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11~11ARTIGOS

PESQUISA QUALITATIVA
TIPOS FUNDAMENTAIS

* Arilda Schmidt Godoy

PALAVRAS-CHAVE:
Estudo de caso, etnografia, pesquisa documental, metodologia, pesquisa qualitativa.

KEYWORDS:
Case study research, ethnography, document study, methodology, qualitative research.

* Professora do Departamento de Educação da UNESp, Rio Claro.

20 Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 35, n.3, p, 20-29 Mai./Jun. 1995
PESQUISA QUALITATIVA: TIPOS FUNDAMENTAIS

A abordagem qualitativa oferece três


diferentes possibilidades de se realizar
pesquisa: a pesquisa documental, o estudo
de caso e a etnografia.

The qualitative approach ollers three


representatives kinds 01doing research:
document study, case study and ethnography.

C
orno comentado no primeiro artigo sa qualitativa pode, à primeira vista, pa-
desta série', hoje em dia a pesquisa recer estranha, uma vez que este tipo de
qualitativa ocupa um reconhecido investigação não se reveste de todos os as-
lugar entre as várias possibilidades de se pectos básicos que identificam os trabalhos
estudar os fenômenos que envolvem os dessa natureza.
seres humanos e suas intrincadas rela- Considerando, no entanto, que a abor-
ções sociais, estabelecidas em diversos am- dagem qualitativa, enquanto exercício de
bientes. pesquisa, não se apresenta como uma pro-
Algumas características básicas identi- posta rigidamente estruturada, ela permi-
ficam os estudos denominados qualitati-
/I te que a imaginação e a criatividade levem
vos". Segundo esta perspectiva, um fenô- os investigadores a propor trabalhos que
meno pode ser melhor compreendido no explorem novos enfoques. Nesse sentido,
contexto em que ocorre e do qual é parte, acreditamos que a pesquisa documental
devendo ser analisado numa perspectiva representa uma forma que pode se reves-
integrada. Para tanto, o pesquisador vai a tir de um caráter inovador, trazendo con-
campo buscando captar" o fenômeno em
/I tribuições importantes no estudo de al-
estudo a partir da perspectiva das pessoas guns temas. Além disso, os documentos
nele envolvidas, considerando todos os normalmente são considerados importan-
pontos de vista relevantes. Vários tipos de tes fontes de dados para outros tipos de
dados são coletados e analisados para que estudos qualitativos, merecendo portanto
se entenda a dinâmica do fenômeno. atenção especial.
Partindo de questões amplas que vão Como comumente pensamos que o tra-
se aclarando no decorrer da investigação, balho de pesquisa sempre envolve o con-
o estudo qualitativo pode, no entanto, ser tato direto do pesquisador com o grupo
conduzido através de diferentes caminhos. de pessoas que será estudado, esquecemos
Iremos aqui apresentar alguns desses ca- que os documentos constituem uma rica
minhos, fornecendo uma visão panorâmi- fonte de dados. O exame de materiais de
ca de três tipos bastante conhecidos e uti- natureza diversa, que ainda não receberam
lizados de pesquisa qualitativa: a pesqui- um tratamento analítico, ou que podem ser
sa documental, o estudo de caso e a etno- reexaminados, buscando-se novas e / ou
grafia. interpretações complementares, constitui
o que estamos denominando pesquisa 1. GODOY,Arilda Schmidt. In-
PESQUISA DOCUMENTAL documental. trodução à pesquisa qualitativa
A palavra documentos", neste caso,
/I
e suas possibilidades. RAE - Re-
vista de Administração de
A idéia de se incluir o estudo de docu- deve ser entendida de uma forma ampla, Empresas, São Paulo, v. 35,
mentos enquanto possibilidade da pesqui- incluindo os materiais escritos (como, por n. 2, p. 57-63, 1995.

