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Paidéia, 2002,12(22), 83-87

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A CONSCIÊNCIA COMO "PONTO DE PARTIDA"
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José Uno Oliveira Bueno

RESUMO: O desenvolvimento da psicologia científica, a partir de W. James, passou a implicar uma


questão da mente e da consciência. Esta foi negada como objeto de conhecimento científico pelo behaviorismo,
tem sido estudada nos seus aspectos funcionais pela ciência cognitiva e neurociências e enfrenta o desafio hoje
de dar conta da relação entre a experiência subjetiva e os processos físicos do cérebro. Arno Engelmann vem
examinando a consciência como ponto de partida da questão, com uma contribuição especial ao seu desenvol-
vimento no Brasil.

Palavras-chave: consciência, experiência subjetiva, cérebro

CONSCIOUSNESS AS STARTING POINT

ABSTRACT: The development of the scientific psychology, starting with W. James, evolves the issue of
the mind and the consciousness. Behaviorism refused the consciousness as scientific subject; the recent advances
of Cognitive Science and Neuroscience develop its functional aspects. The present challenge is to consider the
relationship between subjective experience and the physical processes of the brain. Arno Engelmann is examining
the Consciousness as the starting point of the issue, offering a special contribution to its development in Brazil.

Key-words: consciousness, subjective experience, brain.

