Você está na página 1de 8

O LUGAR DA TEOLOGIA NA CIÊNCIA DA RELIGIÃO

Faustino Teixeira

Introdução

A possível relação da teologia com as ciências ou ciência da religião é um tema controvertido. Há autores
que defendem a exclusão da teologia ou filosofia deste campo específico, em razão de privilegiarem a
base empírica como seu elemento identificador. É o caso de autores como Giovanni Filoramo e Carlo
Prandi, para os quais o método indutivo é o que delimita os confins das ciências da religião: “o que o
caracteriza são os juízos de fato, fundados nos limites do possível e na neutralidade do observador”. 1 Em
perspectiva diversa, outros autores tendem a estabelecer uma classificação das ciências da religião em
ciências especulativas ou normativas e ciências positivas ou descritivas. Trata-se de uma classificação
inclusiva, que permite garantir um lugar específico para a teologia no âmbito deste campo em aberto. 2

Não se pode negar a grande complexidade que envolve a pesquisa e a reflexão sobre o tema da religião,
e a preocupação com o horizonte da objetividade. Duas questões prévias se colocam para o
pesquisador.

Em primeiro lugar, a questão da pertinência ou não da pesquisa científica sobre a religião realizada por
religiosos ou crentes: é possível ocupar-se cientificamente do tema permanecendo religioso? Este tem
sido muitas vezes o argumento decisivo dos autores mais positivistas, para excluir certos tipos de
abordagem como ciência ou ciências da religião. Para tais autores, a análise científica exige
destacamento e a presença da fé, como escolha existencial, acaba obstruindo um conhecimento mais
objetivo do fenômeno religioso.3 Tal visão revela-se pálida, e encontra resistência em exemplos
significativos de pesquisadores que mesmo animados pela fé conseguiram realizar pesquisas objetivas
extremamente importantes, como é o caso do antropólogo francês Maurice Leenhardt (1878-1954), que
lançou as bases de uma “etnologia não euclidiana, não cartesiana da personalidade e da sociedade
humanas”. Como sublinhou Maria Isaura Pereira de Queirós, “sua profunda crença protestante
constituiu, portanto uma das garantias mais sólidas de objetividade e fator primordial de seu sucesso
como pesquisador”.4

Em segundo lugar, a questão do grau de objetividade possível a ser alcançado pela pesquisa científica do
fenômeno religioso. Em que medida é possível ao pesquisador um destacamento efetivo de qualquer
envolvimento emotivo com o seu objeto de reflexão? Qual o grau de plausibilidade de uma pesquisa
científica “in vitro”, isenta de implicações emotivas? De fato, tal posição, reflete um positivismo
iluminista defasado, dificilmente sustentável depois do influxo da psicologia do profundo e da sociologia
do conhecimento, que redimensionaram ou relativizaram as pretensões triunfalistas do saber científico.
Isto não dispensa, porém, o uso crítico da razão, que mesmo sem desqualificar o “influxo das energias
afetivas”, deve manter-se vigilante face aos riscos dos desvios “ideológicos”.

O estatuto epistemológico da teologia

1 Giovanni FILORAMO & Carlo PRANDI. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999, p. 22
2 Carlo CANTONE (a cura di). Le scienze della religione oggi. 2 ed. Roma: Libreria Ateneo Salesiano, 1981, p. 6.
3 F. FERRAROTTI & R.CIPRIANI. Sociologia del fenomeno religioso. Roma: Bulzoni Editore, 1975, p. 5.
4 Maria Isaura Pereira de QUEIROZ. Rumos do pensamento etnológico na França: a atualidade de Maurice Leenhardt. Religião e Sociedade, 14 (1): 72 e 86,
1987. Ver ainda: James CLIFFORD. A experiência etnográfica; antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1998, p. 227-251.
Para Clifford, Leenhardt “era capaz, quando necessário, de manter separados os projetos de evangelização e de pesquisa empírica. Ele podia fazê-lo
exatamente porque na análise final, numa análise além de sua compreensão, eles formavam um conjunto. Ele acreditava que, nas palavras de seu pai, um
teólogo e eminente geólogo, ‘os fatos são uma palavra de Deus’”: ibidem, p. 236.
Em sua obra já clássica sobre Teologia e Prática, Clodovis Boff buscou captar o “jogo de linguagem”
próprio da teologia, no sentido de definir o que dá propriamente pertinência ao saber teológico. 5 Na
tarefa de buscar uma epistemologia da teologia, este autor sublinha a importância de uma “consciência
alerta da Teologia”, ou seja, uma “Teologia sabendo-se Teologia”, animada por uma pertinência
determinativa. O que define a pertinência de uma disciplina é o seu objeto formal. O discurso teológico
distingue-se do discurso religioso: há entre os dois uma continuidade de conteúdo, mas uma
descontinuidade de método. Enquanto o discurso religioso é marcado pelo traço auto-implicativo,
instaurando uma relação mais direta com a experiência vivida, o discurso teológico é regrado por
exigências da razão. Trata-se de um discurso sistemático, metódico e disciplinado: “à diferença da
linguagem religiosa, a linguagem teológica se caracteriza por sua criticidade, isto é, pelo controle
vigilante de suas proceduras e operações, controle que se exprime no esforço do rigor analítico e na
busca da organização sistemática da inteligência da fé” 6 Isto não significa que a teologia não tenha uma
incidência na prática, ou vice versa. O que ocorre é uma dialética entre teoria e prática na teologia: ela é
“imediatamente teórica”, mas “mediatamente prática. Quer-se conhecer para em seguida amar e
praticar”.7

