Tornei isto minha meta, durante o dia todo, como nas
horas marcadas de oração; porque em todo tempo, cada hora, cada
minuto, mesmo quando mais ocupado, expulsei da mente tudo que era
capaz de interromper meu pensamento sobre Deus.”^
Se eu quiser ter um coração voltado para Deus, Ele precisa possuir
meu coração. É impossível servir com amor aos dois senhores. Deus e
Mamom (riqueza; Mt 6.24). Quem busca o reino de Deus como prioridade
não pode, ao mesmo tempo, buscar em primeiro lugar uma fortuna (Mt
6.33). Quem realmente ama a Deus experimenta a realidade da
recomendação de Jesus: quem ganhar o mundo, ou mesmo uma parte
dele, perde a alma, pelo menos parcialmente. “Mais bem-aventurado é
dar que receber” (At 20.35) deixa de ser mera frase de efeito. Veja o caso
dos macedônios: deram-se primeiramente ao Senhor, para, em seguida,
em meio a muita tribulação e profunda pobreza, superabundarem na
riqueza da sua generosidade (2 Co 8.1-5). O fato de que Cristo, “sendo
rico, se fez pobre por amor” de nós (2 Co 8.9), explica em grande parte
Sua vitória sobre o mundo (Jo 16.31-33).
Quem está disposto a doar suas riquezas, fazendo-se pobre por amor
de Cristo? Paulo elogiou a Timóteo pelo seu desprendimento do mundo.
“A ninguém tenho de igual sentimento, que sinceramente cuide dos vossos
interesses; pois todos eles buscam o que é seu próprio, não o que é de
Cristo Jesus” (Fp 2.20). O mundo fascina, prende, atrai por meio das coisas

1. T. S. Kepler, The Practice of the Presence o f God (A Prática da Presença de D eus


Primeira Carta), citado em The Fellowship of the Saints, ed. T. S. Kepler, p. 433.

- 44-
o MUNDO: A REDE QUE NOS PRENDE

e experiências que as riquezas podem comprar, mas faz apodrecer e


esvazia o amor pelas pessoas e, particularmente, por Deus. “O amor do
dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da
fé...” (1 Tm 6.10). Segundo o Mestre: “Onde está o teu tesouro, aí estará
também o teu coração” (Mt 6.21).
O potencial que o mundo tem para nos enredar está em proporção
inversa ao nosso prazer e gozo no Senhor. Se nos cansamos da comunhão
com Ele, se a “alegria do Senhor” (Fp 4.4) não passa de uma vaga
lembrança, então o mundo pode nos seduzir facilmente, como um homem
simpático, de boa aparência e palavras suaves, enreda a mulher ressentida,
carente de convicção moral, há muito tempo separada do marido.
Por isso, diz J. Piper: “Não permita que sua adoração se reduza a um
mero dever. Não permita que o temor e a capacidade de uma criança se
afoguem em conceitos anti-bíblicos de virtude. Não permita que o cenário,
a poesia e a música de seu relacionamento com Deus murchem e
morram..:.”^
5) A vitória sobre o mundo é mais provável se os membros da igrej
formam uma comunidade onde há koinõnia. Os vínculos do amor mútuo
na família de Deus criam um remédio forte, mais do que eficaz, para
repelir o amor pelas coisas. Seguindo as exortações do Senhor, os
primeiros irmãos “tinham tudo em comum” (At 2.44). “Vendiam suas
propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos” (v. 45). Segundo
o autor anônimo do Didaquê (século II): “Não sejas dos que estendem as
mãos para receber, mas fecham-nas quando devem dar... Não voltarás as
costas aos necessitados, mas compartilharás de todas as coisas com teu
irmão, e não dirás ser exclusividade tua”.^ Clemente, pastor da igreja de
Roma, no fím do primeiro século, menciona que “muitos chegaram a se
entregar à prisão ou se venderam a si próprios, para poderem resgatar

1. John Piper, Dej(/j>ig God, (Portland: Multnomah Press), 1986, p. 84.


2. Didaquê IV, 5,8.

-45-
o MUNDO, A CARNE E ODIABO

outros”.^ É na área da prática da verdade, da aplicação das Sagradas


Escrituras a todas as facetas da vida, como adverte o Dr. Francis
Schaeffer,^ que a vitória da igreja sobre o mundo será concretizada. As
igrejas devem se caracterizar pela marca da identidade espiritual que é o
amor.

Sincds e Manifestações de Mundanismo


Concluímos este capítulo apresentando algumas maneiras como o
mundanismo se infiltra na igreja, sem ser percebido ou combatido.
1) O cristão (pode ser até o pastor) que se sente bem, andando em
um carro novo bem equipado e morando em palacete ou apartamenito
luxuoso, enquanto há irmãos da igreja passando necessidades. Ele não vê
nenhuma incoerência entre a busca de uma vida boa no mundo e uma vida
aceitável na igreja (cf. Mt 6.24).
2) Um trato delicado e atencioso oferecido a um indivíduo influente
e poderoso que mostra interesse em aderir à igreja, contrastando com o
desprezo e falta de preocupação com um pobre^ (Tg 2.1-10).
3) O irmão que age como dono da igreja, porque se esforçou mais
para iniciá-la e sustentá-la. É sua palavra que pesa na reunião mensal para
tratar dos negócios da igreja. É sua vontade que precisa ser levada em
conta antes que qualquer mudança se efetue no programa e projetos da
igreja (3 Jo 9).
4) Testemunhos dados em público ou em particular em que se
destacam a “espiritualidade” e o poder do “servo” de Deus. A auto-exal­
tação que eleva o instrumento humano acima do único Senhor que efetua
a maravilha da transformação espiritual é mundana (cf. Rm 15.18).
5) Todo aquele que exclui Deus do centro, deixando de fazê-lO o alvo
e meta da existência. O resultado inevitável é ser levado pela correnteza
do mundanismo. No contexto da ambição e preocupação com a carreira
é impossível evitar a tentativa de unir Deus e o mundo (Fp 2.19ss.).

1. J. G. Salvador, O Didaquê (São Paulo: Imprensa Metodista), 1980, p. 49.


2. Francis Schaeffer, The Great Evangelical Disaster (Eastbourne: Kingsway), 1985.

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o MUNDO; A REDE QUE NOS PRENDE

6) p humanismo^quejdentifica “o ^ue é bom para mim” com “o qu


é bom para Deus e Seu reino”, promove o mundanismo que passa
despercebido nas igrejas. O mundanismo característico de nosso tempo
secularizado se concentra na pergunta: “Que proveito há para mim
nisto?”^ Se queremos vencer o mundo temos de largar a orgulhosa
centralidade de nós mesmos e nos humilharmos de acordo com as
perspectivas bíblicas, em que somos convidados a ser ovelhas do Bom
Pastor e servos de todos. A medida que ganhamos o mundo, perdemos a
alma pela infiltração do mundanismmo (Mc 8.35-37). Curvando-nos
diante de Jesus Cristo, destituímos a fascinação do mundo e sua glória. Em
vez de perder a alma, nós nos revestimos da imagem que Deus projetou.
Seu desejo é que sejamos semelhantes ao Filho de seu amor (Rm 8.29s.).^
Certa ocasião, uma senhora rica queixou-se para o pastor do
mundanismo de uma irmã da igreja. O Dr. Donaldo Barnhouse escutou
impacientemente o relato da mulher indignada que tinha visto a sua irmã
cristã ir ao cinema. Todavia, em vez de condenar a irmã que assistiu ao
filme, 0 pastor chocou a senhora que trouxe a fofoca, declarando: “É você
que é mundana! Sua irmã talvez seja carnal, mas mundana é você!”
“Como?” perguntou a senhora. “Lembra-se do grupo de irmãs que se
reunia em casas diversas para orar? Bem, após a reunião em sua casa,
irmã, ele não se reuniu mais. Sabe por quê?” A irmã possui uma linda casa
e o que há de melhor em mobília, pratos e suvenires. A reunião das
senhoras em sua casa desanimou-as muito, já que elas não podiam
jactar-se de viagens ao redor do mundo nem servir o chá em xícaras
caríssimas da China. O seu mundanismo desencorajou o grupo de oração!”
Vemos neste episódio justamente como qualquer atitude mundana
desestimula todo esforço em prol do reino de Deus. O mundo na igreja é
como água no fogo ou areia no combustível do automóvel. O veterano
apóstolo João escreveu: “Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não

1. Cf. R. Hurding, The Tree o f Healing (Grand Rapids: Zondervan), 1984, p. 231.
2. Ibid.
3. Ibid.

-47-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

está nele” (1 Jo 2.15).


Em suma, endossamos a inspirada declaração de João acerca das três
categorias que reúnem toda a gama de mundanismo (1 Jo 2.15-17). Nas
palavras do Dr. V. Grounds, a concupiscência da carne significa
sensualismo, uma gratificação excessiva e egoísta da nossa natureza física.
A concupiscência dos olhos significa materialismo, o abraçar das coisas
que queremos, mas não necessitamos. A soberba da vida significa o
egocentrismo, que anseia insaciavelmente se infiltrar em nossas
inconseqüentes reputações.

1. Vernon Grounds, “Loving the World Rightly or Wrongly” (‘Amando o Mundo de


Forma Correta ou Errada”), Christianity Today, abril de 1980, pp. 19-21, citado em Stacy
e Paula Rinehart, “Caught Between TVvo Worlds” (“Apanhado Entre D ois Mundos”),
Discipleship Journal, maio de 1987, p. 23.

-48-
4
A Carne

Introdução
O segundo inimigo que nos faz tropeçar e vive em combate acirrado
contra a nossa santificação é a “carne”. O emprego bíblico deste vocábulo
para identificar nossa inclinação para o mal parece estranho à primeira
vista. Não é o elemento material que nos afasta do destino traçado
originalmente por Deus quando criou Adão e Eva. O quebra-cabeça que
desafia o intérprete da Bíblia logo se apresenta. A palavra “carne” {sarx,
grego; bãsãr, hebraico) tem acepções tão diversas que não é nada fácil
entender esse termo corretamente em seu contexto. Tocaremos somente
nos sentidos mais comuns.

A Carne Física
A carne tem o significado neutro do elemento físico que encobre os
ossos dos homens e animais. Thata-se do material que se compra no
açougue ou é procurado por antropófagos (Gn 40.19; Lv 6.27). É neste
sentido que Paulo contrasta a circuncisão da carne com a do coração (Rm
2.28). Ele pregou aos gálatas portando uma enfermidade que assolava sua
carne (G14.13). A morte reconciliadora de Jesus Cristo não foi imaginária
ou mental; foi experimentada no “corpo de sua carne” (Q 1.22). Jesus
declarou que quem não se alimentar da Sua carne e beber o Seu sangue,
não tem a vida eterna. É pela encarnação do Filho que ganhamos a
salvação, ainda que a carne em si não tenha valor (Jo 6.63). A religião
carnal é totalmente impotente para fazer a ponte entre o Deus santo e o
pecador rebelde. Paulo deu ênfase a este fato físico e histórico, porque
combatia a heresia gnóstica que afirmava a imundície do mundo material,
contrastado com o espírito etéreo e imaculado. Por ser Deus o criador de
-49-
o MUNDO, A CAJRNE E O DIABO

tudo, incluindo a carne material, identificar a carne com o mal seria culpar
o Criador pela oposição que existe entre a realidade física e a espiritual.

A Cam ee o RelacionamentoJnterpessoal
Uma outra acepção da palavra “carne” identifica a descendência
humana. Jesus descendia de Davi “segundo a carne” (Rm 1.3). A carne
forma uma ligação entre os membros de uma mesma família, de modo que
Jesus, “segundo a carne” (Rm 9.5), faz parte dos descendentes de Abraão,
que goza a fama de ser o pai da raça judia, “segundo a carne” (Rm 4.1).
A palavra “carne” transmite, nesses contextos, o sentido de ser a matriz
que assegura o fato de que todo filho compartilha a vida comum com seus
progenitores. Pertencendo a uma só carne, um parente não pode deixar
de receber as caracaterísticas legadas pelos antepassados {cf. Is 40.6; 1 Pe
1.24s.).
O casamento, instituído por Deus na criação do homem e da mulher,
também cria a “carne” do estreito relacionamento familiar. O fato de Eva
ter sido criada da costela de Adão forneceu o fundamento para a
declaração: “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne...
Por isso deixa o homem pai e mãe, e se une a sua mulher, tornando-se os
dois uma só carne” (Gn 2.23s.). Quando um homem e uma mulher
decidem unir-se para formar uma só carne, é muito mais do que o
elemento físico que está em jogo. Jesus disse: “O que Deus ajuntou não o
separe o homem” (Mc 10.9), dando-nos assim a base para entender que a
formação de uma só carne no casamento é consequência da ação soberana
de Deus.
Igualmente séria deveria ser a observação feita por Paulo de que o
corpo do cristão é membro do Corpo de Cristo (1 Co 6.15). Daí, se quem
está ligado a Cristo, física e espiritualmente, une-se a uma prostituta,
torna-se uma só carne com ela. Cria-se um corpo pela união da carne (v.
16). Em Efésios, o apóstolo ensina que a preocupação natural que o ser
humano tem com sua carne, alimentando-a e cuidando dela, é uma figura
acurada da maneira como Jesus Cristo nutre os membros do Seu Corpo e
zela por eles (5.29).

-50-
A CARNE

Concluímos que a “carne”, usada neste contexto de relacionamento


estreito, decisivo e permanente, toca no mistério da personalidade e da
comunhão Qcoiríõnia). As partes materiais (os corpos) se relacionam para
criar o vital e o pessoal de maneira semelhante à união entre a pessoa e o
corpo que expressa e abriga o seu espírito. “Qual dos homens sabe as
coisas do homem senão o seu próprio espírito que nele está?” (1 Co 2.11).
O suicídio e o divórcio partilham a mesma realidade. Repudiar a esposa
ou o marido seria destruir uma realidade físico-espiritual que vai contra a
boa criação de Deus.
Por outro lado, Deus não permite qualquer relacionamento que não
seja mediado pela carne. Contato com pessoas fora da carne, consulta aos
mortos, comunicação extra-sensorial (isto é, fora da carne), são práticas
condenadas solenemente nas Escrituras.^ Dependemos da existência
física para manter a coesão familiar e a comunhão da igreja. O mistério
do Corpo de Cristo e a ligação que cada cristão tem com o Senhor por
intermédio do Espírito Santo que batiza (1 Co 12.13) formam uma
comunidade. Não pode existir união apenas em espírito (entre espíritos).
É necessário que a presença corporal — ver, falar, ouvir, tocar e comer —
concretize o mistério da unidade que Jesus Cristo oferece à Sua Igreja. No
sentido prático, os irmãos que negligenciam as reuniões dos membros da
igreja desobedecem à ordem da Bíblia (Hb 10.25). O Senhor exaltado
promete estar no meio dos que se reúnem em Seu nome (Mt 18.20), mas
certamente de maneira diferente daquela pela qual Ele se comunica com
todos os filhos de Deus ao redor do mundo (Mt 28.20). Lucas relata que
os judeus cristãos de Jerusalém “diariamente perseveravam unânimes no
templo, partiam pão de casa em casa” (At 2.46), o que ressalta a
importância da união dos corpos físicos da igreja visível nos cultos. Por
isso, enquanto vivemos na terra, a igreja visível é mais importante do que
a invisível.

1. L v 20.6-8; Dt 18.10-12; 2 Rs 21.6,11-13; Ez 13.6s.; M l 3.5; At 13.9,11; Ap 9.21; 18.2,23;


21.8; 22.15.

-51-
As Marcas da Carne

Introdução
Passamos agora a considerar a carne no sentido de natureza humana
pecaminosa. Paulo é o autor bíblico que apresenta freqüentemente esta
acepção. Especialmente em Romanos e Gálatas, o apóstolo que defendeu
a justificação pela fé discorre sobre as implicações que nossa salvação tem
para a vida prática. A santificação é mais do que uma declaração divina
da posição que Deus oferece graciosamente a todo aquele que crê. É um
alvo que deve ser conquistado pela luta contra a “carne”. Não é fácil andar
em direção à maturidade e perfeição, porque nossa natureza adâmica
continua ocupando todo o espaço que o Espírito de Deus não domina.
Somos novas criaturas em Cristo (2 Co 5.17; Cl 2.10), mas também velhos
portadores do vírus do pecado, sujeitos a tentações e quedas (G1 6.1; Mt
|13.15ss;Hb 4.15; 12.1).
Neste capítulo, desejamos esclarecer quais são as marcas e sinais da
carne. Se reconhecermos as características e estratégias do inimigo dentro
de nós, seremos menos vulneráveis na batalha diária contra o inimigo
íntimo.

A Natureza da Carne
Nossa natureza caída, pecaminosa, caracteriza-se pela sutileza e
hipocrisia. Todos temos uma tremenda dificuldade de enxergar nossa
carnalidade. Vivemos atrás da máscara que nos esconde de nós mesmos.
Impedimos que o espelho de Deus nos revele o que somos {cf. Tg 1.23s).
1)A auto-justificação revela nossa natureza de modo inegável. Nós
cobrimos o mau cheiro dos pecados com o desodorante das desculpas.
Defendemos nossas ações, sempre colocando em alto relevo as boas
- 52 -
AS MARCAS DA CARNE

intenções. Casuisticaraente, queixamo-nos de que poucos ou mesmo


ninguém nos entendem precisamente porque nossos colegas e familiares
não se mostram convencidos pelas nossas tentativas de fugir da culpa
através de palavras ou ações.
Um corpo belo e esbelto pode ocultar um caráter feio e repulsivo;
assim também, salientamos nossas boas qualidades para evitar a penosa
e necessária cirurgia do arrependimento real. Admitir o pecado, confessar
essa maldade e implorar perdão são passos imprescindíveis para renunciar
à carnalidade e andar em direção à espiritualidade.
A tendência de sempre avaliar positivamente as próprias ações e
exaltar nossa pessoa como digna de louvor e tratar os outros como se
fossem merecedores de críticas e censuras revela a carne em seu estado
natural.
2) Prazer nas F a lh a s^s Irmãos. Um sinal da “carne” é também
aquele gosto perverso de receber notícias das falhas e pecados dos irmãos.
Quedas sensacionais agradam particularmente à “carne”. Será que os
tropeços dos colegas cristãos nos agradam porque sutilmente achamos que
nossa luz brilha mais forte quando os luzeiros ao nosso redor se apagam?
A inveja, tão mal identificada num distante rincão do íntimo, orgulha-se
em saber que, afinal, nós éramos melhores do que eles. Esta característica
da “carne” aproxima o significado da figura do fermento contra o qual o
Mestre solenemente advertiu os seus discípulos (Mt 16.6; Mc 8.15; Lc
12. 1).
O fermento dos fariseus se faz presente nesses mal formados
pensamentos que aparecem e desaparecem na mente. O fariseu podia
sentir um prazer genuíno em notar a distância que o separava do publicano
pecador (Lc IS.lls.). Podia até dar graças a Deus pela sua piedade
conseguida pelo mais rigoroso cumprimento da lei de Deus. Pelos pobres,
o povo mal instruído da terra, os fariseus tinham só desprezo (Jo 7.49).
Esta marca da natureza adâmica revela que a inveja e o orgulho são
irmãos gêmeos. Habitam na mesma galeria escura do fundo do nosso
coração. E somente pela presença da luz do Espírito, que penetra e
convence nas profundezas (Jo 16.8,9), que podemos ter alguma esperança

-53-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

de vencer este laço de iniquidade.


3) Independência, Individualismo e Presunção. M ais uma
característica da “carne” levanta sua cabeça na auto-avaliação. A
independência e o individualismo, tão naturais e necessários ao
desenvolvimento da criança na fé, podem conduzir ao caos quando os
sucessos na vida cristã criam o sentimento de maturidade e firmeza.
Somente o placar do inferno anunciará os gols que Satanás marcou contra
o time de Deus, unicamente porque os que “corriam bem” (G1 5.7)
concluíram que o poder para vencer nunca lhes abandonaria (c/ Jz 16.20).
A patética desgraça de Sansão, que imaginou poder vencer os seus
inimigos filisteus como de costume, quando não tinha mais força do que
um homem comum, deve ser um aviso para todo filho de Deus. Se
almejamos os dons para servir o corpo de Cristo, é preciso não pensar de
nós mesmos além do que convém (Rm 12.3).
Pedro, cheio de si pela segurança granjeada durante os anos vividos
junto ao poderoso Senhor, confiantemente contradisse a profecia sobre
sua futura negação a Jesus. “Nunca serás tropeço para mim”, declara o
discípulo leal. “Ainda que me seja necessário morrer contigo, de modo
nenhum te negarei” (Mt 26.33,35). A carne fala alto e forte, inas, na hora
da provação, cai como um monte de tijolos num terremoto.
Freqüentemente olhamos para nosso crescimento na fé, para medir
nossa temperatura espiritual e testar nosso músculo de devoção, batendo
0 pé com determinação e achando que firmeza de convicção equivale a
segurança. Mas essa segurança se firma na carne.
“A vida é magnífica, basta não enfraquecer”, reza um ditado
sugestivo. “A vida melhora apenas quando você enfraquece” é algo que
aponta p a ra a realidade mais próxim a à verdade segundo a
Palavra.“Somente almas conscientes da própria fraqueza encostam no
Senhor com peso suficiente para conseguir ficar firmemente em pé e andar
em linha reta pelo poder da Sua ressurreição.”^

1. J. I. Packer, “The Way of the Weak is the Only Healthy Way” (“O Caminho do Fraco é
o Único Caminho Saudável”), tm Eternity, novembro de 1987, p. 28.