© 1995, Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. 21


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exemplo, jornais, revistas, diários, obras to de um fenômeno. Para um pesquisador
literárias, científicas e técnicas, cartas, interessado, por exemplo, em analisar as
memorandos, relatórios), as estatísticas tendências apresentadas na propaganda
(que produzem um registro ordenado e re- de brinquedos no período 1960-1990, as
gular de vários aspectos da vida de deter- revistas e programas de televisão da épo-
minada sociedade) e os elementos icono- ca constituem uma rica fonte de dados. Em
situações em que
o interesse do
Partindo de questões amplas que vão se pesquisador é es-
tudar o proble-
aclarando no decorrer da investigação, o estudo
ma a partir da
qualitativo pode, no entanto, ser conduzido própria expres-
através de diferentes caminhos. são e linguagem
dos indivíduos
gráficos ( como, por exemplo, sinais, gra- envolvidos, a comunicação escrita ou
fismos, imagens, fotografias, filmes). Tais iconográfica tem se revelado de especial
documentos são considerados primários"
1/ importância.
quando produzidos por pessoas que Existem ainda outros documentos como
vivenciaram diretamente o evento que está diários, autobiografias e notas de suicídios,
sendo estudado, ou secundários", quan-
1/ que podem constituir um importante ca-
do coletados por pessoas que não estavam minho para a obtenção de informações si-
presentes por ocasião da sua ocorrência. gilosas.
Para Bailey-, em várias situações de in- Algumas dificuldades, no entanto, cer-
vestigação, que comentaremos a seguir, a cam as pesquisas de caráter documental e
pesquisa documental se mostra pertinen- devem ser apontadas. Muitos dos docu-
te e vantajosa. mentos por ela utilizados não foram pro-
Uma das vantagens básicas desse tipo duzidos com o propósito de fornecer infor-
de pesquisa é que permite o estudo de mações com vistas à investigação social, o
pessoas às quais não temos acesso físico, que possibilita vários tipos de vieses.
porque não estão mais vivas ou por pro- Exemplificando: documentos autobiográ-
blemas de distância. Se quisermos, por ficos e artigos de jornais podem distorcer
exemplo, estudar as relações patrão-em- muitos pontos na tentativa de construir
pregado antes da Revolução Industrial, uma boa história. Ainda considerando os
teremos que recorrer a documentos diver- documentos escritos, é possível dizer que
sos de empresas da época, uma vez que eles representam o ponto de vista de indi-
não será possível encontrar pessoas que víduos que possuem habilidade para ler e
tenham vivido naquele período para en- escrever, uma vez que as populações que
trevistar. não conseguem lidar com esses bens cul-
Além disso, os documentos constituem turais não terão oportunidade de registrar
uma fonte não-reativa, as informações ne- suas experiências e vivências dessa forma.
les contidas permanecem as mesmas após A maioria dos documentos registram re-
longos períodos de tempo. Podem ser con- latos verbais, não provendo informações
siderados uma fonte natural de informa- sobre comportamentos não-verbais, que,
ções à medida que, por terem origem num às vezes, são imprescindíveis para se ana-
determinado contexto histórico, econômi- lisar o sentido de determinada fala.
co e social, retratam e fornecem dados so- Cabe ressaltar também que nem sem-
bre esse mesmo contexto. Não há, portan- pre os documentos constituem amostras
to, o perigo de alteração no comportamen- representativas do fenômeno em estudo.
to dos sujeitos sob investigação. Em algumas situações, aqueles que foram
Apesquisa documental é também apro- preservados, ou que são acessíveis ao pes-
priada quando queremos estudar longos quisador, dificilmente possibilitarão dados
2. BAILEY, K. D. Methods of
social research. 2. ed. New períodos de tempo, buscando identificar válidos e confiáveis.
York: Free Press, 1982. uma ou mais tendências no comportamen- A arbitrariedade na escolha dos doeu-