A teologia distingue-se igualmente das filosofias da religião e das outras produções das ciências
humanas que tratam do “religioso”. A distinção com respeito à filosofia da religião refere-se ao objeto
formal. O que confere pertinência ao saber teológico é a reflexão “à luz da fé”, enquanto que para o
filósofo esta reflexão se dá “à luz da razão”. Para o primeiro, o objeto formal é Deus, e para o segundo, o
Ser. Quanto à relação com as demais ciências humanas que abordam o mesmo tema, a distinção ocorre
não no objeto material, que é o mesmo, mas no modo da produção científica, que irá conferir um ponto
de vista distinto.8 Há entre o discurso teológico e o sociológico um “desnível” real, mesmo quando
trabalham sobre um mesmo objeto material. O discurso sociológico trata a religião “sub specie
temporis”, deixando em aberto “a questão de se e como ela também poderia ser vista sub specie
aeternitatis”.9 Já a teologia não pode prescindir de sua positividade específica, no caso da teologia cristã,
a instância identificadora que confere pertinência teológica é a mediação hermenêutica. É ela que
confere a positividade cristã à teologia: “uma positividade que não plaina no ar, de modo abstrato. Ela se
encontra inscrita, testemunhada, traduzida e deposta no conjunto dos escritos canônicos da
comunidade eclesial: são as Escrituras cristãs”. 10 A instância da mediação hermenêutica exige, todavia,
um permanente trabalho de interpretação criativa, uma vez que o sentido dos textos fundadores não se
encontra a céu aberto. É a mediação hermenêutica que opera a decifração e a reapropriação do sentido
originário da mensagem escrita, bem como sua reinterpretação em função do tempo presente. Nesse
sentido, favorece permanentemente a emergência de “novas figuras históricas na forma de escrituras ou
práticas inéditas”.11

O exercício teológico não pode ocorrer senão como razão crítica, caso contrário se desvia em discurso
ortodoxo oficial, pontuado pela transcendentalização, ideologização e falsificação. É verdade que a fé
constitui um princípio essencial de inteligibilidade da teologia. Isto não significa, porém, uma dispensa
do trabalho hermenêutico, que rompe com toda e qualquer possibilidade de dogmatização da mesma. A
operação hermenêutica é o que caracteriza uma teologia crítica, conferindo-lhe cientificidade quanto ao
método. A mediação hermenêutica pressupõe um trabalho sobre os dados da positividade da fé, e este
trabalho pode refutar a validade de uma dada interpretação, em razão dos resultados obtidos com
investigações mais aperfeiçoadas. Trata-se de um trabalho que se efetua com a decisiva contribuição do
método histórico, da linguística, da sociologia do conhecimento, etc. A teologia dispõe cada vez mais de
5[5] Clodovis BOFF. Teologia e prática; teologia do político e suas mediações. Petrópolis, Vozes, 1978.
6[6] Ibidem, p. 384.
7[7] Clodovis BOFF. Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 397.
8[8] Id. Teologia e prática. Op.cit., p. 140-141.
9[9] Peter BERGER. O dossel sagrado; elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 186.
10[10] Clodovis BOFF. Teologia e prática, p. 238.
11[11] Claude GEFFRÉ. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 7-8; Clodovis BOFF. Teologia e prática, p. 239,
151 e 152.
novos recursos para o estabelecimento de critérios mais fidedignos de interpretação dos textos com
respeito ao enunciado inicial da mensagem original: “e este trabalho de verificação crítica não se exerce
unicamente sobre as hipóteses ou sistemas teológicos, mas concerne igualmente nossa releitura dos
enunciados dogmáticos”.12