-54-
A S MARCAS DA CARNE

A carne se envergonha de sua fraqueza, porque idealiza a maturidade


e a independência. A suficiência da graça nos sustentará somente na hora
em que não tivermos outro sustentáculo (Jo 15.4s.; 2 Co 12.9). Por outro
lado, Deus pronuncia uma maldição sobre o insensato que constrói sua
defesa na areia da carne. “Maldito o homem que confia no homem, faz da
carne mortal o seu braço, e aparta o seu coração do Senhor” (Jr 17.5).
“Bendito o homem que confia no Senhor...” (v. 7) indica por que a carne
n^ serve comoulicerce da vida. Tal confiança equivale à desconfiança em
Deus, sem reconhecer que “a loucura de Deus é mais sábia do que os
homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1 Co 1.25).
Entende-se, então, por que a carnalidade é encarada como criancice
por Paulo: “Irmãos, não pude vos falar como a espirituais; e sim, como a
carnais, como a crianças em Cristo” (1 Co 3.1).^ A experiência da criança
se limita à estreita visão das possibilidades por ela alcançada. Para ela, o
universo todo se reduz ao mundo e às dimensões da sua experiência. As
divisões que racharam a igreja de Corinto em adeptos de Paulo, Apoio,
Pedro e Cristo baseavam-se na mesma premissa dos cegos que tentavam
descrever o elefante que examinavam pela primeira vez. Para o primeiro,
que abraçava uma pata do animal, era semelhante a uma árvore. O
segundo achou absurda a comparação, já que, agarrado à tromba, era-lhe
óbvio que se tratava de uma espécie de mangueira ou serpente oca. O
terceiro discordou veementemente: “Elefante é mais parecido com uma
parede”, conclusão tirada pela mão encostada no lado do animal. Ainda
com outra opinião, o quarto cego concluiu que seus colegas erravam
grosseiramente já que, segurando a cauda, era inegável que um elefante
seria como uma corda grossa. As “crianças espirituais” de Corinto não
entenderam os ensinamentos dos missionários, considerando-os rivais.
Concluíram que as ênfases e postulados de cada líder excluíam os dos
outros mestres.

1. Cf. E. C. Reisinger, Existe Mesmo Crente Carnal? (São José dos Campos: Fiel).
Recomendamos este livreto por causa de sua perspicácia em abordar o assunto do
ponto de vista bíblico.

- 55-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

Para vencermos a limitíição da carne se torna imperativo termos uma


visão que ultrapasse os horizontes de nossa percepção limitada da
realidade. Essa visão dominava o coração de Paulo. “Por isso não
desanimamos; pelo contrário, mesmo que nosso homem exterior se
corrompa, contudo o nosso homem interior se renova de dia em dia.
Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno
peso da glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas
que se vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem
são eternas” (2 Co 4.16-18).
Paulo referiu-se à existência física com o termo “homem exterior”,
isto é, a carne que não contempla o eterno. Por não alcançar a visão
beatífica, corrompe-se, ao invés de se renovar diariamente. “O que é
nascido da carne, é carne” (Jo 3.6); quer dizer, o material só pode
reproduzir-se de forma natural, não espiritual nem sobrenatural. Sem
dúvida alguma, a “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus” (1
Co 15.50). É o corpo natural que, na ressurreição, dará lugar ao corpo
espiritual, um novo corpo eternamente livre de todas as ameaças e males
que hoje nos assolam. De fato, como afirma o apóstolo, “o corpo é para o
Senhor” (1 Co 6.13), mas a carne caminha impreterivelmente para o
velório e a decomposição no túmulo.
4]A Fuga da Culpa. A fuga da culpa seria o método pelo qual a carne
evita as dores provindas da humilhação. A nossa natureza herdada de
Adão e Eva não vê com bons olhos as suas próprias falhas. A “carne”
detesta o sentimento de culpa, de maneira que carrega a marca inegável
de quem quer se defender e fugir. Nosso pecado nos cobre de culpa como
o mau cheiro de uma jaritataca que borrifa colegas e família com fedor
nojento. Acima de tudo, a carne quer transferir a repreensão que pesa
sobre sua alma aos pais, às circunstâncias ou a outro culpado qualquer.
Lutamos contra a ordem bíblica de confessar nossos pecados (1 Jo
1.9), isto é: admitir nossa culpa, concordando com Deus. A dor que invade
a alma quando se pensa em admitir que pecamos se assemelha à dor de
dente que se espalha da mandíbula infectada para a cabeça toda. Davi
expressou esta realidade assim: “Enquanto calei os meus pecados.

-56-
A S MARCAS DA CARNE

envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia”


(SI 32.3). Mas, ainda que compungidos de coração, hesitamos e
procrastinamos antes de nos entregarmos à misericórdia oferecida aos
penitentes, assim como relutamos antes de abrir a boca para a broca do
dentista.
Não fosse uma característica da carne fugir da culpa como a barata
ao se acender a luz da cozinha, a vida em comunidade e na presença de
Deus seria repleta de paz. “Bem-aventurado o homem a quem o Senhor
não atribui iniqüidade, e em cujo espírito não há dolo” (SI 32.2). O culpado
que provocou algum atrito com um irmão deve evitar participar da íntima
comunhão da ceia até se reconciliar com o lesado (Mt 5.24s.). A paz do
Senhor na refeição santa de Sua família deve serperseguida (Hb 12.14) da
mesma maneira que um jovem persegue o namoro com sua amada. Mas
a dificuldade maior reside na carne que se opõe com determinação à
humilhação necessária para toda confissão real de pecado. A
bem-aventurança da pobreza de espírito (Mt 5.3) está precisamente na
derrota da carne e na admissão da culpa. Um dos ministérios do Espírito
Santo (o Paradêtos) opera neste campo (Gn 6.3; Jo 16.8,9,13). Convém
oferecer-Lhe plena liberdade para convencer-nos do pecado e nos assistir
na humilhação da confissão.^
O avivamento que caiu como chuva serôdia na década de 50 no
centro-leste da África oferece um modelo singelo da validade do
reconhecimento e da confissão de pecado. O quebrantamento iniciou um
movimento quase palpável do Espírito. Mantinha-se a realidade da

1. O renomado pastor Charles Simeon, de Cambridge, entendeu a significância da


humildade em sua luta contra a carne; “Juntamente com a doce esperança de ser aceito
por Deus no fim, tenho gozado de muita alegria perante os homens; mas, ao mesmo
tempo, tenho me esforçado continuamente pma cultivar a humildade mais profunda
diante de Deus. Jamais pensei que o fato de Deus ter m e perdoado era motivo para eu
perdoar a mim mesmo... H á dois alvos que tenho procurado contemplar sempre
durante estes 40 anos; um deles é a minha própria imundície; o outro é a glória de Deus
na face de Jesus Cristo; e penso que ambos devem ser vistos em conjunto... D esta
maneira, eu procuro não apenas ser humilhado e grato, mas humilhado em gratidão
diante de meu D eus e Salvador continuamente” (citado por John R. W. Stott em
Evangelical Preaching, op. cit, p.xxxiv.)

- 57-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

santificação pelo pedido geralmente divulgado entre os líderes e membros


das igrejas: “Se você notar alguma mancha ou falha em mim, por favor,
me fale. Quero confessá-la antes que se esconda ou me acostume a
conviver com ela!” Esta maneira de combater a carne certamente se
encontra entre as mais eficientes.
5) Rebelião Contra Deus. A inimizade contra Deus cria o desgost
humano por cultos, oração e comunhão prolongada na presença do
Senhor. Paulo escreve que “o pendor da carne é inimizade contra Deus,
pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar” (Rm 8.7).
Pedro informa que as paixões da carne fazem guerra contra a alma (1 Pe
2.11). A causa principal da luta que a natureza caída trava contra Deus
parece ser a independência. Representa a rebelião inerente no coração
humano contra a boa e santa vontade de Deus expressa em Sua lei (Rm
7.21-23). Enquanto o Espírito se inclina para Deus e Sua perfeita vontade,
a carne sempre puxa para seu lado pecaminoso. Por isso, o Espírito e a
carne são “opostos entre si” (G15.17).
Mesmo sendo súditos no reino de Deus, existem em nós focos de
rebelião. Sem assistência divina, somos incapazes de amar e desejar o
supremo bem (G1 5.17). Uma vez regenerados pela graça de Deus, o
conflito entre o Espírito e a carne se trava em nós mesmos. Nosso primeiro
amor e dedicação a Deus no culto genuíno, espiritual (Rm 12.1), não
podem ser divididos em compartimentos. Queremos manter duas
posturas incompatíveis ao mesmo tempo. Concordamos que a lei é
espiritual, percebemos a operação divina que a escreve nos corações dos
filhos de Deus (Rm 7.14; Hb 10.16; Jr 31.33). Ao mesmo tempo,
reconhecemos com Paulo que “somos carnais, vendidos à escravidão do
pecado” (Rm 7.14). Não deixamos de querer andar cada um no nosso
próprio caminho (Is 53.6), mesmo que seja oposto às diretrizes de Deus.
As paixões da carne têm um impulso pecaminoso que o apóstolo pode
descrever como uma lei que escraviza (Rm 7.20). Mesmo sendo libertados
da autoridade (exousia) das trevas e transportados para o reino do Filho
do seu amor (Cl 1.13), não escapamos da lei nos nossos membros, que
guerreia contra a lei de Deus. Se não tomamos providências, tornamo-nos

-58-
A S MARCAS DA CARNE

novaraente prisioneiros “da lei do pecado” (Rra 7.23).


A carne continua infectada pelo pecado, mesmo após a participação
na nova vida. Essa impossibilidade de escapar do campo da batalha
espiritual se explica pelo fato de que vivemos na carne (sem com isso “estar
na carne”, Rm 8.9) e no Espírito ao mesmo tempo. Para vencer o pecado
que se aproveita dos desejos da carne, precisamos nos considerar mortos
para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus (Rm 6.11).
Evidentemente, há escolhas que não permitem que o pecado “reine”
na carne (v. 12). Em vez de oferecer os membros (olhos, braços, pés,
ouvidos, cérebro, etc.) ao pecado, o caminho da vitória segue pela
consciente determinação de sacrificar cada membro do corpo (o veículo
da nossa existência no mundo), como instrumento para servir a Deus (Rm
6.13). Não é suficiente entregar-se ao Senhor uma vez (Rm 12.1), mas,
sim, reconhecer continuamente que Jesus Cristo deve ser mestre de toda
a vida, recebendo a glória de cada pensamento (Fp 4.8) e cada ação (Q
3.17). O crescimento para a maturidade (perfeição: grego teleion)
depende da mortificação do pecado na carne (Cl 3.5) e a vida
decisivamente vivida para Deus. Não lutar com o auxílio de Deus contra
nossa carne significa render-se ao inimigo e desistir da luta.
Ananias e Safira morreram, porque renderam-se à sugestão da
“carne”, no sentido de dar uma parte do valor da propriedade vendida
como se fosse integral. Acharam que guardar o resto para beneficio
próprio seria um galardão extra (At 5.1-10). Todavia, o Espírito de Deus
rejeitou a barganha. A tragédia do súbito falecimento do casal confirmou
a afirmação de Jesus: é impossível ser escravo de dois senhores. A devoção
ao deus Mamom (riquezas) inevitavelmente suscita a inimizade contra o
Senhor Deus (Mt 6.24).
6) Podridão, Decomposição e Corrupção. A carne, material orgânic
de toda criatura, está sujeita à corrupção (1 Co 15.53). Os corpos humanos
necessitam da maravilhosa cooperação vital de todos os sistemas —
digestivo, circulatório, respiratório, nervoso e imunológico — para evitar
a transformação das células vivas em carne corrupta, repugnante. Apenas
quatro dias após a morte de Lázaro, Marta queria impedir que o túmulo

-59-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

fosse aberto: “Já cheira mal” (Jo 11.39). Isso fornece provas incontestáveis
de que “carne e sangue” não perduram nem podem “herdar o reino de
Deus” (1 Co 15.50; At 2.27).
Paralelamente, a “carne” no sentido moral também apodrece,
tomando o coração uma espécie de fossa negra de onde emanam idéias,
atitudes, palavras e ações perversas. A preocupação dos judeus nos
tempos de Jesus concentrava-se na eliminação de todo contato com
animais impuros, cadáveres e gentios. Antes de tomar alguma refeição,
voltando das andanças pelas ruas e praças, solenemente lavavam qualquer
parte do corpo que poderia ter sido profanada pelo contato com pessoas
e artigos contaminados.
Jesus removeu todos aqueles temores tradicionais (Mc 7.1-19), para
frisar um perigo infinitamente maior. Disse o Senhor: “... o que de fora
entra no homem não o pode contaminar... O que sai do homem, isso é o
que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é que
procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os
adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia,
a soberba, a loucura” (Mc 7.18-22).
Não é preciso ser dono de uma inteligência extraordinária para
concluir que existe, nas profundezas do ser humano, uma perversidade tão
característica como é da natureza do gato perseguir o rato ou do galo
cantar de m adrugada. Essa corrupção cancerosa se propaga,
contaminando os relacionamentos com o próximo (inveja, homicídio,
furtos, adultério, dolo) e com Deus (soberba, am or próprio,
independência, idolatria, etc.).

As Obras da Carne
A lista paulina das “obras da carne” (G15.19-21) mostra, juntamente
com a lista citada por Jesus (Mc 7.21s. e Mt 15.19), a repugnância que tais
“obras” provocam em Deus e nos homens. Examinemos mais de perto
essas manifestações da carne.
aj A prostituição (pomeia) e o adultério (moicheià) substituem o
amor pelo egoísmo. O corpo se vende como objeto, em vez de formar, no

60-
A S MARCAS DA CARNE

casamento, uma unidade tão perfeita que Deus a chama “uma só carne”
(Gn 2.24; Mt 19.5; Ef 5.31). A paixão sexual, ilicitamente satisfeita, cria
vergonha e antipatia, inveja e ciúmes. Quem consegue viver em uma
sociedade como a dos “Meninos de Deus”? Para eles, a graça eliminou o
pecado e a culpa; consequentemente, tomar o amante de outrem é natural
e perfeitamente aceitável. Sentir ciúmes do marido ou da mulher não é
bem visto. Não é de admirar a confusão que reina nas mentes e
consciências dos membros de tal seita quando tentam sair dessa perversão.
Na época do Novo Testamento, pelo fato de a prostituição estar
•j
vinculada à religião, a justificativa dos pagãos para a prática aberta da
imoralidade era convincente (veja 1 Co 6.12-20). O fato de que “o corpo
não é para impureza, mas para o Senhor” (1 Co 6.13) aponta para as
conseqüências desse pecado. A prostituição forma um corpo, juntando
espiritualmente os que a praticam. Tomar um membro de Cristo e torná-lo
membro de meretriz (1 Co 6.15s.) seria tornar lícito o que é impossível, a
saber, a união de Jesus com uma meretriz.
O adultério despedaça casamentos e famílias como uma fera
selvagem que dilacera um cordeiro. Davi cometeu adultério com
Bate-Seba e maquinou a morte do marido dela, Urias (2 Sm 11). A
maldição que atingiu a família de Davi provocou o incesto de Amnom, a
desgraça de Tamar, o assassínio praticado por Absalão e ainda sua
rebelião contra Davi, que culminou com sua morte e o desespero de seu
pai (2 Sm 18.33; 19.4). A miséria, não prevista quando se cede à carne,
paulatinamente envenena a família. Sofrimentos incalculáveis são o preço
da sua satisfação momentânea.
b) Iinpureza e lascívia {akcüharsia, aselgeia, G15.19; Mc 7.22), paixão
lasciva e desejo maligno (pathos, epithwnian kakên, Cl 3.5) aumentam a
lista de “obras” corruptas da carne. Não é certo pensar que os pecados
sexuais se limitam a atos. A “carne” mostra sua natureza ruim também nos

1. Para conhecer a extensão da perversão sexual no mundo pagão do Novo Ihsteunento,


leia 'Mlliam Barclay, A s Obras da Carne e o Fruto do Espírito (São Paulo: Vida Nova),
1988^p. 27-29.

-61-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

pensamentos e desejos. Nosso Senhor ensinou: “Qualquer que olhar para


uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela” (Mt
5.28).
Deus condena as delícias sexuais ilícitas, mesmo limitadas à mente,
com o mesmo rigor com que condena o pecado praticado. A lei de Deus
não governa apenas as ações, mas também as imaginações que provocam
a ira de Deus (Gn 6.3, 5: “era continuamente mau todo desígnio do seu
coração”). Andar “segundo as inclinações da nossa carne” e fazer a
vontade dos pensamentos Çdianoiõn, Ef 2.2s.), certamente indica a estreita
relação entre a mente e o ato, mas ainda não explica a reação de Deus
contra a mente carnal. Evidentemente, a “carne” pensa em seu próprio
prazer (por exemplo, saboreando fotografias ou filmes pornográficos), em
vez de reconhecer que a mente é o mais precioso instrumento^ que
podemos utilizar para orar, louvar e amar a Deus (Mt 22.37, onde Ele
manda amar a Deus de todo o coração [mente] e de todo o entendimento
[dianoia, pensamento e imaginação]). A corrupção da mente profana o
santo dos santos da personalidade humana, criada por Deus em Sua
semelhança para comunhão, e torna o lugar mais sagrado em fossa negra;
isso explica em parte a Sua repugnância frente à impureza de pensamento.
Há mais de trezentos anos, um homem de Deus chamado John Owen
escreveu sobre como se deve buscar a libertação da corrupção da carne.
“Traga seu desejo maligno (concupiscência) ao evangelho, não para
receber alívio, mas para ter mais convicção de sua culpa; olhe bem para
Aquele que você traspassou e sinta sua amargura. Fale para sua alma: ‘Que
eu fiz? Que amor, que misericórdia, que graça tenho desprezado e calcado
debaixo dos meus pés? É este o pagamento ao Pai pelo Seu amor, ao Filho
pelo Seu sangue e ao Espírito Santo pela Sua graça? É assim que me
responsabilizo perante o Senhor? Será que sujei o coração que Cristo

1. D isse Pascal, possivelmente o maior matemático do século XVII e inventor da


calculadora: “É muito claro que Deus fez o homem para pensar. Em todas as outras
habilidades que e le tem, ele perde para os animais, que correm mais velozmente,
carregam mais peso...”

- (52-
A S MARCAS DA CARNE

morreu para lavar e que o bendito Espírito escolheu para habitar?... Como
posso levantar a minha cabeça com alguma ousadia diante dEle? Será que
considero a comunhão com Ele como de tão pouco valor que, por causa
deste vil desejo, quase não tenho espaço em meu coração para Ele
habitar?’ ”
c) Idolatria e feitiçarias_(Gl 5.20) também fazem parte da lista d
“obras carnais”. De capa a capa, a Bíblia nos confronta com a aversão de
Deus aos ídolos e à magia negra, tão estreitamente interligados ao
paganismo. A natureza caída dos homens se inclina para a mudança “da
glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem
corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Rm 1.23). A
“carne” não se contenta com o Deus real, onipresente, infinito e invisível.
Prefere, e muito, um deus palpável, criado por mãos humanas, suscetível
aos valores e qualidades a ele atribuídos (Is 40.19s.).
Além do fator que o ser humano pode controlar, há o elemento
demoníaco que desafia frontalmente a Deus. Ainda que o ídolo não passe
de uma simples criação (sua realidade não vai além da material, 1 Co
10.19), o culto idólatra invoca os demônios e cria um vínculo de comunhão
entre o adorador e esses anjos que se rebelaram contra Deus (1 Co 10.20;
2Pe2.4).
Já vimos a atitude de Deus quanto à perversão sexual. Idolatria e
espiritismo são condenados de modo veemente por causa da prostituição
espiritual. O profeta Oséias descreve, em sua experiência humana, os
sentimentos de Deus ao enfrentar a traição do Seu povo.“0 flamejante
evangelista conhece o seu povo. Sabe o que é soluçar no coração quando
sua esposa infiel se afunda cada vez mais no pecado. Ele conhece as
profundezas do amor e da disposição de um coração amante capaz de
perdoar...”^ O adultério traidor é o pecado que quebra o coração de Deus.
O apóstolo afirma que avareza é idolatria (Cl 3.5). No mundo
moderno, secularizado, a idolatria, no sentido em que ela é praticada na
índia. Indonésia, Tailândia e muitos outros cantos da terra, perde sua

1. Bíblia Vida Nova, tópico n° 4244, parte final, p. 305.

-63-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

influência. Na América Latina e na parte da Europa onde não houve a


Reforma, a veneração oferecida às imagens de Maria, aos santos e aos
crucifixos paulatinamente perde sua força. Nem por isso devemos exultar,
pensando que a idolatria esteja cedendo, diante do avanço da civilização
moderna do Ocidente. O capitalismo mantém a avareza como a mola
mestra que motiva o esforço investido na produção. O comunismo exalta
seus líderes e o próprio Estado como deuses substitutos. A idolatria não
desaparece; transforma-se em imagens mais condizentes com a
mentalidade científica do mundo ocidental.
d) Inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facçõe
invejas (G1 5.20s.). Esta lista mais extensa das “obras da carne” expõe o
cerne da rebelião iníqua da natureza caída do homem. Essas “obras” têm
um fio que as une, uma particularidade em comum que reflete o caráter
que subjaz nossa existência comunitária. Não seria mais certo chamá-la de
“anti-amor”? Nós, homens, formamos atitudes destrutivas, agressivas, que
ferem como espinhos. No frio insuportável do inverno siberiano, os
porcos-espinhos se ajuntam para se protegerem contra o frio horrível.
Logo em seguida, afastam-se por causa dos espinhos que provocam dores,
como alfinetes penetrando na pele. Daí, o frio os força a se ajuntarem de
novo. O vai-e-vem ilustra a dramática dificuldade que a carne cria para a
vida em comunidade. Criamos ressentimentos ao culpar colegas que
deixaram de pos tratar com a devida honra. Sofremos alguma injustiça real
ou apenas suposta e isso logo suscita o desejo de vingança. Na famosa frase
de Jean Paul Sartre, “o inferno são os outros”.
A inveja motivou a incansável manobra política dos escribas, fariseus
e sacerdotes da cúpula do poder de Jerusalém para matar o Filho de Deus.
Não fosse a “carne”, seria impossível explicar a crucificação do inocente
Cordeiro de Deus; odiaram-nO sem causa (Jo 15.25). Não houve motivo
externo e objetivo. Jesus invadiu o terreno religioso que separaram para
si, ameaçando-lhes o direito de serem os únicos guias espirituais. Cristo os
chamou de hipócritas; preocupavam-se com a limpeza exterior de copos
e pratos, sem notar que, por dentro, estavam cheios de rapina e
intemperança (Mt 23.25).