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PESQUISA QUALITATIVA: TIPOS FUNDAMENTAIS

mentos e temáticas a serem examinados, teúdo tenha privilegiado as formas de co-


a falta de um formato padrão para muitos municação oral e escrita, não exclui outros
deles e a complexidade da codificação das meios de comunicação. Qualquer comuni-
informações neles contidas são aspectos cação que veicule um conjunto de signifi-
que têm sido apontados como parte das cações de um emissor para um receptor
dificuldades metodológicas enfrentadas pode, em princípio, ser decifrada pelas téc-
por esse tipo de pesquisa. nicas de análise de conteúdo. Ela parte do
pressuposto de que, por trás do discurso
Desenvolvimento da pesquisa aparente, simbólico e polissêmico, escon-
documental por meio da análise de de-se um sentido que convém desvendar.
conteúdo Nos seus primórdios, a análise de con-
Na pesquisa documental, três aspectos teúdo sofreu as influências da busca da
devem merecer atenção especial por parte cientificidade e da objetividade recorren-
do investigador: a escolha dos documen- do a um enfoque quantitativo que lhe atri-
tos, o acesso a eles e a sua análise. buía um alcance meramente descritivo. A
A escolha dos documentos não é um análise das mensagens então se efetuava
processo aleatório, mas se dá em função por meio do simples cálculo de freqüên-
de alguns propósitos, idéias ou hipóteses. cias. Nesse caso, as informações obtidas
Por exemplo, para uma análise do proces- pelo emprego da técnica se reduziam aos
so de avaliação de desempenho de uma índices de freqüência com que surgem cer-
empresa, o exame dos formulários utiliza- tas características do conteúdo. Mas a ne-
dos pode ser muito útil. Esse documento . cessidade de interpretação dos dados en-
já não será necessário se quisermos estu- contrados fez com que a análise qualitati-
dar as formas de interação entre os empre- va também tivesse lugar dentro da técni-
gados. ca. Nesta análise, o pesquisador busca
Evidentemente o acesso a documentos compreender as características, estruturas
oficiais, como leis
e estatutos, será Considerando que a abordagem qualitativa,
mais fácil do que
àqueles de uso
enquanto exercício de pesquisa, não se
particular de uma apresenta como uma proposta rigidamente
empresa ou os de estruturada, ela permite que a imaginação e a
caráter pessoal, criatividade levem os investigadores a propor
como as cartas. É trabalhos que explorem novos enfoques.
possível imaginar
que, quando o
pesquisador trabalha com documentos e/ ou modelos que estão por trás dos frag-
não-pessoais, torna-se mais fácil adquirir mentos de mensagens tomados em consi-
uma grande amostra. Já o pesquisador que deração.
fará uso de documentos pessoais geral- O esforço do analista é, então, duplo:
mente opta por uma pequena amostragem entender o sentido da comunicação, como
ou casos que serão estudados em profun- se fosse o receptor normal, e, principal-
didade. mente, desviar o olhar, buscando outra sig-
Selecionados os documentos, o pesqui- nificação, outra mensagem, passível de se
sador deverá se preocupar com a codifi- enxergar por meio ou ao lado da primeira.
cação e a análise dos dados. A análise de Para Bardin, o termo análise de con-
11

conteúdo, segundo a perspectiva de Bar- teúdo" designa um conjunto de técnicas de


11

dírr', tem sido uma das técnicas mais utili- análise das comunicações visando a obter, por
zadas para esse fim. Consiste em um ins- procedimentos sistemáticos e objetivos de des-
trumental metodológico que se pode apli- crição do conteúdo das mensagens, indicado-
car a discursos diversos e a todas as formas res (quantitativos ou não) que permitam a 3. BARDIN, L Análise de con-
de comunicação, seja qual for a natureza inferência de conhecimentos relativos às con- teúdo. Lisboa: Edições 70,
1977.
do seu suporte. dições de produção/recepção(variáveis inferi-
Embora na sua origem a análise de con- das) destas mensagens">. 4. Idem, ibidem, p.42.

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Compõe-se de um conjunto de técnicas o exame inicial da documentação que nos
parciais que, embora tenham a mesma me- permitirá definir, com mais acuidade,
ta - explicitação e sistematização do con- quais documentos são mais promissores
teúdo das mensagens -, assumem uma para se analisar esse problema, quais os
grande disparidade de formas, adaptadas objetivos da pesquisa, algumas hipóteses
aos tipos de documentos e objetivos dos provisórias, assim como a especificação do
pesquisadores. Pode se apresentar de for- campo no qual deveremos fixar nossa
ma bastante diferente conforme se trate de: atenção.
Orientados pelas hipóteses e referen-
• desmascarar os valores subjacentes nos ciais teóricos, e definidos os procedimen-
artigos de jornais e revistas que enfocam tos a serem seguidos, poderemos então
a questão do trabalho feminino; iniciar a segunda fase, de exploração do
• examinar a rede de comunicações for- material, que nada mais é do que o cum-
mais de uma empresa a partir de sua primento das decisões tomadas anterior-
correspondência oficial; mente.
• fazer o levantamento do repertório se- Retomando o nosso exemplo, caberá
mântico de um setor publicitário; agora ao pesquisador ler os documentos
• analisar os conceitos de trabalho e pro- selecionados, adotando, nesta fase, proce-
dutividade que permeiam a fala de gran- dimentos de codificação, classificação e
des empresários. categorização. Supondo que a unidade de
codificação escolhida tenha sido a palavra,
A utilização da análise de conteúdo pre- o próximo passo será classificá-las em blo-
vê três fases fundamentais: pré-análise, cos que expressem determinadas catego-
exploração do material e tratamento dos rias, que confirmam ou modificam aque-
resultados. las presentes nas hipóteses e referenciais
A pré-análise pode ser identificada teóricos inicialmente propostos.
como uma fase de organização. Nela esta- Assim, num movimento contínuo da
belece-se um esquema de trabalho que teoria para os dados e vice-versa, as cate-
deve ser preciso, com procedimentos bem gorias vão se tornando cada vez mais cla-
definidos, embora flexíveis. Normalmen- ras e apropriadas aos propósitos do estu-
te envolve a leitura flutuante", ou seja, do.
/I