Na Introdução dos "Princípios de Psicologia", relação com o ambiente - W. James coloca a ques-
W. James (1890) identifica a Psicologia como a "ciên- tão que vai estar presente em toda a Psicologia cien-
cia da vida mental". Para ele, a essência da vida men- tífica subseqüente, a de preencher "o abismo
tal e a da vida corporal são "o ajustamento das rela- explicativo que se coloca entre os mundos interno e
ções internas às externas" e este deve se dar através externo", ou, mais modernamente, entre uma experi-
de uma mente ativa e seletiva, que habita ambientes. ência subjetiva e um cérebro físico. Quando se pen-
Segundo W. James (1890), a consciência é um dos sa que a mente é algo diferente da matéria, fica o
fenômenos psicológicos de nível superior que influen- problema cartesiano de explicar a interação entre
cia e é influenciado por processos fisiológicos de nível estes dois mundos. Se se nega a existência de uma
inferior. Entretanto, se existe um mecanismo biológico mente separada e se reconhece apenas um cérebro
subjacente a propriedades psicológicas, a sua identifi- físico com seus neurônios, está-se negando a experi-
cação não leva a uma abordagem reducionista. Este ência subjetiva que se tem. Mas, quando se aceita,
mecanismo biológico será melhor compreendido a partir como W. James, a experiência subjetiva e ao mesmo
de uma análise integrada com múltiplos níveis de or- tempo o cérebro físico, tem-se que superar o "abis-
ganização do contexto ambiental e social: os fenôme- mo entre os mundos interno e externo".
nos sociais epsicológicos modelam os eventos fisioló- Examinando o desenrolar histórico da ques-
gicos, de maneiras não evidentes a partir de estudos tão, verifica-se que, a princípio, o behaviorismo de-
da fisiologia isolados do contexto social e ambiental no senvolveu uma psicologia científica que ignora o fe-
qual estes se manifestam. nômeno mental, incluído o da consciência, como ob-
Com esta concepção - que nega o reducionismo jeto de estudo científico. Entretanto, diante dos avan-
fisiológico e valoriza os processos mentais ativos na ços da ciência cognitiva e das neurociências, desen-
volveu-se, nas últimas décadas, uma compreensão
1
Artigo recebido para publicação em 06/2002; aceito em09/20()2. dos correlates neurais da consciência. Terão estes
:
Endereço para correspondência: José Lino de Oliveira Bueno,
Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia.
desenvolvimentos do behaviorismo, da ciência
Ciências e Letras de RibeirSo Preto, Av. Bandeirantes; 3900. Monte cognitiva ou das neurociências dado conta da ques-
Alegre, CEP. 14040-901. E-mail: jldobuen@ffclrp.usp.br.
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tão da superação do "abismo entre os mundos inter- do subjetivo e objetivo e não tem para o autor um
no e externo"? significado especial.
Para os behavioristas radicais, a única dife-
A consciência ignorada rença entre eventos privados e públicos está no nú-
mero de pessoas que podem relatá-los, sendo que o
Embora recolhendo a herança pragmatista de privado nunca pode ser reportado por mais de uma
W. James, o behaviorismo aparece com uma pro- pessoa, mesmo que outras estejam presentes. Entre-
posta de reduzir o estudo do comportamento à com- tanto, eventos privados têm a mesma propriedade dos
preensão das relações do organismo com o contex- públicos, ou seja, são naturais e suas origens encon-
to. A mente, e por extensão a consciência, são igno- tram-se no ambiente. O comportamento, por sua vez,
radas dentro de um projeto de ciência psicológica. nunca se origina de eventos privados.
Watson (1913) considera que a definição da Baum (1999), mais recentemente, comenta que
psicologia como ciência da consciência estava na base. para o behaviorista a noção de consciência não tem
das dificuldades encontradas pelos psicólogos da épo- nenhuma utilidade para a compreensão científica do
ca, com o emprego de métodos de introspecção em comportamento. Se a distinção mundo interno - exter-
humanos e de comparações por analogia entre ani- no é recusada - como o faz o behaviorista - a noção de
mais e seres humanos. Para se tornar uma verdadeira consciência perde sentido, uma vez que está associa-
ciência, a psicologia deveria estar centrada no estudo da a um "eu autônomo interno que olha para o mundo
do comportamento objetivamente observável, recusan- externo através dos sentidos ou olha para o mundo
do qualquer "tratamento convencional" da consciên- interno da mente", tornando-se consciente dos dois.
cia: "nunca usar os termos consciência, estados men- Assim, resta ao cientista tentar entender em que oca-
tais, mente, conteúdo, verificável introspectivamente, siões as pessoas tendem a usar a palavra "conscien-
imagens e coisas parecidas" (Watson, 1913, p. 166). te", podendo-se analisar como elas aprendem a falar
A proposta de Watson visava proporcionar utilizando expressões como "estar consciente", ou que
confiabilidade e generalidade suficientes para a psico- eventos ocasionam esse tipo de discurso.
logia se tornar uma ciência natural. Machado (1997) argumenta que o uso do ter-
O behaviorismo vai alcançar um impacto mo "consciência", para o behaviorista, pode estar
maior, mais tarde, com Skinner. Menos preocupado relacionado com a capacidade de descrever o que se
com os métodos naturais, ele centra sua proposta na está fazendo, de forma verbal, manifesta ou enco-
explicação científica (Skinner, 1990) e denomina de berta, e tem a ver com o controle de comportamento
behaviorismo radical a ciência do comportamento por regras.
baseada no desenvolvimento de termos e conceitos
que permitissem explicações válidas, ou seja, com- A consciência descrita
preensíveis. O mentalismo é um termo que, segundo
ele, refere-se a um tipo de explicação que, de fato, Embora o behaviorismo, por cerca de meio
não esclarece nada e uma ciência do comportamen- século, tenha procurado abolir da psicologia toda re-
to não pode se apoiar em colocações mentalistas que ferência à consciência, esta noção está de volta sob
aparecem na linguagem cotidiana como causas do impacto dos desenvolvimentos da ciência cognitiva e
comportamento, mas são fictícias, assemelham-se a das neurociências. A partir da década de 80, a cons-
explicações, contudo impedem a busca das origens ciência passa a ser examinada intensivamente atra-
reais do comportamento, que se encontram no ambi- vés de teorias computacionais ou do estudo de me-
ente. Termos coloquiais mentalistas devem: ser canismos neurais, visando a descrição dos aspectos
substituídos por outros novos, descritivos, mais apro- funcionais da experiência consciente. Recursos da
priados para permitir a análise do comportamento. Inteligência Artificial e de modelagem neural aumen-
Para Skinner, a distinção entre eventos públi- tam a compreensão do cérebro e seu escaneamento
cos e privados não é tão importante. Ela pode através de novas técnicas oferecem correlates deta-