-64-
AS MARCAS DA CARNE

Uma marca inegável da “carne” é sua soberba possessiva. Defende


seu terreno, seu partido, suas idéias. Quem não acata esse direito torna-se
inimigo. Mansidão e benignidade são as qualidades que caracterizavam
Jesus (2 Co 10.1), mas a carne deseja acertar as contas, busca a vingança.
Jesus ensinou que perdoar todas as ofensas é uma obrigação do cristão
(Mt 18.21s.). A carne cobra até o último centavo. Jesus exaltou os
pacificadores como bem-aventurados (Mt 5.9); a carne alcança satisfação
vencendo a causa, esmagando a oposição. Não é este o aspecto da carne
que os torcedores de futebol incentivam, até chegar a uma explosão de
“amor” pelo time predileto e ódio pelo rival? Os torcedores do time de
Liverpool, Inglaterra, são famosos pela agressividade que matou dezenas
de espectadores inocentes em uma partida na Bélgica, há poucos anos.
Quantas igrejas deixam transparecer cicatrizes das feridas recebidas
nas batalhas eclesiásticas. Pastores contra diáconos, irmãos contra irmãos,
panelinhas formadas para proteger as sensibilidades das pessoas que as
criaram, é o quadro que freqüentemente se apresenta. Paulo advertiu as
comunidades da Galácia: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos
outros, vede que não sejais mutuamente destruídos” (G1 5.15). A
carnalidade se assemelha a lobos que se despedaçam.
Pode ser que o caro leitor seja genuinamente humilde, mais inclinado
a um complexo de inferioridade do que ao de superioridade. Mesmo
assim, opinar sobre um líder ou dar preferência a um pastor e desprezar
outro, de maneira que um líder seja desacreditado e outro exaltado, não
honra ao Senhor de todos. Em Corinto, por volta do ano 53, ouviam-se as
frases: “eu sou de Paulo” e “eu de Apolo”(l Co 3.4). Esse favoritismo, de
aparência tão inocente, provocou a advertência apostólica: “... não é assim
que sois carnais e andais segundo o homem?” (1 Co 3.2s.).
A politicagem, a rivalidade, as intrigas e a traição encorajam a
formação de facções e partidarismo. A ambição de Diótrefes, que gostava
de “exercer a primazia” entre os irmãos (3 Jo 9), fazia com que ele se
recusasse a acolher o próprio apóstolo do amor. Para sua eterna vergonha,
Diótrefes prestigiou a carne e prejudicou a igreja toda, formando
partidários que se opuseram ao “discípulo amado”. O contraste entre o

-65-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

quadro de 3 João e Atos 2.42-27 mostra o tamanho do vão que separa o


inferno do céu. A unanimidade dos irmãos no templo e a alegria nas
refeições de casa em casa exaltavam a Deus e atraíam todo o povo. A
prática do novo mandamento (Jo 13.34), que resultou do enchimento do
Espírito Santo, criou o ambiente predito por Jesus: “Nisto conhecerão
todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (v. 35).
Quem se mantém atento para a carne e os estragos que ela causa nos
relacionamentos não permite que a inimizade (ech th ra , “hostilidade”, cf.
Ef 2.14) e a ira (th u m o s ) passem despercebidas. Sem contar a crucificação
de Cristo, o pecado particular que ganha notoriedade bíblica acima dos
outros é 0 assassínio de Abe].^“Nâo matarás”, manda o Senhor no sexto
dos Dez Mandamentos, e certamente sentimos tranqüilidade perante o
“espelho” da Palavra, até descobrirmos que “todo aquele que odeia a seu
irmão é assassino” (1 Jo 3.15). Jesus ensinou no Seu grande sermão que
zangar-se com alguém e lançar insultos contra o próximo é tão sério
quanto o homicídio (Mt 5.21-26). O pastor John Stott nos relembra: “Toda
perda de humor, toda explosão de paixão descontrolada, todo impulso de
raiva violenta, todo ressentimento amargo e sede de vingança: todas essas
coisas são homicídio”. “Podemos matar através de diz-que-diz-que
malicioso... podemos matar por desprezo e ciúme.” Seria possível
imaginar o desespero infernal da senhora idosa que procurou um pastor,
amigo nosso, no Rio de Janeiro, implorando que orasse por ela? “Ore por
mim! Ore por mim, pastor!” implorava, porque o neto havia matado sua
mãe, filha da senhora que agora buscava algum alívio para a alma
angustiada. Não é assim que tratamos nosso Pai celestial quando
assassinamos os irmãos com balas de atitudes iradas e facadas verbais?
Ferimos o Pai por intermédio de Seus filhos amados.
Mas a camalidade ultrapassa as paredes da igreja local. Algumas
denominações evangélicas, dentro e fora do Brasil, pensam que são os

1. William Barclay, Oftroí, p. 48.


2. Stott, Cristianismo Básico (São Paulo: Vida Nova), 1988^, p. 77.
3. Ibid.

-66-
AS MARCAS DA CARNE

Únicos cristãos verdadeiros. Quem não apóia integralmente sua doutrina,


usos e costumes é como parceiro de Satanás. Em vez de se estruturar em
torno da coluna da verdadeira “fé que uma vez por todas foi entregue aos
santos” (Jd 3), eles se mantêm coesos unicamente pela luta agressiva
contra os evangélicos que não aderem a seu partido.
Deliberadamente, desconhecem a fraternidade ampla dos filhos de
Deus, salvos todos por Sua graça irrestrita. Para não serem condenados
pela desobediência às ordens bíblicas: “Segui (gr. diõkete, ‘persegui’) a paz
com todos” (Hb 12.14), “esforçando-vos diligentemente por preservar a
unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef 4.3), fazem questão de excluir
da “nossa comum salvação” (Jd 3) todos os cristãos que não pertencem
ao seu partido eclesiástico.
Jesus Cristo denunciou tal exclusivismo. Na ocasião em que os
discípulos queriam condenar os que expulsavam demônios em nome de
Jesus, sem serem seguidores do Mestre (Mc 9.38), Ele revelou Sua
oposição eterna à tentativa embrionária de tornar a igreja de Cristo uma
fortaleza de muros altos, erguidos por uns poucos seguidores para impedir
que alguém escape, como também para demarcar os de fora como
inimigos rivais. Disse Jesus: “Pois quem não é contra nós, é por nós” (Mc
9.40).
Paulo também condenou a transformação da Igreja em grupo
ideológico e político. Não temia ser julgado pelos coríntios (1 Co 4.3), já
que o direito de julgar os irmãos pertence exclusivamente ao Senhor (v.
5). O apóstolo aplicava essa visão do tribunal de Cristo aos coríntios: “...
para que por nosso exemplo aprendais isto: Não ultrapasseis o que está
escrito; a fim de que ninguém se ensoberbeça a favor de um em detrimento
de outro” (1 Co 4.6). A força do argumento é inegável. “Pois quem é que
te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido, e se o recebeste,
porque te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (v. 7).
Surge espontaneamente da natureza adâmica o querer forçar todos
a se conformarem ao mesmo molde, para não serem tachados de hereges.
A “carne” superestima a independência, mas sente náuseas no ambiente
onde há a liberdade do Espírito (2 Co 3.17; G1 5.1, 13). A fraternidade

- 67-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

institucional e denominacional pode ser grandemente abençoada por


Deus, se nos associarmos com colegas de igual fé e prática para buscarmos,
com a orientação de Deus, os objetivos do reino. Mas a Palavra nos adverte
contra atitudes que racham o Corpo e dividem a comunhão. “Tendo
purificado as vossas almas pela vossa obediência à verdade, tendo em vista
o amor fraternal não fingido, amai-vos de coração uns aos outros
ardentemente” (1 Pe 1.22). O alcance da frase “uns aos outros” não se
restringe aos que pensam como eu penso nem aos que endossam os
mesmos costumes e liturgia que eu endosso. Os verdadeiros limites da
obrigação de amar ardentemente são revelados nas palavras “obediência
à verdade” e “fostes regenerados”, do versículo 23.
e) Bebedices e glutonarias. Em Gálatas 5, a lista das “obras” termin
com os pecados que libertam os apetites para bebidas e comidas.
“Bebedices” pinta um quadro de bebedeiras e orgias nas quais se busca
divertimento e esquecimento por intermédio de álcool e drogas. A carne
tem a mania de fugir da responsabilidade. Paulo condena a embriaguez
por causa da “dissolução” (asõtia, Ef 5.18). Vergonhosamente, o
alcoolismo conduz o corpo aos estragos físicos da mesma forma que os
entorpecentes e o fumo. Pelo uso indevido dos narcóticos comete-se
suicídio de modo paulatino e seguro.
Mas a mente é prejudicada ainda mais. O poder do álcool estimula
a pessoa a crer que suas palavras transmitem grandes verdades, em vez de
palavras torpes (Ef 4.29). Quem bebe precisa cuidar para que não se
transforme em animal. Os primeiros goles transformam a pessoa em
macaco: muita fala e pouco sentido. Bebe mais e vira um leão, disposto a
despedaçar qualquer um que lhe venha contrariar. Continua bebendo e
torna-se um porco, jogado na lama da sarjeta. Quantos são os lares
desmantelados pela bebida! Que quantias astronômicas, investidas em
cachaça, deixam de aliviar a fome dos filhos abandonados à miséria. E ao
embriagado ainda não falta coragem de voltar para casa e espancar a
esposa e os filhos aterrorizados.
A “carne” tende para a destruição e não se preocupa em levar junto
os entes queridos. Os Alcoólatras Anônimos (AA) reconhecem a

- 68-
AS MARCAS DA CARNE

necessidade do auxílio da família, juntamente com o de outros derrotados


que se recuperam das algemas da bebida forte. Mas o poder de Deus é
ainda mais valioso na luta contra a força escravizadora da bebida. A
propósito, foi a esposa de um ex-beberrão que comentou a respeito do
primeiro milagre de Jesus em Caná da Galiléia: “Do poder do Senhor para
transformar a água em vinho não posso dizer muito. O que posso testificar
é sobre Seu poder para transformar vinho em mobília e alimentos. Ele fez
isso: livrou meu marido da vida desgarrada dos bares e da saijeta e o
tornou marido e pai responsável, trabalhador atencioso”.
A glutonaria não preocupa os crentes do século XX. Em tempos
passados, comer sem precisar, apenas pelo prazer de comer, era encarado
como pecado, “obra” da carne como todos os outros. Paulo chamou os
“glutões” de inimigos da cruz de Cristo, caminhando para a perdição,
porque adoram o deus do ventre (Fp 3.18s.). A glutonaria se encontra no
fim da lista das operações da carne (G1 5.21), não tanto por causa da
indisciplina, da falta de cuidado com o corpo, uma vez que o glutão cava
seu túmulo com os dentes, mas porque substitui a adoração.
O homem na parábola do rico e Lázaro foi designado para as chamas
do inferno não por ser corrupto ou criminoso. Aliás, na narrativa, Abraão
o faz recordar-se do seu passado, apenas dizendo: “... recebeste os teus
bens em tua vida” (Lc 16.25). Concluímos que foi condenado porque não
fez nada e se banqueteava “esplendidamente” (v. 19). Norteou sua vida
pelos prazeres de comer, beber e se vestir, mas nenhum valor dava a Deus
e Sua causa (até a morte). Comportou-se de acordo com os ditames da
carne, sem se preocupar com o eterno.

Conclusão
Paulo alistou várias características da carne para identificar a origem
e o desvio da natureza humana agindo como instrumento do pecado. Em
resumo, a carne transforma a sexualidade criada por Deus em perversão

-69-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

vergonhosa, burla o amor santo do casamento e valoriza os mais baixos


instintos animais (Rm 1.26s.).^
A carne, sendo egoísta e arrogante, puxa para o seu lado. Destrói a
fraternidade porque desconhece o amor agape que experimenta as
bem-aventuranças da pobreza de espírito, dos gestos de misericórdia, da
promoção da paz entre os irmãos (Mt 5.3-8) e o deleite de dar, que é maior
que o de receber (At 20.35).
A carne se convence de que não necessita de Deus para orientá-la na
escolha entre o bem e o mal. A carne se apresenta, acima de tudo,
independente, como se fosse capaz de escolher seu próprio caminho.
Ainda que esteja cativa ao pecado, como Romanos 7.6 afirma (“aquilo a
que estávamos sujeitos”), a carne exalta a liberdade. Pensa que é livre. Pela
carne, as forças espirituais do “velho homem” e do século (aiõn) mantêm
o controle sobre a humanidade. Não fosse a carne. Satanás teria
pouquíssima possibilidade de tentar a humanidade e mantê-la sob o seu
senhorio.
Paulo apresenta a carne como uma esfera ou sistema que governa a
raça que se originou com Adão. Ela ultrapassa os limites do indivíduo para
significar a coletividade ou incorporação da oposição humana contra
Deus. É caracterizada pela ambição, desejos e concupiscências (IJo 2.16),
chegando ao ponto de impedir o indivíduo de fazer o que ele quer (G1
5.17). Os desejos da carne são contra os do Espírito, não porque a carne
o
e material, mas porque escolhe os seus próprios padrões. Resta-nos
procurar nas páginas sagradas as orientações valiosas para lutar e derrotar
a carne.

1. W. Barclay, Obras, pp. 26-33.


2. Cf. J. A . T. Robinson, The Bocfy (Londres: SCM), 1952, pp. 22-25.
3. F. B. Knutson, ISBE, vol. II (Grand Rapids; Eerdmans), 1982, p. 314.

-70-
Como Lutar Para Vencer a Carne

Introdução
Dom Quixote de la Mancha destaca-se entre as figuras mais tolas da
literatura mundial. Miguel de Cervantes criou um herói ridículo que
desejava conquistar um grande moinho de vento montado num cavalo que
mal se mantinha em pé. Dom Quixote investiu contra seu adversário com
uma lança, mas errou na identificação do inimigo e na maneira de vencê-lo.
Precisamos lastimar a freqüência com que nós fazemos algo semelhante
em nossa luta contra a carne.
Nas páginas precedentes, procuramos conhecer o inimigo que a
Bíblia denomina “carne” (sarx) e que nós geralmente chamamos de
“n atu reza hum ana”. Nós nos detivem os para exam inar mais
detalhadamente as características operacionais da inclinação para o mal
que herdamos dos nossos pais, que remontam à queda do primeiro casal.
Certamente, a Bíblia teria conselhos inspirados para nos orientar na luta
contra este usurpador a quem só venceremos definitivamente na morte.
Não é engraçado ser um guerreiro como Dom Quixote na luta contra o
mal que a carne produz através de suas “obras” infernais (G15.19-21).
Como ocorre em toda batalha, o sucesso depende de estratégia
inteligente e armas eficazes. As características marcantes que distinguem
os inimigos da “carne” requerem estratégias específicas. As armas que
usamos no combate contra Satanás nâo podem ser usadas da mesma
forma na luta contra os dois inimigos restantes, i.e., o mundo e a carne (cf.
2 Co 2.11). Impera, portanto, a necessidade de se encontrar uma forma

- 71 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

sábia de atacar a nossa inclinação para o mal.^

A Carne é Fraca
Primeiramente, urge notar que a carne é basicamente fraca, mesmo
que, em seu orgulho, não admita. Por isso, Paulo afirma que a lei exigia o
impossível do homem: “Porquanto o que fora impossível à lei, no que
estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em
semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito,
condenou Deus, na carne, o pecado” (Rm 8.3). A “semelhança da carne”
indica que Jesus não participou da contaminação moral. A humanidade
de Jesus Cristo tornou possível o Seu confronto com a tentação (Mt 4.1;
Lc 4.2; Hb 4.15). A humildade do Deus encarnado (Mt 11.29; 2 Co 10.1)
aponta, certamente, para a importância da primeira bem-aventurança
(Mt 5.3). Os pobres de espírito são os futuros herdeiros do reino, porque
reconhecem sua incapacidade de vencer o pecado por suas próprias
forças.
Já notamos que, no Novo Testamento, a carnalidade e criancice se
identificam (1 Co 3.1-3). O primeiro passo na vitória sobre a carne é o
reconhecimento de nossa dependência. As palavras de Jesus: “Deixai vir
a mim os pequeninos... porque dos tais é o reino de Deus” (Mc 10.14)
também destacam esta verdade. Como uma criancinha que não tem
condições de sobreviver sozinha, assim também o espírito independente
não dispõe de condições necessárias para vencer o pecado que se esconde
em seus membros (Cl 3.5). Como um bebê, ninguém tem a capacidade de
reconhecer a maldade que se insinua na condição humana.
Esse paradoxo, universalmente experimentado, de querer fazer o
bem, mas ser derrotado pela “lei do pecado” (Rm 7.23), se resolve
somente diante do desespero da confissão: “Desventurado homem que
sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm 7.24). A única solução
aparece logo em seguida: “Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor”

1. Cf. M. I. Bubeck, O Adversário (São Paulo: Vida Nova), 1985^, p. TU.

- 72-
COMO L UTAR PARA VENCER A CARNE

(v. 25). O apóstolo postulou o princípio essencial para enfrentar a carne,


ao comentar: “Sinto prazer nas fraquezas... porque quando sou fraco,
então é que sou forte” (2 Co 12.10).
Jesus advertiu a Pedro sobre a fraqueza da sua carne, mas o pescador
não foi capaz de sentir o paradoxo da força na fraqueza. Convicto,
decidido e confiante, ele declarou insistentemente seu desejo de morrer
combatendo os inimigos de Jesus. Sua força ilusória garantiu a derrota.
Não deu ouvidos às repetidas advertências: “Vigiai e orai... o espírito, na
verdade, está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26.41 e paralelos).
Só vigia quem sabe que seu inimigo o espreita con? sutilezas e
surpresas. O leão não vigia, mas o veado, sempre alerta e desconfiado,
fareja o ar para se proteger do inimigo em tempo hábil. Satanás “anda em
derredor, como leão que ruge” (1 Pe 5.8), porque seu propósito é
intimidar, não surpreender (segundo este versículo). A carne vence o
desejo pela santidade, assim, como o gato domina o rato, alimentando a
autoconfiança e satisfação, sem revelar sua presença.

A Boa Consciência
Seremos mais eficazes na luta contra a carne se reconhecermos que
a nossa fraqueza humana, que deve criar uma dependência no Senhor,
tem um outro lado, oposto e perigoso. A enfermidade da carne não
somente nos empurra para a vigilância e a humildade, mas também para
a irresponsabilidade. A senhora Linda Berg, filha do líder Moisés Davi,
fundador da seita “Meninos de Deus”, relata como um propósito santo e
abnegado não é suficiente para manter uma entidade evangélica firme nos
fundamentos bíblicos. Anos após o abandono dos princípios morais, seu
pai profetizou acerca da velha e nova alianças. Com uma suposta
autorização divina, quem se cansasse da sua esposa podería tomar outra.
Deus favoreceria o adultério. Linda comenta: “Minha consciência me
incomodou sobremaneira, gritando para que eu não me rendesse, mas me
pusesse em pé e dissesse ‘não!’. Mas fiquei quieta... O Senhor, pela
operação do Espírito Santo, é sempre fiel para convencer a consciência
da pessoa que está prestes a fazer o mal. Há, porém, um perigo. Se uma

- 73 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

pessoa continuamente se faz surda diante da voz da consciência, esta se


torna cada vez mais fraca...”^
Essa inclinação notável, de não confrontar o erro e evitar o desgosto
de levantar a voz com uma palavra profética que denuncie a iniqüidade,
é parte integrante da natureza carnal. A violação da consciência, seguida
pela racionalização necessária para diminuir o peso da culpa, confirma o
quadro bíblico da carne que carece de força moral para vencer a tentação.
Decisões aparentemente inócuas, mas comprometedoras, pouco a pouco
endurecem o coração. A rejeição da boa consciência leva ao naufrágio na
fé (1 Tm 1.19), justamente porque a natureza fraca do homem prefere
deixar passar a iniqüidade, ao invés de confrontá-la ou confessá-la e se
arrepender. Um sapo numa panela de água no fogão não tentará escapar
do calor mortífera se a água não for esquentada rapidamente.
Viver, como Paulo, sempre com boa consciência (At 23.1) é a melhor
recomendação para reprimir as desculpas da carne que reduzem a nada
os protestos agudos do “homem interior” contra o pecado. Por ser fácil
desculpar os pecados de menor porte, com o passar dos anos, ou até meses,
o erro que antigamente chocaria torna-se perfeitamente aceitável, porque
a consciência se cauteriza (1 Tm 4.2). Cada vez que violamos nossos
princípios morais sem nos arrependermos, a resistência moral diminui.
Nos casos em que a retribuição divina não recai imediatamente sobre o
pecador, pode-se concluir que Deus não se importa com a maldade
praticada.^ Tudo contribui para destruir a fibra da boa consciência.

1. Linda Berg Davis, The Children of God (Grand Rapids; Zondervan), 1984, p. 65. Ela
escreve: “O discípulo de Moisés Davi era arrastado devagar, mas voluntarieimente, para
dentro de uma sindrome de crença enganosa. Creia nesta doutrina e ela o elevará a um
maior status na hierarquia espiritual. Moisés Davi era o Profeta de Deus, e nós éramos
seus seguidores de elite” (p. 63).
2. D isse Alexandre Solzhenitzen no Arquipélago Gulag: “Quando guardamos silêncio
sobre o mal, quando o enterramos bem fundo em nós, de maneira que ele não se mostre
em lugm algum na superfície, o estamos plantando e ele se levantará para se multiplicar
mil vezes no futuro”.
3. Cf Linda Berg Davis, op. cit, p. 65.