um primeiro contato com os documentos Estamos aqui adentrando a terceira fase


do processo de
análise do con-
o exame de materiais de natureza diversa, que ain- teúdo, deno-
da não receberam um tratamento analítico, ou que minada trata-
podem ser reexaminados, buscando-se interpreta- mento dos re-
sultados e in-
ções novas e/ou complementares, constitui o que terpretação.
estamos denominando pesquisa documental. Apoiado
nos resultados
que serão submetidos à análise, a escolha brutos, o pesquisador procurará torná-los
deles, a formulação das hipóteses e / ou significativos e válidos. Utilizando técni-
objetivos, a elaboração dos indicadores cas quantitativas e / ou qualitativas, con-
que orientarão a interpretação e a prepara- densará tais resultados em busca de pa-
ção formal do material. drões, tendências ou relações implícitas.
Se quisermos estudar as formas de co- Esta interpretação deverá ir além do con-
municação escrita entre a presidência de teúdo manifesto dos documentos, pois,
uma empresa governamental e demais conforme indicado anteriormente, interes-
escalões hierárquicos devemos, em pri- sa ao pesquisador o conteúdo latente, o
meiro lugar, conseguir acesso aos tipos de sentido que se encontra por trás do imedia-
documentos produzidos pela empresa. tamente apreendido.
Embora todo esforço de pesquisa se inicie Uma análise interpretativa dos padrões
a partir de algumas questões básicas, será de comunicação presidência-escalões in-

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PESQUISA QUALITATIVA: TIPOS FUNDAMENTAIS

feriores envolverá, portanto, a descrição enquanto recurso para o ensino de Admi-


do que ocorre, assim como a explicação do nistração, recomendamos a leitura de
motivo pelo qual esse fenômeno acontece Maximiano e Sbragia",
dessa maneira. A interpretação envolve O propósito fundamental do estudo de
uma visão holística dos fenômenos anali- caso (como tipo de pesquisa) é analisar in-
sados, demonstrando que os fatos sociais tensivamente uma dada unidade social,
sempre são complexos, históricos, estru- que pode ser, por exemplo, um líder sin-
turais e dinâmicos. O enfoque da interpre- dical, uma empresa que vem desenvolven-
tação varia, podendo ser feito a partir de do um sistema inédito de controle de qua-
uma ênfase sociológica, psicológica, polí- lidade, o grupo de pessoas envolvido com
tica ou, até mesmo, filosófica. a CIPA(Comissão Interna de Prevenção de
Embora essas três fases devam ser se- Acidentes) de uma grande indústria que
guidas, há muita variação na maneira de apresenta baixos índices de acidente de
conduzi-las. As comunicações, objeto de trabalho. Na pesquisa acadêmica em ad-
análise, podem ser abordadas de diferen- ministração de empresas, o estudo de caso
tes formas. As unidades de análise podem tem sido bastante divulgado e utilizado na
variar: alguns pesquisadores escolherão a área de marketing, conforme é atestado por
palavra, outros optarão pelas sentenças, Campomar" em ensaio sobre o tema.
parágrafos e, até mesmo, o texto. A forma Segundo Yin",esta "... é uma forma de se
de tratar tais unidades também se diferen- fazer pesquisa empírica que investiga fenôme-
cia. Enquanto alguns contam as palavras nos contemporâneos dentro de seu contexto de
ou expressões, outros procuram desenvol- vida real, em situações em que as fronteiras
ver a análise da estrutura lógica do texto entre o fenômeno e o contexto não estão clara-
ou de suas partes, e outros, ainda, centram mente estabelecidas, onde se utiliza múltiplas
sua atenção em temáticas determinadas. fontes de evidência". Com o objetivo de
É importante ressaltar que a análise do- aprofundar a descrição de determinado
cumental pode ser utilizada também como fenômeno, o investigador pode optar pelo
uma técnica complementar, validando e estudo de situações típicas (similares
aprofundando dados obtidos por meio de a muitas outras do mesmo tipo) ou não-
entrevistas, questionários e observação. usuais (casos excepcionais).
O estudo de caso tem se tornado a es-
ESTUDO DE CASO tratégia preferida quando os pesquisado-
res procuram responder às questões
O estudo de caso se caracteriza como "como" e "por quê" certos fenômenos
um tipo de pesquisa cujo objeto é uma ocorrem, quando há pouca possibilidade
unidade que se analisa profundamente. de controle sobre os eventos estudados e
Visa ao exame detalhado de um ambien- quando o foco de interesse é sobre fenô-
te, de um simples sujeito ou de uma situa- menos atuais, que só poderão ser analisa-
ção em particular. Não deve ser confundi- dos dentro de algum contexto de vida real.
do com o "método do caso", que constitui Adotando um enfoque exploratório e
uma estratégia de ensino amplamente descritivo, o pesquisador que pretende 5. MAXIMIANO, A. C. A., SBRA-
GIA, R. Método do caso no en-
divulgada no curso de Administração. desenvolver um estudo de caso deverá sino de administração. In:
Como estratégia de ensino, o método do estar aberto às suas descobertas. Mesmo BOOG, G. G. (Org.) Manual de
caso teve origem na Escola de Direito da que inicie o trabalho a partir de algum es- treinamento e desenvolvimen-
to. São Paulo: McGraw-Hill do
Universidade de Harvard, na segunda quema teórico, deverá se manter alerta aos Brasil, 1980.
metade do século passado, e vem sendo novos elementos ou dimensões que pode-
usado há muitos anos, nos Estados Uni- rão surgir no decorrer do trabalho. O pes- 6. CAMPOMAR, M. C. Do uso
de "estudo de caso" em pesqui-
dos e no Brasil. Tem por objetivo propor- quisador deve também preocupar-se em sas para dissertações e teses
cionar vivência da realidade por meio da mostrar a multiplicidade de dimensões em administração. Revista de
Administração, São Paulo, v.
discussão, análise e tentativa de solução presentes numa determinada situação, 26, n. 3, p. 95-7, jul./set. 1991.
de um problema extraído da vida real. uma vez que a realidade é sempre com-
Enquanto técnica de ensino, procura esta- plexa. Desta forma, para uma apreensão 7. VIN, R. K. Case study re-
search: design and methods.
belecer relação entre a teoria e a prática. mais completa do fenômeno em estudo, é Newbury Park, CA: Sage Pu-
Àqueles interessados no método do caso preciso enfatizar as várias dimensões em blications, 1989, p. 23.