A hermenêutica, como lembra Claude Geffré, constitui o esforço permanente que anima o trabalho dos
seres humanos em traduzir verdades antigas numa linguagem acessível. Trata-se de uma “interpretação
infinita”. Daí ser complexo falar de verdades absolutas, pois a verdade não existe fora da linguagem, e da
perspectiva particular na qual ela vem recebida. Enquanto apreendidas por seres humanos, estas
“verdades” serão sempre relativas.13 Todo empenho de interpretação constitui uma “obra criativa”. A
palavra da Revelação não está encerrada num “depósito” fechado, pois há virtualidades desta Revelação
que não foram ainda plenamente manifestadas no âmbito da história. 14

O lugar e a função da teologia entre as demais disciplinas da ciência da religião: um balanço

Já se mencionou na introdução que há uma longa discussão presente na área da ciência da religião ou
ciências da religião sobre a pertinência ou não da teologia como uma ciência da religião. Há autores
cristãos que expressam uma visão crítica das ciências da religião, a partir de uma abordagem histórico-
filosófica. Na avaliação do filósofo jesuíta, Henrique Cláudio de Lima Vaz, não é por acaso que as ciências
da religião entram definitivamente em cena no século XIX, na idade pós-hegeliana, quando a religião
passa a ser pensada segundo a lógica da metafísica da subjetividade. Neste momento, o fato religioso
deixa de ser considerado como um “momento do Espírito” e passa a ser um “fenômeno observável
empiricamente”.15 As ciências da religião expressam, assim, o movimento de decentração do sagrado na
sociedade secularizada. Este deixa de ser fonte de normas e passa à condição de objeto do saber
científico. Entra em cena um “sagrado compensador” e sai de cena o “sagrado instituidor”. Neste
contexto, “a teologia passa a ser uma forma de conhecimento marginal ou apenas tolerada no universo
do saber e o saber do Sagrado-de Deus e do ‘divino’”. 16 A interrogação lançada por Vaz refere-se à
possibilidade ou não destas ciências ou saberes da modernidade conseguirem captar e abrigar “a
especificidade do religioso vivido na sua riqueza original e nas raízes que ele lança nas camadas mais
profundas do nosso ser, lá onde se alimentam os sentidos essenciais da existência”. 17

Com base numa reflexão mais estrita sobre o campo, há autores que defendem uma ciência da religião
voltada para “o mais abrangente e profundo entendimento possível do complexo mundo religioso em
suas manifestações históricas e expressões contemporâneas”. É o caso de Frank Usarski, que propugna
um trabalho de “delimitação do próprio campo acadêmico frente à teologia”. Sua reflexão traduz uma
tendência presente na história da ciência da religião na Alemanha. Para ele, a escolha do singular, ciência
da religião, indicaria o traço distintivo da abordagem, rompendo-se com o perfil de “normatividade”,
típico da teologia, e uma maior abertura para o trato das religiões, entendidas como “sistemas de

12[12] Claude GEFFRÉ. La raison islamique selon Mohammed Arkoun. In: Joseph DORÉ (Dir.) Christianisme, judaïsme et islam; fidélité et ouverture.
Paris: Cerf, 1999, p. 158.
13[13] Claude GEFFRÉ. Profession Théologien. Paris: Albin Michel, 1999, p. 72.
14[14] Ibidem, p. 140-141.
15[15] Henrique Cláudio de LIMA VAZ. Religião e modernidade filosófica. In: Maria Clara BINGEMER (Org.) O impacto da modernidade sobre a
religião. São Paulo: Loyola, 1992, p. 103.
16[16] Henrique Cláudio de LIMA VAZ. Religião e sociedade nos últimos vinte anos (1965-1985). Síntese, 15 (42): 37-38; 44, 1988. Segundo Vaz, o
sagrado instituidor era aquele “que definia o lugar do profano no universo simbólico da sociedade: ele se distinguia do profano para instituí-lo na sua
significação última e para legitimá-lo”; já o sagrado compensador seria um novo tipo de sagrado, “capaz de conviver com os padrões civilizatórios da
modernidade, mesmo aparentemente contestando-os”: Ibidem, p. 44. O risco de uma desvalorização do saber teológico está sempre presente no debate sobre
a(s) ciência(s) da religião, revelando preconceitos problemáticos. O teólogo França Miranda tem chamado a atenção para esta questão, ao sublinhar a
pertinência das ciências da religião para a teologia, mas indicando simultaneamente que elas não constituem a última palavra sobre a questão: M.F.Miranda.
Inculturação da fé e sincretismo religioso. REB, 60 (238): 282, 2000. Talvez fosse melhor dizer não a “última palavra”, mas a “única palavra”.
17[17] Id., Religião e modernidade... In: Op.cit., p. 106. Para Vaz, os saberes modernos não podem reivindicar para si a exclusividade da “hermenêutica da
experiência religiosa”. Para ele, há um espaço do universo espiritual não acessível às filosofias e às ciências da religião, reservado particularmente à
experiência da santidade: Ibidem, p. 106-107.
sentido estruturalmente idênticos”. Para ele, “o singular deve expressar que não há nenhum outro
conjunto acadêmico com um foco tão amplo e profundo da religião, em todas as suas expressões”. 18