corresponder grosseiramente à que existe entre mun- lhados de funções da consciência.
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Andrieu (1998) mostra como, com este de- Por outro lado, Teixeira (1997) mostra como as
senvolvimento, estados conscientes tendem a ser re- explicações dos aspectos funcionais da experiência cons-
duzidos as suas bases neurofisiológicas ou físicas. O ciente, desenvolvidos pelas abordagens reducionistas
materialismo eliminativista de F. Crick, P. e Patricia neurobiológicas e cognitivas, são considerados "proble-
Churchland, T. Sejnowski, C. Koch, sustenta que os mas fáceis" por Chalmers e não caracterizam os ver-
estados mentais não existem, mas que há apenas dadeiros problemas colocados pela consciência. Mes-
estados neurobiológicos. Para os psicólogos mo quando se tem explicações para o desempenho das
funcionalistas J. Fodor e P. Johnson-Laird, é sufici- funções relevantes conscientes, permanece a questão
ente descrever os processos de pensamento sob suas de explicar por que o seu desempenho é acompanhado
formas algorítimicas, sustentando assim uma por experiências conscientes. O "problema difícil" da
homologia matemática entre cérebro e inteligência. consciência é o de como caracterizar o aspecto subjeti-
D. Dennett propõe que o cérebro é apenas uma má- vo da experiência consciente. E, por extensão, como
quina semântica: somos máquinas com cérebros processos físicos no cérebro podem ocasionar experi-
processadores de informação que produzem repre- ência subjetivas, internas?
sentações de ordem superior de nossos processos de Chalmers (1996) coloca, desta forma, o pro-
ordem inferior. O modelo de homem neuronal passa blema filosófico da consciência. O importante é que,
a se confundir com o do homem "machinal", segun- nesta perspectiva, a consciência deixa de ser o ponto
do a expressão de A. Green (Andrieu, 1998). de chegada de teorias da mente, elaboradas no con-
texto da neurobiologia ou da ciência cognitiva,
A consciência explicada ou freqüentemente por pesquisadores notáveis, mas que
"o problema difícil" desconhecem a especificidade da questão posta pela
Filosofia e Psicologia. A consciência passa a ser o
Blackmore (2001) descreve diversos dados ponto de partida para qualquer teoria da mente. A
experimentais controvertidos que estão implicados na busca da superação do "abismo entre os mundos in-
discussão dos avanços destas c o n c e p ç õ e s terno e externo", da compreensão da experiência
reducionistas e conclui que se está em um "tolo ato- subjetiva na sua relação com o mundo, torna-se um
leiro". Ao mesmo tempo, outros filósofos e pesqui- ponto irrecusável para o entendimento do fenômeno
sadores contestam esta abordagem centrada nos as- da consciência. E é neste contexto teórico que a in-
pectos funcionais da experiência consciente. O vestigação de Engelmann, desenvolvida há 30 anos
neurofisiólogo Changeux (Connes, 1990) emprega a no Brasil, adquire uma importância especial.
noção de máquina apenas como uma metáfora ou
analogia, uma vez que recusa a redução do mental O estudo da consciência, segundo Engelmann
ao neural. Searle (1994) - talvez um dos críticos mais
severos dos teóricos da ciência cognitiva - aponta Engelmann (1997a, 1997b, 2001,2002) se pro-
que a dificuldade maior destas teorias - inclusive a põe a examinar as condições de possibilidade do co-
de Changeux - é que pressupõem uma concepção nhecimento empírico acerca da consciência. Para
de realidade de terceira pessoa, que "não tem lugar tanto, parte do reconhecimento da experiência cons-
para a consciência, porque não tem lugar para a sub- ciente, una e momentânea. Contudo, admite-se que
jetividade ontológica" (pág. 101). o conhecimento científico dá-se pela passagem de
Embora quase todo mundo concorde que quan- uma observação individual para um universo coletivo
do se fala em consciência, está-se falando de subje- e temporal das ciências naturais, e portanto é neces-
tividade, as divergências começam quando se tem sário discutir as características da consciência que
que abordar a experiência subjetiva. A questão tornarão este c o n h e c i m e n t o possível. Para
proposta por W. James do "abismo entre os mundos Engelmann, ela é o ponto de partida para uma teoria
interno e externo" tem sua versão atual naquilo que da mente, uma filosofia que é intrínseca ao esforço
David Chalmers chamou de "problema difícil da de se buscar a compreensão do desempenho de suas
consciência" (Chalmers, 1996). funções. Uma subjetividade ontologicamente enten-
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dida seria a condição para a compreensão das ativi- The Psychologist, 14(10), 522-525.
dades conscientes e de suas possibilidades de alcan-
1
Chalmers, D.J. (1996). The Conscious Mind. New
çar o plural do mundo exterior. >•
York: Oxford University Press.
i A história da pesquisa psicológica no Brasil
foi marcada pelo impacto, na década de 60, da intro- Changeux, J.P. e Connes, A. (1990). Matière à
dução do behaviorismo radical de B.F.Skinner. 1
pensée. Paris: O Jacob.
É nesse contexto que Engelmann se propu- Engelmann, A. (1978). Os estados subjetivos: uma
nha, já há 30 anos atrás, a dar conta de uma questão tentativa de classificação de seus relatos ver-
epistemológica, a da consciência. De um lado, bene- bais. São Paulo: Ática.
ficiava-se da sua formação filosófica, com uma ên-
fase mais ensaísta, que restrita ao rigor na leitura dos Engelmann, A. (1997a). Dois tipos de consciência: a
clássicos. Por outro lado, era leitor e estudioso dedi- busca da autenticidade. Psicologia USP, 8(2),
cado de autores como Kohler, Tolman, cujas aborda- 25-67.
gens não podiam estar contidas nos limites do Engelmann, A. (1997b). Principais modos de
behaviorismo radical. Com esta bagagem, Engelmann pesquisar a consciência-mediata-de-outros. Psi-
(1978) passa a investigar o uso de relatos verbais cologia'USP, 8(2), 251-214.
como formas de acesso aos estados de ânimo pre-
sentes. Este enorme trabalho empírico - sua Tese de Engelmann, A. (2001). O meu-mundo e o resto-d-
Doutorado, publicada pela Editora Ática - foi sendo mundo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14 (1),
acompanhado de investigações teóricas que se des- 211-223.
dobravam em aulas, conferências e publicações so- Engelmann, A. (2002). Da conceituação de estado
bre a questão da consciência (Engelmann, 1997a, subjetivo até a proposição dos escalões de
1997b, 2001, 2002). Engelmann foi, desta maneira, percepto. Psicologia: Reflexão e Crítica, (pre-
oferecendo subsídios para um diálogo permanente lo).
com os avanços, seja do behaviorismo, seja da ciên-
cia cognitiva e das neurociências, no âmbito da psi- James, W. (1890). Principles of Psychology New
cologia brasileira, trazendo ao debate sobre os fun- York: Holt.
damentos e avanços da psicologia, durante décadas, Machado, L. M. C. M. (1997). Consciência e Corn-
tanto colegas, estudantes, como a comunidade cien- portamento Verbal. Psicologia USP, 8(2), 1001-
tífica em geral. 1007.