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que ele se apresenta, assim como o con- te do pesquisador sem que ele o tenha
texto em que se situa. A divergência e os deliberadamente procurado, mas isso não
conflitos, tão característicos da situação é comum. A escolha da unidade a ser
social, devem estar presentes no estudo. investigada é feita tendo em vista o pro-
No estudo de caso, o pesquisador ge- blema ou questão que preocupa o investi-
ralmente utiliza uma variedade de dados gador.
coletados em diferentes momentos, por Assim, guiado por uma temática de in-
meio de variadas fontes de informação. teresse, o pesquisador tomará uma série
Tem como técnicas fundamentais de pes- de decisões. Qual será a unidade estuda-
quisa a observação e a entrevista. Produz da? O presidente de uma empresa multi-
relatórios que apresentam um estilo mais nacional, as relações de trabalho que se
informal, narrativo, ilustrado com cita- desenvolvem nesse tipo de organização ou
ções, exemplos e descrições fornecidos o funcionamento do seu setor de produ-
pelos sujeitos, podendo ainda utilizar fo- ção? Essa unidade será escolhida por re-
tos, desenhos, colagens ou qualquer ou- presentar um caso típico ou por se tratar
tro tipo de material que o auxilie na trans-de uma empresa diferenciada? O enfoque
missão do caso. do trabalho será centrado numa única or-
Ainda que os estudos de caso sejam, em ganização ou se pretende desenvolver um
essência, pesquisa de caráter qualitativo, estudo comparativo? Deverá ainda deci-
podem comportar dados quantitativos pa- dir com quem falar, quando e como obser-
ra aclarar algum aspecto da questão inves- var, quantos documentos analisar e de que
tigada. É importante ressaltar que, quan- tipo. Escolher as fontes de informação
do há análise quantitativa, geralmente o adequadas é fundamental para a obtenção
dos dados re-
o estudo de caso tem se tornado a estratégia queridos.
Selecionado
preferida quando os pesquisadores procuram o caso e defini-
responder às questões "como" e "por quê" certos dos os aspec-
fenômenos ocorrem, quando há pouca tos julgados,
possibilidade de controle sobre os eventos num primeiro
momento, os
estudados e quando o foco de interesse é sobre
mais impor-
fenômenos atuais, que só poderão ser analisados tantes em rela-
dentro de algum contexto de vida real. ção ao tema
em estudo, é
tratamento estatístico não é sofisticado. necessário negociar o acesso do pesquisa-
Quando o estudo envolve dois ou mais dor ao local escolhido. Se a unidade de
sujeitos, duas ou mais instituições, pode- estudo for uma fábrica, por exemplo, é
mos falar de casos múltiplos. Aqui, pode- preciso obter permissão da gerência para
mos encontrar pesquisadores cujo único qualquer trabalho que envolva aqueles
objetivo é descrever mais de um sujeito, que lhe são subordinados. Às vezes, inclu-
organização ou evento, e aqueles que pre- sive, é necessária a permissão de órgãos
tendem estabelecer comparações. Pode- superiores, como, da própria diretoria. É
mos, por exemplo, estudar quatro das sempre importante contar com a permis-
mais representativas empresas do ramo de são formal do principal responsável pela
materiais elétricos descrevendo o funcio- unidade em estudo. As pessoas envolvi-
namento de suas áreas de marketing, as- das devem estar a par dos principais obje-
sim como conduzir um estudo que con- tivos do trabalho. O papel do pesquisador
traste atuação e desempenho da área de deve ser claro para aqueles que lhe pres-
recursos humanos em instituições de ca- tarão informações, não devendo ele ser
ráter público e privado. confundido com elementos que inspecio-
nam, avaliam e supervisionam atividades.
o desenvolvimento do estudo de caso A compreensão inadequada dos objetivos
Um caso interessante pode surgir dian- da pesquisa e do papel do pesquisador po-