Em tensão com aqueles que tendem a simplesmente excluir a teologia do âmbito das ciências da
religião, há autores que se opõem, de forma rigorosa, à distinção entre teologia e ciências da religião. É o
caso do teólogo Etienne A. Higuet. Este autor critica o pressuposto implícito de que apenas as ciências
empíricas alcançariam o estatuto de ciência. Para ele, “a noção atual de ciência não pode mais se
restringir às ciências empíricas, mas abrange também as ‘ciências hermenêuticas’”. Acrescenta ainda o
atual questionamento do “princípio da exclusão da transcendência”, especialmente no terreno das
ciências da religião, feito por certos autores da área da psicologia da religião. Afirma também que a
teologia, hoje, não é mais necessariamente “a explicitação ou justificação racional, sob a autoridade de
um magistério, de uma mensagem revelada por Deus”. Com base em Paul Tillich, assinala a singularidade
de uma teologia da cultura, distinta da teologia eclesiástica, que tem por função “analisar criticamente e
dialeticamente os sistemas interpretativos da cultura e da religião”. Uma teologia livre das injunções do
modelo teológico normativo confessional, e voltada para a experiência humana concreta, onde se
reconhece a presença de uma dimensão religiosa. Trata-se de uma reflexão “hermenêutica da dimensão
radical de sentido ou da dimensão religiosa das culturas (incluindo as religiões)”. 19

Em que medida a teologia pode ser compreendida como um saber acadêmico, com lugar reconhecido
no campo da(s) ciência(s) da religião? É uma questão trabalhada pelo sociólogo Antônio Gouvêa
Mendonça. Este autor reconhece que a teologia tem sido, às vezes, “excluída, como saber sério,
acadêmico e científico”, e esta rejeição “tem tido como principais fundamentos a ‘subjetividade’ do
objeto (a crença ou fé), dificuldades metodológicas conseqüentes e, talvez como maior razão, o fato de
estar a serviço da Igreja como racionalização do poder não mãos desta”. Na contra corrente, Mendonça
admite que a teologia pode se inserir na área da ciência ou ciências da religião desde que se afirme
como uma ciência que se organize a partir de um objeto definido e com método próprio, mas coloque a
fé entre parênteses. Propõe uma distinção entre a teologia como estudo do dogma e a teologia como
análise antropológica. Para ele, somente se a teologia se adequar a esta segunda perspectiva, pode ser
incluída entre a(s) ciência(s) da religião. E isto significa a permanente afirmação de sua dimensão crítica:
uma reflexão que se mantém vinculada aos imprescindíveis laços da fé e da revelação, mas que guarde
sua autonomia e liberdade face a qualquer autoridade.20