- 74 -
COMO LUTAR PARA VENCERA CARNE

O Auxílio Externo
A inconstância e lentidão da carne na luta para realizar o “bem que
está em mim” (Rm 7.18) exigem uma capacitação externa. Assim como os
guerreiros israelitas não podiam imaginar de que maneira venceriam o
filisteu Golias (1 Sm 17), até que o jovem Davi enfrentou o gigante em
nome do Senhor dos Exércitos, todos necessitamos do Espírito para
vencer a força iníqua ameaçadora. Numa atitude sábia, Davi não confiou
na armadura de Saul (1 Sm 17.38s.). Igualmente frustrantes são os
conselhos humanistas que tentam defender o servo de Deus de sua
inclinação pecaminosa.
O auxílio externo que a Bíblia nos assegura garantirá a vitória e a
presença atuante do Espírito de Deus. Se optarmos viver segundo a carne,
caminhamos para a morte. “... mas, se pelo Espírito mortificardes os feitos
do corpo, certamente vivereis” (Rm 8.13). Disse Paulo: “Se... Cristo está
em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o
espírito é vida por causa da justiça” (v. 10). “Todos os que são guiados pelo
Espírito de Deus são filhos de Deus” (v. 14). “Andai no Espírito e jamais
satisfareis à concupiscência da carne” (G15.16).
Todos esses textos e muitos outros desvendam o segredo da vitória
sobre o poder da carne. Andar no Espírito, viver no Espírito (G1 5.25) e
ser guiado pelo Espírito põqm em relevo o fato central de que o Espírito,
a promessa da nova aliança (At 2.38), nos é concedido para realizar a boa
e perfeita vontade de Deus.
À proporção que o Espírito de Deus enche nossas vidas, o poder
dominador da carne diminui. A afirmação de que a carne e o Espírito são
opostos entre si (G1 5.17) aponta para as influências contrárias que eies
exercem sobre nossas vidas e atitudes. Um homem pode estar “cheio” de
rancor, raiva, ciúmes, temor e vingança.^ Uma mulher pode ficar “cheia”

1. Cf. Martin R. DeHaan, How Can I Be Filled with the Holy Spirit? (Grand Rapids: Radio
Bible Class), 1986, p. 7.

- 75 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

de orgulho, tristeza ou ansiedade. A Bíblia tem exemplos dessa maneira


de falar.^ “Eles se encheram de furor” (Lc 6.11); “tomaram-se (grego,
‘ficaram cheios’) de inveja” (At 5.17; 13.45); “encher-me-ás de alegria” (At
2.28); “a tristeza encheu o vosso coração” (Jo 16.6). A plenitude de uma
emoção controla os pensamentos e atitudes, direciona as decisões que se
tomam e sustenta os sentimentos que acolhemos.
Semelhantemente, em Efésios 5.18, Paulo desejava contrastar o
controle do vinho sobre o ébrio e a influência do Espírito Santo sobre o
cristão. Quem se “enche de álcool fala, age, pensa e anda de modo
peculiar; quem está cheio do Espírito também fala, age, pensa e anda
distintamente. Somos controlados pelas influências que nos dominam”.^
Quem está cheio de raiva deixa-se influenciar, a ponto de falar ou agir de
uma forma que reflete esse sentimento. Quem está cheio de si (a “carne”)
certamente revela o fato através de palavras e ações orgulhosas.
Quando o Espírito de Deus encheu os discípulos no dia de
Pentecoste, eles passaram a falar “das grandezas de Deus” em línguas não
aprendidas (At 2.11). Lucas dá a entender que a ousadia de Pedro em
acusar seus ouvintes de terem crucificado o Messias (At 2.23) foi
consequência desse enchimento. Dias depois, Pedro, novamente cheio do
Espírito, corajosamente declarou: “Não podemos deixar de falar das
coisas que vimos e ouvimos” (At 4.8-20). Nessa mesma ocasião, os
componentes do Sinédrio notaram a intrepidez de Pedro e João: “Sabendo
que eram homens iletrados e incultos, admiraram-se; e reconheceram que
haviam eles estado com Jesus” (At 4.13). Está claro que a plenitude do
Espírito reproduz qualidades características da personalidade de Jesus.
Os sete administradores da igreja de Jerusalém eram homens cheios
do Espírito (At 6.3). Prova disso era a sabedoria com que falavam e se
comportavam. Concluímos, portanto, que a plenitude do Espírito destro­
na a “carne”, enquanto Ele produz o Seu fruto de “amor, alegria, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio

1. Ibid.,-p.8.
2. Ibid., p. 9.

- 76-
COMO LUTAR PARA VENCER A CARNE

próprio” (G15.22s.). Querer guerrear efícazmente contra nossa natureza


pecaminosa sem a plenitude do Espírito é tão ridículo como Dom Quixote,
querendo conquistar um moinho de vento com uma lança.
Se, como Paulo, confessarmos que não habita bem nenhum em nós,
isto é, em nossa carne, e procurarmos pela oração e arrependimento
deixar o Espírito nos encher, estaremos no caminho certo da vitória sobre
o inimigo. Mas ainda não esgotamos os ensinamentos bíblicos sobre a
guerra que se disputa no íntimo do cristão.

Quatro Estratégias Bíblicas para Orientar a Luta


0 apóstolo Paulo estabelece mais quatro estratégias para vencer o
inimigo, a carne. São muito mais fáceis de lembrar do que praticar, uma
vez que sufocar os desejos que nossa natureza suscita, mortificá-los, fugir
deles e despojá-los não são tarefas realizáveis, a não ser que haja muita
sabedoria e motivação. Examinemos com cuidado cada maneira de lutar
contra a carne com oração e humildade.

1 j A Destruição das Fontes de Sustento


Em primeiro lugar, devem-se tomar medidas para sufocar a carne,
privando-a de tudo que a sustenta. “Nada disponhais (grego, pronoian,
‘premeditação’) para a carne, no tocante às suas concupiscências” (desejos
malignos, Rm 13.14), exclama Paulo. Aos gálatas disse: “... não useis da
liberdade para dar ocasião à carne” (5.13). O texto original tem aphormên,
um termo militar aplicado a uma base de operações (veja esta palavra em
Rm 7.8,11).^

1. Cf. R onald Y. K. Fung, The Epistle to the Galatians, NICNT (Grand Rapids:
Eerdmans), 1988, p. 244. A came pode utilizar a “liberdade cristã para armar um ataque
contra a santidade do crente. No primeiro texto (de Romanos 13), Paulo adverte contra
qualquer planejamento que favoreça a atuação pecaminosa da carne. N a prática, temos
que privar os desejos malignos de qualquer “direito” ou “posição privilegiada” que dê
alguma vantagem sobre nós. Diligência em cortar os meios, condições e práticas que
alimentam a carne é um passo eficiente para enfraquecer as tentações promovidas por
ela.

-7 7 -
o MUNDO, A CARNE E O DLABO

2) A Mortificação da Carne
Devemos “matar” a nossa natureza terrena (Q 3.5). Este assassinato
espiritual, literalmente, “de nossos membros que estão sobre a terra”, fala
das práticas que se utilizam dos membros do corpo para efetuar suas
atividades. Como podemos tirar a vitalidade ou força das paixões que nos
i
atormentam? Paulo indica que a mortificação é também uma operação
do Espírito: “... mas, se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo,
certamente vivereis” (Rm 8.13). O carrasco executará a sentença,
matando os “feitos” da carne se nós assim decidirmos.
Podemos esmagar as algemas da carne e tudo que anima esses
desejos malignos? Com o auxílio do Espírito afastaremos, uma por uma,
as fontes que incitam a carne: se for o sexo, devemos cortar os incentivos,
tais como filmes, revistas, leitura, praia, enfim, todo e qualquer
relacionamento, atividade ou local que alimente a concupiscência ou
lascívia. Aquele que morreu com Cristo (na cruz e, simbolicamente, no
seu batismo) descobre a regra das suas decisões no princípio que diz:
“morto para viver”.
Poderíamos responder à semelhança de William Booth, fundador do
Exército de Salvação, à pergunta acerca do segredo de sua frutífera
atuação. Disse ele: “Eu determinei, quando era um jovem de dezesseis
'1
anos, que Deus iria possuir tudo o que fosse de William Booth”. Para
Deus ter tudo de nós, precisamos parar de dividir nossas vidas entre: a)
“tempo e atividades para Deus” e b) “tempo e atividades para nós”.
“Crucificar a carne” (G1 5.24) com as suas paixões e concupiscências não
passará de uma frase bíblica, porém inteiramente teórica, até decidirmos
que Jesus Cristo será Senhor real dos nossos pensamentos e ações. O
Espírito é agente desta crucificação e ressurreição transformadora (cf. 2
Co 3.18). Richard Lovelace comenta: “Evidentemente, a santificação e a

1. Cf. R. P. Shedd, Andai Nele (São Paulo: Vida Nova), 1988% p. 64.
2. Recomendamos o livro de John H. Court, Pornografia (São Paulo: Vida Nova 1991),
passim.
3. James Philip, La Madureza Cristiana (Buenos Aires: Certeza), 1974, p. 89.

-78-
COMO LUTAR PARA V E N ΠR A CARNE

capacitação para ministrar são tão inseparáveis como a justificação e a


santificação”.^ A carne definha, mas a obediência é cada vez mais
encorajada (cf. 2 Co 4.16).

3) O Afastamento das Paixões


A vitória sobre a força maligna em nós mesmos demanda fuga (1 Tm
6.11). Não se pode fugir de Satanás, nem do mundo (a não ser por
intermédio da morte física), mas “o homem de Deus” deve correr em
direção oposta à avareza (amor ao dinheiro, 1 Tm 6.10) e às “muitas
concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na
ruína” (1 Tm 6.9). Os homens que buscam em primeiro lugar todas as
coisas, em vez do reino, desviam-se da fé, “e a si mesmos se atormentam
com muitas dores” (1 Tm 6.10). A religiosidade tornou-se atrativa
unicamente porque fornece uma fonte de lucro (v. 5). Assim, alguns
evangelistas da TV norte-americana arrecadaram milhões de dólares e se
enredaram em escândalos sexuais e financeiros. Um deles chegou a ser
condenado a 45 anos de prisão por sonegação de impostos!
Em Mateus 6.24, Jesus fala de uma outra tentação, além do amor
pelo dinheiro. É o falso deus do materialismo, criado pelo homem para
substituir o Deus da glória. Muitos, como Simão, o Mago, querem comprar
o dom de Deus (At 8.18). Muitos traem o Senhor por dinheiro, como fez
Judas (Mt 26.14-16,48). Como Geazi, valorizam o dinheiro mais do que a
integridade (2 Rs 5.26s.). As conseqüências destrutivas também não são
menos graves que a lepra.
Mas não basta fugir das paixões; precisamos “seguir (grego, diõke,
“perseguir”) a justiça, a piedade (santidade), a fé, o amor, a constância, a
mansidão” (lT m 6.11).A vitória sobre o pendor para o pecado requer
mais do que negação e abandono. O ascetismo, tal como foi praticado
pelos colossenses (2.21-23) e os eremitas, não tem “valor algum contra a

1. R. Lovelace, Dynamics of Spiritual Life (Exeter; Paternoster), 1979, pp. 125ss.


2. Cf. T. Adeyerao, Evangelical World, órgão da Aliança Mundial Evangélica (W EF),
meu’QO de 1990, p. 4.

- 79-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

sensualidade” (Cl 2.23).


A perseguição da justiça, santidade e amor exige uma motivação
distinta daquela que impulsiona a carne. O conhecido psicólogo, Abraham
Maslow, projetou um modelo convincente para descrever a hierarquia de
necessidades. O primeiro degrau representa os elementos fisiológicos, tais
como alimentos, oxigênio, água, descanso, imprescindíveis para manter a
vida. O segundo degrau corresponde à necessidade de segurança,
proteção e estabilidade econômica. Tendo segurança, o ser humano
necessita de aceitação, amar e ser amado. Passados os três degraus, o
homem concentra sua atenção na necessidade de reconhecimento, status
e autovalorização. O quinto nível (e último de Maslow) é a necessidade
de auto-expressão, propósito na vida e realização criativa do potencial que
o indivíduo herdou dos pais e do ambiente que o nutriu.^
Cada um desses incentivos pode procurar satisfazer os desejos da
carne. É certo que, faltando um suprimento básico das necessidades físicas
(tais como sofreram os judeus e crentes nos campos de concentração
nazistas), torna-se mais difícil buscar o Senhor de todo o coração (Jr 29.13;
Is 55.6), mas não é impossível, como mostra a história de Corrie Ten
Boom. A força motivadora que impulsionou o apóstolo Paulo pouco tinha
a ver com a hierarquia de necessidades de Maslow. As palavras:
“Considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento
de Cristo Jesus meu Senhor” (Fp 3.8) revelam qual era o incentivo
fundamental da sua vida.
Quando muitos discípulos de Jesus o abandonaram, Pedro disse:
“Senhor, para quem iremos? tu tens as palavras da vida eterna” (Jo 6.68).
Tanto Pedro como Paulo aprenderam a subjugar a carne na força
sobrenatural do Senhor. “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.13),
isto é, uma vez que Paulo experimentou (lit. foi “iniciado numa religião de
mistério”, v. 12) a plena confiança em Deus, afastou a preocupação natural

1. Leslie B. Flynn, Your Inner You (Wheaton: Motor), 1984, pp. 68s.
2. Leia o livro O Refugio Secreto, de Corrie Ten Boom.

-80-
COMO LUTAR PARA VENCERA CARNE

com as necessidades cotidianas.^ A fuga das atrações da carne e a dedicada


busca da comunhão com o Senhor são mais um passo na vitória sobre a
carne.

4) O Despojamento da Carne
Em quarto lugar, Paulo exorta os seus leitores a se despojarem do
“velho homem” e se revestirem do “novo homem” (Ef4.22,24s.; Rm 13.12,
14; Cl 3.8; Hb 12.1; Tg 1.21; 1 Pe 2.1). A figura de tirar as roupas da velha
vida, anterior ao arrependimento e conversão, surgiu do batismo. O
neófito, uma vez convicto de que a vida sujeita aos apetites da carne não
era digna da nova criação (2 Co 5.17), despojava-se de suas velhas roupas,
recebia o banho cristão (Jo 13.10) e, em seguida, vestia trajes novos que
representavam a pureza de vida. O começo da vida cristã exige fé pessoal,
sincera, em Jesus Cristo. A vida de fé caracteriza-se também pela
obediência. Uma palavra que descreve este aspecto do caminhar do
cristão é “integridade” ou, na linguagem bíblica, “irrepreensibilidade”,
que traduz bem a palavra hebraica tamím, “perfeito”, “íntegro” {cf. Gn
17.1), que aparece 50 vezes no A.T. No N.T., os termos amõmos
(“inculpável”) e anenklêtos (“irrepreensível”) significam algo muito
parecido.^
Essas passagens confirmam a conclusão à qual já chegamos. A carne
e suas práticas devem ser postas de lado na nova vida em que Cristo reina.
O “novo homem” representa a realidade da vida abundante, que substitui
as práticas e atitudes da carne anteriores ao nascimento do Espírito (Jo
3.6). Este “novo homem”, criado de acordo com o padrão de Deus “em
verdadeira justiça e santidade”, deve manifestar o fruto do Espírito
produzido quando o filho de Deus a Ele se submete.

1. Veja R. P. Shcdd, Alegrai-vos no Senhor (São Paulo: M da Nova), 1988^ p. 119.


2. T. Adeyemo, op. cit., p. 4.
3. Esta tradução do grego reflete o texto da Nova Versão Internacional da Bíblia que está
sendo preparada por Edições Vida Nova.

-81-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

Conclusão
Agostinho separou o tronco da árvore da carne em dois ramos: o
orgulho e a sensualidade. Lutero, por sua vez, percebeu que a raiz
principal que sustenta o tronco com seus ramos é a incredulidade.^
Conseqüentemente, a característica básica é uma independência, uma
autoconfiança em que cada um de nós é capaz de julgar e decidir a
disposição de tudo o que nos afeta. Somos donos e dirigentes das nossas
vidas. Esta tentativa de controlar tudo que esteja ao nosso alcance é aquilo
que Jesus chamou de “salvar a sua vida” (Mc 8.35 e paralelos). Vencer a
carne, então, seria o oposto: “perder a vida por causa de mim e do
evangelho” (v. 35). Em síntese, derrotamos a carne morrendo e
ressuscitando, negando a nós mesmos, tomando nossa cruz e seguindo a
Jesus (Mc 8.34).
Esta definição da carne, que se isola de Deus na incredulidade,
explica, em parte, as ações altruístas de espíritas e humanistas. Analisando
suas atividades filantrópicas e abnegadas, descobrimos por que a
independência de Deus é uma profunda consciência do pecado, mas
encoberta, e a culpa gera “um egoísmo compensador, autodirigido, mas
diferente da soberba pura”. Kierkegaard, Niebuhr e Tillich sugeriram
corretamente que a ansiedade provoca muito de nosso comportamento
o
pecaminoso. Somos como crianças que brincam numa floresta ao pôr do
sol, longe de casa, em desobediência às ordens solenes dos pais; sentem
um temor crescente, mas, ao mesmo tempo, valentemente tentam
convencer a todos que eles sabem como chegar em casa.
Bem-aventurado o cristão que aprendeu a usar a bússola da Palavra,

1. Richard Lovelace, op. cit., p. 90.


2. Ibid.
3. Ibid. Larry Crabb desenvolve este assunto, explicando como o pecado da autoproteção
sutilmente cria em nós uma falsa humildade. Procuramos evitar o conflito, deixando de
confrontar o mal e tentar extirpá-lo. A necessidade de evitar o sofrimento provocado
pelo conflito (muitas vezes aprendido na infância) provoca uma reação tímida e errada.
Inside Out (Colorado Springs: NavPress), 1988, p. 175.

- 82-
COMO LUTAR PARA VENCERA CARNE

que escuta as instruções do Pai e faz o que ele manda. “Será comparado
a um homem prudente, que edificou sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva,
transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra
aquela casa, que não caiu, porque fora edíGcada sobre a rocha” (Mt
7.24s.).

-83-
Satanás: O Inimigo Destruidor do Cristão

Nenhum crente convicto duvida de que haja um terceiro inimigo do


cristão, feroz como um leão que ruge, faminto e cruel, à procura de alguém
para devorar (1 Pe 5.8). Todavia, pouco se entende de sua natureza e
atuação. Qual seria a relação entre o maioral dos demônios e esses
espíritos malignos? Que poder tem Satanás sobre a vida humana ou sobre
a história dos povos? Ainda que o homem moderno tenha banido do seu
pensamento o Diábolos das Escrituras e muitos teólogos tenham
transferido o Demônio para a mitologia,^ é inegável o fato de que a Bíblia
afirma sua existência. O objetivo deste capítulo é conhecer melhor nosso
adversário e buscar estratégias escriturísticas para vencê-lo.
A existência do mal dentro da criação do único Deus santo e
onipotente coloca uma pedra de tropeço diante de nós. Existe a teoria
materialista que postula um processo natural evolucionista que, sem uma
inteligência pessoal, vai vencendo o caos paulatinamente. Segundo essa
maneira de pensar, o mal no universo não passa de uma imposição ou
explicação que a mente humana dá aos eventos. Não pode existir pecado
e culpa sem nenhuma lei divina. C. S. Lewis mostra a tolice desta
abordagem no seu livro Cristianismo Puro e Simvles, argumentando que
todo ser humano reconhece a existência de uma lei moral no universo, pela
qual tanto materialistas como cristãos julgam o que é certo e errado. A
consciência não é uma simples conveniência, mas uma realidade inculcada

1. J. O. Semders, Satan is no Myth (Chicago: Moody Press), 1975, p. 9.


2. Veja J. W. Wenham, O Enigma do Mal (São Paulo: Vida Nova), 1989, pp. 23,24.
3. Títulos anteriores: A Razão do Cristianismo e 0 Cristianismo Autêntico (São Paulo:
À BU ), 1989^ pp. 1-18.

-84-
SATANAS: O INIMIGO DESTRUIDOR DO CRISTÃO

por Deus no coração humano. O dualismo pleno não resolvería coisa


alguma, visto que apresentaria um deus bom e outro mau em oposição
mútua, mas incapazes de vencer um ao outro. A Teologia do Processo tenta
apresentar um deus sujeito às forças, que não se harmoniza com o ideal
de um deus perfeito. Rejeitando esta figura de um deus sujeito aos eventos
da história, ainda questionamos o porquê da existência do Diabo e do mal
no universo.^
A Bíblia declara que o mal não surgiu por acaso. Não foi uma questão
de azar ou fatalismo que interrompeu os bons planos do Criador. A
explicação da revelação bíblica se firma na queda de um poderoso anjo,
criado por Deus antes da formação de Adão e Eva (Gn 1 e 2).^ Do pináculo
da criação, caiu no mais fundo abismo do pecado. Este principal
adversário de Deus escolheu, junto com inúmeros espíritos aliados, o
caminho do mal e a rebelião contra seu Criador (1 Jo 3.8).
Ainda que a Bíblia pouco nos informe sobre a queda de Satanás,
passagens tais como Isaías 14.12-15 e Ezequiel 28.12-18, que descrevem a
soberba dos reis da Babilônia e de Tiro, nos fornecem uma sugestiva
possibilidade acerca do modo como esse arcanjo teria caído. “Tu és o
sinete da perfeição, cheio de sabedoria e formosura. Estavas no Éden,
jardim de Deus... Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabelecí;
permanecias no monte santo de Deus... Perfeito eras nos teus caminhos,
desde o dia em que foste criado, até que se achou iniqüidade em ti” (Ez
28.12-15). Essas afirmações parecem mais adequadas a Lúcifer, no sentido
literal, do que ao rei de Tiro. Certamente foram a soberba e a inveja que
levaram aquele ser a se tornar o inimigo implacável de Deus, exatamente
como aconteceu com o chefe de Tiro.

1. Jon T. Murphee, yl Lov/’/jg God and a Suffering World (Downers Grove; Inter-Varsity),
1981, pp. 11-42.
2. Harold Lindsell, TTie World, the Flesh, and the Devil (Washington; Canon Press), 1973,
1974, p. 27.
3. J. O. Sanders, op. cit., pp. 16-21.