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PESQUISA QUALITATIVA: TIPOS FUNDAMENTAIS

derão influenciar e dirigir as respostas da- tários pessoais do pesquisador durante a


queles que serão entrevistados, e os com- coleta de dados. O registro das observa-
portamentos observados poderão não ser ções será feito, na maioria das vezes, por
os usuais, distorcendo os dados obtidos. meio de anotações escritas. A combinação
Tomadas essas decisões iniciais, pode- das anotações com material obtido de gra-
se partir para o trabalho de campo, que vações também poderá ser utilizada.
envolve a obtenção e a organização das A técnica da observação freqüentemen-
informações consideradas relevantes para te é combinada com a entrevista. Procura-
o estudo em questão. Os dados devem ser se, em trabalhos de caráter qualitativo, rea-
coleta dos no local onde eventos e fenôme- lizar várias entrevistas, curtas e rápidas,
nos que estão sendo estudados natural- conduzidas no ambiente natural e num
mente acontecem, incluindo entrevistas, tom informal. Existem, no entanto, situa-
observações, análise de documentos e, se ções onde o pesquisador tem que optar por
necessário, medidas estatísticas. uma entrevista mais formal. Embora nas
A observação tem um papel essencial entrevistas pouco estruturadas não haja a
no estudo de caso. Quando observamos, imposição de uma ordem rígida de ques-
estamos procurando apreender aparên- tões, isso não significa que o pesquisador
cias, eventos e / ou comportamentos. A ob- não tenha as perguntas fundamentais em
servação pode ser de caráter participante mente. A entrevista poderá ser gravada,
ou não-participante. Quando o pesquisa- se houver concordância do entrevistado,
dor atua apenas como espectador atento, ou pode-se tomar algumas notas. A gra-
temos o que se convencionou chamar de vação, evidentemente, torna os dados obti-
observação não-participante. Baseado nos dos mais precisos.
objetivos da pesquisa e num roteiro de Embora nos estudos qualitativos em
observação, o investigador procura ver e geral, e no estudo de caso em particular, o
registrar o máximo de ocorrências que in- ideal seja que a análise esteja presente
teressam ao seu trabalho. Na observação durante os vários estágios da pesquisa,
participante, o observador deixa de ser o pelo confronto dos dados com questões e
espectador do fato que está sendo estuda- proposições orientadoras do estudo, é pro-
do. Nesse caso, ele se coloca na posição vável que um pesquisador pouco experi-
dos outros elementos envolvidos no fenô- ente termine a fase de coleta dos dados
meno em questão. Este tipo de observa- para depois iniciar o processo de análise.
ção é recomendado especialmente para Organizar e analisar todo o material
estudos de grupos e comunidades. Nos obtido por meio de documentos, observa-
dois casos, ou em outras formas interme- ções e entrevistas não é tarefa fácil e exige
diárias que poderão ser adotadas, é impor- o domínio de uma metodologia bastante
tante manter um relacionamento agradá- complexa da qual a análise de conteúdo
vel e de confiança entre o observador e o faz parte. Outras técnicas poderão ser uti-
observado. Para isso recomenda-se que os lizadas nessa tarefa e excede aos propósi-
objetivos da pesquisa e a situação de ob- tos deste artigo apresentá-las. Para o exa-
servador sejam esclarecidos logo no início me desta questão - análise de dados qua-
do trabalho. litativos - recomendamos a obra de Miles
Embora o observador deva manter uma e Huberman",
perspectiva de totalidade, é importante ter
claros seus focos de interesse. E de grande ETNOGRAFIA
utilidade que ele oriente a sua observação
em torno de alguns aspectos, evitando, É comum associarmos a pesquisa
assim, terminar com um amontoado de in- etnográfica com a antropologia, onde ela
formações irrelevantes ou deixando de la- tem sido tradicionalmente empregada em
do dados que possibilitariam uma análise estudos com populações primitivas e mi-
mais completa do problema. O conteúdo norias culturais. Hoje ela é utilizada tam- 8. MILES, M. B., HUBERMAN,
bém na exploração de temáticas associa- A. M. Qualitative data ana-
das observações geralmente envolve uma Iysis: a sourcebook of new
parte descritiva do que ocorre no campo e das a outras áreas do conhecimento, como, methods. 4. ed. Beverly Hills,
uma parte reflexiva, que inclui os comen- por exemplo, a educação, a psicologia so- CA: Sage Publications, 1986.