Em recente publicação sobre o tema, o teólogo protestante Pierre Gisel, traça algumas considerações
bem elucidativas para o aprofundamento da questão da teologia e as ciências da religião. Para Gisel, a
relação entre estes dois campos não pode ser de concorrência ou complementaridade, de
desqualificação recíproca ou de hierarquização hipertrofiante. Em primeiro lugar, há que reconhecer a
distinção que ocorre nos discursos reflexivos das ciências da religião e da teologia, com métodos,
objetivos e perspectivas diferentes. Em seu parecer, na base de certos preconceitos afirmados contra a
teologia está um desconhecimento da matéria: dela se conhece pouco e dela se toma pelo que não é. 21
Tanto as ciências da religião como a teologia se debruçam sobre a dimensão positiva ou empírica da
religião, sobre as crenças, doutrinas e Igrejas. Não se trata de um privilégio exclusivo da primeira. As
duas estão diante de um fenômeno complexo e susceptível de aproximações e apreciações diferenciadas
e diversas: “a realidade do mundo e do humano é marcada pela complexidade, permanecendo
irredutível tanto à transparência do conceito como à decisão moral”. 22 O que a teologia capta é também
e sempre o ponto de vista do ser humano.
18[18] Frank USARSKI. Ciência(s) da Religião ? Designação e identidade de uma disciplina. Mimeo, 1999, p. 1-4.
19[19] Etienne A. HIGUET. Teologia e ciência da religião. Mimeo, 1999, p. 1-2.
20[20] Antonio Gouvêa MENDONÇA. Protestantes, pentecostais & ecumênicos; o campo religioso e seus personagens. São Paulo:UMESP, 1997, p. 49-54
(cf. capítulo 1 – A cientificidade da teologia e das ciências da religião).
21[21] Pierre GISEL. La théologie face aux sciences religieuses. Genève: Labor et Fides, 1999, p. 9. Gisel fala sobre a tendência presente na Europa de
transformar as faculdades de teologia em faculdades de ciências religiosas. Menciona os exemplos da faculdade protestante da Universidade de Lausanne e da
faculdade de teologia católica de Laval (Quebec). São feitas acusações contra a teologia, no sentido de não ser suficientemente pluralista nem suficientemente
científica, ou seja, insuficientemente neutra: Ibidem, p. 15-17.
22[22] Ibidem, p. 27.
Como assinala Gisel, há três focos de interesse partilhados pela teologia e as ciências da religião: a
referência ao absoluto (ao transcendente, ao último, ao sagrado), a referência ao simbólico e ao ritual, e
aos lugares de pertença, de tradição e de experiência (as Igrejas e os cultos). Elas, porém, se distinguem
em aspectos bem precisos: as ciências da religião, em função de sua perspectiva de colocar entre
parênteses todos os recursos ao dado transcendente, acentuam o pólo da exterioridade; mas com isso
arriscam-se a não compreender o religioso, ou a reduzi-lo ao que não é (o risco da caricatura). Por sua
vez, o engajamento da teologia se dá a partir da interioridade de uma fé determinada, o que não
significa, porém, que ela deva transcender a racionalidade pública, sob o risco de se fechar numa auto-
afirmação sobrenatural.23

Assumindo uma perspectiva teológica pós-liberal, Gisel questiona o “desvio” dogmático da teologia,
enraizado nos tempos modernos, que provocou um deslocamento teórico da teologia, levando-a a
direcionar-se mais para a legitimação das doutrinas enunciadas. O autor assume a defesa de uma
teologia fundamental, compatibilizada com o horizonte universal e a pluralidade das tradições, aberta e
sensível aos desafios da sociedade global. Processa-se uma ampliação do “quaerens” da teologia,
explicitado numa atenção mais decisiva à irrupção de Deus na história e aos sinais históricos dessa
presença. Na perspectiva de uma teologia fundamental, o horizonte do trabalho e da reflexão teológica
não será “a Igreja como espaço próprio – real ou ideal – mas o mundo de todos”, e sua atenção voltada
para “as realidades antropológicas e sociais que são aquelas de todos”. A determinação da teologia não
estará mais encerrada no interesse eclesial, mas na significação cultural e social da religião. 24

Após este breve balanço de posições, há que se concordar com a possibilidade de uma relação positiva
entre a teologia e a(s) ciência(s) da religião. Não no sentido de uma rígida separação, ou de uma ingênua
identificação, mas na linha de uma “cooperação crítica”, como bem sublinhou Hans Küng. 25 Para que seja
mais crítico com respeito à sua própria pré-compreensão, o teólogo necessita do aporte da(s) ciência(s)
da religião. Caso contrário, ele corre o risco de sucumbir aos desvios da recuperação ou do imperalismo
secreto: no primeiro caso, reduzindo o que há de nobre ou verdadeiro nas outras tradições a “pierre
d’attente” que encontram o seu remate no cristianismo (teologia do acabamento); no segundo caso,
desqualificando os traços das outras religiões como degradações da verdadeira religião. 26 Da mesma
forma, o cientista da religião não pode desqualificar a singularidade do aporte da reflexão teológica, e a
pertinência de suas advertências quanto ao risco do positivismo ou reducionismo que desqualificam, às
vezes, a forma de aproximação das ciências humanas ao fenômeno religioso.

Não existe teólogo, nem cientista das religiões, nem autoridade religiosa ou política que se situe acima
de todas as religiões e seja capaz de julgá-las ‘objetivamente’. Quem pensa estar de forma ‘neutra’ acima
de todas as tradições, não descobrirá nada em nenhuma delas. E quem, (empregando uma linguagem de
Raimundo Panikkar) olhando da própria janela para a totalidade, se nega dialogar com os outros, que
também olham por suas janelas, e acha que pode dominar e julgar tudo, certamente perdeu o chão
firme sob seus pés: como Ícaro, suas asas de cera derreterão ao sol da verdade. 27

A especificidade de uma teologia das religiões no campo da ciência da religião

23[23] Ibidem, p. 44-46.