-85-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

João diz que a cauda do dragão (um dos nomes figurados de Satanás)
“arrasta a terça parte das estrelas do céu, as quais lançou para a terra”
(Ap 12.4)/ Seriam anjos que se rèbelaram contra Deus, aliando-se ao
Diabo? Nesse caso, formaram uma hierarquia de forças inteligentes,
desencarnadas, que Paulo denomina “principados (archcu), potestades
{exousiai), poder (dunamis), domínio (kuriofês), todo nome que se possa
referir” (Ef 1.21), “dominadores deste mundo (kosmokratoras) e forças
espirituais do mal (pneumatika tes ponêrias)” (Ef 6.12). Essas forças
rebeldes agora se encontram “nos lugares celestiais” (Ef 6.12), o local de
nossa luta. Pedro relata sobre os anjos que pecaram; eles foram
precipitados no inferno (tartarõsas, uma prisão, 2 Pe 2.4), certamente o
mesmo “poço do abismo” onde estão encarcerados os demônios que serão
soltos no julgamento da quinta trombeta (Ap 9.2ss.).
Evidentemente, há espíritos malignos soltos que obedecem às ordens
do seu maioral. Outros estão sendo guardados “sob trevas, em algemas
eternas, para o juízo do grande dia” (Jd 6). Foi a estes “espíritos em prisão”
que Jesus Cristo anunciou (ekêruxen) sua vitória sobre a morte após a
ressurreição (1 Pe 3.18s.).^

Os Nomes de Satanás
A Bíblia deixa transparecer que os nomes e títulos de Deus oferecem
uma doutrina bem completa a respeito da natureza do Criador. T. C.
Horton, em The Wonderful Nomes o f our Wonderful Lord (“Os Nomes

1. Em Daniel 8.10, o profeta prediz o crescimento do chifre pequeno (refere-se a Antíoco


Epifânio, aquele terrfvel rei da Síria que perseguiu dureunente os judeus na Palestina,
c. 170 a.C.), até atingir o exército dos céus. E le lançou algumas estrelas por terra.
2. Pedro menciona que esses espíritos estão aprisionados por causa da desobediência
deles nos dias d eN oé. A tradição judaica também propunha duas quedas — a primeira,
na ocasião da transgressão de Satanás; a segunda, na época antediluviana. “Os filhos
de Deus” (Gn 6 .2 ,4 e Jó 1.6) provavelmente devem ser identificados com anjos que se
rebelaram contra Deus.

-Só-
SATANÁS: O INIMIGO DESTRUIDOR DO CRISTÃO

Maravilhosos do Nosso Maravilhoso Senhor”), cita nada menos que 365.


Acontece que o diabo também se revela pelos seus 30 ou mais nomes
bíblicos.^ C on sid erem o s alguns nom es que d estacam mais
especificamente seu caráter e atividades.

11 Satanás
Este vocábulo de origem hebraica significa adversário. Aponta para
a inveja deste ser angelical que não suporta a comunhão e a lealdade que
une Deus àqueles que O amam. O caso de Jó é notório. Satanás acusa Jó
de ser justo apenas pelo que recebe materialmente de Deus (Jó 1.6-11).
Ele quis anular os direitos sacerdotais de Josué, acusando-o diante
de Deus pelos seus pecados (Zc 3.1s.). Mas Deus perdoou os pecados de
Josué. As acusações não surtem nenhum efeito, a não ser destacar mais
nitidamente a graça e bondade de Deus.
Paulo queria visitar os tessalonicenses, mas Satanás barrou o seu
caminho (1 Ts 2.18). A oposição do inimigo de Deus tem a finalidade de
estabelecer o seu reino em detrimento do reino de Deus. Por ser o rival
do Rei do universo. Satanás se opõe a toda iniciativa de Deus no mundo.

2) Diabo
Este nome é formado de uma transliteração do grego diabolos e
significa “acusador”,"^ “difamador”, “maldizente”. Nada menos de 35
vezes na Bíblia, este título descritivo salienta um caráter dominado pelo
ódio e desprezo. Aparentemente, nada satisfaz mais o diabo do que a
oportunidade de envergonhar o Pai celestial, por meio de acusações
levantadas contra os filhos. Semelhantemente, ele se sente realizado

1. J. O. Sanders, op. c/í., p. 25.


2. Veja como Satan é usado em textos não referentes ao diabo (1 Sm 29.4 “adversário”;
também 2 Sm 19.22; 1 Rs 5.4). Em Nm 22.22, o Anjo do Senhor tom ou-se stlíSn de
Balaão, barrando o seu caminho como um adversário.
3. D . P. Fuller, “Satan”, ISBE (Grand Rapids; Eerdmans), vol. IV, 1988, p. 340.
4. Veja a raiz grega de diaballõ em L c 16.1, onde o administrador foi denunciado ou
acusado de fraude.

-87-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

sempre que consegue reproduzir o seu caráter num cristão que difama seu
irmão ou a igreja.^

3^ Tentador
Este nome, ainda que raro, descreve de modo literal a atividade
satânica natural de tentar induzir os justos a pecar ou abandonar a fé.
Mateus 4.3 mostra o tamanho da arrogância do diabo que pensava poder
tentar o Senhor Jesus Cristo, fazendo-O pecar. 1 Tessalonicenses 3.5
revela o temor que Paulo sentia diante da possibilidade de o “tentador”
Qio peirazõn) provar (epeirasen) os novos crentes da Macedônia,
induzindo-os, através dos sofrimentos, a renunciarem à fé. Por certo, Jesus
tinha a tentação em mente quando advertiu Simão Pedro a respeito do
intenso desejo que Satanás tinha de peneirar os discípulos (Lc 22.31). A
intercessão de Jesus concentrava-se no pedido: “que a tua fé não
desfaleça” (v. 32).

4) Belzebu
No A.T., Baal-Zebube era o deus de Ecrom, cidade dos filisteus (2
Rs 1.2, 16). Jesus designou Satanás com este nome, acrescentando a
informação de que ele é o “maioral dos demônios” (Mt 12.24). O
significado deste vocábulo composto é “Senhor (baal, cf. 1 Pe 3.6 com Gn
18.12) das moscas” ou “o gênio que preside a corrupção”. Se as moscas
representam os espíritos malignos, deduzimos que Satanás ordena o
serviço deles, sempre com o intuito de corromper a vida pessoal (sexo,
drogas, desonestidade) e social (intrigas, maledicência, manipulação,
mentira e pressão). Satanás é descrito por João como “o sedutor de todo
o mundo” (Ap 12.9).

1. J. o. Sanders, op. c it, p. 26.


2. J. O. Sanders, op. cit., p. 26.
3. Ibid., p. 27.

- 88-
SATANAS: O INIMIGO DESTRUIDOR DO CRISTÃO

5) Belial
No A.T., os “filhos de Belial” (Jz 20.13; 1 Sm 10.27; 30.22; 1 Rs 21.13)
são os “marginais”, “salafrários”, “marotos”. No N.T., Paulo emprega este
nome para apontar para o extremo contraste: “Que harmonia existe entre
Cristo e o Maligno?” (gr. Beliar, 2 Co 6.15). Provavelmente, “o homem
sem lei” (anomias, 2 Ts 2.3) representa o mesmo conceito básico, um
homem dominado por Satanás e, portanto, isento de qualquer controle da
parte de Deus. Deduzimos que o diabo não reconhece a lei de Deus
imposta na criação, a não ser quando forçado pelo poder divino supremo
ou quando pensa que pode tirar vantagem disso.

6) Antiga Serpente
Este nome nos lembra da primeira aparição de Satanás na história.
Ele espreitava Eva no paraíso e convenceu o primeiro casal a pecar.
“Antiga” sugere que ele está no mundo há muito tempo e, também, que é
bem conhecido.^ Paulo afirma que “a serpente enganou Eva com a sua
astúcia” (2 Co 11.3; Gn 3.4-13), destacando a inteligência utilizada com a
intenção de seduzir. A serpente se esconde, não mostra o veneno
inoculado por suas presas. Uma característica de Satanás é que ele não
anuncia o destino do caminho qué recom enda nem revela as
conseqüências das prazeirosas atividades que promove.

7) Grande Dragão
As origens deste título se encontram no A.T. e mostram um certo
paralelismo com “a serpente”.^ As 12 ocorrências deste nome no N.T.
estão no Apocalipse e se referem a Satanás. Transparece o seu caráter
destrutivo, que inspira terror como um monstro feroz. Ele ficou cheio de
ódio e ira, dominado pelo pensamento de destruir os servos de Deus (Ap
12.12). A sua cor vermelha (v. 3) deve apontar para sua natureza assassina

1. C. Fred Dickason, Angels, Elect and Evil (Chicago: M oody Press), 1975, p. 123.
2. G. F. Hasel, ISBE, vol. I (Grand Rapids; Eerdmans), 1979, p. 990.

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o MUNDO, A CARNE E O DIABO

(Jo 8.44). Nenhuma piedade acalenta o seu coração duro como


pederneira.

8) Leão que Ruge


Este título descritivo é encontrado uma única vez nas Escrituras e
demonstra a intenção de se encontrar “alguém para devorar” (1 Pe 5.8).
O contexto histórico, no qual os primeiros leitores de 1 Pedro se
encontravam, sugere a perseguição promovida pelo diabo. Ele se
aproveita do pavor da morte e das torturas para pressionar os seguidores
do “Leão de Judá” (Ap. 5.5), fazendo-os desistir. A figura muito sugestiva
de “engolir” ou “devorar” refere-se à impossibilidade de se recuperar os
que são tragados por esse “leão” devastador. Foi o medo que provocou os
juramentos de Pedro na noite em que ele negou seu Senhor,^ não tendo
sido sóbrio nem vigilante (1 Pe 5.8) diante das investidas da terrível fera
infernal.

9) Deus deste Mundo


Não é estranho que Paulo atribua a Satanás este título (2 Co 4.4; cf.
Jo 12.31). Sendo o supremo poder no mundo que se opõe ao Deus
verdadeiro e único (cf. At 8.10), é compreensível que o diabo almeje a
adoração de todos os que se recusam a adorar o bondoso Senhor da glória.
Agostinho chamou o diabo de Simius Dei, o imitador de Deus.^
Inegavelmente, ele deseja a adoração acima de qualquer regalia. Assim
ele estaria substituindo Aquele a quem pertence o direito único de receber
toda a honra, glória e poder (Ap 4.11; 5.12s). Estava disposto a entregar
a Jesus “os reinos do mundo e a glória deles” em troca de adoração (Mt
4.8s.; Lc 4.5-7). Jesus negou definitivamente ao diabo todo e qualquer
direito de receber adoração. “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele

1. Cf. A. M. Stibbs, The First Epistle General o f Peter (Londres: lyndale), 1959, p. 172.
2. J. O. Sanders, p. 34s. Satanás se apresenta em forma trinitária (o diabo, a besta e o fd so
profeta, Ap 16.13). Tem sua igreja (“sinagoga de Satanás”, Ap. 2.9); seus ministros (2
Co 11.14s.); sua teologia (1 Tm 4,1; 1 Jo 4.1ss.); sua ceia (cálice e mesa, 1 Co 10.21); seu
próprio evangelho (G11.7s.); seu trono (A p 13.2) e seus adoradores (Ap 13.4).

-9 0 -
SATANAS: O INIMIGO DESTRUIDOR DO CRISTÃO

darás culto” (Lc 4.8; Dt 6.13).


A idolatria une ao satanismo o culto às imagens, pois aquilo que os
incrédulos sacrificam aos ídolos, sacrificam a demônios (1 Co 10.20). Não
é de admirar, portanto, a oposição que a Palavra de Deus levanta contra
a idolatria em toda sua extensão. Não é apenas a deturpação, que muda
“a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem
corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Rm 1.23), que
incita Deus à ira. Muito mais grave é o endeusamento dos inimigos de
Deus, sob a chefia do seu maioral.

10) Maligno
Na maioria das vezes em que se emprega o termo poneros, “mal”,
“mau”, “maligno”, seu uso descreve o caráter de um objeto ou ação. Há,
entretanto, uns poucos casos, facilmente identificáveis pelo uso absoluto
com o artigo, “o maligno” (Mt 6.13; 13.19, 38; Jo 17.15; Ef 6.16; 2 Ts 3.3;
1 Jo 2.13s.; 3.12; 5.18s.), que tratam de Satanás. O maligno, como nome,
salienta claramente a perversidade total deste espírito corrompido. A
declaração de João: “Sabemos que somos de Deus, e que o mundo inteiro
jaz no maligno” (1 Jo 5.19), ensina que o mundo pecador, inimigo de Deus,
vive em submissão a Satanás. Dele recebe orientação e direção para se
opor a tudo que agrada a Deus. Não fosse o diabo, a maldade do mundo
careceria de coordenação e alvos específicos. Ocorreria espontaneamente
e por acaso. Por isso Jesus ensinou os discípulos a pedirem livramento do
maligno (Mt 6.13), como quem tem uma estratégia bem pensada na sua
luta contra. Deus. Devemos agradecer a Deus, pois Ele guarda os Seus
amados do maligno (1 Jo 5.18; Jo 17.15).

11) Apoliom
Este nome, transliterado diretamente do grego (em heb., Abadom),
significa destruidor. Vem da mesma raiz de “perecer”(Jo 3.16),
“perdição”. Judas foi designado “filho da perdição” (apõleias, Jo 17.12),
porque entregou sua vida ao Destruidor (Jo 13.2).
Evidentemente, não foi Satanás quem destruiu os israelitas que

-91-
o MUNDO, A CAJRNE E O DIABO

caíram na idolatria e murmuraram no deserto (1 Co 10.10). O vocábulo


no original não é Apoliom, mas exterminador, possivelmente o anjo que
atacou os primogênitos dos egípcios (cf. “destruidor”, Êx 12.23).
A morte e a ressurreição de Jesus Cristo tiveram como uma das
finalidades “destruir (katareõ) aquele que tem o poder da morte, a saber,
o diabo” (Hb 2.14). Esse domínio (kratos) que o Apoliom exerce sobre a
morte dos que a ele pertencem não identifica o seu papel: a morte referida
é a primeira ou a segunda. Em Apocalipse, Apoliom é identificado como
o rei dos “gafanhotos” que saem do poço do abismo (9.3,11). Como anjo
do abismo (v. 11), é retratado como dominador desse campo de lixo
espiritual. Quando os “gafanhotos” (espíritos maus) surgem do abismo,
atormentam os homens (sem a proteção do selo de Deus) durante cinco
meses, mas não os matam. O poço do abismo não é o inferno (“lago do
fogo que arde com enxofre”, Ap 19.20; 20.10; 21.8), mas uma prisão (cf.
Ap 20.3). O Destruidor não terá mais domínio no dia em que Jesus Cristo
sujeitar todos os seus inimigos (1 Co 15.24ss.).

12) Príncipe deste Mundo (Jo 12.31; 16.11) e Príncipe da


Potestade do Ar (Ef 2.2)
Ambos os títulos destacam o diabo como o governante do mundo.
Sendo o primeiro entre seus parceiros (isto é, os demônios que participam
do domínio sobre o mundo), senta-se em um trono invisível. Ele é o
“governante do império da atmosfera”,^ e o kosmos (mundo) é o
equivalente negativo do reino de Deus. Ele sempre quis ser como Deus
(cf Is 14.14); por isso. Satanás exerce um principado, em que se orgulha
de ser o manipulador de centenas de milhões de vidas que prestam
obediência a ele e se mantêm rebeldes contra Deus (Ef 5.6). Seu domínio
no ar é invisível. Sua influência maléfica rodeia o globo inteiro, tal qual o
ar. Atinge todos os homens caídos, mesmo que não creiam na existência
do diabo e jamais tenham tido notícias dele. A frase paralela, “segundo o
curso (aiõn) deste mundo (kosmos)” (Ef 2.2), sugere que Satanás, sendo

1. U m a tradução sugestiva do papel do diabo segundo E f 2.2. Cf. C. F. Dickason, p. 120.

-92-
SATANAS: O INIMIGO DESTRUIDOR DO CRISTÃO

O deus deste século (aiõn), traça as linhas da história dentro dos


parâmetros de liberdade permitidos por Deus (cf. Jó 1.10-12; Lc 22.31; Mt
12.29). A sua influência na cultura, na desgraça da corrupção, na injustiça
social e nas guerras internas e internacionais faz-se presente de modo
chocante.
Satanás é um espírito pessoal e invisível. Não é onipresente como
Deus. Sua atuação depende dos seus súditos que têm o nome de
potestades (Ef 2.2). O termo grego (exousia) foi usado por Paulo, em
Romanos 13.1, para identificar as autoridades humanas do império
romano. Esses governantes mantinham o poder de Roma e sustentavam
o trono do imperador reinante. Concluímos que o poder do diabo é
mantido pelo seu exército de demônios, que recebem suas ordens do
pináculo da hierarquia infernal. Conseqüentemente, “o espírito que atua
nos filhos da desobediência” (Ef 2.2) revela que aquilo que os espíritos
(pl.) fazem para controlar a humanidade é reconhecido como ação
satânica.

13) Assassino Mentiroso


Jesus disse acerca de Satanás: “Ele foi homicida desde o princípio e
jamais se firmou na verdade” (Jo 8.44). Talvez Jesus estivesse fazendo uma
referência ao Jardim. Por meio da mentira, induziu Eva e Adão a comerem
do fruto proibido. Ele não apenas mata, mas tem prazer em conduzir à
morte seus seguidores ignorantes e iludidos (cf. Rm 1.29, 32). Ele tem o
poder da morte (Hb 2.14) sobre toda a humanidade que está sob sua
autoridade. Mas ele não se limita a exercer suas intenções criminosas no
mundo debaixo do seu controle. “O ladrão vem somente para roubar,
matar e destruir” (Jo 10.10), e ele tem a igreja em mira. O diabo tem
orgulho em invadir o rebanho de Deus para praticar o assassinato
espiritual e corporal (cf. 1 Co 5.5 e a frase “para a destruição da carne”,
que significa morte).
Paulo conhecia bem a natureza das investidas satânicas contra a
igreja. Advertiu solenemente os líderes da igreja de Éfeso contra os “lobos
vorazes que não pouparão o rebanho” (At 20.29). Essas feras, tal como a

-93-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

besta que emerge do mar (Ap 13.1) e os “muitos anticristos que surgiram”
(I Jo 2.18), têm só uma finalidade: exercer o poder de Satanás. A história
da Igreja, de movimentos cristãos e até de avivamentos mostram o perigo
que corre o povo de Deus, se não estiver prevenido.
Billy Bray, piedoso mineiro inglês, brilhou como luz inflamada por
Cristo. Suas lutas contra Satanás foram quase constantes. Numa ocasião,
o diabo tentou convencê-lo de que Deus não o amava mais. A isso ele
replicou: “Ora, tenho registro escrito sobre seu caráter em minha Bíblia;
e ela diz que você é mentiroso desde o princípio!”^

141 Pai
“Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe aos
desejos” (Jo 8.44). Sentimo-nos chocados com esta declaração de Jesus.
Tal como Deus é o Pai dos que nasceram do Espírito pela obediência da
fé (Jo 3.3-6), assim também Satanás tem filhos que nasceram de Adão e
Eva, o casal que ligou sua natureza caída a toda raça. Trata-se da
depravação total, no sentido de que nenhuma parte do ser humano escapa
da influência do pecado. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus”
(Rm 3.23). O pecado e a desobediência a Deus (“filhos da desobediência”,
Ef 2.2) indicam que os não-regenerados são geração espiritual de Satanás.
João Batista e o Senhor, ambos chamaram os líderes religiosos judeus de
“raça de víboras” (Mt 3.7; 12.34; 23.33). A hipocrisia dos fariseus e
saduceus provocou esta acusação que nitidamente relaciona a natureza
pecaminosa com as origens. Satanás e Adão contaminaram toda a raça.
A importância deste título se evidencia na frase “quereis satisfazer-
lhe aos desejos” (Jo 8.44). Ainda que sejam cativos (2 Tm 2.26), os
pecadores têm prazer em cumprir a vontade do diabo. De modo contrário
ao renascido, que tem “prazer na lei de Deus” (Rm 7.22), o rebelde filho
do diabo deleita-se na escravidão da impureza (Rm 6.19) e aprova as
práticas características do demônio (cf. Jo 8.44 com Rm 1.29, 32).

1. D . Phillips, Conheça seu Inimigo (São Paulo: Livraria Independente), 1960, p. 15.

-9 4 -
8
As Estratégias Satânicas

Introdução
As conquistas do diabo têm uma explicação bíblica. O Maligno é
forte, sim, mas, muito mais que isso, ele é inteligente. Como os melhores
generais da história, ele planeja bem e ataca quando e como menos se
espera. Paulo, sendo orientado pelo Senhor, ordenou que os coríntios
perdoassem e restaurassem o irmão disciplinado pela igreja, “para que
Satanás não alcance vantagem sobre nós, pois não lhe ignoramos os
desígnios” (noêmata, “propósitos”, no sentido mau de “tramas”, “ardis”,
2 Co 2.11).^ Este não é o único texto que desvenda a maneira habilidosa
pela qual ele alcança vantagens sobre os fíéis.
Na tentação de Eva, o diabo criou a ilusão de que se o inocente casal
acatasse sua sugestão, isso iria satisfazer os mais profundos desejos da
carne e da alma. Garantiu que a ameaça de morte era vazia e que, tendo
os olhos abertos para conhecer o bem e o mal, seriam exaltados à
semelhança de Deus (Gn 3.4s.). As mentiras foram acompanhadas por
uma apresentação atraente (a árvore era boa para se comer, agradável
aos olhos e desejável para dar entendimento, v. 6) e uma plausível
explanação da proibição (Deus sabe o resultado e não quer que Suas
criaturas sejam como Ele, v. 5). É de profunda importância notar que a
bondade e inocência do casal não os protegeram. A Sra. Jesse Penn Lewis
conta como o avivamento no País de Gales, no início deste século, foi
neutralizado por uma invasão demoníaca.

1. F. R ienecker C. Rogers, Chave Lingüíslica do Novo Tèstamento Grego (São Paulo: Vida
Nova), 1988* p. 38.
2. J. R Lewis, W arm the Saints (Bournemouth: The Overcomer), 1912.

-95-
o MUNDO, A CARNE E ODIABO

Paulo declara que Satanás enganouEva com a sua astúcia (2 Co 11.3).