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i1!Jf1 ARTIGOS

cial e a administração de empresas. Na atento e receptivo aos eventos que ocor-


administração de empresas, os estudos de rem ao seu redor. Podemos dizer que ele
cultura organizacional, conforme propos- deverá manter a mente aberta em relação
tos e desenvolvidos por VanMaanen", ilus- ao grupo ou cultura que está estudando.
tram essa possibilidade. Evidentemente isso não significa iniciar o
A etnografia, na sua acepção mais am- trabalho de campo com a mente vazia.
pla, pode ser entendida, segundo Fetter- Como em qualquer trabalho de investiga-
man", como "a arte e a ciência de descrever ção, o projeto contém um conjunto básico
uma cultura ou grupo ': A pesquisa etnográ- de instruções sobre o que fazer e aonde ir
fica abrange a descrição dos eventos que durante o estudo. A organização e o plane-
ocorrem na vida de um grupo (com espe- jamento do trabalho não retiram o caráter
cial atenção para as estruturas sociais e o próprio da etnografia, onde intuição, empa-
tia, descoberta acidental (serendipity) e cria-
tividade exercem papéis fundamentais.

Desenvolvimento da pesquisa
etnográfica
A pesquisa etnográfica inicia com a se-
leção e a definição de um problema ou tó-
pico de interesse e dificilmente prossegue
sem a adoção (em caráter provisório, mas
orientador) de um modelo conceitual ou
teoria útil à compreensão do evento estu-
comporta- dado. Embora o etnógrafo evite a defini-
mento dos indivídu- ção antecipada de hipóteses claramente es-
os enquanto membros do pecificadas, deve possuir um modelo que
grupo) e a interpretação do significado o oriente no estabelecimento de algumas
desses eventos para a cultura do grupo. questões ou proposições específicas. Pode
Um etnógrafo pode centrar seu trabalho optar por um modelo conceitual já conhe-
sobre uma tribo indígena com pouco con- cido - que pode ser uma teoria bastante
tato com a civilização, uma comunidade elaborada - ou criar um esquema inter-
de alemães no Estado de Santa Catarina, pretativo próprio a partir de um ou mais
ou determinada ocupação dentro de uma construtos.
fábrica. O trabalho de campo é o coração Alguns conceitos fundamentais guiam
da pesquisa etnográfica, pois sem um con- o trabalho etnográfico. O mais amplo de-
tato intenso e prolongado com a cultura les é o conceito de cultura, daí a rotulação
ou grupo em estudo será impossível ao da etnografia como "ciência da descrição
pesquisador descobrir como seu sistema cultural". Embora" cultura" possa ser con-
de significados culturais está organizado, ceituada a partir de diferentes perspecti-
como se desenvolveu e influencia o com- vas, conforme atesta o trabalho de San-
portamento grupal. day", de uma maneira genérica é válido
9. VAN MAANEN, J. V. lhe fact
of fiction in organizational Ao assumir uma perspectiva holística, identificar a cultura como o conjunto de
ethnography. Administrative o etnógrafo procura descrever o grupo conhecimentos, crenças e idéias adquiri-
Science Quarterly, New York,
v. 24, n. 4, p, 539-50, Dec. social da forma mais ampla possível- sua do e utilizado por um grupo particular de
1979. história, religião, política, economia e am- pessoas para interpretar experiências e ge-
biente -, pois parte do princípio de que rar comportamentos.
10. FETTERMAN,D. M. Ethno-
graphy step by step. Newbury descrição e compreensão do significado Afirmar que o etnógrafo constrói mo-
Park, CA: Sage Publications, de um evento social só são possíveis em delos ou teorias explicativas indutivamen-
1989, p.11.
função da compreensão das inter-relações te, a partir da compreensão dos significa-
11. SANDAY, P. R. lhe ethno- que emergem de um dado contexto. dos que os sujeitos, participantes, atri-
graphic paradigm(s). Adminis- Contextualizando os dados, ou seja, buem aos eventos estudados não significa
trative Science Quarterly, New
York, v. 24, n. 4, p. 527-38, colocando-os dentro de uma perspectiva um descaso por estudos anteriores ou por
Dec.1979. mais ampla, o etnógrafo procura estar teorias já existentes. O pesquisador deve