24[24] Ibidem, p. 278-279. O entendimento teológico pós-liberal de Gisel encontra certa analogia com a reflexão de Gianni Vattimo, que defende igualmente
um “repensar os conteúdos da revelação em termos secularizados – também no sentido de ‘conformes ao século’; isto em oposição ao fechamento dogmático
disciplinar da Igreja católica: Gianni VATTIMO. Acreditar em acreditar. Lisboa: Relógio D’ Água, 1998, p. 72. Conforme Claude Geffré, o teólogo é alguém
que não somente reinterpreta o ensinamento da Igreja para os fiéis, mas alguém que interpela o magistério em nome da fé tal como esta habita o espírito
moderno. Nesse sentido, o teólogo, que deve estar em comunhão com sua Igreja, deve estar sintonizado com o pensamento contemporâneo: Profession
Theologien. Op.cit., p. 193.
25[25] Hans KÜNG. Teologia a caminho; fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulus, 1999, p. 287.
26[26] Claude GEFFRÉ. Théologie chrétienne et dialogue interreligieuse. Revue de L’Institut Catholique de Paris (38): 74, 1991. Um risco muitas vezes
presentes entre missionários, como assinala Marc Augé, em sua obra Le génie du paganisme. Paris: Gallimard, 1982, p. 64: “O imperialismo ideológico do
missionário (...) consiste essencialmente em considerar as crenças locais ou uma aberração ou um pressentimento da verdadeira religião”.
27[27] Hans KÜNG. Teologia a caminho. Op.cit., p. 285.
A perspectiva teológica que mais se aproxima do horizonte da(s) ciência(s) da religião é a teologia das
religiões. Tendo nascido em torno dos anos do Concílio Vaticano II (1962-1965), a teologia das religiões
rompe as fronteiras da teologia clássica da “salvação dos infiéis”, e abre caminhos inusitados na reflexão
sobre o “significado do pluralismo religioso no plano de Deus”. 28 Para o nascimento desta nova teologia,
foi de fundamental importância a contribuição das ciências da religião. Elas atuaram como um “potente
incentivo”, exercendo o efeito “de chamar os teólogos a refletir sobre o significado e o valor das
tradições religiosas mundiais à luz da revelação cristã”. Foi com o aporte destas ciências que a teologia
pôde inaugurar um caminho novo de reflexão sobre as religiões, sem correr o risco “de se tornar um
exercício a priori e abstrato, desprovido de contato com a realidade concreta das tradições religiosas”. 29

A relação construtiva que articula a teologia das religiões com a(s) ciência(s) da religião, não significa o
desconhecimento da distinção que se opera a nível do objeto formal. A teologia das religiões não se
afirma de forma destacada de uma adesão particular a uma fé religiosa. Ela “principia e continua em
todas as fases, dentro de uma perspectiva de fé, com os pressupostos que esta implica”. 30 O teólogo,
diferentemente do cientista da religião, não pode fazer uma “epoché” ou abstração de seu engajamento
existencial. Trata-se, é verdade, de um limite, mas que pode facultar a abertura a novos horizontes de
compreensão. Ao buscar compreender a significação teológica do pluralismo religioso, inserindo-o no
desígnio misterioso de Deus, o teólogo das religiões é convocado à problematização implicada no
paradoxo mesmo do diálogo inter-religioso: a partir do interior de seu engajamento com uma verdade
religiosa particular, ele é invitado a encontrar o outro em sua diferença, a respeitar a singularidade de
sua fé, a reconhecer o direito de sua pretensão à verdade, assim como se enriquecer com as
virtualidades inéditas que animam a sua experiência existencial. O respeito à riqueza e originalidade da
outra tradição religiosa é um pré-requisito essencial de toda teologia das religiões, sem que isto
signifique um sacrifício à singularidade peculiar de cada engajamento pessoal. Esta abertura e respeito,
ao contrário do que alguns imaginam, constitui um fator de enriquecimento, facultando “uma melhor
inteligência da própria identidade e estimulando a busca de uma verdade mais alta e mais compreensiva
que a verdade particular testemunhada em cada tradição religiosa”. 31