A palavra “enganou” (gr. exêpafêsen) sugere não simplesmente iludir, mas
enganar totalmente. Eva não mostrou nenhuma hesitação diante de
tamanha astúcia (gr. panourgia, “dolo”, “maquinação”, “truque”, cf. Ef
4.14).^ Ê verdade que Adão não foi enganado (1 Tm 2.14) quanto aos
efeitos imediatos, mas certamente não procurou saber as conseqüências
globais da sua desobediência.
Satanás exemplifica no seu caráter a totalidade do engano. João
relata que ele é “o sedutor de todo o mundo” (gi.plariõn, o tempo presente
indica uma ação contínua), que foi expulso do céu (Ap 12.9). Após ficar
preso por mil anos no abismo selado, o diabo sairá da sua prisão e
novamente seduzirá as nações nos quatro cantos da terra (Ap 20.7s.). Seu
propósito não mudará nem um grau. Foi mentiroso no princípio (Jo 8.44)
e continuará até o fim. Gera mentiras, assim como poços de água parada
geram micróbios. Propaga falsas idéias com astúcia para alcançar seus
objetivos. Mesmo quando homens inteligentes percebem que foram
iludidos, continuam crendo nas novas falsidades promulgadas pelo pai da
mentira.
Se a habilidade de Satanás para enganar fosse limitada aos seus
adeptos, a conseqüência não seria tão catastrófica. Mas podemos imaginar
a satisfação que tem o demônio quando se transforma em anjo de luz (2
Co 11.14) para iludir os mais instruídos. Não hesita em vestir uma
roupagem santa para confundir os que carecem de discernimento. Ele
comparece aos cultos dos crentes para inculcar suas idéias nefastas. Por
isso, o apóstolo Paulo ordena que, na igreja de Corinto, falem apenas dois
ou três profetas e os outros julguem (1 Co 14.29). Se Satanás não tivesse
acesso aos cultos, não havería necessidade de avaliar as mensagens. A
frase “se alguém se considera profeta ou espiritual” (v. 37) também aponta
para o perigo de autoproclamação de um ministro que se diz mensageiro
de Deus, (mando de fato é porta-voz do inimigo. Por essa razão, João
manda que as igrejas provem os espíritos para discernir se vêm de Deus

1. F. Rienecker, cp. c it, p. 361.

- 96-
A S ESTRATÉGIAS SATÂNICAS

OUdo demônio (1 Jo 4.1). A apostasia das igrejas acontece porque não se


reconhece que os espíritos enganadores espalham suas doutrinas
demoníacas, sem que os fiéis percebam a falsidade (1 Tm 4.1).

Ignorância e Cegueira
Mantendo os homens ignorantes acerca dos seus métodos de
atuação, Satanás tem uma enorme vantagem na sua batalha pelas almas.
Os incrédulos são mantidos em cegueira espiritual (2 Co 4.4). Disse Vitor
Hugo: “Um bom general deve penetrar no cérebro do seu inimigo”.^
Enquanto o diabo puder manter os homens ignorantes acerca da
seriedade da condição em que se encontram, nenhuma mensagem os
libertará. Mesmo dentro da comunhão dos santos há oponentes que
necessitam da disciplina: “... na expectativa de que Deus lhes conceda não
só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade, mas
também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo
sido cativos por ele, para cumprirem a sua vontade” (2 Tm 2.25s.).
Enquanto Deus não opera o maior dos seus milagres, convertendo os
perdidos das trevas para a luz, da potestade de Satanás para Ele (At 26.18),
o inimigo continua assenhoreando-se de suas vítimas. Nota-se que a arma
mais útil é a ignorância: privar os homens de fatos que lhes dariam sensatez
e sabedoria.
O neófito no pastorado incorre em um perigo enorme. Sendo frágil
de corpo e de mente, se ensoberbece e cai na condenação do diabo (1 Tm
3.6). Ao jovem, muitas vezes, falta mais do que experiência. Carece da
humildade que os problemas da vida inculcam. Esse tipo de ignorância,
distinta da inteletual, dá a Satanás uma brecha para subjugar o novel
ministro. Mas raras vezes o pregador sincero tem consciência de sua
necessidade. Se conhecesse a verdade, seria libertado (Jo 8.32), mas o
diabo coloca uma cerca de trevas em volta dele, de modo que não encontre
a gloriosa liberdade dos filhos de Deus.

1. J. O. Sanders, op. cit, p. 72.

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o MUNDO, A CAJRNE E O DIABO

Engano, Ilusão e Valores Invertidos


Seguramente, nenhuma flecha infernal alcançou mais vítimas do que
a falsa premissa. As investidas satânicas contra seus próprios seguidores
e os filhos de Deus são notórias na Bíblia.
Satanás emprega idéias “universalmente aceitas” para convencer os
homens de que as suas sugestões ardilosas são válidas. Considere o
exemplo de Pedro, que emprestou sua mente e língua ao diabo,
tornando-se pedra de tropeço para Jesus (Mt 16.23). Convencido, como
todos nós, de que salvar a vida do seu amado mestre era o supremo bem,
Pedro caiu na armadilha. Se Jesus tinha pré-conhecimento de sofrimentos
vergonhosos e mortais, para Pedro, a conclusão era indiscutível: salvemos
0 bom Jesus das mãos dos seus inimigos. “Tem compaixão de ti. Senhor;
isso de modo algum te acontecerá” (v. 22). A premissa de que o anjo da
luz se aproveitou é bem evidente. Evitar o sofrimento e a morte, quando
possível, seria a suprema prioridade. Assim declara o jovem moderno
emancipado: “Não posso imaginar qualquer motivo ou obrigação que me
leve a colocar a vida em risco, seja na guerra ou na selva africana”.
Pedro cogitava as coisas dos homens, não as de Deus (v. 23). Por isso
foi o alvo das palavras: “Arreda! Satanás” (Mc 8.33). Se tivesse sugado com
mais compreensão os planos de Deus revelados nos profetas (SI 22, Is 53,
Zc 13), o primeiro discípulo teria resistido mais eficazmente à investida de
Satanás.
Alguns meses depois, Pedro sucumbiu novamente diante da mesma
artimanha do diabo. A advertência do Senhor, de que Satanás o tinha em
mira para peneirá-lo como trigo, nem sequer penetrou na cabeça da
“rocha” (Lc 22.31). Não vigiou nem orou (Lc 22.40). Um engano
convincente destituiria Pedro de toda defesa. A criada da casa do
sumo-sacerdote o apontou como um possível membro do colégio
apostólico (Lx 22.56). Outras fizeram-no sentir o perigo que corria.
Naqueles instantes após a prisão de Jesus, a pele de Pedro parecia mais
preciosa do que uma confissão de colaboração com um inimigo do
governo. Minutos antes, o primeiro discípulo estava pronto para partir as

-9 8 -
A S ESTRATÉGIAS SATÂNICAS

cabeças dos inimigos do seu Mestre (Jo 18.10). Mas, uma vez que Jesus se
entregou mansamente, não lhe parecia imperativo manter sua confissão
de lealdade. Afínal de contas, ninguém tem muito entusiasmo em entregar
a vida por uma causa perdida. Explodir a premissa lançada por Satanás e
abraçada pelo mundo: este é o caminho que Pedro rejeitou. Os mártires
venceram o Acusador, porque, “mesmo em face da morte, não amaram a
própria vida” (Ap 12.11). Mas, infelizmente, o inimigo muitas vezes nem
precisa piovar que evitar a tribulação e o martírio devem constituir o
supremo bem. Se, contudo, aceitarmos essa premissa, qual será nossa
defesa em situações parecidas?
Judas Iscariotes foi vencido por uma armadilha semelhante (Jo 13.2,
“tendo posto o diabo no coração de Judas... que traísse a Jesus”; cf. Lc
22.3). Quando esse discípulo finalmente percebeu que Jesus não
tencionava lutar contra seus inimigos nem liderar qualquer movimento
que o estabelecesse no poder, ficou profundamente decepcionado. Se o
Senhor não ia assumir o domínio político, para que todo aquele sacrifício
e perigo? Justificou a traição com base na atitude generalizada: um
movimento que não tem condições de prosperar não merece suor nem
sangue. Pelo contrário, “é justo” tirar alguma vantagem enquanto há
tempo.^
Hoje, Satanás vence facilmente o jovem que valoriza a opinião da
maioria. “Todos estão fumando maconha.” “Não há ninguém que não
aproveite a possibilidade de ‘colar’ numa prova.” “Qualquer indivíduo
sabe que é burrice pagar o imposto de renda integralmente.” “Ninguém
faz assim, se não precisar.” “Quem não leva a namorada para um motel?”
“Ninguém desliga a TV quando está passando um filme cativante,
qualquer que seja a mensagem transmitida.”
Ananias e sua mulher. Safira, se entregaram à sugestão de Satanás
com certa facilidade, não pelo fato de a hipocrisia ter se generalizado na
comunidade de JerUsalérn (At 5.1-9). Parece que o diabo encheu-lhes o
coração, aproveitando-se de um diálogo em que o casal se congratulava

1. Cf. a idéia de Satanás em Jó 1.9-11: não é debalde que Jó confia em Deus.

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o MUNDO, A CARNE E O DIABO

pela sua própria disposição generosa de dar uma grande oferta para o
fundo de assistência aos pobres da igreja. Não ficariam gratos os apóstolos
e os necessitados em receber esse dinheiro como um favor? A decisão de
reservar uma parte do dinheiro, enquanto levavam a igreja a pensar que
haviam entregado tudo, seria uma mentira “branca”, tão sem importância
que não pesaria na consciência. Prejuízo, ninguém sofreria. Ganhariam
status e encorajariam outros donos de propriedades a vendê-las e entregar
tudo aos apóstolos.
Satanás encoraja este tipo de racionalização. Quando os benefícios
são grandes e a mentira não prejudica o próximo (“não mentiste aos
homens”), engole-se o veneno com pouca resistência.

A Armadilha das Escrituras Torcidas


Não é de admirar que Satanás aproveite outro método para derrubar
os fiéis. A Bíblia torna-se arma em suas mãos para conseguir seus
objetivos. Temos um exemplo notável na tentação de Jesus. Satanás
sugeriu que Ele se atirasse do pináculo do templo, um prodígio que
convenceria a população judia a confiar nEle como o Messias. O diabo
não deixou de logo citar o Salmo 91.11s., onde se encontra a promessa de
que Deus ordenará aos Seus anjos que guardem os justos. Não protegeria
muito mais Seu Filho encarnado de qualquer ferimento? Além disso, não
promoveria a glória de Deus em Israel, desmoralizado diante da
subjugação a Roma? Mas aí está: o salmista não ousou dizer que os que
crêem em Deus devem se atirar dos penhascos, beber veneno ou pular
numa cova de leões (cf. SI 91.13). Não são os santos que escolhem os
perigos, mas é Deus quem os manda ou permite que Satanás ataque (cf.
2 Co 12.7). Por isso, Jesus desmascarou o diabo, declarando que também
está escrito: “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Mt 4.7; Lc 4.12).
Se o demônio achou que até Jesus seria suscetível às interpretações
e aplicações vantajosas das Escrituras à Sua vida, quanto mais os crentes

1. Uma igreja da Am érica do Norte ousadamente agarra serpentes venenosas nos seus
cultos tumultuados para provar que crê literalmente em M c 16.18.

- 100 -
AS ESTRATÉGIAS SATÂNICAS

que lêem pouco a Bíblia e a entendem meíios ainda. Jesus apontou a falha
dos saduceus que negavam a doutrina da ressurreição: “Não provém o
vosso erro de não conhecerdes as Escrituras?” (Mc 12.24). Por outro lado,
os cristãos que seguem o exemplo dos bereanos, que “receberam a palavra
com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as
cousas eram de fato assim” (At 17.11), têm vantagem absoluta no conflito
com o diabo. Em Corinto, os falsos apóstolos e obreiros fraudulentos, que
Paulo tachou de “ministros de Satanás” (2 Co 11.13-15), empenhavam-se
em torcer as Escrituras de acordo como o modelo do seu tutor. Havia
muitos pregadores “cristãos” que “mercadejavam a palavra de Deus” (2
Co 2.17).^ Apresentavam-se como àpóstolos de Cristo (11.13), mas sua
mensagem enganadora, ao invés de salvar, condenava. “O fim deles será
conforme as suas obras” (11.15). O termo “mercadejar” quer dizer lucrar
com um negócio desonesto. Na tradução grega do Antigo Testamento
(Septuaginta), em Isaías 1.22 usa-se o mesmo termo para designar os que
enganam os compradores, misturando agua ao vinho. Uma interpretação
da Bíblia pode dar lucro ao enganador. Casos há em que colaboradores
plantados na congregação fingem doenças graves ou se apresentam como
aleijados. Na hora da mensagem e da oração são “curados” e, assim, apelos
por contribuições são recebidos muito mais favoravelmente.
Os cristãos que não treinam para usar corretamente a espada do
Espírito e não confiam plenamente nela não têm chance frente a Satanás.
Existe toda espécie de seitas que convencem seus adeptos pela deturpação
da Bíblia. As Testemunhas de Jeová citam certos textos da Palavra como

1. Judeus munidos de “cartas de recomendação” com nomes ilustres de Jerusalém


conseguiram se infdtrar na igreja de Corinto, como anjos de luz (cj. 2 Co 11.14).
2. F. Rienecker e Rogers, op. cit., p. 339.

- m -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

se eles fossem os próprios autores da Bíblia. Mas nem por isso escapam
da armadilha satânica, torcendo aquilo que o texto realmente diz. O Livro
de Mórmom interpreta a Bíblia e acrescenta acontecimentos fictícios a
ela, a ponto de obscurecer completamente o caminho da salvação. Na
Idade Média, a Igreja de Roma chegou a proibir os cristãos de lerem a
Bíblia, já que a tradição tinha se afastado muito da verdade e da
simplicidade das Escrituras.^ É incontestável que os falsos profetas a
serviço do Enganador precisam de pouca astúcia para desviar os santos
rumo aos “ensinos de demônios” (1 Tm 4.1), quando eles têm
conhecimentos tão superficiais da doutrina bíblica.
Pela parábola do semeador, Jesus ensinou que é Satanás quem tira
a palavra semeada nos corações humanos (Mc 4.15). A leitura das
Escrituras sem compreensão ou seriedade facilita a ação diabólica. Se a
mensagem da Bíblia não germina nem lança raízes, o resultado é a
formação de um cristianismo sem defesas e carente de frutos. A parábola
do joio nos alerta para o perigo que está no meio do campo do Senhor (Mt
13.17-39; note: “o inimigo que o semeou é o diabo”). O Senhor explicou
em Sua interpretação que o joio representa “os filhos do maligno” que
aparecem no meio do trigo, “os filhos do reino”. Os emissários de Satanás
influenciam o campo, agindo de acordo com o plano global de prejudicar
ao máximo o projeto divino que Jesus tinha em vista quando declarou:
“Edificarei a minha igreja” (Mt 16.18).

1. Agostinho relata que, no seu tempo (séc. lY V ), as “Escrituras Divinas tinham chegado
às mãos de todos” (Carta 232, vol. ii, ed. de Clark, citada em Dictionary of Antiquities,
vol. 2, p. 1859). Durante os primeiros três séculos da era cristã, encontramos um apelo
uniforme às Escrituras com o “fonte inerrante da fé e fundamento dos vários credos
compostos naquele período”, ibid. Mas no século XIII, o papa Inocêncio III decretou
a proibição da leitura da Bíblia. Não é de admirar que a Igreja logo estaria queimando
seus melhores membros, tais como Wycliffe (1329-1384), João Hus (1373-1415) e
Savonarola (1452-1498).

- 102 -
A S ESTRATÉGIAS SATÂNICAS

As Armadilhas dos Prodígios, do Poder e da Prosperidade


A primeira vinda de Jesus Cristo à terra foi marcada com reações de
Satanás e seus aliados, os anjos rebeldes. Muitos acontecimentos, tais
como o massacre das criancinhas de Belém (Mt 2.16) e a decapitação de
João Batista por Herodes, a pedido de Herodias (Mt 14.1-12 e paralelos),
seguramente devem ser atribuídos às suas influências sobre reis e
governantes que se submeteram a ele, mesmo que a Bíblia não as afirme
especificamente (c/ Ef 6.12).
As freqüentes manifestações demoníacas foram reações satânicas
contra a vinda de Jesus ao mundo onde o diabo domina.^ O gadareno se
chamava “Legião” por causa dos muitos demônios que nele residiam (Lc
8.30).^ Os demônios conheciam a identidade de Jesus sem que ninguém,
lhes informasse. Vemos suas atuações em casos de mudez (Mt 9.32s.;
12.22; Mc 9.17-29), cegueira (Mt 12.22), deformidade (Lc 13.11,16, uma
mulher “a quem Satanás trazia presa há dezoito anos”), loucura, suicídio
(Mc 9.22). O poder destruidor do diabo se concentra em seu domínio sobre
a morte (Hb 2.14). Satanás manipula seus súditos principalmente pelo
temor que a ameaça do extermínio suscita.
Ele exerce poder por meio dos seus aliados, como o “príncipe do
reino da Pérsia” (Dn 10.13) e da Grécia (Dn 10.20). Toda manifestação de
poder sobrenatural atrai e subverte os homens que estão presos ao pecado
(At 26.18; Rm 6.16,19s.). O mágico Simão iludia o povo supersticioso de
Samaria. Suas mágicas eram atribuídas ao “poder de Deus” (At 8.10), mas,
na realidade, eram o poder do Maligno. Simão se orgulhava de ser
chamado “o Grande Poder”. Até se manifestar o poder real de Deus por
intermédio de Filipe, a ilusão satânica convencia a população.
Quando Paulo quis visitar os tessalonicenses. Satanás barrou-lhe o
caminho (1 Ts 2.18). Josué, o sacerdote, enfrentou o poder da oposição do

1. C. F. Dickason, op. cit., p. 187.


2. M c 5.3 revèla a força sobrenatural do endemoninhado. Conseguiu levar 2.000 porcos
ao suicídio (v. 13).

- 103-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

diabo diante do anjo do Senhor (Zc 3.1). Foi com muita razão que Jesus
descreveu o demônio como “o valente” (Mt 12.29).
O poder de Satanás se faz presente na falsidade. O que é real pode
ser falsificado, seja dinheiro, sejam pinturas ou assinaturas. O diabo
também falsifica os dons do Espírito, especialmente os dons de línguas e
curas. Os milagres nem sempre são operações gloriosas de_De]^ _a
despeito da teologia popular (Jo 9.16,33). Paulo profetiza acerca da vinda
do iníquo, “segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e
prodígios da mentira” (2 TS 2.9). Essa força sobrenatural exercida pelo
anticristo (“o iníquo”), revestido de poder pelos anjos rebeldes a serviço
de Satanás, convence o mundo incrédulo com maior eficiência. A eficácia
de Satanás, operando por intermédio dos milagres mentirosos do “filho
da perdição”, persuade o mundano pelo “engano da injustiça” (2 Ts 2.10).
Provavelmente é o mesmo “iníquo” que João descreve, em
Apocalipse 13, como a “besta que emerge da terra”. Parecia cordeiro, mas
falava como dragão, exercendo toda a autoridade da primeira besta (“o
anticristo”). Trata-se do falso profeta (c/. Ap 20.10), que opera grandes
sinais para seduzir os que habitam na terra (Ap 13.13s.). Os espíritos
imundos que saem da boca do falso profeta também operam milagres
(“sinais”, Ap 16.13s.).
A maléfica sutileza satânica não se esconde apenas nas persuasivas
manifestações de poder e prodígios, mas nas feridas auto-infligidas. As
palavras de Os Guiness são bem apropriadas: “Nosso inimigo real hoje
não é o secularismo, nem o humanismo, nem o marxismo, nem qualquer
das grandes religiões rivais do evangelho cristão, nem a modernização,
mas nós mesmos. Nós, os cristãos ocidentais, somos simplesmente um caso
especial da condição humana universal que Pascal apontou: ‘Jesus Cristo
vem para dizer aos homens que eles não têm outros inimigos senão eles
mesmos’. Ou como vemos mais recentemente: ‘Nós encontramos o
inimigo e este somos nós’.”^

1. Os Guiness, The Gravedigger File: Papers on the Subversion of the Modem Church
(Downers Grove: Inter-Varsity), 1983, p. 14.

104
A S ESTRATÉGIAS SATÂNICAS

Através dos séculos, a tão divulgada acusação levantada pelo Aiatolá


Khomeini: “Os Estados Unidos são o Grande Satanás!”, encontra eco nos
pensamentos de pessoas mais equilibradas. Os puritanos da Europa e
América identificaram a Igreja Católica como o anticristo, tendo a
encarnação da personalidade do diabo manifestando-se na forma e no
poder da estrutura religiosa encabeçada pelo papa.^ Houve, no período
da Guerra Civil norte-americana, quem identificasse o Império Britânico
como aliado de Satanás.
Acredito que a vantagem que Satanás tira dessas sugestivas
identificações do inimigo político e religioso como o próprio diabo seja
principalmente a de deixar despercebidas as suas investidas disfarçadas
em nossas próprias vidas, igrejas e movimentos. Este é o perigo que
corremos quando fechamos os olhos e apoiamos uma organização como
o Conselho Mundial de Igrejas, que admite todo e qualquer credo ou
pensamento vagamente cristão.
A tolerância dos nossos dias abre a porta para a admissão de
afirmações perigosas. Considere, por exemplo, as declarações de
tele-evangelistas, tais como Paulo Crouch: “Eu sou um deus pequeno”, e
Kenneth Copeland, do Texas, nos Estados Unidos: “O homem foi criado
para ser o deus deste mundo”. O diabo se orgulha em dividir essa posição
(2 Co 4.4) com os homens, conquanto isso subverta a unidade e majestade
do Deus único. O decano dos promotores da doutrina dos pequenos
deuses é um conhecido pregador de rádio chamado Kenneth Hagin, que
não teme blasfemar: “Você é uma encarnação de Deus, tanto quanto Jesus
de Nazaré”.^
Toda aberração teológica, assim como escândalos morais e
transgressões da lei de Deus, aponta para uma vitória de Satanás. Assim,
o povo de Deus se rende, ainda que inconscientemente, aos pés do falso

1. Veja James A. Patterson, “Changing Images of the Beast”,/ow m a/ o f the Evangelical


Theological Society, vol. 331/4, dezembro de 1988, p. 444.
2. Ibid.
3. Richard N. Ostling, “H eresy on the Airwaves”, Time, 5 de março, 1990, p. 46, citando
o livro The Agony o f Deceit, ed. M. Horton, (Chicago: Moody), 1 ^ .