28 RAE • v. 35 • n. 3 • Mai./Jun. 1995


PESQUISA QUALITATIVA: TIPOS FUNDAMENTAIS

se manter bem-informado acerca do tema A análise dos dados não acontece numa
em estudo, podendo assim utilizar o co- etapa claramente distinta, após a coleta.
nhecimento obtido por meio de uma cui- Permeia todo o processo da investigação,
dadosa revisão de literatura, quando ele começando no momento em que o pesqui-
se mostrar útil para a explicação de certos sador seleciona um problema para estudo
eventos. e terminando quando ele escreve a última
À medida que os dados forem sendo co- palavra do seu relatório. A etnografia
letados em campo, o etnógrafo deve se abrange muitos níveis de análise: alguns
manter sempre alerta para refutar o mo- são simples e informais, enquanto outros
delo anteriormente aceito, corroborá-lo ou podem até se revestir de certa sofisticação
alterá-lo em função do aumento do conhe- estatística. A análise dos dados de campo
cimento do fenômeno sob investigação. deve permitir que o pesquisador verifique
Essa interação contínua entre os dados a pertinência das questões previamente
reais e as possíveis explicações teóricas é selecionadas e das percepções que grada-
fundamental num trabalho de caráter tivamente vai refinando com o propósito
etnográfico. Vários tipos de dados são re- não apenas de descrever, mas, de construir
levantes: a forma e o conteúdo das intera- novas explicações e interpretações teóricas
ções verbais entre os membros do grupo sobre o que está acontecendo no grupo
estudado, a forma e o conteúdo das inte- social em estudo.
rações verbais dos participantes com o A organização das notas de campo se
pesquisador, comportamentos não-ver- dá mediante um processo contínuo em que
bais, padrões de ação e não-ação, dese- o pesquisador procura identificar dimen-
nhos, gravações, artefatos e documentos. sões, categorias, tendências, padrões e rela-
É tarefa essencial do pesquisador decidir ções, desvelando-lhes o significado. A aná-
quais dados serão necessários para respon- lise envolve a habilidade do etnógrafo em
der às suas questões e descobrir o acesso a processar o conjunto das informações obti-
tais informações. Também é fundamental das de uma maneira significativa. Muitas
a escolha dos informantes mais adequa- técnicas, desde a análise de conteúdo ao
dos aos seus propósitos. uso da estatística não-paramétrica, podem
O trabalho de campo é o elemento mais ajudar o etnógrafo a dar sentido aos da-
característico da pesquisa etnográfica. O dos. O uso dessas técnicas, no entanto, re-
pesquisador deve ter uma experiência di- quer um pensamento crítico e a habilidade
reta e intensa com a situação em estudo, para analisar, sintetizar e avaliar informa-
visando à compreensão das regras, costu- ções, conforme pode ser verificado na obra
mes e convenções que orientam a vida do de Miles e Huberman já citada.
grupo sob observação. Normalmente esse
período de tempo varia de seis meses a CONSIDERAÇÕES FINAIS
dois anos. Ele é exploratório por natureza
e os dados são coletados principalmente Neste artigo apresentamos três diferen-
por meio da observação participante. É tes formas de estudar um problema ado-
abandonado quando o pesquisador acre- tando o enfoque qualitativo. Ao descrever
dita que os dados coletados são suficien- as características essenciais e as etapas
tes para descrever a cultura ou problema para o desenvolvimento da pesquisa do-
específico que estava sendo estudado. cumental, do estudo de caso e da etnogra-
Embora ninguém possa se sentir comple- fia, esperamos ter chamado a atenção do
tamente seguro acerca da validade das leitor para as possibilidades de utilização
conclusões de uma pesquisa, é importan- desses tipos de pesquisa na análise de te-
te que o etnógrafo colete dados suficien- máticas próprias da administração de
tes e precisos, de maneira que se sinta pos- empresas. O
teriormente confiante acerca dos resulta-
dos encontrados e tenha credibilidade pe- 1St 0950303
rante uma audiência científica. ~

Artigo recebido pela Redação da RAE em junho/1994, avaliado em agosto/1994 e janeiro/1995, aprovado para publicação em janeiro/1995. 29

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