O fato da teologia das religiões implicar uma adesão de fé, não significa render-se a um bairrismo
estreito ou exclusivista. Ela deve, necessariamente, levar a sério a infinita diversidade do fenômeno
religioso e “adotar uma perspectiva global que abarque na sua visão a totalidade da experiência religiosa
da humanidade”.32

Conclusão

O debate em torno do campo de abrangência da(s) ciência(s) da religião vem hoje enriquecido com
reflexões significativas que acontecem no âmbito da antropologia e da fenomenologia da religião.
Trabalhos recentes neste último campo, apontam para a importância da captação da “originalidade
irredutível” do fenômeno religioso e a abertura para a dinâmica interdisciplinar. Trata-se de um estudo
do fenômeno religioso, considerado em toda a sua complexidade, e que não descarta a singularidade e a
especificidade do “religioso” presente no fenômeno, uma condição imprescindível para o conhecimento
e apreciação verdadeiramente objetiva do mesmo. 33 Para avizinhar-se ao mundo das religiões, é
necessário superar o velho “preconceito racionalista”; para além de um simples fair play, exige-se uma
“verdadeira aptidão religioso-experiencial”, uma capacidade de sintonia com o coração da religião, uma

28[28] Claude GEFFRÉ. O lugar das religiões no plano da salvação. In: Faustino TEIXEIRA (Org). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São
Paulo: Paulinas, 1997, p. 116.
29[29] Jaques DUPUIS. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 16.
30[30] Ibidem, p. 17. A ciência das religiões, como bem acentuou Aldo Natale Terrin, constitui uma “longa manus” para a teologia: A.N.TERRIN. Il respiro
religioso dell’Oriente; luoghi d’incontro com il cristianesimo. Bologna: EDB, 1997, p. 12.
31[31] Claude GEFFRÉ. Le pluralisme religieux et l´indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne. Revue Théologique de Louvain, 31 (1): 25,
2000.
32[32] Jacques DUPUIS. Rumo a uma teologia..., p. 19.
33[33] Giovanni MAGNANI. Storia comparata delle religioni; principi fenomenologici. Assisi: Cittadella Editrice, 1999, p. 144-145; 176; 212-213 e 240.
atenção à sua especificidade mais autêntica: “torna-se necessário um retorno ao olhar interno das
religiões, caso se queira compreender o verdadeiro significado de uma religião, bem como um diálogo
sincero com os outros”.34

Quanto às contribuições da antropologia, vale registrar os esforços realizados por autores como Otávio
Velho e Rita Laura Segato no campo dos estudos da religião. Em particular, quando tratam da questão do
paradoxo do relativismo e da contribuição específica da religião para as ciências sociais. Na visão de
Otávio Velho, há que se questionar a falta de reconhecimento no meio acadêmico secularizado da
problemática da irredutibilidade da religião e da relevância de seu estudo. Este autor relativiza a posição
de certos estudiosos que tendem a questionar a maior inserção e esforço dos antropólogos em sua
abertura ao universo do outro, sobretudo no campo da religião. 35 Trata-se da renitente questão do
tornar-se ou não nativo na pesquisa de campo. Para Otávio Velho, “o que para um olhar externo aparece
como um ‘tornar-se nativo’ oculta algo um pouco diferente, sintomático de outras possibilidades, e que
aproxima a questão de problemas mais gerais”. Na busca de outro recorte, este autor indica que o que
pode passar por um “tornar-se nativo” constitui muitas vezes “um esforço de empatia e caridade”. E
acrescenta que o estudo da religião constitui um “terreno propício para indicar a absoluta
impossibilidade, em muitos casos, de se manter uma postura de mera observação”. 36

A antropóloga Rita Maria Segato, é outra que reage contra o recorte clássico que marcou a aproximação
da antropologia social da temática religiosa. Para ela, a teoria da interpretação, que prevaleceu nos
estudos antropológicos, “conduz a que sacrifiquemos uma parte da verdade dos seres humanos
retratados em nossos relatos etnográficos, perdendo de vista ou mesmo censurando as evidências que
falam de um horizonte íntimo em que ocorre a experiência humana do transcendente” 37. Em casos
concretos, a perspectiva “nativa” escapa radicalmente, como algo irredutível, à pergunta pelo sentido
formulada pelo antropólogo. Para Segato, “o relativismo encontra a sua fronteira mais intransponível na
maneira com que o nativo experimenta o seu absoluto, não enquanto proposição, mas enquanto
experiência vivida na interioridade”. Há algo de irredutível que separa as razões humanas que motivam o
pesquisador e as razões divinas que animam e sustentam aqueles que foram tocados em seu coração
pela experiência religiosa.38