- 105-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

deus deste mundo, formando-se uma harmonia inconsistente entre o


Maligno e Cristo (2 Co 6.15).
Quem não sente atração pelo poder, aquela satisfação que surge no
coração do jovem pastor bem sucedido ao notar a repercussão do seu
ministério? Ele pode interpretar a evidente prosperidade do seu trabalho
como confirmação do merecido favor divino. Não trabalha mais do que
seus colegas? Não se esforçou mais no preparo de mensagens, na
programação e no planejamento inteligente? Quem lembraria ao
complacente servo do Senhor que a prosperidade é uma ameaça mais
perigosa do que as provações calamitosas que Jó enfrentou? O Pr. Robert
Schuller promove o mesmo evangelho do pensamento positivo do Pr.
Norman Vincent Peale. Disse Schuller: “O cerne do pecado é a falta de
auto-estima”, e certamente isto está muito longe do que Agostinho
entendia ser pecado original.
Satanás abraça com seus braços infernais os que não tomam
precaução diante das tentações que acompanham a prosperidade. A Jesus
ele ofereceu toda a autoridade e glória dos reinos do mundo (Lx 4.6). As
“riquezas e deleites da vida” são tão eficazes em sufocar a semente que
caiu entre os espinhos, assim como as perseguições e oposições de
inimigos... (Lc 8.14).

- 106 -
o Ataque e a Defesa do Cristão

Introdução
Para vencer as ciladas satânicas é preciso uma compreensão bíblica
de luta e defesa. Estratégias eficazes precisam ser identificadas e
praticadas. Jesus utilizou uma defesa modelar quando enfrentou a
tentação do adversário no deserto. Ele reconheceu tanto a origem da
tentação como o seu objetivo. Em Sua perfeita defesa, Cristo elevou a
autoridade da Bíblia acima da racionalização e dos interesses humanos.
“Está escrito...” bastava para encerrar qualquer discussão. A Bíblia
inspirada, corretamente interpretada, deve ser a última palavra em
qualquer discussão travada com Satanás.
A Bíblia apresenta eficientes meios para resistir ao leão que ruge.
Nas páginas seguintes, selecionamos alguns deles para orientar melhor os
guerreiros de Deus.

Amarrar o Homem Forte (o Maligno)


Jesus foi alvo de blasfêmia e zombaria da parte de alguns judeus que
atribuíam o poder de expulsar demônios à Sua colaboração com Satanás.
O Senhor argumenta que, se assim fosse, o reino diabólico não perduraria.
Pelo contrário, é o dedo de Deus que expulsa demônios eficazmente (Lc
11.20). Mateus traz “o Espírito de Deus” (12.28) no texto paralelo. Um
guerreiro valente, que guarda sua própria casa, não teme um adversário,
a não ser que ele seja “mais valente”. Este título representa o próprio Filho
de Deus que “vence-o, tira-lhe a armadura em que confiava e lhe divide
os despojos” (Lc 11.21s.). Jesus, cheio do Espírito Santo (Lc 4.1, 14),
demonstrou, com Sua vitória, uma força maior que a do diabo. Era o poder
do “reino de Deus que certamente é chegado sobre vós” (Lc 11.20).
- 107-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

A chegada do reino, ou melhor, do “reinado” na pessoa de Jesus,


equivale a uma intervenção poderosa de Deus. Pelo Seu Espírito, Ele
domina o chefe e liberta da prisão satânica os cativos. Mas se aquele que
outrora estava preso não aproveitar a presença do Espírito para manter
sua liberdade (w. 24-26), a reocupação da casa pelos espíritos malignos
será rápida e intensa. “O último estado daquele homem se torna pior do
que o primeiro” (Lc 11.26). Concluímos que, na luta contra o diabo, uma
vitória temporária pode se tornar uma derrota maior a longo prazo.
Fidelidade é essencial.
Para algemar o demônio é necessário que haja uma intervenção de
Deus na pessoa do Espírito (Mt 12.28). Mas as áreas da vida humana que
não estiverem sob o Seu controle estarão sujeitas a serem reconquistadas
pelo valente Satanás. Toda vitória vem de Deus, mas a derrota é nossa.
Por isso, é de máxima importância pedir o enchimento do Espírito (Lc
11.13; Ef 5.18), que é a estratégia prioritária nesta guerra espiritual.

Não Dar Lugar ao Diabo (Ef4.27)


“Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira, nem
deis lugar ao diabo” (Ef 4.26s.). Lutar com sucesso contra este inimigo
infernal requer uma ampla compreensão deste curto versículo. No
contexto, Paulo faz transparecer que um crente concede espaço livre para
Satanás operar dentro de si e na igreja, sempre que a ira persiste no seu
íntimo mais do que poucas horas. Não pecamos, necessariamente, cada
vez que ficamos zangados (Ef 4.26). Entretanto, a ira santa provocada por
injustiça, opressão ou maldade qualquer não deve fazer ninho na alma.
“Não se ponha o sol sobre a vossa ira” é uma advertência contra qualquer
irritação que suscite ódio ou desejo de vingança (cf. Rm 12.19s.).
Qualquer ira guardada de um dia para outro transforma-se em um
campo arado e fertilizado para o diabo semear sua erva daninha.
“Abandona o furor; não te impacientes; certamente isso acabará mal” (SI
37.8). Este é um conselho bíblico que, ao ser rejeitado, traz tristeza eterna.
“Melhor é o que domina o seu espírito do que o que toma uma cidade”
(Pv 16.32). O homem que permite que sua alma se torne presa da ira está

- 108 -
o ATAQUE E A DEFESA DO CRISTÃO

sujeito ao julgamento (Mt 5.22).


A brecha criada pela ira prolongada é uma porta para o diabo entrar
e agir. Considere as implicações da ira prolongada que convenceu Absalão
a assassinar Amnon, seu irmão. Note a prolongada ira de Davi contra
Absalão que resultou em guerra do filho contra o pai. Vemos, no fim, a
inconsolável tristeza que Davi suportou ao receber a notícia de que seu
filho Absalão tinha morrido (2 Sm 18.32-19.10).
O furor de Satanás contra Deus, ao ser expulso do céu (Ap 12.12),
explode, pouco disfarçado, nas igrejas que ele consegue dividir. A guerra
que se trava entre irmãos que outrora se amavam não tem explicação
humana. De repente, um agride o outro que, por sua vez, fica ofendido.
Daí, passam a desenterrar toda a sujeira até então esquecida, lançando-a
um contra o outro. Assim, damos ensejo para Satanás sentir o orgulho de
afogar a graça de Deus. Os corações dos “irmãos” inimigos abrigam o ódio
que transformou o arcanjo em um dragão cruel.
Por isso, o sábio Paulo aconselhou os coríntios a perdoarem o
pecador que ele mesmo perdoara. O pecado daquele cristão deve ter sido
muito grave. Mas Paulo não cogita correr o risco de ver Satanás alcançar
“vantagem sobre nós, pois não lhe ignoramos os desígnios” (2 Co 2.10s.).
Bem-aventurados são os irmãos que criam o hábito de manter a postura
recomendada por Paulo. O caminho bíblico afasta “toda a amargura e
cólera, e gritaria, e blasfêmias, e bem assim toda malícia”. Antes, os
membros devem ser benignos e compassivos, perdoando-se uns aos outros
como também Deus em Cristo os perdoou (Ef 4.31s.). Em tal igreja,
família ou coração, o diabo não tem lugar.
Esquecemos que nossa luta não é contra carne e sangue (Ef 6.12),
mas contra Satanás e seus aliados. A agressividade que marca as
controvérsias sobre práticas e doutrinas da igreja, na maioria das vezes, é
mal direcionada. Matamos a nós mesmos, em vez do inimigo. “Matais e
invejais”, declara Tiago (4.2), chamando nossa atenção para o erro

- 109-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

desastroso que é balear a mãe, sem ver o agressor real.^ Nas discussões,
debates e disputas, toda nossa indignação deve se voltar contra as forças
invisíveis do mal. Foi para isso que Deus nos dotou de agressividade.

Reivindicar a União com Cristo


Um dos objetivos da vinda de Jesus Cristo ao mundo foi “destruir as
obras do diabo” (1 Jo 3.8). Foi na cruz que se travou a batalha principal.
Os principados e potestades (provavelmente os mais poderosos servos na
hierarquia do Maligno) caíram em confusão diante dessa investida. Paulo
declara que foram despojados quando Cristo “publicamente os expôs ao
desprezo, triunfando deles na cruz” (Cl 2.15). Pela sua morte vicária, nosso
Senhor aniquilou o poder de Satanás sobre suas vítimas que, em seguida,
passaram a pertencer a Jesus (Ef 4.8). O infinito poder de Deus que
ressuscitou Jesus dentre os mortos e o fez “sentar à sua direita... acima de
todo principado, e potestade, e poder, e domínio e de todo nome...” é o
mesmo poder que constantemente levanta os mortos em delitos e pecados
(Ef 1.19-21; 2.1-6). Quando Deus incluiu os cristãos nos acontecimentos
salvíficos, o domínio de Satanás também foi atingido. O cristão outrora
“andava segundo o príncipe da potestade do ar” (Ef 2.2); agora anda em
novidade de vida, porque está “em Cristo”.
A realidade da vida vitoriosa sobre Satanás deve ser atingida
unicamente pela fé; “Não sou eu quem vive” (G1 2.20) abre espaço para
a verdade de que “Cristo vive em mim”. O Senhor venceu o diabo
totalmente. Esse fato, por ser real, deve servir de base para a afirmação
da nossa fé. Posicionalmente, nossa vitória sobre Satanás é fato
consumado. Na experiência do dia a dia, podemos aproveitar a vitória de
Cristo, crendo nisso e considerando reais os fatos declarados na Bíblia
(Rm 6.11).
Esta aplicação da experiência da vida de Jesus Cristo deve nos dar
um recurso valioso para vencermos o pecado e, por meio dele, o demônio.

1. D e fato, isso aconteceu recentemente numa reserva d e indígenas Mohawk no estado


de Nova Iorque, E U A . Time, 14 de maio, 1990, p. 15.

- no-
o ATAQUE E A DEFESA DO CRISTÃO

Satanás “vive pecando desde o princípio” (1 Jo 3.8). A prática


descontraída do pecado demonstra claramente que o pecador é do diabo.
Mas se Jesus realmente venceu Satanás pela Sua morte e ressurreição
expiatórias, o poder da Sua vida deve se manifestar em nós pela santidade.
Vencer o pecado é derrotar o diabo. Render-se ao pecado é ser vencido
pelo demônio.

Vestir Toda a Armadura de Deus (Ef 6.10-18)


De acordo com o conhecido trecho de Efésios, sabemos que nossa
luta não é contra pessoas físicas (“carne e sangue”), mas contra
inteligências desencarnadas que dominam as trevas do mundo. Essas
“forças espirituais do mal” (Ef 6.12) tornam efetiva a força presente de
Satanás.^ Quem cai diante delas é vencido pelo diabo.
A vitória é nossa se resistirmos no dia mau (v. 13), após vencer tudo
que destruiria nossa fé. Se os nossos inimigos infernais são tão numerosos
e cheios de poder (e.g., “potestades, dominadores deste mundo”), há
certeza absoluta de que qualquer resistência contra eles será inútil, a não
ser que estejamos vestidos com toda a armadura {gr. panóplia) de Deus.
As trevas são ineficazes contra as armas fornecidas por Deus.

1. M. F. Unger opina que existem duas classes de demônios; “... os que estão livres e os
que estão presos. A queles se movimentam livremente nas regiões celestiais com seu
príncipe e líder Satanás (Mt 12.24) e, como emissários deste, são tão numerosos que
tornam quase universal o poder exercido por ele”. Enciclopédia Histórico-Teolóffca da
Igreja Cristã, ed. W. A. Elwell, trad. G. Chown, (São Paulo: Vida Nova) vol. III, 1991, p.
351.

111 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO
As peças são de origem celestial de tal forma que, só de vesti-las,
aproveita-se o socorro sobrenatural necessário para vencer. As táticas dos
1
antagonistas iníquos são tanto intimidação como insinuação.

O Cingir-se com a Verdade


Em primeiro lugar, deve-se colocar o cinto da verdade. Não e
possível determinar se Paulo se refere à veracidade da doutrina ou à
honestidade. Nem é necessário separá-las. A verdadeira fé cria
a
sinceridade no íntimo . A fidelidade tem suas raízes na inabalável
convicção de que a Palavra é a revelação vinda de Deus. O pai da mentira
sente-se enfraquecido diante da verdade pura. A certeza de coisas
esperadas solidifica a defesa contra toda investida do inimigo cruel. Os
filhos de Deus cingidos com a verdade se apresentam no meio de uma
geração pervertida e corrupta como luzeiros resplandecentes no mundo.
O avanço dos projetos satânicos necessita de trevas, máscaras de
hipocrisia. Ele oculta seus objetivos. Por isso, a verdade tem o inegável
valor de bloquear as intenções do Maligno. Para permanecermos
inabaláveis (Ef 6.13), necessitamos da confiança que se firma na
comprovada revelação de Deus.

A Couraça da Justiça
Em segundo lugar, deve-se amarrar a couraça da justiça em volta do
coração e de todos os órgãos vitais. A “justiça” pode ser aquela imputada

1. E. K. Simpson, Commentary on the Epistles to the Ephesians and the Colossians (Grand
Rapids; Eerdmans), 1957, p. 145. For isso, as armas de resistência devem ser ativas e
passivas. Paulo as chama de “armas da justiça {dikaíSsynt) da direita e da esquerda”
(2 Co 6.7). Antigamente atacava-se com a espada na mão direita e se defendia com o
escudo no braço esquerdo. A s peças de proteção do corpo são, evidentemente, armas
de defesa contra o ataque satânico. É fácil imaginar o apóstolo aplicando a idéia da
armadura romana, pois e le passou muitos dias e noites algemado aos guardas
pretorianos {çf. Fp 1.13).
2. A primeira vitória de Satanás no jardim foi conquistada através de mentiras e
insinuações. Cf. J. O. Sanders, op. cit.,p. 93.
3. Cf. E. K. Simpson, op. cit., p. 146.

- 112 -
o ATAQUE E A DEFESA DO CRISTÃO

por Deus (Rm 3.26; 4.3) ou a que se pratica em decorrência da novidade


de vida recebida pela Sua graça. A maioria dos intérpretes crê que Paulo
indicava a justiça praticada pelos cristãos, que não andam “segundo a
carne, mas segundo o Espírito” (Rm 8.4), isto é, uma boa consciência
diante de Deus e dos homens (At 23.1). Mas não se deve imaginar que a
justiça praticada pelo homem pode resistir à ofensiva satânica com a
mesma eficiência que a justificação pela fé, que recebemos de Deus.
Por ser o acusador dos irmãos, parece vantajoso para o diabo apoiar
a interpretação que Lutero abraçava de Romanos 1.17 antes de sua
conversão. Ele entendia que “a justiça de Deus” no evangelho não era
nada mais do que a revelação da ira de Deus contra os pecadores.^ Em
suas próprias palavras, Lutero escreve:
“Finalmente, pela misericórdia de Deus, meditando dia e noite, eu
dei atenção ao contexto das palavras ‘nele (o evangelho) a justiça de Deus
se revela...’ como está escrito: ‘O justo viverá por fé’. Aí, comecei a
entender que a justiça de Deus é aquela pela qual o justo vive por dom de
Deus, isto é, pela fé. E é este o significado: a justiça de Deus se revela pelo
evangelho, quer dizer, a justiça passiva com a qual o Deus misericordioso
nos justifica pela fé... Então me senti como se tivesse nascido inteiramente
de novo e entrado no paraíso por portas bem abertas.”^ A principal
redescoberta da Reforma foi o fato de que a justiça divina é uma oferta
gratuita aos pecadores. Lutero desenvolveu esta preciosa verdade com
figuras: essa justiça alheia é como a galinha que cobre seus pintinhos com
suas asas (cf. SI 91.4).^
Durante séculos, o diabo conseguiu intimidar e aterrorizar os
cristãos, tirando-lhes o sossego que depende da segurança da salvação.
Nenhum guerreiro pode lutar efícazmente se não tiver confiança {cf. Jz
7.3). A couraça da justiça, protegendo o torso, assegura ao lutador que ele

1. A . 'ÍAaícGTaÜí, Justification by Faith (Grand Rapids; Zondervan), 1988, p. 51.


2. Luther’s Works, 54 vols., (Filadélfia: Muhlenberg), 1956-76, 34:336-38, citado por A .
McGrath, ibid., p. 51.
3. A . McGrath, ibid, p. 52.

- 113 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

realmente nada tem a temer. Não vencemos o “leão que ruge” fugindo,
mesmo que seja na velocidade de um recordista olímpico. A vitória é
garantida aos que permanecem inabaláveis na fé (c/ Ef 6.13), sabendo que
os seus pecados foram transferidos para Cristo, enquanto Sua justiça foi
transferida para eles (2 Co 5.21; cf. Is 53.6). Compreende-se, assim, por
que Lutero escreveu a respeito da doutrina da justificação pela fé: “Não
se pode abrir mão ou fazer concessões em nenhum ponto desta doutrina...
Nela repousa tudo que ensinamos e praticamos contra o papa, o diabo e
o mundo”.^ Sem a couraça da justiça, o diabo facilmente vence o “cristão”.
Paulo relembra aos tessalonicenses que, por sermos do dia, não da
noite, devemos nos revestir da couraça de fé e amor (1 Ts 5.8). Não existe
nenhuma contradição entre os dois textos. A justiça só pode ser recebida
pela fé (Ef 2.5,8) e vivida no amor (G15.22; 1 Co 13.1-4).
No seu livro Mimosa, Amy Carmichael nos conta acerca de uma
menina indiana que escutou o evangelho de alguma missionária. Naquele
curto período entregou sua vida ao “novo Deus”. Seu pai a levou sem
demora, para que não ouvisse mais acerca da nova religião. Durante os 23
anos que se seguiram, ela buscou o Deus da Bíblia, sem o auxílio das
Escrituras ou de amigos. Perseguições terríveis, um casamento forçado e
a criação de quatro filhos num ambiente pagão não foram suficientes para
fazê-la fraquejar. Conseguiu pela graça de Deus voltar para a Missfão
Dohnavur. Os missionários ficaram atônitos ao verificarem como Deus
tinha guardado aquela mocinha. A fé e o amor a protegeram contra os
mais ferozes ataques do Inimigo, porque Deus lhe deu a Sua justiça.

P l Pêj^Çadçados com aj^reparação do Evangelho da Paz


A terceira peça da armadura de Deus consiste de sandálias ou botas
de guerra: a “preparação do evangelho” (gr. hetoimasia, equipamento de
navio; portanto, “equipados” ou “preparados”).^ O lutador faz tudo para
firmar seus pés, assim como um edifício alto precisa de alicerces seguros.

1. A . McGrath, ibid., p. 55.


2. E. K. Simpson, op. cit., p. 148.

- 114-
o ATAQUE E A DEFESA DO CRISTÃO

Além disso, os pés requerem conforto para as marchas longas. Tanto


Alexandre como Júlio César aproveitaram a chegada inesperada, antes da
hora, para surpreenderem seus inimigos; e essa era a causa central da
vitória. ^
O evangelho da paz (veja a fonte dessa frase em Isaías 52.7) supre o
coração de conforto e tranqüilidade. A paz de Deus significa guerra contra
Satanás. As boas novas de perdão dão presteza e mobilidade aos pés.
Pedro exorta seus leitores a sempre estarem “preparados para responder
a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós” (1 Pe 3.15).
Dar respostas convincentes (apologia) aos inimigos do evangelho foi um
dos meios mais eficientes de evangelizar e conduzir fílhos do diabo ao lar
de Deus.^

O Escudo da Fé
A quarta peça é o escudo da fé, que nunca deve ser largado (veja o
grego enpasin, em toda situação, “embraçando sempre”, Ef 6.16). Contra
uma chuva de flechas ou pedras, o escudo (o scutum romano) protegia
perfeitamente todo guerreiro que cuidava de colocá-lo entre si e o inimigo.
Os dardos, com suas pontas acesas depois de mergulhadas em piche, eram
armas formidáveis contra batalhões que careciam de escudos grandes, à
prova de fogo.
Satanás lança perigosíssimos dardos inflamados contra o espírito,
mas Paulo pensava principalmente nas perseguições (Pedro disse: “o valor
da vossa fé... apurado por fogo”, 1 Pe 1.7) que cercam os fiéis. Em
Apocalipse, João relata que, do “trono de Satanás”, situado em Pérgamo,
emanou o ódio que martirizou Antipas, uma testemunha fiel (Ap 2.13).
Pela fé, os heróis de Deus “fecharam bocas de leões, extinguiram a
violência do fogo, escaparam ao fio da espada... fizeram-se poderosos em
guerra... foram torturados, não aceitando seu resgate, para obterem

1. Ibid.
2. Ibid.
3. M. Green, Evangelização na Igreja Primitiva (São Paulo: Vida Nova), 1989^, pp. 94-178.

- 115-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

superior ressurreição; outros... passaram pela prova de escárnios e


açoites... algemas e prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo
meio, mortos ao fio da espada” (Hb 11.33-37). O autor de Hebreus
encoraja seus leitores judeus cristãos a manterem toda a sua confiança em
Deus. Na história de Israel, somente assim é que os dardos flamejantes
foram apagados. Isso também aconteceu com os crentes fiéis ao longo da
história da Igreja. A possibilidade de o diabo intimidar os cristãos diminui
na proporção em que aumenta a confiança que eles têm em Deus. “Sem
fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11.6). Maisainda,éimpossível resistir
às investidas de Satanás.
A Palavra de Deus nos previne contra toda idéia ingênua de que
Satanás já não tem acesso para nos atacar, porque fomos arrebanhados
no redil de Cristo. “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no
meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária
vos estivesse acontecendo” (1 Pe 4.12). Na carta do Senhor Jesus à igreja
de Esmirna, é predito que alguns cristãos serão presos para que sejam
provados; porém, não são culpados os homens, nem Deus, mas “o diabo”
(Ap 2.10). A verdade é que parece incompatível com o amor de Deus
permitir que Satanás lance seus dardos contra Jó e contra nós. Afinal de
contas, que direito tem o inimigo de Deus e do cristão de reclamar para
os peneirar como trigo (Lc 22.31)?
Somente na glória podemos esperar uma resposta completa. As
Escrituras, porém deixam transparecer alguma luz. Em primeiro lugar,
lembremos que somos filhos de Adão e, portanto, pecadores. Por isso, num
sentido real, somos aliados do diabo. Não é verdade que, muitas vezes,
encontramos inclinações mais fortes para nos aproximarmos dele do que
de nosso Pai?
Em segundo lugar. Satanás tem servido aos objetivos de Deus
inúmeras vezes, sem querer. Os sofrimentos que Jó atravessou acabaram
transformando um homem bom e piedoso num santo espiritual. Considere
a confissão de Jó: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos
te vêem. Por isso me abomino, e me arrependo no pó e na cinza” (Jó
42.5s.).