Referências Bibliográficas Searle, J. R. (1994). The Rediscovery of the Mind.


Cambridge, MIT Press.
Andrieu, B. (1998). La Neurophilosophie. Paris:
PUF. Skinner, B.F. (1990). Can psychology be a science
of mind? American Psychologist, 45 (11), 1206-
Baum, W. (1999). Compreender o Behaviorismo.
1210.
Ciência, Comportamento e Cultura. ( M.T.A.
Silva, M.A Matos, G. Tomanari, & Z. Tourinho, Teixeira, J.F. (1997). A teoria da Consciência de
Trads.). Porto Alegre: Artmed. David Chalmers. Psicologia USP, 8(2), 109-128.

Blackmore, S. (2001). State of the art: Consciousness. Watson, J.P. (1913). Psychology as the behaviorist
views it. Psychological Review, 20, 158-177.
1
Com o regime novo de pós-graduação no país, veio a formação de
núcleos de pesquisa, com sistema conceituai e metodologia bem
definidos, sendo característica forte dos programas de pós-graduação
em psicologia, a sua capacidade de interagir com outras áreas de Este artigo é dedicado à memória de
c o n h e c i m e n t o , das c i ê n c i a s físicas, b i o l ó g i c a s e h u m a n a s . O
D e p a r t a m e n t o de P s i c o l o g i a E x p e r i m e n t a l do IPUSP, o n d e José Augusto Silveira.
Engelmann vem trabalhando há mais de 30 anos, foi um dos. poios
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importantes de concentração deste esforço d e f o r m a ç ã o de núcleos
de pesquisa, com enfoque interdisciplinar.

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