Mantendo-se ainda no terreno da antropologia, há que se perguntar o que provoca a mudança na visão
de mundo de um Lévi-Strauss, registrado em seu extraordinário livro Tristes Trópicos. Logo no início do
livro, o autor assinala o seu “ódio às viagens” e indica que a aventura do etnógrafo é apenas a sua
servidão.39 Mas, surpreendentemente, revela um novo olhar ao final do livro. Como salienta Silviano
Santiago, “as últimas palavras de ‘Tristes Trópicos’, na sua beatitude e serenidade, resgatam o ódio, a
repulsa e a vergonha das primeiras frases do livro”. 40 Algo de “irredutível” e “inacessível” toca a
sensibilidade do antropólogo ao final de sua reflexão, mostrando um caminho novo, para além do “arco
tênue” que marca o labor de colméia dos seres humanos, e descortina um horizonte possível de
encontro com sua essência: “na contemplação de um mineral mais bonito do que todas as nossas obras;
no perfume mais precioso do que os nossos livros, aspirado na corola de um lírio; ou no piscar de olhos
cheios de paciência, de serenidade e perdão recíproco, que o entendimento involuntário permite por

34[34] Aldo Natale TERRIN. Il respiro religioso dell’ Oriente. Op.cit., p. 47 e 12.
35[35] Um típico exemplo desta postura encontra-se na reflexão de Antônio Flávio Pierucci, que denuncia a sociologia da religião no Brasil como uma área
“impuramente acadêmica”, resultante, em seu parecer, das ingerências das motivações de ordem religiosa que animam boa parte dos cientistas sociais que
estudam a religião no Brasil. Cf. A.F. PIERUCI. Sociologia da religião: área impuramente acadeêmica. In: Sérgio MICELLI (Org.). O que ler na ciência
social brasileira (1970-1995) – Sociologia vol. 2. São Paulo/Brasília: Sunaré/ANPOCS, 1999.
36[36] Otávio VELHO. O que a religião pode fazer pelas ciências sociais ? Religião e Sociedade.............. Para Otávio Velho, “deixar-se afetar pelo nativo
pressuõe que ‘ele/ela’ tenha algo a nos ensinar. Não apenas sobre ele mesmo, mas sobre nós”: Ibidem, p..............................................
37[37] Rita Laura SEGATO. Um paradoxo do relativismo: discurso racional da antropologia frente ao sagrado. Religião e Sociedade, 16 (1-2): 114, 1992.
38[38] Ibidem, p. 116-117. Ver igualmente as observações críticas tecidas por Waldo Cesar e Richard Shaul, a propósito da dificuldade dos estudiosos do
fenômeno do pentecostalismo no Brasil, também por carência teológica, em penetrar mais profundamente na “complexidade de um fenômeno religioso pleno
de vitalidade”; de um fenômeno que abre aos marginalizados da sociedade brasileira um efetivo espaço espiritual e social, de redefinição de sua cidadania:
Waldo CESAR & Richard SHAUL. Pentecostalismo e futuro das Igrejas cristãs. Petrópolis/São Leopolgo: Vozes/Sinodal, 1999, p. 25-29 e 152.
39[39] Claude LÉVI-STRAUSS. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 15.
40[40] Silviano SANTIAGO. A viagem de Lévi-Strauss aos trópicos. Folha de São Paulo – Caderno Mais. 10 de setembro de 2000, p. 18.
vezes trocar com um gato”.41 O antropólogo indaga: será que tudo o que aprendeu com os mestres que
escutou, com os filósofos que leu e com as sociedades que visitou, não passa de “fragmentos de lição
que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Sábio ao pé da árvore?” 42.

Estas e outras interrogações avançadas por estudiosos da(s) ciência(s) da religião apontam para
possibilidades significativas de diálogo com a teologia, particularmente com a teologia das religiões. No
campo aberto e inovador da teologia das religiões estão sendo mapeadas e desenvolvidas uma série de
questões análogas, entre as quais: o caráter irredutível e irrevogável das religiões; o pluralismo religioso
de princípio; a singularidade da mística e da experiência religiosa; o valor teologal e único das
experiências religiosas dos outros e a dinâmica dialogal e ecumênica. Instaura-se, assim, um rico espaço
de diálogo multidisciplinar, que implica abertura e reciprocidade, no respeito à especificidade e
singularidade de cada um dos interlocutores.

Fonte
TEIXEIRA, Faustino (Org.) A(s) ciência(s) da religião no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2001.

41[41] Ibidem, p. 392.


42[42] Ibidem, p. 389.

Você também pode gostar