- 116 -
o ATAQUE E A DEFESA DO CRISTÃO

O mesmo resultado é observado na vida de Pedro, depois de ser


peneirado por Satanás. Tomou-se um homem convertido, capacitado para
fortalecer os seus irmãos (Lc 22.32) e apascentar as ovelhas de Cristo (Jo
21.15-17). Pedro fez pouquíssimo uso do escudo da fé naquela noite em
que negou três vezes ao Senhor, mas isso não significa que sua fé tivesse
desfalecido (Lc 22.32). Foi nesse sentido que Jesus rogou ao Pai. A vitória
de Satanás foi somente parcial e temporária.
Paulo também experimentou a força cruel de Satanás, por
intermédio do espinho na carne, “mensageiro de Satanás, para me
esbofetear”(2 Co 12.7). O Senhor usou as aflições diabólicas para
disciplinar o Seu servo e demonstrar especificamente que Seu poder não
exigia esforço humano para tomá-lo eficaz (v. 9)? Qualquer que seja o
significado correto desta frase, não pode haver dúvidas quanto ao
envolvimento do diabo. O espinho na carne era seu mensageiro, cOm o
propósito de destruir o grande missionário, mas a humilhação que causou
acabou confirmando a transbordante graça de Deus (w. 7-10). O escudo
da fé valeu para transmutar um doloroso espinho em uma confirmação da
suficiência da graça divina.
Outros exemplos bíblicos de contribuições de Satanás à disciplina dos
filhos de Deus são raras. Entre elas destaca-se um membro incestuoso da
igreja de Corinto que foi “entregue a Satanás, para a destruição da carne,
a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (1 Co 5.5).
Evidentemente, a fé deste escandoloso membro da igreja não foi
destruída. Assim, a crueldade de Satanás alcançou o alvo visado por Deus
e não pelo Maligno. Devemos contar este pecador entre aqueles remidos
que foram assistidos inconscientemente pelo diabo.
De modo semelhante, Paulo entregou a Satanás os irmãos Himeneu
e Alexandre “para serem castigados, a fim de não mais blasfemarem” (1
Tm 1.20). Surpreendentemente, a disciplina do diabo cruel teria mais

1. C /H b 12.10
2. C. H . Pinnock,“Thorn in the Flesh”, ISBE, vol. IV (Grand Rapids; Eerdmans) 1988, p.
843.

- 117-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

eficácia sobre tais corações endurecidos do que as mensagens comoventes


de Paulo.
Concluímos que os dardos inflamados do Maligno, lançados com um
objetivo destrutivo, porém detidos pelo escudo da fé, podem induzir um
efeito oposto àquele por ele desejado (veja Rm 8.28). Havendo uma
genuína fé salvadora, os que crêem não precisam temer a possibilidade da
destruição final.

O Capacete da Salvação
A proteção da cabeça exige cuidados especiais. Feridas graves na
cabeça são mortíferas. Antigamente, o capacete era desenhado de tal
forma que a cabeça ficasse totalmente protegida contra flechas e espadas.
Contra os ataques do Maligno, o capacete da salvação tem eficácia
singular. Refere-se à libertação efetuada por Jesus Cristo. Antes, vivíamos
no império das trevas. Mas Deus nos libertou e nos transportou para o
reino do Filho do Seu amor (Cl 1.13). Lucas usa o vocábulo “foi salvo”
para descrever a libertação do endemoninhado geraseno (Lc 8.36).
Hebreus afirma que Jesus Cristo “pode salvar totalmente os que por ele
se chegam a Deus (7.25).
Paulo também se refere ao capacete como a “esperança da
salvação”(l Ts 5.8). Mesmo tendo cruzado a fronteira espiritual entre o
reino deste mundo e a Terra Prometida em Cristo, a libertação do cristão
ainda não foi inteiramente realizada. Aguardamos a redenção do nosso
corpo, “porque na esperança fomos salvos” (Rm 8.23s.). Vivemos na
segurança da obra completa de Cristo, realizada na cruz. Pela graça somos
salvos (gr.sesõsmenoi, “temos sido salvos”, Ef 2.8); mas também “seremos
por ele salvos da ira” (Rm 5.9) e “seremos salvos pela sua vida” (v. 10).
Concluímos que o capacete transmite a segurança do resgate
efetuado por Cristo na cruz por nós, mas também garante a transformação
completa, na vinda do Salvador, marcando a ocasião quando Ele
“transformará o nosso corpo de humilhação para ser igual ao corpo da sua
glória” (Fp 3.21). A certeza do perdão de Deus e a “plena certeza da
esperança” fortalecem o cristão contra os ataques de Satanás,

- 118 -
o ATAQUE E A DEFESA DO CRISTÃO

particularmente quando ele é tentado a desanimar e desmoronar. A


confiança plena no Senhor vence toda estratégia do inimigo,
principalmente quando ele tenta nos intimidar.

A Espada do Espírito
O guerreiro não somente deve pensar em se defender, mas também
em atacar. Resistir ao diabo (1 Pe 5.9) requer mais do que proteção. O
eficiente manejo da espada do Espírito torna vulnerável o inimigo. Não é
pelo conhecimento intelectual da Bíblia que o cristão vence, mas pela
vivência da Palavra no poder do Espírito. Acolher a palavra de Cristo e
assegurar que ela seja ricamente implantada em nós (Cl 3.16), este é o
segredo da vitória. A letra mata, mas o Espírito vivifica (2 Co 3.6). Por isso
devemos implorar que o Espírito torne a mensagem das Escrituras “viva
e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”. Não
podemos abandonar o campo de batalha, enquanto ela não penetrar “ao
ponto de dividir alma e espírito... e discernir os pensamentos e propósitos
do coração”(Hb 4.12). Esta arma divina adquire por preempção toda
vantagem que o Acusador pretende obter por meio de suas denúncias. A
espada da Palavra acusa com amor, sem improperar {cf. Tg 1.5).
Jesus demontrou como os trechos do texto inspirado fazem dissipar
o baluarte do inimigo. É importante notar que o maligno não rebateu a
mensagem de Cristo, pois foi dirigida eficientemente contra as suâs
investidas distorcidas. Se tivermos destreza no manuseio da Palavra e urna
dependência cheia de fé no Espírito Santo, poderemos confiar na vitória
prometida (2 Co 2.14; Rm 8.37).

A Oração no Espírito
O segredo do bom aproveitamento da armadura disponível está na
oração. Não há hiato entre as exortações no sentido de colocar e tomar
toda a armadura e a maneira de usá-la; “com toda oração e súplica orando
em todo tempo no Espírito...” (Ef 6.18). Esta última frase necessita
elucidação.
Orar no Espírito significa, em primeiro lugar, reconhecer a nossa

-119-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

infantilidade no que diz respeito à oração. “Não sabemos orar como


convém”, confessa o apóstolo (Rm 8.26). Se buscarmos a Sua divina
assistência, certamente Ele intercederá “por nós sobremaneira com
gemidos inexprimíveis” (Rm 8.26). Deus, por meio do Seu Espírito,
escolhe os pontos fracos de nossa intercessão para os fortalecer, ao mesmo
tempo em que distingue as débeis defesas de Satanás.
Em segundo lugar, orar no Espírito implica em evitar apagar ou
entristecer o Espírito (1 Ts 5.19; Ef 4.30). Despejar água no fogo do
Espírito e contrariar as Suas ordens fazem com que a oração se torne um
ritual sem vida. Nenhum espírito maligno receia orações mecânicas, sem
ardor ou pujança (c/ Cl 1.29) Não foi uma oração decorada, leviana e
repetida que Jesus ofereceu no Getsêmani. A intensidade e instância das
suas petições foram demonstradas pela agonia e pelo suor (Lc 22.44). Foi
assim que Ele mandou que Seus discípulos orassem para vencer a tentação
(Lc 22.40 e paralelos).
Em terceiro lugar, orar no Espírito é suplicar sob a direção do
Espírito. “Se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei” (G15.18). A
liberdade da vida em Cristo afeta diretamente as orações dos fiéis, de
maneira que o Consolador repreende o diabo e os seus anjos (cf. Jd 9).
Quem contende nesta guerra santa não luta sozinho, mas com a
participação do Santo Espírito, que é mais eficaz do que Arão e Hur
sustentando os braços de Moisés (Êx 17.12).
Em quarto lugar, orar no Espírito dinamiza a oração. “Recebereis
poder” (At 1.8) foi a promessa de Jesus aos discípulos, para quando fossem
revestidos pelo Espírito. Quem bebe de Jesus Cristo pela fé será fonte de
rios de água viva, isto é, o poder do Espírito fluirá por meio do instrumento
humano. Paulo experimentou essa energia espiritual em sua luta pelos
colossenses (1.29; 2.1); reconheceu a eficácia divina operando
eficientemente nele (1.29); e pediu aos efésios a cooperação na oração
para que ele pudesse fazer conhecido o mistério do evangelho com
intrepidez (Ef 6.19). A oração no Espírito é o segredo da comunicação
eficaz e ousada.

- 120 -
10
Conclusão: O Mundo, a Carne e o Diabo

A Igreja se confronta com um desafio de proporções gigantescas. Se


os grandes inimigos do cristão são desconhecidos ou passam
despercebidos, resta-nos esperar as consequências. O mundo se infiltra na
Igreja, tornando-a indistinguível da cultura e dos valores ao redor. O que
sobrevive é a cristandade com vestígios dos tempos passados. Os templos
servem de museus e pontos turísticos. As bancas de jornais são marcadas
pela pornografia e anúncios de boates e filmes para adultos. A
mentalidade aberta acomoda novas crenças, tais como o espiritismo e a
macumba, dentro de sua estrutura teológica. O mundanismo, a
carnalidade e o demônio conquistam a Igreja de forma tão sutil e paulatina
que as defesas são ineficazes. Para vencer tais forças do mal, os cristãos
precisam conhecer profundamçnte esses inimigos e criar planos para se
manterem incontaminados.
Por outro lado, há guerreiros que^e levantam contra essas ameaças
de uma forma impensada e antibíblica. Eles lutam de maneira direta
contra o mundo em sua manifestação superficial. Apontam os canhões de
condenação contra a moda; as ultrapassadas seriam as bíblicas, por serem
antigas. As mulheres devem evitar calças compridas e cortes de cabelo. As
mangas compridas e saias bem abaixo dos joelhos seguem a norma
estabelecida por Deus. Os homens que deixam a barba ou os cabelos
crescerem estão fora do padrão bíblico. Assistir a um filme de Hollywood
ou jogar futebol no domingo merecem a condenação absoluta. O televisor,
mais conhecido como fábrica de pecados, recebe condenação incessante.
Houvesse mosteiros evangélicos, os adeptos deste modo de lutar contra o
mundo logo os lotariam. Vencer o mundo apenas pela fuga não resolve o
problema, uma vez que defesa sem ataque implica em derrota final.

- 121 -
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

Beber um copo de cerveja ou fumar um cigarro é indesculpável. Tais


“pecadores” não nasceram de novo. Tomar banho de mar ou passear pelas
praias do Brasil em dias quentes de férias é ser contaminado pelos
prazeres do mundo e cair na tentação da carne. Os vícios carnais se limitam
ao sexo, bebida e drogas. A estratégia que conduz à vitória está
concentrada no vocábulo “não”. “Não fumo, não bebo e não me associo
como os que assim procedem.”
Alguns cristãos tacham de demoníaca toda e qualquer manifestação
sobrenatural. Uma irrupção de “línguas estranhas”, freqüentemente
identificada com sons de origem oculta, é condenada. A melhor maneira
de evitar as influências do Maligno seria limitar-se a participar,
discretamente, apenas de cultos tradicionais que não dêem abertura para
uma invasão de atuação demoníaca.
À luz da Bíblia, nenhuma dessas linhas de defesa resistirá à “tríplice”
investida das trevas. Além do mais, o exército de Deus deve avançar
atacando. Encerrar-se atrás das barricadas seria apenas um paliativo e
nunca uma estratégia única.
Sem a renovação do “primeiro amor”, a conservação das tradições e
costumes manterá a casca, sem revelar a nojenta decomposição atrás dos
bastidores. Se deixamos de reconhecer os sinais do mundo dentro da Igreja
e a carnalidade envenenando nosso próprio caráter, como pretendemos
conquistá-los? Se as ciladas de Satanás penetram facilmente nos corações
e afetam as decisões dos membros do Corpo de Cristo, assim como um
gato que prende o ratinho, como escaparemos no dia mau que vem
chegando (Ef 6.13) ?
A igreja e os seus congregados serão “mais do que vencedores” se
deixarem que o Espírito Santo os encha. O Espírito foi concedido para
transformar discípulos medrosos em testemunhas invencíveis (At 1.8).
Cheios dEle, nenhum inimigo foi capaz de vencê-los (At 2-4). O Paracletos
divino não se engana nem deixa de reconhecer as células cancerosas do
mundanismo que infectam os órgãos vitais da igreja. O Espírito não luta
apenas contra a carne (G1 5.17), mas identifica as marcas da natureza
adâmica, para que possamos mortificá-la. O antagonista do diabo é o

- 122 -
CONCLUSÃO: O MUNDO, A CARNE E O DIABO

Espírito dé Deus, porque Ele é maior (1 Jo 4.4) e não suscetível ao engano.


Ser enchido pelo Espírito não é tanto uma questão de esforço, mas
de entregâ. Ele convence do pecado (Jo 16.8) e ilumina nossas inclinações,
mas ainda precisa dar-nos a coragem para obedecer. Disse Hudson Taylor:
“Deus dá o Espírito Santo não para os que O desejam, nem para os que
oram e O pedem, nem para os que querem estar sempre cheios, mas aos
que Lhe obedecem”.
C. S. Lewis nos adverte contra dois extremos: uma preocupação
exagerada com o demônio e suas forças e uma ignorância total. Evitemos
ignorá-lo na descrença que interpreta sua influência maléfica como um
acaso natural, ou explicar tudo que é desagradável ou ruim como
conseqüência direta da sua atividade. O problema da hipersensibilidade
de muitos cristãos da ala carismática mais radical, que os leva a identificar
demônios agindo diretamente através da maioria ou mesmo em todos os
problemas e contratempos, não favorece uma luta eficaz contra esse
inimigo. Muitos crentes são obcecados pelos desafios da “guerra
espiritual”,“ataque satânico”, “opressão demoníaca”, e isto os leva a se
preocupar muito mais com o diabo do que com o Senhor. A conseqüência
de tais exageros é dar mais reconhecimento a Satanás do que glória a Deus.
Ao invés de estarem firmados “na força do seu poder” (Ef 6.10), tais
crentes ficam enredados por temores e ansiedades diante dos ataques que
possam surpreendê-los a qualquer momento.^
Mas, uma vez discernida a presença e atuação real do inimigo,
devemos lutar (Ef 6.12) com a disposição e disciplina de um esportista. O
lutador não tem, como todos os praticantes dos outros esportes,
oportunidade para recuperar o fôlego. Sempre alerta, sem nunca baixar a
guarda, só assim o lutador poderá evitar o golpe fatal. Ninguém poderá
2
esperar que Satanás tire folga ou que se afaste num feriado.
Igualmente tenaz é o Espírito de Deus: “Se vivemos no Espírito,

1. N orio Yamakami, pastor da Igreja Holiness do Brasil, é a fonte principal deste


parágrafo.
2. D ean Shernian, Batalha Espiritual (Venda Nova: Betânia), 1990, p. 3.

- 123
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

andemos também no Espírito” (G15.25). Ele mantém nossa vida; também


nos pode manter em pé, firmes contra o ataque que nos ameaça
continuamente.
O prof. Richard Lovelace nos adverte sobre o elemento unificador
no mal global. O mundo, no sentido bíblico negativo, identifica-se com o
sistema total da corporação carnal que age sob o controle de Satanás. Nele
há incentivos e restrições, galardões e perdas que produzem padrões
característicos de comportamento, estruturas anti-cristãs, métodos, alvos
e ideologias. Os símbolos bíblicos da prostituta e da Babilônia (em
Apocalipse) e a Cidade do Homem, de Agostinho, incorporam muitas
formas e atividades do mal, difíceis de discernir e ainda mais complexas
para serem combatidas. Quem se limita a combater o pecado de maneira
individualista sente-se como um guarda num carro policial, empenhado
em patrulhar sozinho uma mégalopole como São Paulo ou Rio de Janeiro.
Sistemas econômicos, sociais e religiosos, caracterizados pela
desumanidade, confirmam o ensino bíblico de que o mundo faz parte do
espólio do diabo, que luta fortemente para manter cativo o que ele
conquistou na queda (Mt 12.29). Sistemas econômicos, políticos e
judiciários, relações raciais e internacionais revelam a infiltração do “joio”
semeado pelo inimigo de Deus no mundo {cf. Mt 13.28). No meio da
criação, cresce indiscriminadamente tudo o que se opõe à intenção divina.
Ainda que todos nós estejamos envolvidos no pecado corporativo do
mundo e, sem querer, sejamos participantes das investidas do “senhor”
deste século contra Deus, como cristãos, temos a responsabilidade de
confessar nossa culpa.^ Foi assim que Neemias (9.16-37) e Daniel (9.3-19)
lutaram, reconhecendo a participação dos justos no sistema apodrecido
da nação. É somente pela morte que podemos nos livrar da malha humana
da qual fazemos parte. Como os soldados romanos que crucificaram o
Senhor da Glória, mas não sabiam o que faziam, contribuímos, queiramos
ou não, para os propósitos do inimigo.

1. Dynamics of Spiritual Life, pp. 93s.


2. Cf. R. Lovelace, ibid., p. 94.

124-
CONCLUSÃO: O MUNDO, A CARNE E O DIABO

Mesmo assim, o clarim de Deus nos convida; “Retirai-vos dela (a


Babilônia que corrompe as nações), povo meu, para não serdes cúmplices
em seus pecados...” (Ap 18.4). A advertência bíblica contra qualquer jugo
desigual com os incrédulos, para evitar a contaminação do povo de Deus
(2 Co 6.14-18; Lv 26.12; Jr 32.38; Ez 37.27; Is 52.11), deve nos alertar
contra uma despreocupação com o mundanismo do qual parece
impossível escapar,
A confissão e a separação das trevas devem ser acompanhadas de
um ministério profético. Pela denúncia da injustiça e pelo modelo amoroso
da igreja, que obedece à verdade e demonstra o amor fraternal, agapê, de
coração ardente (1 Pe 1.22), será possível levantar uma barricada contra
as forças aliadas do mal.
Mais do que nunca, os cristãos precisam acordar, levantando-se
dentre os mortos para buscar a iluminação de Cristo (Ef 5.14). No
crepúsculo vespertino da história, urge que a igreja nacional e
internacional reconheça os dias desafiantes que enfrentamos. Quebremos
os laços invisíveis do mundo que nos algema. Levantemos um clamor até
o céu com petições incessantes ao Senhor, para que Ele abra os olhos do
coração do Seu povo (Ef 1.18), fazendo-o distinguir as ciladas do diabo e
renovar uma luta eficaz contra a carne. Somente uma mobilização intensa
e geral nos garantirá a vitória. Precisamos reconhecer o perigo da mente
secularizada, a mente que sufoca e abafa qualquer concessão aos
princípios cristãos.
O avanço do secularismo mundano e o rápido esvanecimento dos
traços cristãos na sociedade devem forçar a Igreja a ser mais
conscientemente cristã. É urgente aumentar o compromisso cristão no
nível social e intelectual. Acima de tudo, precisamos articular e propagar
0 evangelho como a única alternativa para estes dias que se assemelham
àqueles, “anteriores ao dilúvio” (Mt 24.38). Se não cremos que vale a pena
resistir ao diabo, desvendar as falsas atrações do mundo e mortificar a
carne, só nos resta aguardar o suicídio espiritual do “povo” de Deus.
E hora de encerrar estas linhas. Multiplicar palavras não aumenta
necessariamente a força do compromisso de guerrear contra os inimigos

- 125-
o MUNDO, A CARNE E O DIABO

de Deus. Mas a maior preocupação persiste; até onde nós, evangélicos,


estamos engajados na luta? Que incentivo divino ou humano seria capaz
de mobilizar os santos brasileiros para que gastem cinco minutos a mais
em oração, batalhando contra o mundo, mortificando a carne e resistindo
ao diabo? Que motivação de qualquer procedência nos convenceria de
que “perseguir a santificação” é imprescindível, mil vezes mais importante
do que levantar um templo novo, amplo e belo? Estruturas eclesiásticas,
domínio político, poderio econômico, prédios faraônicos, organização
mundial, tudo foi conquistado pela Igreja há mil anos. Mas todo esse
sucesso eclesiástico não protegeu o povo de Deus das incursões do
secularismo (Tt 2.12). Através dos séculos, avanços obtidos no âmbito
humano foram compensados por perdas espirituais. A história se repete,
mas há escapatória: basta que a igreja identifique seus adversários e
confiantemente coloque toda a armadura de Deus. O Senhor tem sido e
será nosso refúgio de geração em geração (SI 90.1).

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